Algumas notas sobre os Cadernos de Desenho

June 1, 2017 | Autor: Philip Cabau | Categoria: Drawing, Sketchbooks, Drawing as a research tool
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ENCONTRO DA LIVRARIA DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE LISBOA – À VOLTA DOS CADERNOS DE LUÍSA PASSOS 22 de Junho de 2016

Algumas notas sobre os cadernos de desenhos

Se cruzarmos o título do presente ciclo de breves exposições de desenhos, a “Transversalidade no Desenho e Livros de Artista”, com as imagens da primeira mostra do ciclo, o trabalho de desenho de campo de Luísa Passos, um tema emerge: “O Caderno de Desenho como Livro de Artista”. De facto, entre o Livro de Artista e o caderno de desenhos, em abstrato, são várias as semelhanças. Ambos são ou parecem livros. Como eles, a capa exterior revela, ao abrir-se, um interior fértil e surpreendente, um espaço organizado e sequencial, disponível, neste caso, para a captura de inscrições, um espaço de potencial testemunho autoral. É um objeto coeso, feito para ser folheado e não desfolhado. É certo que um Livro de Artista pode ser, evidentemente, um caderno de desenhos: e vice-versa. Mas isso não significa que coincidam. A começar pela própria ideia do que é um original e uma cópia – ou uma reprodução. E esta não é uma questão secundária, pois um Livro de Artista que recorra ao desenho e que, pela sua natureza, não admita reproduções é, de certo modo, um caderno de desenhos. Do mesmo modo que um Caderno de Desenhos capaz de ser reproduzido em edição de exemplares múltiplos é, até certo ponto, um Livro de Artista. Mas a verdade é que se nos confinarmos ao espaço mais concreto, físico e palpável que é convocado pelos próprios desenhos do caderno – e, sobretudo, se não ignorarmos a diferença da intencionalidade que preside à sua origem – os dois objetos são inequivocamente distintos. Para além da distância entre o original e o múltiplo há outras questões, centrais, a considerar. Associada à questão da intencionalidade está uma outra, a dimensão projetual do objeto. Esta tende a assumir caraterísticas muito diferentes num e noutro objetos. É que se o Livro de Artista assenta diretamente sobre a ideia de projeto, que o determina desde o primeiro momento e que, de certa forma, precede o próprio objeto, já no caderno de desenhos essa dimensão projetual, a existir, está apenas no desenho – ou, 1

mais precisamente, no próprio desenhar. Nisto consiste, creio, o cerne da sua identidade. Trata-se de uma experiência de perceção que só existe por via do desenho e onde o ego, a consciência autoral e a pressão da intencionalidade se esvanecem no próprio processo do desenho, que se funde aqui com a própria imersão do olhar – confirmado, por sua vez, pelas inscrições que vão surgindo na superfície branca do papel, a testemunhar o confronto entre desenhador e objeto. Num mundo assoberbado por categorias predefinidas, os cadernos de desenho (e os desenhos no caderno) são, muito provavelmente e com tudo o que isso implica, um dos últimos espaços de liberdade do desenho e da sua prática. Que, por isso mesmo, importa preservar. Daí a cautela que devemos ter em distingui-lo do Livro de Artista. Por causa da profusão dos cadernos a que hoje temos acesso, tendemos a esquecermo-nos de algumas coisas importantes sobre esse objeto já antigo. Como por exemplo que os cadernos foram, durante séculos, encadernados a pedido do próprio cliente, pois era ele que escolhia tanto o papel como o tipo de capa. Bem como o tamanho do caderno – dentro das características fixadas artesanalmente – de modo a permitir a fixação das folhas. Esquecemos que antes das renovação técnica da pintura a óleo – desenvolvidas e difundidas na segunda metade do século XIX e que permitiam ao artista pintar sobre tela, no exterior – o caderno era o único suporte de produção capaz de admitir o registo gráfico de uma experiência visual. E também que a fotografia portátil – e económica – é uma tecnologia muito recente. Os cadernos que Leonardo da Vinci, na segunda metade do século XV, levava consigo para os campos de batalha, à noite, após os combates, para estudar a anatomia humana desenhando, com as mãos ensanguentadas, a anatomia dos corpos dilacerados dos soldados... os cadernos repletos de descrições e desenhos que Goethe produziu na sua viagem a Itália... ou ainda os inúmeros cadernos de Turner onde este registava compulsivamente imagens no exterior ao longo de toda a sua vida (como os milhares de desenhos que recolheu da sua travessia dos Alpes) inscrevem-se já numa genealogia que começou muito tempo antes destes autores. O primeiro caderno de desenhos de que há registo na Europa é o famoso caderno de Villard de Honnecourt, datado do século XIII. Encadernado como os incunábulos, os precursores do livro moderno em papel, com as suas páginas de pergaminho, pensou-se durante muito tempo que este objeto servia uma função projetual, sendo posse de um 2

arquiteto medieval francês que nele esboçava as ideias e as formas relacionados com projetos e construção das catedrais góticas. Hoje, contudo, a historiografia defende que se tratava afinal de um utensílio de registo de uma espécie de fiscal técnico de obras religiosas, ao serviço da Igreja Católica. Honnecourt usaria assim o caderno para nele inscrever desenhos que lhe permitiam verificar a conformidade das obras em curso face aos cânones das obras eclesiásticas em diferentes cidades. Os arquitetos, claro, ficaram desiludidos. Mas será o caderno, por este motivo, menos interessante? Não creio. Muito pelo contrário, pois ele torna-se assim o primeiro caderno de desenhos de observação, atenta e intencional, de que há memória. Com a particularidade de os seus desenhos testemunharem um movimento que vai dos desenhos canónicos para o real da obra, ao mesmo tempo que serve para recolher do real as suas formas construídas. Efetivamente, os primeiros cadernos de que há memória (que antecedem nalgumas décadas os famosos cadernos de Leonardo), cumprindo um propósito estritamente projetual, foram os cadernos de um engenheiro da cidade de Pisa, chamado Mariano Tacolla, nascido em 1382. As suas funções eram aquelas que hoje se atribuiriam a um Engenheiro-chefe de Obras Públicas. Os cadernos de Tacolla, fabricados já em papel, incluem tanto as arquiteturas como as engenharias, as civis como as militares e os seus desenhos cobrem uma imensidade de especialidades técnicas daquele principado: máquinas de guerra, trabalhos hidráulicos, dispositivos mecânicos, estruturas agrícolas... Constituem igualmente exemplos notáveis do que o desenho pode enquanto ferramenta de observação, dois curiosos cadernos de desenhos de autores portugueses. O primeiro é da primeira metade do século XVII, da autoria do missionário franciscano Frei Cristóvão de Lisboa, defensor dos índios brasileiros, e chama-se “História dos animais e árvores do Maranhão”. Com uma curiosidade cientifica, Frei Cristóvão pretendia elaborar uma história da Natureza desta região do Brasil. Desse projeto chegaram até nós apenas algumas das pranchas preparatórias, folhas de cadernos com apontamentos produzidos entre 1624 e 1627. Da interessante biografia deste homem nascido em Évora e que partiu para o Brasil já com 40 anos de idade, dividida entre aquilo que hoje chamaríamos a defesa dos direitos das populações indígenas e a sua curiosidade pela exuberante natureza tropical do Maranhão e Grão-Pará, fica a pergunta: até que ponto não será possível estabelecer uma relação entre a atenção do desenhador e aquela do humanista? Ou, por outras palavras, qual a contaminação que uma prática da observação desenhada poderá providenciar a outras dimensões da atenção – nomeadamente, neste 3

caso, às populações indígenas do Brasil, sua cultura e comportamentos que, tal como a fauna e a botânica, eram tão diferentes das nossas, em Portugal? O segundo caderno de desenhos é da autoria do Comandante da Marinha Pinto Basto, ainda jovem oficial (que viria mais tarde a produzir uma obra pictórica significativa no âmbito da aguarela marinha), consiste num diário de bordo repleto de notas do quotidiano da viagem, como a tradição impunha, e contém inúmeros desenhos da sua viagem ao Extremo Oriente. A sua atenção incide, no início do diário de bordo, sobretudo nas questões relacionadas com a sua área profissional: os navios e a navegação. Os desenhos, pequenos e esparsos, inseridos entre longas descrições, evidenciam ainda a cautela de um principiante. Mas à medida que o tempo passa a curiosidade pelo que vê nas viagens é acompanhada por uma cada vez maior atenção ao desenho, começando a cobrir assuntos já no exterior dos limites do seu ofício: lugares, pessoas, utensílios. Os desenhos deste caderno diário testemunham uma aprendizagem do olhar onde o desenho desempenha um papel crucial no afinamento da perceção e no entendimento e disponibilidade ao mundo. Esta vocação do desenho de observação para estabelecer contacto com a alteridade é uma das suas potências maiores – que o caderno de desenhos pode, precisamente, desenvolver.

Hoje, no contexto de uma realidade onde a perceção está incontornavelmente associada à profusão global das imagens fotográficas e onde o smartphone substituiu a câmara fotográfica, é surpreendente o quanto os cadernos de desenho (ou diários gráficos, denominação pela qual são geralmente conhecidos) tendem a retomar essa função de “dispositivo de contacto”. Eles parecem assegurar uma forma de perceção em falta. Para o artista eles já não constituem o contraponto ao atelier, uma vez que este deixou de existir nos moldes em que funcionou durante tantos séculos, mas antes a alternativa ao excesso vertiginoso das imagens sem duração que preenchem cada instante da nossa vida. É neste sentido que se pode falar de uma proximidade entre o caderno de desenho nas mãos de um pintor dos séculos XVIII ou XIX e os atuais cadernos de desenhos. O desenhador pode dizer ainda, como outrora: “eu conheço isto, era assim, pois estive lá, desenhei-o – e compreendi-o”, pois o desenho de observação permite aceder a uma experiência intensa face (ou melhor, com) o objeto, um conhecimento que passa pela devolução que esse mesmo objeto pode proporcionar. 4

Como antes, o caderno de desenho continua a proporcionar uma relação imersiva com o mundo. O desenhador está lá, no interior do que desenha; e testemunha, usando os gestos do desenho sobre a superfície da pequena janela das páginas abertas do seu caderno, essa realidade que espreita. O desenhador deverá, contudo, aceitar alguma regras inerentes ao “jogo do caderno de desenho”. São regras que, tal como acontece com os outros jogos, constituem uma narrativa imposta ao real e às suas liberdades e sem as quais o jogo não sobreviverá. Talvez seja esta característica que tende a promover, entre os desenhadores dos cadernos de desenhos, as muitas comunidades que agregam os utilizadores dos cadernos de desenho (como ocorre com os Urban Sketchers ou o Grupo do Risco). Afinal, sem vários jogadores o jogo não pode ter lugar. Essa narrativa assenta em diversos pressupostos ontológicos: desenhar pode ser uma aventura, uma ação potencialmente furtiva; constitui, a priori, a procura de uma experiência na qual o caderno é uma janela sobre o mundo (tanto no sentido figurativo como no literal). O desenho, assim concebido, é um utensílio propício à captura das forças que constituem o real e os desenhos assim realizados permitirão, mais tarde, testemunhar essa mesma experiência – através das inscrições desenhadas diretamente sobre as páginas do caderno que conheceu, ele mesmo nas mãos do desenhador, o lugar desse acontecimento. É neste sentido que o caderno de desenhos é, para a comunidade que o partilha, uma máquina de reconstituição das próprias experiências da observação. Trata-se, de certa forma, de uma narrativa que reproduz, na linguagem dos adultos, uma ficção da infância – no sentido em que defende a existência de um olhar alegre e sem a gravidade excessiva das práticas profissionais e seus parâmetros intransigentes. A sua ficção é deste modo a própria sobrevivência da figura do amador - no sentido etimológico do termo, aquele que ama (desenhar). Esta é a fissura pela qual os cadernos de desenho tendem, por vezes, a devir uma espécie de fetiches muito singulares. Talvez seja essa, contudo, a origem da leveza luminosa que caracteriza a postura destes desenhadores tão especiais. Poder-se-ia mesmo dizer que mais do que cadernos de desenho há desenhadores de cadernos de desenho. O seu espaço não é tanto aquele da ciência, nem da reportagem ou da produção artística, mas um outro, igualmente atento – simultaneamente empático e analítico – na observação do mundo: o do desenhador. Neste sentido, os seus desenhos assentam não tanto sobre os “primo pensier” (o termo inventado no século XVI que referia à breve anotação gráfica capaz de ser formulada como um todo), esses utensílios gráficos 5

cuja função é capturar uma ideia fugaz, mas sobre uma espécie de “pensier in loco”. Ou seja, um pensamento que só pode acontecer sobre o lugar da própria observação. Os desenhos do caderno de desenho testemunham precisamente essa energia curiosa onde, face à coisa desenhada, o desenhador regista os traços de um pensamento em contacto com a sua própria observação.

Não é que um caderno de desenhos não possa – e, por vezes, não deva – ser um Livro de Artista. Mas insistir na classificação, catalogação e avaliação de todas e quaisquer manifestações, nomeadamente as do espírito, antes que estas estejam formadas e estabilizadas, capazes de configurar uma existência efetiva, apresenta o maior dos perigos à invenção e à experiência: a impaciência face ao inacabado. Os cadernos de desenho constituem, neste sentido, uma resistência – que é, na área do desenho, porventura a última, pois não chegam a ser realmente parte integrante dos territórios que tomam de empréstimo, ciência ou arte, mantendo resolutamente a defesa de uma narrativa, a que o desenho pode ser apenas isto, uma atenção gráfica ao mundo, um modo de contacto do olhar.

Philip Cabau, Junho de 2016

Uma nota suplementar. Lembrei-me, por nos encontrarmos aqui num espaço de livros e a falar sobre cadernos de desenho, que seria oportuno trazer comigo alguma da bibliografia que referi, nomeadamente os edições que ilustram alguns dos autores mencionados: Honnecourt, Tacolla, Leonardo, Frei Cristóvão de Lisboa, Goethe, Turner, Cézanne, Henry Moore, Motherwell... e o Comandante Pinto Basto – para poderem ser folheados pelos presentes, a par dos cadernos, esses sim, magníficos testemunhos originais, da Luísa Passos.

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