Algumas teses sobre a perversão e sobre o romance Laranja Mecânica

June 3, 2017 | Autor: Fábio Belo | Categoria: Donald W. Winnicott, Jean Laplanche, Literatura E Psicanálise, Laranja Mecânica
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[Os números entre colchetes fazem referência ao texto tal como publicado no livro: Belo, F. (2016). Algumas teses sobre a perversão e sobre o romance Laranja Mecânica. In Coutinho, J., org. (2016). Direito e Psicanálise: interseções e interlocuções a partir de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 85-109.]

[85] Algumas teses sobre a perversão e sobre o romance Laranja Mecânica Fábio Belo1

1. Ponto de Partida A teoria da sedução afirma a prioridade do outro na constituição do ser humano e da sua sexualidade. Não o Outro lacaniano, mas o outro concreto: o adulto face à criança. Um adulto perverso? Sim, pode-se dizer; mas perverso intrinsecamente, pelo fato de que suas mensagens são comprometidas por seu próprio inconsciente. (Laplanche, 1992c: 454) A partir da TSG2, o abuso sexual infantil e a violência contra a criança devem ser pensados em termos de grau. A sedução é generalizada e condição universal indispensável para a constituição do humano. O ponto de partida é acolher a impossibilidade de distinguir muito claramente o que deixa de ser mera sedução libidinizante – necessária para trazer a cria humana ao mundo simbólico dos afetos – e o que passa a ser sedução mortífera, perversa, propriamente dita. Não há fronteiras nítidas aqui. O que não quer dizer – e seria perverso dizê-lo – que toda maternagem dá no mesmo... e que toda perversão se equivale. Isso parece estar de acordo com o que a tese fundamental da psicanálise acerca da sexualidade humana: [86] A onipotência do amor talvez nunca se mostre com maior intensidade do que nessas aberrações. O mais nobre e o mais vil, por toda parte da sexualidade, aparecem na mais íntima

1 Prof. Adjunto II, de Psicanálise, da UFMG. www.fabiobelo.com.br 2 Teoria da sedução generalizada: em linhas gerais, a teoria de Jean Laplanche que visa retomar a ideia de que a constituição subjetiva se dá através e apenas através do aporte libidinal do cuidador sobre a criança. Esse fato incontornável determina a natureza pulsional do inconsciente, no sentido que este é sempre comprometido com a sexualidade infantil, perversa e polimorfa. Esta, por sua vez, tem funcionamento mortífero e contra ela erigem-se as defesas egóicas, essas também pulsionais, porém regidas por um princípio de ligação, contenção.

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dependência mútua ( vom Himmel durch die Welt zur Hölle ). (ESB, VII, 153; GW, V, 61) Ponto de partida, portanto: esforço de análise, de distinção entre as perversões. Não para encontrar uma área (do amor, da política) livre dessa incômoda mistura, pois é nosso pressuposto: há dependência mútua entre as forças inconscientes (perversas, pervertedoras) e aquelas outras sociais, egóicas, de maneira geral, contrárias às primeiras. No romance de Burgess (2012 [1962]) essa mistura talvez já seja representada pela droga que anima as noitadas de horrorshow: o moloko com substâncias sintéticas. O leite tóxico é uma metáfora desse elemento infantil que é também mortífero e excitante.

2. O sexual perverte o biológico Acredito que a distinção entre agressividade e sadomasoquismo, esboçada por Laplanche (1985 [1970]), em seu livro Vida e Morte em Psicanálise, é um ponto fundamental na definição da perversão tendo em vista a TSG. A passagem é bem clara: (...) reservamos, pois, os termos sádico (sadismo), masoquista (masoquismo) para tendências, atividades, fantasias, etc., que comportam necessariamente, de modo consciente ou inconsciente, um elemento de excitação ou de gozo sexuais. Assim nós os distinguimos da noção de agressividade (auto ou heteroagressividade) que, então, será considerada como de essência não sexual. Essa distinção prévia não supõe em absoluto a existência efetiva de uma agressividade não sexual e, inversamente, não desmente a priori que comportamentos comumente chamados sádicos possam em realidade depender de elementos instintivos não sexuais. (Laplanche, 1985 [1970], p. 91) Laplanche coloca a agressividade no campo do auto-conservativo justamente para fazer notar que, a partir desse apoio, ela adentra no campo do sexual. Talvez seja possível pensar que a agressividade puramente biológica só exista antes da constituição do aparelho psíquico. Uma vez constituído o ego, a agressividade passa a ser traduzida como sadismo e/ou masoquismo. O biológico [87] serve, portanto, como apoio3. É pela via da sedução generalizada que o sexual é implantado: apoiado nas funções biológicas.

3 Como apoio e também, em alguns casos, como fonte pulsional. Não no sentido em que Freud propunha, uma fonte direta, mas sempre no sentido em que o corpo também age como

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O ponto que nos interessa é a afirmação – muitas vezes proferida por Laplanche – de que a sexualidade só aparece posteriormente ao biológico, graças à sedução. O sexual é o que perverte o biológico. Nossa primeira tese sobre a perversão, portanto: há que se distinguir entre dois campos e examinar as relações entre eles. (1) A sexualidade, na medida em que nos é aportada do outro, é, ela mesma, perversa. (2) Há uma posição subjetiva, geralmente em tensão com o que o social chama normal . Quais as relações entre esses dois campos? Onde se encontram, quando se afastam? Lembremos alguns exemplos:    

o beijo é a perversão da boca (início do tubo digestivo); o prazer anal: qual seu sentido biológico? as auto-mutilações artísticas (Orlan) ou religiosas; a dietética (anorexia, bulimia, jejuns).

Uma consequência geral dessa primeira tese é que sempre será necessário estabelecer relações entre a sexualidade humana – fundamentalmente infantil, inconsciente e perversa – e uma posição subjetiva que designamos perversão. Vamos entender melhor essa derivação – da sexualidade perversa para a perversão – mais adiante. 2.1. No final, o biológico

Burgess nos conta a curiosa história de que seu romance tem duas versões. Uma americana e outra britânica. A primeira com 20 capítulos e a segunda com 21. O editor norte-americano não gostou do final: (...) ele tinha visto algo implausível – ou talvez, meramente invendável – em minha noção de que a maioria dos adolescentes inteligentes inclinados à violência e ao vandalismo sem sentido superava isso quando pressentia a chegada da maturidade (Burgess, 2012 [2004], p. 341). [88] No capítulo 7, da última parte do romance, Alex compara o jovem a um daqueles brinquedos malenks : (...) como pequenos tcheloveks feitos de lata e com uma mola dentro e uma chave de corda do lado de fora e você dá corda nele e grrr grrr grrr e ele vai itiando, tipo assim andando, Ó, meus mensagem. A dor mais lancinante pode ter sentidos muito distintos e suas traduções dependem de outras traduções mais complexas. O que importa destacar aqui é que o corpo é colonizado pelo pulsional: mesmo quando ele se manifesta em sua materialidade real, é como ataque pulsional que essa manifestação é traduzida.

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irmãos. Mas ele itia numa linha reta e bate direto em coisas bang, bang e não pode evitar o que está fazendo. Ser jovem é como ser uma dessas máquinas malenks. (Burgess, 2012 [1962], 273) O autor faz seu personagem expor seu desvio biológico de forma clara. Tão logo a juventude acaba (a corda no brinquedo), o sujeito se endireita. É difícil não ver nesse último capítulo um sinal claro do recalcamento de uma descoberta tão bem exposta nos capítulos anteriores. É quase um antídoto ao tóxico exposto de forma tão brutal ao leitor. As críticas de Laplanche (1992d) ao recurso biológico em Freud mostram que o biológico sempre aparece como razão explicativa quando se trata de recusar a primazia da alteridade na fundação da subjetividade. Elementos como fantasias originárias, cena primária, heranças filogenéticas (como a culpa de ter matado o pai primevo): todos esses elementos podem ser vistos como desvios biologizantes que tentam recentrar no eu sua própria origem e a origem do inconsciente. O romance de Burgess ao atribuir ao biológico as razões da violência de Alex faz o mesmo: ali onde poder-se-ia perceber o caráter sexual da violência, advém uma teoria biológica.

3. A posição originária do masoquismo

Em sua leitura de Uma criança é espancada , elaborada em Vida e Morte e no artigo La position originaire du masochisme (1992b), Laplanche demonstra a posição originária do masoquismo. Essa é uma das primeiras consequências que devemos tirar da TSG quanto à perversão. Depois dos Três Ensaios, o artigo sobre o fetichismo é o texto mais importante de Freud sobre a perversão. Nele, Freud lembra que o fetiche é o substituto do falo (Phallus) da mulher (da mãe)4 e que o protótipo do fetiche é o pênis dos homens (a tautologia é importante, pois o pênis é um objeto parcial, cuja pro[89] priedade só se dará muito mais tarde). A leitura do texto freudiano poderia nos levar a pensar no fetichismo como perversão paradigmática, pois ele é resposta ao Complexo de Édipo. Com a TSG, porém, fica evidente que o Complexo de Édipo já é uma tradução bem posterior à situação originária. É com relação a ela que Laplanche insiste no masoquismo como paradigma da perversão.

4 Importante mencionar: Freud parece usar como sinônimos os termos falo e pênis nesse texto. Ele utiliza tanto o Phallus quanto a expressão Penisersatz (cf. GW, XIV, 312).

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Numa releitura de seu próprio artigo, Laplanche (1992c) lembra que o segundo momento – a fantasia inconsciente de que sou espancado pelo meu pai – é o momento inaugural da sexualidade. A situação originária, seu protótipo, é sadomasoquista. Há uma enorme discrepância entre o adulto e o bebê. A passividade da situação infantil é inelutável e alvo de enorme esforço de simbolização e recalcamento. A tradução impossível (no sentido de ser sempre incompleta, pois a criança não possui material narcísico à disposição para traduzir) deixa um resto, esse resto é a fantasia inconsciente. É ela a única fonte da pulsão sexual humana (Laplanche, 1992c: 455). O ponto aqui é pensar como se dão as traduções posteriores dessa posição originária – o masoquismo – para outras perversões. O que determina os destinos do masoquismo originário? Quando Tosko pergunta como deve ser lá em cima , nas estrelas, Alex responde: – Ora, glupi miserável que és. Não pensai nelas. Haverá vida cá para baixo, é o mais provável, com uns sendo esfaqueados e outros a esfaquear (Burgess, 2012 [1962], p. 63). No mundo binário de Alex, o sadomasoquismo adquire a forma da penetração mais violenta. Veremos adiante como a imagem da intromissão é fundamental para Laplanche pensar na constituição do sujeito violento.

3.1. O primeiro sonho de Alex Mas eu me deixei voltar à sonolândia e cochilei horrorshow mesmo, e eu tive um sniti estranho e muito real, sonhando por alguma razão com meu drugui Georgie. Nesse sniti ele estava muito mais velho, muito esperto e severo, e estava govorotando sobre disciplina e obediência e como todos os maltchiks sob seu controle tinham que pular miudinho e bater a velha continência como se estivessem no exército, e eu estava na fileira como o resto dizendo sim senhor e não senhor, e então eu videei claramente que o Georgie tinha estrelas nos pletchos e era assim tipo um general. E então ele trouxe o bom e velho Tosko com um chicote, e o Tosko estava muito mais starre e grisalho e tinha uns zubis faltando [90] como se podia ver quando ele soltava um smek, me videando, e então meu drugui Georgie disse, apontando para mim assim: - Esse homem tem sujeira e kal nas platis todas – e era verdade. Então krikei: - Não me batam, por favor, irmãos – e comecei a correr. E eu estava correndo assim, em círculos, e o Tosko atrás de mim, smekando até cair a gúliver, estalando o velho chicote, e cada vez que eu recebia um toltchok verdadeira

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horrorshow com esse chicote parecia que tinha uma campainha elétrica muito alta trimtrimtrim, e essa campainha era uma espécie de dor também. (Burgess, 2012 [1962], p. 84-5). O sonho de Alex deixa bem claro o avesso masoquista de seu desejo sádico generalizado. Seus subalternos aparecem em posição de poder e o espancam. O pesadelo mostra como o sadismo de Alex deve ser compreendido como resposta a um masoquismo primário. O par ser espancado / espancar é uma tradução corporal do par passividade / atividade. É importante questionar as razões pelas quais tal tradução se impõe na vida psíquica de alguém. Por que usar o corpo como arma de espancamento e como alvo de espancamento? O que na história libidinal de alguém erotiza o corpo de tal forma a articular dor, prazer e narcisismo? É como se existir fosse sempre uma ameaça. O pesadelo mostra: por um detalhe, a roupa suja, há um castigo desproporcional. Narcisismo, portanto, em risco. Como se a tessitura do eu ameaçasse ser rompida a todo o momento. Talvez, para defender-se disso, o sujeito precise reiteradamente produzir o horror dessa ameaça no outro. Por fim, notemos no sonho a presença clara de uma assimetria. Seja marcada pela idade (Georgie muito mais velho e Tosko grisalho ) ou pela discrepância numérica e de força. Evidentemente, essa assimetria repete a tensão da situação originária. Note-se que a mensagem que vem do outro tem uma força brutal e invasiva. É uma mensagem predicativa (no caso, algo como você está sujo ) sem abertura alguma para traduções alternativas. Mensagem-vaticínio, por assim dizer. Seriam esses os tipos de mensagem nas origens desse tipo de sujeito violento? Acredito que sim, mas faço uma observação. Laplanche lembra que esse tipo de mensagem kafkiana se coloca para todos nós, na situação antropológica fundamental: No início, há uma espécie de mensagem enigmática, julgamento ou comunicação que se esconde atrás de um comportamento, julgamento que se pode tomar em seu sentido mais kafkiano, pois desse comunicado ao [91] sujeito , o sujeito não conhece nem os considerandos nem mesmo o verdadeiro sentido. Tal como em Kafka, só lhe é transmitido o veredicto. O que é o veredicto? Diremos, em síntese, que é o energético puro. A mensagem desqualificada não veicula nada, exceto energia. (Laplanche, 1992g, p. 101). Gostaria de levantar a hipótese de que, nos casos de perversão, esse veredicto se mantém. E o faz sob forte ameaça. Uma mensagem que impõe algo ao sujeito e que não autoriza nenhuma tradução nova. Há que se recordar que há uma forma específica de violência que se estabelece como tal exatamente por recusar o

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sentido de seu ato. Uma violência que se recusa a perguntar e/ou responder a qualquer por quê? , como se o mal não tivesse sentido. Já tentei mostrar que esse tipo de violência é um tipo de resposta a um mesmo tipo de violência sofrida anteriormente (Belo, 2004).

4. Algo entre a intromissão e a implantação No artigo Fetichismo , Freud lembra que, no fetiche, um fragmento da realidade (Stück der Realität) é escotomizado. Acredito que essa observação é importante pois traz evidentes relações com a psicose. É bastante curiosa a análise de Freud. Ele começa falando da diferença entre neurose e psicose. Ele lembra que na neurose duas correntes (Strömung) se preservam: uma ligada ao Isso e outra ligada ao Eu. No exemplo dado: o jovem obsessivo que escotomizou a morte do pai. De um lado, ele achava que o pai ainda estava vivo e atrapalhava suas atividades; de outro, ele se achava o sucessor do pai. O que quero destacar dessa leitura é que Freud não traça nenhuma diferença radical entre a neurose obsessiva e a perversão. Freud recusa, nas duas patologias, uma escotomização e defende ainda a ideia de um recalcamento / recusa da ideia angustiante. A oposição se faz, de fato com a psicose, na qual ele acredita que essa corrente que está de acordo com a realidade realmente se perdeu (... im Fall der Psychose die eine, die realitätsgerechte Strömung, wirklich vermiβt werden würde [cf. GW, XIV, 316]). De um lado, neurose e perversão; de outro, psicose. É importante fazer trabalhar esse texto com os Três Ensaios, nos quais Freud lembra que a neurose é o negativo da perversão. Negativo, nesse caso, não quer dizer contrário; quer dizer o outro lado, o reverso. A metáfora do filme fotográfico ainda é importante. É preciso uma longa elaboração para transformar o negativo na fotografia revelada. Quais são os processos químicos dessa elaboração? Equivalem, metaforicamente, a quais processos de subjetivação / tradução? [92] Outra distinção entre fenômenos como a perversão e a neurose, pode ser pensada a partir das noções de implantação e intromissão. Pressupomos que a origem do sujeito psíquico da perversão está a meio caminho – mais uma vez, uma questão de grau, de gradação – da neurose e da psicose, na medida em que pressupomos que o adulto que cuidou do bebê que se tornará perverso tanto implantou quanto intrometeu no bebê sua sexualidade inconsciente. Vejamos como Laplanche define esses termos: A implantação é um processo comum, quotidiano, normal ou neurótico. Ao lado dela, como sua variante violenta, é preciso situar a intromissão. Enquanto que a implantação permite ao indivíduo uma resposta (reprise) ativa, com sua dupla face tradutiva-recalcadora, é preciso tentar conceber um processo que

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faz obstáculo a essa resposta, curta-circuita as diferenciações das instâncias em via de formação, e coloca no interior um elemento rebelde a qualquer metábole. Eu não duvido que um processo aparentado à intromissão desempenha também seu papel na formação do supereu, corpo estrangeiro não metabolizável. (...) A intromissão está mais relacionada com a analidade e oralidade. A implantação se refere mais à superfície do corpo no seu conjunto, à periferia perceptiva. (Laplanche, 1992a: 358) Pontos importantes: é uma questão de gradação, da forma... e talvez nem tanto do conteúdo; algo da intromissão está presente no neurótico, no seu supereu: daí a possibilidade de se pensar num supereu sádico ; a forma da sedução tem a ver com as zonas erógenas visadas pelo adulto sedutor: o bebê visto como orifício é aquele com mais probabilidade de se tornar psicótico ou perverso; o bebê visto mais inteiro é o que vai se tornar neurótico. Essa distinção da forma da sedução tem muito a ver com o que aparece nos textos iniciais de Freud também. Ele dizia da idade da sedução: quanto mais cedo, mais traumática, mais grave a patologia a surgir... quanto mais o ego estivesse preparado, ou seja, quanto mais tarde for o trauma, mais ameno será o sofrimento psíquico.

4.1. As mensagens para Alex Pensemos agora no caso de Alex. Uma primeira interpretação de seu comportamento seria pensar num tipo de tentativa de traduzir invasões precoces, [93] reproduzindo / traduzindo essas invasões na forma dos espancamentos e das relações sexuais violentas. O caráter repetitivo e compulsivo desse comportamento faz pensar não no prazer experienciado de forma tranquila e egossintônica. Tratase, antes, de colocar o outro reiteradamente na posição de objeto, apassivá-lo de forma bem radical. A repetição compulsiva de Alex tenta traduzir invasões precoces, muito provavelmente insuportáveis e mortíferas. Há que se levantar a hipótese de que ele identifica-se inconscientemente com seus objetos espancados. Sua atividade, portanto, é, ao mesmo tempo, sua passividade espelhada. É psicanálise selvagem tentar imaginar um passado para Alex. Há, no romance, muito pouco sobre as interações de Alex com a família. Pensem na cena na qual a mãe chama Alex para acordar e ele responde que está com um pouco de dor de gúliver (p. 84). Apesar de dar uma espécie de suspiro , ela nada diz além de um trivial: Então vou colocar seu café no fogão, filho. Preciso ir embora. (p. 84). A cena é simples, mas deixa claro como a mãe e o pai (em

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outras cenas) não colocam limite, não questionam a posição de Alex. Quando ele vai preso, os pais mostram indiferença ou cansaço e alugam seu quarto sem culpa ou consideração. Será que essa indiferença já estava na origem da vida psíquica de Alex? É só uma hipótese: se houve essa mensagem de enfado e cansaço dirigida à criança, ele não poderia reagir de forma violenta demandando o cuidado que não houve e, ao mesmo tempo, colocando o outro na posição passiva, invertendo os papeis originários? Primeiro polo de mensagens para Alex, portanto: não me importo com você, estou cansada(o) demais para te colocar limites. Há uma passagem bem interessante na qual se narra um sonho do pai de Alex: Foi bem real – disse meu pai – Eu vi você deitado na rua e você tinha acabado de levar uma surra de outros garotos. Esses garotos eram os garotos com quem você costumava sair antes de ser enviado para aquela última Escola Correcional. (Burgess, 2012 [1962], p. 99) Segundo polo de mensagens: eu não te coloco limites, mas desejo que esses limites sejam impostos pelos outros, da forma mais violenta possível. O sonho do pai tem Alex como destinatário. A narrativa do romance irá cuidar para que esse sonho seja profético. Freud, nos textos dedicados a esse tipo de sonho, insiste em sua tese: ainda e sempre são realizações de desejo. Observem que, no sonho do pai, o bem real dá o tom da força de que isso de fato aconteça. [94] Depois do tratamento, Alex volta para casa e diz aos pais que eles terão que decidir quem vai ser o chefe , ao que o pai responde: está ótimo, filho (...) as coisas serão como você quiser. É só você melhorar. (Burgess, 2012 [1962], p. 254). A inversão de poder entre as gerações é evidente aqui. Parece haver clara articulação entre perversão e a parentalidade que não barra o pulsional da criança. Não se trata de um moralismo simples: a lei que impõe limite ao pulsional não precisa ter um formato fixo ou ser atrelada a um gênero específico (a lei do pai, por exemplo). Trata-se de fazer perceber como a sexualidade perversa infantil – sua onipotência sádica, sua violência corporal – deriva para a perversão se a própria criança tiver que se impor limites. O problema na perversão é que os limites são erotizados de tal forma a reproduzir algo da assimetria recusada pelos próprios pais na situação originária.

5. Horrorshow e sadomasoquismo

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Como são estranhas à nossa consciência as coisas pelas quais nossa vida mental inconsciente é governada! 5 (Freud, 1974 [1928], p. 213) Imaginem a situação antropológica fundamental. Trata-se de uma situação radicalmente dissimétrica. De um lado, um adulto, portador de um inconsciente sexual, repleto de fantasias inconscientes. De outro, um bebê ainda sem eu constituído. É impossível descrever exatamente tal como as coisas acontecem a esse bebê. Apenas um eu pode descrever o que lhe sucede. Do ponto de vista do bebê é uma expressão um tanto sem sentido, mas inevitável, caso queiramos avançar sobre a compreensão de como suas vivências precoces afetam o adulto porvir. Portanto, imaginemos, a título heurístico, tal ponto de vista. Trata-se de um mar de excitações vindas de todos os lados: ainda, na verdade, sem lados , pois sem nenhuma demarcação de fronteira... Nem dentro, nem fora. Apenas sensações múltiplas: boas e más também sem muita distinção, misturadas. Aos poucos, são essas fronteiras que vão se constituindo. O dentro e o fora, o bom [95] e o mau. Aos poucos: é preciso insistir, a partir do olhar do cuidador, a partir de seu holding, de um manejo adequado, da suposição desse adulto que há um pequeno sujeito ali, onde ainda não há ninguém, propriamente. Esse é o primeiro vetor identificatório: identifica-se alguém ali onde está o bebê. Esse vetor se mistura a um segundo: o adulto identifica-se com o bebê, coloca-se no lugar dele, tenta interpretar o que ele sente e deseja. Terceiro vetor, mais tardio, absolutamente dependente desses dois primeiros: o bebê identifica-se com o outro. Quarto e último vetor, radicalmente articulado ao terceiro, o bebê começa a identificar-se consigo mesmo, com suas partes, distinguindo-se cada vez mais do objeto. No início, é muito provável que essa penúltima identificação apoie-se em processos biológicos de imitação precoce. Resta saber o que são esses processos biológicos e qual sua persistência em traços de subjetividade. De início, prefiro deixar tais elocubrações de lado, sempre insistindo que, muito provavelmente, tais processos biológicos sejam radicalmente colonizados pelo pulsional, pelas identificações amorosas vivenciadas pelo bebê. Quando essas fronteiras começam a se constituir, começa a se organizar também o que Freud chamou Lustprinzip. Essa palavra, Lust, significa a um só tempo: excitação e prazer. Princípio do prazer, portanto, mas também princípio da excitação. Trata-se de um modo de funcionamento geral do aparelho psíquico: busca de excitação, busca de apaziguamento dessa excitação. Tensão e relaxamento. Esse modo, observem, já organizado de lidar com as excitações provenientes do outro, já é um modo de metabolizar essas excitações. Fazê-las funcionar em dois movimentos, em dois momentos distintos: tudo isso é uma

5 So fremd sind aber unserem Bewsstsein die Dinge, von denen unser unbewusstes Seelenleben beherrscht wird. Freud, [ ], p. 4 .

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grande aquisição psíquica. De forma alguma pode-se dizer que tal funcionamento é inato, já presente no bebê desde as origens. Trata-se de uma aquisição psíquica angariada junto ao outro cuidador. Mais uma vez: é um holding suficientemente bom que, a um só tempo, excita em demasia o bebê, mas que também dá a ele todas as condições de fazer fronteiras que contenham essas excitações. E é exatamente esse processo de contenção de excitação que se aproxima do que podemos chamar masoquismo originário. Entendam aqui masoquismo como essa tarefa primária de fazer circular as excitações que nos são implantadas de forma a torná-las menos mortíferas, menos disruptivas. Esse prazer básico de ter prazer com o que nos sucede, o que nos acontece, é masoquista, pois, mesmo que consigamos algum tipo de domínio sobre a situação, a passividade é mantida. Observem: trata-se de uma posição ativamente passiva. É uma primeiríssima tradução da passividade radical vivida no início da vida. Não por acaso, Rosenberg [96] (2003) chama essa primeira versão do masoquismo de masoquismo guardião da vida. É ele que permite a constituição das fronteiras que citei há pouco. O investimento libidinal nessas fronteiras é sempre um tanto sadomasoquista: a um só tempo me constituo como um dentro/fora para que eu possa, minimamente, dominar (sadicamente) as excitações que me penetram (masoquisticamente). Em contraposição a esse masoquismo guardião da vida, podemos imaginar um masoquismo mortífero. Trata-se de um movimento compulsivo de tentar controlar e dominar as excitações invasivas, mas de tal forma a perpetuamente reproduzir as efrações sofridas por essas excitações. É como nos sonhos traumáticos: o eu sonha com a situação traumática, tentando preparar-se para o mal que já lhe aconteceu... mas, obviamente, não é possível defender-se de algo já ocorrido. O sonho traumático reabre sucessivamente a ferida, na medida em que busca uma forma de cicatrizá-la. Assim também acontece com os comportamentos masoquistas muito pronunciados. Quando, p.ex., alguém se machuca, talvez esteja querendo produzir, ele mesmo, uma efração anteriormente perpetrada por um outro. Esse retorno sobre si mesmo, no limite, insisto já é um tanto sádico, pois o sujeito está tomando-se como objeto, mesmo que inconscientemente.

5.1. O segundo sonho de Alex

Eu sonhei, Ó, meus irmãos, que fazia parte de uma orquestra muito grande, centenas e centenas de músicos, e o maestro era uma mistura de Ludwig van e G. F. Handel, com um jeito assim de muito surdo e cego e cansado do mundo. Eu estava na seção dos instrumentos de sopro, mas o que eu estava tocando era um tipo assim de fagote banco-rosado feito de carne e que crescia do meu

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ploti, bem no meio da minha barriga, e quando eu soprava não conseguia deixar de smekar hahaha bem alto porque fazia cosquinhas, e aí Ludwig van G. F. ficou muito razdraz e bizummi. Aí ele veio direto pro meu litso e krikou no meu oko, e aí eu acordei suando. (Burgess, 2012 [1962], p. 254) O segundo sonho de Alex parece ser a realização de um desejo autoerótico. Um autoerotismo que não é primeiro em relação ao sexual, pois parece ser uma resposta em forma de recusa. No caso do sonho: ao invés de tocar junto, produzir música, o seu fagote de carne, grudado ao seu corpo, só produz cócegas. O som do riso não é compartilhado em composição, mas para produzir ruído, irritação. [97] Pensemos na ideia de que a sublimação é uma defesa que visa fazer desviar o sexual naquilo que ele tem de mais mortífero. Sublimar é encontrar estratégias para o eu não ser alvo da pulsão sexual de morte. De forma geral, uma saída é identificar-se com outros, tornando o eu mais plural, mais disperso e ao mesmo tempo mais consistente, pois compartilhado, reforçado pela libido que circula no grupo homogêneo. A cultura é uma forma de desviar o sexual, fazê-lo dar uma volta, por assim dizer, antes de voltar ao eu, diretamente. Sublimar é uma forma de ligar o sexual de tal maneira a fazer com que o laço social possa fazer às vezes do trabalho que de outra forma deveria ser solitário. A tese a ser explorada aqui é a ideia de que o neurótico obsessivo pode abandonar sua religião particular caso consiga se articular a uma religião coletiva. Não se trata apenas de uma poupança libidinal, mas também de um tratamento pulsional na medida em que as identificações com o grupo permitem que o eu não seja alvo prioritário, nem isolado. No segundo sonho de Alex, no entanto, o que vemos é a incapacidade da orquestra, de orquestrar o desejo junto ao outro. Ou ainda: a insistência em desmontar a orquestra, em atormentá-la. Produzir ruído ali onde deveria haver som. Uma metáfora poderosa para dizer da perversão: a gargalhada estridente, o peido, o arroto, o som sádico e agressivo. Tudo que penetre o outro de forma a efratar seus ouvidos, apassivá-lo, mostrar como o esforço de tocar junto, de produzir ritmo e harmonia é sempre vão e superficial e deve ser destruído. Apesar de grudado ao corpo, o fagote de carne é um apêndice externo. A carne que deveria ser interna é exibida. Exibir o que deveria ser interno. A fantasia perversa frequentemente guarda essa característica: mostrar ao neurótico o que o recalcamento esconde. O trabalho da neurose é exatamente o oposto: mostrar que há harmonia, que podemos sim tocar juntos, compor juntos. Na perversão, essa harmonia precisa ser desestruturada. O sonho termina reproduzindo, mais uma vez, a inversão do par atividade/passividade. Frente ao som do fagote de carne, há apenas uma solução: o grito do maestro muito surdo e cego e cansado do mundo . Mais uma vez, a

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autoridade é frouxa e ao mesmo tempo violenta. Uma dupla mensagem: cansado demais, porém sempre pronto para a violência. Não há meio-termo para Alex: ou o máximo de passividade ou o máximo de atividade.

[98] 5.2. Excurso: por que insistir no caráter sexual da pulsão?

Gostaria de insistir no caráter sexual das excitações que fundam o sujeito psíquico. Por que a manutenção desse nome? Não bastaria dizer apenas excitação? Por que, afinal, essa insistência da psicanálise, com o termo sexual? Bem, há algumas razões pra isso. A primeira delas é para fazer notar que essa excitação vem do outro, isso é, é proveniente de uma relação. O termo sexual, nesse sentido, faz referência à alteridade, sem a qual essa excitação não existiria. Um termo portanto para explicitar que não se trata de uma excitação que brota do próprio corpo. Uma segunda razão é pensar na relação sexual genital como um modelo para essa excitação-prazer que é a relação da pulsão com o eu. Na relação sexual também temos essa ida e vinda da excitação como tensão e o prazer como alvo, no sentido de um apaziguamento dessa tensão. Pensemos então em termos de uma derivação metonímico-metafórica6 que é própria à epistemologia da psicanálise. Pegamos uma parte (a relação genital) e a tomamos pelo todo (a relação do sujeito com suas excitações internas). Uma terceira razão é para frisar que a sexualidade da qual fala a psicanálise sempre irá se contrapor à sexualidade biológica. No caso dos humanos, nosso amadurecimento corporal se dá muito tardiamente. Quando a sexualidade biológica chega, no início da adolescência, seu lugar encontra-se plenamente ocupado por essa psicossexualidade. Os jogos de prazer já estão profundamente marcados, nossos arranjos pulsionais estão bem estabelecidos. Essa sexualidade genital será, portanto, colonizada, parasitada, por essa outra sexualidade, prioritária e infantil. Uma quarta razão articulada com essa terceira é o fato de que a sexualidade pode ser reprimida sem que haja extinção do sujeito, ao contrário das outras forças biológicas do corpo (o sono e a fome, por exemplo). Mais uma vez, ela serve de modelo metafórico para aquilo que é recalcado por excelência: a sexualidade infantil. Articulado a essa quarta razão está o fato de que a sexualidade pode

6 Recomendo a leitura do artigo Derivação das entidades psicanalíticas que serve de apêndice ao livro de Laplanche (1985[1970]).

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encontrar substitutos. Desde o autoerótico até os derivados metafóricos mais complexos. Dizer, portanto, que a pulsão é sexual é insistir no caráter único desse tipo de funcionamento entre humanos. Não há tal estado de coisas em nenhum [99] animal. Estamos bastante longe do campo do instinto. E é justamente esse tipo de funcionamento psicossexual que nos afasta desse campo.

5.3. O genital: via facilitada, mas não exclusiva A cena do estupro me parece importante porque a relação sexual tem um papel importante enquanto via facilitada / facilitadora do sexual. E por que a relação sexual é uma tradução para o sexual? A primeira razão é aquela da derivação: o genital guarda exatamente a lógica de uma excitação que, por mais que seja satisfeita, irá retornar e exigir novo apaziguamento. A segunda razão é que a relação sexual também ajuda bastante a metaforizar e a dar sentido à ideia de invasão, transgressão da tópica dentro/fora. A penetração sexual é paradigmática aqui para se compreender a derivação facilitada entre esses dois elementos7. O sexual deriva metaforicamente para a relação sexual, pois ele, o sexual, foi também implantado na criança pelos adultos que cuidaram dela. Essa implantação do sexual pode ser, claro, mais ou menos violenta, mais ou menos acompanhada de um holding que ajuda a constituir uma fronteira. Pois bem, quanto mais esse sexual estiver desligado, isto é, sem esse apoio-egoico, sem as vias narcísicas de ligação, mais mortífero, mais desligante, ele será. Como vimos, Laplanche utiliza o verbo intrometer para a sedução do adulto que vai sem muito desses auxílios narcísicos de ligação. Pensemos nos casos bastante distintos de um bebê que é seduzido de forma generalizada nos cuidados básicos (o banho, o carinho, a brincadeira) e a criança que é maltratada física e psicologicamente. Entre implantar e intrometer, evidentemente, não há uma fronteira muito nítida, mas, há, evidentemente, razões para tentarmos pensar nos cuidados originários com todo cuidado possível justamente pelos efeitos que acarretam. Observem como é importante insistir no caráter matizado da sedução generalizada. Tomemos o caso de um sujeito que goste de lutar ou de esportes violentos ou de apassivar outrem numa relação sexual, mas que, em outras áreas de sua vida, o sadismo não assume lugar proeminente, nem mortífero. Pensemos nas diferenças importantes entre esse sujeito, cuja sexualidade não é compulsiva,

7 Muito importante notar que a penetração aqui não é, necessariamente, heterossexual. Aliás, quanto mais distante da heteronormatividade, mais o penetrar o corpo do outro visando excitá-lo e excitar-se deixará claro que o corpo é, antes de tudo, uma tópica dentro/fora penetrável, mais ou menos violentamente.

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mas animada por uma fantasia sádica, atuada com um ou alguns parceiros. O [100] termo fantasia aqui é indispensável: trata-se de um roteiro, de uma tradução, da relação entre o pulsional e o eu. Que tal fantasia possa ser traduzida, por sua vez, em espanco-te ou fodo-lhe com força ou ainda te maltrato é questão singular. O importante é entender que em alguns sujeitos tais fantasias serão mais ou menos atuadas e terão esse aspecto mais objetalizante dirigido ao outro a depender das origens do sexual a traduzir. Quanto mais intrometido foi o sexual, mais objetalizado o eu será nessa tradução. Não irá bastar, portanto, apenas a relação sexual com pitadas de violência, bem circunscrita dentro de uma relação amorosa permeada pelo respeito em todos seus outros momentos. Se houve intromissão, a fantasia exige ser vivenciada literalmente, atuada, com o corpo, de forma a deixar bastante evidente o caráter subjugado do eu frente ao pulsional e frente ao outro. A compulsão à repetição não deixa dúvidas: observem como o sujeito é dominado por seu desejo. Aliás, dizer seu desejo é um tanto problemático aqui. O desejo surge como que vindo de um outro lugar, de um outro. É bastante importante notar essa característica alteritária do desejo. De um ponto de vista bem radical, pode-se dizer que o desejo pulsional, inconsciente, nunca é propriamente do eu, do sujeito. É sempre um tipo de apropriação que se faz, um tipo de arrendamento. O eu é inquilino em sua própria casa, ou melhor, acredita que a casa é sua, mas está pagando um aluguel bastante caro para habitar junto ao inconsciente. Obviamente, há bons contratos de aluguel possíveis, mas são os contratos leoninos que deixam ver de forma mais clara a assimetria entre o eu e o inconsciente. O que quero fazer notar é como a relação entre o eu e a pulsão reproduz uma situação de passividade radical. Notem que o desamparo do eu, frente à pulsão – o desamparo que realmente importa para a psicanálise – é obsessivamente obturado pelas cenas de espancamento. Para deixar ainda claro: essa tradução agonística é apenas uma, dentre infinitas, para metabolizar a pulsão sexual de morte, os fortes ataques pulsionais ao eu. Resposta sádica ao masoquismo mortífero: traduz-se mortificando o outro, para assegurar-se de que não estou morto... Reproduzo a morte da qual fugi, mortificando incessantemente o outro, tornando-o a um só tempo retrato do que outrora fui e exorcista dessa fantasia inconsciente: não sou eu o passivo, é o outro. Há nula passividade em mim. Um exemplo um tanto cômico dessa tentativa constante de anular essa passividade está na cena na qual Alex faz um teste projetivo. Ele vê, na figura que lhe é mostrada, um ninho de passarinho , cheio de ovinhos. Muito bonitinho. (Burgess, 2012 [1962], p. 255). O médico então pergunta o que ele gostaria de fazer. A resposta enuncia de forma clara a fantasia sádica em torno [101] da qual gira a vida psíquica de Alex: Esmagá-los. Pegar esses ovos todos e tipo assim atirálos contra uma parede ou encosta ou alguma coisa assim e depois videá-los todos se quebrarem muito horrorshow. (Burgess, 2012 [1962], p. 255). Impossível

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deixar de notar: ali onde deveria haver cuidado com o frágil, há hiper-violência. E há uma mensagem para horrorizar o outro, deixar bem evidente que essa assimetria pode ser usada sadicamente e não será respeitada.

6. Não há perversão fora do campo moral É importante retomar uma reflexão de Durkheim sobre o crime. Ele argumenta que não se pode julgar muito apressadamente o crime como uma ação humana contra o laço social. O autor lembra que a autoridade que a consciência moral possui não pode ser excessiva, pois esse excesso impediria que o crime aparecesse, mas também obstruiria o idealismo e qualquer crítica ao status quo. Durkheim adverte: Quantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será! (Durkheim, 2003 [1895]: 72). Essa passagem se coaduna com o que dizíamos em nosso ponto de partida, sobre a dependência mútua de forças sexuais-mortíferas e forças egoico-civilizatórias. A reflexão de Durkheim também se aproxima do que a psicanálise postula acerca da virulência do superego. Assim como acreditamos que a internalização da lei moral contribui para a contenção do crime e de comportamentos tidos como perversos, também lembramos que o superego pode ser extremamente cruel e violento. Mais uma vez, é importante lembrar o artigo Fetichismo , de Freud. Ele termina lembrando o caso do coupeur de nattes e dos chineses que mutilam o pé feminino para depois reverenciá-lo como fetiche. Além de mostrar que as duas correntes existem na vida psíquica – uma contra e outra a favor da castração – os exemplos apontam para algo da crueldade social. Do ponto de vista da TSG, seria possível pensar no outro da cultura como um outro que também envia mensagens enigmáticas, cujas traduções são mais ou menos concedidas, aceitas, recusadas... Pensemos na discussão que o etnocentrismo levanta. Afinal, podemos ou não julgar como perversão o sepultamento de bebês vivos por algumas tribos indígenas apenas porque eles apresentam algum defeito físico? Podemos ou não julgar como perverso o apedrejamento das mulheres adúlteras nas religiões tradicionais? Para início de análise é preciso questionar a lei social de forma geral, pois ela é depositária das forças de recalcamento. É preciso acolher o paradoxo que [102] isso traz: se questionamos demais a lei, estamos correndo o risco de ir contra o laço social e sermos julgados como perversos; por outro lado, se acolhemos a lei como verdade absoluta, também a utilizamos como fetiche – algo que nos protege contra os enigmas da ética, que por sua vez são os que nos obrigam a questionar e pensar nos nossos vínculos amorosos e políticos – e impedimos quaisquer

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modificações no laço social. O ponto parece ser mesmo uma questão de grau: até que ponto defendemos a lei e até que ponto a questionamos? Freud, no I Ensaio, As aberrações sexuais , insiste na presença de algumas perversões nas pessoas normais . Fica muito claro o caráter quantitativo, de grau, na definição de Freud. O patológico, diz ele, tem a ver com exclusividade e fixação : é essa característica que ele define como sintoma patológico . (ESB, VII, 152-3) Sem dúvida, parecem existir pontos, na nossa cultura, que não admitem concessão. A violência física contra mulheres e crianças é apenas um exemplo. Esse núcleo duro tem bastante a ver com a tese ampla sobre o que é perversão sob o ponto de vista da TSG: manter-se ou manter o outro na posição passiva originária. É acreditar que apenas um ocupa o lugar de passividade.

6.1. A lei perversa, perversões da lei

Laplanche (cf. Foucault, 2001 [1977]) se posicionou publicamente contra a pena de morte numa conversa com Michel Foucault. Acreditamos ser possível estender a argumentação do autor para as penas aviltantes como a narrada em Laranja Mecânica. Para Laplanche, a pena de morte adiciona maldade ao mal já feito. A pena só faz sentido se ela abole, simbolicamente, o crime. Quando se pune, sem nenhuma intenção de modificar o sujeito, mas apenas para provar a existência da lei e sua importância, entramos no campo da perversão da lei. Como diz Foucault: a justiça se inocenta de punir fingindo tratar o criminoso (Foucault, 2001 [1977], p. 290). Punir aqui, claro, no sentido de estancar o jogo sádico de tratar o outro violentamente, reduzi-lo a um objeto. Nessa mesma conversa, Laplanche levanta uma tese importante: A necessidade de punição já é uma maneira de traduzir [faire passer] a angústia primordial em algo de exprimível e, como consequência, de negociável. O que pode ser expiado, talvez abolido, compensado simbolicamente. (Foucault, 2001 [1977], p. 293). De onde provém essa angústia primordial? Laplanche não diz aí no diálogo, mas sua obra posterior deixa claro: vem da situação originária, da constituição do eu. [103] O argumento central de Laplanche (1992e) é lembrar que há desejo de morte em todos nós. Tais desejos, atrelados às nossas fantasias inconscientes, entram em jogo quando punimos alguém. Laplanche critica pesadamente a ideologia da recuperação na medida em que, com essa proposta, a pena pressupõe que o criminoso é um doente, num certo sentido, irresponsável pelos seus atos. Num mundo sem lei, não há outro recurso senão fingir, se submeter ou se revoltar

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(Laplanche, 1992e, p. 164). A internação do criminoso, baseada nessa ideologia de que a pena deve recuperar o sujeito doente, acaba por negar a justiça, torna o mundo um lugar sem lei no qual o sujeito não pode responder por seus atos. O tratamento de Alex exemplifica bem essa tripla saída apontada por Laplanche: fingir, submeter-se ou revoltar-se. Na impossibilidade da primeira e da última, Alex submete-se pela via do condicionamento físico mais brutal. A pena é tão perversa quanto o criminoso: a justiça torna-se mero prolongamento de uma polícia fascista, exigindo uniformidade e submissão máximas. Laplanche (1992e) ainda lembra os baremas para apreciar a esperança de vida (p. 161) do criminoso. Ele compara tais baremas àqueles usados pelas companhias de seguro de vida. Essa comparação vem, a meu ver, mostrar interesses econômicos também presentes na dinâmica complexa da punição. Contra tal lógica estatístico-econômica, basta lembrar que tais baremas sempre atendem a determinados interesses. É impossível determinar um barema de normalidade a partir do qual os sujeitos possam ser mensurados, sem que esse barema já não atenda interesses políticos determinados. Num mundo repleto de desigualdades brutais, por que deveríamos confiar num sistema de justiça que se propusesse a normalizar alguém? Por que confiar que tal normalização possa ser vista como saúde psíquica? São perguntas que Foucault já nos ajudou a responder ao longo de sua obra e que me parecem estar de acordo com o que se pode depreender ideologicamente da TSG. Laplanche não aceita o argumento falacioso de que a pena de morte é dissuasiva e por isso deve ser aceita e aplicada. O autor argumenta que a pena de morte – e, acredito, também as penas aviltantes com as que sofre Alex – ultrapassa o quadro das remunerações simbólicas e os limites de todo código no qual uma justiça humana deve necessariamente se inscrever (Laplanche, 1992e, p. 166). O ponto alto de sua argumentação, a meu ver, está em lembrar que a pena de morte pode ter valor excitante e não apenas dissuasivo, na medida em que responde às nossas fantasias sádicas também (Laplanche, 1992f, p. 177). [104] As longas discussões entre Alex e o padre da prisão parecem ir ao encontro dos argumentos de Laplanche. Se a pena visa condicionar o prisioneiro de tal forma a suprimir sua capacidade de escolha, então, essa pena acaba por suprimir o criminoso juntamente com o crime. Uma coisa é restringir o direito de ir e vir, aprisionando. Outra, bem distinta, é controlar a capacidade de livre escolha. É fazer da lei um não pode ao invés de um convite para o pode não (cf. Belo, 2013). Para Laplanche (1992f), a pena deveria permitir o reconhecimento de que a reparação está presa entre a nostalgia da integridade e aceitação do desastre como incitação a uma nova criação (p. 180). A pena ideal permitiria reconhecer que o que se destruiu jamais se recomporá, mas que o crime também pode ensejar

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novos recomeços. Criminosos como Alex parecem minar a esperança quanto a esse tipo de reparação interna, um tipo de reparação que também permita novas ligações para conter o incontrolável da pulsão de morte (p. 183). A perversão faz seu trabalho quando torna impossível a reparação – interna e externa. Tomar esse efeito de desesperança próprio à perversão como paradigma do crime é nefasto, pois coloca a lei obedecendo a essa mesma lógica. Fundamental atentar para a operação metonímica que entra em jogo quando falamos de uma lei perversa. O criminoso gera um álibi para realização de nossas fantasias sadomasoquistas. Posso matá-lo, violentá-lo, humilhá-lo porque ele mesmo, o criminoso, assim o fez. Tomar a lei de Talião como paradigma da lei é ficar submetido à operação metonímica de reduzir o criminoso ao seu crime. O sujeito deixa de ser sujeito e passa a ser exclusivamente criminoso, monstro sem história, em quem é possível exercer toda forma de crueldade de forma a neutralizar nosso sentimento de culpa. A operação metonímica é devidamente acompanhada da lógica cínica: primeiro, eu não te matei. Segundo, se eu te matei é para contribuir para um mundo melhor, sem monstros. Terceiro, não fui eu que te matei, foi a lei, purificada de toda libido e história, que visa apenas manter reprimidas as forças violentas dos humanos.

6.2. O terceiro sonho de Alex

Tive um pesadelo, e, como seria de se esperar, foi um daqueles trechos de filme que eu havia videado à tarde. Um sonho ou pesadelo é realmente apenas como um filme dentro da sua gúliver, só que é como se você pudesse entrar dentro dele e fazer parte dele. E foi isso o que aconteceu comigo. Foi um pesadelo de um dos trechos do filme que me mostraram [105] quase no final daquela tipo assim sessão da tarde, todo de maltchiks smekando e ultraviolentando uma ptitsa novinha que krikava cheia de króvi vermelho-vermelho, as platis todas razrasfadas muito horrorshow. Eu estava ali meio que filando, smekando e sendo meio que o líder do bando, vestido no auge da moda nadsat. E então, no auge de toda aquela drata e toltshoks, eu me senti tipo assim paralisado e com vontade de vomitar, e todo os outros maltchiks semekaram muito gromki de mim. Então eu abri meu caminho de volta até acordar através do meu próprio króvi, litros e litros dele, e aí eu vi que estava na minha cama neste quarto. (Burgess, 2012 [1962], p. 255).

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Efeito do poder mais brutal: invadir também o espaço onírico. Observem, no entanto, que essa invasão não retira do pesadelo um tipo semelhante de realização de desejo infantil encontrada também nos outros dois sonhos de Alex que analisamos. Ainda temos a repetição da cena sadomasoquista de forma reiterada, com vários autores. Mais uma vez, Alex oscila entre algoz e vítima, embaralhando o par passividade / atividade. Para além desse aspecto que se repete entre os sonhos, há um elemento que me parece importante a se destacar na narrativa desse terceiro sonho: a comparação entre o sonho e o filme. A aproximação é evidente, mas pode ser interpretada de várias formas. Se, por um lado, sonho e filme trabalham com imagens em movimento, por outro, ficamos com a impressão que, ao aproximar seu sonho de um filme, Alex está recusando uma vez mais a responsabilidade sobre seu desejo. É como se o desejo que o sonho veicula nada tivesse a ver com ele, como se o sonho fosse mesmo mera repetição dos restos diurnos aos quais faz referência. Tal distanciamento do desejo é um traço importante da perversão sádica. O desejo é transformado em lei imperativa – dirigida ao outro e ao próprio sujeito. Parece não haver um momento de ponderação ou crítica. O desejo se impõe como inevitável. Esse como se fosse um filme traduz bem a cisão entre o sujeito e a apropriação crítica do seu desejo. Um exemplo já clássico é o caso do soldado que acata às ordens pelo fato de serem ordens. Não questionar sua implicação no cumprimento dessa ordem é parte fundamental desse tipo de engrenagem sádica. Mais uma vez, nos perguntamos sobre os tipos possíveis de situação originária que levaria o sujeito a tratar seu desejo com tal distanciamento. Que tipo de relação amorosa levaria a criança a essa inibição intelectual específica, isto é, a essa recusa de reflexão sobre o próprio desejo, sobre as razões pelas quais agimos como agimos. Os pais de Alex, já vimos, parecem não convocá-lo para esse exercício. Não deixam [106] claro em momento algum que o desejo do filho existe também e inevitavelmente em resposta ao desejo dos pais. Também não o convocam a articular a resposta que Alex produz aos efeitos que ela produz. É como se, de fato, o desejo fosse isolável do relacional (o sujeito consigo mesmo e também com os outros).

7. A linguagem é veículo libidinal Como interpretar a linguagem do romance Laranja Mecânica? Uma linguagem que se quer nova, que deseja contestar o código. Perversão da linguagem, pode-se dizer, na medida em que tenta-se subverter o código supostamente padrão. Perversão também no sentido de tornar próprio, individualizado ou restrito algo que supostamente deveria ser público. A

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linguagem de Alex, no entanto, é também a linguagem do romance. Evidentemente, podemos pensar que, de vez em quando, é tarefa da própria literatura nos lembrar do fascismo do código linguístico. De sua pretensa imutabilidade, neutralidade. Gostaria de considerar esse jogo de espelhos entre o personagem e o próprio romance. Pensemos em como esse romance também deseja, por um lado, exibir a perversão em seu máximo e, por outro lado, simultaneamente, dobra essa exibição através da linguagem utilizada para a tarefa. Não basta, portanto, falar da perversão, é preciso fazer essa dobra: falar da perversão de forma perversa. Fazer o leitor se sentir desconfortável não apenas com o conteúdo, mas também com a forma através da qual se veicula a mensagem. Gostaria de pensar em tal operação literária como metáfora do que sucede na gênese psíquica da perversão. Isto é, a escrita de um romance como Clockwork Orange mimetiza um efeito típico da perversão: mostrar a contingência da lei, do que é estável. Uma consequência típica da perversão é subverter a estabilidade supostamente permanente. Mostrar que ela é contingente e também violenta. Isso não é, percebam, de todo ruim: desconstruir engrenagens que produzem muito sofrimento, por exemplo, exigem muito desse tipo de trabalho. Portanto, é preciso sempre estar atento à dialética da perversão: por um lado quer mostrar que toda construção de sentido é contingente, abrindo espaços para construção de novos sentidos... Por outro lado, esse mesmo exercício da perversão, um pouco mais comprometido com a pulsão sexual de morte, quer destruir todo sentido, seja impondo um sentido apenas, seja entrando numa espiral infinita da crítica que inviabiliza qualquer estabilidade e certeza, mesmo que provisórias. [107] Se para toda constituição psíquica que coloca em funcionamento dois sistemas distintos, a consciência e o inconsciente, há sempre uma espécie de clivagem originária, no caso da perversão, essa clivagem é erotizada. O perverso tem prazer ao mostrar o que na neurose fica restrito ao inconsciente. De qualquer forma, mesmo na perversão – e também na psicose – é preciso insistir: o inconsciente nada comunica. Depois da clivagem originária, os restos que sobram do lado do inconsciente agem como objetos-fonte da pulsão. Não comunicam propriamente no sentido de serem uma linguagem, no entanto, exigem tradução a todo momento. No caso da perversão, veremos como resposta a esses restos ora o desejo de impor uma comunicação única, ora o desejo de destruir toda comunicação, ora um amálgama dessas duas saídas: comunicar destruindo a comunicação, dizer desconstruindo o código. A escrita do romance de Burgess, então, mimetiza um pouco desse processo. Há, na experiência da arte e na génese da obra, um momento em que esta não é ainda senão uma violência indistinta que tende a abrir-se e a fechar-se, que tende a exaltar-se um espaço que se abre e que tende a retirar-se para a profundidade da dissimulação: a obra é então a

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intimidade em luta de momentos irreconciliáveis e inseparáveis, comunicação dilacerada entre a medida da obra que se faz poder e a desmesura da obra que quer a impossibilidade, entre a forma em que ela se encerra e o ilimitado em que ela se recusa, entre a obra como começo e a origem a partir da qual não nunca obra, onde reina o désouvrement eterno. (Blanchot, 2003, p. 36-7) Em que pese o pathos da perda presente na obra de Blanchot, passagens como essas são descrições metafóricas importantes para entendermos a clivagem originária. Tão logo o eu (a obra, no caso) tenta nomear o inconsciente (a violência indistinta), ele o perde. O inconsciente só se apresenta – através da linguagem da consciência – na medida em que abre mão do que ele é (o pulsional, informe, pura excitação desligante) e faz parceria com o que pode dar a ele alguma contenção e via de satisfação. Representa-se sob o custo, necessário e indispensável, de perderse. (...) o inconsciente é fenômeno de sentido, mas sem nenhuma finalidade de comunicação. Pode-se dizer – talvez metaforicamente – que o inconsciente fala, mas não quer comunicar nada, não veicula nenhuma mensagem. (...) É a análise que retransforma em comunicação o que essencialmente está fechado sobre si mesmo, no inconsciente, e é justamente na medida em que está fechado sobre si mesmo que o inconscien[108]te é repetitivo. Por que falei de retransformar – e não de transformar – em comunicação? Isso quer dizer, provavelmente, que no início , na gênese do inconsciente, havia um fenômeno de comunicação que, em seguida, se fechou sobre si mesmo, convertendose então a comunicação em circulação . (Laplanche, 1992, p. 98-9). O romance de Burgess é prova que não apenas a análise retransforma em comunicação o que está fechado em si mesmo, as comunicações mais primitivas. A arte talvez também possua esse poder. Romances como esse que analisamos têm o poder de recolocar em comunicação algo desses enigmas constitutivos do humano. Sentimos que tais obras de arte cumprem esse papel quando despertam em nós a pulsão de traduzir, um desejo de interpretá-las. Temos a impressão de que obras de arte com qualidade impactante são assim justamente porque, depois de ler muitas interpretações e de se tentar fazer várias interpretações, temos a certeza de que toda tradução é precária. Nisso está nossa tragédia e nossa fonte inesgotável de alegria. Um bom romance exige não apenas muitas leituras. Exige também a manutenção de sua abertura para novas interpretações.

Referências bibliográficas

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