\"Algumas questões de gênero na literatura de Marcelo Mirisola\", 20th Annual Hispanic and Lusophone Studies Symposium, The Ohio State University, Columbus, OH (2017)

May 24, 2017 | Autor: Gabriel Mordoch | Categoria: Brazilian Studies, Brazilian Literature
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The 20th Annual Hispanic and Lusophone Studies Symposium at the Ohio State University GENDER, PODER E INSTITUIÇÕES IN LUSO-HISPANIC LITERATURE AND MEDIA March 31 – April 1 2017

Algumas questões de gênero na literatura de Marcelo Mirisola Gabriel Mordoch The Ohio State University

O escritor Marcelo Mirisola nasceu em São Paulo em 1966 e é formado em Direito – profissão que aparentemente nunca exerceu. Não sei se perdemos um bom legislador, mas com certeza ganhamos um escritor de muito fôlego e talento. E que advoga de corpo e alma pela literatura de qualidade. Desde a publicação de seu primeiro livro de contos em 1998 – Fátima fez os pés para mostrar na choperia – Mirisola já lançou cerca de vinte livros. Isso significa um promédio de um livro por ano. Trata-se de uma produção tão vasta quanto variada, pois inclui livros de contos, de crônicas e ensaios, romances, e até teatro – além de livros em parceria com cartunistas, ilustradores e outros escritores. Por enquanto apenas um dos seus livros foi traduzido ao inglês [Joana a contragosto, “Joana against my will”]. Dois romances de Mirisola esgotados no Brasil [O azul do filho morto e Bangalô] foram editados em Portugal em 2016 [Editora Cotovia] (slide #2). Além de haver criado um estilo absolutamente original de escrever, onde se destacam por exemplo um uso singular e engenhoso da sintaxe, uma mescla especial entre erudito e popular, e a ausência absoluta de qualquer medo das palavras, Mirisola também é considerado um dos pioneiros da chamada “autoficção” na literatura brasileira contemporânea. Trata-se da técnica onde narrador e autor se misturam de forma a confundir o leitor. Mirisola aplica essa técnica com

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habilidade, de modo que, às vezes, chega a confundir leitores incautos que não estabelecem a devida separação entre autor, narrador e personagem. No entanto, o próprio Mirisola costuma contestar e ironizar a ideia de que sua literatura é “auto-ficção”. Outra marca singular de sua literatura é o costume “homenagear” ícones da cultura pop e da classe média brasileira, por exemplo Hebe Camargo, Ivete Sangalo, Faustão, Drauzio Varella e outros – e também criticar nomes consagrados da cultura e literatura brasileiras. Todo autor é sobretudo um leitor e Mirisola não é diferente. Algumas de suas leituras preferidas, mencionadas tanto nos seus livros como nas várias entrevistas que costuma conceder, são: Georges Bataille, Henry Miller, John Fante, Primo Levi, Thomas Bernhardt, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Dostoievsky, Tolstoi, Nikos Kazantzakis, Calderón de la Barca, Charles Bukowski e a Bíblia, entre outros. Algumas das temáticas trabalhadas por Mirisola são a memória (a qual chama de “instrumento de trabalho”), o amor, a infância, a amizade, o espaço urbano, a classe média e, certamente, questões de gênero. Aproveitando o tema do simpósio deste ano, decidi abordar brevemente algumas questões de gênero na literatura de Mirisola. Não se trata de uma tarefa fácil, uma vez que essa questão fundamental da humanidade aparece das mais diversas e variadas formas ao longo da vasta criação literária do nosso autor. Tanto a sexualidade normativa quanto não-normativa abundam na literatura de Mirisola. “Hosana na sarjeta” e “A vida não tem cura” por exemplo são fortemente marcados pelo conflito de gênero entre homens e mulheres”. O mesmo vale para “Joana a contragosto”. “O banquete” também trata da tensão entre o feminino e o masculino (slide #3) Enquanto lia, escrevia e preparava esta apresentação, os rumos do trabalho mudaram um pouco. Ao invés de concentrar minha análise em personagens normativos, decidi focalizar alguns

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exemplos de representação de uma sexualidade não-normativa na literatura de Mirisola. Vou apresentar três personagens e, a modo de conclusão, tecer algumas considerações finais. Tudo muito sucinto, pois temos pouco tempo e também não quero abusar da paciência de ninguém. Esse é o mapa da apresentação de hoje. Vejamos por exemplo “Pepê, um cara legal” (slide #4). Esse conto aparece em “O herói devolvido” (2000) e apresenta um protagonista portador de síndrome de Down que trabalha (ou melhor, é explorado) jardinando o terreno do narrador e de outros vizinhos de classe média. Por desencargo de consciência, esses vizinhos classe-média contribuem financeiramente para a Associação de Pais e Amigos do Excepcionais (APAE). Conforme o narrador do conto, outro dia Pepê foi pego “chupando o caralhinho do filho da manicure” (127). Posteriormente, Pepê também viria a ser flagrado “chupando o caralhinho do filho da cabeleireira” (130). Aqui abro um parêntese para dizer que os salões de beleza são um tema recorrente na literatura de Mirisola – especialmente aqueles cujo aluguel está atrasado. “Pepê, um cara legal” é provavelmente um dos poucos contos da literatura brasileira que ressalta a experiência homoerótica de um personagem portador da síndrome de Down (alguém aqui leu o livro do Cristovão Tezza?). Contudo, o homoerotísmo do conto não parece apontar especificamente para uma preocupação com questões de gênero, mas para as opiniões supostamente avançadas de uma voz narrativa que, na primeira pessoa do singular, conta o insólito com naturalidade. Travestis aparecem com frequência na literatura de Mirisola. Muitos travestis habitam o centro da cidade de São Paulo, por isso vejo sua inclusão literária como gesto coerente de um escritor interessado na paisagem humana de sua cidade, - e (talvez) não necessariamente na complexa sexualidade dos travestis. Nos minutos que nos restam vamos falar de dois deles (ou delas). O primeiro aparece em “Animais em extinção” (2008) (slide #5), um livro que se passa

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entre São Paulo e João Pessoa. Novamente na primeira pessoa do singular - e novamente trabalhando os temas da infância e do espaço urbano – um narrador envolvido com uma prostituta mirim em João Pessoa conta lembranças de amigos, amores, frustrações e aventuras sexuais durante o tempo que morava no centro de São Paulo. O narrador intercala suas lembranças paulistanas com os acontecimentos que ocorrem - no tempo presente - na capital da Paraíba. A biografia do narrador coincide em parte com a do próprio autor - daí a ideia “autoficção” mencionada anteriormente. Devido ao conteúdo erótico-sexual do romance, para alguns é como se “Charles Bukowski reencarnasse na Praça Roosevelt [no centro de São Paulo] e escrevesse uma nova crônica do amor louco” (Luciano Trigo, em entrevista com Marcelo Mirisola publicada no website de O Globo em 22/11/08).A influência de Bukowski é no entanto problemática – mas por uma questão de limitação de tempo não vamos discutí-la neste momento. Paloma Holliday, a Papi, ilustra a capa do livro e aparece empunhando o ursinho panda de pelúcia que o narrador lhe presenteou. É possível argumentar que a cena - captada na imagem da capa - confere um certo lirismo a personagem e, por extensão, a condição de travesti de modo geral, rompendo assim estereótipos e classificações apriorísticas. “Animais em Extinção” tem, ademais, um capítulo inteiro sobre travestis que habitam e trabalham na Praça Roosevelt e arredores. A vida não tem cura (2016) (slide #6) é, diferentemente dos livros anteriores, narrado por um personagem que dificilmente pode ser confundido com o autor de carne-e-osso. Neste caso o narrador é um professor de matemática delivery chamado Guilherme, morador da Vila Prudente, na periferia de São Paulo, e casado com Natasha, com quem tem uma filha, Maria Clara, ou Clarinha. Ao longo da trama, Guilherme é paulatinamente esmagado pela personalidade e caráter

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de Natasha, uma garota que estuda publicidade e se destaca na profissão. Dois pontos de inflexão importantes da relação: primeiro, o momento em que o casal passa a se relacionar com Luigi, “o negro lindo que a gente conheceu no show do Legião-cover, e que se tornaria uma das pessoas mais especiais que passaram por minha vida” (15). O segundo momento é a agressão-nãoagressão de Gui contra Natasha, performatizada após uma longa sequência de humilhações impostas por Natasha contra Gui. Gui perde o controle. Mas não chega a agredir a mulher.“Não, não foi um soco. Mas um tapa de mão aberta que perdeu a força no percurso, era como se alguma coisa segurasse meu braço e me impedisse de ir adiante” (53). A partir de então a vida de Gui degringola completamente. Ele termina vagabundo no centro de São Paulo, alcoólatra, com uma perna amputada, amparado por um travesti-cafetão com quem se relaciona sexualmente (Baronesa). No fim, Gui é cooptado por evangélicos do Centro de reabilitação e cura de gays e travestis da Igreja Country da Graça Eterna de Deus. Baronesa, o travesti-cafetão que “reabilita” Gui da fracassada relação com Natasha, é apresentado da seguinte maneira: (slide #7, pgs. 5758). Vemos aqui um personagem travesti extremamente carismático que profere aforismos, lê literatura russa exotérica do século 19, escreve seu próprio kama-sutra e prevê um papel preponderante para travestis no futuro da preservação da humanidade.

Observações finais

É difícil propor hipóteses interpretativas para se entender Pepê, Paloma Holliday, Baronesa e outras personagens normativas e não-normativas ao longo da obra de Mirisola. No entanto, devo seguir o decoro acadêmico e apresentar um conclusão, mesmo que precária e/ou provisória. Assim, sugiro que a sexualidade desviante dessas personagem é menos importante quanto a

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maneira como o narrador aborda essa sexualidade. A naturalidade e descontração com que um narrador identificado com a classe-média conta o insólito causa um efeito estético cômico cujo objetivo é, sobretudo, divertir o leitor. Não se trata de divertir o leitor com as lágrimas, suor e sangue de personagens desafortunados. Seus dramas causam, no mínimo, compaixão. É o tratamento artístico irreverente e engenhoso que, em si, diverte e deleita um leitor que geralmente não encontra na esfera escrita histórias desse tipo (e/ou narradas dessa forma). Nesse mesmo sentido, também é possível argumentar que a não-normatividade dos personagens de certa forma perde sua importância e, de maneira dialética, acaba se tornando natural e ganha até mesmo uma camada de lirismo. De fato, quando lhe perguntaram o que o move a escrever uma literatura carregada de sexo, violência e escatologia, Mirisola afirmou: “O lirismo decerto. Por trás de todo sexo,violência e escatologia… existe uma compaixão e um lirismo que só os mesquinhos não enxergam.” (Entrevista concedida a Luciano Trigo publicada no website de O Globo em 22/11/08).

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