Algumas notas sobre Brás de Albuquerque e os «Commentarios de Afonso Dalboquerque» (Lisboa, 1557)_2016

June 2, 2017 | Autor: Rui Manuel Loureiro | Categoria: Early Modern History, Historiography, Cultural History of the Portuguese and European Expansion
Share Embed


Descrição do Produto

Colóquio:

AFONSO DE ALBUQUERQUE: 500 ANOS: MEMÓRIA E MATERIALIDADE

Local:

Lisboa, 16 & 17 de Dezembro de 2015

Organização: Movimento Internacional Lusófono; Biblioteca Nacional de Portugal; Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Sociedade Histórica da Independência de Portugal

Algumas notas sobre Brás de Albuquerque e os Commentarios de Afonso Dalboquerque (Lisboa, 1557)1 RUI MANUEL LOUREIRO2

Afonso de Albuquerque, apelidado por Luís de Camões como o «terríbil»,3 é uma das figuras verdadeiramente incontornáveis da história da expansão portuguesa ultramarina. Nas primeiras décadas do século XVI, o célebre capitão foi o grande responsável pelo lançamento dos fundamentos da presença portuguesa no Oriente e pela construção da original estrutura imperial que mais tarde viria a ser conhecida como Estado da Índia. O período oriental da sua biografia, que medeia entre 1503, data da sua primeira viagem à Índia, e 1515, ano do seu desaparecimento, está especialmente bem documentado em materiais de arquivo e em crónicas coetâneas, e tem sido meticulosamente estudado.4 As décadas anteriores a 1500, contudo, são menos bem conhecidas, pela relativa escassez de documentação. É neste período que se situa o nascimento do seu filho Brás de Albuquerque, que, ao contrário do progenitor, não tem merecido grande atenção da historiografia

1

2

3

4

O presente texto resulta de uma palestra proferida na Biblioteca Nacional de Portugal, no âmbito do colóquio sobre «Afonso de Albuquerque – 500 Anos: Memória e Materialidade», organizado pelo Movimento Internacional Lusófono, em colaboração com a Biblioteca Nacional de Portugal, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal, que teve lugar em Dezembro de 2015. Investigador do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, Lisboa; Professor do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes, Portimão. Luís de Camões, Os Lusíadas, ed. Álvaro Júlio da Costa Pimpão & Aníbal Pinto de Castro (Lisboa: Instituto Camões, 2000), I-14. Ver as duas biografias essenciais que hoje estão disponíveis: por um lado, Geneviève Bouchon, Albuquerque, le lion des mers d’Asie (Paris: Desjonquères, 1992), de que existe tradução portuguesa (Afonso de Albuquerque: O Leão dos Mares da Ásia, trad. Isabel de Faria e Albuquerque [Lisboa: Quetzal, 2000]); por outro lado, a recente obra de Alexandra Pelúcia, Afonso de Albuquerque: Corte, Cruzada e Império (Lisboa: Temas & Debates / Círculo de Leitores, 2016).

1

portuguesa, talvez por ter deixado poucos vestígios nas fontes quinhentistas.5 O presente texto pretende justamente sistematizar meia dúzia de anotações de carácter bio-bibliográfico sobre Brás de Albuquerque e sobre os seus Commentarios de Afonso Dalboquerque, uma obra publicada pela primeira vez em Lisboa em 1557, com uma segunda edição corrigida e aumentada em 1576. Tanto o autor como a sua obra têm sido relativamente pouco estudados, pelo que se pretende aqui sobretudo chamar a atenção para o segundo dos Albuquerque e para algumas características do curiosíssimo livro que ele escreveu e publicou. De passagem ficarão algumas dúvidas e, espera-se, também algumas pistas para futura exploração. Brás de Albuquerque nasceu por volta de 1500, em Alhandra, na sequência de uma relação que Afonso de Albuquerque manteve com uma certa Joana Vicente, mulher solteira que, segundo já foi sugerido, poderia ter alguma relação familiar com Gil Vicente. As especulações de alguns genealogistas baseiam-se na circunstância de um tal Gaspar Vicente, filho do famoso dramaturgo, ter acompanhado Afonso de Albuquerque na armada que partiu para a Índia em 1506, surgindo depois várias vezes referido em cartas e despachos albuquerquianos.6 Mas tratar-se-á provavelmente de uma mera coincidência onomástica, pois Joana Vicente seria «huma mulher d’Africa», segundo o testemunho do cronista Gaspar Correia. Este foi secretário de Afonso de Albuquerque na fase final da vida deste, e também autor das célebres Lendas da Índia, monumental crónica da presença portuguesa no Oriente na primeira metade do século XVI, que na época permaneceu inédita.7 O relacionamento com Joana Vicente, de provável origem marroquina, poderia assim remontar ao período pouco documentado da vida de Albuquerque em que, depois de 1495, ele prestou serviço em Arzila.8 Como quer que fosse, quando Afonso de Albuquerque partiu pela segunda vez para a Índia em 1506, e lembremos que não mais regressaria a Portugal, deixou o seu filho Brás, então com 6 anos de idade, entregue aos cuidados da sua irmã Dona Isabel de Albuquerque.9 Gaspar Correia, ele novamente, refere-se a «hum menino» que esta

5

6

7

8

9

Ver a biografia básica em Joaquim Veríssimo Serrão, Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994), pp. 371-381, que contém amplas referências bibliográficas. Alguma da documentação pertinente foi publicada em António Baião, Alguns ascendentes de Albuquerque e o seu filho à luz de documentos inéditos (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915). Ver Anselmo Braamcamp Freire, Vida e Obras de Gil Vicente, ‘Trovador, Mestre da Balança’ (Lisboa: Revista Ocidente Editora, 1944), pp. 98-101 e 264-265. Gaspar Correia, Lendas da Índia, ed. Manuel Lopes de Almeida, 4 vols. (Porto: Lello & Irmão, 1975), vol. II, p. 461. A carreira europeia e mediterrânica de Albuquerque, antes das suas andanças orientais, mereceria mais alguma atenção, pois está relativamente mal estudada. Sobre Arzila, ver David Lopes, História de Arzila durante o domínio português: 1471-1550 e 1577-1589 (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1924). Dona Isabel de Albuquerque era casada com Pedro da Silva, o Relé, alcaide-mor de Porto de Mós. Ver a secção sobre os «Albuquerques» em Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, 3 vols. (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1921-1930), vol. II, 1927, pp. 183-238.

2

Dona Isabel «criaua em sua casa», que «dizião que era […] filho [de Albuquerque]».10 Nesse mesmo ano, e ainda antes da partida dos navios da carreira da Índia, el-rei Dom Manuel I legitimava o jovem: «querendo fazer graça e mercê a bras filho de afonso dalboquerque fidalguo de nossa cassa e de joanna vicente molher solteyra ao tempo de sua nacença, de nossa certa ciencia e poder ausoluto que avemos dispensamos com elle e legitimamollo e abelitamollo e fazemollo legitimo».11 O jovem Brás, segundo parece, terá estudado com os Lóios, uma congregação de cónegos seculares com votos temporários, que tinha um convento em Xabregas, na época conhecido como Convento de São Bento de Enxobregas.12 Nada se sabe sobre o conteúdo dos estudos do jovem Albuquerque, mas o programa académico não seria muito distinto do de outros estabelecimentos da época, versando o ensino de gramática, retórica, lógica, e outras disciplinas. Os anos seguintes seriam dedicados ao estudo, e nada se consegue apurar sobre esta fase da vida de Brás de Albuquerque. Em Dezembro de 1515, pouco tempo antes de falecer, Afonso de Albuquerque endereçava do Oriente uma carta a el-rei Dom Manuel I, na qual solicitava protecção para o filho: «peço a vosa alteza por mercee que se lembre de tudo isto, e que me faça meu filho grande, lhe dê toda satisfaçam de meu serviço».13 O grande capitão morreria poucos dias depois, junto à barra de Goa, mas o monarca lusitano reagiria de forma positiva ao seu pedido, e Brás de Albuquerque, depois desta data, passou a poder utilizar o nome próprio de Afonso, recebendo durante os anos seguintes um alargado conjunto de benesses régias, que se juntariam aos bens herdados do pai.14 O jovem Afonso Brás, na sequência da morte do seu progenitor, e apenas com 15-16 anos de idade, emergia nos círculos régios portugueses como um homem extremamente rico e decerto dotado já de alguma influência, que em anos imediatos aumentaria. O Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, publicado logo no ano seguinte, em 1516, inclui dois poemas atribuídos a «Afonso de Albuquerque», mas tendo em conta a temática e a cronologia dos mesmos, devem decerto ser atribuídos ao pai.15 Por volta de 1520, Brás de Albuquerque casou com Dona Maria de Noronha, filha de Dom António de Noronha, o escrivão da puridade de el-rei Dom Manuel I, que 10 11

12

13

14 15

Gaspar Correia, Lendas da Índia, vol. II, pp. 457-458. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Legitimações de leitura nova, liv. 3, fl. 308 (26-02-1506). Ver Anselmo Braamcamp Freire, Vida e Obras de Gil Vicente, p. 99. Sobre os Lóios, ver Pedro Vilas Boas Tavares, “Lóios”, in Carlos Moreira Azevedo (ed.), Dicionário de História Religiosa de Portugal (Mem Martins: Círculo de Leitores, 2001), pp. 149-157. Sobre o convento, ver Maria do Carmo Cortez, «Beato (Convento do)», in Francisco Santana & Eduardo Sucena (eds.), Dicionário da História de Lisboa (Lisboa: Carlos Quintas, 1994), pp. 151-152. Raimundo António de Bulhão Pato & Henrique Lopes de Mendonça (eds.), Cartas de Afonso de Albuquerque seguidas de documentos que as elucidam, 7 vols. (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1884-1935), vol. II, 1898, p. 381. Ver António Baião, Alguns ascendentes de Albuquerque, pp. 72-85 Garcia de Resende, Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ed. Aida Fernanda Dias, 4 vols. (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990), vol. III, p. 306 (ida do conde de Tarouca à Turquia) e p. 352 (Duarte da Gama em Lisboa sendo el-rei em Saragoça).

3

poucos anos depois (em 1525) viria a receber o título de primeiro conde de Linhares.16 Ou seja, por via matrimonial o jovem Albuquerque via ainda mais reforçado o seu já elevado estatuto social, ligando-se a famílias da alta nobreza portuguesa. No ano seguinte, e decerto como reflexo desta posição, Albuquerque seria encarregado de comandar um dos navios da imponente armada que levou de Lisboa para Sabóia a filha mais nova de el-rei Dom Manuel I, Dona Beatriz, que ia contrair matrimónio com o duque Carlos III.17 O episódio é bem conhecido, e sabe-se que a expedição envolveu os sectores mais destacados da nobreza portuguesa, integrando um considerável número de embarcações (cerca de 20, os números variam), algumas delas pesadamente armadas. O monarca português aproveitava a ocasião do matrimónio para exibir nas regiões do Mediterrâneo o poder naval português e, simultaneamente, o fausto da corte lusitana. O cronista Garcia de Resende redigiu um relato da expedição, a «Ida da iffante dona Beatriz pera Saboya», que seria publicado em 1545, no Livro das Obras de Garcia de Resende, onde se referia ao «galião d’Afonso d’Abuquerque de dozentos e trinta [tonéis]».18 Entretanto, nada de especial se consegue apurar sobre as andanças do jovem Brás de Albuquerque durante esta viagem.19 Uma pintura da época bem conhecida, que se conserva hoje no Maritime Museum em Greenwich, e que é conhecida como «Portuguese Carracks off a Rocky Coast», poderá representar uma parte da armada portuguesa no litoral francês, e nomeadamente a nau Santa Catarina do Monte Sinai, que tinha sido construída em

16

17

18

19

Dom António de Noronha comandou em 1515 a malograda expedição portuguesa a Mamora, em Marrocos; embora a hipótese nunca tenha sido colocada, não é impossível que Brás de Albuquerque, então com cerca de 15 anos de idade, tivesse tomado parte neste empreendimento. Prolongando este raciocínio, poderia imaginar-se Brás de Albuquerque seguindo as lições de Cataldo Sículo, o célebre humanista que em Portugal, na época, exerceu funções de tutor de altas figuras da nobreza, entre as quais se encontravam familiares de Dom António de Noronha. Sobre Dom António, ver André Pinto de Sousa Dias Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»: Noronhas e Meneses de Vila Real, em Marrocos e na Índia”, in João Paulo Oliveira e Costa & Vítor Luís Gaspar Rodrigues (eds.), A Alta Nobreza e a Fundação do Estado da Índia: Actas do Colóquio Internacional (Lisboa: Centro de História de Além-Mar / Instituto de Investigação Científica Tropical, 2004), pp. 109-174; a respeito do desastre da Mamora, ver Pierre de Cénival, “L’Expédition de la Mamora (juin-août 1515)”, in Henri de Castries, Pierre de Cenival, David Lopes, Robert Ricard & Chantal de La Véronne (eds.), Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc – Archives et Bibliothèques de Portugal, 5 vols. (Paris: Paul Geuthner, 1934-1953), vol. I, 1934, pp. 695-702. Para uma versão on-line, cf. http://cham.fcsh.unl. pt/pages/instrumentos.htm (acesso em 22-06-2016). Sobre Cataldo, ver os estudos reunidos em Américo da Costa Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal, vol. V (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013). Ver Ana Isabel Buescu, “A Infanta Beatriz de Portugal e o seu casamento na Casa de Sabóia (15041521)”, in Maria António Lopes & Blythe Alice Raviola (ed.), Portugal e o Piemonte: A Casa Real Portuguesa e os Sabóias: Nove séculos de relações dinásticas e destinos políticos (séculos XII-XX) (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013), pp. 51-100. Garcia de Resende, Livro das Obras de Garcia de Resende, ed. Evelina Verdelho (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994), p. 495. Para uma narrativa mais ou menos contemporânea da viagem, ver Gaspar Correia, Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533), ed. José Pereira da Costa (Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1992), pp. 143-159.

4

Cochim em 1512.20 O assunto não é pacífico, nem tão pouco a autoria da pintura (por alguns atribuída à escola do pintor flamengo Joachim Patinir), e tem havido algum debate entre os especialistas. Mas as fontes da época assinalam a presença de Brás de Albuquerque na comitiva, e num lugar de destaque, já que comandava um dos dois únicos galeões que integravam a expedição. O que de facto surpreende, por um lado, porque não se lhe conhece anterior experiência náutica ou militar,21 por outro lado, porque apenas com 21 anos emparelhava com algumas das mais gradas figuras da nobreza lusitana, como Dom Martinho de Castelo Branco, conde de Vila Nova de Portimão, Dom Francisco da Gama, Dom Pedro de Mascarenhas, e muitos outros. Pouco anos depois, em 1526, Brás de Albuquerque faria também parte da comitiva que acompanhou a Sevilha a infanta (já então imperatriz) Dona Isabel, a filha mais velha de Dom Manuel I, que havia contraído matrimónio com o imperador Carlos V. O dramaturgo Gil Vicente refere-se ao jovem Albuquerque na Farsa do clérigo da Beira, que foi representada em Almeirim nesse mesmo ano de 1526. Uma das personagens da peça questionava: «Afonso d’Albuquerque, irmão, | que foi ao Emperador, | que signo tem por senhor, | e porque a sua condição | não poderá ser melhor?». E responde outra: «Mercúrio é a sua estrela, | e será bem esquençado | se jogar jogo assentado; | porém, se jogar a pela, | não lhe ficará cruzado».22 Brás de Albuquerque, como se vê, era apresentado como um homem extremamente rico e afortunado. Aliás, pouco tempo antes, em 1524, el-rei Dom João III pedira-lhe emprestados 6 mil cruzados, «pera se poder suprir a despesa desta armada que ora […] emviamos aa Imdia».23 Valerá a pena referir um outro pormenor sobre a viagem a Espanha na comitiva de Dona Isabel. O Marquês de Vila Real (que nesta altura era Dom Pedro de Meneses) escrevia ao monarca lusitano desde Sevilha, referindo que «Afonso de Albuquerque se vay porque tem necessydade dacudir sobre sua casa, porem crea V. A. que esses dias que cá esteve fostes delle muito bem servido»; e acrescentava que o jovem Albuquerque lhe servira de improvisado secretário na redacção de algumas cartas, «porque a minha letra hé maa». Ou seja, ficamos a saber por esta missiva que Brás de Albuquer-

20

21 22

23

O mesmo navio aparece no desenho de Judá (ou Jeddah) inserido em Gaspar Correia, Lendas da Índia, vol. II, pp. 494-495. Uma nota de Pimentel Barata inserida no estudo de David Waters, “The Iberian bases of the English Art of Navigation in the Sixteenth Century”, Revista da Universidade de Coimbra, vol. 24, 1971, pp. 347-363 (cf. p. 362), refere que o quadro esteve 400 anos em Portugal, que em 1911 foi vendido para a Alemanha, sendo depois comprado por Sir James Caird, para o Maritime Museum de Greenwich. Ver, sobre esta curiosa pintura, Richard Barker, “Showing the flag in 1521: wafting Beatriz to Savoy”, disponível em http://home.clara.net/rabarker/Showing-the-flagweb.htm (consultado em 22-06-2016); o autor desautorizou a versão portuguesa deste estudo incluída em Maria da Graça Mateus Ventura & Luís Jorge Semedo de Matos (eds.), As novidades do mundo: conhecimento e representação na Época Moderna (Lisboa: Colibri, 2003), pp. 83-113. A não ser que se confirme a participação na expedição de Mamora. Gil Vicente, Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, ed. Maria Leonor Carvalhão Buescu, 2 vols. (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984), vol. II, p. 545. Ver Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Notas Vicentinas (Lisboa: Edição da Revista Ocidente, 1949), p. 370. António Baião, Alguns ascendentes de Albuquerque, p. 81.

5

que tinha alguma aptidão para a escrita.24 Mas mais nada se sabe sobre as actividades de Brás de Albuquerque durante esta jornada a Sevilha.25 Data desta época a construção por Brás de Albuquerque da célebre Casa dos Bicos, em Lisboa, que passaria a ser a sua residência citadina. Tem sido sugerido que ele teria colhido inspiração para esta curiosa edificação na sua passagem por Itália, e nomeadamente em Ferrara, onde existia então um Palazzo dei Diamanti com fachada similar, construído pela família do duque Ercole d’Este.26 Mas embora Albuquerque certamente tivesse passado por Nice e por Turim, não é absolutamente certo que tivesse visitado Ferrara durante a viagem em que acompanhou Dona Beatriz até Sabóia. Essas deslocações seriam pouco compatíveis com a capitania de um galeão, que lhe estava confiada. Também na mesma época, ainda na década de 1520, Albuquerque adquiriu uma propriedade rural em Azeitão, que mais tarde viria a ser conhecida como Quinta da Bacalhoa.27 Consolidava assim, em bens imobiliários de algum aparato, situados tanto no campo como na cidade, o seu destacado estatuto social. Nas três décadas seguintes, Brás de Albuquerque desaparece de circulação, ou seja, nada se consegue apurar sobre as suas andanças na documentação da época. Há apenas dois leves indícios das suas actividades. O primeiro indício aparece numa carta que o conde da Castanheira escreveu a el-rei Dom João III em 1534. Aparentemente, Albuquerque e os filhos do conde de Linhares, seus cunhados, encontravam-se então em Lisboa, preparando um navio para acorrer em socorro da praça marroquina de Safim, vítima de mais um dos regulares assédios a que estava sujeita.28 Mas a viagem foi cancelada por instruções régias, pois aparentemente já não se justificaria. Com base neste indício, talvez se possa especular que Brás de Albuquerque, na década de 1530, teria exercido funções nas armadas portuguesas que patrulhavam o estreito de Gibraltar ou que davam apoio às fortalezas portuguesas da costa de Marrocos. Não é uma impossibilidade. Nessas mesmas andanças, por exemplo, andava então Dom João 24

25

26

27

28

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, 1-34-4, citado in Anselmo Braamcamp Freire, Vida e Obra de Gil Vicente, p. 266. Sobre o Marquês de Vila Real, ver André Pinto de Sousa Dias Teixeira, “Uma linhagem ao serviço da «ideia imperial manuelina»”, pp. 109-174. A modéstia de Dom Pedro de Meneses será de ordem retórica, já que também ele fora aluno de Cataldo Sículo, tendo fama de bom latinista; ver Nair de Nazaré Castro Soares, “O Primeiro Humanismo Ibérico”, in Italo Pantani, Margarida Miranda & Henrique Manso (eds.), Aires Barbosa na Cosmopólis Renascentista (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra / Sapienza Universitá di Roma, 2014), pp. 9-32. Sobre o casamento, ver Mónica Gómez-Salvago Sánchez, Fastos de una boda real en la Sevilla del quinientos: estudios y documentos (Sevilha: Universidad de Sevilla, 1998). A respeito de Ferrara nesta época, ver Thomas Tuohy, Herculean Ferrara: Ercole D'Este (1471-1505) and the Invention of a Ducal Capital (Cambridge: Cambridge University Press, 2002). Sobre os bens imobiliários de Brás de Albuquerque, ver Maria da Conceição Amaral & Tiago dos Reis Miranda (eds.), De Olissipo a Lisboa: A Casa dos Bicos (Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002), e Joaquim Rasteiro, Quinta e Palácio da Bacalhoa em Azeitão: Monographia Histórico-Artística (Lisboa: Imprensa Nacional, 1895). Ver Les Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, vol. II, 1946, pp. 608-610. Sobre Safim, ver Durval Pires de Lima, História da Dominação Portuguêsa em Çafim (1506-1542) (Lisboa: Imprensa Lucas & C.ª, 1930).

6

de Castro, contemporâneo de Albuquerque júnior.29 O segundo indício encontra-se nas ligações que o filho do grande Afonso de Albuquerque manteve com a Misericórdia de Lisboa a partir de 1542, que implicaram nomeadamente o exercício de funções de provedor em diversas ocasiões.30 Mas de resto as fontes coetâneas são da maior discrição relativamente a Brás de Albuquerque, o que não deixa de ser curioso, a respeito de um personagem com uma posição social tão destacada.

Gravura 1: Portada da 1.ª edição dos Commentarios

Durante o mês de Janeiro 1557 ocorre um evento de extraordinário relevo: Brás de Albuquerque publica em Lisboa, nas oficinas do impressor João de Barreira, os Commentarios de Afonso Dalboquerque capitão geral e gouernador da India [cf. gravura 1], um volumoso tomo com mais de 300 fólios. Trata-se de uma obra hoje raríssima, de que se conhecem, quando muito, meia dúzia de exemplares. Segundo referia Dom Manuel II no catálogo da sua biblioteca pessoal, para além do seu próprio exemplar (hoje conservado na biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa), existiriam mais três

29

30

Para uma biografia de Castro, ver António Borges Coelho, O Vice-Rei D. João de Castro (Lisboa: Caminho, 2003). Ver Anselmo Braamcamp Freire, Vida e obras de Gil Vicente, pp. 200 e 390.

7

exemplares na Biblioteca Nacional de Lisboa e um na British Library.31 Mas é possível que haja outros exemplares ainda não recenseados.32 Os Commentarios de Afonso Dalboquerque, como reza o cólofon, eram dedicados ao príncipe Dom Sebastião, no dia do seu terceiro aniversário: «Acabaranse de jmpremir vespera de sam Sebatiã, dezanoue dias do mes de Ianeyro da era de mil & quinhentos & cincoenta & sete annos, em cujo dia o Principe dõ Bastiam nosso senhor a quem esta obra vay offerecida, fez tres annos». Por que motivo, quando era já quase sexagenário, se lançou Brás de Albuquerque na empresa de historiar os feitos orientais do seu progenitor? Embora saibamos que fizera estudos humanísticos, e que manejava a pena de forma elegante, não tinha demonstrado anteriormente qualquer propensão para a escrita. E praticamente meio século se tinha passado já, desde o tempo em que o grande Albuquerque dera os primeiros passos na construção do Estado da Índia. O próprio autor avança com dois motivos para o seu empreendimento literário. Por um lado, queria relembrar o «sofrimento & trabalho» de Albuquerque e dos seus colaboradores na conquista dos «reynos & senhorios da India», justificando assim todas as mercês e benesses atribuídas ou a atribuir aos descendentes (claro que ele próprio se incluía neste grupo). Por outro lado, Brás de Albuquerque constatara que outros autores que se haviam debruçado sobre a «historea da India» tinham passado «breuemente por muytas cousas que Afonso Dalboquerque passou nesta conquista».33 Estava a referir-se, evidentemente, às grandes crónicas da expansão portuguesa, que tinham começado a ser publicadas em Portugal desde meados do século XVI: por um lado, a História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses de Fernão Lopes de Castanheda, impressa em Coimbra, em sucessivos livros, entre 1551 e 1561; por outro lado, as duas primeiras Décadas da Asia de João de Barros, que saíram dos prelos em Lisboa em 1552 e 1553. Ambas as crónicas dedicavam algum espaço a Afonso de Albuquerque, como seria previsível, seguindo com algum vagar as suas campanhas orientais; mas a história do grande capitão aparecia diluída e integrada no painel mais vasto da presença portuguesa no Oriente. Contudo, na opinião do filho, as façanhas albuquerquianas não tinham tido toda a atenção e desenvolvimento que na verdade mereceriam. Uma análise rápida permite ver que enquanto Lopes Cas31

32

33

Dom Manuel II, Livros Antigos Portuguezes (1489-1600) da Bibliotheca de Sua Majestade Fidelíssima, 3 vols. (Londres: Maggs Bros., 1929-1935), vol. II, 1932, pp. 496-509. Para uma edição recente, ver Afonso Brás de Albuquerque, Comentários de Afonso de Albuquerque, ed. Joaquim Veríssimo Serrão, 2 vols. (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973). A base de dados «Iberian Books» refere apenas um exemplar na Kongelige Bibliotek (Biblioteca Real), em Copenhaga (cf. http://iberian.ucd.ie/view/iberian:14853 [consultado em 22-06-2016]). Há referências a uma edição de 1556, mas não tenho conhecimento de nenhum exemplar, e tratar-se-á seguramente de um lapso bibliográfico; ver Alexander S. Wilkinson, Iberian Books: Books Published in Spanish or Portuguese or on the Iberian Peninsula before 1601 (Leiden / Boston: Brill, 2010), p. 9. Entretanto, a 1.ª edição dos Commentarios está hoje acessível em Portugal através da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/15295 (acesso em 22-06-2016). Afonso Brás de Albuquerque, Commentarios, ed. 1557, dedicatória.

8

tanheda dedica a Albuquerque largas secções dos livros I a IV da sua monumental crónica, Barros trata dos feitos do grande capitão ao longo de muitos capítulos da Década II.34 Mas decerto continuava a haver espaço editorial para analisar de forma mais exaustiva, e mais personalizada, o percurso oriental de Afonso de Albuquerque. Logo na dedicatória dos Commentarios, Brás de Albuquerque refere-se aos escritos de Júlio César, que teriam inspirado o seu título e a sua prosa. O que significa que conheceria bem alguma edição latina, ou talvez mesmo uma tradução espanhola, das obras do célebre estadista romano. Pode colocar-se a hipótese de ter manuseado a edição do Libro de los comentarios de Gayo Iulio Cesar de las guerras de la Galia, Africa, y España que foi impressa em Paris em 1549, com dedicatória a «Doña Leonor Reyna de Françia, y infante de España».35 Esta Dona Leonor, entretanto, não era outra senão a irmã do imperador Carlos V e viúva de el-rei Dom Manuel I, que havia casado em segundas núpcias com o Francisco I, rei de França; Brás de Albuquerque conhecera-a decerto em Lisboa nos inícios da década de 1520.36 Em favor desta sugestão, relativa à eventual utilização da tradução espanhola, da autoria de Diego López de Toledo, note-se que esta inclui logo na primeira página uma breve definição do termo ‘comentários’, que se ajusta perfeitamente com a noção adoptada por Brás de Albuquerque na sua própria obra: «Comẽtarios quiere dezir libro en el qual cõtiene en si los hechos de alguno sumariamẽnte scritos, casi como en libro de memorias o registro algo largo de las cosas de cada dia a manera de libro de jornales».37 Entretanto, não é impossível que Brás de Albuquerque tivesse também buscado inspiração nos escritos de Hernán Cortés, o conquistador do México, que tinha descrito os seus feitos militares em diversas Cartas de Relación, publicadas em sucessivas edições em Espanha na década de 1520. Também Cortés fora um leitor atento dos escritos de Júlio César, e os seus escritos seriam um modelo muito próximo de uma narrativa de feitos militares, com uma vertente biográfica de natureza apologética. 34

35

36

37

Ver Fernão Lopes de Castanheda, História dos descobrimentos e conquista da índia pelos portugueses, ed. Manuel Lopes de Almeida, 2 vols. (Porto: Lello & Irmão, 1974), passim; e João de Barros, Da Ásia: Décadas, ed. Nicolau Pagliarini, 8 vols. (Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1973), passim. Sobre estes cronistas, ver respectivamente: Ana Paula Avelar, Fernão Lopes de Castanheda: historiador dos portugueses na Índia ou cronista do governo de Nuno da Cunha? (Lisboa: Edições Cosmos, 1997), e Charles R. Boxer, João de Barros, Humanista Português e Historiador da Ásia, trad. Teotónio R. de Souza (Porto: CEPESA, 2002). Sobre a circulação europeia desta obra, ver Antonio Moreno Hernández (ed.), Julio César: textos, contextos y recepción – De la Roma clásica al mundo actual (Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2010). A respeito da rainha Dona Leonor, ver Isabel dos Guimarães Sá & Michel Combet, Rainhas-Consortes de D. Manuel I: Isabel de Castela, Maria de Castela, Leonor de Áustria (Mem Martins: Círculo de Leitores, 2012). Caio Júlio César, Libro de los comentarios de Gayo Iulio Cesar de las guerras de la Galia, Africa, y España, trad. Diego López de Toledo (Paris: Arnold Birckman, 1549). Ver uma interessante discussão sobre diversos ‘comentários’ quinhentistas em José A. Rodríguez Garrido, “El título de los Comentarios Reales: Una nueva aproximación”, in Carmen de Mora (ed.), Humanismo, mestizaje y escritura en los Comentarios reales (Frankfurt / Madrid: Vervuert / Iberoamericana, 2010), pp. 295-318.

9

Esta ligação exigiria uma investigação mais aprofundada, tendo em conta que os escritos de Cortés foram proibidos de circular em territórios espanhóis a partir de 1527.38 Mas convém não esquecer que Brás de Albuquerque estivera em Sevilha, onde poderia ter tido fácil acesso às obras cortesianas. Entretanto, algumas aproximações têm sido estabelecidas entre as ideias expressas por Hernán Cortés e os escritos de Niccolò Machiavelli, sempre com a ressalva de que o conquistador espanhol dificilmente poderia ter lido o tratado mais célebre do estadista florentino, pois Il Principe, embora escrito em 1513, só seria publicado pela primeira vez em Roma, a título póstumo, em 1532.39 Valerá a pena ter em conta a possibilidade de Brás de Albuquerque ter colhido alguma inspiração para os seus Commentarios nas obras de Maquiavel, e nomeadamente no tratado por este dedicado à caracterização do ‘príncipe’.40 De acordo com o título inscrito na portada dos Commentarios, trata-se de uma obra baseada nas «próprias cartas» escritas por Afonso de Albuquerque «ao muyto poderoso rey dõ Manuel o primeyro deste nome, em cujo tempo gouernou a India». O que coloca desde logo uma questão. Como teve Brás de Albuquerque acesso ao espólio epistolográfico do seu pai? Em finais do século XIX começaram a ser sistematicamente publicadas as cartas de Afonso de Albuquerque, que se conservam na Torre do Tombo, e hoje é possível confrontar os originais com a transcrição ou interpretação que o filho delas dá nos seus Commentarios.41 Contudo, na década de 1550, quando supostamente Brás de Albuquerque estaria a trabalhar na sua obra, os documentos oriundos da Índia estariam depositados na chancelaria régia, provavelmente nas mãos de Pêro de Alcáçova Carneiro, que era o responsável para o despacho das coisas da Índia desde 1530, ou na Torre do Tombo, de que Damião de Góis era guarda-mor desde 1548.42

38

39

40

41 42

Sobre Cortés, ver o sugestivo texto de Beatriz Aracil Varón, “Hernán Cortés en sus Cartas de Relación: La configuración literaria del héroe”, Nueva Revista de Filología Hispánica, vol. 57, n. 2, 2009, pp. 747-759, onde é citada a bibliografia relevante. Para uma edição das cartas, ver Hernán Cortés, Cartas de relación, ed. A. Delgado Gómez (Madrid: Castalia, 1993). Um investigador português confrontou recentemente as cartas de Albuquerque com as de Cortés: Francisco Bethencourt, “The political correspondence of Albuquerque and Cortés”, in Francisco Bethencourt & Florike Egmond (eds.), Correspondence and Cultural Exchange in Europe, 1400-1700 (Cambridge: Cambridge University Press / European Science Foundation, 2007), pp. 219-273. Ver Glen Carman, Rhetorical Conquests: Cortés, Gómara, and Renaissance Imperialism (West Lafayette, Indiana: Purdue University Press, 2006), pp. 46-50. Sobre as leituras renascentistas de Maquiavel em Portugal, ver Martim de Albuquerque, Maquiavel e Portugal: Estudos de história das ideias políticas (Lisboa: Alêtheia Editores, 2007). Ver Cartas de Afonso de Albuquerque, passim. Os papéis de Alcáçova Carneiro seriam transferidos para a Torre do Tombo em 1569, dando nomeadamente origem à colecção do chamado Corpo Cronológico; ver António Baião, “O Guardamór Damião de Góis e alguns serviços da Tôrre do Tombo no seu Tempo”, Anais das Bibliotecas e Arquivos, 2ª sér., vol. 9, 1931, pp. 8-20. Sobre Pêro de Alcáçova Carneiro, ver Maria Cecília Costa Veiga de Albuquerque Ramos, O Secretário dos despachos e coisas da Índia Pero de Alcáçova Carneiro, dissertação de mestrado inédita (Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2009); a respeito de Damião de Góis, de entre uma imensa bibliografia, ver Luís Filipe Barreto, Damião de Goes: Os caminhos de um humanista (Lisboa: CTT – Correios de Portugal, 2002).

10

Teria o nosso Albuquerque, por especial favor, tido acesso a este valioso espólio documental, indispensável para a tarefa a que se tinha proposto? Ou, alternativamente, possuiria Brás de Albuquerque cópias dos papéis do seu pai, enviadas a partir da Índia, depois da morte de Albuquerque sénior? Este último, numa carta de 1515, escrevera que «deixo quá esse filho per minha memoria, a que deixo toda minha fazemda, que he asaz de pouca, mas deixo lhe a obrigação de todos meus serviços, que he mui grande».43 É impossível concluir se esta disposição englobava também o arquivo pessoal albuquerquiano, mas seria uma hipótese a considerar, tendo em conta o apurado conhecimento que os Commentarios revelam de todas as movimentações, e motivações, do grande capitão. Entretanto, o Brás de Albuquerque refere logo na dedicatória da obra que trabalhou a partir «dos próprios originaes que elle [Albuquerque sénior] no meyo dos acõtecimẽntos de seus trabalhos escrevia a el Rey dõ Manuel»,44 o que pode levar a supor que estaria efectivamente a utilizar materiais do arquivo régio. Como quer que fosse, a obra de Brás de Albuquerque de forma alguma se limita a uma mera compilação das cartas do pai. Trata-se antes de uma narrativa coerente, muito desenvolvida e muito informada, que se vai sempre desenvolvendo em torno das intensões, acções e reacções de Afonso de Albuquerque, figura que mantém a centralidade ao longo de toda a obra. Um investigador britânico efectuou já uma análise preliminar dos imensos recursos estilísticos de que o autor fez uso na composição dos Commentarios.45 E a conclusão é peremptória. Estamos perante um texto longamente trabalhado, cuidadosamente redigido, minuciosamente fundamentado, que reúne ao seu imenso valor documental uma clara mais-valia literária, que desde sempre passou despercebida aos analistas, que criam estarmos perante uma simples antologia de cartas de Albuquerque sénior. Nada mais errado. Brás de Albuquerque terá decerto recorrido a outras fontes de informação, para além do arquivo que reunia as missivas do seu pai, de forma a enquadrar devidamente os dados fornecidos pelo próprio Afonso de Albuquerque. E aqui temos dois problemas distintos. Primeiro problema, o filho não cita outras fontes, para além dos escritos do próprio progenitor. Em vão se buscarão outras referências intertextuais explícitas nas páginas dos Commentarios; nada de especial se consegue apurar, para além de transcrições de documentos que estariam disponíveis na correspondência de Afonso de Albuquerque. Aparentemente, a única excepção detectável parece reportarse à Suma Oriental, um tratado manuscrito que fora preparado no Oriente por Tomé Pires, em 1515, e de que Albuquerque pai possuíra uma cópia, já que o conhecido

43 44 45

Cartas de Afonso de Albuquerque, vol. I, p. 380. Afonso de Albuquerque, Commentarios, ed. 1557, dedicatória. Thomas F. Earle, “History, rethoric, and intertextuality”, in Thomas F. Earle & John Villiers (eds.), Albuquerque, Caesar of the East (Warminster: Aris & Phillips, 1990), pp. 23-49.

11

boticário era um dos seus colaboradores e informadores mais activos.46 É evidente, como o comprovam diversas coincidências textuais, que Albuquerque filho teve acesso a esta obra, que utilizou, sem qualquer referência ao respectivo autor, em questões relacionadas com a história de Malaca no período anterior à chegada dos portugueses. Entretanto, segundo problema, nunca foi feita uma comparação sistemática entre os Commentarios e as crónicas de Lopes de Castanheda ou de João de Barros, com vista à detecção de eventuais coincidências ou influências, mas parece evidente que Brás de Albuquerque, ao redigir a biografia do pai, teve sempre presentes estas duas crónicas, nas quais recolhe amiúde elementos para a construção da sua extensa narrativa.

Gravura 2: Portada da 2.ª edição dos Commentarios

Depois da publicação dos Commentarios, em 1557, nada mais se consegue apurar sobre Brás de Albuquerque nos anos seguintes, pois desaparece novamente da 46

Ver Armando Cortesão (ed.), A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues (Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1978). Sobre Pires, ver Rui Manuel Loureiro, “Tomé Pires: boticário, tratadista e embaixador”, in Roberto Carneiro & Guilherme d'Oliveira Martins (eds.), China e Portugal - Cinco centúrias de relacionamento: uma leitura académica (Lisboa: Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa - Universidade Católica Portuguesa, 2014), pp. 23-36.

12

documentação coetânea. Mas quase vinte anos mais tarde, em 1576, publicava uma nova edição da biografia do seu pai, na mesma casa editorial, agora com o título de Commentarios do grande Afonso Dalboquerque, capitam geral que foy das Indias Orientaes, em tempo do muito poderoso Rey dom Manuel, o primeiro deste nome: nouamente emendados & acrescentados pelo mesmo auctor, conforme às informações mais certas que agora teue [cf. gravura 2]. Trata-se também de uma obra rara, embora se consigam localizar cerca de duas dezenas de exemplares.47 Esta nova edição vem acrescentar uma série de problemas àqueles que já foram anteriormente indicados, que me limitarei a recensear brevemente. Por que motivo, tantos anos depois, e já com setenta e muitos anos de idade, se lançaria Brás de Albuquerque na reimpressão da obra? Nas suas próprias palavras, pela «falta que avia deles»,48 o que pode ser entendido de pelo menos duas formas. Por um lado, ter-se-ia esgotado desde há muito a primeira edição. Por outro lado, vivia-se em Portugal uma conjuntura claramente belicista, que decerto contribuiria para uma boa recepção de uma nova edição dos Commentarios. Mas entretanto, adverte o autor, tinham chegado ao seu conhecimento «informações mais certas», que justificavam uma revisão da primeira versão impressa em 1557. Outra possível justificação para a publicação de uma versão renovada da biografia do grande Afonso de Albuquerque poderia ser a recente publicação de Os Lusíadas, em 1572. Luís de Camões, no seu extenso poema, também dedicado a Dom Sebastião como a obra de Brás de Albuquerque, tomara como protagonista Dom Vasco da Gama, o herói do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.49 Ora a crescente popularidade da épica camoniana lançava alguma sombra sobre as façanhas de Albuquerque pai, pelo que o filho se sentira motivado a republicar a obra, mas introduzindo-lhe profundas alterações que resultavam de quase duas décadas de leituras e de reflexões. Efectivamente, o que se passa é que Brás de Albuquerque não se limita a reeditar o trabalho já antigo de duas décadas, mas reformula-o totalmente. A edição de 1576 dos Commentarios é uma obra perfeitamente distinta. Em primeiro lugar, a distribuição dos capítulos é substancialmente reorganizada. Depois, muitos dos capítulos são reescritos, com a introdução de novos episódios e de substanciais desenvolvimentos. Em terceiro lugar, aparecem capítulos inteiramente novos nesta segunda edição, inexistentes na primeira edição. E num destes novos capítulos é possível identificar um caso de intertextualidade explícita, quando Brás de Albuquerque traduz, de forma algo livre, como já foi demonstrado, uma oração latina de Camillo Porzio, pro-

47

48 49

Cf. http://iberian.ucd.ie/view/iberian:14161 (acesso em 22-06-2016). A obra está acessível em Portugal através da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/15296 (acesso em 22-06-2016). Afonso de Albuquerque, Commentarios, ed. 1576, dedicatória. Ver Donald F. Lach, Asia in the Making of Europe – Volume II: A Century of Wonder, 3 tms. (Chicago / Londres: The University of Chicago Press, 1970-1977), tm. II, 1977, pp. 149-160.

13

nunciada diante do «Papa Leão Decimo em louvor da tomada de Malaca».50 A segunda edição dos Commentarios merecerá decerto uma análise mais aprofundada, com vista ao levantamento sistemático de todas as diferenças textuais que a separam da primeira edição, em termos de conteúdo, de orgânica, de estilo e mesmo de fontes. Trata-se, de facto, de uma obra mais desenvolvida e mais elaborada. A breve análise que tive ocasião de efectuar há alguns anos atrás, relativa à introdução de referências à China e ao mundo chinês na segunda edição dos Commentarios, permitiu encontrar um ponto de contacto extremamente surpreendente com a Peregrinação, o monumental livro de memórias de Fernão Mendes Pinto. Ambas as obras apresentam uma versão muito semelhante da embaixada enviada a Pequim pelo antigo sultão de Malaca, depois de 1511, um episódio que não aparece na primeira edição dos Commentarios.51 A obra de Mendes Pinto, personagem que depois de 1558 se movimentava entre Lisboa e Almada, só foi publicada muitos anos mais tarde, em Lisboa em 1614; mas é muito provável que Brás de Albuquerque conhecesse Mendes Pinto, e que ambos tivessem trocado informações ou documentação.52 Aliás, ambos pertenceriam a um activo círculo de orientalistas que nas décadas de 1560 e 1570 agregaria outras figuras ligadas às letras, que se reuniriam regularmente e que intercambiariam ideias, escritos e informações. Deste grupo fariam parte, nomeadamente: Francisco de Sousa Tavares, antigo capitão da Índia desaparecido em 1567, que fora o editor do Tratado dos Descobrimentos de António Galvão, impresso em Lisboa em 1563;53 João de Barros, feitor da Casa da Índia e cronista das coisas do Oriente, o já citado autor das Décadas da Ásia, falecido em 1570;54 Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo, morto em 1574 em circunstâncias pouco claras, e que em 1567 publicara em Lisboa a Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel;55 ou Francisco de

50

51

52

53

54 55

Afonso de Albuquerque, Commentarios, ed. 1576, pt. III, pp. 405-412. Este caso foi estudado por Luís de Matos, L’expansion portugaise dans la litterature latine de la Renaissance (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), pp. 359-360 Ver Rui Manuel Loureiro, Fidalgos, Missionários e Mandarins: Portugal e a China no Século XVI (Lisboa: Fundação Oriente, 2000), pp. 590-596. Ver Rui Manuel Loureiro, “Missão impossível: em busca das fontes da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, in Virgínia Soares Pereira (ed.), Fernão Mendes Pinto e a projeção de Portugal no mundo (Braga: Centro de Estudos Lusíadas – Universidade do Minho, 2013), pp. 13-34. Para uma recente edição crítia de Peregrinação, ver Jorge Santos Alves (ed), Fernão Mendes Pinto and the Peregrinação: Studies, Restored Portuguese Text, Notes and Indexes, 4 vols. (Lisboa: Fundação Oriente / Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010). Ver António Galvão, Tratado dos Descobrimentos, ed. Visconde de Lagoa & Elaine Sanceau (Porto: Livraria Civilização, 1987). Sobre Galvão e Francisco Sousa Tavares, ver Rui Manuel Loureiro, “António Galvão e os seus tratados histórico-geográficos”, in Roberto Carneiro & Artur Teodoro de Matos (eds.), D. João III e o Império: Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento (Lisboa: Centro de História de Além-Mar / Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2004), pp. 85-102. A respeito de Barros, ver Charles R. Boxer, João de Barros, passim. Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, ed. J. M. Teixeira de Carvalho & David Lopes, 4 vols. (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926).

14

Andrade, cronista régio desde 1593, e que seria o autor, entre outras obras, da Crónica de D. João III, impressa em Lisboa em 1614.56 Espera-se que esta breve abordagem, desenvolvida no contexto da passagem do quinto centenário da morte de Afonso de Albuquerque, possa contribuir para chamar a atenção do público interessado, e também dos especialistas, para a extrema importância dos Commentarios preparados por Brás de Albuquerque. Trata-se de uma obra que, mais do que mera antologia e panegírico do grande Afonso de Albuquerque, levanta um sem-número de problemas relacionados com o funcionamento do mundo cultural português de Quinhentos. O filho de Afonso de Albuquerque, entretanto, será decerto merecedor de mais desenvolvidas investigações, já que aparece como uma figura de singular relevo político, social e cultural, que atravessa praticamente todo o século XVI português, de 1500 a 1580, data do seu desaparecimento. Inclusive, merecerá uma reanálise a sua posição como apoiante das pretensões de Felipe II de Espanha ao trono de Portugal, que tem sido encarada de forma algo anacrónica pela historiografia portuguesa.57 Mas isso são outras histórias.

56

57

Francisco de Andrade, Cronica de D. João III, ed. Manuel Lopes de Almeida (Porto: Lello & Irmão, 1976). Ver Joaquim Veríssimo Serrão, Figuras e Caminhos do Renascimento em Portugal, pp. 371-381.

15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.