Algumas questões da utilização de contratos associativos como fuga da regulação ambiental

May 24, 2017 | Autor: Jorge Aranda Ortega | Categoria: Direito Ambiental, Derecho Ambiental
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Ana Frazão (Org.)

CONSTITUIÇÃO, EMPRESA E MERCADO

Universidade de Brasília Faculdade de Direito Brasília 2017

Universidade de Brasília Faculdade de Direito Grupo de Estudos Constituição Empresa e Mercado (GECEM)

Organização: Ana Frazão Diagramação e Edição: Angelo G. P. Carvalho Revisão: Izabela W. D. Patriota Capa: Angelo G. P. Carvalho.

FRAZÃO, Ana (Org.). Constituição, Empresa e Mercado. Brasília: Faculdade de Direito- UnB, 2017.

ISBN: 978-85-87999-05-4. 1. Direito e poder econômico. 2. Empresa. 3. Concorrência.

SUMÁRIO Apresentação ..................................................................................................................... 1

PARTE I O papel do direito na conformação e regulação da empresa e dos mercados Direito antitruste e direito anticorrupção: pontes para um necessário diálogo .............. 4 Ana Frazão Acordo de leniência no âmbito da lei anticorrupção ...................................................... 30 Arby Ilgo Rech Filho A eficiência da camaradagem: os laços como requisitos da “eficiência” no capitalismo brasileiro ......................................................................................................................... 48 Carlos Eduardo Reis Fortes do Rego Poder compensatório, função social e concorrência: um olhar individualizado sobre o cooperativismo ............................................................................................................... 69 Giselle Borges Alves Análise de impacto regulatório (air) e economia comportamental: novas perspectivas para o Estado regulador ................................................................................................. 94 Guilherme Silveira Coelho Limites da relação entre o direito e a teoria econômica no controle antitruste ............ 114 Luiza Kharmandayan Arbitragem, governança e poder econômico ................................................................. 139 Maria Augusta Rost

PARTE II Empresa, poder econômico e atividade econômica em suas dimensões organizacionais e funcionais

Governança corporativa das distribuidoras de energia elétrica: aportes ao processo de regulação........................................................................................................................ 155 Acácio Alessandro Rêgo do Nascimento Responsabilidade social empresarial ........................................................................... 200 Ana Frazão Angelo Gamba Prata de Carvalho

A tutela jurisdicional coletiva do investidor no mercado de capitais brasileiro: o papel do Ministério Público ........................................................................................................ 224 Fernando Antônio de Alencar Alves de Oliveira Júnior Indicações (a)políticas para os conselhos de administração das estatais? .................. 265 Giovanna Bakaj Rezende Oliveira Algumas questões da utilização de contratos associativos como fuga da regulação ambiental ...................................................................................................................... 280 Jorge Aranda Ortega Fundos de investimentos: a influência nos mercados e os mecanismos de responsabilização dos administradores ....................................................................... 300 José Ricardo Alves Ferreira da Silva Capitalismo de estado brasileiro: análise da transição regulatória no setor petrolífero ...................................................................................................................................... 322 Izabela Walderez Dutra Patriota Benefit corporations: possíveis novas perspectivas para a dimensão prática da função social da empresa no direito brasileiro ........................................................................ 340 Marcos Luiz dos Mares Guia Neto Novas fronteiras da empresa e joint ventures contratuais: perspectivas sobre a partilha de responsabilidade entre as empresas co-ventures .................................................... 358 Natália Lacerda Macedo Costa Multas são suficientes para evitar novos cartéis? Reflexões sobre remédios antitruste e penas no Direito Concorrencial ..................................................................................... 381 Tereza Cristine Almeida Braga

PARTE III Empresa, tecnologia, comunicação e mercado

O Uber e a proteção do trabalhador em face da automação .................................... 408 Frederico Gonçalves Cezar Tecnologia, “novos serviços” e direito: reflexões a partir da introdução do Uber no Rio de Janeiro .......................................................................................................................... 433 Gabriel Miranda Ribeiro A radiodifusão brasileira e o direito à comunicação: características, diagnósticos e possíveis caminhos ....................................................................................................... 467 Luana Chrystyna Carneiro Borges O poder da comunicação e o direito da concorrência: análise da joint venture Newco ....................................................................................................................................... 491 Polyanna Vilanova

ALGUMAS QUESTÕES DA UTILIZAÇÃO DE CONTRATOS ASSOCIATIVOS COMO FUGA DA REGULAÇÃO AMBIENTAL Jorge Aranda Ortega Estudante, programa de doutorado em direito, Universidade de Brasília. Professor Assistente, Centro de Direito Ambiental, Universidade do Chile

I. INTRODUÇÃO Normalmente, os autores do direito ambiental, quando tratam da responsabilidade ambiental, tem feito grandes esforços na diferenciação das categorias de responsabilidade, estabelecendo caraterizações diversas entre a responsabilidade civil, penal e administrativa1. Nessa seara, discussões sobre a aplicação dos ‘torts’ no direito continental como uma maneira civil de punição2, ou a diferenciação entre o direito penal da empresa do direito administrativo sancionador3, por exemplo, são questões que tem ocupado o destaque principal, descuidando um ponto importante: a determinação do sujeito infrator. Particularmente, o presente texto se propõe problematizar sobre como diferentes figuras contratuais societárias podem propiciar esquemas do que, poderíamos denominar como, fuga da regulação ambiental. Numa primeira aproximação, poderíamos sinalar que a questão parece pouco relevante, considerando no caso do Brasil a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica na imputação de ilícitos ambientais, sem importar se são cíveis, penais ou administrativos4, enquanto no Chile parece pouco relevante a questão, considerando a generalidade da redação da normativa de responsabilidade civil por danos ambientais, e também considerando que as infrações administrativas sempre estão associadas ao titular do instrumento de gestão ambiental infringido5. Especialmente, no caso do Chile, não existe responsabilidade penal ambiental, porém existam delitos de 1

VÁZQUEZ GARCÍA, Aquilino. La responsabilidad por daños al ambiente. Gaceta Ecológica, 2004: 4562. 2 BANFI, Cristián. La responsabilidad como instrumento de protección ambiental. Revista de Derecho Ambiental, 2009: 13-54. 3 NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 2005.p 28-32. 4 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei 9.605/1998, artigo 3°, parágrafo único. 5 República de Chile. Ley 19.300, artigo 51.

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relevância ambiental, que ressalvam bens jurídicos diferenciados, associáveis à normativas setoriais6. O ponto a salientar é como diferentes contratos de colaboração empresarial podem ajudar a fugir da regulação ambiental, podendo gerar hipóteses em que a aplicação da normativa ambiental se veja, na pratica, inutilizada. Para tais efeitos, meu propósito é explicar brevemente os esforços de separação desses estatutos de responsabilidade penal, civil e administrativa, e como, só focados nessa separação, até agora não tinham se ocupado dos contratos associativos como meios de fuga da responsabilidade, os quais podem ser explicados como soluções híbridas entre o mercado e a hierarquia das sociedades comerciais (1), para depois oferecer alguns exemplos de fuga da regulação ambiental usando contratos associativos, sendo esses o caso de Mariana no Brasil, e dos empreendimentos imobiliários de Batuco e termoelétricos de Castilla no Chile (2). Logo, tentarei esboçar algumas tentativas de remédios à fuga da regulação ambiental, pensando em hipóteses de uma solução processual administrativa de normativas que integrem a diversos atores envolvidos nos conflitos ambientais, possibilidades de autorregulação, e também estudar a hipótese da sanção civil à fraude à lei (3). Finalmente, será concluído que a discussão básica do problema aponta ao interesse público envolvido em relações contratuais privadas, devendo futuras reformas legais considerar esse ponto para poder resolver, efetivamente, a questão.

II. A RESPONSABILIDADE CIVIL, PENAL E ADMINISTRATIVA NA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL DIANTE DOS CONTRATOS ASSOCIATIVOS: UMA DISCUSSÃO DE DESENCONTROS

Até hoje, a discussão medular na regulação ambiental é separar os estatutos de responsabilidade entre civil, penal e administrativo, determinando diferentes consequências punitivas para cada um deles, descuidando a questão de como os contratos associativos podem se constituir em instrumentos da fuga da regulação.

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MATUS, Jean Pierre, y et al. Análisis dogmático del derecho penal ambiental chileno, a la luz del derecho comparado y las obligaciones contraídas por Chile en el ámbito del derecho internacional. Conclusones y una propuesta legislativa fundada para una nueva protección penal. Ius et Praxis, 2003. Desenvolvendo uma crítica ao projeto daquela época: BASCUÑAN RODRÍGUEZ, Antonio. Comentario crítico a la regulación de los delitoscontra el medio ambiente en el Anteproyecto de Código Penal de 2005. Estudios Públicos, 2008.pp 305-308.

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No caso do Brasil, podemos achar uma referência legal explícita, segundo a qual as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto na Lei N° 9605/1998, no artigo 3°, apontando literalmente que: “...nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade...”. Daí, a lei sinala um tratamento diferenciado para cada tipo de responsabilidade7, e não desenvolve maiormente o ponto. Simplesmente, e como já se asseverou, só existe uma previsão de desconsiderar a responsabilidade ambiental no parágrafo único do mesmo artigo 3°, e não há maior discussão sobre os contratos associativos. No caso do Chile, a separação não é explícita num artigo, senão que existem dois estatutos diferenciados: um estatuto de responsabilidade civil na Lei N° 19.300/1994, e um estatuto de responsabilidade administrativo na Lei N° 20.417/2010. Também, é importante relembrar que no Chile não existe responsabilidade penal ambiental, questão que foi estudada como na agenda de política criminal na década passada, e que não prosperou8. Na legislação chilena, não existe uma discussão maior, nem legislativa, nem doutrinaria, sobre os contratos associativos, nem sobre o sujeito infrator. Nessa ordem de coisas, a primeira constatação é que tanto Chile quanto no Brasil, a questão sobre os contratos associativos como meios de fuga da responsabilidade ambiental não tem tratamento específico. Se pensamos nas categorias a estudar, os contratos associativos são sinalados na legislação brasileira na Lei N° 12.529/2011, no artigo 90.IV, sinalando que, para efeitos e proteger a ordem econômica, deverão submeter-se ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica atos de concentração, e em particular, “...IV - 2 (duas) ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture...” A legislação chilena, por sua vez, não regula nem menciona especificamente os contratos associativos, e na regulação da defesa da livre concorrência, o Decreto Lei N° 211/1974, também contempla a possibilidade de um processo de consulta ao Tribunal de Defesa da Livre Concorrência, sobre criação de contratos que poderiam ter efeitos negativos no bem jurídico tutelado9. Sobre o joint venture, podemos determiná-lo tanto um contrato

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REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei 9.605/1998. Particularmente, o Capítulo IV para os delitos ambientais, e o Capítulo V para as infrações administrativas. 8 Supra. Nota ao rodapé N° 6. 9 REPÚBLICA DE CHILE Decreto Ley 211. Artigo 18.2, em relação ao ilícito atípico contemplado no artigo 3°.a.

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associativo que pode dar origem a uma nova sociedade, o que catalogaremos como joint venture societário, quanto um contrato de colaboração entre diferentes sociedades, sob a peculiaridade de não criar uma nova sociedade, o que denominaremos joint venture contratual10. Igualmente, vale a pena sinalar que esse último contrato “...desafia a clássica dicotomia entre empresa e mercado, apresentando-se como estrutura intermediaria entre hierarquia inerente à empresa e a coordenação e a flexibilidade que são próximas das relações de mercado...”11 A essa particularidade do joint venture contratual em particular, e dos contratos associativos em geral, é que, normalmente, não geram novas sociedades. Também podemos adicionar que integram a categoria de contratos relacionais, que são contratos que se afastam da regulação estrita e detalhada dos interesses dos contratantes, permitido uma regulação mais ampla e genérica, outorgando maiores possibilidades de interpretação. Dessa maneira, se concebe uma maior flexibilidade nas relações futuras entre os contratantes, sob a finalidade de oferecer um relacionamento contratual de longo prazo, permitindo desenvolver uma multiplicidade de negócios jurídicos, e não só obrigações específicas de curto prazo.12 O agir desses contratos também trata uma questão de vital importância para o direito ambiental: a redução de compensação dos custos sociais. Uma legislação ambiental visa pela internalização daqueles custos, devendo evitar que as empresas, no exercício de seus processos produtivos, gerem danos desnecessários a terceiras pessoas13, sendo a resposta padrão da doutrina ambiental, para esses efeitos, a adoção do princípio contaminador-pagador,14 que, sem sombra de dúvida, e a justificação jurídica dos tributos ambientais.15 Contudo, é bom relembrar também as críticas de Coase a Pigou neste ponto,16 estabelecendo que não necessariamente uma internalização via compensações é a melhor solução, procurando que os custos de transação, associados a internalizar os 10

FRAZÃO, Ana. Joint Ventures contratuais. Revista de Informação Legislativa, 2015.p 188. FRAZÃO. Op.Cit. p 188. No mesmo sentido WILLIAMSON, Oliver E. Transaction Cost Economics: An Introduction. Economic Disussion Papers, 2007.p 10. 12 SALBU, Steven R. Joint venture contracts as strategic tools. Ind. L. Rev., 1991-1992.p 407. 13 ASTORGA, Eduardo. Derecho ambiental chileno. Santiago: Lexis nexis, 2006.p 22. 14 BERMÚDEZ Soto, Jorge. Fudamentos de derecho ambiental. Valparaíso: Edeval, 2007.p 44. HUERTA HUERTA, Rafael, e HUERTA IZAR DE LA FUENTE, Cesar. Tratado de derecho ambiental. Tomo I. Madrid: Bosch, 2000.p 29. 15 HUERTA HUERTA y HUERTA IZAR DE LA FUENTE. Op. Cit. pp. 32-33 16 Se referindo a necessidade da atuação do Estado na internalização das externalidades negativas, PIGOU, Arthur Cecil. La economía del bienestar. Madrid. M. Aguilar, 1946.p 157, literalmente: “…Existen otras [inversiones] que, debido a la dificultad de imponer indemnizaciones en caso de perjuicios indirectos, el producto neto marginal privado es mayor que el social…” 11

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custos sociais, não sejam maiores do que as externalidades negativas, considerando assim a melhor maneira de aumentar os benefícios privados.17 Então, e segundo as ideias presentadas, o pressuposto a ser usado é o seguinte: uma empresa que produz bens e serviços sempre tentará reduzir os seus custos, privilegiando o benefício privado sobre o benefício público. A proliferação da regulação ambiental, de alguma maneira, se ocupa da redução dos custos sociais gerados nas atividades produtivas, tentando influir no processo produtivo das empresas para evitar os danos, incidindo, dessa maneira, na hierarquia delas. Se os danos não podem ser evitados, deverão ser, segundo a nomenclatura utilizada na normativa chilena, mitigados, compensados ou reparados18. Assim, e por exemplo, o licenciamento ambiental é uma maneira que o Estado tem de influir no processo produtivo das empresas, para evitar danos e reduzir o custo social. A responsabilidade civil e os tributos ambientais, por sua vez, seriam maneiras de internalizar as externalidades negativas, orientando as empresas a assumir os custos sociais que geram. Também é possível encontrar instrumentos de gestão ambiental que, visando na eficiência, e coincidindo de alguma maneira com as críticas de Coase a Pigou, não respondem à determinação do processo produtivo das empresas, nem obedeceriam à internalização de externalidades negativas, senão que oferecem soluções de mercado, sendo ótimos exemplos os esquemas de créditos de carbono,19 ou os pagamentos por serviços ambientais.20 Nessa ordem de coisas, os contratos associativos aparecem como verdadeiros mecanismos para fugir das regulações, pois não respondem nem à influência estatal da hierarquia das sociedades no processo produtivo, nem aos instrumentos de gestão ambiental baseados no mercado. Essa qualidade híbrida dos contratos associativos não tem “remédios híbridos” que os regulem, tanto na legislação do Chile quanto na do Brasil. Nessa ordem de coisas, o importante, para propósitos do texto, não é se perguntar pela distinção entre estatutos de responsabilidade ambiental entre civil, penal e administrativa, pois a pergunta

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COASE, Ronald. El problema del costo social. Estudios Públicos. Chile. 1992.pp 131. Literalmente, critica a Pigou com um exemplo: “…La finalidad de tal regulación no debería consistir en eliminar el problema del humo, sino en asegurar su cantidad óptima, siendo esta cantidad la que maximizaría el valor de la producción…” 18 República de Chile. Lei 19.300/1994. Artigo 16, parágrafo final. 19 NORDHAUS, William. A question of balance: weighing the options on global warming policy. Yale University Press. New Heaven. 2008. pp. 4-6. 20 WUNDER, Sven. Payments for environmental services: some nuts and bolt. CIFOR occasional papers. 2005. pp. 4-7.

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é limitada à fiscalização de instrumentos de gestão ambientais hierárquicos (licenciamento, tributos ambientais) ou horizontais (créditos de carbono, pagos por serviços ambientais). O importante é chegar a pensar em instrumentos que consigam responder à categoria híbrida. Justamente, nessas distinções, achamos a explicação do problema jurídico que agora confrontamos. Já denotado o problema, cabe perguntar como se manifesta aquilo na prática jurídica. Para esses efeitos, serão revisados três casos: dois do direito chileno (“caso Castilla” e “caso Batuco”) e um caso brasileiro (“caso Mariana”), para explicar como os esquemas associativos podem ajudar à fuga da responsabilidade ambiental.

III.

EXEMPLOS

DE

CONTRATOS

ASSOCIATIVOS

NA

FUGA

DA

RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

Podemos explicar que os contratos associativos geram possibilidades de fuga da responsabilidade ambiental, com alguns exemplos concretos. Revisaremos, em primeiro lugar, a experiência chilena na matéria.

III.1. Caso Castilla O primeiro caso a ser estudado é o chamado “caso Castilla”21. Neste precedente, os fatos são que duas empresas, por separado, presentam dois projetos ao sistema de avaliação de impactos ambientais. Por uma parte, a empresa CGX presenta, em dezembro de 2008 um complexo de geração termoelétrica com capacidade projetada de 370 Mw, que funcionaria a base de carvão mineral, perto da localidade de Huasco, Região de Atacama. Outra empresa, OMX, presenta, contiguamente, um projeto de construção de um porto, que, na teoria estaria destinado a todo tipo de cabotagem. Contudo, a construção do porto estava destinada ao abastecimento de carvão à usina termoelétrica, e dificilmente um projeto seria economicamente rentável sem o funcionamento do outro. Ambas empresas, mesmo sendo de titulares de projetos diferentes, pertenciam ao mesmo dono, o empresário Eike Batista, e constituíam um grupo societário. Assim, empresas diferentes, que operavam sob uma associação

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A informação detalhada do projeto pode ser consultada em: http://www.sea.gob.cl/

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contratual que não gerava uma nova sociedade, presentam projetos diferentes que, na prática, eram interdependentes. Os projetos foram avaliados no processo administrativo de avaliação de impactos ambientais, mediante estudos de impacto ambiental, processo de maior exaustividade, e que obrigatoriamente contempla a consulta pública aos afetados. Nesse cenário, a comunidade de pescadores e outros interessados demandaram, numa “acción de protección”22 às empresas, argumentando que a separação dos projetos era uma ficção para evitar uma avaliação completa do projeto, asseverando que, para esses efeitos, a avaliação do porto e da usina por separado não tinha considerado os impactos ambientais do transporte do carvão desde o porto até a usina. Assim, não sendo avaliado esses impactos ambientais, a fragmentação do projeto impedia a aplicação integral da normativa ambiental no processo de avaliação. 23 Os advogados das empresas, por sua vez, asseveraram que a fragmentação não era impedimento para uma correta avaliação de impactos ambientais. O argumento era que a avaliação separada dos projetos foi realizada pelos estudos de impacto ambiental, processo administrativo de maiores exigências do que a declaração de impacto ambiental. Nesse raciocínio, a fragmentação de projetos procura dividir grandes projetos em unidades menores para usar o mecanismo de avaliação menos exigente, i.e., a declaração de impacto ambiental, ou diretamente, para fugir do sistema de avaliação de impactos ambientais.24 O tribunal desestimou as alegações dos representantes do projeto, deixando sem efeito a resolução de qualificação ambiental, e acolheu a tese dos afetados. Nessa ordem de coisas, determinou que um projeto não realmente independente do outro, e que a fragmentação do projeto em porto e usina, ainda não fugindo do processo administrativo de avaliação mais rigoroso, efetivamente deixava fora da avalição os mecanismos de transporte do carvão minerário desde o porto até a usina25. Neste caso, observamos como duas empresas, que agem conjuntamente e detém o mesmo proprietário, funcionando como um grupo empresarial mediante arranjos contratuais privados, tentam subtrair da avaliação ambiental uma parte do projeto. Assim, 22

Contemplado no artigo 20 da Constituição da República do Chile, é a ação judiciaria equivalente ao mandado de segurança no Brasil. 23 REPUBLICA DO CHILE. Corte Suprema. “Maikol Rodrigo Piñones Vásquez y otros con Comisión de Evaluación Ambiental de la Tercera Región”, rol Nº 1960-2012. Consideração N° 28 24 Ibid. Consideração N° 29. 25 Idem.

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o sistema de avaliação de impactos ambientais é, figurativamente falando, cego a essa circunstância, pois o sistema aponta a influência na produção do titular do projeto, e não está focado nos arranjos contratuais que permitem uma divisão funcional ficta, que propicia a fuga da legislação ambiental.

III.2. Caso Batuco No precedente que denominaremos “caso Batuco”26, também é possível verificar um fracionamento do projeto, para iludir a avaliação ambiental. Neste caso, um projeto de desenvolvimento imobiliário progressivo, que começou suas atividades no ano 2010 na localidade de Batuco, região Metropolitana, não se presentou a ser avaliado integramente no sistema de avaliação de impactos ambientais, mediante a apresentação de projetos de menor envergadura. Assim, o projeto foi sendo aumentado, sem ser avaliado completamente, podendo numa fase inicial contemplar 220 unidades de moradia no ano 2012, amplificáveis a 5.500 unidades no percurso de 37 anos27. Para conseguir essas autorizações fragmentadas, participaram duas organizações empresariais, Inversiones e Asesorias HyC e um holding imobiliário controlado pela empresa Aconcagua S.A., composto, por sua vez, por três empresas imobiliárias. Além dessas empresas, Inversiones e Asesorias HyC envolveu, no desenvolvimento do projeto, uma filial para desenvolver um projeto de abastecimento de agua potável e tratamento de esgotos, e outras sete empresas controladas por ela para desenvolver e presentar projetos outros imobiliários associados ao projeto principal.28 Também, foram criadas duas empresas construtoras, sendo sua propriedade dividida entre Aconcagua S.A. e Inversiones e Asosorias HyC.29 Dessa maneira, num tecido societário complexo, as diferentes unidades societárias foram assumindo a construção de um projeto imobiliário de grandes proporções, mas que foi avaliado por partes, como se fossem vários projetos pequenos.

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A informação específica do projeto podemos revisa-la em: http://snifa.sma.gob.cl/v2 REPÚBLICA DO CHILE. Superintendência de Meio Ambiente. Resolução isenta N°1. Rol 23.-2015. Consideração N° 23. 28 Ibid. Consideração 42. 29 Ibid. Consideração 43. 27

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A questão foi investigada pela Superintendência de Meio Ambiente, formulando a acusação administrativa Rol 23 do ano 2015, por infringir o artigo 11 bis da lei 19.30030, que proíbe o fracionamento de projetos para iludir a avaliação ambiental.

III.3. Caso Mariana No caso do Brasil, um exemplo interessante é o recente “caso Mariana”. Neste caso, no dia cinco de novembro de 2015, aconteceu o rompimento de uma gigantesca barragem de resíduos de minério de ferro, na localidade de Mariana, estado de Minas Gerais.31 O acidente, se estima, liberou uma equivalente a 20.000 piscinas olímpicas de água e lama tóxica no estado de Minas Gerais e no estado vizinho de Espírito Santo, afetando a bacia hidrográfica do rio Doce32, e, como consequência, as pessoas que dependiam daquele para seu sustento. No 2 de março de 2016, a empresa Samarco, responsável pelas operações, logra assinar um acordo com o governo estadual para pagar 2 bilhões de reais no ano 2016, e 2,4 bilhões de reais a mais até 2018.33 Posteriormente, o Ministério Público, representando os interesses da União, demanda por 155 bilhões de reais aos responsáveis para reparar os danos.34 O interessante desse caso é que a empresa infratora, embora tenha sido fundada 1977, hoje é controlada mediante uma joint venture societária, celebrada entre a empresa brasileira Vale, e a empresa australiana BHP Billiton, controlando a empresa Samarco por partes iguais, detendo o 50% das ações cada uma35. Nessa ordem de coisas, a demanda do Ministério Público foi contra as três empresas36.

Ibid. Parte resolutiva 1. O artigo 11 bis da ley 19.300/1994 literalmente sinala: “…Los proponentes no podrán, a sabiendas, fraccionar sus proyectos o actividades con el objeto de variar el instrumento de evaluación o de eludir el ingreso al Sistema de Evaluación de Impacto Ambiental… No se aplicará lo señalado… Cuando el proponente acredite que el proyecto o actividad corresponde a uno cuya ejecución se realizará por etapas…” 31 10. EL PAÍS. Tsunami de lama tóxica, o maior desastre ambiental do Brasil. 31/12/2015. Em. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/30/politica/1451479172_309602.html. 32 Ídem. 33 BBC. Mariana: Acordo com governo só defende patrimônio de mineradoras, diz procurador. 02/03/2016. Em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160302_acordo_samarco_mpf_rs 34 EL PAÍS. Procuradoria pede 155 bilhões de Samarco, Vale e BHP por danos em Mariana. 04/05/2016. Em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/04/politica/1462315157_587626.html. 35 SAMARCO MINERAÇÃO S.A. Financial Statements 2008-2009. Brasil. 2009. Em: http://www.samarco.com/wp-content/uploads/2015/11/Management-Report-and-Financial-Statements2009.pdf 36 El País. 2016. Op. Cit. 30

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Que é o interessante desse caso? Que, eventualmente, poderia acontecer que uma joint venture societária poderia delegar a responsabilidade numa entidade de menor envergadura patrimonial para afrontar a responsabilidade ambiental, fugindo assim as organizações

controladoras

desconsideração

da

da

responsabilidade.37

personalidade

jurídica,

para

Contudo, efeitos

da

a

previsão

da

persecução

da

responsabilidade ambiental no Brasil, poderia ser uma interessante salvaguarda para essas questões, procurando-se assim penalizar a quem tem o poder econômico, além das formas societárias38. Podemos observar que em ambos países existem contratos associativos para fugir da legislação ambiental. Nos casos do Chile, a intensão é fugir da avaliação ambiental de maior rigor, a saber, mediante um estudo de impacto ambiental. No caso de Mariana, a questão seria, prima facie, fugir ou atenuar a responsabilidade ambiental das empresas controladoras, utilizando a empresa Samarco como um verdadeiro escudo para efeitos da reparação dos danos. Depois, cabe a pergunta natural e obvia, das possibilidades de remediar esses esquemas contratuais que pretendem fugir da regulação ambiental. Na continuação, pretendo expor algumas soluções para aos problemas, sendo duas de ordem regulatória (o processo administrativo e a autorregulação), e outra de recolher um velho ilícito civil (à fraude à lei).

IV. REMÉDIOS POSSÍVEIS AOS CONTRATOS ASSOCIATIVOS COMO MEIOS DE FUGA DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL

Atendidos os casos concretos sinalados, espero oferecer três possíveis caminhos a solucionar o problema de criar instrumentos legais que ajudem a conter a fuga da regulação ambiental mediante contratos associativos. Essas possibilidades são a formulação de regulações com a participação dos interessados, seguindo a teoria processual administrativa de Croley, a formulação de autorregulações na gestão dos recursos naturais, seguindo as ideias de Ostrom, e finalmente, recolher a antiga figura da

37

Essa ideia em: FRAZÃO, Ana. Desastre em Mariana e a imputação de responsabilidade jurídica em joint ventures. Em. Consultor Jurídico. 06/02/2016. Em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-06/ana-frazaoimputacao-responsabilidade-juridica-joint-ventures 38 Supra. Nota ao rodapé n° 4.

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fraude à lei, própria do direito privado. Então, vamos a revisar essas ideias, sinalando como podem colaborar na solução do problema.

IV.1. A teoria processual administrativa de Croley

A primeira coisa, é pensar na formulação de regulações com a participação de todos os interessados, seguindo as ideias de Croley. Ele, fazendo uma crítica à teoria da ação coletiva de Olson, questiona à concepção tradicional da teoria da escolha pública, que olha com desconfiança a participação do Estado na formulação de regulações. Considerando que o Estado é um fiscalizador e criador de regulações, as decisões do mesmo funcionam num verdadeiro “mercado” da tomada da decisão, usando os grupos de ação coletiva sua influência para “comprar” regulações ao Estado, as que beneficiariam os seus próprios interesses, podendo assim capturá-lo.39 A consequência dessa ideia é que as possibilidades de regular, que detém o Estado, devem ser menores, pois só nessa medida, terá menos favores a “vender” no mercado das regulações, deixando menos espaço a sua captura por parte de interesses privados. Desde um olhar diferente, Croley critica essa ideia, sinalando que o papel do Estado, na formulação de regulações, não necessariamente vai ser sempre capturado. Os processos administrativos que conseguem articular a participação de todos os interessados, podem gerar processos virtuosos em que os grandes grupos de interesse privado se vêm contestados pela articulação circunstancial de grupos menores da sociedade civil.40 O sucesso e o fracasso de um bom processo de formulação de regulações, com influência da sociedade civil, dependerá da independência da agência pública que conduz o processo administrativo de criação da regulação. Como essa ideia é importante para nosso problema? É relevante, pois os grupos de ação coletiva, na prática, podem se articular mediante contratos associativos, velando pelos interesses privados deles, podendo ser contrastados esses interesses no processo administrativo com os interesses das organizações da sociedade civil. Se bem que não é possível questionar prima facie a legalidade dos contratos associativos, se oferece uma alternativa preventiva de regular aquelas questões críticas, e das quais os

39

CROLEY, Steven P. Regulation and Public Interests: The Possibility of Good Regulatory Government. . EE.UU. Princeton University Press, 2008.pp. 16-19. 40 CROLEY. Op. Cit. p 25.

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subscritores daqueles contratos pretendem fugir, criando esquemas regulatórios de maior aceitação para todos os envolvidos. Assim, a solução reguladora seria, de alguma maneira, “híbrida”, nem na visão da “red tape regulation” que influi no processo produtivo interno das empresas, ajudado de proibições, nem na visão do “Estado mínimo”, própria da visão tradicional da teoria da escolha pública, que visa as soluções em prol mercado. A desvantagem desta proposta é que, ainda com a colaboração de todos os setores na formulação da regulação ambiental a ser aplicada, dificilmente uma regulação ambiental poderia limitar a liberdade contratual, e, por consequência, o conteúdo dos contratos associativos que procuram fugir da regulação ambiental. Dito de outro modo, um esquema regulatório participativo poderia criar melhores normas ambientais, mas o enforcement das mesmas dependerá de se os regulados se sentem constringidos pelas mesmas, se realmente eles estarão interessados em adotá-las.

IV.2. A autorregulação em Ostrom.

Outra solução possível, seria seguir a linha de pensamento de Ostrom, focada na autorregulação sobre os recursos naturais, fazendo uma crítica à questão do free rider de Olsom e à tragédia dos bens comuns de Hardin. Desde a perspectiva de Olson, ele vê nas organizações empresariais uma conjunção de interesses que, articulados, permitem a geração de benefícios coletivos. Porém, isso não obsta que os interesses individuais, dos sujeitos particularmente considerados, aproveitem parte desses benefícios sem pagar por eles, existindo o problema do free rider.41 A outra crítica é a realizada à teoria dos bens comuns de Hardin, a qual aponta que os sujeitos que se aproveitam de um bem comum, não se vendo constringidos, sempre vão tentar se apropriar de uma unidade adicional do bem comum, em detrimento da sua estabilidade no tempo, gerando cenários de esgotamento por sobre-exploração.42 Isso, de alguma maneira, se explica nos jogos não colaborativos, sob o chamado “dilema do prisioneiro”, no quais, os participantes, sem possibilidade de colaborar ou se comunicar uns com os outros, tenderão a escolher a

41

OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolutions of institutions for collective action. EE.UU. Cambridge University Press, 1990.p 4. 42 Ibid. p 6.

291

solução que os beneficie individualmente, ainda em detrimento de benefícios coletivos para todos os envolvidos43. Assim, o que propõe Ostrom é que tanto a questão do free rider quanto a tragédia dos bens comuns são generalizações de problemas regulatórios, e que, na vida real, é possível encontrar exemplos de autorregulação, em esquemas cooperativos, nos quais não existe um esgotamento do recurso natural explorado, nem se verifica a questão de sujeitos que se aproveitam gratuitamente dos benefícios da organização44. Para ser bem sucedidos aqueles esquemas de autorregulação, devem ser respeitados os seguintes princípios: 1.- Os limites de exploração devem ser claros; 2.- Deve haver congruência entre o custo da aplicação das regras e os benefícios esperados, e entre as normas que restringem o tempo, lugar, tecnologia e quantidade de recursos extraíveis em relação as condições locais; 3.- Deve haver acordos de ação coletiva, nos quais a maioria dos participantes sejam capazes de modificar as normas de funcionamento; 4.Monitoramento, onde os fiscalizadores efetivamente ressalvem o bem comum, além de ser responsáveis diante os usuários; 5.- Sanções graduadas segundo o conteúdo e gravidade da infração; 6.- mecanismos de resolução de conflitos, que sejam efetivos, de acesso simples e baixo custo; 7.- que o Estado reconheça direitos mínimos de autoorganização, e; 8.- No caso de organizações que estão inseridas dentro de outras organizações maiores, devem se manter a apropriação, fiscalização e cumprimento dos mecanismos para resolver conflitos e manter a governabilidade em todos os níveis45. Nessa ordem de coisas, a teoria de Ostrom é importante para o direito, pois se ocupa de explicar questões próprias do direito de propriedade, do direito ambiental e do direito dos recursos naturais46. Tentando aproximar essas ideias ao problema dos contratos associativos, a solução de autorregular o alcance deles por parte das mesmas organizações empresarias parece ideia uma interessante, pois teria um “enforcement” maior do que uma regulação estatal, sentindo-se realmente os autorregulados constringidos a seguir as normas criadas por eles, adaptando-se melhor às mudanças próprias de cada assunto a ser regulamentado, reagindo com maior rapidez que sucessivos processos administrativos de criação de normas ambientais. Contudo, a solução parece

43

Idem. Ibid. p. 7. 45 OSTROM, Elinor. Reformulating the commons. Ambiente & Sociedade, 2002.p 11. 46 ROSE, Carol. Ostrom and the lawyers: the impact of Governing the Commons on the American legal academy. International Journal of the Commons, 2011.pp. 28-49 44

292

ter defeitos, principalmente assumindo que não toda autorregulação estaria destinada ao sucesso. Os exemplos usados por Ostrom respondem a comunidades locais, com economias dependentes do recurso natural autorregulado em questão, elemento chave para o sucesso. No caso dos contratos associativos, as empresas estão procurando fugir da regulação para não assumir custos sociais que, pelo menos no curto prazo, não afetarão aos subscritores daqueles contratos. Ainda mais, poderiam agir de má-fé e criar autorregulações para permitir práticas contratuais para iludir a normativa ambiental.

IV.3. Fraude à lei como uma antiga solução à uma questão nova.

Outra possibilidade de remediar contratos associativos que procurem fugir da legislação ambiental e utilizar a figura da fraude à lei. Podemos sinalar que é uma verdadeira revogação funcional de um preceito legal47, tornando-o inútil, vulnerando a confiança dos operadores jurídicos no sistema de normas legais48, consistente, em linhas gerais, que o intérprete, na frente de variadas possibilidades de interpretação de um preceito legal49, escolhe aquela que inutiliza a norma, tornando-a inaplicável na prática. Essa figura é de antiga data, e já tem reconhecimento no Digesto50. A fraude à lei é o que poderíamos denominar um ilícito atípico, sendo uma infração às normas em razão de vulnerar princípios, e não leis num sentido estritamente literal51. Nesse sentido, a aceitação doutrinária da fraude à lei é contrária a um entendimento literal das leis, pois a literalidade poderia torná-las sem um sentido prático na atividade regulada.52 Essa figura ilícita se diferencia de outras figuras jurídicas que questionam a aplicação literal das leis para obter efeitos que podem contravir princípios jurídicos. É diferente do abuso do direito, pois o abuso não implica a vulneração de uma norma para obter uma autorização de realizar algum ato, prima facie, proibido pelas leis. No abuso

47

ATIENZA, Manuel, RUIZ MANERO, Juan. Ilicitos atípicos. Madrid: Trotta, 2006.p 67. FUEYO, Fernando. El Fraude a la ley. Em: Revista Derecho y Jurisprudencia. 1991.p. 27. 49 RICOEUR, Paul. El problema del doble sentido como problema hermenéutico y como problema semántico. Em: El conflicto de las interpretaciones, ensayos de hermenéutica, de Paul Ricoeur, 61-74. México: Fondo de Cultura Económica, 2008.p. 66. 50 D.1.3.29. Contra legem facit, qui id facit quod lex prohibet, in fraudem vero, qui salvis verbis legis sententiam eius circumvenit. 51 FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Portugal: Sucessor, 1963.p 63. Literalmente, o autor se refere à vulneração do espírito das leis. 52 FUEYO. Op. Cit.p 27. 48

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do direito, o direito a realizar o negócio jurídico é preexistente, mas é realizado gerando um prejuízo a terceiras pessoas, enquanto que, na fraude à lei, é possível obter uma permissão de desenvolver um ato proibido, encobrindo-se na interpretação que torna um preceito não efetivo, vulnerando direitos alheios53. A fraude à lei é diferente também da simulação, porque a simulação pretende executar um negócio jurídico escondendo o autêntico negócio que as partes procuram desenvolver, enquanto que o fraude a lei não esconde um negócio jurídico, senão que pretende derrogar funcionalmente uma lei. Além disso, o negócio simulado não necessariamente pode vulnerar a ordem jurídica, e inclusive pode responder a adaptação prática de algumas figuras do direito privado.54 Também, a fraude à lei é diferente do dolo, pois o dolo poderia ser caraterizado como uma maquinação nos fatos para induzir ao erro da contraparte, e conseguir que assim participe do negócio jurídico.55 No caso da fraude à lei, responderia a uma maquinação das leis, e não dos fatos, para obter um resultado contrário ao direito. Tanto no Chile56, quanto no Brasil57, seria possível achar hipóteses legais para sancionar a fraude à lei, existindo uma normativa geral do direito privado que permitiria questionar os contratos associativos que tenham por finalidade fraudar a legislação ambiental. Particularmente no caso de legislação brasileira, para fraudar uma lei imperativa. Contudo, a fraude à lei como remédio tem grandes dificuldades de ser aplicada. Possivelmente, das soluções oferecidas, seja a que detém maior quantidade de problemas para ser viabilizada. Poderíamos resumir essas complicações, sendo a primeira a sinalar que existe entre os civilistas a discussão irresoluta da importância da subjetividade ou objetividade da fraude à lei. Na visão subjetiva, é necessário que o defraudador deseje e procure um objetivo contrário às leis no negócio jurídico58. Por sua vez, a visão objetiva dispensa a necessidade da intenção, e simplesmente seria suficiente corroborar a consequência ilícita da fraude59. O pano de fundo da discussão é, finalmente,

53

ALCALDE, Enrique. Teoría del fraude a la ley. Em: Teoría del derecho civil moderno, de Universidad del Desarrollo. Ediciones Universidad del Desarrollo. Santiago. 2005.p 113. 54 Ibid. p 121. 55 REPUBLICA DO CHILE. Código Civil Chileno. Artigo 1458. 56 REPUBLICA DO CHILE. Código Civil Chileno. Artigo 1462. 57 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Código Civil Brasileiro. Artigo 166.VI. 58 ALCALDE. Op. Cit. pp 97-98. 59 Idem.

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as dificuldades probatórias da motivação subjetiva do infrator, o que, em estruturas societárias complexas, seria um ponto de prova de grande dificuldade. Outro debate possível é que, sendo a fraude à lei um ilícito atípico, e devendo contravir princípios jurídicos, os princípios também são suscetíveis de serem redefinidos em inúmeras discussões, e, em boa parte, dependa de valorações sociais de conceitos vagos envolvidos, e que ajudam a determinar que efeitos seriam juridicamente indesejáveis, tais como moral, boas costumes ou ordem pública60. Adicionalmente, não existe uma sanção uniforme, ou pelo menos indiscutível na doutrina, sobre como sancionar a fraude à lei. A sanção seria casuísta, e deveria adequar-se a normas especiais do negócio a ser anulado61. Dessa maneira, deveriam se levar em consideração regras especiais sobre os contratos associativos, dependendo da jurisdição local que questione o assunto. A consideração da fraude à lei quanto remédio aos problemas derivados dos contratos associativos fraudulentos, é muito diferente às soluções regulatórias oferecidas antes, e é um apelo a soluções do direito privado, esquecidas muitas vezes pela doutrina do direito público. Também, oferece uma alternativa para litigar, mostrando outras vias de estratégia legal em conflitos ambientais de conotação pública, podendo, por exemplo, ser utilizada por ativistas para impugnar ilícitos ambientais, em sede do direito privado, procurando anular esquemas associativos que levem à fraude. Nesse sentido, e ainda parecendo uma figura tão antiga quanto complexa, vale a pena tentar adaptá-la nos requerimentos atuais do direito ambiental. Finalmente, já revisando a questão dos contratos associativos como fuga da regulação, alguns exemplos concretos, e possíveis remédios ao problema, podemos revisar as conclusões do texto.

V. CONCLUSÕES

A doutrina do direito ambiental, até hoje, não tem se preocupado maiormente com os contratos associativos como instrumentos de fuga da regulação ambiental. Para propósitos deste texto, foi possível achar três exemplos no direito chileno e brasileiro,

60

LIGEROPOULO, Alexandre. La defensa del derecho contra el fraude. Revista de derecho privado, 1930. p. 24. 61 Ibid. p. 4.

295

questão que nos mostra que o problema, embora não seja hoje uma grande preocupação, poderia chegar a ser um assunto de suma importância no futuro. Seguindo a distinção entre empresa e mercado, os contratos associativos aparecem como uma área cinza: não são nem soluções de mercado para prover as empresas de bens e serviços que precisam para sua operação, nem são estruturas internas de funcionamento. Nesse sentido, as anotações de Williamson são totalmente pertinentes62. A abordagem dessa verdadeira área gris, desde a ótica do direito ambiental, é complexa, no sentido que os instrumentos legais e de gestão ambiental estão, por uma parte, centradas ou na ingerência do Estado nos processos produtivos, tentado prevenir ou reparar o acontecimento de danos ambientais. Esses instrumentos poderiam ser denominados como de “incidência na empresa”, e podemos sinalar a modo exemplar o licenciamento ambiental, os planos de manejo, os tributos ambientais, e a responsabilidade por danos ambientais. Por outra parte, encontramos os instrumentos que poderíamos chamar de “incidência no mercado”, que tentam, seguindo as críticas de Coase a Pigou, pensar no benefício social oferecido pelo mercado, e não numa irrestrita internalização dos custos sociais. Assim, o Estado consegue criar, mediante normas de direito ambiental, mercados que ajudam a deter a deterioração do meio ambiente. Alguns exemplos daqueles instrumentos são os créditos de carbono, ou o pagamento por serviços ambientais. Nessa ordem de coisas, o recado de tratar os âmbitos de “incidência híbrida” não parece ser recolhido pelo direito ambiental. Os contratos associativos parecem ocupar esse âmbito para propiciar ilegalidades. No caso de Mariana, na reparação de danos ambientais, e no caso Batuco e Castilla, o licenciamento ambiental. Esses instrumentos a serem burlados, como se explicou, pertenceriam ao âmbito de “incidência na empresa”. As soluções sinaladas podem parecer abstratas, particularmente a fraude à lei, quase como um difícil dilema interpretativo, estimo, não são soluções que se encontrem nem no extremo da influência na empresa nem no mercado. Estão próximas no que seria dito coloquialmente, a área gris. Um processo administrativo de formulação de regulações ambientais obrigaria a “sair” do arranjo contratual aos possíveis infratores, e negociar com o seu poder empresarial na frente da organização de diversos interesses sociais, que

62

Supra. Nota ao rodapé N° 11.

296

operariam como um grupo de ação coletiva, sequer circunstancial. Assim, a criação da regulação não seria uma imposição completamente estatal, nem uma intervenção direta de outro interesse privado. Desde a perspectiva da autorregulação de Ostrom, também parece que a formulação de regulações não é intervenção direta na empresa nem criação de um mercado. Os arranjos legais internos podem nos levar a esquemas com um altíssimo “enforcement”, com baixo custo, pois as possibilidades dos autorregulados de defraudar as leis que eles mesmos se impõem parece baixo. Isso, ainda parecendo uma solução eminentemente privada, não podemos esquecer o princípio 7 sinalado por Ostrom: o papel do Estado no reconhecimento das normas é fundamental.63 A fraude à lei, ainda sendo uma figura antiga para anular negócios jurídicos, esconde um ponto interessante a denotar: sendo uma figura própria do direito privado, está a ressalvar interesses públicos. Não em vão, a fraude à lei tem grande relevância em assuntos do direito internacional privado para iludir normas de direito de família, ou para iludir obrigações tributárias. Desde uma perspectiva privada oferece remédios às ameaças ao interesse público, ou dito de outra maneira, desde o agir dos sujeitos no mercado consegue influir no funcionamento das empresas. Contudo, as soluções detêm problemas: o processo administrativo precisa de agências realmente independentes, a autorregulação precisa de um compromisso, dependência direta e proximidade dos autorregulados ao recurso natural que desejam manejar, e à fraude a lei precisa de maior concreção conceitual, enquanto remédio aos negócios jurídicos aparentemente lícitos que gerariam danos. Despois deste breve exercício de questionamentos às preocupações do direito ambiental, é possível, ainda levando em consideração as desvantagens das soluções estudadas, que um futuro exercício de classificação dos instrumentos de gestão ambiental reconhecidos na lei, entre de “influência na empresa” e de “influência no mercado”, poderia nos levar a determinar fraquezas no tratamento do que poderíamos chamar a “influencia híbrida”. Dito de outro modo, como pensar em instrumentos de gestão ambiental que consigam se posicionar efetivamente ante ameaças como os contratos associativos? Neste texto estou longe de oferecer uma resposta, mas se pudesse aportar uma clareza, aquela

63

Supra. Nota ao rodapé N° 45.

297

seria que essa solução não pode depender exclusivamente de esquemas regulatórios que estejam sempre perseguindo o regulado, desde um viés do direito público em geral, e desde o viés do direito administrativo sancionador em particular.

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