Algumas observações sobre surrealismo e marxismo, seguidas de outras sobre surrealismo no Brasil

June 19, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Surrealism
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Algumas observações sobre surrealismo e marxismo, seguidas de outras sobre
surrealismo no Brasil
Claudio Willer
O texto a seguir, discutindo um livro de Michel Löwy, é de
2004. Saiu em Agulha e TriploV. Decidi reapresentar. Acho
que complementa outro, também republicado aqui no
Academia.edu, sobre surrealismo no Brasil.
I
A quantidade de títulos brasileiros sobre surrealismo pode ser contada
nos dedos. Este é um dos motivos para registrar A estrela da manhã –
Surrealismo e marxismo de Michael Löwy (Editora Civilização Brasileira).
Seu autor conhece o assunto, por tê-lo pesquisado e pela participação, há
décadas, em atividades surrealistas. Daí a argumentação fluente,
fundamentada em uma sólida bibliografia.
Pode, contudo, por causa do subtítulo, criar uma expectativa e
subseqüente frustração, pois sugere a discussão da relação entre o corpus
do que é entendido por marxismo, ou abrangido por esse significante
(bastante coisa, é claro), e tudo o que é designado por outro termo
saturado de sentido, surrealismo.
Mas A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo é, antes, uma
coletânea de ensaios. Tem um fio condutor, o exame da natureza
revolucionária do surrealismo. A estrela da manhã do título é sua metáfora.
Remete ao final de Arcano 17 de Breton: é a estrela especialmente luminosa
emanada, segundo Éliphas Lévi, do anjo rebelde, Lúcifer, e que representa
ao mesmo tempo amor e liberdade. O belíssimo final dessa obra complexa de
Breton, Arcano 17 (editado pela Brasiliense), equivale às etapas finais de
um processo iniciático: Breton evoca o sentido da Estrela da Manhã, Vênus,
a supremacia do feminino, ao descobrir o estudo de Viatte mostrando o
diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, mostrando como partilharam a
crença nesse mito liberador.
Um dos ensaios de Löwy é sobre Walter Benjamin. Comenta o modo como
surrealismo impressionou o autor de O drama barroco alemão, resultando em
influência e intertexto, especialmente de O Camponês de Paris de Aragon,
evidente em Rua de Mão Única e outros de seus escritos. Examina sua
apreciação lúcida e pioneira, levando-o, já em 1929, a partilhar com Breton
e Aragon a idéia de iluminações profanas, a admiração pelo romantismo
radicalizado de Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont, a percepção do
maravilhoso que emerge no mundo moderno; e mais, o que Löwy chama de
marxismo gótico, a sensibilidade para a dimensão mágica das culturas do
passado. Os conceitos weberianos de desencantamento e re-encantamento do
mundo são invocados, na introdução do livro e neste ensaio, a propósito da
conexão Benjamin-surrealismo.
Outro capítulo, sobre Pierre Naville, pensador político importante, um
dos editores de La Révolution Surréaliste, é oportuno. Divergências
filosóficas à parte, o tratamento dado por Breton a Naville em 1930,
difamando-o no Segundo Manifesto do Surrealismo, não foi algo que se faça.
Recuperando Naville, revela bastidores da relação surrealismo-trotskismo
nos anos 30. Ao que parece, se não fossem as diferenças entre ambos, Breton
e Naville, a aproximação de Breton e Trotski poderia ter-se dado antes.
Em seguida, vem um texto sobre O romantismo noir de Guy Debord e
situacionismo. Chega em boa hora, por coincidir com a publicação, no
Brasil, de manifestos da Internacional Situacionista e outras obras de
Debord pela Conrad Livros. Traça um perfil de Debord, ao expor as linhas
gerais de seu pensamento. Mas, dentro dos propósitos de A estrela da manhã,
o exame das diferenças e afinidades entre surrealismo e o autor de La
Societé du spectacle não poderia ficar restrito a um breve parágrafo, em
acréscimo ao que é dito nas páginas iniciais do livro, supondo afinidades
eletivas a aproximarem a atitude surrealista e a deriva situacionista.
Finalizam a série dois textos interligados, que poderiam compor um só
artigo: um elogio a Vincent Bounoure, e um balanço da situação de grupos e
movimentos surrealistas depois da morte, em 1966, de Breton.
Vincent Bounoure, morto em 1996, participou ativamente do surrealismo
desde 1955, publicando em periódicos como Surréalisme même e La brèche. Em
1969, insurgiu-se contra a dissolução do surrealismo por Jean Schuster
(legatário de Breton), José Pierre e Gérard Legrand (co-autor, com Breton,
de L'Art magique), entre outros integrantes de peso desse movimento. Mas
teve apoio de outros surrealistas de expressão, como Jean-Louis Bédouin, a
excelente poeta Joyce Mansour e Robert Lebel. Daí em diante, Bounoure
editou periódicos e a coletânea La Civilisation surréaliste. Estimulou
manifestações e atividades no mundo todo. Criticou sua apropriação
acadêmica, universitária. Segundo Löwy, ...Se a aventura surrealista ainda
continua em nossos dias, e se ela prossegue no século XXI, como esperamos,
isso se deve e há de se dever, em absoluto primeiro lugar, ao espírito de
insubmissão de um homem: Vincent Bounure. Entre outras informações sobre a
movimentação surrealista pós-bretoniana, Löwy registra sua aproximação à
Quarta Internacional, trotskista, em 1976; por conseguinte, aos marxistas
revolucionários.
A seguir, relata o prosseguimento dessa aventura surrealista, a
traduzir-se em publicações, manifestações e atividades no mundo todo,
freqüentemente ignoradas pela mídia e especialistas da área universitária,
levando-o a afirmar: ...pior para os críticos, especialistas e outros
dignos membros perpétuos da Academia das Inscrições e Belas-Letras. O
surrealismo está alhures. (parafraseando Breton, que por sua vez adaptou
Rimbaud, no final do primeiro Manifesto, ao dizer que a verdadeira vida
está alhures, em outro lugar).
Essas observações têm um alvo: aqueles do grupo liderado por Breton
que se moveram na direção da Sorbonne e outras universidades, e de núcleos
acadêmicos de pesquisa, como o C. N. R. S. e o Centre de Recherches du
Surréalisme dirigido por Henri Béhar, biógrafo de Breton, autor de obras
sobre surrealismo e estudos importantes sobre Alfred Jarry.
Mas Löwy, neste capítulo sobre O surrealismo depois de 1969, teria que
mostrar melhor o que há nesse alhures, para que os leitores saibam o que,
nele, ultrapassa o epigonal. Apenas elencar publicações, grupos e
atividades equivale a um relatório protocolar. Não adianta dizer-se
surrealista e declarar o ímpeto revolucionário, sem mostrar algo no plano
da criação, da produção intelectual. É um paradoxo: mas, com todo o seu
discurso crítico com relação a artes e literatura, o que mantém o interesse
por surrealismo é sua ligação ao melhor do que se produziu nesses campos no
século XX, incluída, frise-se, a obra de Breton. Por isso, por ser um
pensador e um escritor denso e complexo, é estudado, inclusive na área
acadêmica.
Além disso, um pouco de teoria literária nunca fez mal a ninguém.
Estudos universitários sobre surrealismo não precisam ser vistos como
antagônicos com relação a seu prosseguimento como movimento. E trabalhos
como aqueles dos estudiosos ligados a Béhar, bem como de scholars norte-
americanos por sua vez ligados a Anna Balakian, trazem contribuição real
para o conhecimento de obras surrealistas. Não há motivo para ninguém – nem
os da ala acadêmica, nem os militantes – quererem, nesta altura, monopólio
do surrealismo.
Conforme observado acima, na introdução e nos capítulos iniciais de A
estrela da manhã – Surrealismo e marxismo, Löwy dava a impressão de que a
discussão da relação entre marxismo e surrealismo, da compatibilidade entre
ambos, seria enfrentada no corpo do livro. Há até mesmo um parágrafo sobre
Philosophie du surréalisme de Ferdinand Alquié (de 1955), um dos autores
que achavam que não, que essa compatibilidade não existia. Já em 1933,
Alquié havia denunciado o vento de cretinização sistemática que sopra da
URSS, em uma carta que foi publicada em SASDLR, a revista de então dos
surrealistas, antecipando a ruptura definitiva de Breton com o estalinismo
em 1935. A tese de Alquié em Philosophie du surréalisme, polêmica, jamais
foi impugnada por Breton – tanto é que o filósofo continuou a participar
das publicações surrealistas e a constar como fonte bibliográfica.
Simplificando uma argumentação técnica em uma obra complexa: para Alquié,
por trás de cada referência a Marx por Breton, estava Hegel; e, por trás de
cada referência a Hegel, estava Kant.
Ao fim, a argumentação de Löwy acaba por reduzir-se a um silogismo: o
surrealismo é revolucionário, pois a utopia revolucionária é a energia
musical deste movimento; o marxismo é revolucionário; portanto, são do
mesmo âmbito, concordes, afins. Pode-se chegar ao contrário, utilizando as
categorias revolução e revolta do modo como o faz Octavio Paz em Signos em
Rotação, vendo-as como antitéticas. Nesse caso, surrealismo pertence ao
âmbito da revolta; marxismo, ao da revolução.
Breton, note-se, distinguia rebelião romântica e pensamento marxista,
até mesmo ao querer transformá-los em um só, como na célebre proclamação de
1935: "Transformar o mundo", disse Marx; "mudar a vida", disse Rimbaud:
estas duas palavras de ordem, para nós, são uma só.
Em especial, é discutível esta afirmação de Löwy: Como Breton sempre
afirmou, desde o Segundo Manifesto do surrealismo até seus últimos
escritos, a dialética hegeliana-marxista está no coração da filosofia do
surrealismo. Não, não foi isso o que Breton afirmou sempre. Desde o Segundo
Manifesto do surrealismo até seus últimos escritos, o pensamento de Breton
mudou, e muito. Na disjuntiva Marx-Rimbaud, parece ter ficado com Rimbaud.
Afastou-se do marxismo. A fundamentação enfática em Marx e Engels de obras
de 1930, como o Segundo Manifesto do Surrealismo e Les Vases Communicants,
já não está em O Amor Louco, de 1937. E mesmo então, suas afirmações sobre
Nicolas Flamel e alquimia, no Segundo Manifesto do Surrealismo, e a defesa
de unidade do sonho e realidade, e da astrologia como ciência, em Les Vases
Communicants, provocavam arrepios nos marxistas ortodoxos.
Conforme Löwy resume de modo apropriado, a relação entre surrealismo e
PC explodiria de vez em 1935, com as denúncias mostrando a equivalência do
regime soviético com aquilo que a sociedade burguesa tinha de mais
retrógrado. Concomitantemente, o apoio a Trotsky, a traduzir-se no
manifesto Por uma arte revolucionária independente, de 1937. Mas em
seguida, nos Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não de
1942, Breton expressaria restrições ao racionalismo de Trotsky, para
culminar na idéia dos Grandes Transparentes, do homem não mais como centro
do universo, mas parte de um todo. Substitui Marx e Engels por Gérard de
Nerval, seu interlocutor imaginário em Arcano 17, seu livro de 1944
(publicado com acréscimos em 1947).
Em Prolegômenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, ...sem
dar atenção às acusações de misticismo de que não serei perdoado, propõe-se
a ...convencer o homem de que ele não é obrigatoriamente o rei da criação,
como se vangloria. Pergunta sobre a oportunidade de revelar um novo mito, o
dos Grandes Transparentes. Observa que o homem não é talvez o centro, o
ponto de mira do Universo, e critica o antropomorfismo, a crença de que o
mundo encontra no homem o seu acabamento (sigo a mais recente edição
brasileira dos Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Ed.
Nau, Rio de Janeiro, 2001). Dando a palavra final em matéria de manifestos,
Breton diz, no último parágrafo de Do Surrealismo em suas Obras Vivas, de
1953, que ...a esse respeito, sua posição (do Surrealismo) se uniria à de
Gérard de Nerval no famoso soneto Versos Dourados. Nele, o autor de
Aurélia, expressando as idéias de Fabre d'Olivet, duvida de que sejamos o
centro do universo e os detentores exclusivos da razão.
Sem que por isso o surrealismo perdesse em combatividade, ou se
afastasse da discussão dos temas propriamente sociais e políticos, o mesmo
movimento está presente na poesia bretoniana da década de 1940. Um de seus
poemas de maior fôlego é a Ode a Charles Fourier, sobre o precursor do
"socialismo utópico" e de uma visão da sociedade regida pelo pensamento
analógico, pelas correspondências. Em outro poema da série, Les états
géneraux, invoca Fabre d'Olivet e sua idéia de uma linguagem universal, e
Saint-Yves d'Alveydre e seus estados gerais, reflexo mundano da ordem
cósmica.
Tudo isso é observado por Löwy. São citados, em A estrela da manhã –
Surrealismo e marxismo, os momentos desse percurso: a entrada no PCF, em
1927, a ruptura de 1935, o encontro com Trotski e a fundação da FIARI em
1938. Dá como etapas seguintes a redescoberta de Charles Fourier, a
proclamação de novas utopias, e a aproximação com anarquistas em 1949-1953.

Mas, cabe perguntar: é o mesmo percurso? Onde Löwy vê continuidade,
não haveria, antes, inflexão, mudança na base do ímpeto revolucionário, no
pensamento que o sustenta? Adotar Charles Fourier equivale a adotar Marx?
Ou são antitéticos? Qual a chance de compatibilidade entre "socialismo
utópico" e "socialismo científico"? Nenhuma, para Marx. Nem para Trotski, a
julgar pelo tratamento dado a insurreições anarquistas enquanto comandava o
Exército Vermelho.
Ver marxismo em Arcano 17, nos dois últimos manifestos, e em Les états
géneraux não equivaleria a demonstrar que o taoísmo é um marxismo? Que Lao-
Tsé é um precursor de Marx? Ou então, que, escavando através de camadas de
racionalismo de Marx, Engels, Lênin e Trotski, pode-se encontrar a imagem
do mundo regida pelas analogias e correspondências de Swedenborg, dos
"iluminados" do século XVIII e de Éliphas Lévi?
Breton apontou com clareza quais eram os limites de qualquer tentativa
de assimilá-lo a doutrinas e sistemas em Prolegômenos a um terceiro
manifesto do surrealismo ou não, de 1942. Além de avisar que não era homem
de sistema, Breton diz com quem se alinha, contrapondo-se ao alinhamento
dos partidos políticos: Mas, se a minha própria linha, bastante sinuosa,
admito, mas quando menos minha, passa por Heráclito, Abelardo, Eckhardt,
Retz, Rousseau, Swift, Sade, Lewis, Arnim, Lautréamont, Engels, Jarry e
alguns outros?
É evidente que Marx e Engels, de um lado, e Sade, Mestre Eckhardt ou
Jarry, de outros, certamente não são a mesma coisa. E a sinuosidade dessa
percurso, dessa "linha" de Breton, desaparece na argumentação de Löwy. Ele
apenas atenua essa clivagem: Se o marxismo foi um aspecto decisivo do
itinerário político do surrealismo – sobretudo durante os vinte primeiros
anos do movimento -, ele está longe de ser exclusivo. Desde a origem do
movimento, uma sensibilidade libertária percorreu o pensamento político dos
surrealistas. É como se adesão ao marxismo e sensibilidade libertária não
fossem uma coisa e outra, traduzida na aproximação ao PC em 1927, e ao
anarquismo, em 1949. Se fossem compatíveis, nem Robert Desnos precisava ter-
se desligado em 1927, por preferir o anarquismo ao marxismo, nem Antonin
Artaud, por entender que a rebelião romântica, individual, era um caminho
para a transformação do mundo.
Tratando de Benjamin Péret, o mais militante dos grandes nomes do
surrealismo, Löwy observa, corretamente, que sua obra esboça uma
antropologia da liberdade. Mas não menciona que, em 1946, Péret se desligou
da Quarta Internacional. Essa data – associada também ao período de
publicação dos poemas "utópicos" de Breton, Ode à Charles Fourier e Les
États Géneraux, - é, portanto, aquela da desvinculação de surrealismo e
marxismo, em qualquer uma de suas formas, modalidades e tendências.
Cabe perguntar: por quê o afastamento das organizações de orientação
marxista não foi proclamado com a mesma ênfase dada à aproximação de 1927?
A resposta me parece evidente: Breton e seus companheiros jamais iriam
fornecer água para o moinho da reação, dando argumentos, às custas do
surrealismo, que fortalecessem o outro lado no mundo da Guerra Fria,
cindido entre macarthismo e estalinismo. Em Entrétiens, seus depoimentos
auto-biográficos, a melhor fonte sobre o pensamento bretoniano, é apenas
reticente, e se omite. Mas também não há nada que se assemelhe às
declarações, verdadeiras profissões de fé em favor do marxismo, de vinte
anos antes.
Críticos já apontaram inconsistências no pensamento de Breton. Mas o
que é invocado por alguns como argumento contrário ao surrealismo em geral,
e a Breton, em particular, na verdade é qualidade, argumento a favor, pelo
que estimula e sugere, e pelas armadilhas e obstáculos à decodificação
fácil, à transformação em doutrina.
Em suma, no terceiro capítulo de A estrela da manhã, sobre marxismo
libertário de Breton, Löwy atenua o que nele há de contraditório e
assistemático, a despeito da advertência bretoniana, em Prolegômenos.
Omitidas as diferenças e incompatibilidades entre marxismo e surrealismo,
deixa de ser estranho que o surrealismo, na versão pós-bretoniana liderada
por Vincent Bounure, se ligasse à Quarta Internacional, ao que sobrou de
trotskismo, do qual se havia afastado em 1946. O resultado são documentos
como um recente manifesto surrealista, veiculado pela Internet, sustentando
o apoio à Quarta Internacional, a ruptura com o FMI e o fim do bloqueio
econômico a Cuba. São boas causas. Mas, de surrealismo, mesmo, não há mais
nada nesses documentos. Acabam servindo como argumento para salvar ou
justificar marxismo e trotskismo. É uma inversão do que ocorria nos anos de
1930 e 40, quando a crítica de fundamentação marxista, especialmente
lucacsiana, o impugnava pelo "irracionalismo". Antigamente, o surrealismo
tinha que justificar-se, argumentando, perante o marxismo. Agora,
organizações de esquerda justificam-se ao se apresentarem como
surrealistas.
Cabe invocar uma categoria utilizada por Löwy, o pessimismo
revolucionário, uma crítica ao triunfalismo, mas revertendo-a. Tem que
haver uma recíproca, a dúvida quanto à possibilidade da projeção do
paradigma marxista, em qualquer uma de suas modalidades, resultar em outra
coisa além da reedição dos autoritarismos da esfera do socialismo real.
Mais ainda, quando o trotskismo continua a ser apresentado como retomada do
verdadeiro leninismo, contraposta ao desvio estalinista, ignorando que a
centralização na URSS, atrelando os soviets ao Partido, foi obra de Lênin,
com a participação ativa de Trotski.
Enfim, a discussão de marxismo e surrealismo também deveria levar em
conta os argumentos sustentando o antagonismo entre rebelião romântica e
revolução marxista. Incluem aqueles de Octavio Paz, ao falar, em Conjunções
e Disjunções, em tirania do futuro, em detrimento do presente, no
pensamento marxista. Antes, já em 1927, Artaud defendia a autonomia da
rebelião individual, romântica, argumentando que marxismo não passaria de
mais um produto da civilização ocidental.
Löwy apresenta-se como surrealista ativo, militante, além de ser
apresentado como tal, no posfácio de A estrela da manhã, escrito por Sergio
Lima. E uma versão inicial desta resenha havia sido divulgada antes da
veiculação na Internet de um artigo intitulado Valores de uma nueva
civilización, do início de 2004, escrito em parceria, a quatro mãos, por
Michel Löwy e Frei Betto, disponível em La hoja Latinoamericana, publicação
do Centro de Estudios y Trabajo América Latina (Cetal) de Uppsala - Suecia.

É claro que, ao longo de três anos, entre A estrela da manhã –
Surrealismo e marxismo e este Valores de uma nueva civilización, muita
coisa pode ter acontecido – até mesmo, uma conversão de Löwy, agora
abraçando a fé católica, e, conseqüentemente, abandonando o surrealismo. Ou
não: a parceria entre Löwy e o sacerdote, assessor de Luís Inácio Lula da
Silva, atual presidente do Brasil, não envolve aproximação religiosa.
Decorre apenas do entendimento, na afirmação da solidariedade e na crítica
à mercantilização do mundo, enunciada de modo eloqüente por ambos, Löwy e
Frei Betto.
Conforme observado, a relação entre surrealismo e marxismo foi, ao
longo das décadas de existência de um surrealismo "histórico", não-linear,
"sinuosa", marcada por graus distintos de aproximação e afastamento com
relação ao marxismo e a modos de militância. Já a relação com o
cristianismo e com a Igreja Católica sempre foi a mesma: de repulsa total.
Nunca houve a mínima sinuosidade. Há um anti-clericalismo surrealista,
evidente não só nos filmes de Buñuel ou nas reações indignadas de Benjamin
Péret à vista de um padre, que impressionaram seus amigos brasileiros
durante suas estadas neste país. Tanto é que, ao final de Arcano 17, Breton
refere-se a um importante ensaio com decodificações herméticas de Rimbaud,
mas recusa-se a escrever o nome do autor, por tratar-se de um jesuíta.
Tudo isso é bem conhecido por Löwy. Por isso, não há nenhuma chance
de, seguindo-se a Surrealismo e Marxismo, vir a ser publicado, pelo mesmo
autor, Surrealismo e Comunidades Eclesiais de Base, ou então, Surrealismo e
a Teologia da Libertação.


II


Complementa A estrela da manhã – Surrealismo e marxismo o texto de
Sergio Lima, Notas acerca do movimento surrealista no Brasil (da década de
1920 até aos dias de hoje), disponível na Internet em Triplo V,
www.triplov.com/surreal/sergio_lima.html .
Sergio Lima é qualificado para falar sobre surrealismo em geral, e no
Brasil em especial. Pode confundir sua biografia e currículo com o tema,
como o faz neste depoimento, pela participação em atividades surrealistas e
por um extenso conhecimento do assunto. É, no mínimo, uma referência
bibliográfica importante, em acréscimo ao que criou em poesia e artes
visuais.
Mas seu relato é distorcido. Em sua ótica, surrealismo no Brasil tem
duas fases distintas: antes e depois dele, Sergio Lima.
Na primeira fase, até por volta de 1960, a abordagem é inclusiva, ao
tratar do que chama de surrealismo difuso. Comete exageros. Juntar, como
faz, na mesma frase e na mesma seqüência Elsie Houston-Péret e Pagu, e
Fernando Mendes de Almeida, A. J. Ferreira Prestes, Ascânio Lopes, Rosário
Fusco, Livio Xavier, Osório César, Jamil Almansur Haddad e Raguna Cabral,
não passa de enumeração caótica. É reescrever história de modo assemelhado
ao "método confuso" criado por Mendes Fradique. Espera-se que as relações
com surrealismo dessas e outras personalidades também elencadas (Wagner
Castro, Eros Volusia, Albino Braz, Febrônio Índio do Brasil, Raul Bopp,
Tarsila do Amaral) sejam esclarecidas nos anunciados volumes seguintes de
seu A Aventura Surrealista, ou na publicação de sua tese de doutoramento. A
propósito, que estranho: por que cargas d'água não consta, no relato
autobiográfico de Sergio, tão detalhado, a tese que defendeu na USP em
1998, Surrealismo: polêmica de sua recepção no Brasil modernista, orientada
por Valentim Facioli, por sua vez autor de obra sobre a conexão Breton-
Troski, e que foi aprovada com louvor? Não consta, também, sua participação
nas duas substanciosas coletâneas organizadas por Robert Ponge, professor
na UFRGS, Organon 22, de 1994, dedicada a Aspectos do surrealismo, e
Surrealismo e novo mundo, de 2001, publicadas pela Editora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Parece que, para Sergio Lima, apresentar-se
como surrealista militante o obriga a omitir seus estágios no surrealismo
universitário.
Já na segunda fase, pós-SL, só recebe ingresso para o mundo surreal
quem participou de atividades com ele, Sergio Lima. Evidentemente, todos
têm o direito de valorizar seu trabalho e dar destaque à sua atuação.
Ninguém negaria sua condição de porta-voz e avatar surrealista; menos
ainda, deixaria de reconhecer tudo o que ocorreu por sua iniciativa. Mas
não havia necessidade de alterar datas e falsear outras informações.
Daqui para a frente, trato do assunto de modo detalhado, diante do
risco de alguém acreditar em tudo o que Sergio Lima afirma, e sua versão
acabar indo parar em algum manual de história da literatura, ou dos
movimentos culturais do século XX no Brasil, disseminando informação falsa
Vamos ao que relata (uso a facilidade de copiar a versão on line): Voltando
de Paris para São Paulo em 1962, passei a me reunir com os poetas ditos
"novíssimos" (estreantes que eram editados na série "novíssimos", por
Massao Ohno). Logo organizamos, Roberto Piva, Claudio Willer e eu, uma
central ou núcleo de debates sobre o Surrealismo. (...) Logo temos os três
primeiros livros publicados por nossa turma, os quais passam a ser centro
das discussões (e disputas) principais entre nós: Paranóia (lançado no
final de '62), do R. Piva; Amore, de S. Lima (editado em '63, com textos de
'59 e '60); e, pouco depois, no começo de '64, Anotações para um
Apocalipse, de C. Willer (onde se encontram as primeiras reflexões de
Willer em relação à beat generation e suas implicações literárias).
Anotações é lançado juntamente com um segundo livro de Piva, o Piazzas
(1964), o qual, escrito em '63 portanto, já sinalizava, por assim dizer, um
diapasão distinto de seu primeiro livro de poemas, o Paranóia. Cumpre
salientar que começavam, então, a se formar certas distâncias entre a
perspectiva surrealista, de uma atuação específica, e aquela mais
descompromissada, pretendida pelos demais nomes da turma. (...) Embora não
tenha prosseguido enquanto grupo, essa turma era, digamos assim, o gérmen
do primeiro grupo surrealista que iria se formar logo depois, fins de '64,
com novas participações e amigos do Rio de Janeiro.
E chega ao seguinte: Sucedendo a este núcleo inicial, e em função de
divergências que passam a ter um certo vulto (sobretudo por parte de Piva e
Willer, mais preocupados com a beat generation e o pop art), assumo de vez
a liderança e, com as novas aderências de Fiker e Leila Ferraz, mais Zuca
Saldanha e Paulo Antônio Paranaguá, vindos do Rio de Janeiro, organizo o
primeiro grupo surrealista S.Paulo/Rio, cuja vida breve - 1965 a 1969 - não
deixou de ser pródiga de realizações.
Não. Decididamente, não. Essas datas estão erradas. Paranóia, escrito
no final de 1961 e começo de 1962, foi lançado em abril ou maio de 1963, e
não em 62. Sergio Lima nos foi apresentado por Roberto Piva depois disso,
não me lembro se em maio ou junho de 1963 – fazia frio e garoava naquela
noite que se estendeu pela madrugada afora, em que pela primeira vez nos
reunimos. Enfim, Paranóia de Roberto Piva não tem qualquer relação com
atividades surrealistas por iniciativa de Sergio Lima. Tudo o que há de
surrealismo na poesia de Piva (bastante) é por conta dele mesmo, sem dever
nada a Sergio Lima ou a quem for, exceto à sua própria condição de leitor
voraz e à sua inquietação e talento.
E a publicação de Piazzas de Piva e do meu Anotações para um
Apocalipse foi em outubro de 64. Nós dois, Piva e eu, nos afastarmos de
surrealismo porque teríamos passado a nos interessar por beat, é ficção,
fantasia pura. Tanto comprávamos La Brèche na Livraria Francesa (entre
muitas outras coisas) quanto recebíamos as edições beat da City Lights,
vindas de San Francisco; e isso bem antes de Sergio Lima entrar em cena.
Quando nos procurou, sabia disso. A descoberta epifânica de Allen Ginsberg
é evidente já na Ode a Fernando Pessoa de Piva, do final de 1961 ou começo
de 1962. Há intertexto de Ginsberg em Piva em Paranóia, obra especialmente
importante, que aos poucos vai sendo reconhecida como marco de renovação da
poesia brasileira. Piazzas, justamente, poderia ser tido como obra mais
"surrealista" de Piva, se interessasse catalogar desse jeito. Enfim, quanto
a Roberto Piva e a mim, vínculos com surrealismo são aqueles apontados na
bibliografia crítica já existente, e, principalmente no que temos a dizer e
já dissemos a respeito.
Há mais para corrigir na cronologia de Sergio. O grupo, com reuniões
regulares em um bar, durou alguns meses. Logo depois do necrológio
distribuído na abertura da Bienal de São Paulo, em 1963, dispersou-se. Mas
continuamos a nos encontrar, inclusive para falar de surrealismo. Em 1965,
houve reuniões regulares no ateliê de Wesley Duke Lee. A propósito, ser
detido pela polícia e ir parar em delegacia, isso não poderia ser atividade
surrealista? Em 1965, viajamos - Piva, Sergio, Argos Machado e eu - até
Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, a convite de um grupo de
Cataguazes de tendência anarquista, encabeçado por Paulo Bastos Martins,
que nos havia sido apresentado por Sergio, para participar de
manifestações, que incluíam projeções de L'Age d'Or, encenações de Ionesco,
desconstruindo-o, exposição de quadros, venda de livros. Houve emissões
radiofônicas que alarmaram a cidade, fazendo que a programação desaguasse
na delegacia local. Durante algumas horas, permanecemos diante de um
delegado perplexo, tentando resolver o que fazer com a trupe. Felizmente,
nos liberou. É daqueles episódios que me fazem rir sozinho quando me lembro
dele. Que pena então não haver vídeo. Que erro, não levar sempre a máquina
fotográfica e gravador.
Em La Brèche – Action Surréaliste nº 8, de fevereiro de 1965, saiu,
graças aos bons ofícios de Sergio, uma nota sobre Le surréalisme a São
Paulo, declarando que, com Paranóia de Roberto Piva, Amore de Sergio Lima e
meu Anotações para um Apocalipse, pela primeira vez o Brasil dispunha de
obras cujos autores se reclamam abertamente do surrealismo. O trecho
dedicado a Anotações para um Apocalipse enriquece meu currículo de modo
hilariante: O autor dispõe de uma formação científica muito livre e as
experiências que lhe deixaram uma vida violenta e o hábito dos tóxicos.
Francamente, não merecia tanto. A referência a essas publicações em La
Brèche, obviamente omitida por Sergio em seu relato, basta para desmontar
toda a sua cronologia.
Em um 6 ou 8 de fevereiro de 1966, Sergio Lima me convidou para
almoçar – em companhia de Leila Ferraz e Paulo Paranaguá – em um
restaurante chinês no bairro da Liberdade, para expor como seria a Mostra
Surrealista Internacional que acabou tendo lugar em 1967. Não quis
participar, por achar que Sergio centralizava demais. Já estava tudo
resolvido, pronto na cabeça dele, sem admitir qualquer discussão ou
sugestão. Pelo mesmo motivo, outros convidados não se interessaram. O grupo
então formado – Sergio, Leila, Fiker e Paranaguá – logo se dissolveu.
Existiu em função do colossal esforço de preparação daquela mostra e da
edição de A Phala. Encerrada a mostra, cada qual foi para seu lado.
Importa questionar, no modo Sergio Lima de escrever história, como ele
passa ao largo de tantas obras e autores recentes, das últimas décadas, que
dialogam com surrealismo. De 1980 para cá, houve crescimento gradativo da
circulação, recepção e relação com surrealismo no Brasil. Mas Sergio,
confinado ao paroquialismo, pouco tem a ver com isso. Em nome de uma
ortodoxia, acaba por fazer o mesmo que critica na recepção brasileira ao
surrealismo, ignorando manifestações.
Na obra de Breton, é freqüente o uso da expressão diálogo. Seus
elogios a contemporâneos e autores mais novos – por exemplo, a Malcolm de
Chazal, Aimé Césaire ou Frida Kahlo –, foram pela qualidade do que faziam,
e não pela disposição de participarem de atividades, grupos ou movimentos
surrealistas. Seu foco se dirigia, de modo muito honesto, em primeira
instância para o valor. Frida Kahlo não queria saber de surrealismo, e o
que interessou a Breton foi ela ser uma extraordinária artista. Essa
dimensão do valor desaparece nos elencos de surrealistas preparados por
Sergio. Interessa-lhe apenas, em uma versão particular da política
literária, se concordaram em compor grupos com ele. O que há nas obras
nunca é analisado ou discutido.
A meu ver, Juan Sanz Hernandes merece qualificação como surreal, não
por ter freqüentado reuniões no ateliê de Lia Paes de Barros por volta de
1990, mas pela imagética torrencial em Biografia a Três e Horas Queridas.
Raul Fiker tem que figurar em catalogações do que houve desde 1960, pela
densidade de O Equivocrata, obra que ainda não teve a leitura que
mereceria, e não por haver colaborado na montagem da mostra de 1967. E, se
alguém quiser saber sobre relação com surrealismo, na versão militante ou
não, que pergunte a eles.
Quanto a mim, e à minha relação com grupos e movimentos surrealistas,
no começo de 1968, convidado por Paulo Paranaguá, fui a uma das reuniões na
Promenade de Venus, em Les Halles. Em seguida, fomos ao apartamento de
Vincent Bounoure. Divergências sobre geração beat, que ele não admitia de
modo algum, resultaram em uma discussão exaltada, de algumas horas. Grupo
surrealista francês fez bem em encerrar-se. Mostrava-se paroquial e
epigonal. Se fosse para tomar posição nas ramificações e versões do
surrealismo, teria sido mais próxima àquela de Alain Jouffroy e Jean-
Jacques Lebel, que nunca viram surrealismo e beat como excludentes. Como
tradutor de Allen Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, autor de um sem-
número de textos sobre Breton e surrealismo, e de poemas, inclusive em
escrita automática, não concebo antagonismo entre esses campos,
respeitadas, é claro, suas diferenças, a integridade e especificidade de
cada um. O antagonismo é com relação à ordem estabelecida, ao mundo em que
vivemos. Isso, na perspectiva do prosseguimento da rebelião romântica, e da
manutenção de seu ímpeto revolucionário.
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