Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

July 25, 2017 | Autor: Andrea Osorio | Categoria: Human-Animal Relationships, Human-Animal Studies
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ILHA Revista de Antropologia

Florianópolis, volume 12, números 1 e 2 jan. a dez. 2010 (2011)

ILHA – Revista de Antropologia, publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina. Universidade Federal de Santa Catarina Reitor: Prof. Alvaro Toubes Prata Diretor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas: Profª. Roselane Neckel Coordenador do PPGAS: Profª. Antonella Maria Imperatriz Tassinari Coordenação Editorial Alicia Norma González de Castells, Miriam Furtado Hartung e Vânia Zikán Cardoso Editor do Volume Vânia Zikán Cardoso Editor de Resenhas Marcos Aurélio da Silva Editora Gerente Daniela Fany Hess Conselho Editorial Alberto Groisman, Alicia Norma González de Castells, Antonella Maria Imperatriz Tassinari, Carmen Silvia Rial, Edviges Marta Ioris, Esther Jean Langdon, Evelyn Martina Schuller Zea, Gabriel Coutinho Barbosa, Ilka Boaventura Leite, Jeremy Paul Jean Loup Deturche, José Antonio Kelly Luciani, Maria Eugenia Dominguez, Maria Regina Lisboa, Márnio Teixeira-Pinto, Miriam Hartung, Miriam Pillar Grossi, Oscar Calavia Saez, Rafael José de Menezes Bastos, Rafael Victorino Devos, Scott Correll Head, Sônia Weidner Maluf, Theophilos Rifiotis e Vânia Zikán Cardoso Conselho Consultivo Bozidar Jezenik, Universidade de Liubidjana, Eslovênia; Claudia Fonseca, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Cristiana Bastos, Universidade de Lisboa, Portugal; David Guss, Universidade de Tufts, Estados Unidos; Fernando Giobelina Brumana, Universidade de Cádiz, Espanha; Joanna Overing, Universidade de St. Andrews, Escócia; Manuel Gutiérrez Estévez, Universidade Complutense de Madrid, Espanha; Mariza Peirano, Universidade de Brasília; Marc-Henri Piault, Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, França; Soheila Shashahani, Shahid Beheshti University, Irã; Stephen Nugent, Universidade de Londres, Inglaterra Projeto gráfico Isabela Benfica Barbosa Editoração eletrônica Annye Cristiny Tessaro (Lagoa Editora) Revisão Isabel Maria Barreiros Luclktenberg

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária Ilha – Revista de Antropologia / Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. V. 12, números 1 e 2 (2010) – Florianópolis: UFSC/ PPGAS, 2011 – 300 pp. ISSN 1517-395X 1. Antropologia 2.Periódico 1. Universidade Federal de Santa Catarina ________________________ ISSN

1517-395X

Solicita-se permuta/Exchange desired As posições expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Toda correspondência deve ser dirigida à Comissão Editorial da Revista Ilha, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas – CFH, Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Universitário – Trindade, 88040-970 – Florianópolis – SC – Brasil Fone/fax: (48) 3721–9714 E-mail: [email protected] sítio: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ilha Todos os direitos reservados. Nenhum extrato desta revista poderá ser reproduzido, armazenado ou transmitido sob qualquer forma ou meio, eletrônico, mecânico, por fotocópia, por gravação ou outro, sem a autorização por escrito da comissão editorial.

SUMÁRIO NÚMERO 1

Seção Temática: Seminário de Raposa Apresentação

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

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ROY WAGNER

A antropologia reversa e “nós”: alteridade e diferença

41

SÔNIA WEIDNER MALUF

Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito

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SCOTT HEAD

Sobre a ilusão de ter: reflexões an/tropológicas

85

EVELYN SCHULER ZEA

Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia

103

JUSTIN SHAFFNER

Perspectivismo multinatural transformação estrutural

137

JOSE ANTONIO KELLY LUCIANI

como

JOSE ANTONIO KELLY LUCIANI

NÚMERO 2 ARTIGOS Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco

165

MARCIO SILVA

O século de Lévi-Strauss

211

PATRICK MENGET

Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

233

ANDRÉA OSÓRIO

lignes

263

RAFAEL ROCHA PANSICA

Arqueología de la frontera: estudios sobre los campos del sur cordobés.

268

HORACIO MIGUEL HERNÁN ZAPATA

Ética e regulamentação na pesquisa antropológica

276

RUI MASSATO HARAYAMA

Etnicidad S.A.

282

OSCAR CALAVIA

La fabrique des images: visions du monde et formes de la représentation

288

JEREMY DETURCHE

Teses e dissertações do PPGAS

296

RESENHAS Métaphysiques cannibales: d’anthropologie post-structurale

NÚMERO 1

Seção Temática Seminário da Raposa

Organizador Jose Antonio Kelly Luciani

Apresentação Jose Antonio Kelly Luciani Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil E-mail: [email protected]

Jose Antonio Kelly

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Apresentação

E

m agosto de 2011 o professor Roy Wagner realizou, a convite do Departamento de Antropologia da UFSC, sua primeira visita ao Brasil. Essa visita acabou sendo uma verdadeira maratona acadêmica de pelo menos 13 palestras e apresentações audiovisuais em seis universidades brasileiras: UFSC, UFAM, UFRJ, USP, UFMG e UnB. Essa visita não só respondia a recente publicação no Brasil de sua obra emblemática A invenção da cultura (2010), mas também a crescente influência de sua obra na antropologia feita no Brasil, tendo se tornado leitura obrigatória em boa parte dos programas de pós-graduação em antropologia no país. Na UFSC tivemos o imenso prazer de organizar o Seminário Antropologia de Raposa – um trocadilho transetnográfico do título de seu mais recente livro Coyote Anthropology (2010). Vários antropólogos foram convidados a dialogar, a partir de diversos ângulos e de distintas experiências etnográficas, com a obra de Wagner, colocando-a em relação com outras fontes de inspiração antropológica. Nesse seminário contamos com papers do próprio Roy Wagner, de Scott Head, Sônia Maluf, Evelyn Schuler Zea, Jose Kelly e Justin Shaffner, os quais estão aqui reunidos. Além desses, também contamos com a apresentação de papers de Eduardo Viveiros de Castro e ILHA volume 12 - número 1

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Jose Antonio Kelly

Marcela Coelho de Souza, e uma mostra por Roy Wagner e Justin Shaffner de imagens de seus trabalhos de campo. Estamos agora preparando uma coletânea de todas essas apresentações, em versões expandidas, que será publicada em 2012. O artigo aqui publicado de Roy Wagner é um capítulo de um livro em preparação: The Place of Invention (O lugar da invenção). É de destaque que todos nós que tivemos o prazer de apresentar e discutir nossos trabalhos com Roy Wagner fizemos o esforço de inventar – para falar nos termos do próprio Wagner – a partir da obra do autor, e não simplesmente “aplicar” – como se costuma dizer – seus conceitos e teoria. O leitor verá nos artigos os conceitos wagnerianos entremeados com outros derivados do estruturalismo, feminismo e marxismo, e envoltos em contextos etnográficos que não se limitam à literatura amazonista ou melanesista – o lócus, até o momento, mais visível do rendimento wagneriano na antropologia feita no Brasil. Os artigos aqui reunidos incluem reflexões sobre as chamadas sociedades complexas e as fontes extra-antropológicas de conceitos (Maluf), e o papel da escrita e da performance na elaboração de uma antropologia do sujeito (Head). Ambos os trabalhos mostram as possibilidades de diálogo com o trabalho de Wagner em contextos tipicamente abordados com outras caixas de ferramentas analíticas e que, para alguns (mal)entendidos, não são campos suscetíveis a serem pensados por meios que supostamente derivam seu potencial da alteridade a que nos remetem a Melanésia ou as Terras Baixas da América do Sul. Estão também presentes reflexões que colocam em relação formas de criatividade dos povos amazônicos (Schuler Zea e Kelly) e melanésicos (Shaffner) com a semiótica wagneriana e o perspectivismo multinatural, numa espécie de recursividade simetrizante de teoria e etnografia. Não poderia eu finalizar esta breve apresentação sem mencionar que para nós, e acho que para todos os colegas não só na UFSC senão também nas demais universidades, a oportunidade de trocar formal e informalmente com Roy Wagner foi uma espécie de refrescamento intelectual, cujo resultado com certeza ficará registrado em trabalhos futuros. A organização desse seminário e das ILHA volume 12 - número 1

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Apresentação

demais atividades nas universidades brasileiras constituiu ao mesmo tempo um tributo e uma retribuição a um dos antropólogos mais estimulantes da atualidade, no verdadeiro xamã do sentido. Conhecer pessoalmente os grandes autores sempre incorre no risco de nos desiludirmos. Não foi o caso de nossa experiência com Roy Wagner: mais que iludidos, ficamos alucinados com sua genialidade e generosidade sempre revestidas de um humor (ou wit, como se diria em inglês) sem par. Sabemos, para finalizar, que sua passagem pelo Brasil e seus antropólogos (professores e alunos) também foram, para Roy Wagner, revitalizantes, numa época em que em vários cantos da antropologia se percebe, como já falou Jaques Lizot, um estado avançado de delinquência.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez¹ Roy Wagner University of Virginia

Tradução: Evelyn Martina Schuler Zea e Jose Antonio Kelly Luciani Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Revisão de tradução: Vânia Zikán Cardoso Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Roy Wagner

Resumo

Abstract

A comparação real entre o estudo antropológico do parentesco e o jogo de xadrez não é imediatamente aparente a partir de suas propriedades formais, tornando-se relevante apenas quando ambos são vistos como estratégias ou como padrões de eventos acontecendo no tempo. A proporção simples de que ambos compartilham é um tipo de comparação cruzada entre variáveis dualísticas denominadas quiasmas, ilustradas no parentesco pela clássica relação de primos cruzados e no xadrez pela dupla proporção assimétrica entre o Rei e a Rainha, as únicas peças marcadas pelo gênero no tabuleiro, e os movimentos e acenos das outras peças. A diferença pode ser resumida em uma palavra: mating. Xadrez pode ser descrito como o parentesco do parentesco. A falha de compreensão da essência quiasmática ou de dupla proporção de ambos tem resultado em muitos modelos disfuncionais de casamento de primos cruzados e em muitos jogos ligeiros de xadrez.

The real comparison between the anthropological study of kinship and the game of chess is not immediately apparent from their formal properties, and only becomes relevant when they are viewed as strategies, or patterns of events occurring in time. The single proportion that both share in common is a kind of cross-comparison between dualistic variables called a chiasmus, illustrated in kinship by the classic cross-cousin relationship, and in chess by the asymmetric double-proportion between the king and queen, the only gendered pieces on the board, and the moves and tokens of the other pieces in the game. The difference may be summed up in the word: mating. Chess may be described as the kinship of kinship. Failure to understand the chiasmatic, or doubleproportional essence of both has resulted in many dysfunctional models of cross-cousin marriage, and many very quick games of chess. Keywords: Kinship. Chess. Humour. Knowledge practices. Cross-cousin Marriage. Strange Attractor. Melanesia.

Palavras-chave: Parentesco. Xadrez. Humor. Práticas de conhecimento. Casamento entre primos cruzados. Atrator estranho. Melanésia.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

A

representação antropológica padrão do “parentesco”, apresentada pela primeira vez por Lewis Henry Morgan em 1871, era um padrão estático, útil apenas para fins comparativos, levando a disciplina para uma trajetória de autoinércia ou “estrutural funcionalista”, na qual padrão, consistência e, especialmente, relatividade se constituíram como pontos-chaves de referência. Como tal, contrastava fortemente com o modo pelo qual as vidas humanas são efetivamente vividas e pensadas e com a padronização de eventos e a padronização de estratégias. Tanto o campo de jogo quanto o elenco dos jogadores fazem parte de um desenho mais amplo, de um quadro arbitrário para o desdobramento de destinos. No parentesco cruzamos (mate) no começo do jogo, no xadrez o xeque-mate (mate) acontece no final. A palavra “mate” tem uma etimologia muito diferente em cada caso e um sentido muito diferente, mas é o mesmo som sendo usado basicamente do mesmo modo e muito estratégico. No xadrez você inicia com todo o seu pessoal ali de uma vez, classificado e ordenado de modo muito específico, e, salvo algumas exceções, você avança, diminuindo seu número no decorrer do jogo. No parentesco você inicia conceitualmente com muito pouco pessoal e avança multiplicando seu número no decorrer do tempo. Em seguida você classifica-os e ordena-os de acordo com categorias muito específicas – geralmente genealogias e linhagens em vez das figuras do cavaleiro, do bispo, da torre e do peão (You can always get more pawns at a pawn-shop2). No xadrez há uma estratégia única conhecida apenas para o jogo em si e cada jogador tenta descobrir em que consiste. Quando um deles se dá conta da estratégia – ela dá conta do outro. No parenILHA volume 12 - número 1

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tesco há muitas estratégias potenciais, mas todo mundo, incluindo o antropólogo, acha que sabe aquela que conta. Ou ao menos faz de conta, porque não se quer que os outros jogadores vejam suas cartas; em todo caso, a maioria deles está blefando. E aquele que morre com a maior quantidade de estratégias ganha. O xadrez é um jogo considerado altamente intelectual, mas no final das contas não tem nada de realmente intelectual – é mais como um truque mental de Jedi ou como o papel do malandro (grifter), o tipo de trapaceiro que preda outros trapaceiros como no filme The Sting, de Robert Redford e Paul Newman. O trapaceiro é o meiotermo entre o parentesco e o xadrez, e esse meio-termo chama-se estratégia. Estratégia de quem? Exatamente, você sacou o jogo de uma vez! O parentesco e o xadrez são mundos paralelos, definem contextos sociais, culturais e físicos altamente específicos que mal se sobrepõem. No entanto, há pelo menos um modo no qual eles são uma única e mesma coisa. E, embora “estratégia” praticamente o explique por completo – essa sendo a principal razão pela qual qualquer um se importa com o parentesco, para além de jogos classificatórios estéreis, e também sendo a principal razão pela qual qualquer um se importa com o xadrez, para além de, evidentemente, ganhar –, continuemos. Claro que ninguém se importa em ganhar ou perder no parentesco – de forma alguma! Só alguns indivíduos malconceituados, alguns chamados “homens” e outros “mulheres”. Ah, e quase esqueço: “crianças”. Há muitas coisas do parentesco que não valem para o xadrez, e muitas coisas do xadrez que não valem para o parentesco. Mas há uma coisa em ambos que muito nos impele, uma coisa que torna as comparações paradoxais e, portanto, os paradoxos comparativos. Essa é a comparação quiasmática, ou de dupla proporção, aquilo que Tony Crook, que a descobriu em Bolivip, na Papua Nova Guiné, enquanto decifrava o complexo sigiloso da “Casa da Mãe”, denomina “mudar o sujeito no meio da frase” – uma espécie de “casamento de primo cruzado” sintático, se me permitem a comparação. Os Daribi, também da Papua Nova Guiné, o chamam de porigi e o descrevem como po begerama pusabo po em sua língua, “a fala que volta sobre si mesma ILHA volume 12 - número 1

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

na medida em que se fala”. Ao perguntar “O que faz de um homem um big man será sua posse de muitas mulheres ou de muitos porcos?”, os Daribi responderão: “Um homem que pode falar porigi com efeito obtém todas as mulheres e porcos que ele quiser”. Antes de prosseguir demonstrando o papel crucial que o quiasma exerce tanto no xadrez quanto no parentesco, talvez seja útil entender exatamente que tipo de estratégia está envolvida nele. Por exemplo, o filósofo grego Heráclito ficou conhecido por suas afirmações crípticas, tais como “Imortais Mortais, Mortais Imortais, vivendo uns a morte dos outros, morrendo uns a vida dos outros”. Será que isso significa que Heráclito sabia alguns segredos sobre seres humanos e deuses, ou sobre suas estranhas relações, que os outros não sabiam? De modo algum, Heráclito era tão inocente desse tipo de conhecimento quanto você ou eu; ele apenas sabia utilizar bem o ergativo, utilizando-o numa estratégia quiasmática. Uma expressão “ergativa” é aquela na qual uma ação ou verbo convencionalmente ativo é deslocado para um papel passivo, com um aumento exponencial de poder e ênfase. Observe que “viver a morte de outro” é um ergativo exemplar desse tipo, um pouco parecido com “morrer trabalhando” num paraíso do trabalhador; e, quando usado quiasmaticamente numa comparação de dupla proporção, ele invoca um efeito irônico poderoso, como na antiga piada soviética: “Nós fazemos de conta que trabalhamos, e o Estado faz de conta que nos paga”. Em outras palavras, a melhor maneira de guardar – ou mesmo de inventar – um segredo é fazer dele uma função da forma (como o porigi) e não do conteúdo. Desse modo, a estratégia formal compartilhada pelo xadrez e pelo parentesco se parece mais com um golpe (coup) em topologia e matemática do que com as manobras “relacionais” ou emocionais caras aos chamados “humanistas”. Deixem-me ilustrar: dito de maneira simétrica e assimétrica ao mesmo tempo (do modo com que Heráclito configurava seus discursos proféticos), o segredo de que não há segredo algum se torna uma meia verdade sobre si mesmo e, portanto, uma dupla verdade sobre qualquer outra coisa – mais ou menos o que os matemáticos da fractalidade chamam de “atrator estranho” (os anciões da Casa da Mãe em Telefolip, ILHA volume 12 - número 1

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Papua Nova Guiné, de fato utilizam esse dispositivo como uma estratégia de ensino para seus iniciados; e, em 2000, Mike Wesch e eu pegamos um deles no ato de tentar usá-la – chamada nesse caso “As Duas Bonecas” – com a gente). No final das contas há, portanto, um problema com esse ilusionismo de dupla incriminação (double-jeapardy illusionism); o que é que o ancião fez com Mike e comigo que ele não teria já feito a si mesmo? Será que o atrator estranho chamado “As Duas Bonecas” não o controlava também? E como é que sua prepotência difere daquela do trapaceiro, do passe de mágica do ilusionista, do grande mestre de xadrez ou, até mesmo, do especialista em parentesco? Era certamente apenas um modo de falar, mas Freud de fato chamou sua psicanálise de “a cura pela fala”. E assim também se diz que o jogo de xadrez é muito educativo. Onde encontramos o quiasma de dupla proporção no jogo de xadrez? O layout do xadrez é um estudo de simetrias contrastivas; há dois lados (ou jogadores), quadros brancos e negros (8 x 8) organizados num formato totalmente simétrico, e cada jogador começa com um layout simétrico de peças (bispos, cavalos, torres e peões, tradicionalmente chamados de “homens”, mas com gênero não explicitado). Estas são as “quatro forças”: sacerdócio, cavalaria, fortificação e infantaria, no regime militar da Antiga Índia, de onde vem o jogo. E depois há a outra proporção, que é aquela ditada pelas únicas peças no tabuleiro com o gênero explicitado que, de acordo com as regras, devem se encarar frente a frente no tabuleiro – uma assimetria – com o branco quadrado à direita do jogador escolhido por essa cor. Essas peças são a Rainha e o Rei, os elementos mais importantes em jogo, aqueles que têm seus papéis tradicionais da corte revertidos (parte da mesma assimetria). Normalmente, na vida real, é a Rainha quem detém a posição social do reino, enquanto o Rei “manda ver” e é o comandante-chefe. Mas no xadrez esses papéis são invertidos, a Rainha é o guerreiro mais eficaz de todos e o Rei, pela sua posição, detém o valor do jogo.

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

Um atrator estranho é o chamado “As Duas Bonecas”, pois ele efetivamente energiza (ou seja, ergatiza) o jogo, fazendo dele muito mais que um mero jogo, transformando-o em metáfora do estadismo real. Do ponto de vista da estratégia, isso implica que dois membros da realeza se enfrentem, um contra o outro, em contraponto com as manobras dos dois “exércitos”. Basicamente, tudo se refere a cruzamento (mating). Vejamos. Como duas bonecas Barbie, cada uma tentando ser mais Barbie que a outra. Somos tentados a dizer que temos a mesma contradistinção no parentesco, entre o assim chamado quadro genealógico, que classifica e ordena o esquema, e o jogo de afins, aqueles relacionados (“pela aliança”) através da uma explícita interação de gênero. Mas isso é enganoso na medida em que a genealogia é uma função tanto da interação marcada pelo gênero quanto da afinidade, tendo a mesma fonte, e a afinidade é uma função tanto da genealogia quanto do casamento. Portanto, a “teoria da descendência” e a “teoria da aliança” são, como dizem os Norse,3 “dois chifres na cabeça da mesma cabra”, e não se trata de uma relação de dupla proporção. A chave do quiasma foi dada por Claude Lévi-Strauss nAs estruturas elementares do parentesco. Nós mesmos bem poderíamos fazer um pequeno exercício de deslocamento de proporções e chamá-lo “O parentesco elementar das estruturas”, tão boa foi sua virada ao avançar para uma abordagem positiva ou proativa ao tema. Para completar o átomo do parentesco, segundo Lévi-Strauss, a regra negativa de casamento configurada pela identificação genealógica morganiana deve ser contrabalançada por alguma contraparte explicitamente positiva, uma estratégia de parentesco conhecida por se contrapor à dispersão distributiva das gerações. Assim como há um tabu do incesto, deve haver um tabu do outcest: casar dentro (marrying in), que consolida os ganhos lineares, é tão importante quanto o casar fora (marrying out), independentemente de outras considerações. Até aqui tudo bem, pois temos uma contraparte de dupla proporção do esquema de classificação e ordem versus aquele de inversão de papéis de gênero encontrado no xadrez, na medida em que a ILHA volume 12 - número 1

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relação cara a cara marcada pelo gênero entre homem e mulher é contraposta, no esquema do “átomo do parentesco” lévi-straussiano, pelo esquema do atrator estranho – o parentesco “back to back”4 engendrado pela irmã do esposo e o irmão da esposa e sua respectiva prole –, os assim chamados “primos cruzados” no repertório de praxe do parentesco. A ressalva explícita do argumento dos “primos cruzados” de Lévi-Strauss, que “a mulher poderia muito bem ter sido o pai de alguém, assim como o pai poderia ter sido a mãe de alguém”, foi feita, em diferentes momentos e contextos, por Radcliffe-Brown e por meus anfitriões Barok da Nova Irlanda (Papua Nova Guiné), cada um sem saber da existência do outro. Ela sugere um contrajogo imagético (imaginal counterplay) de reprodução puramente metafórica acontecendo por trás das cenas do tratado de parentesco morganiano – como as intrigas metafóricas do Rei e da Rainha no xadrez vis-à-vis as manobras claras e diretas de seus “exércitos”. Assim, o casamento dos primos cruzados, por mais classificatório que seja, é uma resposta fácil, uma solução apressada, para o dilema colocado pelo argumento de Lévi-Strauss, algo assim como um comprometimento exagerado com a premissa. Uma relação de parentesco motivada por um atrator estranho não tem um resultado estrutural mais certo ou previsível que uma jogada no xadrez. Ambos são estocásticos, determinados tanto pela sua própria presença quanto por outros fatores em jogo. Os Daribi, que chamam seus primos de ‘hai’, dizem que são “exatamente iguais aos irmãos”, mas com uma diferença importante. Já que pertencem a diferentes grupos de partilha de bens, os ‘hai’ masculinos devem trocar pagamentos contínuos de bens para resgatar as demandas de direito de casamento levirático que ambos compartilham em relação à herança das esposas uns dos outros. Só encontrei um caso de casamento de primos cruzados de verdade em Karimui; isso foi em Hagani, um lugar onde morei. Um homem de ‘Sora’ exigiu seus direitos sobre uma mulher Hagani solteira. Durante dias ele ficava vadiando nos arredores da maloca gritando: “Ela é minha prima cruzada, porque não posso casar com ela?”. ILHA volume 12 - número 1

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O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez

Finalmente a gente se cansou tanto disto que simplesmente o deixamos tê-la (como esposa). Mas vocês não deveriam bater em ambos e dar-lhes uma dura lição sobre como eles são pessoas ruins? Bom, claro, idealmente sim; mas naquele momento nossas relações com ‘Sora’ se tornaram tão incertas que decidimos desistir.

Entre os Usen Barok “matrilaterais” de Nova Irlanda a situação é mais complexa; eles chamam esse tipo de casamento de “casamento com o tau (verdadeira irmã do verdadeiro pai) ou gogup (primo cruzado)”. Os moradores das duas aldeias ao norte, falantes de um dos subdialetos, colocaram a questão do seguinte modo: “Os ancestrais jamais teriam tolerado outra coisa que a adesão rigorosa à regra de casamento com o tau ou gogup; no entanto, com a erosão dos valores morais nestes tempos modernos, tudo é menos rígido, particularmente nas aldeias ao sul”. Entre as três aldeias ao sul, falantes de outro subdialeto e onde eu morei, eles contestaram: Os ancestrais jamais teriam tolerado algo tão incestuoso quanto o casamento com o tau ou gogup; no entanto, agora que os preceitos morais estão menos rígidos, o pessoal de Belik e Lulubo está livre para seguir seus desejos. Isso é particularmente verdadeiro no caso da aldeia Lulubo chamada ‘Giligin’, onde todos casam com seus tau ou gogup.

Como eu tinha bons amigos na “Ilha de Giligin”,5 como eu a chamava, decidi checar as coisas. Felizmente, um deles não era apenas fluente em inglês, mas também alfabetizado; com sua ajuda coletei uma genealogia completa de Giligin com cinco gerações de profundidade e examinei cada um dos casamentos com cuidado. Mesmo levando em consideração o assim chamado parentesco “classificatório” ou cálculo de parentesco por categorias, não consegui encontrar nenhum caso de casamento com o tau ou gogup em todo o conjunto. Quando terminei, disse para meu colega: “Agora posso ver que cada um dos casamentos em Giligin se deu com um tau ou gogup”. “Sim”, ele respondeu, sorrindo; “como eu te disse, nós aqui em Giligin somos gente estritamente moral”.

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Falando em atratores estranhos, o único caso de casamento com um primo cruzado direto que eu encontrei em toda a área Usen foi na própria aldeia onde eu morei, Bakan, precisamente na área que negava categoricamente tal prática. Tratava-se de um de meus melhores amigos que morava ao lado de minha casa. Quando lhe pedi para explicar o caso, ele disse: “foi uma questão de pura casualidade, eu não tive nada a ver com isso”. Em seguida, esticando-se ao máximo, e ele tinha uma altura considerável, ele explicou: “Sou conhecido como um dos homens mais morais desta área toda”. *** O xadrez é um jogo no qual há uma única díade, aquela dos dois jogadores que se revezam para fazer suas jogadas, assumindo o papel de uma das seis peças com funções específicas, como as atribuições profissionais de um sistema de castas militar. O parentesco não é um jogo, é a vida para aqueles envolvidos nele e um trabalho sério para aqueles que o estudam. Outra grande diferença é que no parentesco, ainda que idealmente organizado em díades, cada participante está envolvido em muitas relações diferentes ao mesmo tempo. E ainda que o envolvimento seja simultâneo, a partir do momento do nascimento e mesmo antes, cada participante parente deve aprender a diferenciar o que termina sendo um modo único, difuso e englobante de relacionamento, e adaptar sua ação às especificidades de cada papel na relação (relationship role) determinado pela cultura. Não há nenhuma analogia direta disso no xadrez que é, em contraste, digital no modo de jogar. Tanto Radcliffe-Brown quanto Bateson mostraram que a adaptação do relacionar-se no parentesco está limitada a três modos genéricos de imitação analógica, cada qual sendo uma variação sobre um mesmo tema, o de relacionar-se adequadamente. Esses são 1) relações de respeito (de deferência), como aquelas de adoração, nas quais as obrigações entre o mais novo e o mais velho são visivelmente exageradas; 2) relações de evitação, nas quais a referida evitação ou ausência de relação entre as partes constitui a substância da relação, ela mesma; e 3) relações jocosas, nas

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quais a performance de comportamentos ou de falas inapropriadas, ou ambas, oferecem ao outro a opção de aceitação ou de rejeição, e assim da afirmação ou da negação da vinculação preferida. Essas três modalidades dividem o jogo dos papéis de parentesco entre elas, e a necessidade de diferenciar entre elas é uma das primeiras coisas que uma criança aprende. A contraposição entre a suposta falta de seriedade, nas relações jocosas, e o fingido exagero de seriedade, nas relações de respeito ou deferência, nos leva à questão polêmica do propósito ou do projeto geral do parentesco. Respondê-la não é um objetivo fácil (questionála é ainda pior), pois não é nem estrutural nem funcional, e não surpreende descobrir que ela depende do mesmo paradoxo de dupla proporção – o atrator estranho –, que inferniza seu entrelaçamento nos assuntos cotidianos. O parentesco é feito de “conexões estabelecidas entre os vivos em nome dos mortos” e, ao mesmo tempo, “conexões entre os mortos em nome dos vivos” (Wagner, 2001), e, portanto, nem “vida” nem “morte” podem nos oferecer uma resposta que não seja desdenhosa. “Num enigma cuja resposta é ‘xadrez,’” escreveu Jorge Luis Borges (1998), “qual é a palavra que nunca é mencionada?”. Em outras palavras, em vez de soluções, poderíamos começar a adivinhar no que consiste o enigma, ele mesmo. O enigma também não é fácil, embora nos faça lembrar as últimas linhas de um soneto escrito por Edna Saint Vincent Millay (1934) sobre os antigos egípcios: Their will was law, their will was not to die. And so they had their way; or nearly so.6

Ainda assim, obtemos algumas pistas na obra de Richard Huntington entre os Bara de Madagascar e na obra de Gregory Bateson entre os Iatmul do Rio Sepik em Papua Nova Guiné. A morte, para os Bara, consiste na cristalização dos relacionamentos e do status adquiridos na vida – o próprio fato ou a matéria da morte ameaça os vivos com uma espécie de perigo de congelamento profundo, uma absorção contagiosa da espontaneidade da vida numa matriz perene de perfeição cristalina. (“O perfeito”, como diz o ditado, “é o ILHA volume 12 - número 1

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inimigo do bom.”). Diante da presença da morte, os Bara convencionalmente fazem todo o possível para reafirmar a centelha da vida; eles estouram uma boiada na aldeia, criam confusão, ficam doidamente bêbados com rum, e os adolescentes em idade de casar se reúnem na mata, cantam canções obscenas e transam promiscuamente. Se Millary tivesse escrito um soneto sobre as práticas Bara, ela poderia tê-las chamado “morte acalentada” (“death warmed over”). No entanto, o que os Bara têm a nos dizer sobre as relações de parentesco tem pouco a ver com humor, seriedade ou evitação desprezível; ante a desolação da mortalidade e com o que aprendemos a chamar de “culpa do sobrevivente”, eles fazem de conta – fazem de conta com (verdadeira) violência, hilaridade, embalo alcoólico e êxtase sublime do (“Ah, se minha mãe me visse agora”) coito ilegítimo (“adultério de Borgonha”, como um amigo meu costumava chamálo – um bom nome para uma nave espacial). E essa é uma das chaves – o “poderia ter sido” ou a “filosofia do como se” – do enigma com o qual supomos estar lidando; não há relação de parentesco na terra que não seja em certo ponto uma questão de fazer de conta (ainda que no xadrez tudo isso seja fatalmente sério), uma arte sútil que toda criança aprende desde muito cedo. Não há tal coisa como parentesco não fictício; quando o faz de conta desmorona, também desmorona o parentesco, e temos algo como uma lei de ferro do parentesco: o parentesco real não é o que está acontecendo em nenhum pretexto que de outro modo possa ser confundido com relações de parentesco. Nem a morte mesma é o que se achava que seria, eis a lição no Naven de Gregory Bateson. Mesmo sendo um contraefeito da dualidade integral da vida Iatmul, algo que Bateson destacou e denominou cismogênese, o rito fúnebre honorífico dos Iatmul é um bom exemplo de obviação. Essa é uma alternativa altamente contraintuitiva em relação ao sentido usual de completude ou consumação de uma vida humana, uma negação positiva na qual o resultado final não é nem o sujeito (“vida”) nem sua antítese (“morte”). O ser humano obviado (“Tod und verklärung”, “Morte e transfiguração”, como o chamou Richard Strauss) não está nem vivo nem morto.

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Na descrição de Bateson, todos os apetrechos simbólicos da vida do falecido e suas realizações são reunidos sob a forma de uma figura humana substituta, uma efígie que representa o falecido. Esse boneco foi montado por membros da metade iniciatória do morto. Era uma demonstração exagerada da grandeza de sua metade, e quando o boneco ficou pronto, todos os homens, de ambas as metades, reuniram-se em torno dele. Os membros da metade oposta apareceram um por um para reivindicar feitos equivalentes. Um homem disse: “Tenho uma ferida aqui no quadril, onde os (homens de) Kararau me atingiram. Tomo para mim esta lança”, e pegou a lança que estava apoiada no quadril do boneco. Outro disse: “Matei Fulano. Tomo para mim esta lança”, e assim por diante, até que todos os emblemas de bravura foram removidos (Bateson, 2006, p. 202).

As práticas do ritual fúnebre Iatmul não apenas respondem ao enigma da vida na morte e da morte na vida; elas o obviam. Obviação é o destino dos símbolos, sendo para eles tão natural como a morte para os humanos. A palavra “obviar” significa não apenas “tornar óbvio aquilo que antes era obscuro”, mas também, segundo sua definição no dicionário (em inglês, para obviation), “prever e descartar.” Prever a morte na vida é descartar a vida na morte. No que diz respeito ao papel de Bateson em relação a isso, como antropólogo, bem poderíamos concluir que “o historiador narra a história, a literatura interpreta a história, mas o antropólogo obvia a história”, tornando-a inócua como se, em primeira instância, jamais tivesse sido. O parentesco não é obviado na forma como nós o entendemos, mas na forma como ele nos entende. Ainda que “underdetermine” talvez seja uma palavra melhor que “understand”, como no soneto de Millay. Isso traz uma virada nova para a nossa questão, pois não temos nada em todo o nosso repertório epistemológico que sugira que algo tão inerte e abstrato como “o parentesco” possa ter algum poder de compreensão, nem que alguém possa, como o fez Ingmar Bergam no filme O sétimo selo, “jogar xadrez com a morte” (shakspielen med döden), ainda que seja exatamente isso o que os Iatmul fazem no seu ritual fúnebre. Os Iatmul são “compreendidos” (“understood”) tão bem

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nesse ritual que não sobra nada pelo qual possa valer a pena viver ou morrer. De modo mais geral, no que diz respeito ao parentesco, nossos padrões de pensamento não estão apenas incorporados (embodied) nas coisas nas quais pensamos (eventos, circunstâncias, objetos), mas elas também correm o perigo de serem “entendidas” bem demais ou não suficiente bem por nossos pais – que é o mais próximo que podemos chegar ao parentesco encarnado (kinship incarnate) – e, portanto, se desenvolverem de modo absurdo. (Os descendentes de um verdadeiro antropólogo sempre correm algum perigo de se desenvolverem de modo absurdo – mas, então, considerem a fonte.) Além disso, é precisamente essa inversão de sujeito e objeto, o ergativo, o atrator estranho, que vimos trazer tanto o xadrez quanto o parentesco do entalhe (“out of the woodwork”) para o mundo da realidade vivida, especialmente quando consideramos não apenas o que os constitui, mas o que os fortalece (empower). Metáforas falam para você; elas têm agência e mentes próprias (mesmo admitindo que sejam um tanto esquizofrênicas). O xadrez faz suas mãos se moverem com uma paciência e destreza que nem um amante toleraria. No que diz respeito às peças de xadrez, elas mesmas: “Não é a mão de Deus que nos move, mas o deus da mão”. O parentesco que nos “compreende” (“understands”) melhor do que nós podemos compreendê-lo e o xadrez que faz com que o jogador entre em estados “não naturais” de concentração intensa são parte de uma retroalimentação (“feedback loop”) englobante de dupla proporção que se estende para muito além dos limites da “sociologia da mata” e dos torneios de grandes mestres. Trata-se de um processo que também envolve as propriedades significativas da linguagem – tanto os modos pelos quais a língua se relaciona consigo mesma quanto os modos pelos quais os falantes da língua se relacionam uns com os outros –, e esse entrelaçamento faz parte de nossa herança tanto quanto a infraestrutura de dupla hélice faz parte do DNA. Sempre houve uma suposição tácita entre os que estudam o parentesco de que seu tema está de algum modo relacionado à necessidade de solidariedade humana – famílias, vínculos, grupos e esse tipo de coisas. E embora seja uma ideia reconhecidamente ILHA volume 12 - número 1

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“funcionalista”, relacionada de algum modo com a noção reconhecidamente “estruturalista” de que a metáfora ou o tropo é a fonte e o fornecedor exclusivo de significado numa língua, as conexões necessárias para aproximar ambas se estendem para além dos limites de disciplinas e requerem um “pensar fora dos padrões convencionais” (“thinking outside of the box”). Assim, bem poderíamos começar do zero. Nunca encontramos um coletivo humano que não possuísse tanto uma língua falada quanto um modo de se relacionar expresso através de uma terminologia de parentesco. Portanto, podemos concluir que ambos são, de certo modo, necessários para a existência e a composição da espécie Homo sapiens, a espécie que, diga-se de passagem, foi responsável pelo conceito de espécie em primeiro lugar. (Nós somos os grandes classificadores do mundo e nos classificamos como tais.) Mas o sentido é o “coringa” (“wild card”), por assim dizer, uma “caixa” (“box”) que deve necessariamente pensar fora de si mesma – reclassificar-se para além da habilidade de classificar o que está fazendo no processo de fazê-lo. Ninguém pode dizer exatamente o que uma metáfora nova ou inovadora – uma reinvenção da língua como o foi – significa, até que, ou a menos que, ela já esteja “cansada” e tenha se classificado, ela mesma, entre os significantes familiares e convencionais que compõem as propriedades lexicais da linguagem. Trata-se de um modo muito enfadonho de colocar o assunto, e já foi dito muitas vezes antes. Mas o que há de dizer sobre isso é que o tropo ou a metáfora sempre surge ao fazer conexões cruzadas improváveis e não convencionais no léxico, criando uma identidade entre duas partes distintas da língua, assim como uma nova estratégia no xadrez avança ao se fazerem combinações improváveis entre peças e jogadas (um knight-fork, por exemplo, uma de minhas favoritas junto com, é claro, o adultério de Borgonha). Para dizê-lo sucintamente, a metáfora é a estratégia de cruzamento (mating) e significação da linguagem, a forma necessária na qual a linguagem se relaciona consigo mesma. Do mesmo modo, a terminologia de parentesco, o código de referência necessário das relações de parentesco (sem o qual ele não se reconheceria pelo que pretende ser) é a maneira pela qual os falanILHA volume 12 - número 1

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tes de uma língua se relacionam entre si. Ambos são parte integrante da reprodução da linguagem através de seus falantes, e a reprodução de falantes, eles mesmos, por meio da linguagem. Um dos melhores e mais famosos adágios de Gregory Bateson era “Você não pode não relacionar-se”. Isso é inegavelmente certo, mas infelizmente leva à falácia de assumir a realidade de “relações” ingênuas e espontâneas, uma espécie de dano colateral deixado pela era “psiquiátrica” dos anos 1970, quando se podia de fato obter dinheiro do governo para fingir esse tipo de coisa. Até para os jogadores de xadrez a necessidade de relações face a face tem sido subvertida pela Internet. Relacionar-se, que significa “colocar os lados juntos”, é básico e essencial, e define a condição humana tanto dentro quanto fora do tabuleiro de xadrez. Há uma grande diferença aqui. Devemos psicoanalisar o cavaleiro para descobrir “como se sente” ao mover dois quadros para cima e um para o lado? Acho que não. O xadrez coloca o termo da moda “relação” em destaque. Vistos do alto, os movimentos possíveis do cavaleiro descrevem um octógono, mas infelizmente um cavaleiro real só pode acessar uma dessas posições por vez. Os movimentos do bispo descrevem uma matriz angular – a torre –, um sistema de coordenadas cartesiano, mas apenas o tabuleiro mesmo descreve todos esses de uma só vez. Não se trata necessariamente do quebra-cabeça do tipo cubo de Rubix bidimensional de quatro quadros (de fato 8 x 8) que aparenta ser, pois é igualmente concebível num formato diagonal e também pode ser visualizado como uma série de octógonos de cavaleiro entre-encaixados. Cada jogador, ou “lado”, encara uma perspectiva especular de seu layout estratégico, “consulta” o espelho de xadrez relacional, com a singular exceção das duas peças com gênero explicitado, a Rainha e o Rei. Em todo caso não há respostas fáceis para a questão por que os seres humanos consultam espelhos; talvez seja a forma de contrainteligência própria da natureza. Pois aquele que você vê no espelho tem os lados invertidos, assim como a dianteira e a traseira, e ninguém jamais te verá dessa maneira. É claro que isso oferece vantagens ao cruzamento (mating), em ambos os sentidos do termo; ILHA volume 12 - número 1

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e, levando tudo em consideração, é a visão do xadrez de você mesmo: “faça a jogada e cruzamento (mate) em dois (movimentos)”. (Me olho rapidamente no espelho antes de sair, e assim o faz minha namorada; e, mesmo que o encontro em si não dê em nada, eles dois se divertem juntos – quase como se estivessem jogando um jogo.) Mas quem são esses misteriosos eles que acabam de nos roubar nossa noite? Prossigamos. A verdadeira diferença entre um “lado” e outro, ou entre jogo e realidade, aparece com o realinhamento de gênero no que diz respeito à lateralidade. Normalmente no jogo da vida um indivíduo tem apenas um gênero e dois lados, a direita e a esquerda. No xadrez, no entanto, cada jogador joga num lado só, mas tem dois gêneros, um Rei e uma Rainha, um à esquerda e outro à direita. No contexto do jogo, em contraposição à vida real, os jogadores não são verdadeiramente seres humanos, mas estão jogando os papéis do que tenho chamado de antigêmeos (Wagner 2001, Capítulo 4), uma subvariante de propósitos cruzados (cross-purposed) da forma humana que de alguma maneira é necessária para a nossa existência. Eles fazem tudo aquilo que nós não podemos, e nós fazemos tudo aquilo que eles não podem (“Eles lançam nossos dados, nós lançamos os deles”) (Wagner, 2011), ou nas palavras da canção tema de Mary Tyler Moore: “they can take a nothing date and make it seem worthwhile”. Normalmente não há tal coisa como prova no xadrez; há regras, jogadas e bastante execução. (Imaginem Robespierre tentando substituir uma peça chamada “A Guilhotina” pelo Rei e pela Rainha.) Mas a prova dos antigêmeos no xadrez é de que o Rei e a Rainha trocaram seus papéis normativos – a Rainha assume o papel normalmente atribuído ao Rei na vida real: fazendo jogadas legais e elaborando a estratégia; e o Rei exerce o direito de posição e status social, pois ele, pela sua posição, possui o valor do jogo em si. *** O jogo de xadrez, é claro, não tem nada a ver com cruzamentos (matings) humanos, jogos de poder ou arranjos domésticos, pois,

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mesmo em seu próprio mundo de fantasia, ele pertence ao topo da cadeia alimentar política. Repleto de fantasias de casas reais e seus jogos de poder, é todo sobre poder e o que deve ser feito para manter o poder enquanto se controlam os movimentos dos outros. O parentesco, é claro, não tem nada ver com isso… ou tem? No momento em que se torna um objeto de estudo antropológico já é quase uma abstração matemática, um gerador de eventos que o seu parente comum dificilmente reconheceria (“Quem, eu? Um primo cruzado? Jamais na vida. Eu sou um primo de beijinhos, é só perguntar para a minha mãe, tia gêmea”). Ainda assim, como ocorre nas crises domésticas mais corriqueiras, trata-se de uma negociação na margem de lucro de controle e credibilidade. Pensando nisso, nossa reação usual a um gerador de eventos não tem nada a ver com o que ele é ou como ele funciona. Dogen, um sábio japonês do século XII, escreveu: “What is happening here and now is obstructed by happening itself; it has sprung free from the brains of happening”. Numa manhã de 1989 eu estive ocupado com o que pensei configurar uma grande descoberta na época: que o incesto não é um objeto tabu ou uma forma de mau comportamento, como havíamos pensado, o oposto do parentesco, mas antes seu perfeito apositivo. É o conteúdo sem forma de todas as relações de parentesco em contraposição à forma sem conteúdo do modo como têm sido descritas e estudadas. Transportado, comecei a esboçar o primeiro retrato de grupo dos antigêmeos, que chamei “the twincest” (“o gemeocesto”), “the icon of incest” (“o ícone do incesto”) e “the mirrorgender symmetries” (“as simetrias do espelho-gênero”). Mas o tempo realmente voa quando você está se divertindo, e percebi que tinha me esquecido de revisar meu correio naquela manhã. Quando o fiz, encontrei um copião do manuscrito “The Incest Passions”, de Jadran Mimica (Mimica, 1991), o melhor estudo e de longe o mais articulado que foi concebido até agora sobre o tema do incesto como uma fenomenalidade sui generis. Mas essa descoberta, como Mimica bem sabia, não vem ao caso quando falamos que a prática de fato, regular e mesmo compulsiva de relações manifestamente incestuosas em todas as sociedades modernas, no âmbito das ILHA volume 12 - número 1

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relações familiares mais próximas, excede todas as expectativas razoáveis. Para entender o que isso significa e por que continua, especialmente entre pessoas altamente qualificadas em sociedades industriais modernas, teríamos que ter não apenas um tabu do incesto (incest taboo) mas também um “outcest taboo”. E se esse “outcest taboo” funciona tão mal quanto parece ser o caso do tabu do incesto, então todas as racionalizações ou irracionalizações feitas para sustentá-lo também não valeriam nada, pois não é de pensar que se trata o comportamento familiar. Trata-se de controle. O parentesco, como a história, o processo natural e a estratégia da máquina, pressupõe a lógica da consequencialidade, ou causa e efeito, no acontecer das coisas. No entanto, a relação é um indício de algo completamente diferente, parecendo mais com a antilógica da ironia, na qual nos é dado primeiramente o efeito, como no cenário de abertura ou “armação” de uma piada, e depois somos surpreendidos com a improvável causalidade do desfecho (punch line). Mas, mesmo colocado desse modo, não deixa de ser algo singular, uma piada sobre si, pois piadas e relações – basicamente chaves inglesas jogadas na maquinaria do pensamento – não se enquadram na consistência de pensar as coisas de trás para frente (como se tivéssemos descoberto o sistema perfeito para o pensamento não sistemático), mas carregam uma desqualificação inerente na estratégia de seu dizer ou resolução (working out). Elas celebram “the uncanny” (o estranho). É improvável, a partir desse ponto de vista, que as relações, assim como o incesto e o “outcest” dos quais dependem, tenham tido alguma vez um início – seria como procurar a origem de uma piada (Wagner, 2001). As relações só foram palco das atenções mais tarde na forma de “parentesco”, quando as racionalizações de causa e efeito foram desenvolvidas para convertê-las em linhas de descendência, genealogias, relações de afinidade e assim por diante, pois para que servem os parentes sem nada para aparentar (for what good are relatives with nothing to relate)? Não é apenas difícil, mas quase impossível para um antropólogo imaginar como era o acasalamento entre os assim chamados povos pré-culturais sem pensar imediatamente no “casamento”, nem que seja apenas para projetar um padrão que possa ser ILHA volume 12 - número 1

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negado convenientemente por um antitermo tal como não casamento. É inevitável que isso leve o pré-historiador, outrora um indivíduo são e sensato, a projetar uma dessas estratégias clássicas do “homem natural”: Antes dos seres humanos, como os conhecemos, evoluírem, eles se acasalavam através de um sistema primitivo que poderia ser chamado de “não-casamento”, tinham uma prole inconcebível através de uma forma do que hoje conhecemos como disseminação, que deixava todos se sentindo vazios e sem raízes. Apenas agora, retrospectivamente, é que podemos traçar seus movimentos na lama, usando lascas e ferramentas de pedra que mal arranham a superfície.

O xadrez, é claro, é puramente “simbólico” (diga isso a um grande mestre e, em seguida, saia da frente), mas o modelo de parentesco que tenho revisado aqui é algo mais que isso. Ele não tem necessariamente uma origem nem um término, nem que seja pelo fato de que seus significados e suas relações, como tenho mostrado, são tecidos mútua e retroativamente a partir da mesma matriz geradora que tenho chamado de atrator estranho ou quiasma de dupla proporção. Isso teria que incluir tanto o tabu do incesto quanto sua variante do outcest, a arbitrária “regra, porque tem de haver regras” sobre a qual LéviStrauss afirmou todo o argumento do incesto-cum-reciprocidade nAs estruturas elementares do parentesco. Mas vimos que as interdições e as reciprocidades desse tipo produzem tanto a proibição quanto a coisa proibida (ou seja, tanto a prática do incesto quanto sua proibição) a partir do mesmo fio condutor e com o mesmo jeito generoso com o qual os Daribi tanto afirmam quanto negam a “irmandade” dos primos cruzados, e os Barok inadvertidamente tanto praticam como proíbem o casamento direto de primos cruzados, o que resulta em ardor moral respeitável e autocontradição em cada caso. Claro, quando lidamos com um atrator estranho, a tradicional exceção que prova a regra se converte rapidamente na regra que prova a exceção, então é claro que tem que existir algum povo (“em algum lugar”) que segue a regra de casamento entre primos cruzados diretos precisamente como Lévi-Strauss o tinha prognosticado. Em 1964 eu passei alguns dias com um povo assim, os falantes de Yagaria da aldeia Lagaiu, ao ILHA volume 12 - número 1

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leste das terras altas da Papua Nova Guiné. Muito cuidadosamente, consultando um grupo de anciões, consegui elicitar sua terminologia de parentesco, correlacionando-a exaustivamente com o registro genealógico e determinando que eles se casavam seguindo um regime estrito de casamento de primos cruzados bilaterais (eles denominavam a categoria de linhas casáveis de devo’a). Ainda que não tenha permanecido no lugar tempo suficiente para ver como o “sistema” funcionava na prática, aposto que funcionava, pois os considero de raciocínio muito agudo. Onde mais na ciência podemos encontrar irrelevâncias tão picarescas? Nosso herói Gregory Bateson desenvolveu a teoria do “double-bind” da esquizofrenia a partir do modelo da cismogênese de dupla proporção que ele descobriu no seu trabalho entre os Iatmul. Embora tenha permanecido em voga entre os psiquiatras por um tempo bem reduzido e logo perdido território para outras terapias mais “clinicamente corretas”, sua teoria imitava os sintomas da esquizofrenia como nenhuma outra coisa no mundo (ninguém jamais conseguiu curar a esquizofrenia nem o casamento de primos cruzados). Muitas vezes, o melhor que podemos fazer é imitar. Há rumores, por exemplo, de que nosso sistema solar (o sol e seus corpos satélites) se desenvolveu pelo acréscimo gravitacional a partir de uma nuvem nebulosa em forma de um disco primordial. Nesse caso a gravidade seria o primum mobile e a maior parte da gravidade no sistema solar é investida no próprio sol. Mas é preciso parar um momento, pois há uma outra proporção nessa cismogênese, já que a maior parte do momento angular (que é a contraposição necessária da gravidade) no sistema solar investe nos planetas, satélites, asteroides, e até mesmo na tênue nuvem de Oort. Daí que outra “origem” para o todo é uma possibilidade real, que é aquela segundo a qual o sol teve uma vez uma estrela companheira localizada na vizinhança orbital de Júpiter, uma estrela cuja explosão redistribuiu o momento angular do sistema sob o padrão que hoje encontramos. Já que nenhuma hipótese exclui a outra, a questão de qual é a “correta” é tão trivial e inconclusiva quanto a questão de quão precisa a relação de primos cruzados deveria ser formulada, ambas as questões requerendo um atrator estranho. O problema em pensar as coisas desse ILHA volume 12 - número 1

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modo, e do atrator estranho, se posso ser tão ousado, é o problema de autoabsorção e autoenvolvimento agudo; é simplesmente que um sistema formulado desse modo não tem a habilidade de sair de si mesmo e de se ver como aquilo que é. Notas 1

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Nota do Editor (NE): Esta conferência, apresentada no Seminário Antropologia de Raposa, está sendo publicada simultaneamente no Hau: Journal of Ethnographic Theory, v. 1, n. 1, 2011. Nota do Revisor (NR): Pawns são peões, mas pawnshop é uma loja de penhora na qual é possível encontrar objetos os mais variados, não resgatados de sua penhora e postos à venda por preços baixos. Nota do Tradutor (NT): Noruegueses e escandinavos. NR: Back to back significa contínuo ou consecutivo, mas o jogo de palavras aqui também se refere ao significado literal de coisas posicionadas de costas uma para a outra. NR: Há aqui uma brincadeira com Gilligan’s Island, um popular programa da televisão americana dos anos 1960. “Sua vontade era lei, sua vontade era não morrer / E assim eles tiveram seu caminho; ou quase.”

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A antropologia reversa e “nós”: alteridade e diferença¹ Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil E-mail: [email protected]

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Resumo

Abstract

Este artigo busca dialogar com a noção de antropologia reversa, do antropólogo Roy Wagner, procurando repensar a dicotomia “nós e os outros”, princípio da prática e da reflexão antropológicas. Tendo como foco a antropologia das sociedades complexas, ou a antropologia do contemporâneo, e as pesquisas realizadas pela autora nesse campo, busca-se discutir a dimensão de inventividade e de renovação do campo antropológico dessas antropologias. Inventando e performatizando o que é tradicionalmente uma convenção antropológica, a noção de outro e a noção de alteridade, essas antropologias tornam explícito o processo de invenção, pela antropologia, desses sujeitos com quem trabalhamos como outros como unidades homogêneas. Além de mostrarem, como o fez a antropologia feminista, como cada um desses lugares inclui suas próprias reversibilidades e dialéticas internas – as diferenças na diferença, numa direção inversa a de trabalhos etnográficos convencionais que buscam a unidade e a homogeneidade no interior das “culturas” estudadas.

This article aims at a dialogue with Roy Wagner’s notion of reverse anthropology, thus rethinking the dichotomy “us and the other”, the foundation of anthropological practice and reflection. Taking as its focus the anthropology of complex societies, or the anthropology of the contemporary, and this author’s own research in this area, we seek to explore the inventive dimension of these anthropologies and the renovation of the anthropological field brought about by them. Inventing and performing what is traditionally an anthropological convention – the notion of the other and of alterity – these anthropologies make explicit the anthropological process through which the subjects we work with as others are invented as homogeneous unities; in addition to demonstrating, as feminist anthropology had done, how each of these places include their own reversibilities and internal dialectics – the differences in difference – in a inverse direction to conventional ethnographic works which seek unity and homogeneity within the “cultures” under study. Keywords: Reverse Anthropology. Complex Societies. Alterity and Difference. Feminist Anthropology.

Palavras-chave: Antropologia reversa. Sociedades complexas. Alteridade e diferença. Antropologia feminista.

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cott Head e eu somos os únicos não etnólogos ameríndios ou melanésios a participar do Seminário Antropologia de Raposa, e justamente a nossa é a mesa que abre o Seminário, depois da conferência de Roy Wagner. Espero que isso seja um bom augúrio para a realização de um diálogo que nem sempre é fácil nem tranquilo, mas extremamente pertinente, sobretudo pensando na importância das questões trazidas pela obra de Roy Wagner, cujo impacto sobre a antropologia transcende as etnologias melanésia e ameríndia. Minha apresentação, que tem como título A antropologia reversa e “nós” (ênfase nas aspas), vai tentar pensar esse diálogo a partir de uma reflexão sobre esse princípio antropológico que é a relação entre nós e os outros, e repensá-la (assim como a própria ideia de uma antropologia reversa) a partir de uma antropologia do próximo, de nossas próprias sociedades. Eu me inspiro evidentemente aqui no debate não tão recente sobre o “grande divisor”, tema que percorre a antropologia de forma mais explícita pelo menos desde os anos 1960, mas que foi retomado mais recentemente de diferentes maneiras, seja na atualização da centralidade da dicotomia nós e eles no trabalho etnográfico, seja na discussão crítica sobre as divisões de áreas no estudo etnográfico. No caso da antropologia brasileira, essa divisão recai sobretudo entre as etnologias ameríndias e o estudo das chamadas sociedades complexas (Goldman e Lima, 1999). A antropologia contemporânea tem vivido uma efervescência teórica nos últimos anos e certamente os trabalhos de Roy Wagner, que teve apenas muito recentemente um de seus livros traduzido e publicado no Brasil, fazem parte dessa efervescência. Acho que po-

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demos agregar a isso os estudos no campo do perspectivismo ameríndio, o projeto de uma antropologia simétrica e outras abordagens que têm trazido um novo ar sobre a disciplina e resgatado a potência criativa e consequentemente a potência política da antropologia e da própria prática etnográfica. Existem outras dimensões dessa transformação do campo antropológico de modo geral que não vou ter tempo de desenvolver aqui, mas que trazem outras linhas de reinvenção da antropologia, entre elas a perspectiva crítica da antropologia feminista, sobre a qual vou falar mais adiante. Um dos resultados desse movimento todo é o de que os modos de fazer e aprender antropologia hoje não são mais os mesmos e precisamos (não só como pesquisadoras, mas também como docentes) levar em consideração essas transformações em nossas práticas cotidianas. É interessante pensar em como essas críticas teóricas e conceituais, esse novo discurso antropológico e sua reinvenção teórico-conceitual se por um lado comportam um grau de abstração nem sempre muito comum na antropologia (veja-se a crítica de Louis Dumont sobre o tema), por outro elas têm no trabalho etnográfico concreto e no “campo” certo princípio elementar da prática e do conhecimento antropológico e sua diferença em relação às outras ciências humanas. É também o campo o que pode legitimar as novas invenções conceituais e teóricas. Um exemplo é o escrutínio sobre o conceito de sociedade a partir do que as etnografias sobre a Melanésia trouxeram: é porque não existem sociedades, nem a formulação de um conceito de sociedade, na Melanésia que é possível fazer uma crítica ao conceito de sociedade na antropologia, postular sua obsolescência e mesmo sua falência como um conceito útil para a antropologia. De certo modo, o velho tema filosófico da dialética entre pensamento e mundo se recoloca e se atualiza na prática antropológica: os conceitos (e as teorias) são formatados pelo mundo que buscam descrever ou conhecer, assim como esses mundos não podem ser conhecidos sem a ação prévia desses conceitos (Butler, 1998 e 2000). Mas não apenas a antropologia como também outros campos têm discutido a dependência mútua entre a representação e a construção do mundo.2 ILHA volume 12 - número 1

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É o campo e o trabalho etnográfico que legitimam as novas questões trazidas pela antropologia, que calibram as possíveis transformações no interior da disciplina e que autorizam os diálogos possíveis com conceitos e teorias advindos de outras áreas. Assim, teoria e conhecimento antropológicos estão no crivo de sua interminável desconstrução pelo campo, ou seja, pelo mundo, pelos outros. Talvez seja isso o que determine mais a unidade de nossa disciplina do que o que propõe Mariza Peirano, que define essa unidade a partir da “história teórica” da antropologia, ou seja, a permanência de seus clássicos.3 Para não falar de um terceiro fator que, a meu ver, pesa na invenção dessa unidade: uma relativa imunização contra os cruzamentos ou “contaminações” de outros campos do conhecimento que poderiam ameaçar nossa communitas. Essa imunização, no entanto, funciona mais visivelmente no plano da reprodução e da transmissão da teoria e da prática antropológicas, não no plano de sua criatividade e invenção – veja, por exemplo, a importância da linguística estrutural na formação do pensamento estruturalista na antropologia, ou da hermenêutica na formação de uma antropologia interpretativa, ou os trabalhos de Merleau-Ponty para uma antropologia fenomenológica, ou os de Deleuze e Guattari na discussão sobre o perspectivismo ameríndio. Meu ponto nesta apresentação é, como uma antropóloga que trabalha com esse campo heterogêneo denominado antropologia das sociedades complexas (por mais problemática que seja essa definição), ou antropologia do contemporâneo, das sociedades modernas, do próximo, antropologia urbana, ou também, segundo Latour, antropologia do centro, pensar alguns aspectos que o projeto de uma antropologia reversa, e os trabalhos de Roy Wagner sobretudo, tem trazido para uma antropologia que não é nem a dos ameríndios, nem a dos melanésios, nem a desses “outros” sujeitos clássicos dos estudos antropológicos. O objetivo aqui não é o de “aplicar” a teoria da invenção da cultura e de uma antropologia reversa aos objetos de uma antropologia das sociedades complexas, nesse sentido peço desculpas por meu texto não trazer mais densamente exemplos

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etnográficos e, por isso, provavelmente acabar sendo uma apresentação mais chata que a que meus colegas fizeram. Entre os comentadores dos trabalhos de Roy Wagner, dois pontos são recorrentes: a recepção tardia de sua obra e uma definição dessa obra pelo que ela não é: não é pós-moderna, propõe uma antropologia reflexiva, mas não como Fabian e Habermas, porque para esses autores haveria uma ontologia do poder e do conflito que de maneira alguma estaria presente em Roy Wagner, que sua única ontologia é uma ontologia da produção de sentido. É possível que a maior parte desses comentadores, ver, por exemplo, o número especial da Social Analysis e resenhistas dentro e fora do Brasil, tenham razão, mas não posso deixar de expressar minha impressão. Acredito que existem nessas duas dimensões dos comentários sobre Roy Wagner (a recepção tardia da obra e o que ela não é) uma disputa de interpretações no campo teórico da antropologia ou, pensando mais wagnerianamente, uma disputa sobre que antropologia(s) sua obra constrói. Claro que a gente pode pensar a interpretação como um campo de disputas (de novo o poder aí) entre concepções teóricas e suas legitimações no campo antropológico mais vasto. Mas podemos pensar outros sentidos para a ideia de interpretação. Acredito que a obra wagneriana pode ser lida como uma partitura que produz muitas possíveis músicas e musicalidades. Um dos aspectos que vejo nas aulas em que lemos e discutimos Roy Wagner é o quanto essa leitura dá asas à imaginação antropológica dos estudantes e à minha própria. É um pouco a partir dessa licença imaginativa que eu gostaria de trazer questões a partir do que seria o lugar de uma antropologia das sociedades ocidentais modernas nessa leitura e na própria imaginação antropológica contemporânea. Evidentemente meu ponto de partida é de que essa antropologia do próximo não é uma extensão analógica ou metafórica das outras antropologias ou das antropologias dos tomados como evidentemente “outros”. A questão é de tentar pensar em como temas como a relação entre campo e teoria, a produção de conceitos e os modos de conceitualização e de criatividade se constituem e se diferenciam, ou não, em cada um desses campos. E como questões como alteridade e diferença se articulam. ILHA volume 12 - número 1

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Certo desconforto me atravessa. Mas antes um parêntese: claro que falar em próximos, no caso de uma antropóloga brasileira, não é exatamente a mesma coisa que falar de próximos para alguém que trabalhe e pesquise na Europa ou nos Estados Unidos, por exemplo. “Nós”, nesse caso, também deixa de ser uma noção tranquila, sendo antes um campo de tensões, uma zona de certa instabilidade. Certo desconforto me atravessa, compartilhando o mal-estar expressado por Matei Candea (2011) diante da questão de afinal de contas o que um antropólogo que trabalha com sociedades europeias pode esperar e pode trazer para toda essa discussão. Vou traduzir esse desconforto em três perguntas que vou tentar responder precariamente ao longo da apresentação. Candea se refere à reflexão trazida por Eduardo Viveiros de Castro e Antonia Walford (2011), publicada em número especial da Common Knowledge, sobre o que daria viabilidade a uma endoantropologia e ao argumento defendido pelo etnólogo brasileiro sobre a dependência crucial dessa do arejamento teórico trazido pela exoantropologia. Meu objetivo é tentar mostrar que a recíproca pode ser também verdadeira ou que há ares de invenção também na antropologia feita em “nossas” sociedades. As três questões. Primeiro: é possível construir um diálogo entre teorias e conceitos que emergem das etnologias de outras culturas que têm como fundamento a dicotomia entre nós e os outros, de um lado, e uma antropologia dos mundos modernos e contemporâneos, de outro? Ou seja, é possível um diálogo que transcenda o “grande divisor”? A segunda, acreditando na possibilidade de algum diálogo, e tenho investido nessa possibilidade já há alguns anos, é: quais são as potencialidades e as consequências de um diálogo com esses outros campos para uma antropologia das sociedades complexas, para além de pensá-la como extensão metafórica das etnologias ameríndias ou melanésias? E consequente e simetricamente a terceira pergunta é: que contribuições uma antropologia das sociedades complexas pode trazer para toda essa discussão? Qual seria então o lugar dessa antropologia na definição do que é o projeto antropológico de modo geral? ILHA volume 12 - número 1

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Qual seria o lugar dessa antropologia cujos sujeitos não são tão obviamente nossos “outros”, ou seja, que deslocam o fundamento ontológico do trabalho antropológico, a dicotomia nós/eles, em que o outro não é da dimensão do dado, mas da dimensão do feito, que precisa ser construído como tal para que algum trabalho etnográfico aconteça? Essas perguntas vão se embaralhar no decorrer da exposição, mas ficam como um roteiro implícito de meu argumento. Otimistamente prefiro pensar que existe um diálogo possível, tanto para imaginar no que potencialmente a teoria da invenção da cultura pode trazer para uma antropologia das sociedades complexas quanto para pensar o que uma antropologia das sociedades complexas pode trazer para uma reinvenção da antropologia de modo geral. Uma breve passagem ainda sobre a antropologia reversa: ela seria em suma uma dupla antropologia, aquela realizada pelo antropólogo em campo, que institui (inventa) o outro como cultura; e uma outra antropologia, mais pragmática e não acadêmica, que é a apreensão desse outro sobre nós.4 Definição que é descrita e ilustrada em A invenção da cultura através dos cultos de carga melanésios – seu modo de apreender as nossas metaforizações. Um tipo de antropologia pragmática que desvenda os nossos (dos antropólogos mas também dos ocidentais) mecanismos de invenção da cultura (conforme sintetiza Goldman, 2011). Nesse exemplo, contrapõem-se as sociedades tribais com a civilização industrial moderna. Mas a reversibilidade é também um princípio dialético de organização simbólica mais geral, um princípio de ordenação antropológica que tem uma amplitude bem maior (Wagner, 1986). Talvez uma das contribuições da antropologia do próximo seja pensar que o conhecimento outro, a teoria outra, não necessariamente são o conhecimento do outro ou a teoria do outro, ou pelo menos desse que ocupa, na forma como a “alteridade” é pensada na antropologia, um lugar ontologicamente dado (coisa que uma antropologia reversa, levada à sua radicalidade, ajudaria a repensar, já que, sendo os outros nossos antropólogos, somos nós os outros desse outro e são eles o “nós” dessa outra antropologia); nós e outros ILHA volume 12 - número 1

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deixam de ser aqui lugares fixos, mas posições no interior de relações, assim como sujeito e objeto, invenção e convenção, ou mesmo natureza e cultura, conforme o que as reflexões sobre o perspectivismo ameríndio têm trazido. Um elemento adicional é pensar o quanto cada um desses lugares inclui suas próprias reversibilidades e dialéticas internas – as diferenças na diferença. Esse nem sempre é um princípio tranquilo para trabalhos etnográficos convencionais que buscam a unidade e a homogeneidade no interior das “culturas” estudadas. A noção de alteridade é um dos pressupostos das etnologias ameríndias e melanésias (para ficar nesse que tem aparecido como o diálogo mais evidente e visível hoje, pelo menos no Brasil, com a obra de Roy Wagner), pelo menos dentro do campo teórico com o qual estou dialogando aqui. Mas, em grande parte dos trabalhos etnológicos e em sua generalização na literatura antropológica, a alteridade é traduzida a partir do que a gente poderia chamar de uma “metafísica da substância”, alimentada pela crença de que a formulação gramatical “nós e os outros” “reflete uma realidade ontológica anterior de substância e atributo”, para usar uma formulação da filósofa feminista Judith Butler (2003, p. 42). “Nós” e “eles” são tomados, assim, como sítios ontológicos dados e fixos, como a dimensão do dado para a antropologia e como o fundamento do próprio projeto antropológico. No entanto, se as etnologias desse outro mais distante podem se sentir relativamente confortáveis com esse fundamento, ao ponto de ele ser tomado como a dimensão não inventiva da antropologia, ou seja, como a nossa convenção mais intocada, uma convenção nesse caso “subsumida como o contexto implícito de nossa ação” (Wagner, 2010, p. 165), esse não é o caso das antropologias das sociedades modernas e contemporâneas. Não que cortes semelhantes não tenham se construído na antropologia feita no contexto das sociedades ocidentais, modernas. No Brasil os trabalhos de Louis Dumont têm inspirado trabalhos importantes sobre o que seriam formas mais holistas e formas mais individualistas no interior da própria sociedade brasileira. Mas alguns desses trabalhos acabam enfatizando o momento fixo do modelo, sem incorporar a ILHA volume 12 - número 1

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sua potencial dinamicidade, trazida pela noção de “inversão hierárquica” – talvez uma das mais importantes e originais contribuições do modelo hierárquico de análise de Dumont. A noção de inversão hierárquica acentua a transformabilidade dos valores e dos vetores de uma relação, aponta para distintos modos da diferenciação. Diversos estudos etnográficos feitos em meio e com populações urbanas no Brasil têm trazido uma relativização dessa dicotomização tão exacerbada entre o individualismo e o “resto” e da própria visão homogeneizante do individualismo no Ocidente. E têm repensado o caráter homogêneo no interior mesmo das várias configurações do individualismo. De qualquer modo, a construção da alteridade e de uma noção de “outro” na antropologia das sociedades complexas é o resultado de um esforço muita vezes explícito de construção do distanciamento e do estranhamento. O que é tradicionalmente uma convenção antropológica precisa, no caso dessa antropologia, ser permanentemente inventada – e performatizada. O que, no meu modo de ver, não é nada mais do que tornar explícita uma operação que é própria a qualquer trabalho etnográfico, mas que usualmente é feita sem essa autoconsciência. Na antropologia das sociedades complexas, estamos o tempo todo “fazendo” a convenção ou, conforme Wagner, “articulando deliberadamente contextos convencionais” (Wagner, 2010, p. 165). É como se, ao performatizar o que é “dado” numa circunstância etnográfica convencional, as antropólogas (e os antropólogos) urbanas e das sociedades complexas ocupassem a mesma posição estrutural que as drag queens, que performatizam (inventam) o que está “dado” nas configurações hegemônicas do gênero. Dito isso, passo agora a discutir dois exemplos de meu próprio trabalho que podem ajudar a ilustrar algumas direções possíveis dos diálogos entre essas várias antropologias. O primeiro deles propõe repensar os conceitos em sua potência para ajudar a compreender práticas e discursos a partir de uma análise de certo esgotamento do conceito de religião para se entenderem alguns aspectos das práticas contemporâneas. O segundo parte de um conceito já “rasurado” pelas teorias sociais vindas de outras áreas para discutir sua utilidade no trabalho antropológico, o conceito de sujeito. ILHA volume 12 - número 1

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Nos anos 1990 rastreei no Sul do Brasil todo um circuito de práticas e discursos envolvendo uma intensa circulação dos sujeitos por vivências ecléticas e eventualmente díspares em termos rituais e doutrinários, que tem sido rotulado genericamente como culturas da Nova Era.5 Deixando-me levar pelo que observei e pouco contente com o que a literatura antropológica sobre a óbvia temática da religião oferecia, decidi não definir as práticas e os discursos que o campo me trazia nessa grade conceitual – “religião” –, mas como dimensões de invenção de si e do mundo. Para tanto, emprestei da etnologia ameríndia o conceito de cosmologia, que considerei mais aberto e articulador de dimensões da experiência não estritamente religiosas, tal como uma antropologia ou uma sociologia das religiões propunham. Optei por utilizar o conceito de cosmologia no lugar do conceito de religião, buscando dar conta dessas articulações extrarreligiosas, centrais nos sentidos dados às práticas e às trajetórias dos sujeitos. O conceito de cosmologia de que me apropriei da literatura de etnologia ameríndia me ajudou a repensar criticamente a racionalização dos domínios da experiência e da institucionalização e a separação das esferas do social (entre religião, política, arte etc.), e a focar a abordagem nas práticas dos sujeitos e nos mundos que concebiam e construíam, tentando perceber dinâmicas comuns que eu defini a partir do conceito de sínteses cosmológicas singulares, invenções individuais num fundo sociocosmológico comum. Parti da crítica à persistência de um conceito entificado e substantivado de religião – devedor de certa tradição intelectual ocidental e moderna, que reduz os fenômenos definidos como religiosos às instituições organizadas (a Igreja), a agentes dispostos em um campo hierárquico e de competências e a um corpo doutrinário demarcado em narrativas centrais e estabelecidas. O que chamei de culturas espirituais e terapêuticas alternativas são um exemplo de plasticidade, dinamicidade e inventividade que os conceitos disponíveis – a partir dessa tradição intelectual herdada pelas ciências sociais e pela antropologia – não ajudavam a explicar. A partir das noções de cosmologia e de sínteses cosmológicas singulares, o que poderia ser tratado como religioso deixa de ser uma substância transcendente e acima das práticas dos sujeitos e passa a ser um qualificaILHA volume 12 - número 1

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tivo de diferentes tipos de agenciamentos, não apenas centrais e molares (as Igrejas, as doutrinas), mas também periféricos, marginais, subterrâneos, em que a dimensão inventiva dos sujeitos, suas práticas, discursos e mundos construídos aparecem como a figura central da análise antropológica. Outro tema que tenho trabalhado nos últimos dez anos, e que serve como uma espécie de guarda-chuva para várias pesquisas que coordeno e oriento, é o de uma antropologia do sujeito, que busca pensar o sujeito não apenas como objeto da análise antropológica, mas como categoria analítica e como paradigma para uma abordagem antropológica do contemporâneo.6 Mas meu projeto e meu argumento começam com uma ressalva: para teorias sociais contemporâneas como parte da teoria feminista, a psicanálise, os estudos pós-coloniais, as análises foucaultianas e a filosofia da diferença, não há “sujeito”, o sujeito (como ente unificado, substantivo, prévio à experiência, o sujeito da razão) é uma ficção. No entanto, tomado a partir da história crítica que carrega (tomado então como um “conceito sob rasura”), sujeito torna-se uma figura conceitual que pode provocar deslocamentos, fricções e novos caminhos na antropologia contemporânea e na apreensão antropológica do contemporâneo, sobretudo se forem levadas em consideração questões que parte desse pensamento crítico contemporâneo tem trazido: a desconstrução da ideia de sujeito tal como aparece no pensamento moderno, como uma entidade unificada, substantiva, como figura central dessa “metafísica da substância”, tão cara aos discursos centrais da modernidade. Falar, a partir daí, em sujeito é necessariamente utilizar um conceito “sob rasura”,7 não há sujeitos, o que há são regimes e modos de subjetivação, com suas linhas centrais e periféricas. Contemporaneamente, a antropologia e outros campos das humanidades têm feito essa mesma operação em relação a conceitos como grupo social,8 sociedade,9 identidade,10 parentesco,11 Estado12 e mesmo de religião, como eu falei há pouco.13 Aqui, o diálogo com uma tradição crítica da teoria social é um fertilizante para o deslocamento dos mapas conceituais impregnados da racionalidade e da burocratização moderno-capitalistas (ou capitalísticas, como diriam Deleuze e Guattari). ILHA volume 12 - número 1

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O diálogo entre antropologia e feminismo tem produzido transformações e constituído linhas de fuga no interior da própria antropologia. Nos anos 1970, a antropologia feminista discutia a grande variedade dos arranjos culturais de gênero e a universalidade das assimetrias e desigualdades. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, o foco não é só a construção da diferença de gênero (o que era tomado como o plano da cultura), como a própria invenção do sexo e da diferença sexual (o que era tomado como o plano da natureza). O que era “dado” é localizado (e eventualmente “denunciado”) como inventado, ou seja, como parte da convenção moderna. A partir da crítica ao parentesco como um sistema autônomo (baseada na distinção doméstico–público e do doméstico como sistema estático e sem história, fundamentado no aspecto invariante da relação mãe–filho), as antropólogas Collier e Yanagisako (1987) sugerem um questionamento das dicotomias e da afirmação de que “masculino” e “feminino” são categorias universais. Baseadas sobretudo na crítica de Schneider ao modelo biológico que predominaria nos estudos de parentesco, elas questionam a noção de que as variações culturais em torno de gênero sejam elaborações e extensão “do mesmo fato natural” (p. 15). Para elas, gênero e parentesco teriam se constituído como campos a partir da “concepção nativa” (no caso, a “cultura local” é a sociedade ocidental moderna) do “fato biológico da reprodução sexual”. Mesmo reconhecendo o que seriam as “causas sociais” da assimetria de gênero, os diversos estudos no campo antropológico teriam focado na construção social de um “fato” biológico: a capacidade biológica das mulheres de parir e nutrir. A afirmação de um “fato biológico” universal e primordial tem como fundamento a pressuposição de uma permanência ontológica e universal dos sujeitos (masculinos e femininos) fundamentada em corpos biológicos. Outro “fato biológico” construído, ligado a esse primeiro, seria o da “diferença anatômica”, já discutida por diversos autores como uma construção histórica e cultural do Ocidente moderno (Laqueur, 2001). É interessante relacionar o fato de que nas sociedades ocidentais a diferença de gênero está fundamentalmente localizada no corpo a determinados processos contemporâneos ligados à manipulação, à modificação e ao remodelamento corporal ILHA volume 12 - número 1

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(como o fenômeno da tatuagem ou o da cirurgia plástica estética) como formas de construir e dar forma (ou novas formas) à diferença. Outro exemplo são as novas formas de medicalização das mulheres, que podem ser lidas como tecnologias de gênero que estendem o olhar fisicalista sobre a diferença para as dimensões das emoções e da vida subjetiva. Se entre as histéricas do século XIX a fonte da perturbação estava no útero e no aparelho reprodutivo feminino, entre as deprimidas do século XXI essa fonte está nos distúrbios da química cerebral e nos hormônios, conforme o discurso da ocasião. Os antidepressivos atuam sobre os excessos, sobre as emoções excessivas, que certamente atrapalham o processo de racionalização e de subjetivação dessas mulheres (duplamente colocadas historicamente no campo da irracionalidade e da dessubjetivação: como mulheres e como pobres, populares, indígenas etc.). Aqui, tal como discute Wagner (2010) em relação aos Estados Unidos modernos, a dimensão do inato (a diferença sexual) “demanda a intervenção e o controle”, entre outros dispositivos, pelos medicamentos. O gênero (e a construção da diferença ontológica) é um modo ocidental de inteligibilidade do sujeito. A crítica feminista (dentro e fora da antropologia) tem trazido elementos para mostrar que, junto com o processo de construção da diferença, ocorre um apagamento do processo de construção que Butler irá chamar de ontologização da diferença, que passa a ser tomada como dada.14 As “invenções” dos/das transgêneros evidenciam que o dado é construído, elas performatizam os modos de construção da diferença. Um cruzamento com a noção de “obviação” de Wagner está implícito em meu argumento. O feminismo contemporâneo (incluindo a antropologia feminista) deslocou a diferença sexual e de gênero do dado para o feito. Esse é o ponto em que algo de interessante pode ser dito (a partir de uma antropologia das sociedades ditas modernas ou contemporâneas e a partir de outras teorias sociais não antropológicas). Para o feminismo, não existe um ato fundacional nem do sujeito nem da diferença de gênero, mas sim a reiteração de uma dinâmica, um modo permanente e reiterativo de constituição de sujeitos e ILHA volume 12 - número 1

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de relações de poder. É nos interstícios dessa repetição que outros modos de subjetivação se engendram, que outros modos de criatividade emergem, invertendo o vetor e os sentidos do poder e suas linhas hegemônicas. Para Goldman e Lima (1999, p. 84), a partilha “é a própria condição do projeto antropológico e de seu exercício; [e] que seja sua conseqüência é algo que nos cabe evitar”. Talvez uma consequência disso para o que Roy Wagner propõe como uma antropologia mais transparente e autoconsciente seja a de deslocar a dicotomia nós/ eles do dado (da convenção antropológica) para o feito, mostrar o sentido inventado dessa convenção. Fazer o caminho da convenção à diferenciação. Isso tem algumas implicações: “nós” e “outros” deixariam de ser unidades homogêneas e autocontidas, resolvidas em seus próprios e incomensuráveis termos. Ainda: se durante muito tempo vivemos na antropologia das sociedades complexas a “tentação da aldeia”, a perspectiva de estender a prática antropológica nas sociedades não ocidentais para o estudo das “nossas” sociedades, buscando unidades homogêneas e de contorno evidente, o feminismo colocou uma questão interessante que é o quanto essa “homogeneidade” e “autocontenção” dos “outros” não seria também uma “invenção” do etnólogo. Ou seja, o feminismo coloca a questão de outras diferenças, as diferenças internas às sociedades tradicionalmente estudadas pela antropologia, e de quanto essas diferenças foram eliminadas nos discursos antropológicos. A questão então não é a de que a alternativa à dicotomia nós e os outros seja talvez e unicamente o “tédio dessa alternativa”. O que o estudo das sociedades complexas têm trazido para o nosso campo, em diálogo com as teorias sociais críticas de outras áreas, é que existem outras alternativas a uma concepção que congela a alteridade em um dualismo dicotômico e ontologizado, entre elas a ideia de multiplicidade dos modos de invenção e dos modos de diferenciação. Outra forma de entender a alteridade é como um modo de inteligibilidde da diferença – diferença que difere, que nunca é a mesma. O que implica mais uma tarefa para esse “novo” fazer ILHA volume 12 - número 1

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etnográfico: a necessidade de esmiuçar o feito, não apenas reproduzi-lo, obviamente. Desmontar ou fazer a engenharia reversa, para roubar mais uma expressão de Wagner, do próprio procedimento não explicito e não autoconsciente de invenção pela antropologia desses sujeitos com quem trabalhamos como outros como unidades homogêneas. Esse pode ser um dos fios para as contribuições que uma antropologia das sociedades complexas e do moderno-contemporâneo pode trazer para uma antropologia mais dialética, transparente e mais autoconsciente, e sobretudo mais inventiva. Notas 1

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Trabalho apresentado no Seminário Antropologia de Raposa, em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em agosto de 2011. Conforme o próprio Roy Wagner tem discutido em, por exemplo, An Anthropology of the Subject, entre outros trabalhos. Conforme Peirano (1997). Ver, por exemplo, Wagner (2010). Ver Maluf (1996 e 2010). Parte desta discussão retoma questões e reproduz partes de Maluf (2011). Conforme a discussão de Hall (2000) sobre o conceito de identidade. Wagner (1974). Latour (2005); Strathern (1988); Wagner (1974). Hall (2000); Lévi-Strauss (2007); entre outros. Schneider (1968) apud Collier e Yanagisako (1987). Abrams (1988 ); Butler e Spivak (2009); Radcliffe-Brown (1950); Trouillot (2001). Maluf (1996 e 2010). A crítica de Butler se dirige a uma concepção de ontologia como um fato natural e pré-discursivo, alheio ao político. Mesmo se referindo à diferença sexual dada como ontologia estável, essa crítica pode ser estendida a outras esferas. O trabalho de ontologização diz respeito à invisibilização do processo de construção do “dado”. Nesse sentido, ela prefere falar em fundamentos contingentes ou pensar o sentido contingente da ontologia e suas condições de produção e de significação. Além de um diálogo com a noção de obviação de Wagner, é possível uma articulação aqui também com a apropriação que Bruno Latour faz do conceito de “instauração”, de Éttiene Souriau, para discutir o duplo e paradoxal sentido do fetiche, fabricado num dia e, no outro, adorado como se ninguém o tivesse fabricado (Latour, 2006).

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Reinventando a roda: inversões e reversões de uma antropografia do sujeito Scott Head Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil E-mail: [email protected]

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Scott Head

Resumo

Abstract

Este artigo toma como seu ponto de partida o “princípio da roda” tal como elaborado por Roy Wagner em An Anthropology of the Subject (2001): ao “reinventar” uma roda – ou outro objeto –, reinventa-se igualmente o sujeito que realiza a invenção. Mas, nesse caso, trata de deslocar essa figura reflexiva rumo a uma outra “roda” estranhamente semelhante – certa roda popular de capoeira, tal como descrita no livro Capoeiragem: expressões da Roda Livre, de Mestre Russo de Caxias (2005). Ao tomar tal livro como o enfoque deste ensaio, ressalta-se como seu autor, ao descrever e inventar a roda a que seu livro diz respeito, acaba sendo reinventado, ele mesmo, pela roda – e jogo – em questão. Mas, ao buscar compreender tal processo de invenção e contrainvenção, o próprio desdobrar deste texto que segue também passa a ser “compreendido” por esse seu objeto: pensar sobre a roda através do livro de Mestre Russo e sobre ambos através de Wagner instiga uma reflexão sobre o ato de escrever e compor na forma de imagens. E, desse modo, a relação assim ensaiada passa a ressaltar algumas claras diferenças – e estranhas semelhanças – com respeito aos modos de compor e de compreender, de textualizar e de contextualizar, os ‘sujeitos’ etnográficos da antropologia.

This article takes as its point of departure the “wheel principle” as elaborated by Roy Wagner in An Anthropology of the Subject (2001): in ‘reinventing’ a wheel – or other object, the subject doing the inventing ends up reinventing him – or herself as well. Only here, the reflexive figure in question shifts towards an apparently quite different yet strangely similar “wheel” – in this case the rounded space of a certain popular “roda” of capoeira (an Afro-Brazilian danced martial art form played to musical accompaniment), as described in the book, Capoeiragem: expressões da Roda Livre, by Mestre Russo de Caxias. In taking such a book as its focus, this essay foregrounds how its author, in describing and inventing the “wheel-like” game, ends up himself being ‘reinvented’ by the very game of which he writes. But in seeking to comprehend this process of invention and counterinvention, the unfolding of the very essay that follows also gets caught up in and ‘comprehended’ by the very wheel-like process it takes to be its object of analysis: thinking about the roda through Mestre Russo’s book and thinking about both through Wagner instigates a reflection on the act of writing and composing in the form of images. And, in this way, the relation thus elaborated points to some clear differences – and strange similarities – with respect to the modes of composing and comprehending, of textualizing and contextualizing, the ethnographic ‘subjects’ of anthropology.

Palabras-clave: Reflexividade. Capoeira. Roy Wagner. Imagem. Representação etnográfica. Sujeito.

Keywords: Reflexivity. Capoeira. Roy Wagner. Image. Ethnographic Representation. Subject.

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i was made to believe we who write also dance yet no dancer writes (the way we write) no writer ever dances (the way they dance)1

A

‘roda’ ao redor da qual este ensaio se desloca rodou um tanto longe daquela com a qual Roy Wagner inicia seu capítulo com o mesmo título – “Reinventing the Wheel” – em An Anthropology of the Subject (Wagner, 2001, p. 191): “The wheel rolls into history under the armored wagons of the early Babylonians and the carts and chariots of Eurasian wanderers and conquerors”. No caso aqui considerado, tanto a ‘roda’ quanto a direção em que ela roda para dentro da história sofrem um duplo desvio de sentido: primeiramente, por dizer respeito a uma roda de capoeira – um desvio efetuado no plano da tradução; e segundo, por tal roda ‘rodar’ num sentido distinto daquelas que sustentam o movimento das carroças referidas acima. Pois, se uma roda de capoeira também envolve movimento concêntrico, seu ângulo de rotação em relação ao chão em que se desloca é inerentemente variável, diferindo assim da fixação perpendicular das rodas naquelas carroças, que limitava o deslocamento para frente (ou para trás) desses veículos de conquista e de comércio – deslocamentos que propulsionaram, por sua vez, os avanços (e retrocessos) da própria “história” referida por Wagner. O movimento de uma roda de capoeira assemelha-se mais ao movimento de um torno, só que nesse caso a ‘argila’ sendo modelaILHA volume 12 - número 1

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da consiste nos próprios corpos que brincam e lutam dançando na roda – corpos que se deslocam não apenas para frente ou para trás, mas igualmente para os lados e até para cima e para baixo. Assim, o movimento envolvido nessa forma singular de roda sugere outra imagem da história que aquela das carroças – uma imagem em tudo menos linear, ‘progressiva’ ou ‘regressiva’. Ao mesmo tempo, tal movimento assemelha-se bem às múltiplas circunlocuções tanto físicas quanto cosmológicas da roda, tal como reinventada no desdobrar do texto de Wagner a seu respeito. Pois a ‘roda’, tal como conceituada naquele capítulo, envolve igualmente o processo de compreender tal roda – ou, por extensão, qualquer outra coisa compreendida através do “wheel principle” ou princípio da roda: “One can only grasp or comprehend things to the extent that one’s process in doing so is itself grasped or comprehended by them” (Wagner, 2001, p. 202). Desse modo, ao tomar ‘a roda’ como o objeto desse princípio, que por sua vez envolve tanto o processo de compreensão quanto o mundo que compreende esse processo, Wagner volta-se para o sujeito que faz tal objeto rodar: “Neither the wheel itself nor that simplification by which we have come to know and use its properties exists independently of human thought and conception” (p. 204). Ou seja, ao “reinventar a roda”, reinventa-se igualmente o sujeito que realiza a invenção. Como veremos, tal processo analógico (e circular) estende-se igualmente à reinvenção da roda de capoeira de que se trata neste ensaio. Desse modo, chegamos a um terceiro desvio de sentido envolvido no tecer deste diálogo entre as ideias de Wagner e a “roda” aqui tomada como objeto: não se trata da roda de capoeira ‘em si’, mas de uma roda tal como descrita e composta no livro popular2 Capoeiragem: expressões da Roda Livre (Russo de Caxias, 2005). Trata-se desse livro, mais especificamente, tal como escrito, composto e publicado por conta própria por seu autor, Mestre Russo de Caxias. Ao tomar tal livro como o enfoque deste ensaio, busco ressaltar como seu autor, ao inventar a roda a que seu livro diz respeito, acaba sendo reinventado, ele mesmo, pela roda – e jogo – em questão. Mas, à medida que busco compreender tais processos de invenção e contrainvenção, ILHA volume 12 - número 1

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minha leitura também passa a ser compreendida por esse meu objeto: pensando através do livro de Mestre Russo, o livro me faz pensar de outro modo sobre o próprio ato de escrever sobre ele. E, desse modo, ao escrever sobre tal livro, a relação assim ensaiada passa a ressaltar algumas claras diferenças – e estranhas semelhanças – com respeito aos nossos modos de compor e de compreender, de textualizar e de contextualizar, os ‘sujeitos’ da antropologia. Ou seja, tomar o livro como o objeto deste ensaio desloca a roda da compreensão da “antropologia do sujeito” de Wagner rumo a uma antropografia (Dumont, 1986) desse sujeito – nesse caso, do sujeito tal como roda entre essas duas formas de escrever.3 Aproximado ou contornado desse modo, o livro de Mestre Russo oferece um modo um tanto singular de tratar do problema básico da “anthropological reportage”, tal como estipulado no prefácio de An Anthropology of the Subject (Wagner, 2001, p. xi): “o fato que nenhuma perspectiva teórica em particular, mesmo combinada com outras, pode ser usada efetivamente para obter um domínio sobre o sujeito antropológico”.4 É evidente que a ‘antropologia do sujeito’ não é um tema novo,5 mas o apelo da abordagem de Wagner consiste justamente em não pressupor, enquadrar ou sujeitar o ‘sujeito’ de antemão: os saltos constantes do livro entre coisas e conceitos, parecendo abordar ‘quase tudo’ menos o que convencionalmente enquadraríamos como sujeitos, nos demonstram amplamente o valor de tal indefinição premeditada. Não é que devamos dispensar todo tipo de enquadre: Bateson (1972) já nos mostrou o quão importantes esses são mesmo em atividades tão pretensamente ‘livres’ como brincadeiras e fantasias. Mas o que importa aqui é como tais enquadres instigam composições inusitadas entre os sujeitos em questão. Mesmo assim, a pergunta permanece: o que é um ‘sujeito antropológico’? Ou, antes disso, o que é um ‘sujeito’, afinal? De modo geral, as ‘definições’ que Wagner nos oferece no ‘Glossário de conceitos não familiares’ do final de seu livro gozam da própria busca de definições ‘claras e distintas’ que teria nos levado a consultar tal glossário: certamente não é um glossário cartesiano. Ainda assim, as três definições que Wagner oferece a respeito do ‘sujeito’, do ‘sujeito atiILHA volume 12 - número 1

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vo’ e do ‘sujeito da antropologia’ parecem relativamente claras em si e entre si, comparadas a várias outras que constam no glossário: começa-se com o sujeito “[...] sujeitado ou contra-face sub-determinada da agencia”; procede-se ao sujeito como “ponto da ação”, com “a potência [...] de inverter” o caráter passivo do primeiro sujeito; e chegamos, por fim, ao “conhecimento humano daquilo que a condição humana pode ser [...] como se uma síntese fosse possível” (Wagner, 2001, p. 254). Até aqui, tudo bem (será?). Mas, traduzidos e resumidos desse modo um tanto ‘sintético’, arriscamos perder justamente o humor nos detalhes e os detalhes do humor, tanto aqui como na composição do livro, que constantemente nos desviam de uma compreensão linear – detalhes que nos lembram, entre outras coisas, justamente da dimensão subjuntiva da suposição, “como se uma síntese fosse possível”. Ou seja, o próprio modo como Wagner nos apresenta o ‘sujeito’ em questão já sugere que, se fôssemos dissociar as questões sérias a seu respeito do humor como são comunicadas na sua escrita, arriscaríamos torná-las uma piada às nossas custas – às custas, no caso, da própria vitalidade da antropologia do ‘sujeito’ implicada no seu modo de escrever. Passando dessa brevíssima introdução ao sujeito no livro de Wagner, o que de fato envolveu apenas um salto de seu prefácio ao seu glossário como apresentado, pulando por cima do corpo do livro em si, passo à seguinte afirmação a ser elaborada aqui: se o ‘sujeito’ da antropologia for estendido para a ‘antropologia’ daquele assim sujeitado, então o livro de Mestre Russo e o ‘Mestre Russo’ desse livro podem juntos nos levar a uma outra compreensão desse ‘nosso’ sujeito. E, no caso considerado aqui, sugiro que a relação entre o livro e seu autor seja uma função do duplo movimento entre o sentido do movimento e o movimento do sentido que ambos implicam de modos distintos com respeito ao movimento dos corpos na roda de capoeira. Ou, pelo menos, é através dessa figuração cinestética que busco traçar a relação entre a roda de capoeira, tal como compreendida através do livro de Mestre Russo, e a roda da compreensão, tal como figurada por Wagner.

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Desse modo, a próxima seção diz respeito ao problema da autorreferência: se um dos principais fatores que fazem um ‘texto’ diferir do ‘discurso’ é a separação dos signos fixados no texto do elo direto com o sujeito de enunciação (Geertz, 1973; Ricoeur, 1971), mesmo assim, indícios desse sujeito-tornado-autor permanecem no texto (Fernandez, 1985). No caso em questão, encontramos tais indícios não só nas palavras escritas por Mestre Russo, mas no seu próprio nome, assim como em imagens fotográficas e até em citações de outros mestres que fazem parte igualmente do texto em questão. *** Logo nas primeiras frases da Apresentação de seu livro, Mestre Russo de Caxias afirma: Este livro foi escrito para proporcionar ao leitor informações relevantes sobre a história da capoeira em Duque de Caxias. Nesse volume serão encontrados fatos que me consolidaram como pessoa e que me deram estrutura suficiente para fazer da minha vivência na capoeiragem uma história que se revela em forma de documentário (2005, p. 10).

Repara-se aqui como os dois ‘sujeitos’ em questão – Mestre Russo e a própria capoeira – estão claramente emaranhados; claramente, pois só seria ‘confuso’ se fôssemos pressupor a distinção entre eles. Repara-se igualmente no uso da primeira pessoa, mas na forma passiva – são os próprios fatos que “me consolidaram como pessoa e que me deram estrutura”: ao mesmo tempo que o texto assim se coloca de um modo mais autobiográfico do que biográfico, deslocase a presença do ‘eu’ para além do sujeito ativo da frase. Em certa medida, isso lembra a convenção etnográfica de minimizar a presença do ‘eu’ que escreve, incluindo tais indícios do etnógrafo no texto apenas na medida em que autenticam os ‘fatos’ consolidados no campo, mas sem tornar o próprio etnógrafo o sujeito da etnografia. Igualmente lembra certas experimentações etnográficas associadas à antropologia dita ‘pós-moderna’ – experimentos que, ao mesmo tempo que tanto criticam quanto brincam com as convenções da escrita

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etnográfica, arriscam acabar mitificando o “antropólogo como herói” (Kapferer, 1988). Além do modo de escrever em si, encontramos outros indícios do deslocamento do autor como sujeito central e ativo do livro. Evidentemente, tais indícios móveis destacam-se contra o fundo de autoposicionamentos mais convencionais, como no caso do retrato ‘close-up’ do rosto em perfil de Mestre Russo na capa de trás do livro: ao mesmo tempo que tal foto segue a convenção de mostrar a visagem do autor do livro, seus olhos ficam ocultos pela sombra de seu chapéu de palha estilo panamá – um chapéu bastante comentado, aliás, como parecendo “ser fundido à sua cabeça, por nunca cair na hora do jogo” (Nunes, 2004 apud Russo de Caxias, 2005, p. 127). Tal retrato, pelo viés da conjugação imagética do ditado que diz que os olhos são a ‘janela da alma’ com a visagem impenetrável do bom malandro carioca ressaltada pela sombra do chapéu, nos faz perceber a própria ocultação de seu olhar como se revelasse sua ‘alma’ de capoeirista, pois o que seria um capoeirista sem malandragem? (E o que seria um malandro sem seu chapéu?) Virando o livro para sua capa de frente, o próprio nome do autor, Mestre Russo de Caxias – que é tudo menos um ‘nome próprio’ –, oferece outra face desse deslocamento do autor como um ser-emmovimento. Percebe-se aqui como marcas do outro ‘sujeito’ do livro – “a história da capoeira em Duque de Caxias” – já estão inscritas nesse nome, marcas tanto da prática como do lugar: ‘Mestre’ e ‘Caxias’. Já o nome que sobra, ‘Russo’, implica algo mais (ou menos) do que o ‘individuo’ por trás desses títulos sociais ou a fonte da individuação dessas marcas. Como constatamos na legenda de uma foto que encontramos duas páginas antes da Apresentação do autor, de “Jonas ‘Russo’ Rabelo” e seus irmãos quando meninos, este nome, Russo, é ele mesmo um apelido. Curiosamente, nessa foto que mostra os quatro irmãos sentados em frente à entrada de uma casa, quem menos aparece é o próprio Russo; devido à sua sobre-exposição na foto, é como se a luz atravessasse seu corpo. Mas, ao voltarmos umas folhas atrás para a página da Dedicatória, encontramos uma solução possível para a charada que a escolha dessa imagem borrada do auILHA volume 12 - número 1

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tor nos apresenta. Pois aqui, nas palavras dirigidas a seu primo, o ‘Crioulo’, consta que esse primo é “a pessoa que me deu iniciação na capoeira e incentivo para eu continuar como capoeirista, tornando a arte do jogo a essência da minha alma” (2005, p. 4). Ou seja, levando essas palavras a sério, podemos imaginar que, naquela foto, ‘Russo’ ainda não havia adquirido a essência daquilo que viria a defini-lo como ‘pessoa’ – e desse modo daria substância a seu corpo. Mesmo deixando de lado tal leitura como mera ‘brincadeira’ da minha parte, essa e outras referências à capoeira como consistindo na sua própria ‘alma’ sugerem que os ‘títulos sociais’ de ‘Mestre’ e ‘Caxias’, que agora fazem parte de seu nome como autor e pessoa, são algo mais do que índices contextualizantes das conexões ou dos compromissos com a prática e o lugar que o definem como uma pessoa social. A substituição desses honoríficos no lugar de seu nome e sobrenome, Jonas e Rabelo, deixando apenas o apelido no meio como laço de continuidade, passa assim a sugerir que “sua mais constante natureza” – voltando a citar Wagner (1981, p. 139; 2010a, p. 213) – “não é a de ser mas a de devir”. Pois, se formos seguir o processo de substituição de seus nomes, reparamos o seguinte: primeiro, ‘Russo’ figura como o apelido contra o fundo de seu nome e sobrenome – Jonas e Rabelo; mas, com a substituição eventual desses nomes por ‘Mestre’ e ‘de Caxias’, Russo agora assume o lugar de fundo contra essas figuras – ao mesmo tempo que essas figuras estendem-se e assim estendem o próprio Russo a outros fundos ou ‘contextos’. Evidentemente, tal substituição de nomes, por si só, poderia ser tomada como mera mudança na superfície da pessoa ‘pública’ que não necessariamente afeta a substancialidade do ‘eu’ em questão. Mas aqui o termo ‘mestre’ não se refere apenas a uma posição hierárquica e institucional a ser ‘ocupada’ por dados indivíduos, mas a “algo corporificado e encarnado, se quiserem, na pessoa” (Turner, 2005, p. 146-147). Ou seja, o título de mestre implica uma “mudança ontológica” (p. 147) efetuada por um longo processo de aprendizagem ritualizado através dos anos, o que se trata não da “mera aquisição de conhecimento, mas de uma mudança no ser” (p. 147). E o que mais importa aqui é que encontramos indícios indiretos dessa mudança no livro. ILHA volume 12 - número 1

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Voltando à questão da ‘alma’ de Mestre Russo e dos indícios a seu respeito que constam no livro de sua autoria, importa notar a citação no livro de um ditado de um dos principais ‘ancestrais’ da capoeira – tido por muitos como o principal convencionalizador do estilo ‘tradicional’ da Capoeira Angola. O ditado encontra-se numa seção do livro chamada “Rememorando Mestre Pastinha”, que consta, por sua vez, como parte de uma série de outras ‘rememorações’, todas de antigos mestres reconhecidos como ancestrais da capoeira – exceto, talvez, a última, chamada “Rememorando Jorge Amado”. As ‘rememorações’ não seguem uma ordem cronológica, se bem que todas começam com referências à data de nascimento do mestre sendo rememorada, uma convenção biográfica que só não é utilizada para o próprio autor, cuja referência à sua data de nascimento (1956) só encontramos na penúltima seção do livro, “Sobre o autor”, mais um indício do deslocamento enigmático do sujeito em questão. Mas agora passo à citação do ditado de Mestre Pastinha: “O capoeirista não é aquele que sabe movimentar o corpo, mas sim, aquele que deixa o corpo ser movimentado pela sua alma” (Pastinha apud Russo de Caxias, 2005, p. 40). Uma vez que, em sua dedicatória ao primo, Mestre Russo já havia afirmado que “a arte do jogo” consistia na “essência” de sua alma, levar ambas essas afirmações a sério implica que a alma que movimenta seu corpo no jogo é o próprio jogo tornado alma. Sem buscar explicar ou fixar o movimento da alma do autor em questão, apenas acrescento uma hipótese. Apropriando os termos encenados nas ‘conversas’ entre Wagner e o coiote em Coyote Anthropology (2010b), pergunto se o devir implicado no próprio nome de Mestre Russo de Caxias e estendido nas suas rememorações de outros mestres e personagens envolve menos a personificação (“impersonation”) de certa identidade sociocultural do que a ex-personificação (“expersonation”) de sua alma como uma alma-em-movimento que, desse modo, menos “se rememora” através das referências aos outros mestres do que se prolifera a partir dessas variadas incorporações ancestrais da alma da capoeira.

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De todo modo, termino esta primeira seção com um último indício do movimento enigmático que se realiza no livro através do deslocamento de certas convenções com as quais se costuma posicionar o autor como sujeito central do livro. Ainda antes da foto borrada de Russo como menino, encontramos um retrato mais formal, dessa vez de um adulto cuja barba branca já sugere certa idade. Só que esse retrato, que assume um lugar de destaque na página logo depois daquela do título, não é do autor do livro, mas, como diz na legenda, consiste num retrato do “autor da pintura da capa do livro”. Mas, antes de voltar àquela capa, desvio nossa atenção primeiro para a imagem da capa de um outro livro. *** Trata-se, no caso, de uma imagem ausente – ausente da capa de A invenção da cultura (Wagner, 2010a), tal como traduzido e publicado no Brasil. A imagem em questão, presente na capa original do livro publicado em inglês, consiste na litografia bastante familiar de Maurits Escher, Drawing Hands. Deixo o título em inglês, no caso, porque só quando fui traduzi-lo me dei conta de que, como ele repete em palavras a própria duplicidade singular da imagem, teria que traduzi-lo em algo como Desenhando mãos e Mãos que desenham – ao mesmo tempo. Mesmo em inglês, portanto, para ler o título conforme a figuração da imagem, teria que ler ambos os significados como que simultaneamente. De fato, poderia ser dado o título Mãos que se desenham, o que em inglês seria Hands Drawing Themselves, mas, desse modo, perderia justamente o paradoxo no cerne da imagem. Ou seja, só traduzindo ‘errado’ daria certo, mas nesse caso dando certo perderia a graça. Mas por que nos determos nessa imagem? Na verdade, quando reparei sua ausência na capa de A invenção da cultura no Brasil, logo associei tal mudança a um aspecto um tanto recorrente na recepção em geral bastante inspirada das ideias de Roy Wagner no Brasil: no caso, a tendência de contrapor Wagner aos proponentes de uma antropologia dita ‘pós-moderna’. Pois eu vi a imagem de Escher em

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questão como se referindo a um ato comumente associado a esta vertente teórica da antropologia – o ato de escrever; não é por acaso que o título da principal obra referida nas críticas da ‘antropologia pós-moderna’ no Brasil é Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986). Só que, em algum momento, me dei conta de algo que talvez teria sido óbvio desde já se não fosse essa minha reação à figuração contrastante de Wagner: que, no caso, o desenho de Escher não trata propriamente do ato de escrever, mas sim de desenhar. Portanto, a motivação inicial por trás da minha referência à imagem ausente se desfez. Ainda bem! Pois foi através dessa minha ‘falha’ na percepção da imagem que passei a reparar que é justamente nisso que consiste o aspecto singular de Wagner com respeito à problemática do escrever da antropologia: ele menos escreve do que desenha com palavras – e as figurações que ele assim traça assemelham-se de certo modo a essa do Escher. A esse respeito, Tim Ingold (2007, p. 3) oferece certo fundo antropológico para essa figuração, ao ressaltar tanto as continuidades quanto as diferenças entre esses modos: Enquanto o escrever for entendido em seu sentido original como uma prática de inscrição, não pode haver nenhuma concreta distinção entre escrever e desenhar [...]. Na digitação e impressão, é quebrado o laço íntimo entre o gesto manual e o traço que inscreve. O autor conduz o sentimento por sua escolha de palavras, não pela expressividade de suas linhas.

No caso do Wagner, o modo como ele articula suas palavras e compõe seus conceitos e(m) seus textos introduz figuras recursivas no fluir do argumento de que são tudo menos ‘floreios’ ou ‘embelezamentos’ às proposições teóricas e aos dados etnográficos oferecidos. Vejamos, por exemplo, sua discussão das formas de inscrição iconográfica do povo Walbiri na Austrália Central, descritas por Nancy Munn (1973 apud Wagner, 1986, p. 19-24), que dizem respeito tanto aos desenhos de pisadas que vários animais, assim como eles mesmos e seus ancestrais, deixam ao movimentar-se através da paisa-

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gem quanto às impressões deixadas na areia que acompanham os relatos orais dessas trajetórias. Como Wagner (1986, p. 21) comenta a respeito dessas múltiplas formas de rastro: Pois um rastro representa a si mesmo como um microcosmo, como ser e movimento comprimidos em um plano bidimensional, e desta forma implica na incorporação mais plena deste ser e deste movimento como aquilo que fez o rastro.

Mais à frente, ele estende essa observação da seguinte forma: […] a dialética entre codificação microcósmica e produções estética sensorialmente ricas não é de forma alguma limitada aos walbiri, ou aos aborígines do deserto central. Ela é de fato a condição do simbolismo humano: uma polaridade ou contraste que opõe uma codificação simbólica artificialmente restrita a uma imagética icônica também artificialmente expandida (Wagner, 1986, p. 23).

É algo nesse sentido que sugiro quando digo que Wagner escreve “desenhando”. De forma semelhante ao sentido figurado por esses rastros ou pela própria imagem de Escher, ambos implicam corpos de três dimensões, apesar de serem comprimidos em um plano de apenas duas. Mas como assim? Seu modo de pensar escrevendo e de escrever pensando não só representa ou se refere, mas – de certa forma – se assemelha às formas culturais por ele descritas. Apenas de certa forma, pois certamente não se trata de imitar tais formas, mas de criar uma relação analógica entre os fluxos de sua escrita e os processos de criação, convencionalização e subjetivação das formas ‘nativas’ em questão – inclusive as de sua ‘própria’ cultura. Digo isso no sentido de que seu modo de escrever tende a configurar ou dar corpo à dimensão não referencial, figurativa da linguagem, que tanto sustenta quanto desloca e inverte sua função referencial. Ele escreve com algo da duplicidade singular das palavras conjugadas do título da imagem: Drawing Hands. Ou seja, ao desenhar tais formas-em-movimento, ele tanto salta quanto ressalta as diferenças sendo traçadas – e a relação recursiva entre elas. Ao mesmo tempo, Michael Taussig (2009, p. 270) comenta a respeito da conceituação do ato de desenhar de John Berger: “uma ILHA volume 12 - número 1

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linha traçada é importante não tanto pelo que registra quanto pelo que te leva a ver”. Seguindo nesse sentido, o escrever de Wagner também se refere a outros modos de figurar a linguagem e configurar o mundo ao redor, convertendo um no outro como se movimentando num laço torcido mas contínuo, apesar de seus nós – como os pontos dos lápis naquele desenho, onde tanto se articula à diferença entre o ‘dentro’ e o ‘fora’ quanto a desfaz, e onde o fim se encontra com o começo e o ‘outro’ começa onde o ‘eu’ acaba. Tendo aberto esse longo parêntese teórico-figurativo referindo-me a uma imagem ausente da capa de A invenção da cultura, fecho o parêntese referindo-me à imagem da capa de An Anthropology of the Subject (2001), que nesse caso consiste numa figura igualmente recursiva e autocriadora, só que essa se cria através de um relâmpago saindo de duas mãos, em vez do grafite deixado pelo lápis nas mãos de Escher – neste caso a figura foi desenhada pelo próprio autor do livro!

Figura 1 – A rede de Indra Fonte: Wagner, 2001, p. 14 (desenhado pelo autor). ILHA volume 12 - número 1

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*** Sem buscar ligar, por enquanto, essa discussão de volta ao ‘sujeito’ deste ensaio, volto nossa atenção há uns dez anos antes da publicação do livro de Mestre Russo. Voltamo-nos, no caso, à certa forma particular de roda que aconteceu no segundo andar do Sindicato dos Petroleiros no Centro do Rio de Janeiro, onde o grupo de Capoeira Angola ao qual eu pertencia praticava esse estilo dito ‘tradicional’ da capoeira. Com esse outro desvio busco elaborar um pouco do fundo etnográfico contra o qual a figura do livro de Mestre Russo de Caxias se destaca – se bem que não é tão simples assim. No caso, estávamos sentados numa roda, só que não no chão, como seria o caso de uma roda de Capoeira (Angola), mas em cadeiras ao redor de uma ‘mesa redonda’ improvisada pelo agrupamento de várias mesinhas de escritório que havia na sala onde treinávamos capoeira três vezes por semana, mesas tipicamente empurradas para os cantos da sala para abrir espaço para treinar. Toda semana, naquela época (entre 1994 e 1996) e naquela sala cedida pelo Sindicato, treinávamos segundas, quartas e sextas durante duas ou até três horas, e fazíamos, uma vez por mês, uma ‘roda de rua’ na Praça da Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro. Periodicamente – também uma vez por mês em teoria, um pouco menos na prática –, nós substituíamos uma roda de capoeira por uma dessas rodas de leitura. Se bem que essas ‘rodas’ eram apenas uma versão mais formal das falas que se seguiam quase toda aula de capoeira – ‘conversas’ comumente consistindo mais propriamente num monólogo do mestre que se estendiam às vezes por mais de uma hora. Ou seja, tanto a substituição ‘ritualizada’ da capoeira pela ‘papoeira’ – como costumávamos brincar – quanto o próprio deslocamento das mesinhas dos cantos da sala para compor a ‘roda’ no seu centro envolviam justamente uma inversão de figura e fundo, em que o discurso metacultural literalmente tomava o lugar da prática cultural da qual se falava a respeito ou ao redor. Mas aqui as próprias conversas que se desdobraram nesses momentos também eram capazes de, se não reverter tais inversões, pelo menos tencionar ou vibrar as suas frestas – e, assim, permitir ILHA volume 12 - número 1

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vislumbrar um ofuscar desses limites. Sem mais contextualização explícita da minha parte, deixe-me passar à ‘transcrição direta’ de uma dessas falas, apenas inserindo os nomes dos ‘sujeitos’ em questão. Nesse caso, faço uso dessa ficção objetivista de apresentar a fala em questão, pretensamente sem ‘interferência’ da minha parte (além de certas pequenas elisões do ‘ruído’ da oralidade), justamente para mostrar como a própria fala que segue acaba abalando essa pretensão. João: – É o seguinte: a gente tem escolhido alguns textos para fazer esses seminários de leitura. Esses textos têm um objetivo, que é ao mesmo tempo trabalhar e aprofundar a questão da capoeira [...] a gente entender um pouco mais sobre aquilo que nós estamos praticando, quer dizer, o que nós estamos treinando aqui dentro, e outros textos também, em que se encontra [...] que nos informam sobre a questão do negro no Brasil, sobre outros aspectos da cultura. E este texto agora, […] que dá uma introdução geral, apesar de ter uns erros, mas dá uma visão da capoeira, comparando a capoeira Angola com Regional [...]. Daniela: – Quais são os erros que tem neste texto? João: – É porque tem uma parte aqui onde fala que João Grande e João Pequeno foram alunos do Mestre Bimba [...]. Sacanagem, né? Eu não sei se isso foi na hora de copiar ou se entendeu errado, mas nenhum desses dois foi aluno do Bimba. Baba: – Essa falha, esse tipo de falha ocorre. Quem não conhece direito a história quer falar coisas que não sabe então puxa a imaginação com esse tipo de falha. Isto é normal, a gente não tem que se espantar […] com certas histórias que se ouve falar, ouviu dizer, não [...]. A gente nunca deve se impressionar com isso, que às vezes as pessoas escrevem certos textos nos jornais, às vezes até livros, que não têm nada a ver com a coisa genuinamente da Capoeira Angola. Não tem a ver. A gente tem que saber que [...] muita coisa que se tem escrita, milhões de livros, simplesmente se você pegar para ler profundamente, não tem nada a ver com capoeira – o cara não conhece nada de Capoeira Angola, ele é um curioso que simplesmente sabe falar meia dúzia de palavras de capoeira e ILHA volume 12 - número 1

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tem a cisma de achar que ele sabe – não sabe nada! Eu já presenciei vários contextos dessas pessoas que botam coisas escritas que não têm nada a ver, não manja nada, só o que um falou, o outro disse, e alguém concluiu para ele, mas saber a fundo, não sabe. Eu acho que a gente tem que saber que a consciência da Capoeira Angola, ela tem que ser sempre lida, na minha concepção, lida por quem gosta da capoeira, quem tem admiração, quem tem laços, eu não sei, fraternos ou espirituais com a capoeira […].

Voltando-nos para o livro de Mestre Russo através da perspectiva afirmada acima por (atualmente, Mestre) Baba, na medida em que a grande maioria daquele livro consiste em citações das falas e de textos de outros praticantes e pesquisadores, ele poderia ser lido como exemplificando justamente o pior tipo de texto sobre capoeira – um daqueles ‘milhões’ de livros que apresentam “só o que um falou, o outro disse, e alguém concluiu para ele [...]”. Ao mesmo tempo, Mestre Russo claramente sabe falar bem mais do que “meia dúzia de palavras de capoeira” – mesmo se o seu ‘sotaque’ nessa linguagem corporal difira daquele de Baba, por nunca ter ‘se convertido’ num adepto da Capoeira Angola. Como escreve Clícia de Miranda no Anexo do livro, inserido logo depois da Apresentação: “O livro de Mestre Russo, mais do que uma obra biográfica e de contextualização da capoeira carioca, é uma mostra do poder de conhecimento que esta cultura permite [....] um conhecimento apreendido pela arte da cabeçada e da rasteira” (Almeida apud Russo de Caxias, 2005, p. 14). Mas é justamente aqui que reside a principal questão a ser elaborada: como figurar a relação entre tal conhecimento corporal e a composição do livro de Mestre Russo? Ou como tal relação é já configurada no livro? E importa salientar aqui que a questão é “como” e não “qual é” tal relação: pois tal relação consiste não num ‘objeto’ ou ‘texto’ a ser interpretado pelo antropólogo, mas numa figuração etnográfica e encorporada do sujeito antropográfico. Além do deslocamento constante dos indícios da voz autoral e da constante substituição dessa voz por citações de outros textos e depoimentos das mais variadas fontes, o livro apresenta centenas de personagens de modos bastante distintos, desde a série de ‘rememorações’ dos ancestrais que já comentei, passando por citaILHA volume 12 - número 1

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ções e comentários a respeito de Baden Powell, do tropicalismo, da proibição da capoeira, da censura cultural da Ditadura Militar. Não há nenhuma seção diretamente sobre a presença da mulher na roda, mas há uma seção contada em primeira pessoa da experiência de uma capoeirista mulher entrando na Roda Livre pela primeira vez e tocando o berimbau.6 Logo após a seção criticando a ‘academização’ da capoeira como um esporte disciplinado, citam-se várias longas passagens tiradas de teses acadêmicas que mencionam a Roda Livre. Para além dessas referências tão variadas entremeadas com histórias da roda de rua em si e do envolvimento do autor nessa roda, encontram-se, ainda, mais de cem fotos de capoeira e retratos de praticantes que frequentavam a roda – entre elas algumas de minhas fotografias. Apresentado desse modo, o livro em questão parece até uma caricatura do comentário de Marilyn Strathern (2004, p. 10) de que “these days not all texts are intended to ‘add up’” (“estes dias nem todos os textos ‘se completam’”). Ela continua: Textos que não se completam são supostamente encontrados nos gêneros pós-modernos que deliberadamente justapõem incomensuráveis narrativas. A constatação que completude é uma retórica em si mesma é incansavelmente exemplificada em colagem, ou coleções que não coletam mas exibem a intratabilidade de elementos díspares. [...] um tipo de acentuação de cortes de eventos percebidos, momentos, impressões. E se os elementos são apresentados como vários re-cortes, eles são inevitavelmente apresentados como partes oriundas de outros tecidos, de partes maiores em algum outro lugar (p. 11).

De fato, encontramos justamente uma colagem fotográfica de 64 retratos de capoeiristas (oito deles sendo de Mestre Russo) na página ao lado do Sumário com a longa lista de títulos das 37 seções do livro(!); assim localizada, a colagem poderia bem ser lida tanto como sinédoque quanto como metáfora do livro, cujas ‘partes’ são apresentadas mais linear e literalmente no Sumário ao lado. Mas aqui devemos entrar na ‘roda’ dessa comparação que as palavras de Strathern nos convidam a fazer com o livro de Mestre Russo com ILHA volume 12 - número 1

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bastante precaução, contestando a crítica ali implicada. Primeiro, o livro de Mestre Russo certamente não foi escrito como um exemplar da literatura ‘pós-moderna’ – em que tal forma experimental de composição tornou-se certa convenção. Segundo, esse livro, como forma particular de colagem, é menos dirigido a um leitor qualquer que a pessoas que já têm alguma ligação ‘fraternal’ ou ‘espiritual’ com a capoeira (como dizia Baba acima) – não é por acaso que Mestre Russo costuma vender seu livro justamente nas rodas que frequenta. Desse modo, o conhecimento encorporado desses leitores já ajuda a ‘saltar’ entre as citações apresentadas no texto, sem mais explicações ou a constante presença de uma voz em terceira pessoa para interligar tais ‘fragmentos’. E, terceiro, eu diria que as ‘incomensuráveis narrativas’ desse livro, mais do que ‘deliberadas’, são improvisadas ou, pelo menos, seu modo de textualização apela à própria natureza improvisada do jogo de capoeira e mais particularmente do “grupo de rua” que inaugurou a Roda Livre. Para dar corpo a esta última afirmação, passo às palavras de Mestre Rogério (apud Russo de Caxias, 2005, p. 63), velho “companheiro de batalha” de Mestre Russo, cuja voz aparece várias vezes no livro: Eu acho uma situação interessante com relação a nossa saída da academia do Mestre Barbosa, que foi um racha, e essa dissidência não virou um grupo de salão, mas virou um grupo de rua, que é um sistema livre de se organizar [...]. [E]ncontramos uma situação que não tinha leis determinadas, mas existia a Lei, cada um a trazia, sabia o que tinha que ser feito na roda de capoeira e cada um trazia o seu pedaço [...] e não existia, na verdade, na época, uma pessoa que dissesse ‘é assim’; [...]. Não havia um Mestre entre nós, mas todos nós nos orientávamos em fazer a capoeira.

Note-se, de passagem, o aspecto um tanto radical de tal afirmação, no contexto da capoeira, considerando a quase obrigatoriedade de haver um mestre, segundo tantos mestres e praticantes, para os quais não haver um mestre costuma ser associado a uma renúncia à própria ‘tradição’ dessa arte. Mas nesse caso foi justamente um ato ILHA volume 12 - número 1

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de dissidência com tal mestre que levou à formação dessa roda de Duque de Caxias, que se tornou, por sua vez, a roda certamente mais ‘tradicional’ no Rio de Janeiro, em grande parte por ter durado ou ‘resistido’ tanto tempo sem ‘pertencer’ a ninguém – o próprio Mestre Russo faz questão de ser chamado de ‘zelador’ (em vez de ‘mestre’) da Roda Livre. E foi essa própria roda de rua – como testemunham vários dos ‘idealizadores’ ou de ‘expressões’ da Roda Livre – que eventualmente passou a ‘formar’ seus mais antigos participantes como reconhecidos ‘mestres’. Mas a descrição de Rogério faz algo mais do que apontar para a singularidade da ‘história de vida’ da Roda Livre. Quando lida como metáfora do próprio texto em que é inserido, sugere que Mestre Russo incorporou algo da ‘forma livre’ de expressão implicada naquela roda na própria composição de seu livro – assim como no devir de sua própria vida, como já discuti. Mais (ou menos) do que implicar várias outras ‘partes’ cortadas de outros lugares, e desse modo uma coleção de fragmentos que “não se completam” (Strathern, 2004, p. 10), as variadas partes e igualmente variados personagens dos quais o livro é composto implicam um constante movimento de recomposição – assim como, com respeito à roda em si, cada componente “trazia o seu pedaço” que contribuía ao mesmo tempo com a ‘Lei’ da composição da roda em questão. E, quando o livro de Mestre Russo é lido dessa forma, como não só descrevendo ou se referindo ao jogo improvisado da Roda Livre, mas incorporando sua forma livre no próprio fluir do texto, saltando entre as partes das quais é composto, tal perspectiva envolve uma inversão de figura e fundo. Essa é uma inversão semelhante – mesmo que em sentido reverso – àquela da roda de leitura de uns dez anos atrás, tal como descrevi antes, que periodicamente substituía a nossa roda de capoeira no espaço improvisado na sede do Sindicato dos Petroleiros. Quando figurada nesse sentido, ressaltando o movimento ‘encorporado’ que anima o desdobrar do texto, é a própria Roda Livre – que não por acaso é quase sempre referida no livro com letras maiúsculas, assim como um nome próprio – que se torna o principal outro sujeito ativo (ver acima Wagner, 2001) do livro em questão, além de seu autor (ou, aliás, de seus leitores). ILHA volume 12 - número 1

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Finalizando essa reflexão, chegamos à seguinte questão: se o livro de Mestre Russo for assim lido como um relato móvel – mas tudo menos linear – e dançante – mas também marcado por conflitos – da ‘história da vida’ da Roda Livre, então como é que tal vida narrada se relaciona com a antropologia do sujeito, tal como elaborada por Wagner? Aqui, deixe-me retornar nossa atenção à segunda frase da Apresentação de Mestre Russo, só que dessa vez precedendo tal frase com uma de Wagner, como se fizessem parte da mesma reflexão: Perceber o mundo como a reação do ‘eu’ ao mundo, é claro, é perceber um mundo refratado, defletido através do prisma do ‘eu’ (Wagner, 1991). Nesse volume serão encontrados fatos que me consolidaram como pessoa e que me deram estrutura suficiente para fazer da minha vivência na capoeiragem uma história que se revela em forma de documentário (Russo de Caxias, 2005, p. 10).

Lidas em conjunto, tais frases nos apontam para o enigma de como a ‘pessoa’ de Mestre Russo serviria tanto como projetor quanto como tela de tal “documentário” sobre “a história da capoeira em Duque de Caxias” (Russo de Caxias, 2005), como consta na frase anterior no livro em questão. Nesse sentido, a relação entre Mestre Russo, seu livro e a roda a que diz respeito envolveria um movimento giratório semelhante àquele já comentado anteriormente com respeito a Drawing Hands de Escher. Tal ‘roda’ poderia ser igualmente assemelhada aos desenhos dos Walbiri – e o “simbolismo humano” em geral –, tais como comentados por Wagner (1986, p. 23) em Symbols that Stand for Themselves, como envolvendo a transformação contínua entre “uma codificação simbólica artificialmente restrita” e “uma imagética icônica também artificialmente expandida”. Assim como anteriormente nos voltamos para o próprio desenho “autogerador” de Wagner que consta na capa de An Anthropology of the Subject, terminamos essa reflexão voltando-nos, enfim, para a imagem da capa da frente do livro de Mestre Russo. Pois, naquela imagem, pintada por um pintor que virou amigo de Mestre Russo, Aluysio Zaluar, encontramos outra figuração instigante de uma rodaem-movimento. ILHA volume 12 - número 1

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Figura 2 – Pintura de Aluysio Zaluar Fonte: Russo de Caxias, 2005, capa de frente.

O movimento em questão, na verdade, desdobra-se com respeito ao próprio movimento de Mestre Russo na roda da pintura: seu ‘parceiro’ (e oponente) no jogo só aparece em uma das cinco figurações do mestre na pintura. A roda, ela mesma, faz igualmente parte do movimento figurado na pintura, pois os seus dois ‘lados’ – se um círculo pode ter lados – encontram-se dobrados, ou desdobrados, um por cima do outro; desse modo, as duas perspectivas contrárias – a dos músicos e a da audiência – são figuradas no mesmo plano de composição da pintura. Mas esse modo de figurar a roda em termos da mútua reversão dessa perspectiva face a face compõe algo como o fundo comum às figurações de Mestre Russo – essas parecendo deslocar-se no sentido horário. Assim como o livro, a pintura em questão passa a “compreender” a perspectiva deste meu ensaio, desdobrando as partes que o compõem como também envolvidas numa roda de conexões móILHA volume 12 - número 1

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veis. A primeira figura de Mestre Russo na pintura é agachada ao ‘pé do berimbau’, no canto direito acima, em frente aos músicos, com seu braço parcialmente levantado indicando o início do movimento ou de ‘entrada’ na roda: essa é a introdução que também introduz indícios da ‘pessoa’ de Mestre Russo. A segunda figura mostra o mesmo mestre fazendo uma ‘chamada na mandinga’ que consiste em um ‘jogo dentro do jogo’ com suas próprias regras, ao mesmo tempo que faz parte do jogo; essa é o nosso parêntese teórico-figurativo sobre Drawing Hands de Escher e sobre como Wagner escreve de forma parecida. A terceira figura consiste num jogo em pé, com Mestre Russo “encarando” seu parceiro e oponente virtual na roda; foi assim que, no pequeno relato etnográfico da roda de leitura, Baba encarou de frente a pretensão de ‘representar’ a capoeira através da escrita sem ter ‘laços fraternais’ com o jogo em questão. A quarta imagem consiste no abraço que serve como conclusão do jogo, assim como busco aqui ‘completar’ o jogo deste ensaio – mas tome cuidado na hora de aproximar-se! E a quinta imagem (acima no canto esquerdo) é a própria pessoa de Mestre Russo saindo dessa ou qualquer outra figuração e levando a Roda Livre consigo para o mundo afora. Notas 1

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Início de um poema de Trinh T. Minh-ha (1989, p. 5): “me fizeram crer / que nós que escrevemos também dançamos / mas nenhum dançarino escreve / (da forma como escrevemos) / nenhum escritor dança / (assim como elas dançam)”. O que é um livro ‘popular’? Tal adjetivo indica mais claramente o que não é do que o que é: no caso, não é um texto ‘acadêmico’ – como este, por exemplo. Mas tal distinção é capaz de confundir mais do que iluminar, na medida em que leva a pressupor que o primeiro seja necessariamente mais legível (readerly), no sentido dado por Barthes (1974) de se direcionar a uma leitura passiva em que o sentido do texto é tido como pré-constituído. Como veremos, o livro em questão assemelha-se mais ao que Barthes elabora como um texto escrevível (writerly), por prestar-se a múltiplas leituras e por demandar que o leitor contribua ativamente no tecer de seu significado. Importa notar aqui que a ‘antropografia’, tal como conceituada por Jean-Paul Dumont (1986), envolve uma reflexividade voltada menos às interações do etnógrafo na situação de pesquisa do que ao próprio processo de escrever. “[…] the fact that no particular theoretical approach, even in combination with others, can be used effectively to gain a purchase over the anthropological subject.”

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Sherry Ortner (2007, p. 376) chega a afirmar que “o desenvolvimento da teoria social e cultural durante todo o século XX” poderia ser figurado “como uma luta sobre o papel do ser social – a pessoa, sujeito, ator ou agente – na sociedade e na história”. Se assim for, a história do nosso sujeito mais especificamente antropológico e textual figura-se contra esse fundo sociológico e ‘contextual’ bem mais amplo de teorias do sujeito e afins. Trata-se de Gegê, uma reconhecida capoeirista com quem eu mesmo já joguei em outras rodas, tanto no Rio quanto nos Estados Unidos. Com respeito à questão da ‘mulher’ no livro, há também outros indícios dispersos pelo livro que no mínimo marcam essa ausência apenas relativa – como umas poucas mulheres que constam nas fotos ou os comentários aqui e ali da esposa de Russo, que em certo momento diz: “Quando eu conheci o Jonas – Russo – sabia que ele era casado com a capoeira, aceitei ser sua amante e dei a ele dois filhos” (apud Russo de Caxias, 2005, p. 94).

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TRINH, Minh-ha. Woman, Native, Other. Bloomington: Indiana University Press, 1989. TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Ed. UFF, 2005. WAGNER, Roy. The Invention of Culture. Chicago: University of Chicago Press, 1981. ______. Symbols that Stand for Themselves. Chicago: University of Chicago Press, 1986. ______. An Anthropology of the Subject. Berkeley: University of California Press, 2001. ______. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010a. ______. Coyote Anthropology. Lincoln, NB: Nebraska University Press, 2010b. Recebido em: 29/09/2011 Aceite em: 10/10/2011

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Sobre a ilusão de ter: reflexões an/ tropológicas1 Evelyn Schuler Zea Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil E-mail: [email protected]

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Resumo

Abstract

Este artigo propõe um seguimento do projeto de reconfiguração cultural de Roy Wagner exposto, entre outros textos, em Symbols That Stand for Themselves. Trata-se, em particular, de ver as implicâncias de atribuir à analogia o papel de “princípio de organização” cultural. Através de uma série de rodeios, motivos de Saussure, Marx e Wallace Stevens são convocados para circunscrever, por contraste, os alcances do princípio analógico de Wagner. Tomando como referência figuras conceituais entre os Waiwai do Norte Amazônico, colocam-se modos eventuais de certeza para além das genealogias do princípio. De modo suplementar, põe-se em questão a “ilusão de ter” como parte submersa da vontade de um princípio.

This article extends the project of cultural reconfiguration proposed by Roy Wagner in, amongst other texts, Symbols that Stand for Themselves. It deals, in particular, with the implications involved in attributing to analogy the role of “organizational principal”. Through a series of indirections, it calls upon motifs of Saussure, Marx and Wallace Stevens so as to delineate, through contrast, the reach of Wagner’s analogical principle. Referring to certain conceptual figures amongst the Waiwai of North Amazonia, certain modes of certainty are shown to extend beyond the genealogy of that principle. On a supplementary note, it questions the “illusion of having” as the submerged part of the will of a principle. Keywords: Notion of a Priciple. Analogy. Genealogies. Paralax. Waiwai.

Palavras-chave: Noção de princípio. Analogia. Genealogias. Paralaxe. Waiwai.

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ymbols that Stand for Themselves, o livro de Roy Wagner publicado em 1986, é o que poderia se denominar um ensaio em antropologia, ou seja, uma indagação sobre o que pode a metáfora – o tropo – como “princípio de organização” da cultura. Trata-se de um amplo projeto que Wagner desenvolve sem subtrair as grandes questões teóricas que aparecem em tal empreendimento. Suas abordagens, às vezes um pouco ensimesmadas ou apertadas na sua formulação, não deixam nenhuma dúvida sobre a relevância de seus motivos. No que segue, acompanho alguns aspectos desse projeto, formulando perguntas suplementárias e convocando respostas diversas. Para Wagner, a cultura de uma comunidade está feita do fluxo e da sedimentação das metáforas inventadas nela. As relações de sentido que a constituem não são unidades introvertidas, mas analogias; a mesma cultura que as tece é, por extensão, “analogy based on (and subversive to) other analogies” (Wagner, 1986, p. 6). Esse enfoque deixa de ver na metáfora um fenômeno local ou periférico e assume antes sua confluência com o sentido cultural na constituição do que podemos chamar o sentido analógico da cultura. Se fosse o caso de traçar um paralelo filosófico para apreciar devidamente o alcance dessa tese, parece-me que não seria desatinado compará-la com aquela declaração categórica de Nietzsche segundo a qual, “propriamente, tudo é figuração” – “eigentlich ist alles Figuration” (Nietzsche, 1973, p. 373). O projeto wagneriano de reconfiguração analógica do mundo e de nossa visão dele demanda uma atitude particularmente reflexiva, posto que seu desenvolvimento suscita a cada passo excisões e decisões, motiva cismas e novas alianças. Sua trajetória é, de fato, uma

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sequência de encruzilhadas relacionadas às marcas distintivas das articulações analógicas de sentido, da fundamentação e da orientação que elas proporcionam. Uma primeira encruzilhada tem a ver com a decisão a favor da metáfora, com os motivos que levam Wagner a ver nela um horizonte alternativo. Das múltiplas respostas possíveis, gostaria de considerar aqui o que pode chamar-se o fator negativo dessa opção, ou seja, em que medida ela aparece em oposição a alguma outra colocação. No caso de Symbols that Stand for Themselves é evidente a insatisfação de Wagner em relação ao que ele considera que são os pressupostos e os alcances da semiologia saussuriana como ciência dos signos. Suas objeções apontam, sobretudo, para o fato de que, sob esse enfoque, um sistema de códigos abstratos racionaliza e subordina (Wagner, 1986, p. X) a vida dos sentidos. Restrição e manipulação são outras tantas imputações a esse sistema, e, na versão de Wagner, a figura de Saussure aparece como o resumo de tudo aquilo que seu projeto busca repensar. Agora bem, as críticas de Wagner se dirigem à Saussure como suposto autor do influente Cours de Linguistique Générale. Nos últimos anos, no entanto, temos visto emergir a figura de um Saussure radicalmente distinto a partir da pesquisa de seus escritos não publicados. Refiro-me aos estudos de Patrice Maniglier, La vie énigmatiqué des signes, de 2006, e, especialmente, ao estudo de Johannes Fehr, Ferdinand de Saussure: Linguistik und Semiologie, publicado em 1997. Se de um lado certamente seria impertinente contrapor esse Saussure revisitado às observações formuladas por Wagner, por outro lado me parece concebível examinar as eventuais aproximações entre eles, posto que, em vez de um adversário, Wagner poderia encontrar um inesperado aliado em Saussure, ainda quando apenas se trate de conjunções parciais. As críticas de Wagner à semiologia saussuriana modelam algumas das proposições de seu próprio projeto. Em particular, o caráter abstrato do signo saussuriano e a suposta subordinação de sentido operada por ele incidem na definição do sentido analógico wagneriano como uma forma de percepção e da invenção como seu modo ILHA volume 12 - número 1

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de procedimento. Com o propósito de desmarcar-se da semiologia, Wagner procura ancorar o sentido na percepção ou, dito de outro modo, converter a percepção num momento de sentido, assim como tenta subverter a sujeição do sentido no signo por meio da invenção. Revisemos brevemente, no entanto, o alcance dessas contraposições. Numa das suas anotações acerca da vida das línguas, Saussure diz o seguinte: “O que há [nelas] é transformação, cada vez e sempre novamente transformação” (Saussure apud Fehr, 1997, p. 151). Isso se vê, por exemplo, nas incessantes variações motivadas pela transmissão de lendas, estudadas atentamente por Saussure no caso da Canção dos Nibelungos. Os personagens, a trama, sua eventual conexão com fatos históricos, tudo vai mudando incessantemente ao longo do tempo. Mas o que provoca essa diversificação? De onde ela toma impulso? A resposta há de se buscar no modo da existência das línguas. A propensão à mudança procede, segundo Saussure, da condição mesma da língua como “fait social” (Saussure, 1997, p. 118), ou seja, do fato que ela se atualiza no trânsito de um falante a outro. É a mesma circulação – esse fator constitutivo, intrínseco à língua – a que produz a sua transformação. Desse movimento incessante da língua Saussure extrai consequências radicais. Assim, em relação ao sistema da língua – aspecto que tem sido algumas vezes celebrado e outras vezes criticado, frequentemente de um modo igualmente unilateral – nos diz que não pode ser pensado como uma estrutura permanente, mas antes como um equilíbrio precário, ameaçado de dentro ou, em todo caso, como um sistema que “apenas existe momentaneamente” – “immer nur ein augenblickliches [ist]” (Saussure, 1967, p. 105). O impacto dissolvente desse mesmo fator sobre o signo linguístico também não é pouca coisa. Do signo diz Saussure que se caracteriza pela total incapacidade de preservar sua unidade, já que, considerado em dois momentos diferentes, ele nunca é idêntico a si mesmo. O signo não tem sequer, diz Saussure, a consistência de uma “bola de sabão”, constituindo em última instância nada mais que um vetor fantasmático – “ein Phantom” (Saussure, 1997, p. 428). Essas anotações me parecem bastar para fazer-nos ver que a semiologia de Saussure, longe de pretender um ordenamento rígido ILHA volume 12 - número 1

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e substancial, aspira antes ser um estudo da transmissão e transformação dos signos, ou seja, um estudo de seu processo de circulação. Um processo do qual a invenção bem poderia ser vista como um de seus momentos. Na elaboração de Maniglier, essa tendência vai inclusive tão longe como para apresentar o projeto saussuriano como uma ontologia da multiplicidade e falar do signo como um novo tipo de entidade que apenas existe justamente enquanto se transforma. O que quero ressaltar, em todo caso, é que as premissas de Saussure não bloqueiam, mas, ao contrário, favorecem uma concepção dinâmica e analógica dos signos culturais. Também podemos lembrar em relação a isso sua impaciência diante do movimento dos novos gramáticos (die Junggrammatiker) e sua proposta de uma linguística puramente objetiva sob o lema: Chega de figuras! (Keine Figuren mehr). Esse, comentava Saussure, apenas pode ser o objetivo daqueles que não têm ideia sobre a vida das palavras (Saussure apud Fehr, 1997, p. 342). Se a semiologia saussuriana, portanto, não é necessariamente incompatível com um enfoque analógico como aquele que Wagner propõe em Symbols that Stand for Themselves, parece mais difícil, no entanto, chegar a um acordo em relação à forma do sentido cultural, posto que a concepção de Wagner do sentido cultural como uma forma de percepção é a outra cara de sua crítica ao caráter abstrato do signo saussuriano. Vejamos. O signo saussuriano é certamente abstrato, mas o é justamente a partir de uma crítica da orientação empirista da fonética do seu tempo, que almejava fixar o sistema dos sons na fisiologia das articulações. Em relação a essa tendência, Saussure formulou um prognóstico ou, também poderíamos dizê-lo assim, fez a seguinte aposta: se pudéssemos – disse Saussure, já que nesse momento ainda não era tecnicamente possível – fotografar infinitesimalmente cada detalhe de uma cadeia sonora, não por isso chegaríamos a distinguir seus cortes significativos, o que veríamos não seria mais do que um fluxo sonoro ininterrompido, sem poder demarcar nele nenhuma articulação de sentido. Saussure ganhou essa aposta algumas décadas mais tarde, quando se conseguiu registrar em séries o movimenILHA volume 12 - número 1

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to da articulação e se viu que os fonemas, ao contrário do que era suposto, não apareciam sucessivamente, mas entrelaçados, justapondo-se uns aos outros, de tal modo que sua diferenciação é essencialmente produto de um ato intelectual e não perceptivo. Do mesmo modo, segundo Saussure, o papel da percepção na vida das línguas também não vai muito longe, já que, por exemplo, a transformação diária que experimenta uma palavra passa completamente despercebida aos sentidos. Não percebemos que uma língua muda com cada troca de palavras e, quando finalmente advertimos o quanto ela mudou ao longo de um tempo, digamos ao passar de algumas décadas, essa observação não é produto de uma impressão dos sentidos, mas de uma comparação intelectual. Até aqui, certamente, estou apenas contornando a posição de Wagner, já que ele não apenas fala de percepção, mas da percepção em um espaço simbólico ou, como ele diz, de “perceptions through language, so to speak” (Wagner, 1986, p. 6), de modo que tudo acima não é mais que um rodeio, mas um que considero imprescindível dada a complexidade da proposta de Wagner – e um rodeio que, certamente, precisa ser sempre complementado por outras aproximações analógicas. No mais, o que tento aqui não são outras coisas que rodeios, que, como tais, apostam na sua pluralidade para alcançar eventualmente alguma forma lenta e diferida de eficácia. Após examinar preliminarmente a opção pela metáfora, uma segunda questão que se coloca em relação ao projeto de Wagner é a opção pelo princípio. Por que adotar essa modalidade no momento de reconfigurar analogicamente um mundo? Não me parece que se possa passar por alto ou subestimar a importância dessa eleição, tendo em vista a complexidade de suas implicâncias. Apelar a um princípio supõe decisões, explícitas ou não, no que diz respeito a modos de fundamentação, formas de relação e orientações de sentido. Ou, dito de outro modo, essas são outras tantas questões em torno do desdobramento de um princípio. Dado que essas questões se justapõem entre si, podemos começar essa abordagem in media res, isto é, examinando a especificidade das relações na concepção de Wagner. Eis um aspecto que, embora ILHA volume 12 - número 1

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presente em Symbols that Stand for Themselves, se distingue melhor através da ideia de extensão desenvolvida anteriormente no livro A invenção da cultura. Extensão significa aí ampliação da cobertura de um sentido cultural por efeito de sua introdução num contexto inabitual, no qual dito sentido forja novas relações. Essa ampliação compreende dois momentos: um criativo ou projetivo, no qual o sentido se expõe abertamente à diferença; e outro de retrojeção, no qual essa nova experiência é controlada e comunicada por meios convencionais. Ambos os momentos têm a ver com o trabalho da analogia, que, segundo a fórmula de Wagner, opera “por meio de uma extensão do familiar” (Wagner, 2010, p. 61). Ou dito inversamente: “a invenção requer uma base de comunicação em convenções compartilhadas para que faça sentido” (p. 76). Tanto a parte que há, em todo evento de expansão, de prolongação do já vivido e conhecido quanto a necessidade de que essa nova experiência seja assimilada e compartilhada são preocupações que Wagner coloca em primeiro plano na sua monografia Habu: The Innovation of Meaning in Daribi Religion, em que os limites de uma relação são marcados por sua comunicabilidade. Para Wagner, o momento do relato é crucial em toda relação ou, dito de outro modo, não há extensão sem alguma dose de retenção. Tudo isso põe ênfase no fator de continuidade numa relação, como se o movimento da cultura – o vaivém da invenção e do controle – acontecesse através de ondas que quebram e se requebram sucessivamente seguindo o pulso de um princípio dominante. Podemos conceber essa dinâmica de outro modo? Talvez, ensaiando olhar em um horizonte diferente. Em Symbols that Stand for Themselves, Marx figura como um dos autores que aparecem na vereda teórica oposta e, de algum modo, as críticas de Wagner aos códigos e ao sistema da semiologia saussuriana são também críticas ao marxismo. Certamente houve, antes e depois do marxismo, importantes trocas entre a linguística e a economia, particularmente no que diz respeito às estruturas relacionais. Mas há, além desse nexo, um ou dois aspectos nos quais Marx continua sendo de particular

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relevância, se seguimos a interpretação que o filósofo japonês Kojin Karatani faz de Marx em seu livro Transcritique, de 2003. Os sistemas relacionais na teoria econômica são anteriores a Marx e fazem parte do estado da questão com a qual ele mesmo se confrontou. Já Samuel Bailey enfatizava que “value denotes [...] nothing positive or intrinsic, but merely the relation in which two objects stand to each other as exchangeable commodities” (Bailey apud Karatani, 2003, p. 193). A ruptura que Marx provoca em relação a esse esquema de compreensão do capitalismo consiste em adotar um ponto de vista heterológico que vai para além do sistema de relações e leva em consideração as relações entre sistemas diferentes. Isso é um passo decisivo, posto que, como resume Karatani, “only where there are heterogeneous systems can money transform into capital that gains surplus value from the exchange between systems” (Karatani, 2003, p. 227). Ou seja, para entender a lógica capitalista é preciso radicar-se na diferença ou, para dizê-lo com um termo que Marx toma de Epicuro, é preciso instalar-se no espaço intermundia, na rachadura entre mundos diferentes – como diria, por sua vez, Carlos Castañeda, um dos autores prediletos de Wagner. Essa distância é o intervalo no qual acontece a crítica ou, como diz Karatani, a transcrítica de Marx. Mais que um espaço, trata-se aí de um movimento transversal, de uma permanente transposição entre mundos ou sistemas de relações. Esse movimento é uma alternância que se elimina a si mesma enquanto devém outro modo de posicionamento, seja espacial ou discursivo. Como remarca Karatani em relação ao Marx transcrítico, “the positionality – whether or not materialist, radical, concerned with exteriority, and so on – makes little difference if it is caught within an enclosed discursive system” (Karatani, 2003, p. 141). A forma de ver específica que corresponde a esse deslocamento é a visão paralática, isto é, o olhar que não se detém nem em um termo nem em outro, mas que insiste na sua diferença e aprofunda nela. Essa perspectiva paralática – que também aparece em Wagner de modo crescente em The Place of Invention – é retomada por Karatani a partir da sua aguda formulação inicial em Kant, que eu gostaria de citar aqui por sua relevância antropolóILHA volume 12 - número 1

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gica. Em Träume eines Geistersehers (Sonhos de um visionário ou, como também poderia ser traduzido, Sonhos de um xamã), Kant escreve: I viewed human common sense only from the standpoint of my own; now I put myself into the position of another’s reason outside of myself, and observe my judgments, together with their most secret causes, from the point of view of others. It is true that the comparison of both observations results in pronounced parallax, but it is the only means of preventing the optical delusion (Kant apud Karatani, 2003, p. 47).

Ou seja, um meio para prevenir a ilusão ótica ou o delírio que não apenas consiste em pressupor a objetividade do próprio ponto de vista, mas também em atribuir objetividade ao ponto de vista de Outrem. De certa forma, Wagner realiza o movimento ao contrário, altamente relevante, aí onde põe em correlação a relatividade intercultural com a relatividade intracultural da metáfora. Wagner escreve: “trope or metaphor, the self-referential coordinate, is relativity compounded; it introduces relativity within coordinate systems, and within culture” (Wagner, 1986, p. 5), de tal modo que a metáfora aparece como uma forma de relatividade concentrada, condensada ou sintetizada. Com isso nos deslizamos em direção à questão crucial do princípio da analogia como modo de fundamentação ou, melhor dito, de autofundamentação, já que a tese de Wagner nos fala justamente de Symbols that Stand for Themselves. Em relação à genealogia dessa ideia gostaria de tentar um novo rodeio, agora – ainda que possa parecer excêntrico – através de algumas notas do poeta norte-americano Wallace Stevens, sobre o qual Wagner tem se manifestado com admiração. Em seu ensaio Effects of Analogy, Stevens contrapõe dois exemplos clássicos do uso da analogia tomados da literatura norte-americana e francesa. De um lado, ele cita a obra de John Bunyan como exemplo de um modo referencial da analogia, em que “we are rather less engaged by the symbols than we are by what is simbolized” (Stevens, 1997, p. 708). De outro lado, ele considera as fábulas de La Fontaine como

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paradigma do que poderíamos chamar de símbolos resistentes ou, para o caso, Symbols that Stand for Themselves. Neles, “We are not distracted. Our attention is on the symbol, which is interesting in itself” (p. 708). Stevens, no entanto, não se limita a contrastar essas duas modalidades, pois em seguida comenta que essa diferença talvez seja de nacionalidade, mas que para ele se torna interessante como diferença, ou seja, naquilo que ela tem de irredutível. Eis um apontamento que, por sua interposição, bem poderíamos considerar transcrítico e, mais ainda, se consideramos que vem acompanhado por um efeito paralático: “there is a third reader”, diz Stevens, e é aquele que dirige sua atenção às prismatic crystallizations (Stevens, 1997, p. 709) induzidas pelas interações do símbolo e do relato. Esse efeito prismático converte um reflexo, isto é, o que deveria ser uma forma de identidade, em uma refração, deixando entrever que a metáfora não é um modo de fundamentação, mas, ao contrário, um modo de suspensão e oscilação. Alguns dos maiores poemas de Stevens amplificam já no título essa visão e radicalizam-na, como ocorre, por exemplo, através da afirmação da aparência em Description without a Place, em que Stevens (1987) escreve: É possível que parecer – seja ser Como o sol é algo que aparece e é. O sol é um exemplo. Do que parece E é e todas as coisas são em tal parecer.

It is possible that to seem – is to be As the sun is something seeming and it is. The sun is an example. What it seems It is and in such seeming all things are.

Ou também através da ideia de um projeto ou do projeto de uma ideia em seus Apontamentos para uma ficção suprema (Notes Toward a Supreme Fiction), em que na primeira seção – Deve ser abstrata (It must be abstract) – podemos ler: Há um projeto de sol. Não pede o sol, There is a project for the sun. The sun Que ostenta ouro, um nome, porém ser Must bear no name, gold flourisher, but Na dificuldade plena do que é ser. be in the difficulty of what is to be.

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A realidade como projeto é a realidade posta na dificuldade do que é, e o que esses versos de Stevens parecem sugerir é que a relatividade da metáfora não permite simplesmente se posicionar num novo modo de fundamentação, dado que justamente aponta para a impossibilidade geral dela. Com efeito, o primeiro impacto da metáfora é que, se algo é simultaneamente outra coisa, nenhuma das duas pode seguir presumindo sua identidade. Dificilmente, por isso, a metáfora pode assumir o papel de um princípio e servir como suporte para um esquema qualquer quando seu efeito é antes bem corrosivo, dissolvente ou subtrativo. E o mesmo acontece com a relatividade cultural, essa metáfora maior, na medida em que ela não apenas subverte as configurações da identidade, mas também as da multiplicidade. Já que, no momento em que me asseguro da existência de outra forma de vida, minha conclusão não pode deter-se numa redistribuição de parcelas de realidade, mas deve confrontarse com a eventualidade de que tanto eu quanto o outro ficamos ambos desprovidos de fundamento. Se consentirmos que o que há no começo não é um princípio, poderíamos então falar alternativamente, em vez de princípio, de uma condição. Mas essa teria que ser a condição de alguém que sabe estar vivendo algo assim como uma sobrevida, que é o termo que Walter Benjamin invocava para falar de uma vida através da tradução, no sentido de uma forma incessante de errância, para além das certezas de um fundamento originário.2 Em torno dessa condição que assume a impropriedade como seu modo de ser parecem girar, entretanto, as constelações do pensamento dos povos indígenas que se reconhecem e são reconhecidos como Waiwai, no Norte Amazônico. Suas imagens enviesadas e seus modos de relação cheios de interpolações consentem ser vistos como outras tantas variações daquela ideia de Marx segundo a qual nada é símbolo de si mesmo. Podemos pressentir já esse modo de precariedade constitutiva através do olhar oblíquo com o qual recebem os visitantes; um olhar que não pode ser reduzido nem à transparência nem à frontalidade que nos são tão familiares: trata-se de um olhar que afeta de um modo diferente e que vê algo diferente. Ele vê atraILHA volume 12 - número 1

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vés da imprecisão, da instabilidade, e poderíamos dizer que o que vê são larvas – tanto no sentido de formas precárias, incompletas como também no sentido de máscaras. Mas esse olhar não apenas vê, mas também atua e revela, sendo difícil evitar seus efeitos: esse olhar impreciso, longe de provocar algo tão contundente como um choque cultural, desloca sutilmente o antropólogo, ou a quem for o outro, ao deslocá-lo ou colocá-lo fora de foco. Esse olhar de lado, longe de ser um modo casual ou deficiente, anuncia outras formas de indeterminação, de não coincidência, cultivadas pelos Waiwai. Entre elas, por exemplo, o traço sinuoso, indireto, dos múltiplos caminhos que atravessam suas aldeias. Disfuncionais em relação à suposta finalidade de comunicar uma casa com outra, esses caminhos se fazem ao andar e têm a forma de meandros ou de rodeios, menos interessados em alcançar seu objetivo que em afirmar sua especificidade, sua diferença. Nessas coordenadas, uma via direta tanto como um olhar direto, na medida em que pretendem alcançar um objetivo ou descobrir um objeto claro e distinto, não parecem constituir para os Waiwai nada mais que uma espécie de grau zero da cultura, em que deve começar qualquer esforço de elaboração da experiência. Procedendo de um modo direto e imediato, não há nada que ver, nada ao qual aceder, porque, como mostram os Waiwai, é lateralmente como se constitui uma entidade. E essa articulação é também a que encontramos nas constelações através das quais a pessoa e o coletivo waiwai são concebidos. Sabendo da sua precariedade, a pessoa waiwai se busca interminavelmente através da figura conceitual yewru yekatî, descrita por eles como “a pequena figura que sempre se vê no olhar do outro” (Fock, 1963, p. 19), isto é, no olhar de um outro que sempre muda. Eis um rodeio vertiginoso, volátil e rapsódico em direção a si mesmo, mas é também o rodeio que o outro do qual dependemos precisa fazer ele mesmo, de tal modo que ambos não têm maior sustentação que sua imbricação através da corrente de imagens que circula entre eles. Uma constelação semelhante aparece também naquela grande metáfora dos Waiwai acerca dos chamados enîhni komo, povos não vistos, como se referem aos povos em busca dos quais eles organiILHA volume 12 - número 1

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zam periodicamente mobilizações tão extensas que lhes brindaram com o apelido de “argonautas do Norte Amazônico”. Para os Waiwai, os povos não vistos são por definição aqueles que sempre se encontram mais além, mas isso pouco parece importar, já que tudo passa como se fosse justamente nesse incessante rodeio no qual os Waiwai conseguem o mais parecido a uma certeza de si mesmo. Como referia Yakuta, um famoso líder waiwai: “he never felt more exhilarated than when he was on the trail of a group” (Howard, 2001, p. 408), de tal modo que, levando em conta as condições nas quais tanto a pessoa como o coletivo waiwai se constituem, poderíamos dizer que ambos são frutos eminentes da arte waiwai de tornar duas ou mais incertezas numa forma eventual de certeza, numa certeza eventual. Eis a “verdade” da impropriedade, e, no meu modo de ver, a elaboração que os Waiwai fazem dela permite entender melhor tanto o intervalo paralático ao qual me referi antes assim como do que falamos quando falamos da diferença, pois, vista como impropriedade, a diferença não é um fator puramente negativo, mas a dimensão que nos permite ir ao encontro dos outros. Nesse sentido, o que compartilhamos com eles é justamente a mútua desestabilização provocada pela aparição seja de um, seja de outro e, inclusive, como indica o caso dos não vistos, por efeito da sua invisibilidade. A única coisa que os Waiwai guardam dos não vistos é uma marca mínima, uma imagem que se limita a constatar sua ausência, seu afastamento. Pode-se dizer, por isso, que essa imagem leva ao extremo ou explicita a parte invisível de uma imagem, o não visto nela. Em outras palavras, a imagem não aparece aí como um operador de visibilidade, mas, ao contrário, como um corte que interrompe a visibilidade – nessa descontinuidade na qual Alain Badiou vê a função específica do cinema, do mesmo modo que um poema provoca uma interrupção na linguagem cotidiana. Discorrendo, até aqui, sobre as alternativas a um princípio, limitei minha leitura, no entanto, a uma parte do problema com o qual o projeto de Wagner nos confronta, posto que ter um princípio, assim como ter um mundo, ter uma cultura, ter uma identidade e, em geral, ter alguma razão são outras tantas formas de uma ilusão ILHA volume 12 - número 1

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que se renova através de diferentes objetos. Pois o ter é aí a parte submersa, o pressuposto crucial que segue operando intocado em nossos modos de compreensão através de todos esses modos de pertença. Há talvez, no entanto, uma fórmula extrema através da qual os alcances desse verbo, sua eficácia escondida, emergem diante de nós. Refiro-me à fórmula densa de ter um filho. Já que nesse caso o ter não apenas adota um sujeito, mas, além disso, tematiza sua genealogia. Na figura de ter um filho o pressuposto do verbo, em certo modo, se trai a si mesmo. Digamos que através dessa configuração se põe em jogo o destino do ter ou, em outras palavras, que essa configuração é o paradigma do ter, no sentido gramatical segundo o qual é através dela que se definem os modos de conjugação desse verbo. Não há de ser coincidência, por isso, que a figura do ter um filho seja um exemplo elementar e recorrente sobre a forma em que se constitui uma relação. Assim o podemos ver em Viveiros de Castro, quando diz que “Alguém é um pai apenas porque existe outrem de quem ele é o pai” (2002, p. 384). A partir daí, a relação em jogo parece ser concebida como unívoca (no sentido de que seus termos não se confundem) e objetiva (na medida em que aparece sendo claramente determinável). Como segue Viveiros de Castro, “[...] não há nenhum relativismo envolvido. Isabel não é uma mãe para Nina, do ponto de vista de Nina, no sentido usual, subjetivista, da expressão. Ela é a mãe de Nina, ela é real e objetivamente sua mãe [...]. A relação é interna e genitiva (2002, p. 384). Também Wagner convoca as associações ligadas à imagem do “pai” para mostrar o contraponto entre extensão e convenção na definição de uma relação. O termo “pai” significa algo diferente segundo o contexto – biológico, familiar, religioso ou qualquer outro novo contexto – em que aparece, mas seus sentidos analógicos são controlados através de sua reintegração comunicativa. Como diz Wagner, “comunicação é tão importante para a expressão dotada de significado quanto a ‘extensão’” (2010, p. 80), de tal modo que ambos os polos trabalham para oferecer-nos um significado equilibrado, ao mesmo tempo inovador e reconhecível. E no fundo dessa conILHA volume 12 - número 1

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cepção parece ressoar ainda aquele cânone aristotélico, segundo o qual uma linguagem plena é aquela que resulta da aliança entre claridade e estranheza, igualmente distanciadas da banalidade e do barbarismo (Poetik, 1458). Do outro lado de Aristóteles e de uma concepção balanceada (equilibrada) da imagem do pai, localiza-se, entretanto, aquele fragmento de Heráclito, segundo o qual “o filho é o pai do pai”. Essa imagem opera, quer dizer, chega a ser significativa através da confusão de seus termos e não simplesmente por meio de uma distinção entre eles nem de sua inversão, pois as figuras do pai e do filho resultam profundamente perturbadas, aí onde não apenas um pode jogar o papel do outro, mas pode fazê-lo correlativamente ao papel que lhe foi atribuído. De tal modo que, nessa constelação, um termo é ao mesmo tempo o outro e justamente na medida em que é ele mesmo. A relação entre pai e filho não é mais unívoca, nem livre de contradição nem objetivamente determinável. Parece, portanto, que em relação à figura do pai–filho é preciso optar entre reforçar o que pode haver nela de princípio, ou seja, de relação de pertença, ou, ao contrário, optar por desestabilizar essa genealogia e ainda chegar a negá-la. E é esse caminho do desterro que é seguido radicalmente num filme russo recente (2007) – “Izgnanie”, “The Banishment” ou “O exílio” – que pode ser visto como o desvelamento da ilusão de ter. No filme se conta a história de um casal que cultiva um crescente distanciamento nas relações entre si e com os outros. Nesse contexto, a mulher revela um dia a seu marido que ela está grávida, mas que o filho não é dele. Essa revelação provoca, por certo, uma crise de consequências cada vez mais trágicas. Tudo isso, no entanto, acontece sob o pressuposto do ter. Já que mais tarde, quase no fim do filme, o marido descobre um outro sentido, um de alcance maior, na revelação da mulher. O que ela queria lhe transmitir – ainda assim sem poder explicá-lo – era ter percebido que nada nem ninguém pertence a um outro, que nada nem ninguém pode ser objeto da presunção de ter um outro. Tanto menos a figura de um filho ou uma filha, nos quais a ilusão de ter e a ilusão de um princípio confluem. É através deles que ILHA volume 12 - número 1

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uma genealogia, vista como a projeção de um princípio, existe, dando-nos a ilusão de uma procedência e de uma continuidade. Mas, através de um terceiro, o marido escuta as palavras da mulher: “Não é seu filho, porque nossos filhos não nos pertencem […]. Do mesmo modo como nós também não somos simplesmente os filhos de nossos pais”. Essa rebeldia contra a genealogia o é também contra a gênese e contra o genitivo. Quando cai a ilusão de ter, cai também com ela a ilusão de ter um princípio; e é essa subtração, não o estabelecimento de um novo princípio, a que abre a passagem para o território da analogia. Nota 1 Trabalho apresentado no Seminário Antropologia de Raposa, em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em agosto de 2011. 2 De Man (1989).

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Nem plural, nem singular: ontologia, descrição e a Nova Etnografia Melanésia¹ Justin Shaffner Cambridge University E-mail: [email protected]

Tradução do inglês: Fernanda Azeredo de Morais Revisão técnica: Jose Antonio Kelly Luciani Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

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Resumo

Abstract

Neste ensaio procuro esclarecer aquilo que pode ser tomado como ‘ontologia’ na Melanésia, à luz especialmente das recentes críticas de Michael Scott sobre a Nova Etnografia Melanésia (NEM). Faço esse caminho a partir de conceitos melanésios do corpo e, em particular, da minha própria etnografia com falantes da língua Marind das terras baixas do Sul da Nova Guiné. Afirmo que o que a literatura NEM possui em comum é a tentativa de afastar/ evitar ou deslocar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ operam nas práticas ‘modernas’ de conhecimento antropológico, e, em troca, substituí-las por algo parecido com um ‘símbolo negativo’. Ao fazer isso, argumento que, para a Melanésia, é o corpo que funciona como um tipo de símbolo negativo.

In this paper I attempt to clarify what might count as ‘ontology’ in Melanesia, particularly in light of Michael Scott’s recent critiques of the New Melanesian Ethnography (NME). I do so in relation to Melanesian concepts of the body, and in particular, to my own ethnography of Marind speakers of the southern lowlands of New Guinea. I claim that what the NME literature has in common is the attempt to obviate or displace the work that ‘nature’ and ‘context’ do in ‘modern’ anthropological knowledge practices, and in turn, replace it with something like a ‘negative symbol’. In doing so, I argue that for Melanesia it is the body, whether human, animal, spirit, thing/gift or landscape, which operates as a kind of negative symbol. Keywords: Ontology. Body. Negative Symbol. New Melanesian Ethnography.

Palavras-chave: Ontologia. Corpo. Símbolo negativo. Nova Etnografia Melanésia.

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“Naturalmente, as quatro operações matemáticas – somar, subtrair, multiplicar e dividir – eram impossíveis. As pedras resistiam a aritmética como elas tinham resistido o cálculo de probabilidade. Quarenta discos divididos poderiam resultar em nove; por sua vez, esses nove quando divididos poderiam produzir 300.” Jorge Luis Borges “Não existe um, apenas o que conta-se como um. (il n’y a pas d’un, il n’y a que le compte-pour-un).” Alain Badiou “A natureza não é natural e nunca poderá ser naturalizada.” Graham Harman “Muito preciso para pôr em palavras.” Roy Wagner

Introdução

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Neste paper procuro esclarecer aquilo que pode ser tomado como ‘ontologia’ na Melanésia, à luz especialmente das recentes críticas de Michael Scott sobre a Nova Etnografia Melanésia (NEM). Faço esse caminho a partir de conceitos melanésicos do corpo e, em particular, da minha própria etnografia com falantes da língua Marind das terras baixas do Sul da Nova Guiné. Afirmo que o que a literatura NEM possui em comum é a tentativa de afastar/evitar ou deslocar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ operam nas práticas ‘modernas’ de conhecimento antropológico e, em troca, substituí-las por algo ILHA volume 12 - número 1

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parecido com um ‘símbolo negativo’. Ao fazer isso, argumento que, para a Melanésia, é o corpo, seja humano, animal, espírito, coisa/ dádiva ou paisagem, que funciona como um tipo de símbolo negativo. Nunca se sabe de antemão o que um corpo pode fazer ou quais serão seus efeitos. Tal corpo não é singular nem plural, uma vez que alude de uma só vez à possibilidade da conta e ao nome próprio. Ao fazer isso, sugiro que o conceito Marind de dema, tal e como foi primeiramente proposto por Adolf Jensen (1963) como uma teoria geral da religião melanésia, possa ser redescrito melhor como um possível análogo do perspectivismo ameríndio. Esse exercício não apenas exige uma nova visita à socialidade melanésia, como também aponta para a comparação com outras tentativas na antropologia de repensar ‘natureza’ e ‘contexto’, incluindo o perspectivismo ameríndio, a cosmopolítica de Latour e o realismo especulativo. Ao fazer isso, trago à tona as contribuições de Roy Wagner. Dada a recente ‘virada ontológica’ na antropologia (e na filosofia) – cosmopolíticas, perspectivismo, pensando através dos objetos, e também realismo especulativo –, o livro A invenção da cultura, de Roy Wagner, mesmo originalmente publicado há mais de 35 anos, em 1975,2 está mais pertinente e relevante do que nunca, uma vez que identifica a problemática central da antropologia contemporânea hoje, aquela de como repensar ‘natureza’ sem perder de vista a responsabilidade que nossas descrições acarretam. Crítica da Nova Etnografia Melanésia Em uma série de publicações recentes, Michael Scott (2007a, 2007b) critica a chamada ‘Nova Etnografia Melanésia’ (Josephides, 1991) e o seu modelo de ‘socialidade melanésia’ pelo que ele percebe como seus comprometimentos ontológicos e status hegemônico em relatos da Melanésia. Scott afirma que os relatos etnográficos da NEM trazem em si uma “premissa filosófica” metodologicamente inscrita, a qual ele chama de monismo ou mono-ontologia, que pressupõe “a consubstancialidade de todas as coisas como resultado de sua ori-

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gem comum. Mitos de mono-genesis representam processos de diferenciação interna e separação dentro de uma unidade de origem” (2007a, p. 10). Ao fazer isso, ele cita a descrição de Jadran Mimica (1981, 1988) do cosmos dos Iqwaye (Yagwoia), “que se originou da substância do ser antropomórfico primordial, Omalyce” (2007, p. 11). Ele cita Mimica: A unidade dos elementos primários do cosmos pode ser entendida como expressando que o mundo primordial, a totalidade, é uma extensão homogênea. Cada região do ser cósmico é igual. Existe, dessa forma, semelhança do começo ao fim do todo primordial. Todas as suas partes evidenciam uma única auto identidade (Mimica, 1988, p. 78). Enquanto uma totalidade original, Omalyce constituía tudo que viria a ser, “mas ainda apenas como as possibilidades indiferenciadas” (Mimica, 1988, p. 78, itálicos omitidos). A separação emerge de um corte auto-infligido que bifurca Omalyce nos princípios binários do céu e da terra, homem e mulher, sol e lua, dia e noite. Essa bifurcação inicial, por sua vez, estabelece “o relacionamento entre o um e o dois, os algarismos operativos básicos no sistema numérico Iqwaye pelos quais todos os outros números são gerados” (Mimica, 1988, p. 79).

Scott argumenta que uma mono-ontologia sustenta os relatos sobre a socialidade melanésia feitos por Wagner (1967, 1974), Weiner (1988) e Strathern (1988), mesmo na ausência de uma descrição explícita de cosmo-genesis. Nesse modelo, a socialidade melanésia é conceitualizada como “um mundo sem barreiras, infinito” 3 (Strathern, 1999, p. 258) e “um plano ilimitado de ser unificado que deve ser cortado em múltiplos níveis de múltiplas formas para que entidades reconhecíveis possam ser libertadas: sociedades, vilas, grupos e pessoas” (Strathern, 1992a, p. 113). Apesar de ter colocado anteriormente que esse modelo não descreve a ontologia melanésia, Scott afirma que ele “insere uma mono-ontologia virtual por trás do objeto conceitual chamado ‘socialidade melanésia’” (2007a, p. 30), que “inevitavelmente constrói a situação etnográfica na qual é apli-

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cado como equivalente analítico de uma mono-ontologia” (2007a, p. 24). Scott defende que tal modelo é incapaz de lidar com aquilo que ele denomina de uma heterotopia Arosi, com suas manifestações políticas e sociais, incluindo disputas de terra e cristianismo. Em contraste com o “modelo de socialidade melanésia” e com o que ele percebe como seus comprometimentos ontológicos implícitos com o monismo, Scott formula o que ele chama de uma poliontologia, citando o trabalho de Valerio Valeri (1995, 2001, Cap. 11) como precedente, como uma forma de lidar com o conceito de auhenua dos Arosi. Scott conta que os Arosi usam o termo composto auhenua para se referir a qualquer coisa viva, objeto ou qualquer qualidade intrínseca da Ilha de Makira. Pedras, pássaros, seres míticos, espíritos, normas éticas e matrilinhagens humanas podem todos ser denominados de auhenua. Ser auhenua é ser essencial e irrevogavelmente nativo da ilha. Ele afirma que “Os Arosi representam essas categorias elementares do ser em termos de proto-humanos primordiais que surgiram sozinhos e que se tornaram os progenitores de matri-linhagens totalmente humanas através de conexões que prefiguram uma exogamia de linhagens” (2007a, p. 10). Scott diz que as consequências de tal pluralidade original são: a) a cosmologia Arosi é “necessariamente poli-genética; eles são processos de agregação através dos quais uma multiplicidade original se torna uma totalidade construída” (2007a, p. 10); e b) “a cosmologia Arosi é fundamentalmente poli-ontológica; isto é, ela postula um cosmos no qual as partes precedem o todo” (2007a, p. 10). Em outras palavras, Scott sugere que auhenua – matrilinhagens nativas – são não relacionais. Devo primeiro dizer que respeito a crítica de Scott, especialmente pela tentativa de forçar a antropologia a dar conta dos conceitos nativos em suas descrições de ontologia e também privilegiando as questões de multiplicidade e os limites da relacionalidade (cf. Strathern, 2005, p. vii-x). Eu também concordo que nenhum modelo deva ser hegemônico nem utilizado sem críticas. Eu aprecio a crítica de Scott nesses dois sentidos, mas eu gostaria de provocar Michael ILHA volume 12 - número 1

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Scott em suas leituras da Nova Etnografia Melanésia e a sua importância para a articulação ‘ontologias’ melanésias. Não desejo contradizer sua etnografia, mas interrogar o que queremos dizer por ‘ontologia’ e como descrever isso antropologicamente. O trabalho de Scott proporciona tal oportunidade, especialmente sua tentativa de articular uma antropologia de ontologias comparadas. Em sua descrição, ‘ontologias’ são quase sinônimo de origens, tais como cosmologias monogenéticas, que postulam origens únicas e são vistas como monismos necessitados de diferenciação, e cosmologias poligenéticas, aquelas que postulam múltiplas origens que presumem um mundo já diferenciado e dividido que deve ser remontado como unidade. Levando a crítica de Scott a sério, eu quero incitá-lo em suas leituras da Nova Etnografia Melanésia e a sua importância para a articulação ‘ontologias’ melanésias. Quero fazêlo nos seguintes níveis: 1. uma ontologia que pressupõe uma divisão constante de uma entidade em partes de si mesmo, de forma que múltiplos são frações de um, não é uma mono-ontologia, mas na verdade uma ontologia fractal, já que ‘um’ aqui, seja na forma de um dígito, mão ou corpo, é, ele mesmo, também uma insinuação do infinito. Estamos falando aqui de uma matemática completamente diferente – involução binária –, uma matemática que obvia a distinção entre parte e todo, um e vários; 2. tal matemática ou ontologia é mais um dado etnograficamente precipitado do que uma premissa filosófica aplicada antropologicamente. A tentativa da NEM de evitar ou deslocar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ operam em práticas de conhecimento euro-americanas é consciente, por fidelidade, ao momento etnográfico (encontro e experiência); e 3. eu gostaria de reservar o termo ‘ontologia’ para algo distinto de ‘origens’, ou seja, conceitos nativos que exercem função análoga que ‘natureza’ e ‘contexto’ exercem na nossa própria descrição e ontologia, isto é, para estratégias nativas de contextualização. ILHA volume 12 - número 1

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A Nova Etnografia Melanésia O termo ‘Nova Etnografia Melanésia’ (New Melanesian Ethnography) tem origem em uma revisão de Lisette Josephides (1991) de quatro livros – Cosmopologies in the Making, de Frederik Barth (1987), Intimiation of Infinity, de Jadran Mimica (1988), The Gender of the Gift, de Marylin Strathern (1988), e The Heart of the Pearlshell, de James Weiner (1988)4 –, que, segundo ela, eram unidos por uma preocupação com “o processo de criação de significados culturais e relações sociais por abordagens que tratam pessoas simultaneamente como sujeitos e objetos e, conseqüentemente, sugere uma casualidade de duas mãos entre criatividade e criação cultural” (p. 145). Josephides identifica o trabalho de Roy Wagner como fornecendo “muitos dos termos do debate” e que pode ser “lido como uma utilização, dentro do desenvolvimento da antropologia, do método de Wagner de obviação” (p. 145-146). Dessa forma, eu gostaria de retornar a Wagner, precisamente ao texto que concisamente formulou o problema antropológico para o qual a obviação foi uma tentativa de solução. Em A invenção da cultura, Wagner explicita que etnografia é principalmente um trabalho de síntese por parte do antropólogo e que, além disso, resulta em descrição, ou seja, é sempre feita dentro de termos euro-americanos de referência (cf. Strathern, 1988). “O que o pesquisador em campo inventa, portanto, é o seu próprio entendimento; as analogias que ele cria são extensões das suas noções e daquelas da sua cultura, transformadas pela sua experiência de campo” (1981, p. 12). A própria personalidade do etnógrafo e suas tendências são inevitavelmente condições ao mesmo tempo facilitadoras e limitadoras do projeto etnográfico em si (cf. Devereux, 1967; Mimica, 2007). Somos propensos a colocar o outro a partir da nossa própria problemática e metafísica, que, para a antropologia euro-americana ou ‘moderna’, resulta em uma natureza universal, uma cultura relativa, um indivíduo autônomo e uma sociedade contratual (cf. Latour, 1993). Wagner argumenta que essa lógica é uma lógica insidiosa na antropologia ‘moderna’, desde a antropologia econômica e ambiental até as suas abordagens semióticas. ILHA volume 12 - número 1

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Ela faz com que nosso entendimento e invenção de outras culturas seja dependente da nossa postura ante a “realidade”, e faz da antropologia uma ferramenta do nossa própria auto invenção [...]. Quando usamos esses controles no estudo de outras pessoas nós inventamos as culturas deles como análogas não do nosso todo cultural e conceitual, mas apenas parte dele. Nós os inventamos como análogos da Cultura (como “regras”, “normas”, “gramáticas”, “tecnologias”) a parte do nosso mundo que é deliberada/intencional, coletiva e “artificial”, em relação a uma única “realidade” singular, universal e natural. Dessa forma, eles não contrastam com a nossa cultura, ou oferecem contra-exemplos para ela, como um sistema total de conceituação, mas nos convidam à comparação sobre “outras formas” de lidar com a nossa própria realidade. Nós os incorporamos na nossa realidade, e assim incorporamos suas formas de vida em nossa própria auto invenção. O que podemos perceber das realidades que eles aprenderam a inventar e nas quais vivem é relegado ao “sobrenatural” ou dispensado como “meramente simbólico (Wagner, 1981, p. 142).

Esse é o problema da natureza e contexto, e é um problema para nós. A maioria dos antropólogos estão dispostos a incluir a nossa Cultura (nossos “mitos”, “interpretações da realidade”) nessa categoria, isso é o que o tradicional conceito de cultura e a sua muito elogiada “relatividade” tratam afinal. Mas o teste final (acid test) para qualquer antropologia é se ela está disposta a aplicar essa relatividade objetivamente – na nossa “realidade” como na dos outros – tanto quanto subjetivamente. A não ser que façamos isso, a criatividade das outras culturas que estudamos será sempre derivada da nossa própria criação de realidade. A não ser que nós sejamos capazes de responsabilizar nossos símbolos pela realidade que criamos com eles, as nossas noções de símbolos e de cultura de modo geral permanecerão sujeitas à “máscara” com a qual nossa invenção esconde seus efeitos (Wagner, 1981, p. 144-145).

Então, como enfrentar a função que ‘natureza’ e ‘contexto’ têm em práticas de descrição e leitura euro-americanas? Como responsabilizar nossos próprios símbolos e descrições pela realidade que

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criamos com eles? Como inventar o outro como análogo não apenas de parte do nosso esquema conceitual – cultura –, mas do seu todo – natureza e cultura? Em outras palavras, como pensar a natureza? No livro Lethal Speech (1978), em que Wagner apresenta sua teoria de obviação simbólica, ele escreve: Nós precisamos não de um modelo de como símbolos interagem com a “realidade”, mas um modelo de como símbolos interagem com outros símbolos. E claramente, já que o compromisso com a “realidade” é tão persistente e arraigado entre os antropólogos tanto como nos seus sujeitos, tal modelo deve dar conta que algumas expressões simbólicas são percebidas como “realidade” enquanto outras não são. Deve demonstrar como e porque as pessoas usam símbolos em relação a outros símbolos, o que as motiva para agirem assim, e como construções simbólicas persistem e mudam ao longo da construção (p. 21).

Aqui, no lugar da ‘natureza’ e do ‘contexto’, a teoria da obviação substitui esses termos por algo como o ‘símbolo negativo”. Na introdução da edição revista e expandida de A invenção da cultura, publicada em 1981, Wagner discute essa noção de “símbolo negativo”, o tropo que gera (ou obriga a inventar) seus próprios referentes. Ele argumenta que o Tales of Power (1974), de Carlos Castañeda, apresenta à antropologia a expressão mais clara do símbolo negativo já vista nos conceitos de tonal e nagual. Tonal é “tudo aquilo que pode ser nomeado”, todo o mundo da percepção e da experiência: “Todas as palavras que você sabe, e todas as coisas [...] que essas palavras significam, ou que elas possivelmente poderiam significar” (Wagner, 2010, p. 38). Nagual é poder, “aquele com o qual não lidamos”, o total oposto da realidade fenomênica. É o que constitui a metáfora, mas sempre escapa na sua expressão. “nagual é a diferença entre ele mesmo e qualquer outra coisa que você pode pensar que é” (Wagner, 2010, p. 34). Não tem “limite algum”. Mas o único tipo de nagual que você conhecerá é mais tonal. Se o conceito é mesoamericano, o tratamento que Wagner dá a ele é completamente melanésio. De fato, Wagner afirma que ele aprendeu sobre obviação originalmente pouco a pouco do Taepnugiai, seu ILHA volume 12 - número 1

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informante sobre o mito Daribi (2011, p. 121). A contribuição de Wagner foi uma questão de levar os conceitos Daribi a sério e generalizar esse insight (cf. Leach, 2004, p. 5) e suas implicações para a antropologia simbólica ou simétrica. As sementes para tal antropologia simétrica já estavam ali em The Curse of Souw (1967) ao colocar o símbolo nativo e o modelo antropológico como fenômenos da mesma ordem. Se esse for o caso, obviação é pelo menos em algum nível próxima/aparentada com a ideologia da língua Daribi! E os insights que a obviação proporciona em relação aos efeitos da linguagem e da descrição são insights melanésios. Isso inclui o conhecimento de que a descrição cria seu próprio espaço e tempo, contém reversões de figura e fundo (figure-ground reversal) (incluindo aquelas de “inato” e “artificial”) e o faz através da substituição (troca entre sujeito e objeto) e da divisão. O “símbolo negativo” de Wagner que desloca a ‘natureza’ e o ‘contexto’ é de muitas formas o que dá a base para a chamada Nova Etnografia Melanésia. No trabalho de Weiner isso pode ser visto na sua ênfase no lugar da ocultação e na falta de conhecimento na Melanésia e em sua abordagem contra o construtivismo social. Toda a proposta de James Weiner pode ser entendida como devotada a isso, desde seus primeiros usos da obviação (1988) e considerações atenciosas sobre ocultação e falta de conhecimento até suas críticas ao “construtivismo social” (2011), pressupondo a existência de algo para além da língua e da cultura, até mesmo da relacionalidade humana, que não obstante é revelada pela língua.5 Além do modelo de socialidade melanésia de Marylin Strathern, isso também pode ser visto na sua antropologia pós-plural (1992b) e em teorias perspectivistas de descrição (Viveiros de Castro e Goldman, 2009) que procuram pegar no ato as várias estratégias de contextualização euro-americanas e, consequentemente, as práticas de conhecimento antropológico. Na etnografia de Jardran Mimica, apesar de o cosmos Iqwaye ter começado como o corpo indiferenciado de Omalyce, a cosmoontologia elaborada por Mimica, como sua análise do sistema nuILHA volume 12 - número 1

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mérico indica, não é um monismo, mas um fractal ou um holograma (Mimica, 2003). Estamos falando aqui de uma matemática completamente diferente da aritmética, que não é baseada nem na lógica de parte e todo, nem na de um e muitos. Estamos lidando, ao contrário, com uma matemática fractal ou involução binária. As unidades de comparação não são inteiros, mas sim conjuntos. Tal matemática pressupõe a constante divisão de uma entidade em partes de si mesma, de forma que esses múltiplos são frações de um, mas um é também uma insinuação do infinito. No sistema numérico Iqwaye, não importa até onde se pode contar, já que fundamentalmente é redutível a um, mas um, disfarçado em um único dígito, mão ou corpo, é também uma insinuação do infinito. É dialético e recursivo. Como Wagner comenta, “De certa forma, a contagem Iqwaye é simplesmente o mapeamento de singularidade e pluralidade um sobre o outro” (1988). E como Mimica e Wagner deixam claro, dessa forma, a matemática Iqwaye “lembra a contagem de infinitos Cantoriana”, a não ser pelo fato de que “se refere inteiramente a imagética do corpo humano, em seu caráter físico e transformador (reprodutivo)” (Wagner, 1988). O que está sendo contado como ‘um’ ou ‘dois’ não é em si singular nem plural. Voltando à crítica de Scott, por que deve um ‘plano de existência’ indiferenciado ser conceitualizado como ou todo/um ou parte/ muitos? Por que o outro lado da diferenciação humana deve ser uma mono-ontologia, ou um ou muitos? “No cerne de cada pessoa Arosi encontra-se uma essência matrilinear imutável concretamente representada como um cordão umbilical inquebrável” (2007a, p. 27). No relato de Scott, ontologia se torna sinônimo de origens e grupos de descendência nativos. “As proto-linhagens Arosi parecem ser uma coleção de micro mono-ontologias” (2007a, p. 14). Se esse é o caso, o que Mimica diz sobre os Iqwaye como um ‘todo’ deveria ser verdadeiro para cada ‘parte’ matrilinear dos Arosi. Na sua leitura, existem múltiplos monismos, mas nenhuma multiplicidade como tal. No entanto, na leitura fractal um e muitos são contados como um e dois, mas aquele que está sendo contado não é nenhum dos dois. É ILHA volume 12 - número 1

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infinito. É Scott então que está postulando monismos para o outro lado da diferenciação na NEM e também para as matrilinhagens Arosi. Ao contrário, a inovação e a contribuição original da NEM se encontra na tentativa de opor ou deslocar a função de ‘natureza’ (aquela euro-americana) e ‘contexto’ na descrição etnográfica. E, se a NEM (pelo menos com seus autores originais) é culpada de inscrever metodologicamente essa dimensão fractal, isso é feito conscientemente tanto no que diz respeito à noção de que toda a descrição etnográfica é feita com nossos próprios termos quanto ao desejo de modular esses termos a partir de algo que seja fiel com seu encontro com a Melanésia. Os Marind Apresentarei agora minha etnografia dos Marind procurando demonstrar o que pode ser entendido por ontologia melanésia. Discutirei a partir de conceitos Marind do corpo em dema e kuma. Às vezes brinco que conduzi uma pesquisa na Amazônia da Nova Guiné. Trabalhei nas terras baixas pantanosas com falantes de Marind, abominados durante o início do período colonial por suas caças de cabeças e elaboradas demonstrações rituais. Todos os sinais diacríticos da Amazônia estavam presentes: uma ‘economia simbólica de alteridade’ (Viveiros de Castro, 1996) organizada em torno da afinidade potencial, algo como perspectivismo, bem como da predação ontológica. Os Marind também avaliam as relações sociais nos termos das relações humano–animais. Minha pesquisa focou na economia política contemporânea das terras baixas da Nova Guiné. Conduzi investigação etnográfica com os Boazi e os Zimakani no Lago Murray (LM) e na região do Meio Rio Fly (Middle Fly, MF) na Papua Nova Guiné (ambos de língua Marind), próximo à fronteira com a Indonésia. Essas comunidades vivem rio abaixo de duas grandes minas, Ok Tedi (cf. Kirsch, 2006) e Porgera (Golub, 2006), que têm um impacto negativo nas atividades econômicas e de subsistência desses povos. Detritos de Ok Tedi continuam sendo transportados rio abaixo, aumentando o nível de sedimentação e enchentes, e gerando efeitos de drenagem metalífera e ILHA volume 12 - número 1

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de ácidos. Outros impactos incluem a destruição do hábitat de peixes, extensivo desmatamento da floreta tropical das terras baixas e perda dos pântanos e dos jardins de sago. O sedimento ficará na região de Meio Fly por até 200 anos (Tingay, 2006). Lixo de Porgera, contendo níveis elevados de metal, incluindo arsênico, chumbo e prata, foi detectado na LM e no baixo do Rio Strickland (Apte, 2001). A extração de madeira na região tem sido associada com violações dos direitos humanos, degradação do meio ambiente e destruição de sítios culturais (ACF e Celcor, 2006). Além disso, há uma forte presença de refugiados do oeste de Papua e de ativistas na região. Questões relacionadas a como viver com os efeitos em longo prazo da extração de recursos e o que constitui sustentabilidade econômica e cultural ainda têm que ser resolvidas. Trabalhei principalmente com os Hamok-anim, ou líderes de luta, uma vez que eles tentavam conseguir e manter relações produtivas com várias alianças globais, de redes locais a relações com corporações transnacionais, ONGs e Estado. A região LM–MF é parte de um sistema ritual regional ainda em funcionamento que inclui falantes de Marind e Yei do outro lado da fronteira com a Indonésia – pessoas que reconhecem a região de Meio Fly como seu lar ancestral. Os Marind se apresentam alternadamente tanto como mono quanto como poligenéticos.6 Ao todo, os Marind, juntamente com vários outros grupos linguísticos da região, remontam suas origens em um conjunto de eventos que ocorreram na região de Meio Fly e do Lago Murray na Papua Nova Guiné. Muitas vezes, esses eventos incluem a origem do ‘homem branco’. Mas também é verdade que muitas patrilinhagens remontam suas origens, independentemente desses eventos, em relação com o seu dema. Vários grupos linguísticos, incluindo os Boazi, os Zimakani, os Bian, os Marind, os Yei e os Pa, traçam sua origem a uma série de eventos que ocorreram na região LM–MF envolvendo vários dema ou heróis culturais errantes, incluindo Afek, Sosom, Nggiwe e Pasova (a Velha). No começo, “todas as diferentes nações” viviam juntas baixo a terra como seres humanos parcialmente formados, alguns dizem como peixes outros como casoares e porcos. Eles não tinham ILHA volume 12 - número 1

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olhos, orelhas, narizes, bocas ou anus bem formados; e os seus dedos, braços e pernas eram grudados. Viviam sendo caçados como se fossem animais por um gigante que tinha vários nomes, incluindo Kau, Geb, Sosom, Sido, Mamusi, Satan e Nimrod. Outro dema chamado de Nggiwe (também conhecido como Diwa, Ndiwa e Jesus) (Busse, 1987, 2005) estava passando pela região e encontrou o gigante sendo invitado a caçar por ele. Quando foram à caça, Nggiwe viu o que estava acontecendo com as pessoas e sentiu pena por eles, então ele pensou em libertá-los de seu buraco. Ele os fixou em forma humana e os ensinou a viver na terra dando a eles várias instituições sociais, e juntos eles se vingaram de Kau, o gigante. Ainda que morto, a cabeça do gigante continuou falando e ensinando a gente a como cortar e curar o seu corpo. Seu corpo desmembrado, e os de suas mulheres e filhas, junto com seus objetos pessoais foram distribuídos entre os vários grupos e depois viraram os objetos de culto das várias casas de homens da região. A cabeça de Kau primeiro circulou para o oeste e, ao seu comando, voltou para a casa na região de Meio Fly, passada dos Yei para os Zimakani. Além disso, outro dema, Passova ou Atu (literalmente “Mulher Velha” – possivelmente uma das irmãs de Afek, veja Brumbaugh, 1990), desceu pelo Rio Strickland das terras altas do sul para instituir a primeira casa de culto na região (o ritual Mayo) antes de ser morta. Esses eventos localizam a região de Meio Fly e Lago Murray no centro de um grande sistema cosmológico e ritual regional, e formam as bases de um sistema ritual regional não muito diferente daquele da região da montanha Ok em torno da casa da mãe. Todas as vezes em que estive na região de Meio Fly e do Lago Murray, as pessoas constantemente chamavam atenção para essa relação entre eles e aqueles vivendo do outro lado da fronteira na Papua do Oeste, incluindo falantes de Marind, Bian e Yei-nan. Por exemplo, um refugiado e ativista Marind-anim com quem falei em Kiunga queria dar uma série de “palestras” nas vilas do Meio Fly sobre a secreta relação entre o que ele percebia como os seus costumes e o simbolismo da Estrela da Manhã na Bandeira da Papua do Oeste. Ao levantar sua camisa e tocar seu umbigo, ele disse que os ILHA volume 12 - número 1

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dois lados eram conectados por um cordão umbilical. Eles me falaram inúmeras vezes que os Nggiwe-lek (povo Nggiwe. Ver também “Diwa-lek” em Van Baal, 1966), ou o povo da região de Meio Fly e Lago Murray, eram a frente da canoa e que o “oeste” era a parte de trás. O uso do termo “canoa” (kagwa) para se referir a um sentido de unidade ou de estar junto é muito difundido nas terras baixas do Sul da Nova Guiné (Van Baal, 1966). Uma vez ‘humanos’, é imperativo agora continuar sendo humanos através do controle sobre a direção da predação ontológica nas relações sociais (Viveiros de Castro, 1992). Essa responsabilidade cabe aos chamados Kamok-anim, pessoas a quem se lhes confia o bem-estar de outros como uma espécie de pai. Eles contaram ao padre Vertenten da missão do sagrado coração que: “Marind-anim-aha! (Nós somos verdadeiros seres humanos!) Eles não são seres humanos, senhor! Deixe-nos ir e pegar suas cabeças. É para isso que eles são feitos!”. O estabelecimento de Merakue, um posto armado, nos anos 1980, pelos holandeses, foi provocado por protesto britânico de que os Marind-anim estavam realizando missões de caça a cabeças de longa distância do outro lado da fronteira, dentro do território da Nova Guiné Britânica. Em 1927 os britânicos estabeleceram um acampamento policial na região de Meio Fly para punir cerca de 200 a 300 Marind envolvidos em uma expedição em Weredai, uma comunidade Kiwai no baixo Rio Fly, na qual 39 pessoas foram mortas. O objetivo declarado de tais missões de caça a cabeças foi a captura ritual de nomes inimigos para a própria prole. Antes das missões de caça a cabeças, os ‘chefes’ davam magia de cachorro para os seus guerreiros para fazê-los cachorros, de forma que eles pudessem caçar humanos como ‘carne’ e assim retornar com cabeças e nomes. Humanos caçam outros humanos como se eles fossem porcos ou casoares (‘seveka’, literalmente, carne para ser comida) e têm que se tornar cachorros (através da magia) para fazê-lo. Homens retornam dessas expedições com cabeças humanas e nomes para serem distribuídos. Relações entre grupos que se reconhecem como humanos (relações simétricas) se envolvem em casamentos por troca de irmãs e partilha dos segredos das casas de homens. ILHA volume 12 - número 1

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Para se tornar um pai, um homem procriativo que gera vida humana, ele tinha que ser um guerreiro consumado e o destruidor da vida humana (Mimica, 2003). Os recipientes dessas cabeças/nomes assumiam a identidade da vítima e muitas vezes eram reconhecidos como tal pelo inimigo. Esses nomes e identidades são propriedades de clãs patrilineares e passados de pai para filho. Assim como na caça a cabeças, a criança adquire a identidade do nome. Isso significa que uma única identidade pode viver através de múltiplos corpos. Um de meus amigos, um representante Boazi na comissão do CMCA falou: “Eu sou Zumoi, o primeiro homem”. Dema No relato de Scott sobre os Arosi, ontologia se torna sinônimo de origens e grupos de linhagem nativos. No meu relato dos Marind, que também postulam múltiplas origens, eu reservo ontologia para me referir a algo totalmente diferente. Afirmo que, para os Marind, os conceitos ‘dema’ e ‘kuma’ (dentro) têm uma função análoga à que natureza e contexto exercem em descrições euro-americanas, de tal forma que no meu próprio relato eu procuro substituí-los. O efeito é profundo. Dema tem muitos significados, mas uma interpretação geral pode ser aquela dimensão de qualquer coisa que escapa ou resiste à nossa capacidade de conhecê-la. Também está relacionado a kuma, que se refere ao interior ou à parte escondida de qualquer coisa. Adolf Jensen (1963) propôs uma teoria da religião melanésia baseada na generalização do conceito Marim-anim de dema como uma categoria universal. A proposta foi bem recebida pelos estudiosos da religião em vários cantos da antropologia. Segundo Jensen, todos os ancestrais míticos são dema. Aqui eu gostaria de propor que o conceito de dema possa ser redescrito melhor como um possível análogo melanésio do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 1998), pois ele incorpora/corporifica a ideia de “intencionalidade apreendida”, assim como também desloca as noções euro-americanas de ‘natureza’ e ‘corpo’. Esse mundo está composto de sujeitos, não de objetos.

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Apesar de o dema pertencer ao passado, eles ainda são muito presentes. Eles se fazem presentes no corpo durante performances rituais. Eles se fazem presentes em histórias, que não são contadas mas encenadas com “uma atmosfera palpável de mistério” (Van Baal, 1966). Eles estão sempre presentes na paisagem, e são associados com lugares que um dia habitaram ou visitaram, estranhas características naturais como redemoinhos, pedras com formatos estranhos e animais ou árvores extraordinariamente grandes. Habilidade na caça, pesca e certos tipos de bruxarias são atribuídos a relações especiais com dema. Eles são invocados em fórmula mágica de forma a criar um efeito desejado, como convocar ou repelir tempestades, atrair o sexo oposto ou animais de caça e causar doença e morte. Eles podem ser encontrados tanto no mato quanto nos sonhos. O dema pode aparecer sob forma humana, animal ou de planta. Contaram-me que, quando eles assumem forma humana, são muitas vezes homens brancos. Os homens têm barba longa, e as mulheres parecem “asiáticas” com longos cabelos pretos. Ouvi uma história sobre um homem que foi caçar no meio da noite e teve um estranho encontro com o porco dema. Era muito grande, brilhava e andava com uma quantidade incomum de outros porcos. De modo geral, dema são associados com qualquer coisa sinistra ou esquisita. Eles invocam a presença de espanto, medo e mau agouro, a impressão de que alguma coisa pode acontecer a qualquer momento. Eles incorporam (embody) o poder sobre a vida e a morte. Você nunca sabe de antemão o que o corpo pode fazer ou os efeitos que possa ter. Por corpo me refiro ao de qualquer sujeito ou pessoa, seja humano, animal, espiritual, paisagem, e coisa/dádiva. Capacidades são sempre internas e escondidas até que provocadas ou reveladas. Elas são sempre parcialmente ocultadas, com potencial de capacidades ilimitadas ou infinitas. Os modos Marind de objetificação funcionam por meio de demonstrações concretas na fala e nas ações com o propósito de subdeterminar (under-determine) qualquer imagem ou pensamento determinado do corpo. Isso aparece especialmente nos objetos das casas de culto ao estarem associados com dema, assim como no ritual Ngmoi dos Boazi. ILHA volume 12 - número 1

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Tradicionalmente, essas relíquias eram mantidas coletivamente nas casas de culto, em uma kwimba, um moisés feito de palmeira negra, dependurado no poste central da casa de culto, e ficavam sob os cuidados de seus pais e irmãos mais velhos. Sem esse cuidado constante, esses objetos poderiam facilmente enlouquecer violentamente, a ponto de não reconhecerem seus parentes ou com quem possuem relações de afinidade (outras casas de culto da região) e matarem indiscriminadamente. Esses objetos de troca são vistos como possuindo corpo e vontade própria, e necessitam ser domesticados da mesma maneira que um ‘pai’ é capaz de domesticar um animal selvagem ou um estrangeiro. Antes de tocar no objeto, a pessoa deve esfregar as mãos em suas axilas para que o objeto se familiarize com o cheiro de seu corpo. Acreditando que as casas de culto atrasavam o seu desenvolvimento, em 1987, três casas de culto diferentes na região de Meio Flye e do Lago Murray foram destruídas por membros locais da Igreja Evangélica de Papua Nova Guiné (Evangelical Church of Papua New Guinea – ECPNG). Da casa de culto Mbegua, oito crânios foram levados para os povos Pare e Samo, no Rio Strickland, um para cada clã. Os Zimakani, no entanto, destruíram a cabeça de Kau, o gigante, depois que o Museu Nacional de Papua Nova Guiné aparentemente recusou aceitá-lo como parte de sua coleção. Foi esmagado e enterrado na terra, e uma casa foi recentemente construída sobre o lugar. O museu, todavia, aparentemente aceitou outros itens da casa de homens Zimakani, incluindo um zunidor,7 duas pedras mágicas e a colher de cal usada por Kau. Havia outro objeto, de madeira, que os Zimakani guardaram no recipiente de palmeira negra junto com o crânio. Uma pessoa disse que foi encontrado boiando no rio e reverenciado como um objeto-espírito. Outro objeto estava sendo guardado por um ancião, mas foi recentemente trocado com um falante de Yei por um jovem por um pouco de tabaco indonésio. Os Tomak destruíram as duas cabeças que eles possuíam, a de uma das mulheres de Kau e também a de sua filha adotiva, que eram mantidas em Wangawanga. Como ocorreu com a cabeça de Kau, essas cabeças foram esmagadas e enterradas. Duas mangueiras foILHA volume 12 - número 1

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ram plantadas sobre elas. Aparentemente, os Kamek também guardavam um pequeno “avião” e uma bíblia muito antiga, mas o conhecimento sobre essas peças se perdeu quando os indivíduos que as guardavam morreram. Todavia, eles ainda guardam dois objetos secretos de pedra, um dos sapatos de Nggiwe e também o espírito de Wewaz, uma pequena ilha atrás de Tinunge que funcionava como o barco de Nggiwe quando ele distribuía as pessoas. Dois outros objetos, o zunidor Nggiwe e o seu cordão umbilical, que ficava amarrado em sua cintura e era preso ao sol, estão atualmente nas mãos de um homem Qozi (falante de Bian-Marind) chamado Amandus, que é casado com uma mulher Yei e mora do outro lado da fronteira internacional. Existe uma história circulando que conta que o homem branco tem que voar até a lua, mas que Amandus uma vez puxou a lua até a terra e deixou nela seu arco, algumas flechas e seu cocar para que fossem encontrados por cientistas (astronautas), que aparentemente encontraram e em seguida os devolveram para ele. Em 2001, a parte da frente e de trás da canoa, ou as regiões do Meio Fly e de Papua do Oeste, se juntaram na aldeia de Yei-nan dos Po na Papua do Oeste para erguer uma grande estátua de “JesusNggiwe”. De acordo com o que me contaram, o homem branco e a Igreja Católica não foram capazes de erguer a estátua com seus caminhões e equipamentos. Eles então pediram para os papuanos, a parte de trás da canoa, se eles conseguiriam com os seus costumes levantar a estátua. Eles tentaram e não foram capazes. Então, eles chamaram a parte da frente da canoa, Nggiwe-lek, para ajudar. Várias pessoas das aldeias do Meio Fly, especialmente Kamek, Wamek e Komaizi, compareceram. Usando relíquias que pertencem ao povo do Meio Fly (os Kamek, especificamente), incluindo o zunidor e o cordão de Nggiwe, eles conseguiram fazer a estátua ficar em pé. Ela se inclinou para frente, como se os reverenciando, antes de se assentar. Também aprendi que em 2005 os Yei-nan atravessaram a fronteira da Indonésia para a Papua Nova Guiné para honrar e limpar ritualmente o lugar onde Kau, o gigante, foi morto.

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Durante meu trabalho de campo, a aldeia de Wangawanga, base para grande parte da minha pesquisa, estava tentando convidar a parte de trás da canoa à sua gia-ve ou casa de culto para as iniciações como uma ‘retribuição’ por esse evento e outras vezes que eles foram às casas Bian e Yei-nan. Isso teria incluído encenar ritualmente a matança de Passova, a Mulher Velha, com o uso de cocos, e também a demonstração das relíquias que restam em uma plataforma de bambu para que todos pudessem vê-las. Isso teria incluído o sapato de Nggiwe, o espírito de Wewaz, aut ou zunidores e também o farog, que foi dado a eles por Nggiwe e que liderava os grupos de caça a cabeças atacando o inimigo, enfraquecendo-o e cansando-o sem que ele percebesse, ficando incapaz de revidar. Dizia-se que, quando eles viessem, eu teria que ajudar a iniciar os homens nos segredos de Kamek, introduzindo o dedo em seus anus, de modo a desencorajá-los a usar seu novo conhecimento para fortalecer suas práticas de sawanggi, ou bruxaria, pela qual os papuanos do oeste têm uma grande reputação (Van Baal, 1966). Um dia um homem Yei-nan chegou com a mensagem de que não era um bom momento para eles e então eles declinaram o convite, de modo que as iniciações nunca aconteceram. Em vez disso, eles decidiram que iriam me mostrar o ritual Ngmoi, que, segundo eles, apresentaria o verdadeiro segredo dos Boazi, a capacidade de “reciclar vida através da morte”. Em outras palavras, o poder sobre a vida e a morte. No ritual todos vão caçar, matando o máximo de porcos e casoares possível. Enquanto os iniciados se fartam com a carne, os anciões pegam um ou dois animais mortos, colocam-nos em uma plataforma e decoram-nos como se fossem humanos. Quando prontos, os iniciados são chamados para a plataforma com os olhos cobertos. Quando permitem que eles abram os olhos, o líder canta uma canção para a cabeça cortada do gigante. Nesse momento tudo fica imóvel e em silêncio, até os pássaros. Os iniciados então percebem o movimento nos olhos dos animais decorados, e a plataforma é subitamente puxada por uma distância. Para o choque e a admiração de todos os presentes, o animal antes morto agora está vivo. ILHA volume 12 - número 1

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Essa capacidade regenerativa está também presente na identificação da cabeça humana com o coco, e do sêmen com o leite. A maioria das histórias contam a origem do coco como uma árvore que brotou de uma cabeça decapitada que foi enterrada em um ninho de pássaro (bush fowl). Quando os homens voltavam de uma caça a cabeças com as cabeças de inimigos e os nomes para dar a seus filhos, era comum que pendurassem as cabeças em cachos, como se elas fossem cocos. Daí o reconhecimento da mesma identidade através de corpos tanto na caça a cabeças quanto na descendência. Quando o sêmen é coletado no ventre e começa a coagular com o sangue feminino, é a cabeça que se forma primeiro. Quando os homens se esgotam durante a copulação ritual, entre parceiros eles reabastecem seu sêmen e sua energia comendo coco. Juntamente com o bambu e o sol, o coco é também um meio predominante para se falar do ciclo da vida humana. Os mais novos custam a entender por que suas cabeças ainda estão cheias d’água. Os velhos já estão secos e prontos para serem plantados novamente. A criança já está no processo de se tornar o pai. O sol também é percebido como uma cabeça decapitada, a do gigante. O corpo é holográfico, autogenerativo por todas suas partes (Mimica, 1981). De certa forma, isso é exatamente o que os Boazi, a autodenominação da gente do Meio Fly, dizem. O nome ‘Boazi’ é um tipo de contração de ‘boan gazi’, que significa literalmente ‘geração começando’. A palavra ‘boan’ refere-se à geração em qualquer escala, incluindo família, clã (que é muitas vezes referido como “canoa”), metade, grupo territorial, nação etc., mas na maioria das vezes se refere a clã (Van Baal, 1966). Também pode referir-se à genitália humana (Busse, 1987). De fato, os Nggiwe-lek (povo Nggiwe) no lado da Papua do Oeste são conhecidos no oeste como uvik boan, o povo pênis. Ter tal ‘corpo’ como substituto para natureza e contexto obvia a imagem do cosmos ordenado e do corpo singularizado. Desloca os efeitos das estratégias de contextualização euro-americanas, deixando pouco terreno para caminharmos com segurança. Tal conceito do corpo também ecoa com ideologias linguísticas melanésias, teorias da mente, feitiçaria e o modelo de Strathern de socialidade melanésia. ILHA volume 12 - número 1

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Joel Robbins (2008) foi persuasivo em apontar a necessidade de levar a sério ideologias linguísticas, especialmente no que elas têm a dizer sobre coisas além da língua, incluindo noções de pessoa, gênero, troca e natureza do conhecimento. Ele, entre outros, tem escrito sobre a relação entre a ideologia linguística melanésia e as teorias da mente. Na Melanésia as pessoas dizem que é impossível saber o que está na cabeça de outra pessoa. Robbins observa que, “ao ponto que tais afirmativas sobre a opacidade de outras mentes possam apontar para uma visão geral da vida humana, no contexto nos quais os melanésios fazem essas afirmações, elas são muitas vezes mais aguçadas do que isso, servindo de declarações metalingüísticas sobre os limites da fala” (2008, p. 421). Colocaria que tais ideologias linguísticas melanésias concernem mais do que apenas aos limites da fala ao descrever a mente ou as intenções de outras pessoas (teoria da mente), mas incluem também os limites do conhecimento, as representações e as descrições como tais. Somos lembrados novamente da base melanésia da teoria de obviação simbólica de Wagner, como também da teoria de Strathern de descrição, que se mantém agnóstica em relação a uma teoria da mente. Invariavelmente, descrições incluem pessoas se referindo a outras pessoas sobre como seres pensantes e que sentem, e atribuem o que eles dizem e fazem ao que pensam e sentem, mas isso não é o mesmo que estudar como as pessoas pensam e sentem, e não é essa a intenção de tal estudo. Como em outras ocasiões, o presente trabalho permanece agnóstico em relação as emoções, estados mentais ou processos mentais das pessoas aqui mencionadas (Strathern, 1988, p. 117-118, 294; Strathern, 1999, p. xii; Viveiros de Castro e Goldman, 2009, p. 27).

Mas ‘palavras’ na Melanésia são uma coisa completamente diferente. Elas têm a capacidade de fazer mais do que descrever, representar ou criar conceitos. Juntamente com certas substâncias humanas e não humanas, elas têm a capacidade de afetar corpos – de conceber e fazer crescer o corpo humano; de domesticar inimigos e animais selvagens; de transformar guerreiros em cães caçadores de ILHA volume 12 - número 1

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cabeça; de dar vida e controlar coisas de pedra ou de madeira, muitas vezes para matar outros seres humanos. Esses exemplos têm a intenção de evidenciar isso, ao destacar uma relação completamente diferente com coisas e palavras, uma relação que jamais subestimaria a alteridade ou o poder de nenhuma das duas! Agora estamos também em um lugar no qual podemos finalmente entender a imagem dos melanésios como sendo paranoicos e obcecados por sexo e feitiçaria (Schwartz, 1973). Paranoicos porque um nunca conhece/entende a mente do outro ou sabe do que seu corpo é capaz. E a feitiçaria, de certa forma, é o modo de ação ou pragmatismo generalizado. Se substituirmos essa concepção de corpo euro-americana pela melanésia nas técnicas corporais, de parentesco, de magia e de troca de Mauss, podem ser vistos os efeitos dos corpos, uns sobre os outros (cf. Viveiros de Castro, 1998). É uma questão de experimentação pragmática: “Tentaremos só para ver”. Mais uma vez, porque nunca sabemos o que o corpo pode fazer. A vida social então consiste no abrir e fechar do corpo a fim de administrar os efeitos que corpos têm uns sobre outros (Strathern, 2004). Tal conceito de corpo é latente também na teoria da ação social melanésia de Strathern (1988, 2004): A imagética pode evocar a condição tanto de corpos ‘físicos’ ou ‘sociais’ (e eu lembro ao leitor que corpo também significa ‘mente’ no contexto melanésio). Desde que pessoas aparecem em formas masculinas, femininas e andróginas, a possibilidade de uma forma surgir de outra é vista como uma possibilidade que se encontra no corpo. Devemos lembrar que pessoas objetificam relações: corpos e mentes são, conseqüentemente, suas manifestações reificadas. E eles sempre devem tomar uma forma clara, isto é, demonstrar uma condição diferenciada. Por um lado, a diferença entre um estado de mesmo-sexo [same-sex] um estado de sexo-cruzado [cross-sex] é a de que uma é uma transformação da outra, pelo outro lado, masculino e feminino são versões analógicas um do outro, cada um agindo de sua própria forma distintiva (Strathern, 1988, p. 298-299).

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Cosmopolíticas Com que tipo de cosmopolíticas, ou políticas da natureza, estamos lidando aqui? Ressonâncias e ecos entre esse relato de socialidade melanésia e perspectivismo ameríndio, de um lado, e realismo especulativo, do outro, nos convidam à comparação (de multiplicidades). Como o Manifesto Abaeté8 deixa claro, o trabalho de Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour e Eduardo Viveiros de Castro se alinham sob a égide de uma única cosmopolítica, a de obviar dentro da antropologia a posição hegemônica da constituição moderna sob a aparência de natureza universal, cultura relativa, indivíduo autônomo e sociedade contratual. Não é surpreendente que Latour vá à guerra armado com uma bomba, aquela do perspectivismo (ou do multinaturalismo – uma cultura, várias naturezas), como ele foi em seu debate com Ulrich Bech sobre a natureza dos cosmopolitismos e das propostas de paz (2004). Latour afirma que Beck pensa que as pessoas estão lutando por um ‘mundo comum’. Na verdade, Latour (2002) argumenta que existe uma guerra de mundos. Por trás de cada política existe um cosmos, e vice-versa. Para ele, o problema é como um ‘mundo comum’ pode ser construído: “Cosmopolitas podem sonhar com o dia em que cidadãos do mundo reconheçam que todos habitam o mesmo mundo, mas cosmopolíticas enfrentam uma tarefa um tanto mais assustadora: ver como esse ‘mesmo mundo’ pode ser composto lentamente” (2004, p. 457). Huon Wardle (2009), outro participante do debate, apela não para um ‘mundo comum’, seja a priori ou a posteriori, mas sim ao estabelecimento do ‘bom senso’ kantiano. O perspectivismo, todavia, parece não partilhar da tentativa de Latour ou de Wardle de costurar o mundo de ‘referência’ ou ‘sentido’, mas explorar a ‘racha entre mundos’, evocando não a lógica de filosofia do estado (Deleuze e Guattari, 1980), mas sim uma máquina de guerra perpétua representada por um xamã e um guerreiro a fim de descolonizar mais a fundo o pensamento antropológico.9 Em suas relações com empresas multinacionais, ONGs e Estado, os Marind não apelam para um ‘mundo comum’ nem para o ILHA volume 12 - número 1

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‘bom senso’. Eles não estão preocupados com uma metafísica de parte e todo, um e muitos. A cosmopolítica melanésia começa, em vez disso, em uma problemática diferente – ou, deveria dizer, em uma matemática diferente –, a infinitude do corpo. Como no perspectivismo, a ontologia delimitada aqui para a Melanésia faz pivô (hinges) no corpo, e não como um lugar de singularidade, mas de multiplicidade. E as relações em ambos também concernem a ontologias ilimitadas ou sínteses disjuntivas (cf. Viveiros de Castro, 2010). O que é verdade em relações entre humanos e animais no perspectivismo ameríndio também o é entre humanos na Melanésia (cf. Strathern, 2005, p. 140). Para os Marind, mesmo a distinção entre humanos e animais faz parte de divisões internas à humanidade. No perspectivismo ameríndio, o corpo cria o ponto de vista. Mudar de ponto de vista exige mudar de corpo. Na Melanésia, por sua vez, o ponto de vista depende da relação. “As pessoas oferecem perspectivas umas sobre as outras por causa da relação entre elas [...] então, ao ocupar diferentes posições, uma pessoa muda não pontos de vista individuais mas relações” (Strathern, 2011). Para os Marind, ponto de vista, seja humano ou animal, diz respeito à direção de ‘predação ontológica’ em qualquer tipo de relacionamento – composição e decomposição (cf. Mimica, 2003 sobre ‘plantar’ e ‘comer’). Para a Melanésia de modo geral, o significado do corpo depende menos do seu tipo do que de suas capacidades e efeitos. Fora da antropologia, particularmente em recentes desenvolvimentos no chamado realismo especulativo, existe um número de posições que fazem eco de certa forma ao que eu estou propondo, seja com o símbolo negativo de Wagner ou com essa concepção do corpo melanésio. O que o realismo especulativo tem em comum com os autores da chamada Nova Etnografia Melanésia – Wagner, Strathern, Weiner e Mimica – e também com a antropologia simétrica de Latour e o perspectivismo de Viveiros de Castro é uma crítica radical das relações do pensamento com o ser ou da relação da cultura com a natureza.

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No livro After Finitude (2008), Meillassoux defende a necessidade absoluta da contingência, que até as leis da natureza são contingentes. Que o mundo é um tipo de hipercaos no qual o princípio da razão suficiente é abandonado mesmo quando o princípio da não contradição é mantido. Isso chega muito próximo da ontologia melanésia elaborada aqui, que procura deslocar a natureza, ou colocála entre parênteses, de uma vez por todas e substituí-la por um corpo que é sempre desconhecido e sem limites. A noção de um corpo afastado (withrawn) ou ocluso, um corpo que pertence tanto a ‘coisas’ quanto a ‘humanos’, também ressoa com a filosofia orientada a objetos de Harman (2005) e Bryant (2011),10 assim como o fato de que não é totalmente relacional, já que não é redutível as suas relações ou efeitos. Talvez seja apenas um acidente que o livro Being and Event, de Badiou, tenha sido originalmente publicado no mesmo ano que o Intimations of Infinity, de Mimica, e o Gênero da dádiva, de Strathern, o que eles têm em comum entre si é uma tentativa de pensar em termos de conjuntos. O que a etnografia de Mimica do sistema numérico dos Iqwaye, posfácio de Wagner, deixou absolutamente claro é que o que estamos lidando ao tratarmos de conceitos de número melanésio é de certa forma próximo à teoria de conjuntos de Cantor no seu tratamento do infinito (cf. Strathern, 2004). Aqui, existem muitas ressonâncias tanto com a afirmativa de Badiou, que ontologia é matemática, especificamente teoria de conjuntos, quanto com seu argumento para o ‘conta-como-um’, que faz uma distinção entre multiplicidades consistentes e inconsistentes. Talvez os recentes interesses em fractais (Wagner, 1991), holografia (Wagner, 2011) e até teoria do caos (Mosko e Damon, 2005), todos advindos da etnografia melanésia, possam ser mais bem explorados em relação à teoria de conjuntos e à topologia, pelo menos como uma possível nova fonte para conceitualização de pensamento e descrição. Não devemos nunca esquecer a diferença entre escrever e ser, mesmo que as tentativas anteriores procurem forjar uma relação entre os dois. A cosmopolítica da antropologia não é a mesma que a cosmopolítica das pessoas com quem trabalhamos. Descrever munILHA volume 12 - número 1

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dos não é o mesmo que vivê-los. Para a cosmopolítica Marind, o corpo é tanto o fator facilitador quanto limitador para determinar a direção de predação ontológica. A questão de como permanecer humano, considerando a presença de novos gigantes na região na forma das madeireiras e mineradoras transnacionais e do Estado mesmo, é tão relevante quanto nunca. Para a antropologia, a cosmopolítica tem como pivô o tipo de corpo que tem uma descrição, mas, mesmo assim, devemos ser cuidadosos para não permitir que a nossa perspectiva consuma a dos outros, em uma forma de canibalismo (Viveiros de Castro, 1996). Mas, como eu espero que esse paper tenha demonstrado, todas essas diferentes preocupações e transformações na antropologia contemporânea, e até na filosofia, já estavam presentes no trabalho de Roy Wagner e na Nova Etnografia Melanésia. Notas 1 Este ensaio lida com a problemática do infinito nas cosmologias melanésias, em particular em sua relação com o corpo, seja ele humano, animal, espírito, coisa ou terra. Eu recentemente descobri “Crystal Forest”, de Viveiros de Castro (2007), no qual ele discute a mesma questão em relação às cosmologias amazônicas. Tivera eu tido acesso a esse texto com antecedência, ele certamente teria contribuído para a presente discussão. 2 Publicado no Brasil em 2010. 3 No original: “an open-ended, infinite world”. 4 1988 é também o ano de publicação original em francês do livro de Alain Badiou: Being and Event. Certamente não é uma coincidência, já que esse é um texto ao qual eu retornarei na conclusão. 5 Essa antropologia não relacional encontrou terreno fértil nas descrições da Melanésia nos trabalhos de Andrew Moutu (2003) e de Tony Crook (2007) (sem mencionar Scott e a minha própria teorização sobre o dema Marind) e também na economia do conhecimento euro-americana de Alberto Corsin-Jimenez (2004). 6 Esta origem é fractal, conserva uma semelhança a diferentes escalas, sendo o umconta-como-um ou dois em si mesmo uma decisão sobre a presentação da forma. Isso está também relacionado a duas expressões correntes no Meio Fly: 1) “Você vê ele? Não para você pensar que somos diferentes. Somos iguais (‘koepo’)”; e 2) “Não vá pensar que somos iguais. Somos diferentes”. 7 Tipo de instrumento musical. 8 Disponível em: . 9 Na medida em que Viveiros de Castro infiltrou algo da ontologia ameríndia dentro dos termos de referência euro-americanos e antropológicos, literalmente os trans-

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formando internamente, ele infectou a antropologia com um tipo de vírus. Vamos ver se espalha! 10 A filosofia orientada a objetos tem conhecidos antecedentes na teoria ator–rede, especificamente na noção de actantes (cf. Harman, 2009).

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Perspectivismo multinatural como transformação estrutural Jose Antonio Kelly Luciani Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil E-mail: [email protected]

Tradução: Paola Gibram e Milena Argenta

Jose Antonio Kelly Luciani

Resumo

Abstract

O objetivo deste artigo é demonstrar que o que ficou conhecido como perspectivismo multinatural (PM) (Viveiros de Castro, 1998) pode ser visto como uma transformação estrutural do totemismo e que, por essa razão, o PM tem uma íntima relação com a fórmula canônica do mito (FCM) de Lévi-Strauss. A primeira parte deste artigo mostra como podemos chegar à configuração das categorias natureza/cultura e humano/não humano particular ao PM aplicando uma ‘dupla torção’, a transformação característica da FCM, à clássica descrição lévistrausseana do totemismo. A segunda parte explora as reflexões de LéviStrauss sobre as transformações totêmicas desenvolvidas nO pensamento selvagem. A terceira e última parte do artigo busca elucidar a íntima relação entre a FCM e o PM com base nos elementos da teoria da obviação de Wagner (1978).

The object of this chapter is to demonstrate that what has come to be known as multinatural perspectivism (MP) can be seen as a structural transformation of totemism, and that for this reason MP has an intimate relation with Lévi-Strauss’s canonical formula for myth (CFM). The first part of the chapter shows how we can arrive at MP’s particular arrangement of the nature/culture and human/nonhuman categories by applying a “double twist”, the CFM’s characteristic transformation, to the classic LéviStraussian description of totemism. The second part explores Lévi-Strauss’s own thoughts on the transformations of totemism as developed in The Savage Mind (1969). The third and last part of the essay aims to elucidate the intimate relation between the CFM and MP drawing on elements of Wagner’s (1978) theory of obviation. In so doing, I hope to illustrate some affinities between Lévi-Strauss’s and Wagner’s approach to meaning.

Palavras-chave: Fórmula Canônica do Mito. Perspectivismo multinatural. Totemismo. Obviação.

Keywords: Canonical Formula for Myth. Multinatural Perspectivism. Totemism. Obviation.

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Introdução

O

objetivo deste artigo é demonstrar que o que ficou conhecido como perspectivismo multinatural (PM) (Viveiros de Castro, 1998) pode ser visto como uma transformação estrutural do totemismo e que, por essa razão, o PM tem uma íntima relação com a fórmula canônica do mito (FCM) de Lévi-Strauss. A primeira parte deste artigo mostra como podemos chegar à configuração das categorias natureza/cultura e humano/não humano particular ao PM aplicando uma ‘dupla torção’, a transformação característica da FCM, à clássica descrição lévi-strausseana do totemismo. A segunda parte explora as reflexões de Lévi-Strauss sobre as transformações totêmicas desenvolvidas no pensamento selvagem. A terceira e última parte do ensaio busca elucidar a íntima relação entre a FCM e o PM com base nos elementos da teoria da obviação de Wagner (1978). Assim procedendo, espero ilustrar algumas afinidades entre as abordagens de Lévi-Strauss e Wagner sobre a significação.1 Parte I: PM e totemismo Deixe-me agora começar a primeira parte da minha demonstração: de que o PM é uma verdadeira transformação estrutural do totemismo, uma ideia inspirada numa sugestão do próprio Viveiros de Castro (2008 p. 111-112, grifos no original) sobre essa relação: Sobretudo, decerto não é por acaso que os dois últimos livros “mitológicos” de Lévi-Strauss sejam construídos como desenvolvimentos precisamente dessas duas figuras do dualismo “anti-estático”: A oleira ciumenta (1985) é uma ilustração sistemática da fórmula canônica, ao passo que a ILHA volume 12 - número 1

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História de Lince concentra-se na instabilidade dinâmica – o “desequilíbrio perpétuo”, expressão que fez sua primeira aparição n’As estruturas elementares do parentesco, para descrever o casamento avuncular dos Tupi – das dualidades cosmo-sociológicas ameríndias. Isso me faz supor que estamos diante de uma única macro-estrutura virtual, da qual a fórmula canônica, que pré-desconstrói o analogismo totêmico do tipo A/B=C/D, e o dualismo dinâmico, que corrói a paridade estática das oposições binárias, seriam apenas duas atualizações. Com a fórmula canônica, em lugar de uma oposição simples entre metaforicidade totêmica e metonimicidade sacrificial, instalamo-nos imediatamente na equivalência entre uma relação metafórica e uma metonímica, a “torção” que faz passar de uma metáfora a uma metonímia ou vice-versa: a famosa “dupla torção”, a “torção supranumerária”, o “double twist” que na verdade é transformação estrutural por excelência. A conversão assimétrica entre o sentido literal e o figurado, o termo e a função, o continente e o conteúdo, o contínuo e o descontínuo, o sistema e seu exterior – esses são os verdadeiros temas estruturalistas, que atravessam todas as análises lévi-straussianas da mitologia, e mais além. O devir é uma dupla torção.

Totemismo, na clássica descrição de Lévi-Strauss (1989), estabelece uma relação de homologia entre as diferenças internas a uma série natural de animais/não humanos e as diferenças internas a uma série cultural de grupos humanos. Diferenças na série natural correspondem, dessa forma, às diferenças nas séries culturais. Nesse ponto de vista, nenhuma verdadeira transformação ocorre entre as séries natural e cultural, ocorrendo apenas uma homologia entre as relações A/B = C/D. Isso pode ser expresso pela seguinte representação gráfica – certamente não ortodoxa – do totemismo:

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Figura 1 – Representação do totemismo clássico

O ponto traçado representa uma relação, qualquer que seja, entre animal e animal (A/B) e entre humano e humano (C/D). A sua idêntica localização tanto no ‘espaço natural’ como no ‘espaço cultural’ significa a homologia – a ausência de qualquer transformação na passagem de um espaço ao outro. Uma transformação estrutural do totemismo exigiria aplicar uma ‘dupla torção’ a essa configuração, do tipo que aparece no último elemento da FCM: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y). Primeiro, os termos devem substituir as relações. Isso constitui uma inversão de figura e fundo, correspondendo à torção na FCM na qual ‘y’ em Fy(b) passa de uma função a um termo em Fa-1(y) sobre o qual se aplica uma função.

Figura 2 – Inversão figura e fundo do totemismo clássico

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Agora o que era um espaço transformou-se em um eixo, ou seja, ‘natureza’ e ‘cultura’ agora operam como eixos e, de maneira correspondente, ‘humano’ e ‘não humano’ tornam-se espaços. Isso já nos aproxima da configuração do PM; agora, ‘natureza’ e ‘cultura’ não são dois domínios ontológicos, mas variáveis internas aos espaços humano e não humano. Qualquer ponto traçado nesse espaço, ou seja, qualquer relação, é uma relação N/C que podemos interpretar como a conjunção de uma visão reflexiva – ‘cultura’ ou ‘humanidade’ – e a ‘perspectiva do Outro’ – ‘natureza’. A segunda torção requer que invertamos os dois novos termos a serem relacionados, ou seja, ‘natureza’ e ‘cultura’. Isso corresponde à torção no quarto termo da FCM de ‘a’ em ‘a-1’. Em nosso caso, podemos interpretar ‘a’ como ‘natureza’ e ‘a-1’ como ‘natureza-1’, que pode somente ser ‘cultura’: aquilo contra o qual a natureza é definida.

Figura 3 – Inversão dos termos (natureza e cultura)

Dessa vez, a diferença na localização da relação traçada é uma consequência da mudança no eixo do espaço não humano, de tal forma que a ‘natureza’ no espaço humano corresponde à ‘cultura’ no espaço não humano. Isso representa a diferença de perspectiva entre humanos e não humanos e deixa-nos com uma transformação bidirecional HmoNH na configuração de reciprocidade de perspectiva do PM, em que N/C torna-se C/N, cada um indicando uma dupla perspectiva (reflexiva e Outro) interna a cada espaço.

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Se essa demonstração é verdadeira, podemos dizer que existe uma função chamada ‘transformação estrutural’ que converte o totemismo em PM: Ftransformação estrutural (totemismo) = PM Na terceira parte deste artigo eu exploro algumas implicações dessa conexão. Antes de chegar lá, no entanto, vale a pena considerar algumas reflexões de Lévi-Strauss sobre as possíveis transformações do totemismo. Parte II: Transformações do totemismo É bem sabido que Lévi-Strauss desinstitucionalizou o totemismo ‘clássico’ e fez dele o modo primário e universal da racionalidade. Isso ele fez principalmente em O pensamento selvagem, analisando uma série de configurações de natureza/cultura como transformações do totemismo. Quando discute uma forma de totemismo Tikuna, por exemplo, ele escreve sobre o uso que eles fazem de ‘roupas’ animais como emblemas para diferenciar grupos sociais e conclui: A pele, as penas, o bico, os dentes podem ser meus, pois são aquilo pelo que o animal epônimo e eu diferimos um do outro; essa diferença é assumida pelo homem a título de emblema e para afirmar sua relação simbólica com o animal, ao passo que as partes consumíveis, portanto, assimiláveis, são o índice de uma consubstancialidade real, mas que, ao contrário do que se imagina, a proibição alimentar tem como objetivo verdadeiro negar (Lévi-Strauss, 1989, p. 124).

Eu aponto isso porque, conforme veremos na Parte III, a FCM oferece uma visão holográfica das relações, em que a assimetria aqui notada por Lévi-Strauss entre semelhança e diferença, em que a primeira deve ceder à última para que a cultura seja extraída da natureza e simultaneamente torne os grupos humanos diferentes uns dos outros, é dissolvida e mostra-se ser reversível; é, portanto, uma ilusão – ainda que seja uma ilusão necessária. O que Lévi-Strauss aqui chama de negação, tout court, a própria FCM mostra ser uma obviação ILHA volume 12 - número 1

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(Wagner, 1978): a semelhança só pode ser relegada ao plano de fundo (backgrounded) se ignorarmos outros contextos em que será a diferença que assume o plano de fundo, sendo a semelhança colocada no primeiro plano (foregrounded). Isso é precisamente o que acontece quando Lévi-Strauss desloca sua formulação clássica de totemismo de um sistema de relações homólogas entre diferenças para um sistema de relações homólogas entre termos. Nesse caso, o conteúdo implícito da estrutura não será mais que o clã 1 difere do clã 2, como por exemplo, a água do urso, mas que o clã 1 difere do clã 2, como por exemplo, a águia do urso, mas que a natureza do clã 1 e a natureza do clã 2 serão isoladamente colocadas em causa, no lugar de uma relação formal entre os dois (1989, p. 133).

Essa mudança de nós vermos a analogia como metáfora para vê-la como semelhança coloca o sentido de ‘humanidade’ e ‘animalidade’ em questão – a natureza dos clãs são ‘mises en cause’. Nesse estágio, Lévi-Strauss observa, mais como um experimento ideacional, como ambos os aspectos do totemismo trabalham um contra o outro: quanto mais as diferenças sociais entre os grupos humanos são ressaltadas, menos a semelhança entre os animais pode ser afirmada; e quanto mais profunda for a semelhança com animais, “ser-lhe-á cada vez mais difícil, no plano social, manter suas ligações com outros grupos e, muito especialmente, permutar com eles suas filhas e irmãs, pois tenderá a representá-las como se fossem de uma ‘espécie’ particular” (Lévi-Strauss, 1989, p. 135). O efeito que Wagner atribui ao trabalho combinado de duas formas de simbolização – convencionalizante e diferenciante – Lévi-Strauss enxerga no modo de operação, por assim dizer, perpendicular de dois esforços de simbolização convencional (i.e. duas formas de classificação com propósitos cruzados). Novamente, isso é o que a FCM de Lévi-Strauss vai ‘corrigir’, ao mostrar a intercambialidade entre metáfora e metonímia. Entretanto, Lévi-Strauss parece não ter buscado todas as consequências do totemismo, ressaltando tanto analogia como metáfora (formulação totêmica clássica) quanto analogia como semelhança (formulação totêmica deslocada). Considere, por exemplo, seus comentários sobre uma etnografia Chickasaw em que ILHA volume 12 - número 1

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a partilha de comportamentos entre humanos e animais aparece de forma extrema (as pessoas raposa-vermelha são ladrões profissionais, as pessoas gato selvagem dormem durante o dia e caçam à noite etc.): “Nenhuma sociedade poderia se permitir a esse ponto ‘iludir a natureza’, pois se cindiria numa multidão de bandos independentes e hostis, cada um deles negando aos outros a qualidade humana” (Lévi-Strauss, 1989, 137-138). Vale ressaltar que o PM exige uma visão expandida da sociedade que deve, precisamente como aquela que Lévi-Strauss vislumbra na impossível sociedade animal-totêmica, ser ‘dividida’ em seres humanos e uma variedade de seres não humanos, cada um, se não ‘negando a humanidade de outros’ em todos os planos, definitivamente negando a humanidade, além de lhe reconhecer uma perspectiva reflexiva pelo seu estatuto de agente. Talvez a transformação mais interessante que Lévi-Strauss examina é aquela que converte grupos totêmicos em castas, pois essa transformação de grupos animais totêmicos exogâmicos em castas funcionais endogâmicas envolve uma dupla torção do tipo da FCM, como Viveiros de Castro (2009, p. 143, tradução minha) nos lembra: é precisamente porque as espécies totêmicas são endopráticas – os ursos casam com ursos, lynce casa com lynce – que são aptas para significar espécies sociais exopráticas – a gente do clã do urso casa com os do clã do lynce. As diferenças externas tornam-se diferenças internas, distinções tornam-se relações, termos viram funções. Uma fórmula canônica se esconde atrás do totemismo – Aquela que transforma a máquina totêmica em uma máquina de castas […].

Contrariamente à sua opinião sobre a Chickasaw – que ele descreve como um ‘meio caminho’ entre grupos totêmicos e castas –, Lévi-Strauss considera as castas culturais/funcionais como uma forma realizável de transformação social do totemismo. Suspeito que isso é ao menos em parte devido à adesão de Lévi-Strauss ao componente metafórico da analogia, o que o impediria de conceber (ao menos n’O pensamento selvagem) um conceito como o multinaturalismo ou a associação entre natureza/unidade/estatuto de inato e cultura/ diversidade/artificialidade aparecendo em outra configuração. Isso, ILHA volume 12 - número 1

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penso eu, é a essência da crítica de Wagner ao fato de Lévi-Strauss ter-se “detido antes de chegar as conclusões completamente relativistas”, nas páginas finais d’A invenção da cultura (1981, p. 150). Nota-se, portanto, que é um tanto paradoxal que essas conclusões ‘completamente relativistas’ estejam disponíveis na FCM – como será visto de forma mais detalhada na Parte III. A seguinte passagem sobre a relação entre castas e grupos totêmicos ilustram a aparente impossibilidade de um multinaturalismo e uma correspondente cultura única e dada na análise de Lévi-Strauss (1989, p. 142-143). Com efeito, existem apenas dois modelos verdadeiros da diversidade concreta: um, no plano da natureza, é o da diversidade das espécies; outro, no plano da cultura, é oferecido pela diversidade das funções. Colocado entre esses dois modelos verdadeiros, aquele que os intercâmbios matrimoniais ilustram apresenta um caráter ambíguo e equívoco, pois as mulheres são semelhantes quanto à natureza, e é somente em vista da cultura que podem ser colocadas como diferentes: mas, se prevalece a primeira perspectiva (como é o caso, quando o modelo da diversidade escolhido é o modelo natural), a semelhança se sobrepõe à diferença: sem dúvida, as mulheres devem ser trocadas, pois se decretou que são diferentes; mas essa troca no fundo supõe que elas sejam tidas como semelhantes.

Nessa visão, os grupos totêmicos estão sob uma ilusão, precisamente porque o seu modelo de diversidade é a natureza – o que em última análise impõe a sua unidade –, e não a cultura – que é o meio verdadeiro de diferenciação dos seres humanos. Se a possibilidade multinatural fosse considerada, a assimetria entre castas e grupos totêmicos desapareceria: ambos estariam igualmente sob ilusões reais. Lévi-Strauss continua (1989, p. 145-146): Portanto, não é a mesma coisa introduzir uma diversidade (socialmente) constituinte no seio de uma única espécie natural, a espécie humana, ou projetar no plano social a diversidade (naturalmente) constituída das espécies vegetais ou animais. As sociedades de grupos totêmicos e de seções exógamas crêem em vão que conseguem jogar o mesmo jogo com espécies que são diferentes e com mulheres ILHA volume 12 - número 1

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que são idênticas. Elas não se dão conta de que, sendo as mulheres idênticas, só depende da vontade social torná-las diferentes, ao passo que, sendo as espécies diferentes, ninguém pode torná-las idênticas, ou seja, todas passíveis do mesmo querer: os homens produzem outros homens, não produzem avestruzes.

Aqui, o contraste entre grupos totêmicos e castas liga o caráter inato da natureza e o caráter construído da cultura. Mais uma vez, se a possibilidade de uma cultura dada e de uma natureza artificial fosse concebível, Lévi-Strauss com certeza teria redirecionado esse argumento. Antes de continuar, quero deixar claro que o ponto dessa discussão tem sido explorar as formas como Lévi-Strauss concebeu as transformações do totemismo. Devemos ter em mente que em outras partes do trabalho de Lévi-Strauss as coisas aparecem de forma bastante diferente; tudo se passa como se ele estivesse puxando seu próprio tapete. No mesmo espírito ‘totalmente relativista’ da FCM, por exemplo, ele observa, no final de O homem nu, como a mudança na estrutura dentro de um grupo de mitos é inseparável de um movimento correlativo de um registro semântico ao outro. Essas transformações ele equipara a inversões de imagens da esquerda para a direita, de cima para baixo, e de positivo para negativo. Em suma, trata-se de reversões de figura e fundo “semelhantes ao mecanismo do trocadilho que, quando usado corretamente, faz com que uma palavra de uma frase mostre, como na forma de um negativo, o outro significado que a mesma palavra ou frase pode assumir, se transposta para um contexto de lógica diferente” (1990, p. 650). A semelhança entre essa maneira de conceber a transformação estrutural e o processo obviacional de Wagner é clara. Merece nossa atenção uma última comparação: de acordo com Viveiros de Castro (2009, p. 42, tradução minha), o PM é uma transformação do tipo FCM do multiculturalismo. A noção de multinaturalismo revela-se aqui útil dado seu caráter paradoxal: nosso macro-conceito de ‘natureza’ não pode em verdade ser colocado no plural. Isto imediatamente nos leva a perceber o solicismo embutido na idéia de ILHA volume 12 - número 1

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‘(muitas) naturezas’ e a efetuar o deslocamento corretivo que impõe. Para parafrasear a fórmula de Deleuze sobre o relativismo (1988:30), diremos que o multinaturalismo Ameríndio afirma antes a naturalidade da variação que a variedade das naturezas, ou seja, variação como natureza. A inversão de fórmula ocidental do multiculturalismo não aplica só aos termos (natureza e cultura) na sua determinação de função (unidade e diversidade), mas também aplica aos valores mesmos de ‘termo’ e ‘função’.

Dessa forma, Viveiros de Castro indica que (1) FCM (multiculturalismo) = PM No entanto, isso parece ter nos levado a uma contradição, uma vez que aqui foi mostrado que (2) FCM (totemismo) = PM Como essas duas fórmulas podem ser ao mesmo tempo verdadeiras? Por um lado, o totemismo = multiculturalismo, o que parece bizarro; no entanto, dedicamos um esforço considerável ao mostrar que o totemismo de Lévi-Strauss tem em comum com o multiculturalismo o caráter inato e de unidade da natureza e a convicção de que a verdadeira diversidade só é possível em culturas construídas. Nesse sentido, existe uma equivalência totemismo = multiculturalismo. Por outro lado, a equivalência estabelecida nas duas fórmulas recai sobre diferentes aspectos da configuração natureza–cultura. Em (1) recai sobre a variação unidade/diversidade de cultura e natureza e em (2) relaciona o par humano/não humano com o par natureza/cultura. Em (1) ‘humano’ e ‘não humano’ estão ausentes, nada se sabendo de exato sobre quem são os sujeitos ou os objetos de natureza e cultura. Em contraste, em (2) a questão da diversidade e da unidade não é tratada, havendo apenas díades de ‘espaços’ humanos ou não humanos. As duas transformações, assim, podem tornar visíveis diferentes aspectos do PM. Mas o que é mais interessante, no entanto, é que podemos agora propor que o PM, o naturalismo e o totemismo constituem um grupo de transformações de natureza e cultura sob a FCM. Se assim for, pode-se dizer ILHA volume 12 - número 1

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que essas diferentes ontologias são trocadilhos uma da outra – a diferença entre elas sendo ao mesmo tempo sutil e ‘fazendo toda a diferença no mundo’. Parte III: PM e FCM Ao final da Parte I, sugeri que havia uma função chamada “transformação estrutural” que converte o totemismo em PM da seguinte maneira: Ftransformação estrutural (totemismo) = PM Retorno agora a essa afirmação com o foco na relação intrínseca entre PM e FCM. A inspiração para esta parte do meu argumento vem do comentário de Wagner de que uma asserção perspectivista como a que analiso agora é a “essência do perspectivismo. A ‘analogia comparativa dupla’, como a fórmula canônica do mito de LéviStrauss” (comentário pessoal de Roy Wagner). É notável que Stépanoff (2009, p. 285-286), que critica o PM como teoria de uma ontologia e sua congruência com o material etnográfico siberiano, de fato usa a expressão ‘fórmula canônica’ em relação ao PM: O perspectivismo ameríndio, em sua fórmula canônica expressa por Viveiros de Castro (1998: 470), está intimamente conectado à caça: Os humanos vêem humanos como humanos, animais como animais e espíritos (se o vêem) como espíritos; no entanto, animais (predadores) e espíritos vêem humanos como animais (enquanto presa) do mesmo modo como os animais (enquanto presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predadores). Igualmente, animais e espíritos vêem a si mesmos como humanos [...]. Uma fórmula mais abstrata do perspectivismo, de acordo com Pedersen, seria que “o Outro verá a si mesmo como humano, e assim verá os humanos como Outros”.

Mais adiante, falando sobre narrativas siberianas, ele oferece a explicação seguinte: ILHA volume 12 - número 1

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As Narrativas Chukchi constituem, antes de mais nada, uma reflexão sobre relações, a saber, relações de relações, as quais podem ser expressas satisfatoriamente numa fórmula estrutural clássica: [homem: foca] :: [ke’le: homem] Que significa: a relação entre homem e foca é comparável à relação entre espírito [ke’le] e homem. Do mesmo modo, se pegarmos um famoso exemplo perspectivista amazônico: [homem: cerveja] :: [jaguar: sangue] A relação entre jaguar e sangue é comparável à relação entre homem e cerveja. Uma formulação geral dessas histórias perspectivistas seria: [homem: presa do homem] :: [predador do homem: homem]. (Stépanoff, 2009, p. 289-290, tradução minha).

Penso que Stépanoff se engana ao escolher a imagem de um dualismo estrutural estático para estabelecer seu argumento, pois ele dispensa o caráter ternário de muitos desses dualismos, o qual pretendo mostrar que é também parte da essência das asserções no PM. Lembremos quantos dualismos estruturais são em verdade tríades, em que um termo do par contém em si um outro par compactado. Isso é particularmente evidente nas transformações em cascata batizadas em História de Lince como ‘desequilíbrio perpétuo’ (LéviStrauss, 1991, Cap. xix) e na abordagem topológica de Lévi-Strauss às organizações dualistas, em particular sua discussão do dualismo diametral e concêntrico (Lévi-Strauss, 2005, p. 176-177). Outro ponto crucial que escapa a Stépanoff é que ambos – PM e FCM – dizem algo mais que vai além de ‘é comparável a’ quando se deparam com a divisão humano/não humano. É a natureza dessas relações ‘:’ e ‘::’ que está em questão e que, de algum modo, subverte o significado que adquire nas clássicas comparações estruturais duplas do tipo (x : y :: a : b). Minha sugestão é de que estaremos num caminho melhor ao pensarmos o PM através da FCM. Para sustentar esse argumento, vamos tomar agora uma situação clássica do PM e colocá-la nos termos da FCM.

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Um jaguar vê um ser humano como presa, como um pecari, por exemplo, assim como os pecaris, vendo a si mesmos como humanos, veem um ser humano como um predador, como um jaguar, por exemplo. Aqui temos três termos ou posições: humano, jaguar e pecari. Temos também duas relações que definem essas três posições: uma relação de reflexividade que define uma posição, aquela da humanidade e uma relação de predação que possui dois lados, já que alguém pode predar ou ser predado. É por essa razão que ela define duas posições: predador e presa. Nesse ponto o leitor pode voltar um pouco para trás e notar que a interpretação de Stépanoff das asserções perspectivistas falta-lhe a posição reflexiva, o que explica por que ele termina com um empareamento duplo e fechado que considera apenas a relação predador–presa. Agora podemos reescrever a FCM da seguinte maneira: Fx(a):Fy(b)::Fx(b):Fa-1(y) Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano) :: Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade) O lado esquerdo da equação expressa um fato verificável etnograficamente: que o jaguar é o predador amazônico canônico no mito e na vida, e que a humanidade, como o PM mostra, é a forma da posição reflexiva, o ‘eu’ enunciado. Alguma relação ‘está para’ permanece para ser desvendada quando se explora o outro lado da equação. No lado direito da equação lemos que os humanos como predadores têm algum tipo de relação com uma função ‘jaguar-1’, que é uma função ‘pecari’ (a presa canônica), da reflexividade. Como interpretar tudo isso? O lado direito da FCM torna explícito tudo o que deve ser obviado no lado esquerdo da equação para estabelecer a analogia lá evocada – a relação ‘está para’. Nesse caso, explica quais relações devem ser ignoradas e quais devem ser simultaneamente ressaltadas no lugar para que possamos estabelecer a ‘humanidade’ como a posição reflexiva e a ‘jaguaridade’ como a forma ideal de predação. ILHA volume 12 - número 1

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O que o lado direito evoca é que: a) os humanos também predam e, por isso, são em alguns contextos – principalmente caçando – jaguares. Os humanos devemjaguares. Esse é o ponto de vista dos pecaris que não estava aparente no lado esquerdo da equação, pois aqui ‘vemos’ os humanos apenas representando a posição reflexiva; e b) o estatuto de presa é o correlato da posição reflexiva. Esse é o ponto de vista do jaguar que não estava aparente no lado esquerdo da equação. Isso diz o que todos os indígenas sabem, que eles podem ver a si mesmos como humanos, mas eles são presas (como os pecaris então) do jaguar ou de qualquer outro agente, como espíritos ou outros monstros que tiram vidas humanas. Humanos, então, também devem-pecaris. Outro modo de ver isso se torna claro se organizarmos a FCM como segue:2 Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano) :: Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade) Desse modo, podemos dizer que jaguar e humano são ‘congruentes’ quando a função predador é considerada, deixando o terceiro – termo ainda não presente – implícito: animal (pecari) é ‘a forma do Outro como objeto’. De modo semelhante, a humanidade como a posição reflexiva é ‘congruente’ com a função presa da reflexividade, ou seja, ‘a forma do Eu como objeto’ de outro olhar – também presente apenas implicitamente: animal (jaguar ou divindade, predador do humano), ‘a forma do Outro como sujeito’. Note-se que o lado esquerdo da FCM perspectivista (doravante FCM/PM) representa o ponto de vista humano, enquanto o lado direito representa a perspectiva do Outro, que é decomposta em dois pontos de vista: aquele do jaguar (Fjaguar-1 (reflexividade)) e aquele do pecari (Fpredação (humano)). A consideração de todas essas visões revela a ‘humanidade’ em todas as suas configurações posicionais: não apenas a forma da posição reflexiva, o ‘Eu’ enunci-

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ado, mas também a possibilidade de ser predador e presa, de objetificar o outro ao devir-jaguar e ser objetificado ao devir-pecari (isto é, devirjaguar de outro alguém). O lado direito de uma FCM perspectivista obvia duplamente o lado esquerdo, ao contrastar as possibilidades do devir com a perspectiva convencional de humanidade. Se “obviação é o processo através do qual o terreno de responsabilidade humana deve ser eternamente criado a partir do inato, e o terreno do inato deve ser constituído a partir do artificial” (Wagner, 1978, p. 31), podemos ver como as perspectivas humana e aquelas derivadas do Outro fazem o papel de ‘inato’ (convencional) e ‘artificial’ (devir) uma para a outra. Deixe-nos agora considerar outro exemplo para ilustrar uma variação desse exercício. Retorno aqui à autoetnografia Makuna em Århem et al. (2004, p. 373, tradução minha). [Quando se necessita de uma caça para rituais e festas] o Kûmu [xamã] negocia com o mestre da casa dos animais... Se, por exemplo, haverá uma troca com pecaris, o xamã fala através do pensamento com Wumi buku [mestre da casa dos animais], que após ter chegado a um acordo com o xamã, dirige-se a Kamukuku, mestre dos pecaris, para dizerlhe que deve enviar certa quantidade de cestas de determinado amido de fruta, segundo os termos acordados. Este mestre [da espécie específica, os pecaris] pergunta o que receberá em troca e Wumi buku lhe entrega uma cuia de coca que o xamã havia lhe dado anteriormente... Então Wumi buku diz a Kamukuku para ir a certa parte da floresta para entregar o que foi solicitado. As pessoas saem para caçar e levam cães, armas ou arco e flecha, e assim que os pecaris percebem o grupo de pessoas que está ali para receber as cestas solicitadas, soltam as cestas de amido de fruta no chão; quando as pessoas lançam suas flechas, elas acertam as cestas e os animais que acompanham seu mestre Kamukuku saem correndo. Se a pessoa que foi buscar as cestas de amido de fruta for uma má caçadora e não acertar nenhuma, os animais voltam para suas casas e dizem que entregaram as cestas, mas ninguém quis recebê-las; neste caso, o mestre diz: “Ah certo, não queriam nada” e a negociação deve ser repetida.

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As passagens fluidas que vão desde falar sobre animais até cestas de amido de fruta, e da caça à troca, revelam o desenrolar de dois eventos paralelos que podem ser resumidos como 3 Perspectiva dos humanos: Humanos estão caçando pecaris Perspectiva dos animais: Humanos estão trocando amido de fruta por coca Podemos escrever essa FCM/PM incorporando o que acabamos de aprender, que o lado esquerdo da equação representa a perspectiva humana e o lado direito representa as perspectivas derivadas do Outro. Ftroca (animal) : Fcaça (humano) :: Ftroca (humano) : Fanimal-1 (caça) Nesse caso as duas relações são aquelas da predação (caça) e da troca, e as três posições são aquelas dos humanos, dos animais e do amido de fruta. O lado esquerdo da equação diz que há alguma relação ‘está para’ entre a caça humana e a troca animal que permanece para ser desvendada ao explorar o outro lado da equação. No lado direito da equação, lemos que a troca humana tem algum tipo de relação com uma função ‘animal-1’, ou seja, uma função ‘amido de fruta’ (a forma canônica de comida nesse contexto Makuna) de caça. Como podemos ler isso? A parte direita da FCM explica tudo o que deve ser obviado no lado esquerdo para estabelecer a analogia lá evocada – a relação ‘está para’. Nesse caso, explica quais relações devem ser ignoradas e quais devem ser ressaltadas no lugar para que possamos estabelecer que a caça humana corresponde à troca animal. O que o lado direito evoca é que a) são os humanos que trocam, essa é a perspectiva que os animais têm deles mesmos, eles devem-humanos. Isso não estava aparente no lado esquerdo da equação porque aqui ‘vemos’ apenas aniILHA volume 12 - número 1

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mais representando a troca e, para que isso seja verdade, a humanidade dos animais deve ser explicitada. A troca é uma coisa de humanos; e b) ‘animal-1’, ou seja, ‘amido de fruta’, é o correlato da caça. Esse é o ponto de vista do mestre animal que não estava aparente no lado esquerdo da equação. Isso diz o que os Makuna sabem, que os animais que eles caçam e comem são na verdade amido de fruta, é disso que se trata toda a negociação entre o xamã e o mestre animal. Sabemos por outras partes do texto Makuna que animais devemamido de fruta para que sua constituição de tabaco e coca não cause doenças aos Makuna que os comem. A parte esquerda da FCM perspectivista acima representa o ponto de vista dos humanos, o que inclui o reconhecimento da troca animal. Isso está particularmente presente no entendimento do xamã. Poderíamos dizer que o ponto de vista dos humanos está dividido internamente entre aquele dos caçadores e aquele do xamã, e o último está de algum modo aliado ao dos animais. Essa divisão é sinalizada pelos comentários do narrador Makuna sobre o modo como o xamã “trabalha seus pensamentos”; sobre como seu conhecimento é “complicado” e “difícil de entender”; sobre ele falando de coisas e relações que existem “apenas na imaginação”. De modo algum isso significa que essas relações não são reais, apenas sublinha sua natureza trucada e não aparente. O lado direito nos relembra a perspectiva do Outro, que inclui em si dois aspectos que parecem ser compartilhados por ambos – animais e mestre animal: Ftroca (humanos) diz que os animais veem uma transação, eles deixam as cestas na floresta como parte de uma troca; e Fanimal-1 (caça) afirma que, particularmente no olhar do mestre animal, ele não está distribuindo animais na forma animal (a caça não é caça no fim das contas), mas como amido de fruta. De fato, a coca que ele recebe como troca é a garantia da reprodução animal. Nesse sentido, a perspectiva do mestre animal, que substitui caça/predação por troca/amido de fruta, está ligada àquela do xamã humano com quem a negociação se realiza.

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A congruência entre PM e FCM: algumas percepções Se os argumentos e exemplos acima estão corretos, podemos extrair algumas ideias interessantes: a) uma asserção FCM/PM gera uma visão holográfica “de toda parte”; as perspectivas e suas sombras, por assim dizer, tornam-se aparentes. Esse fenômeno pode ser reconhecido pelas pessoas, mas não pode ser experienciado por um agente – à exceção dos xamãs. A qualquer momento, um ator deve “mascarar” (Wagner, 1981) algumas dessas relações para ser efetivo ao impor seu ponto de vista contra a provável presença de uma perspectiva Outra. Apesar de não ser evidente nos textos Makuna, devemos presumir que, durante a caça em si, caçadores Makuna devem se concentrar em sua excursão como uma caça.4 Uma disjunção entre as visões e as ações do caçador (predatória) e do xamã (troca) é parte da essência na caça Arara (TeixeiraPinto, 2009). Um bom exemplo desse mascaramento necessário vem da descrição de Lima (1996) da caça Juruna. A caça Juruna de fato consiste em dois eventos simultâneos: os Juruna estão caçando pecaris enquanto os pecaris, vendo a si mesmos como humanos, estão engajados em um ataque contra inimigos afins potenciais (os caçadores Juruna). Durante a caça, é de extrema importância para o caçador conservar a posição de enunciador: ele não deve ter medo, ele não deve mencionar ou fazer brincadeiras com suas presas pecaris ou “dará voz” a elas – um movimento fatal que termina em morte (os pecaris capturam um inimigo). Em outras palavras, não importa quão real, durante a caça a humanidade dos pecaris não deve ser evocada, pode apenas estar presente subjugada, no silêncio que ela impõe, assim como as sombras da relação “está para” em um lado da FCM só podem ser aparentes no outro lado. Isso também equivale a dizer que a humanidade e a animalidade dos pecaris devem residir numa relação de evitação: relacionada por separação e mediada por uma terceira (humana) parte; b) as relações “está para” na FCM deveriam então ser lidas como a obviação dupla que deve existir para que a relação de qualquer um de seus termos sujeito–predicado se mantenha verdadeira. Por exemplo, Freflexividade (humano), na qual a humanidade representa a ILHA volume 12 - número 1

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posição reflexiva, só se mantém verdadeira se obviarmos a perspectiva do jaguar (humano como presa) e a do pecari (humano como predador). Igualmente, Fcaça (humano) obvia a perspectiva dos animais (e do xamã Makuna) onde não há caça, mas troca, e a predação não envolve caça e carne, mas amido de fruta. Dando um passo atrás na FCM, é apenas com essa obviação dupla, com a estabilização de cada termo, que as relações analógicas (“está para”) entre os termos no mesmo lado da FCM podem manter-se verdadeiras. É também apenas com essa fixação de uma imagem que podemos considerar que um lado da nossa FCM/PM corresponde a uma perspectiva humana/convencional e o outro a uma perspectiva Outro-derivada que sinaliza as possibilidades do tornar-se. Como podemos ver, há muito mais nas relações “está para” na FCM que a leitura convencional “é comparável a” sugere. A FCM se refere às obviações por trás da possibilidade de comparação. Viveiros de Castro escreve acima: “o devir é uma dupla torção”, certamente ele não está apenas com a FCM em mente, mas também com o PM. E, se Wagner (1986, p. 131) sugere que “obviação é o oposto do estruturalismo”, pode-se também dizer que “a FCM é o oposto do estruturalismo” e pelas mesmas razões. Tudo isso é evidente quando contrastamos a FCM/PM com seu dualismo ternário e sua dupla obviação – a transformação estrutural fundamental nas palavras de Viveiros de Castro – com as analogias duplas do estruturalismo estático. “Devir” e “obviação” são a problematização das analogias “está para” – os sinais “:” e “::”. As analogias ou metáforas são sempre parciais, razão pela qual elas não são apenas mecanismos classificatórios, mas também mecanismos infetuosos, corruptores, contraclassificadores ou dissolventes. A FCM funciona contra si mesma ao revelar a constituição recíproca do símbolo e da realidade, do eu e do outro, como faz o PM. De certo modo, e permitindo-me o jogo de palavras, a FCM coloca a significação em perspectiva (Lévi-Strauss nos diz ao final de O cru e o cozido que os mitos significam significação em si), enquanto o PM coloca a significação em perspectiva; e c) o uso de Lévi-Strauss da FCM torna visíveis as conexões torcidas entre os mitos. Nesse sentido, a FCM transforma os mitos uns ILHA volume 12 - número 1

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nos outros. Mas isso sempre é feito atravessando uma divisa cultural, envolvendo povos distintos. As asserções do PM, de sua parte, expressam transformações de perspectivas através dos campos humanos/não humanos ainda dentro da visão interna de um único grupo cultural. Esse contraste nos lembra os enigmas que nos levaram à descrição do PM: generosidade e avareza simultâneas dos ameríndios no que se refere ao status da humanidade, a primeira relacionada ao animismo e a segunda ao etnocentrismo (Viveiros de Castro, 1998). É bem sabido que as relações interétnicas e humano/não humanas são, na sociocosmologia ameríndia, entrelaçadas, com os estrangeiros considerados tipicamente menos-que-humanos, e não humanos geralmente tratados como grupos étnicos vizinhos. Sob esse aspecto, a congruência entre as asserções do PM e a FCM é menos surpreendente; a transformação que opera é a mesma, o que varia de um caso a outro são os objetos da transformação. Inconclusão Em vez de um apanhado geral dos meus argumentos, termino este artigo com um experimento adicional, uma operação final cujo significado me escapa. Na melhor das hipóteses ofereço uma inconclusão. A operação é a duplicação da FCM/PM sobre si mesma. Retornemos à primeira FCM/PM apresentada: FCM/PM (1):

Fpredação (jaguar) : Freflexividade (humano) :: Fpredação (humano) : Fjaguar-1 (reflexividade)

Recordemos que o lado esquerdo da FCM acima representava a visão convencional da humanidade e que o lado direito revelava perspectivas derivadas do Outro, constituindo também as possibilidades de devir-outro (tornar-se jaguar e tornar-se pecari). Mantendo isso em mente, façamos dos termos 1 e 2 da FCM/PM (1) o primeiro termo de uma nova FCM/PM (2). Façamos também dos termos 2 e 3 da FCM/PM (1) o segundo termo de uma FCM/PM (2). Uma vez ILHA volume 12 - número 1

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que o lado esquerdo da equação esteja pronto, o lado direito será dado pela fórmula em si. FCM (2) se lê a seguir. FCM/PM (2):

Fconv (humano) : Ftornar-se (não humano/Outro) :: Fconv (não humano/Outro) : Fhumano-1 (tornar-se)

Mantendo nossas convenções interpretativas, o lado direito da FCM/PM (2) revela o que o esquerdo encobre: que não humanos também têm convenções, ou seja, que humanos e não humanos são congruentes no que se refere à função “convenção”. Mas a relação entre os termos 2 e 4 se torna recíproca e tautológica: diz que a função “humano-1” (não humano) do devir é congruente à função “devir” dos não humanos. Em outras palavras, no lado esquerdo não humanos “significa” devir e no lado direito é o devir que “significa” não humanidade. Com a duplicação da FCM/PM sobre si mesma, uma FCM/PM de segunda ordem, algo se fecha sobre si mesmo: é uma involução (uma função que é igual ao seu inverso), mas uma que também diz que o devir-Outro é tautologia (Viveiros de Castro, 2009, p. 149), e vice-versa. Dito de outro modo, a FCM (2) se torna uma função espelho estabelecendo não só a reversibilidade das relações do humano com o animal, mas também que a relação dos humanos com os animais é aquela dos animais com o devir.5 Além disso, a duplicação da FCM/PM sobre si mesma é equivalente a construir uma FCM/PM com duas anteriores. A construção dos termos 1 + 2 e 3 + 4 é equivalente à construção seguinte: FCM/PM (a) :: FCM/PM (b) O caráter tautológico da FCM/PM (2) poderia talvez ser entendido como a equivalência de todas as formulações FCM/PM entre si. Todas as asserções do PM têm a simetria de perspectivas e a divisão canônica entre humano e não humano como um dado de regimes sociocosmológicos ameríndios. Tomada individualmente, no entanto, qualquer FCM/PM vai introduzir algo mais que “percepções” ou perspectivas. Como mostram nossos exemplos, qualquer FCM/PM

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envolve relações específicas de reflexividade, predação, troca, termos humanos e não humanos específicos como caçadores, xamãs, jaguares, pecaris, mestres animais e amido de fruta. FCM/PM (2) também parece obviar a obviação em si, apresentando um arranjo simétrico fechado de perspectivas que parece tautológico. Se assim for, a passagem da FCM/PM (2) para qualquer FCM/PM, em que relações específicas entram em jogo, é equivalente, para usar a formulação pertinente de Almeida (2008, p. 168), a “desorientar um julgamento”; é uma transição com quebra de simetria, isto é, uma quebra topológica: No pensamento mítico, rasgar um juízo orientado e reconectá-lo através de um salto descontínuo, abolindo com isso a separação entre predicado e sujeito e invertendo termos, é como passar de cilindro, uma superfície orientada, para uma faixa de Moebius, superfície não-orientável na qual avesso e direito não têm existência separada.

Essa passagem, posso apenas supor, é onde contingência e motivação entram em jogo e, para pagar tributo a Roy Wagner, é O lugar da invenção. Notas 1

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Deve-se notar que o próprio Wagner escreveu sobre as diferenças entre a análise estrutural de Lévi-Strauss e a obviação simbólica (1978, p. 31-37; 1981, p. 150-151; 1986, p. 131). Aqui estou mais especificamente preocupado com a fórmula canônica do mito, através da qual as abordagens de Lévi-Strauss e Wagner sobre mito e significado parecem apresentar mais aproximações entre uma e outra. Este esquema e argumentação segue Almeida (2008, p. 167). Esta interpretação da caça Makuna envolvendo eventos paralelos e implicados vem diretamente da análise de Lima (1996) das caçadas Juruna. Naquele caso, em vez de um paralelismo caça/intercâmbio, encontra-se um paralelismo caça/guerra. De acordo com Lima (1996), a mesma operação de mascaramento deve manter-se entre as duas linhas de vida implicadas da pessoa Juruna e sua alma, que devem manter-se ignorantes dos afazeres um do outro. Estas interpretações são de Eduardo Viveiros de Castro.

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______. Symbols that Stand for Themselves. Chicago: Chicago University Press, 1986. Recebido em: 29/09/2011 Aceite em: 10/10/2011

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A longa tarde de um fauno

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Um pequeno, mas espinhoso, problema do parentesco¹ Marcio Silva Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil E-mail: [email protected]

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Resumo

Abstract

Este texto tem por objetivo chamar a atenção para a contribuição pioneira de Robert Carneiro no debate sobre a diferença entre os métodos de cruzamento do parentesco dravidiano e iroquês, apontada por Morgan em 1871. O texto oferece uma breve contextualização do problema e faz um sobrevoo do debate por ele suscitado, do século XIX ao XXI. A notável contribuição de Robert Carneiro permaneceu mais de cinquenta anos invisível, por circunstâncias que só agora conhecemos, graças a uma carta enviada a Eduardo Viveiros de Castro que Robert Carneiro me autorizou a traduzir e publicar.

This essay seeks to call attention to the pioneering contribution of Robert Carneiro to the debate regarding the difference between Dravidian and Iroquois kinship systems, pointed out by Morgan in 1871. The essay briefly contextualizes the issue and offers an overview of the debates in its regard from the nineteenth century onwards. The remarkable contribution of Robert Carneiro remained unnoticed for more than 50 years, due to circumstances that became known only because of a letter sent to Eduardo Viveiros de Castro by Robert Carneiro, who has granted me permission to translate and publish it. Keywords: Robert Carneiro. Dravidian. Iroquois. Crossing. Kinship Theory.

Palavras-chave: Robert Carneiro. Dravidiano. Iroquês. Cruzamento. Teoria do parentesco.

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Duas notas de rodapé e duas cartas

E

m meados dos anos 1960, uma nota de rodapé, de autoria de Floyd Lounsbury, viraria uma página da história dos estudos de parentesco. A nota (Lounsbury, 1964, n. 4) que, segundo Trautmann e Barnes (1998, p. 27), “deve ser a mais famosa na antropologia” elucida a diferença fundamental entre sistemas de parentesco2 de tipo “iroquês” e “dravidiano”, dissipando uma densa névoa que, por mais de um século, se formou sobre a questão, induzida pela crença generalizada na identidade essencial dos dois tipos. Retomando o material de Morgan sobre o Sêneca-Iroquês, Lounsbury chama a atenção de que “iroquês” e “dravidiano” são radicalmente opostos nos métodos pelos quais os parentes colaterais distantes são computados como paralelos ou cruzados (Trautmann, 1987, p. 240). Lounsbury divide os louros de seu notável achado com o colega Leopold Pospisil, que, do outro lado do mundo, chega às mesmas conclusões. Entre os anos 1954 e 1955, ambos percebem o problema: Lounsbury na biblioteca, debruçado sobre os Sistemas de consanguinidade e afinidade da família humana; Pospisil no campo, entre os Kapauku-Papua da Nova Guiné, povo que desenvolveu um sistema idêntico ao Sêneca-Iroquês. A partir de sua divulgação em 1964, a descoberta de Lounsbury–Pospisil vem sendo tomada como referência em numerosas contribuições, como as análises de Kay (1965, 1967), Tyler (1966), Atkins (1974), Scheffler (1971), Héritier (1981), Trautmann (1981, 1987), Kronenfeld (1989, 2004), Viveiros de Castro (1993, 1996, 1998, 2002), Coelho de Souza (1995), Trautmann e Barnes (1998), Tjon Sie Fat (1998) e Barbosa de Almeida (2010). ILHA volume 12 - número 2

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Mas o nome de Robert Carneiro poderia também ser lembrado como coautor da façanha.3 Em um trabalho de fim de curso, apresentado ao professor Leslie White na primavera de 1952, o jovem doutorando da Universidade de Michigan, que depois se tornaria um dos mais importantes antropólogos evolucionistas da atualidade, chegaria às mesmas conclusões de Lounsbury e Pospisil. Essa contribuição, entretanto, por uma série de “circunstâncias incomuns, quase bizarras”, nunca veio à tona. Reverenciado por suas teorias sobre formação do Estado, pré-história da América do Sul e agricultura dos povos alto-xinguanos, Robert Carneiro aparentemente deixou de se preocupar com os debates do parentesco desde então. Só aparentemente, como já se verá. O único rastro de sua descoberta é aquele que jaz em um agradecimento registrado por Gertrude Dole (1957, p. 178) em sua tese de doutorado inédita, pelo fato de Robert Carneiro ter chamado sua atenção para a “diferença significativa” entre os sistemas de tipo “iroquês” e “dravidiano”, por ela denominados “de fusão bifurcada” e “de primos cruzados”, respectivamente. Viveiros de Castro (1998, p. 376-377), também em nota de rodapé (n. 5), faz uma breve alusão a tal agradecimento e se pergunta se Carneiro e Dole tiveram contato com a versão preliminar da contribuição de Lounsbury, apresentada oralmente em 1956, oito anos antes de a célebre nota de rodapé vir à luz. Uma carta de Robert Carneiro a Eduardo Viveiros de Castro, de 14 de julho de 2010, retomando a nota de rodapé deste último, traz em primeira mão elementos que revelam a antecipação do autor na solução deste “pequeno, mas espinhoso, problema” –, a expressão é de Carneiro e tomo emprestado como título deste texto. A carta traz uma lição de parentesco e um apólogo (machadiano, eu diria) inextrincavelmente imbricados, como os leitores poderão notar. Outra carta de Robert Carneiro a mim destinada, de 7 de janeiro de 2011, manifesta sua satisfação na divulgação da correspondência que descreve seu achado sexagenário e as circunstâncias que produziram sua invisibilidade, atendendo a um pedido meu. “Talvez agora [diz o remetente] eu possa parar de bater a cabeça na parede”. Publico assim as duas cartas, precedidas de um breve sobrevoo do tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, referido nas duas notas ILHA volume 12 - número 2

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de rodapé. O que vem a seguir visa situar o tema das cartas em um breve quadro de referências e não mapear detalhadamente a sua evolução nos estudos de parentesco.4 É provável que o marco inicial de sua história seja uma descrição de um sistema iroquês, de autoria do Pe. Lafitau da Companhia de Jesus, em sua obra Moeurs des Sauvages Americains, Comparées avec Moeurs des Premiers Temps, publicada em 1724 (vol. i, p. 552).5 Um artigo recente de Barbosa de Almeida (2010), que retoma o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, com ferramentas matemáticas de alta precisão, nos faz acreditar que águas continuem a brotar da velha fonte. Um breve sobrevoo da questão Lewis Henri Morgan, Sêneca por adoção e herói fundador da antropologia norte-americana, oferece um detalhado painel etnográfico e histórico da vida social iroquesa em seu livro Liga dos HO-DE’-NO-SAU-NEE ou iroqueses, publicado em meados do século XIX (Morgan, 1851). Sobre o sistema de parentesco daquele povo, o autor afirma o seguinte no Volume I, Livro I, Capítulo IV daquela obra: O modo iroquês de computar graus de consangüinidade era diferente das leis civil ou canônica. Nenhuma distinção era feita entre linhas lineares e colaterais, nas séries ascendentes ou descendentes. Para entender este ponto, é preciso ter em mente que apenas a avó materna era necessariamente ancestral e era genitor apenas a mãe; que na linha descendente, apenas os filhos das irmãs podiam ser da mesma tribo [...]. A avó materna e suas irmãs eram igualmente avós; a mãe e suas irmãs eram igualmente mães; os filhos de uma das irmãs da mãe eram irmãos e irmãs [...]. Fora da tribo, o avô paterno e seus irmãos eram igualmente avós; o pai e seus irmãos eram igualmente pais; as irmãs do pai eram tias, enquanto no interior da tribo, os irmãos da mãe eram tios; os filhos das irmãs do pai eram primos como na lei civil; os filhos desses primos eram sobrinhos e sobrinhas, e seus filhos eram netos [...]. Ainda, os filhos de um irmão eram seus filhos e os netos de um irmão eram seus netos; também os filhos dos irmãos do pai eram seus irmãos e irmãs, e não primos, tal como prevê a lei civil [...]. ILHA volume 12 - número 2

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É a matéria central da lei iroquesa de descendência a confluência da linha colateral na linear, como aparece suficientemente esboçado acima. Pelo o modo de cômputo da lei civil, os graus de parentesco vão se tornando demasiado remotos para serem traçados entre os colaterais; enquanto que, pelo modo iroquês, nenhum dos colaterais era perdido pela distância do grau (Morgan, 1851, p. 81-82).

Essa longa citação se justifica por conter os ingredientes básicos do tal “pequeno, mas espinhoso, problema” aqui destacados: • o sistema de parentesco Sêneca-Iroquês é essencialmente diferente dos sistemas de tradição europeia, que são regidos por cômputos definidos pelo direito romano (lei civil) e/ou pela Igreja Católica (lei canônica); e • os sistemas europeus repousam sobre a distinção entre parentes lineares e colaterais que atravessa as gerações. Em seu lugar, o Sêneca-Iroquês se caracteriza por subdividir o conjunto dos parentes colaterais e por unir um desses subconjuntos ao dos parentes lineares. Dessa maneira, na tradição europeia, “pai” se distingue dos “irmãos do pai e da mãe”, unidos na categoria “tio”; enquanto isso, na tradição iroquesa, “pai” e “tios paternos”, juntos em uma única classe, se distinguem dos “tios maternos”, e assim por diante. O trecho de Morgan contém ainda sua sugestão de que o cômputo de parentesco característico dos Sêneca-Iroquês era consequência direta do regime de descendência (matrilinear) que organizava os grupos políticos. Nos anos seguintes à publicação da Liga..., Morgan generalizou seu modelo Sêneca-Iroquês para toda a vasta paisagem etnográfica norte-americana que se descortinava diante de seus olhos e para a qual cunhou o pitoresco neologismo Ganowaniana, composto das palavras do dialeto Sêneca (Gä’-no) “flecha” e (Wäi-ã’-no) “arco”.6 Essa generalização o encorajou a sofisticar a descrição semântica do sistema, que passou a incorporar suas diversas variações reveladas no exercício comparativo (Morgan, 1871, p. 131-149, Parte II, Cap. 1).7 Mas sua ousadia não se contentou com

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os limites do continente norte-americano, onde se concentravam os povos da família “do Arco e Flecha”. Em meados de 1859, quando estava mergulhado na pesquisa etnográfica e documental que deu origem aos Sistemas de consanguinidade.., Morgan tem acesso a descrições cuidadosas de dois sistemas sul-indianos, o Tamil e o Telugo, fornecidas pelo missionário Dr. Henry M. Scudder (Tooker, 1997, p. ix). Esse é o ingrediente que faltava para compor o nosso “pequeno, mas espinhoso, problema”. Os materiais que acabavam de cair em suas mãos revelavam extraordinárias semelhanças entre as famílias Turaniana (“dravidiana”) e Ganowaniana (“iroquesa”), corroborando conclusivamente a tese da origem asiática dos povos do Novo Mundo. Isso não era pouco! E isso não era tudo. Para além daquelas variações observadas no interior da paisagem norte-americana, o autor nota também a recorrência de um curioso contraste entre as estruturas terminológicas da América do Norte e aquelas documentadas na Índia. A despeito de suas extraordinárias semelhanças, os sistemas Turanianos (“dravidianos”) e Ganowanianos (“iroqueses”) classificavam sistematicamente, de maneiras opostas, os filhos de alguns primos mais distantes. Morgan, em princípio, não arrisca uma interpretação conclusiva para o contraste, mas faz questão de registrá-lo no capítulo dedicado à descrição do caso Tamil (dravidiano): É um tanto singular que os filhos de meu primo, sendo Ego um homem, sejam meus sobrinhos e sobrinhas, e não meus filhos e filhas, e que os filhos de minhas primas sejam meus filhos e filhas ao invés de sobrinhos e sobrinhas, como é requerido pelas analogias do sistema. Este é o único particular em que [o sistema Tamil] difere materialmente da forma Sêneca-Iroquesa; e nisso o Sêneca está em maior conformidade lógica com os princípios do sistema que o Tamil. É difícil encontrar qualquer explicação desta variância (Morgan, 1871, p. 391).

Mas Morgan não desiste tão facilmente diante do enigma. Na conclusão de seu livro, esboça uma discreta tentativa de solução conjetural para o problema que, veremos a seguir, será apropriada por McLennan contra Morgan e sem reconhecimento de autoria: ILHA volume 12 - número 2

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A menos que [entre os Tamil] eu coabite com todas as minhas primas e seja excluído da coabitação com as esposas de todos os meus primos, essas relações não podem ser explicadas da natureza dos descendentes. Na família ganowaniana, essa classificação é reversa [...] (Morgan, 1871, p. 486, meus grifos).

Contudo, o autor aparentemente não dá muita importância à “variância”. Eram as semelhanças o que chamava sua atenção. A “variância” Sêneca (iroquesa)/Tamil (dravidiana) é o tal “pequeno, mas espinhoso, problema” legado por Morgan, com o qual Robert Carneiro se defronta oitenta anos depois. Usando uma linguagem mais atual, embora também out of style, “iroquês” e “dravidiano” eram para Morgan transformações de uma estrutura semântico-lexical instaurada pela descendência. Para Lounsbury (1964), tal crença teria obscurecido por tanto tempo o caminho para a solução do enigma. As regras enunciadas por Morgan sobre os sistemas iroqueses, segundo o autor da célebre nota de rodapé, descreviam adequadamente apenas os parentes próximos de Ego, mas falhavam quando se voltavam às classificações de parentes distantes. Segundo Lounsbury, as regras de Morgan geravam classificações que eram compatíveis com os sistemas dravidianos. Morgan, em suma, teria atirado no que viu e acertado o que não viu. O primeiro a enfrentar a tal “variância” notada por Morgan foi precisamente seu arquirrival John Ferguson McLennan, para o qual, além da matrilinearidade (“parentesco feminino”, como preferia chamar, “matriarcado” para Morgan), que fazia com que os filhos de duas irmãs se considerassem irmãos entre si, pois eram do “mesmo grupo de sangue”, era preciso acrescentar duas outras razões fundamentais. Uma delas era a exogamia, princípio pelo qual os irmãos estavam proibidos de se casarem. Tal proscrição explicava, por exemplo, por que os filhos de irmãos de sexo oposto não podiam se considerar irmãos, e sim primos. Outra variável era a poliandria, que permitia entender como era possível dado indivíduo ter muitos pais: todos eram maridos da mãe. Basicamente, a combinação dessas três instituições – descendência, exogamia e poliandria – explicava “sistemas classificatórios” como o sêneca-iroquês (McLennan, ILHA volume 12 - número 2

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1886[1876], p. 290-297). Para entender o caso tamil-dravidiano, era preciso associar a ele uma quarta instituição, o costume do casamento de primos, que esclarecia por que os filhos de primos cruzados de sexo oposto eram considerados filhos de dado indivíduo (McLennan, 1886, p. 298-300). Façamos aqui um breve rasante em nosso sobrevoo. A meu ver, carece de exatidão o juízo generalizado, que inclusive se manifesta na própria carta de Robert Carneiro, de que foi McLennan quem primeiro teve a ideia de trazer o casamento de primos ao debate para explicar as terminologias dravidianas. É verdade que o autor é o primeiro a desenvolver essa tese convincentemente, ao longo de quatro páginas de sua resenha do livro de Morgan. Mas foi Morgan (1871, p. 486), e não McLennan, o primeiro a ter a ideia. Se não, que outra coisa quer dizer, no trecho de Morgan acima transcrito, a coabitação “com todas as primas” e a “não coabitação com as esposas de todos os meus primos” (isto é, com todas as minhas “irmãs”, em sentido funcional, isto é, com mulheres não “coabitáveis”)? Convém também dizer que a disputa de McLennan com Morgan não se deu no plano dos detalhes analíticos, mas na arena central da questão. Segundo McLennan, os Sistemas de consanguinidade... gravitavam em torno de dois erros crassos. Em primeiro lugar, a análise de Morgan não procurava “a origem do sistema na provável origem da classificação”, isto é, não explicava por que os sistemas eram como eram. Em segundo lugar, a análise conferia aos vocabulários uma importância sociológica que eles não tinham, já que não passavam de fórmulas de boas maneiras selvagens ou, em suas próprias palavras, “sistemas de saudações mútuas” (McLennan, 1886[1876], p. 366). Resumindo, para McLennan, a contribuição de Morgan correspondia a um monumental exercício de erudição em torno de fenômenos absolutamente irrelevantes. Nesse sentido, McLennan chama a atenção de que Lafitau já alertava que “os termos do sistema classificatório [...] não eram de relação de sangue, mas de chamamento [...] para indicar simplesmente graus de respeito” (McLennan, 1886, p. 306, App. I). Os nativos, argumenta McLennan, empregavam termos como “tio” e “sobrinho” com estrangeiros e ILHA volume 12 - número 2

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com inimigos com os quais, evidentemente, não tinham qualquer relação de parentesco.8 A resenha de McLennan não fica sem resposta. No ano seguinte, chega a hora de Morgan revidar no mesmo tom: Os ataques de McLennan explicam-se pela simples razão de esses quadros, na medida em que exprimem sistemas de afinidade e consangüinidade, contradizerem e refutarem as principais hipóteses e teorias apresentadas em Casamento Primitivo. Seria de esperar, pois, que o autor de Casamento Primitivo acudisse em defesa das suas idéias preconcebidas (Morgan, 1978[1877], p. 257).

Como aquelas cenas noturnas, em início dos filmes de terror, de um casarão às escuras sob uma tempestade de raios, antecipando para o espectador o que vem pela frente, o primeiro debate da antropologia do parentesco é um índice das condições severas de visibilidade que nosso sobrevoo deverá enfrentar.9 Morgan e McLennan morreram logo depois, no mesmo ano de 1881, legando aos seus sucessores o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, além de um debate em que os envolvidos, às vezes, não escutam muito bem seus interlocutores. Pouco tempo depois, coube a Tylor retomar a questão: “[O] sistema [iroquês], tal como encontrado entre os indígenas norte-americanos, o Sr. Morgan mostrou ser muito proximamente análogo ao das nações dravidianas do Sul da Índia” (Tylor, 1971[1889], p. 26). Coube a Tylor também esclarecer a noção de “casamento de primos”. E coube a Tylor finalmente fazer as pazes entre os dois rivais, unificando os conceitos de exogamia e sistema classificatório, que para ele se tratava dos dois lados da mesma instituição. Em tom conciliador, o autor conclui que McLennan e Morgan se enfrentaram desnecessariamente e morreram sem saber que “foram o tempo todo aliados, tocando para frente, de lados diferentes, a mesma doutrina” (Tylor, 1971, p. 26). Tal conciliação foi um passo importante na história do problema, mas trouxe um inesperado complicador, como veremos a seguir. Antes, porém, devemos destacar a contribuição de Tylor, autor

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da expressão “primo cruzado” que, desde então, passa a ser uma das joias da coroa dos estudos de parentesco: Na tabulação de nações do mundo, encontrei um grupo de vinte um povos cujo costume de casamento de primos de primeiro grau é notável, tal que os filhos de dois irmãos não podem se casar, nem os filhos de duas irmãs, mas os filhos de um irmão podem se casar com os filhos da irmã. Parece óbvio que este “casamento de primo-cruzado”, como pode ser chamado, deve ser o resultado direto da mais simples forma de exogamia, em que uma população é dividida em duas classes ou seções, com a lei de que um homem que pertence à classe A só pode tomar uma esposa da classe B (Tylor, 1971, p. 26, grifos meus).

E agora o elemento complicador a que, há pouco, me referi: Tylor observa que a relação entre as duas instituições, casamento de primos e exogamia (em sua redução dualista), “não é de derivação, mas de identidade, sendo o casamento de primos eventualmente uma forma parcial ou uma afirmação imperfeita da lei de exogamia” (Tylor, 1971, p. 26). Anos depois, Rivers (1914, p. 47-48) retomaria casamento de primos e organização dualista como uma sequência histórica, diante dos materiais de campo produzidos pelo próprio autor. Em meados do século XX, Lévi-Strauss (1967[1949]) reinterpretá-la-ia como expressão de dois métodos distintos, o das classes e o das relações. Mas Rivers não tem o mesmo espírito conciliador de Tylor. Para Rivers (1991[1913], p. 75-76) , era preciso tomar o partido de Morgan contra McLennan.10 Aqueles que adotaram [as ideias de McLennan] geralmente se contentam em repetir a conclusão de que o sistema classificatório não é nada mais que um corpo de saudações mútuas e formas de tratamento. Eles não conseguem perceber que, ainda assim, permanece necessário explicar como os termos do sistema classificatório passaram a ser usados em saudações recíprocas, falhando em reconhecer que estão rejeitando o princípio do determinismo na sociologia, ou apenas colocando a uma distância conveniente a consideração do problema de como e por que os classificatórios passaram a ser utilizados por tantos povos da Terra [...]. Uma das diversas conseqüências funestas da crença de McLennan sobre a importância da poliandria ILHA volume 12 - número 2

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na história da sociedade humana, foi a incapacidade, por parte de seus seguidores, de perceber a importância do sistema classificatório [...].

É verdade que foi McLennan que inventou sozinho o conceito de “poliandria”. Mas sejamos justos: essa forma de casamento não era, para McLennan, a única razão que explicava as classificações dravidianas: Uma prevalência de casamentos de primos em tempos pretéritos dos povos Tamil, entre primos que não sejam do mesmo sangue, seria uma explicação completa. Onde um primo casa com sua prima, seus filhos de fato serão, a um só tempo, filhos do primo e da prima (McLennan, 1886[1876], p. 298).

Sobre a contribuição de Rivers, pode-se dizer que ela desenvolve com vigor a hipótese de Tylor, que associa as terminologias classificatórias à regra de casamento de primos e à organização dualista, provavelmente reforçada pelo acúmulo dos materiais australianos de Fison e outros. Certamente, por não ter encontrado organizações dualistas, mas apenas casamento de primos, nos contextos etnográficos que lhe eram familiares, como os do Estreito de Torres e da Índia, o autor tenha interpretado a primeira como um estado anterior da segunda (Rivers, 1991, p. 47-49). A lealdade de Rivers a Morgan da mesma forma se manifesta por ocasião do célebre ataque de Alfred Kroeber (1969) à noção de “sistema classificatório”. O aluno de Boas, recordemos, havia argumentado que, como fatos da linguagem, “[o]s termos de parentesco refletem a Psicologia, não a Sociologia. São determinados, antes de mais nada, pela língua” (1969[1909], p. 25) e, portanto, era um equívoco de Morgan interpretá-los como correlatos linguísticos necessários de instituições sociais. Rivers (1991[1914], p. 88-89) toma para si a insolência de Kroeber e contra-ataca: Se não fosse pelo matrimônio entre primos cruzados, o que pode existir para dar ao irmão da mãe uma maior semelhança psicológica com o sogro do que o irmão do pai, ou à irmã do pai uma maior semelhança psicológica com a sogra do que a irmã da mãe? [...] como é possível que os termos das relações de parentesco não reflitam a sociologia, se tais ILHA volume 12 - número 2

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similaridades psicológicas são elas mesmas o resultado do matrimônio de primos cruzados?

Mas a sugestão de “dessociologização” do debate apresentada por Kroeber foi bem recebida em seu próprio país por seu colega Robert Lowie. Para este último, contudo, a saída não era “psicologizar” o problema, mas “culturalizá-lo”, à maneira boasiana. Plenamente de acordo com os dispositivos descritivos de Kroeber (1969), apresentados sob a forma de oito categorias (parâmetros semânticos) cuja variação explicaria as diferenças formais entre os sistemas, Lowie estava convencido de que o estudo das terminologias não deveria diferir da investigação de outros elementos culturais, como fenômenos históricos, submetidos a processos de difusão de uma cultura à outra e de integração aos novos contextos culturais. Portanto, era preciso ter cautela diante da tentação de fazer correlações sincrônicas e diretas entre padrões terminológicos e instituições sociais: “Um costume recentemente adquirido pode não ter ainda desenvolvido uma nomenclatura apropriada, enquanto [...] uma nomenclatura pode sobreviver depois que o costume se tornar obsoleto” (Lowie, 1929[1917], p. 173). A contribuição de Lowie ao “pequeno, mas espinhoso, problema” foi juntar os sistemas iroqueses e dravidianos em um dos quatro taxa de sua famosa macrotipologia: aquele em que “cada geração é bipartida de tal maneira que apenas metade dos parentes colaterais é fundida com os lineais” (Lowie, 1928). Esses eram chamados de “sistemas de fusão bifurcada”. Não obstante, o autor não deixa de notar que “[n]omenclaturas típicas de fusão bifurcada ocorrem entre os povos do Sul da Índia (incluindo os Toda) e o Vedda do Ceilão. Aqui, [...] são afetadas pelo casamento de primos cruzados” (1968[1929], p. 49), fazendo eco às contribuições de Morgan, McLennan, Tylor, Rivers e Hocart. Este último, vale lembrar, publicara, no ano anterior, um cuidadoso estudo comparativo, antropológico e linguístico de nomenclaturas de parentesco indo-europeias e de regiões vizinhas. Diante dos materiais da Índia do Sul e de Ceilão, o autor propõe o rótulo “sistemas de primo cruzado” para aqueles vocabulários que expressassem tal regime matrimonial (Hocart, 1987[1928], p. 61). ILHA volume 12 - número 2

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Se a classificação de Lowie amalgama a distinção “dravidiano” e “iroquês”, a macrotipologia de Murdock, publicada vinte anos depois, com grande impacto nos estudos de parentesco, aparentemente acaba por varrê-la para baixo do tapete. Mas a diferença entre os esquemas classificatórios de Lowie e de Murdock é, a meu ver, discreta. Se, por um lado, em suas respectivas tipologias, Lowie privilegia a primeira geração ascendente e Murdock, os parentes da geração de Ego, e Lowie define quatro macrotipos, enquanto Murdock define seis, por outro lado, ambos supõem a repetição de seus padrões através das gerações. Além disso, Lowie assinala uma tripartição no interior dos sistemas de fusão bifurcada, opondo, exatamente como fez Murdock (1949, p. 223-224), os sistemas a) iroquês, b) omaha e c) crow. Recordemos os três esquemas estabelecidos até a metade do século XX: Morgan 1871

Lowie 1928

Murdock 1949

Classificatório

Geracional

Havaiano

Ausência da oposição entre parentes lineares e colaterais e caráter mais sintético do sistema

Pai = Irmão do Pai = Irmão da Mãe

Irmão = primo paralelo = primo cruzado

Fusão Bifurcada

Iroquês

Pai = Irmão do Pai z Irmão da Mãe

Irmão = primo paralelo z primo cruzado Crow Irmão = primo paralelo z primo cruzado (primo cruzado matrilateral = filho; primo cruzado patrilateral = pai) Omaha Irmão = primo paralelo z primo cruzado (primo cruzado matrilateral = tio materno; primo cruzado patrilateral = filho da irmã)

Descritivo

Linear

Esquimó

Presença da oposição entre parentes lineares e colaterais e caráter mais analítico do sistema

Pai z Irmão do Pai = Irmão da Mãe

Irmão z primo paralelo = primo cruzado

Colateralidade Bifurcada

Sudanês Irmão z primo paralelo z primo cruzado

Pai z Irmão do Pai z Irmão da Mãe

Tabela 1 – Macrotipologias clássicas dos sistemas de parentesco Fonte: Adaptado de Trautmann (1987, p. 262). ILHA volume 12 - número 2

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Ao contrário de Lowie, preocupado apenas com a distribuição geográfica de seus quatro tipos, desigualmente espalhados em todos os continentes, Murdock (1949, p. 224) enfrenta o desafio de catalogar as diferentes combinações de cada padrão com diferentes regras de descendência, gerando os assim denominados “tipos primários de organização social”, todos rotulados com etnônimos, assim como fez com as terminologias, o que gerou alguma confusão com os rótulos. Por exemplo, o tipo primário de organização social “Dakota” é uma combinação de vocabulário “iroquês” e descendência “patrilinear”, o tipo “Iroquês” por seu turno, uma combinação de vocabulário “iroquês” e descendência “matrilinear” etc. Não contente com a hiperinflação de termos exóticos, os tipos primários de Murdock se desdobravam em uma grande quantidade de subtipos como “Sudanês-Normal”, “Neo-Havaiano”, “Bi-Fox”, “AvuncuNankanse” etc., que não conheço quem os saiba de cor. Fora dos Estados Unidos, a reflexão sobre o “pequeno, mas espinhoso, problema” tomava outros rumos. Kirchhoff (1932, p. 42) traz de volta ao debate o levirato e o sororato como variáveis sociologicamente significativas. Enquanto isso, nos marcos da teoria da descendência que ajudou a consolidar, Radcliffe-Brown apostava suas fichas no “princípio da solidariedade do grupo de irmãos” como a única explicação aceitável dos sistemas que no esquema de Lowie eram chamados de fusão bifurcada: [...] é óbvio que toda a teoria de Morgan não tem qualquer base. O sistema classificatório [...] depende do reconhecimento dos fortes vínculos sociais que unem irmãos e irmãs da mesma família elementar [...]. Em parte alguma do mundo existem os laços entre um homem e seus próprios filhos ou entre os filhos de um pai mais fortes que nas tribos australianas, que, como é sabido, apresentam um exemplo máximo de terminologias classificatórias (Radcliffe-Brown, 1941, p. 87-89).

O autor, em um de seus últimos textos, ancora o tal princípio de solidariedade em um mecanismo de dupla filiação que vertebraria as terminologias de tipo “australiano-dravidiano” (Radcliffe-Brown, 1953). Enquanto isso, Lévi-Strauss (1967[1949], p. 114-115), na ILHA volume 12 - número 2

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construção de sua teoria da aliança matrimonial, retoma a hipótese de Tylor–Rivers, reiterando a harmonia perfeita entre os sistemas de fusão bifurcada e a organização dualista. Kariera, dravidiano e iroquês O breve sobrevoo até aqui dá uma ideia da névoa que pouco a pouco foi cobrindo o “pequeno, mas espinhoso, problema”. Na metade do século XX, quando Robert Carneiro o enfrentou em um trabalho de fim de curso, as condições de visibilidade na região eram próximas de zero. Remeto o leitor à carta que expõe com clareza seu argumento, contribuindo para a dissipação da neblina. Para os propósitos deste sobrevoo, é suficiente dizer que, segundo Robert Carneiro, a diferença entre os sistemas dravidiano e iroquês se explicava, como Morgan e McLennan intuíram, pela presença ou ausência, respectivamente, da prática de casamento de primos cruzados. Essa prática, como Carneiro sublinha na carta, também era verificada entre os Kariera da Austrália. Em sua tese de doutorado, como dito, Gertrude Dole (1957, p. 147) agradece a Robert Carneiro por chamar sua atenção para a diferença entre os dois padrões terminológicos que Lowie (1928) reunira sob o rótulo “fusão bifurcada”. Nesse sentido, a autora distingue um padrão de “fusão bifurcada” propriamente dito, o iroquês, de outro que denomina, seguindo uma sugestão de Hocart (1987), de “sistema de casamento de primos cruzados”, o dravidiano (1957, p. 178). Mas curiosamente a interpretação da diferença, para Dole, não é rigorosamente idêntica àquela exposta na carta de Robert Carneiro. Para a autora, a distinção não correspondia a uma oposição privativa, isto é, presença ou ausência de casamento de primos cruzados, opondo dravidiano e iroquês, respectivamente, mas dizia respeito a seu caráter obrigatório e regular em um caso (dravidiano), opcional e assistemático em outro (iroquês). Esses tipos, em sua opinião, estariam relacionados a instituições de parentesco mais simples ou mais complexas: duais no dravidiano, não segmentares no iroquês (1957, p. 186-187 e p. 425). Ao longo de sua contribuição, Dole esboça uma interpretação que, de certa forma, antecipa em alguns anos o debate ILHA volume 12 - número 2

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proposto por Needham (1958), posteriormente esvaziado por LéviStrauss em seu prefácio à segunda edição d’As estruturas elementares do parentesco, entre prescrição e preferência. Mais ou menos na mesma época, a variação no interior da classe dos sistemas de “fusão bifurcada” é retomada por Dumont (1975a[1953], 1975b[1957], 1975c[1970]), que se concentra nos casos indianos (dravidiano) e australianos (Kariera), sem levar em conta as variantes iroquesas. Para o autor, as diferenças entre esses tipos, ambos refratados pelo casamento de primos, eram as seguintes: 1. expressão de uma fórmula local e um método egocentrado (dravidiano) ou de uma fórmula global e um método sociocentrado (Kariera); e 2. expressão da unilinearidade, presente no Kariera, opondo parentes de todas as gerações, e ausente no dravidiano, que neutraliza as diferenças entre parentes nas gerações dos netos e dos avós, mesmo quando operados em contextos marcados pelos grupos de descendência. No mesmo sentido que o ponto (1) de Dumont, Shapiro (1970, p. 384) assinala que, nos sistemas australianos, filho e filha são diferentes para um homem e sua esposa e idênticos para um homem e sua irmã. Nos sistemas indianos, a situação se inverte. Como Viveiros de Castro (1998) chama a atenção, o sentido do cruzamento na Índia, para Dumont, é a oposição consanguinidade e afinidade, enquanto que, na Austrália, a diferença entre os parentes repousa no contraste entre grupos exogâmicos alternos (nosso grupo e outro grupo).

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Figura 1 – Dravidiano e Kariera, Ego masculino e feminino Fonte: Adaptado de Dumont (1975a[1953], 1975b[1957], 1975c[1970]).

Os diagramas acima conectam pelo casamento dois pares de irmãos do sexo oposto ao longo de cinco gerações. A comparação dos diagramas permite verificar as principais diferenças entre os dois tipos. Antes, porém, devemos ter em mente que, no esquema, um indivíduo é igual a um irmão de mesmo sexo. Assim, Ego homem é igual a seu irmão; Ego mulher, a sua irmã; o pai de Ego, igual aos tios paternos; a mãe de Ego, às tias maternas, e assim por diante. Os indivíduos pretos e brancos são, respectivamente, consanguíneos e afins no esquema dravidiano, do meu grupo e do grupo alterno no australiano. Observe-se que os dois diagramas australianos são rigorosamente idênticos, independentemente do sexo de Ego, enquanto que os dravidianos invertem as classificações de Ego homem ou mulher na geração de seus filhos. Note-se também que, apenas na geração de Ego, os quatro diagramas coincidem, embora não expressem exatamente as mesmas coisas, uma vez que a alternância de cores, no caso australiano, decorre de um cálculo de descendência (no caso, patrilinear) e, no caso dravidiano, de um cálculo de cruzamento. Em outras palavras, nos exemplos australianos, cada indivíduo é preto ou branco em função da cor atribuída ao grupo de seu pai e, graças à exogamia, está casado com um indivíduo de cor oposta. Enquanto isso, nos exemplos dravidianos, nas três gerações mediais (a de Ego, a de seus pais e a de seus filhos), cada indivíduo é preto ou branco em função do sexo de um parente de ligação.11 ILHA volume 12 - número 2

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Em suma, Kariera e dravidiano têm uma semelhança básica, a prescrição do casamento de primos cruzados bilaterais, e uma diferença básica, já que operam cômputos distintos, de descendência e de cruzamento, respectivamente. Uma evidência suplementar, fornecida por Dumont, da irrelevância da descendência no dravidiano se manifestava na neutralização da oposição consanguíneo e afim nas gerações distais, dos netos e dos avós. Nos diagramas acima, todos os indivíduos daquelas gerações são pretos. Retomando o ponto (2) de Dumont assinalado anteriormente, tal neutralização torna idênticos, por exemplo, avós paterno e materno (ambos pretos no diagrama), mesmo em paisagens marcadas pela existência de grupos unilineares em que, por definição, esses parentes estão alocados em segmentos distintos. Por sua vez, a nota mais famosa de Lounsbury, focada na distinção entre dravidiano e iroquês, chama a atenção de que o conceito de cruzamento, subjacente a ambos, é operado de modos radicalmente distintos. No cálculo iroquês, os filhos de parentes do mesmo sexo da geração de Ego são paralelos (pretos), os filhos de parentes de sexo oposto são cruzados (brancos), independentemente do grau de cruzamento (preto ou branco) de seus pais. Enquanto isso, no cálculo dravidiano, os filhos de parentes paralelos do mesmo sexo ou cruzados de sexo oposto da geração de Ego são paralelos (pretos), os filhos de parentes paralelos do sexo oposto ou cruzados do mesmo sexo são cruzados (brancos).

Figura 2 – Dravidiano e iroquês Fonte: Adaptado de Lounsbury (1964). ILHA volume 12 - número 2

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A diferença entre os cálculos de cruzamento dravidiano e iroquês, como Carneiro enfatiza em sua carta, está ancorada na presença ou ausência da regra de casamento de primos. Segundo Dumont (1975a[1953], 1975b[1957]), no dravidiano, o sentido sociológico da dicotomia terminológica paralelo e cruzado é consanguinidade e afinidade, categorias que, recordemos, nos horizontes da teoria lévistraussiana, correspondem aos conceitos de proibição do incesto e do intercâmbio matrimonial. Nos sistemas dravidianos, as referidas dicotomias coincidem: um parente cruzado é um afim, um parente paralelo é um consanguíneo, o que na maioria dos casos tem como consequência a inexistência, nesses sistemas, de um conjunto de termos exclusivos para a afinidade, como “sogro”, “genro”, “cunhado” etc. Por essa razão, no dravidiano, tio materno e sogro são posições comumente cobertas por um único termo, assim como sobrinho e genro, primo cruzado e cunhado, e assim por diante. Enquanto isso, um sistema iroquês, exatamente por não embutir a regra de casamento, tende a apresentar uma série de termos específicos para a afinidade, diferentes daqueles reservados aos parentes cruzados. Em suma, métodos distintos de cruzamento e, em caráter coadjuvante, presença ou ausência de termos exclusivos de afinidade foram os parâmetros consagrados para o diagnóstico diferencial entre dravidiano e iroquês. A contribuição de Scheffler (1971) referenda a análise de Lounsbury, mas se contrapõe à de Dumont. Para Scheffler, dravidiano e iroquês se distinguem basicamente por operar métodos distintos de cruzamento. O autor chama a atenção também para a existência de um terceiro método de cruzamento, documentado entre os Kuma. Contudo, o autor não concorda com a hipótese de relação direta entre o dravidiano e a regra de casamento, já que muitas culturas que o praticam proíbem o casamento de primos cruzados próximos, outras têm termos exclusivos para a afinidade e há sistemas iroqueses que identificam parentes cruzados com certas posições de afinidade. O esquema a seguir aponta as diferenças entre os métodos de cruzamento dravidiano, iroquês e kuma, assinaladas por Scheffler (1971), que são aceitas até hoje. Se, para os primos de primeiro grau, ILHA volume 12 - número 2

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os cômputos chegam a resultados idênticos, tudo muda de figura a partir dos primos segundos (primos, filhos de primos) ou mais distantes. No dravidiano, na Geração Ø, todos os primos segundos, filhos de primos primeiros (Geração +1) do mesmo sexo (=), por sua vez filhos de irmãos (Geração +2) do sexo oposto (z), são cruzados (X); todos os primos segundos, filhos de primos primeiros (Geração +1) do sexo oposto (z), por sua vez filhos de irmãos (Geração +2) do sexo oposto (z), são paralelos (//), e assim por diante. Observe-se na figura abaixo que o cruzamento iroquês, ao contrário do dravidiano e do kuma, leva em conta exclusivamente o cruzamento na Geração +1.

Tabela 2 – Métodos de cruzamento dravidiano, iroquês e kuma Fonte: Adaptado de Trautmann (1981, p. 87).

Dez anos depois, na obra que se tornou referência principal sobre os sistemas indianos, Trautmann (1981) alia o método descritivo (linguístico) e o caso Kuma, trazidos por Scheffler ao debate, à interpretação antropológica de Dumont. Trautmann, contudo, mostra que a neutralização da oposição paralelo e cruzado nas gerações dos avós e dos netos, enfatizada por Dumont, não podia ser tomada como traço distintivo dos sistemas dravidianos. A expansão da base etnográfica revelou a existência de alguns sistemas dravidianos com contrastes entre parentes paralelos (consanguíneos) e cruzados ILHA volume 12 - número 2

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(afins) em todas as gerações. Com isso, os sistemas com neutralização, conhecidos desde Morgan (1871), foram rotulados por Trautmann e Barnes (1998) de “modelo – A” – os que operam a distinção em todas as gerações, posteriormente incluídos no debate – e de “modelo – B”, numa tentativa de descolar a estrutura classificatória de modelos icônicos.

Figura 3 – Dravidiano A e B Fonte: Adaptado de Trautmann (1981).

É importante assinalar que o “modelo – B” não se confunde com a fórmula Kariera, apresentada na Figura 1, embora ambos definam, a cada geração, um par de indivíduos de cada cor. Mas como se pode observar na comparação dos diagramas das Figuras 1 e 3, o dravidiano “modelo – B” varia segundo o sexo de Ego, enquanto o Kariera não. Na tabela a seguir, achei melhor reintroduzir os rótulos por razões expositivas, embora Viveiros de Castro pondere que o uso das etiquetas etnográficas paga um preço que pode ser alto. Afinal, “houve quem suspeitasse que os Iroqueses não usavam uma terminologia ‘iroquesa’, a generalidade do paradigma ‘dravidiano’ [...] foi questionada para a própria Índia [...] e os Kariera não são um bom exemplo da terminologia homônima” (Viveiros de Castro, 1996, p. 10).

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B (iroquês)

A (dravidiano) Modelo:

Variantes:

A (cruzamento nas Gerações +1, 0 e -1)

1 (cruzamento nas Gerações +1, 0 e -1)

B (cruzamento em todas as Gerações)

2 (cruzamento parcialmente perdido nas Gerações +1 e -1) 3 (cruzamento totalmente perdido na Geração 0) 4 (cruzamento parcialmente perdido nas Gerações +1 e -1 e totalmente perdido na Geração 0 )

Tabela 3 – Tipo de cruzamento Fonte: Trautmann e Barnes (1998, p. 30-34).

Com o conjunto de contribuições de Dumont, Lounsbury, Scheffler e Trautmann e outras evocadas até aqui, a névoa que cobria o “pequeno, mas espinhoso, problema” proposto por Morgan em 1871 parece ter, pouco a pouco, se dissipado completamente. Isso não significa dizer que o debate tenha se encerrado. Ao contrário, como veremos a seguir. Com o céu claro, o problema tem sido retomado em algumas frentes. Dedico a última parte deste sobrevoo a uma dessas frentes, nos horizontes da teoria estruturalista do parentesco, inaugurada por Lévi-Strauss. A troca de irmãos como estrutura de intercâmbio Para o autor d’As estruturas elementares do parentesco, o sentido da distinção paralelo e cruzado é matrimonial (Lévi-Strauss, 1967[1949], p. 135 e p. 149). Dessa perspectiva, em sua contribuição, Viveiros de Castro (1996, p. 34) chama a atenção de que “o cruzamento é uma manifestação específica da aliança, e não o contrário”. O autor defende, como Dumont e contra Scheffler, que, no dravidiano, “o significado estrutural primário da categoria que traduzimos como MB é matrimonial”. Consequentemente, no dravidiano, o irmão da mãe “é antes de mais nada” um cunhado do pai e um sogro: “os irmãos ILHA volume 12 - número 2

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reais da mãe seriam apenas casos particulares desta posição eminentemente afim”. Essa interpretação do cruzamento como manifestação da aliança faz eco à maioria das descrições de variantes amazônicas, desde a monografia pioneira de Overing-Kaplan (1975), que inaugura o diálogo entre a Índia e a América do Sul, revelando semelhanças e diferenças entre os sistemas de parentesco das duas regiões. Talvez, a principal semelhança assinalada por Overing-Kaplan seja o sentido da regra de casamento de primos na Índia e na Amazônia, que opera não como um dispositivo de reafirmação de laços de consanguinidade, mas como efeito de uma afinidade herdada. Enquanto isso, a principal diferença entre esses sistemas, apontada por Viveiros de Castro (1993), está radicada no modo como a oposição consanguinidade e afinidade se apresenta nas duas regiões, “equiestatutária” na Índia, “hierárquica” na Amazônia. Mas consanguinidade e afinidade não são noções compreendidas exatamente da mesma forma nem mesmo entre os especialistas na Índia. Para Dumont (1975a[1953], 1975b[1957]), tais noções definem relações apenas entre pessoas do mesmo sexo. Assim, por exemplo, dois cunhados ou duas cunhadas seriam afins, mas marido e esposa não seriam. A opção de Dumont é útil para descrever o processo de transmissão da consanguinidade e da afinidade nos sistemas dravidianos de uma geração para a outra: um homem transmite seus parentes consanguíneos e afins para seu filho, uma mulher, para sua filha. Trautmann (1981), entretanto, descarta esse caminho. Como o autor demonstra, consanguinidade e afinidade são categorias terminológicas válidas tanto entre parentes de mesmo sexo quanto entre os de sexo oposto. A meu ver, ambos têm razão talvez porque observam o mesmo problema de ângulos diferentes. Pelo menos no caso dravidiano com o qual tenho mais familiaridade (Silva, 1995, 2009), tais noções, igualmente significativas entre pessoas de mesmo sexo e de sexo oposto, dizem coisas diferentes nos dois casos. Sobre os Waimiri-Atroari, observei alhures que apenas as relações entre parentes do mesmo sexo são “expressões máximas” da consanguinidade ou da afinidade. Paralelos e cruzados do mesmo ILHA volume 12 - número 2

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sexo serão sempre consanguíneos e afins, respectivamente, assim como seus descendentes. Enquanto isso, parentes de sexo oposto definem-nas de modo ambíguo como “expressões mínimas”, uma vez que irmãos ou primos paralelos de sexo oposto são consanguíneos entre si, mas geram afins na geração seguinte. Inversamente, primos cruzados de sexo oposto são afins entre si, mas seus filhos serão consanguíneos uns dos outros. Naquela época, concluí que “a expressão mínima da consangüinidade equivale a um princípio de afinidade entre germanos e, inversamente, a expressão mínima da afinidade remete a um princípio de consangüinidade entre afins” (Silva, 1995, p. 55-56). Viveiros de Castro (1996, 1998) entra no debate sobre o “pequeno, mas espinhoso, problema”, intuindo, como Morgan, uma identidade essencial entre as diferentes manifestações dos assim chamados sistemas classificatórios. Sua contribuição parte da premissa de que os diferentes métodos de cruzamentos revelados pela etnografia são formalmente compatíveis com algum regime de troca matrimonial. Nesse sentido, o autor lembra que se o casamento de primos é prescrito no caso dravidiano e proscrito no caso iroquês, por outro lado, as etnografias não deixam dúvidas de que a troca de irmãs corresponde a uma estrutura de intercâmbio em ambos os casos. No modelo dravidiano, a troca, uma vez estabelecida em dada geração, é reiterada na geração seguinte. Enquanto isso, no modelo iroquês, a troca, uma vez efetivada, não pode se repetir na geração seguinte. Mas – e isso vai por minha conta – talvez pudesse voltar a ocorrer algumas gerações depois, quando, por exemplo, a primeira troca fosse “esquecida”. Na minha própria experiência de campo com outro povo amazônico sobre o qual voltarei a falar no fim deste sobrevoo, um indivíduo idoso fornece, com segurança, informações genealógicas e outras, como o clã, a linha do clã e os nomes de seu pai e de sua mãe falecidos. Mas a partir daí a coisa muda. Frequentemente, alega não se lembrar mais dessas mesmas informações sobre seus avós, mortos há muito tempo. Isso sugere que as trocas matrimoniais, apesar de deixarem rastros nas redes empíricas de alianças, talvez lá sejam “esquecidas” em intervalos de sessenta ou oitenta anos. ILHA volume 12 - número 2

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Viveiros de Castro (1996, 1998) chama a atenção de que, além dos métodos dravidiano e iroquês, observados por Morgan (1871), e do kuma, trazido ao debate por Scheffler, exatamente um século depois, a etnografia agora oferece à reflexão pelo menos dois novos métodos de cruzamento, verificados entre os Ngawbe e os Iafar:

Tabela 4 – Métodos de cruzamento Ngawbe e Iafar Fonte: Adaptado de Viveiros de Castro (1996).

Diante da proliferação dos cálculos de cruzamento, Viveiros de Castro enfrenta o “pequeno problema” do parentesco exatamente como Lévi-Strauss enfrentou a “ilusão totêmica”. Recordemos o método com uma paródia daquela passagem muito conhecida d’O totemismo hoje: o exercício passa a ser o de definir, de fora, em seus aspectos mais gerais, o campo semântico no seio do qual se situam fenômenos agrupados sob o nome de... cruzamento. Como? Recordemos os três passos da análise estrutural: 1º) Definir o fenômeno a ser estudado como uma relação entre dois ou mais termos reais ou virtuais; 2º) Construir o quadro de permutações possíveis entre esses termos; 3º) Tomar este quadro por objeto geral de uma análise que, somente neste nível, pode chegar a conexões necessárias, sendo o fenômeno empírico visado desde já apenas uma combinação possível entre outras, cujo sistema total deverá ser previamente reconstruído (Lévi-Strauss, 1975, p. 26). ILHA volume 12 - número 2

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O “objeto geral” definido por Viveiros de Castro (1996, p. 62) é o que denomina o “padrão geral de fusão bifurcada isogeracional e sexualmente simétrica”, isto é, padrão que não tem a pretensão de dar conta dos sistemas de fusão bifurcada oblíquos, do tipo crow/omaha ou avuncular/amital. Os termos de seu “quadro de permutações” são geração (G2, G1 e GØ), sexo relativo (0 = mesmo sexo; 1 = sexo oposto, em G2 e G1) e cruzamento ou desposabilidade (0 = paralelo ou consanguíneo; 1 = cruzado ou afim, em GØ). Os diferentes métodos de cruzamento são agora descritos por uma série ordenada de números de quatro algarismos na base dois. Se preferirmos expressar sua proposta na clave das mitológicas, podemos dizer que os diferentes métodos de cruzamento (dravidiano, iroquês etc.) passam a integrar um grupo de transformação. Para Lévi-Strauss, como acabamos de ver, é somente nesse nível que se “pode chegar a conexões necessárias”.

Tabela 5 – Variações do cruzamento modeladas por Viveiros de Castro (1996, 1998) Fonte: Adaptado de Viveiros de Castro (1996, 1998).

A série em questão (de 0000 a 0111), revelada na linha GØ, prevê mais oito casos, de 1000 a 1111. Alguns, como a variante 1000, seriam etnograficamente improváveis, assinala o autor, já que filhos de filhos de mesmo sexo de irmãos de mesmo sexo são paralelos em todos os sistemas conhecidos. Enquanto isso, o primeiro e o último número da série de 16, a saber, 0000 e 1111, remeteriam a situações em que, respectivamente, nenhum ou todos os primos segundos são casáveis.12 A solução elegante de Viveiros de Castro para o “pequeno, mas espinhoso, problema”, aqui drasticamente resumida, aguarda até hoje sua apropriação pela pesquisa empírica. A espera de 15 anos se justifica, entre outras coisas, porque seu modelo reclama condições de verificação que dependem de dados etnográficos de “alta resolução”. ILHA volume 12 - número 2

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Mas talvez sua entrada na fase de testes não tarde muito a acontecer, com o desenvolvimento de técnicas e ferramentas computacionais para o tratamento das redes empíricas de aliança, documentadas pela pesquisa etnográfica. Técnicas e ferramentas com as quais LéviStrauss já sonhava nos anos 1960, como naquela conferência que retoma aquele outro “pequeno, mas espinhoso, problema” do parentesco, o dos sistemas Crow–Omaha em que, segundo o autor, “a história vem para o primeiro plano” (Lévi-Strauss, 1969[1965], p. 142) e cujo funcionamento real não se pode estudar “sem o auxílio dos computadores” (p. 143). O mesmo poderia ser dito em relação a outras contribuições não menos elegantes, como as recentes explorações matemáticas do problema feitas por Tjon Sie Fat (1998) e Barbosa de Almeida (2010), que igualmente esperam sua vez nas pistas de prova. * Em uma coletânea recente que retoma vigorosamente os desafios propostos por Morgan, seus editores caracterizam os estudos de parentesco como um jano de dupla face, uma delas voltada para o Ocidente de seus princípios classificatórios, em que se desenha “o parentesco frio, matemático, de beleza exata, lúcida e calma”, outra para o Oriente de suas práticas, em que se vê o parentesco “quente, vermelho em dentes e garras” (Godelier, Trautmann e Tjon Sie Fat, 1998, p. 5). Na reta final, já bem próximos da pista de pouso, somos obrigados a admitir que nosso sobrevoo ficou circunscrito à porção ocidental do território do “problema”, se quisermos seguir com a metáfora. Aos que chegaram até aqui, agradeço e espero que este texto tenha contribuído para evidenciar a importância da carta de Robert Carneiro. Além disso, espero ter convencido o leitor de que a coleção de modelos que acabamos de evocar, voltada ao “pequeno, mas espinhoso, problema”, tem lugar assegurado no acervo do museu da antropologia. Mas é preciso reconhecer também que a carta inédita de Robert Carneiro assim como a discussão aparentemente antiquada que ela levanta não são apenas relíquias históricas da disciplina, o ILHA volume 12 - número 2

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que, aliás, não seria pouca coisa. Em breve, outro sobrevoo da questão, dessa vez rumo ao Oriente hobbesiano do parentesco, poderá revelar a instrumentalidade de tal coleção para dar conta das práticas de povos contemporâneos, que, na falta de modelos como esses, permaneceriam invisíveis e, eventualmente, perdidas para sempre. No rumo ao Oriente, tais modelos se apresentam como instrumentos de navegação, sem os quais os sobrevoos são voos cegos. Em suma, os velhos modelos continuam úteis, séculos depois de sua invenção, como as velhas bússolas, que convivem sem favor ao lado dos GPSs de última geração, nos painéis de qualquer avião moderno. Afinal, diante de uma pane elétrica total, só as bússolas continuam funcionando. Sobre o próximo sobrevoo rumo ao Oriente, os limites deste artigo me obrigam a restringir seu plano a poucas palavras: uma análise do funcionamento real de um sistema iroquês sul-americano que pratica intensamente o intercâmbio de irmãos entre famílias que são impedidas de replicar essas alianças nas gerações subsequentes, mas que ainda assim acabam por produzir e permitir repetições de certos padrões matrimoniais. Esse regime de aliança, por sua vez, está inextrincavelmente articulado a um sistema de clãs patrilineares que se fundam não em ideologias de consubstancialidade, mas no exercício da troca e de suas consequências na vida social. Nesse próximo sobrevoo, Morgan talvez comemorasse a descoberta de um genuíno exemplo da família ganowaniana, provindo da América do Sul, continente que, por força das circunstâncias, ficou fora de sua síntese. Enquanto isso, Lowie reencontraria a fusão bifurcada e Murdock, um novo exemplo do tipo básico de organização social “Dakota Normal”. Por sua vez, é provável que Héritier, pelo fato de todos os fechamentos (bouclages) da rede genealógica serem iniciados por irmãos do mesmo sexo, tivesse interesse em incluir o método iroquês em um novo exercício, nos moldes daquele publicado em 1981. Finalmente, Viveiros de Castro (1996, p. 53), diante desses mesmos fenômenos, talvez reconhecesse uma transformação neolítica de seu modelo (paleolítico) de aliança iroquesa ou, eventualmente, o interesse de sua projeção em direção aos priILHA volume 12 - número 2

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mos terceiros ou quartos, já que se, por um lado, casamentos com os primos segundos MMBSD, FFZDD, MFZSD e FMBDD não se verificam na rede documentada pela pesquisa etnográfica, por outro lado, casamentos como FFFZSSD e FFMBSSD são considerados corretos. Tais casamentos, convém que se diga, correspondem precisamente a posições cruzadas, segundo o método iroquês, de primos terceiros, que são netos de primos de primeiro grau. Assim é como me parece a Liga dos Enawene-Nawe, com a qual venho trabalhando. O povo a que me refiro conta atualmente com uma população de pouco mais de seiscentas pessoas de carne e osso, concentradas em uma única aldeia, localizada na região dos formadores do Rio Tapajós, na Amazônia Brasileira. Nesse contexto, o rastreamento dos circuitos de aliança, favorecido pelo tratamento informático, revelou a imbricação de mais de setenta mil anéis matrimoniais, em uma rede de “complicação impossível” (Goldenweiser, 1912 apud LéviStrauss, 1967[1949], p. 145) cuja concatenação, no eixo temporal, está menos para a mecânica celeste que para o jogo de dados. Para ser exato, sua evolução lembra uma partida de Tetris (Dal Poz e Silva, 2009) em que várias peças de formato diferentes caem ao mesmo tempo do topo da janela, produzindo encaixes sobre encaixes anteriores, como nos sistemas semicomplexos, “num estado de turbulência permanente” (Lévi-Strauss, 1969[1965], p. 140). As ligações de filiação e casamento que aí se produzem compõem uma rede empírica de parentesco cujos nós são seus próprios jogadores, que tentam acomodar como podem, da melhor maneira possível, o encaixe de novas peças que não param de cair. Enquanto isso, pouco a pouco, esquecem aqueles encaixes efetuados há muito tempo. Como as condições meteorológicas em uma região, as possibilidades de encaixes matrimoniais mudam a cada momento, parcialmente determinadas por condições anteriores, parcialmente determinadas por novos eventos. Parcialmente, bem entendido, pois sabemos que o bater das asas de uma borboleta em Tóquio pode, um mês depois, causar um furacão em Santa Catarina.

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Agradeço a Robert Carneiro a autorização para traduzir e publicar sua carta, a Eduardo Viveiros de Castro, por ter me chamado a atenção para a contribuição que ela trazia à história dos estudos de parentesco, à Fernanda Areas Peixoto, pela leitura atenta da primeira versão deste artigo, e à Adriana Queiroz Testa, pela tradução cuidadosa das cartas. As cartas estão em anexo. Neste texto, alterno livremente as expressões “sistema”, “nomenclatura”, “terminologia” e “vocabulário de parentesco”. Ironicamente, o título da versão brasileira do texto de Viveiros de Castro que explora o tal “pequeno, mas espinhoso, problema”, elucidado por Lounsbury e Pospisil, revelou um sentido profético com a entrada em cena de Carneiro: o texto se chama “Ambos os três”. Os interessados em aprofundar a reflexão sobre o problema encontrarão elementos suficientes nas contribuições de Tjon Sie Fat (1998), Trautmann e Barnes (1998), Viveiros de Castro (1996, 1998) e Barbosa de Almeida (2010). Trazido ao debate por McLennan (1886[1876]) – Appendix to the Classificatory…, Note A, p. X, – contra Morgan (1871), que, aparentemente, não o leva em conta. Segundo Morgan (1871, p. 131), o termo por ele forjado se justificava por sua analogia a “‘Ariano’, de arya, que, de acordo com Müller, significa ‘aquele que ara ou cultiva’, e a ‘Turaniano’, de tura, que, de acordo com o mesmo erudito autor, ‘sugere a rapidez do cavaleiro’”. As variantes formais notadas por Morgan, posteriormente, deram origem aos tipos que ficaram conhecidos como “iroquês”, “crow”, “omaha” e “havaiano”. O uso de termos como “tio” (irmão da mãe), “sobrinho” (filho da irmã), “cunhado” (primo cruzado) entre não parentes é também muito frequente nos materiais sulamericanos. Se Morgan não se livrara do fantasma do matriarcado, o mesmo se pode dizer de McLennan em relação à sua obsessão pela poliandria, sempre acompanhada de sua outra obsessão, a exogamia, que, para o autor, marcavam os primórdios da história humana (McLennan, 1886, p. 230-231). Compartilhar a mulher com vários homens (poliandria) ou raptar a mulher de outro grupo (exogamia) eram as alternativas do homem primitivo diante da escassez de mulheres causada pelo infanticídio feminino, que se justificava pelas condições de penúria alimentar (McLennan, 1970[1865]). Observe-se, de passagem que, para McLennan, a quem devemos a introdução do termo no debate antropológico, exogamia correspondia a uma instituição social. A partir de Lévi-Strauss, seu sentido passa ser o de condição do social, o que não é a mesma coisa. As afinidades intelectuais no campo do parentesco são razões suficientes para Rivers tomar partido de Morgan na querela com McLennan. Sem qualquer veleidade de contribuir em seara que não é a minha, meu palpite para os historiadores das ideias da antropologia é de que a aliança com Morgan decorra também do ponto de vista frontalmente oposto que McLennan sustentava em relação à pesquisa de campo. Método privilegiado da disciplina tanto para Morgan quanto para Rivers, o trabalho de campo marcou definitivamente a obra de ambos, que se tornaram antropólogos a partir de suas vivências no país dos Sêneca-Iroqueses e no Estreito de Torres, respectivamente. Enquanto isso, para McLennan, a pesquisa de campo correspondia a uma atividade enganosa e supérflua, como se lê no trecho abaixo, extraído de sua crítica que desqualifica a hipótese de Morgan sobre os “sistemas classificatórios” por ILHA volume 12 - número 2

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estar baseada na experiência etnográfica: “Lafitau nos conta que, já em seu tempo, se dizia que os índios haviam abandonado muito os seus costumes antigos. É de se esperar que eles tenham mudado muito desde então, e isso pode explicar as diferenças entre Lafitau e o Sr. Morgan. [Portanto,] estudar índios contemporâneos em meados do século XIX não é, por si só, o melhor modo de aprender a verdade sobre os costumes e instituições indígenas, quando são acessíveis copiosos registros desses dados de mais de duzentos anos atrás” (McLennan, 1886[1876], p. 308). Se não houver parente de ligação entre Ego e Alter, Alter é de cor preta (isto é, consanguíneo). A modelagem de Viveiros de Castro encoraja a realização de novos exercícios. Um deles poderia ser a ampliação do número de gerações consideradas no cálculo de cruzamento, diante de sistemas como o Inca, cujo casamento aparentemente frequente de um homem com sua FFFZDDD, segundo Zuidema (1977), é o que induz a concepção nativa do grupo local como uma estrutura endogâmica (ayllu).

Anexos Duas cartas de Robert Carneiro: 14 de julho de 2010 Caro Eduardo, Recentemente, meu colega Peter Whiteley que, entre outras coisas, é um especialista em parentesco chamou minha atenção para seu capítulo: “Dravidian and Related Kinship Systems” na coletânea Transformations of Kinship, editada por Maurice Godelier et al. Anos atrás, eu mesmo teria me deparado com esse texto, quando era também um aficionado por parentesco. Mas esses dias há muito passaram (que pena!). De todo modo, o motivo pelo qual Peter chamou minha atenção para seu artigo foi a nota de rodapé n. 5, nas páginas 376-377, em que você coloca a seguinte questão: “É impossível saber se Carneiro e Dole tinham conhecimento do artigo de Lounsbury” de 1964 etc. Pretendo responder sua pergunta, mas tem uma longa história inédita por trás dessa resposta que eu acho que pode ser do seu interesse, já que você é um grande estudioso dos sistemas de parentesco iroquês/dravidiano, e expressou curiosidade quanto ao meu envolvimento nesse assunto tão interessante. Nesta altura, descortinar tudo isso pode lhe parecer um pouco autocomplacente. Sem dúvida é. Mas, mesmo assim, é tudo verdade. Então, lá vai. Na primavera de 1952, quando fazia pós-graduação na Universidade de Michigan, fiz um curso de parentesco com Leslie White. ILHA volume 12 - número 2

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Uma das atividades do curso era ler algo substancial sobre parentesco e escrever um trabalho final inspirado nesse texto. Escolhi ler (pelo menos em parte) Sistemas de consangüinidade e afinidade da família humana, de Lewis H. Morgan. Foi Morgan que iniciou os estudos de parentesco, seguindo sua descoberta, enquanto vivia com os Sêneca-Iroqueses, que seu sistema para designar parentes era consideravelmente diferente de qualquer sistema conhecido por europeus. Posteriormente, as viagens feitas por Morgan levaram-no ao norte do meio-oeste onde ele descobriu que os Winnebago e os Menominee tinham sistemas de parentesco parecidos com o iroquês. Despertada sua curiosidade, ele resolveu ver como eram os sistemas de parentesco mundo afora. Suas pesquisas extensivas e sistemáticas nessa linha levaram à publicação da sua grande obra: Sistemas... Enquanto comparava os muitos sistemas de parentesco que havia coletado, ele se espantou com a similaridade entre o sistema iroquês e o dos Tamil, falantes de línguas dravidianas do Sul da Índia. Ele descobriu, de fato, que os dois eram quase idênticos. Mas nem tanto. Para oito tipos de parentes entre os mais de 200 que estavam entre suas anotações, os Tamil apresentavam formas diferentes das iroquesas. Morgan não deixou de notar essas diferenças, mas estava realmente mais impressionado com as semelhanças. E, embora não tentasse varrer as diferenças por baixo do tapete, ele tampouco se dedicou a explicá-las. De qualquer modo, ele não apresentou uma explicação para elas. (Como você sabe, o casamento de primos cruzados está na raiz dessas diferenças, mas um dos motivos pelos quais Morgan não tinha condições de perceber isso foi que ele não estava familiarizado com o fato de que para muitas sociedades primitivas um primo não é apenas um primo. Existe uma profunda e consistente diferença entre um primo paralelo e um primo cruzado. Mas tal distinção não era do conhecimento de Morgan, pois só seria introduzida na antropologia anos mais tarde por E. B. Tylor.) O problema sem solução das diferenças entre os sistemas de parentesco iroquês e tamil chamou minha atenção enquanto avançava pelas páginas dos Sistemas... E, embora as diferenças fossem pouILHA volume 12 - número 2

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cas, elas eram completamente sistemáticas e regulares. Elas se manifestavam na forma particular como os Tamil designavam os filhos dos seus primos cruzados. É nesse ponto dos seus sistemas de parentesco – e em nenhum outro – que os termos consangüíneos tamil e iroqueses diferem. E aqui estava, a meu ver, um bom problema a enfrentar. As poucas diferenças entre as duas terminologias de parentesco eram tão específicas e regulares que tinha de haver uma forma sistemática de dar conta delas. Mas como fazer isso? Hoje, passado mais de meio século, não lembro exatamente o que me levou à conclusão. É bem provável que tenha sido o fato de Leslie White ter destacado, no curso de parentesco, certos aspectos terminológicos (e.g., a equação entre o marido da irmã do pai com o irmão da mãe) que resultavam de casamentos com primos cruzados. De qualquer forma, em algum momento, enquanto estudava o problema iroquês/tamil, de repente me veio a idéia de que o casamento entre primos cruzados explicaria – de forma simples e completa – as diferenças entre as terminologias tamil e iroquesas: os Tamil praticavam o casamento entre primos cruzados, e os iroqueses não. Sei que você já sabe de tudo isso, mas gostaria, com auxílio de alguns diagramas, apresentar o raciocínio que me levou a formular a solução desse problema. Tomando o sistema iroquês como a forma “básica”, vejamos como a introdução do casamento de primos cruzados mudaria a forma como os iroqueses designavam os filhos desses primos, tornando-a idêntica à forma como os Tamil designam esses parentes. O Diagrama 1 mostra, em parte, a metade patrilateral de um diagrama de parentesco padrão, Ego sendo masculino. (A metade matrilateral apresentaria os mesmos resultados, mas, para simplificar, pode ser ignorada nesse exercício.) O Diagrama 1 mostra, primeiro, a forma iroquesa de como um Ego masculino chamaria o filho e a filha do seu primo cruzado. Vemos que ele os chama I e J, os mesmos termos que aplica aos seus próprios filho e filha. Por outro lado, observamos que ele chama o filho e a filha da sua prima cruzada K e L, os mesmos termos usados para os filhos e as filhas da sua irmã. Esses termos podem ser considerados essencialmente equivalentes a “sobrinho” e à “sobrinha”. ILHA volume 12 - número 2

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O fato de que não são os termos para “filho” e “filha” que um Ego masculino aplicaria aos filhos e às filhas do seu irmão indica algo de profunda importância na forma de pensar o parentesco primitivo: a diferença entre parentes do mesmo sexo e de sexo oposto. Mas, por importante e fundamental que seja essa distinção em sociedades primitivas – de fato é a base da distinção entre primos cruzados e, portanto, do casamento entre primos cruzados –, ela merece ainda mais atenção do que os especialistas em parentesco têm dado. Veja agora o Diagrama 2, em que, diferentemente do Diagrama 1, aparecem os cônjuges dos primos cruzados de Ego. Observe o que acontece quando introduzimos o casamento entre primos cruzados no sistema. O primo G de Ego pode, muito bem, ter casado com a irmã de Ego, que é também sua prima cruzada. Portanto, os descendentes do primo cruzado de Ego se tornam também os descendentes da sua irmã. Isso, é claro, implica uma escolha terminológica: Ego pode considerar essas crianças filho e filha do filho da irmã do seu pai ou como filho e filha da sua irmã. Se ele escolhe a primeira alternativa, ele vai chamá-las “filho” e “filha” – como fazem os iroqueses. Mas, se ele escolhe a segunda opção, isso indica que ele as considera primeiramente como filho e filha da sua irmã, sendo, então, chamados K e L, isto é, “sobrinho” e “sobrinha”.

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Parece totalmente razoável que Ego trace sua relação com esses parentes através da irmã, e não do primo cruzado. Afinal, é claramente o caminho mais curto e próximo dentre as duas opções. E, evidentemente, essa é a escolha que sociedades do tipo Tamil/ Dravidianas fazem de forma consistente e rotineira. Mas é exatamente o inverso que ocorre quando consideramos os descendentes da prima cruzada de Ego. Em muitos, se não na maioria dos casos, ela teria casado com o irmão de Ego – possivelmente o próprio Ego! Então, para Ego a escolha terminológica é traçar sua relação com essas crianças através da filha da irmã do pai – chamando, então, essas crianças de K e L (“sobrinho” e “sobrinha”) ou através do seu irmão –, que casou com sua prima casada (que é também prima cruzada de Ego). Nesse caso, Ego chamará essas crianças I e J, “filho” e “filha”. Claramente, é mais razoável que Ego trace essa relação através do seu irmão – o caminho mais curto – e então considere essas crianças (e as chamará) “filho” e “filha”. (O mesmo tipo de explicação serviria se considerássemos o lado matrilateral do diagrama e lidássemos com os primos cruzados maternos de Ego.) * Voltando a 1952, essa explicação me pareceu tão simples, redonda e completa que eu estava certo de que tinha de estar correta. Mesmo assim, quis testá-la examinando outra sociedade fora da Índia que também praticasse o casamento entre primos cruzados para ver como ela designava os filhos dos primos cruzados. Para tanto, escolhi os Kariera da Austrália Central e descobri que eles realmente chamavam os filhos dos primos cruzados exatamente conforme a minha teoria. Como você sabe, Eduardo, entre os Kariera, assim como em muitas sociedades aborígenes da Austrália, existem seções e subseções nomeadas que recebem termos sociocêntricos – termos que são sobrepostos à nomenclatura regular de parentesco egocentrado. Infelizmente, isso tem servido para obscurecer e confundir o problema nas mentes de vários especialistas em parentesco que batalham com o ILHA volume 12 - número 2

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problema iroquês/dravidiano. No entanto, o fato é que a nomenclatura de parentesco dravidiana é independente de e não é afetada pela existência de quaisquer grupos unilineares de parentesco – sibs, metades, seções etc. Como você destacou (nota de rodapé 24, página 380 do seu texto): “[...] terminologias dravidianas [...] não são necessariamente associadas à patrilinearidade (no Sul da Índia estão presentes em sociedades patrilineares e matrilineares, no Sri Lanka em sociedades cognáticas [...]”). E, como você sabe, melhor do que qualquer outra pessoa, isso também é verdadeiro em sociedades cognáticas na Amazônia. Bem, essa é apenas uma parte da história. Aqui vai a continuação. Eu fiquei eufórico com essa “descoberta” e resolvi apresentá-la em uma comunicação na reunião da Academia de Ciências, Artes e Letras de Michigan. Nós, pós-graduandos em antropologia, éramos instigados a apresentar trabalhos nessas reuniões para que pudéssemos tentar nossos primeiros vôos. Eu havia apresentado uma comunicação na reunião do ano anterior e teria feito o mesmo naquele ano de 1952, se não tivesse acontecido um problema. Pouco antes da reunião, enquanto lia Studies in Ancient History, de J. F. McLennan (1886), eu descobri que McLennan tinha apresentado um pedaço da solução ao problema do parentesco iroquês/tamil. E, embora ele não tivesse explicado de forma completa, ele estava no rumo certo. O suficiente para que eu me sentisse um pouco acanhado ao saber que não era o único a resolver o problema. E pode ter sido isso que me inibiu e impediu de escrever um texto formal. Em vez disso, acabei apenas apresentando a solução oralmente, sem sequer recorrer às minhas anotações. Mas as coisas tomaram um rumo inesperado quando, pouco antes da reunião, James Griffen (um arqueólogo de Michigan) me informou que o antropólogo da Universidade do Estado de Michigan responsável por preparar o programa da sessão tinha sido despedido da Universidade por “indignidade moral”! Esse quinhão de fofoca seria completamente irrelevante à minha apresentação se não fosse uma coisa: a pessoa que preparou o programa em seu lugar certamente não era um antropólogo. Ela embaralhou completamente o ILHA volume 12 - número 2

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título da minha comunicação oral – um título que indicava claramente que eu considerava ter resolvido o problema do parentesco iroquês/tamil. Se meu título tivesse sido impresso corretamente no programa, teria fornecido alguma prova tangível que eu poderia depois ter apresentado para defender minha precedência em ter resolvido o problema. Entretanto, o título embaralhado tornou isso praticamente impossível. A única coisa impressa hoje que indica minimamente que eu teria resolvido o problema antes de qualquer outra pessoa (pace McLennan) é a breve referência na tese de Gertrude Dole, que apareceu em 1956. Bem, após apresentar minha solução na reunião na Universidade do Estado de Michigan, não fiz mais nada a respeito. No ano seguinte, 1953, vi uma referência no periódico Man a um artigo de Louis Dumont intitulado “The Dravidian Kinship Terminology as an Expression of Marriage”. O mero título sugeria que Dumont também teria resolvido o problema do parentesco iroquês/tamil. Ai, como bati minha cabeça na parede! Eu havia perdido a precedência e estava dolorosamente desapontado. Tanto que sequer li o artigo de Dumont, pelo menos durante os cinqüenta anos seguintes! Na verdade, durante anos, eu rangia os dentes sempre que encontrava uma referência ao artigo de Dumont. Mas, em 2003, numa correspondência com Nick Allen, de Oxford, que começou por causa de algo completamente desconexo, surgiu o problema do parentesco iroquês/tamil (dravidiano). Sinceramente, antes disso, eu sequer sabia que Nick Allen existia, quanto menos que era um especialista em parentesco dravidiano. Conforme nossa correspondência seguia no assunto, meu interesse adormecido pelo parentesco despertou e decidi, cinqüenta anos depois, que, finalmente, estava na hora de ler o artigo de Dumont. No final das contas, o artigo era muito obscuro. (RadcliffeBrown havia dito a seu respeito: “Não consigo entender o artigo sobre o parentesco dravidiano do Sr. Dumont, embora eu o tenha lido atentamente várias vezes”.) Mesmo assim, perseverei até o final. E, aí, eu realmente bati a cabeça na parede! Além de Dumont não ter resolvido o problema do parentesco iroquês/tamil, ele sequer notou ILHA volume 12 - número 2

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sua existência!!! (Como dizemos no jargão do beisebol, “ele nem encostou a luva!”.) Trabalhando na Índia, Dumont estava familiarizado com o sistema de parentesco tamil (dravidiano), mas ele ignorava totalmente o fato de que os iroqueses tinham um sistema de nomenclatura de parentesco muito semelhante, mas não exatamente idêntico. Ele sabia da prática de casamento entre primos cruzados entre os dravidianos e sabia que em certos casos (e.g., chamar o irmão da mãe de “sogro”) refletia o casamento entre primos cruzados. Mas ele deixou de notar completamente que a forma como os dravidianos designavam os filhos e as filhas dos primos cruzados representava uma inversão em relação à forma de designação iroquesa. Era natural que, não tendo familiaridade com o sistema iroquês, ele não fizesse idéia de que o sistema tamil tivesse, como característica, uma inversão de como esses parentes são designados. Mas essa inversão é de longe a diferença mais conspícua – de fato a única – entre os sistemas iroquês e tamil na sua terminologia de parentesco consangüíneo. Como disse, não era de se esperar que Dumont resolvesse um problema que ele sequer soubesse que existia. Mas é claro que eu não sabia que Dumont não soubesse. Droga! Se eu soubesse disso lá atrás em 1953, eu teria realmente lido seu artigo. E, se o tivesse feito, teria sem dúvida me dado ao ímpeto que precisava para escrever minha solução ao problema do parentesco iroquês/tamil e submetê-la à publicação. Mas a questão ainda estava em aberto – se Dumont não foi o primeiro a publicar uma solução para o problema iroquês/tamil, quem foi? Conforme eu continuava a ler sobre o assunto, o dedo parecia apontar para Floyd Lounsbury. Eu já sabia que Lounsbury era um cara brilhante, um dos antropólogos mais inteligentes que já conheci. Então, ele certamente tinha os neurônios para resolver o problema. (Não que isso demandasse tanto!) Sobretudo, ele era um especialista na língua iroquesa, então ele certamente conhecia seu sistema de parentesco de trás pra frente. Em 1964, como você sabe, Lounsbury publicou um artigo intitulado: “The Structural Analysis of Kinship Semantics”, e foi nesse artigo, conforme foi dito, que sua solução para o problema apareceu. Então, voltei para esse artigo. ILHA volume 12 - número 2

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Aí veio outra surpresa! Havia muito pouco nesse artigo sobre o problema iroquês/dravidiano. Na verdade, a discussão se limitava a uma nota de rodapé na página 1079 que, em sua totalidade, dizia: Existem sistemas que classificam os tipos de parentes da forma como imaginávamos que os iroqueses faziam. Esses são os sistemas de tipo “dravidiano”. O interessante é que eles geralmente não são fundados em razão de clãs ou metades, mas no modo de bifurcação que, diferente dos Iroqueses, leva em conta o sexo de todos os parentes de ligação. Os tipos dravidianos e iroqueses raramente são distinguidos na literatura antropológica, passando todos sob o rótulo do ‘tipo iroquês’. Na verdade, são todos sistemas cuja premissa está baseada em princípios muito diferentes de raciocínio e derivam de estruturas sociais que são fundamentalmente diversas.

Aí está. Isso foi tudo que Lounsbury tinha a dizer sobre o assunto. Ele percebeu que os sistemas de parentesco iroquês e dravidiano eram diferentes em certos aspectos, embora fosse um tanto críptico no que disse. Ele disse que o sistema dravidiano levava em conta o sexo de todos os parentes de ligação. Mas ele deixou de especificar o que exatamente eram essas ligações. Nem tampouco explicou quais eram as diferenças em estrutura social que acarretavam as características especiais do sistema de parentesco dravidiano, ou como isso ocorria. Francamente, não consigo encontrar na afirmação de Lounsbury qualquer indício claro e convincente de que ele tinha acertado o casamento entre primos cruzados como a característica distintiva que transformava a nomenclatura iroquesa em dravidiana. Estou bastante convencido de que ele sabia o que era, mas não disse. De fato, não acho que alguém possa atestar, com base na afirmação de Lounsbury, que ele estava incontestavelmente ciente da diferença específica entre as duas terminologias, a saber, que residia na inversão dos termos aplicados aos filhos dos primos cruzados. É claro que, afinal de contas, alguém apontou essa diferença. Mas se não foi Lounsbury, quem foi? Trautman? Scheffler? Allen? Quem?

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De certo modo, a esta altura, já não me importo. Já estava claro para mim que, pelo menos, até 1964, ninguém o havia feito. Pois – de novo – eu estava dolorosamente ciente de que tinha perdido o trem. Se eu tivesse publicado meu trabalho entre 1952 e 1964... ou mesmo depois, eu teria estabelecido minha precedência no assunto. Mas, afinal de contas, no contexto maior, as diferenças entre os sistemas iroquês e tamil são café pequeno. Porém, tais são as vaidades dos homens! Na verdade, agora que saí do banco de reservas e voltei ao jogo, estou interessado em saber quem, desde então, propôs uma solução para esse pequeno, mas espinhoso, problema de parentesco. Acabo de encomendar uma cópia do livro que contém o artigo de 1971 de Scheffler para ver se foi ele que finalmente o resolveu. Se não foi Scheffler, foi Trautman? Allen? Shapiro? Quem? Acho que continuarei nessa busca até descobrir. Entrando no assunto de forma tão longa e tortuosa, temo que possa ter extrapolado sua paciência comigo, então paro por aqui. Não preciso dizer que, se algo disso reacende seu interesse pela questão iroquesa/dravidiana, eu realmente gostaria de continuar essa conversa com você. Com estima, Robert L. Carneiro 7 de janeiro de 2011 Caro Marcio, Primeiramente, por favor desculpe meu longo atraso em responder à sua carta de 3 de dezembro. Deixe-me explicar o motivo pelo atraso. Eu e minha esposa temos uma pequena casa nas matas de Rhode Island, e tive que gastar um tempo extraordinário tentando lidar com um problema que tivemos com a água do poço, incluindo a presença de E. coli “em quantidade grande demais para contabilizar”, de acordo com o laudo do laboratório. Tudo isso me manteve afastado da minha escrivaninha em Nova York. Mas, voltando ao assunto em pauta, estou muito feliz com a possibilidade de ter a carta que escrevi ao Eduardo Viveiros de Castro ILHA volume 12 - número 2

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publicada numa tradução para o português. Você certamente tem minha permissão para prosseguir com a tradução dessa carta e publicá-la na revista. Muito obrigado pela cópia do seu livro sobre os Waimiri-Atroari. Lembro quando primeiro soubemos da sua existência, e estou ansioso para aprender mais sobre eles. Novamente, peço desculpa pelo longo atraso em respondê-lo. Estou muito animado com a apresentação do meu trabalho sobre o problema do parentesco iroquês/tamil (dravidiano). Quem sabe agora possa parar de bater a cabeça na parede! Com estima, Robert L. Carneiro Tradução de Adriana Queiroz Testa. Referências ATKINS, John R. On the Fundamental Consanguineal Numbers and Their Structural Basis. American Ethnologist, v. 1, issue 1, p. 1-31, 1974. BARBOSA DE ALMEIDA, Mauro William. On the Structure of the Dravidian Kinship System. Mathematical Anthropology and Cultural Theory: An International Journal, v. 3, n. 1, p. 1-43, 2010. COELHO DE SOUZA, Marcela S. Da complexidade do elementar: para uma reconsideração do parentesco xinguano. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (Org.). Antropologia do parentesco: estudos ameríndios. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. p. 121-206. DAL POZ, João; SILVA, Marcio Ferreira da. MaqPar – A Homemade Tool for the Study of Kinship Networks. VIBRANT, v. 6, n. 2, p. 29-51, 2009. DOLE, Gertrude. 1957. The Development of Patterns of Kinship Nomenclature. Thesis (Doctorate) – University of Michigan, 1957. DUMONT, Louis. Le vocabulaire de parenté dravidien comme expression du marriage. In: ______. Dravidien et Kariera: l’alliance de marriage dans l’Inde du Sud et en Australie. Paris: Mouton, 1975a[1953]. p. 85-100. ______. Hiérarchie et alliance de mariage dans la parenté de l’Inde du Sud. In: ______. Dravidien et Kariera: l’alliance de marriage dans l’Inde du Sud et en Australie. Paris: Mouton, 1975b. p. 7-83. ______. Sur le vocabulare de parenté kariera. In: ______. Dravidien et Kariera: l’alliance de marriage dans l’Inde du Sud et en Australie. Paris: Mouton, 1975c. p. 101-116. ILHA volume 12 - número 2

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O século de Lévi-Strauss Patrick Menget¹ École Pratique de Hautes Étude E-mail: [email protected]

Tradução: Miriam F. Hartung

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Resumo

Résumé

Este artigo, escrito e proferido na ocasião do centenário de Claude LéviStrauss, retraça, primeiramente, as grandes etapas de sua vida e de sua formação como antropólogo. Antes de seu trabalho como etnógrafo no Brasil, ele se forma como professor em filosofia na França, depois se familiariza com os mestres do culturalismo americano. Exilado em Nova Iorque, ele encontra R. Jakobson e descobre o estruturalismo na linguística, o qual ele será o primeiro a transportar para os estudos dos sistemas de parentesco e de casamento, depois para as mitologias da América. O estruturalismo de LéviStrauss é, sobretudo, um método do que uma filosofia, contrariamente ao mal-entendido sustentado nos meios intelectuais de Paris, e sua obra resulta numa estética e numa ética do respeito à vida, sempre mantendo a afirmação do relativismo cultural. As lições de sua obra gigantesca permitem, finalmente, relativizar as posições pósmodernas.

Cet article, “O século de Lévi-Strauss”, écrit et prononcé à l’occasion du centenaire de ce dernier, retrace d’abord les grandes étapes de sa vie et de sa formation d’anthropologue. Avant son travail d’ethnographe au Brésil, il se forme comme professeur de philosophie en France, puis se familiarise avec les maîtres du culturalisme américain. Exilé à New York, il rencontre R.Jakobson et découvre le structuralisme en linguistique, qu’il sera l’un des premiers à transposer dans l’étude des systèmes de parenté et de mariage, puis des mythologies indiennes d’Amérique. Le structuralisme de Lévi-Strauss est plutôt une méthode qu’une philosophie, contrairement au malentendu entretenu dans les milieux intellectuels de Paris, et son oeuvre débouche sur une esthétique et une éthique du respect de la vie, tout en maintenant l’affirmation du relativisme culturel. Les leçons de son oeuvre gigantesque permettent enfin de relativiser les positions post-modernes. Mots-clés: Structuralisme. Lévi-Strauss. Éthique de l’anthropologie. Histoire de l’anthropologie. Post-modernisme.

Palavras-chave: Estruturalismo. LéviStrauss. Ética da antropologia. História da antropologia. Pós-modernismo.

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ntes de fazer os meus agradecimentos, eu gostaria de me desculpar, pois eu não falo bem o português ou, aliás, eu falo o português falado e não o português escrito. Eu quero agradecer ao Magnífico Reitor, à Sr.a Pró-Reitora, às Senhoras e aos Senhores Professores presentes e, especialmente, ao Professor Márnio Teixeira Pinto. Eu não mereço nem a metade dos elogios que ele me fez. Eu chamei esta conferência de “O século de Lévi-Strauss”.2 Uma pequena observação que eu quero fazer é a de que na França houve um processo de celebração totalmente inédito para qualquer outro intelectual, que eu saiba. Foi tanto que pode ser chamado de uma “mumificação em vida” de Lévi-Strauss e de uma “museificação em vida”. Quero explicar: existe na França uma consagrada coleção de livros muito famosa chamada Bibliothèque de la Plêiade, especializada em publicar clássicos da literatura francesa e mundial, de grandes nomes (pensadores, poetas, escritores) da história; e em maio deste ano foi lançado o volume Lévi-Strauss (ainda em vida), incluindo sete livros, entre os 17 que ele escreveu. E digo “museificação em vida” porque no novo museu de Arte Primitiva, que não se chama Arte Primitiva, mas Arte das Civilizações, devido a controvérsias de opinião sobre a nomeação desse museu, acabou que simplesmente chamamos pelo nome do lugar onde o museu foi erguido: Musée du Quai Branly. E assim ficou. Nesse museu, existe uma sala de teatro que se chama Théâtre Claude Lévi-Strauss e, no dia 28 da semana passada [28/11/2008], vários intelectuais e artistas famosos passaram o dia inteiro no palco lendo trechos das obras de Lévi-Strauss. Mas isso não foi o mais curioso. No final da tarde daquela sexta-feira, o próprio presidente

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Sarkozy foi à casa de Lévi-Strauss para prestar homenagem, tendo sido a única pessoa que Lévi-Strauss, já um pouco cansado mas lúcido, aceitou receber. Mas também é um sinal de que, na situação intelectual da França, Lévi-Strauss é o último grande intelectual. Não sei se concordo com a ênfase da imprensa francesa, em que todos os jornais e todos os semanários falam do “maior intelectual do século”. Isso para mim não quer dizer muita coisa, mas que seja o maior antropólogo do século eu acredito e vou tentar mostrar para vocês. É preciso insistir que a reputação que ele tem na França, e que certamente tem no Brasil, não é tão universal quanto pode parecer. No mundo anglo-saxão, especialmente americano, há hoje uma grande indiferença em relação a Lévi-Strauss. Só um exemplo: no penúltimo domingo, dia 23 [/11/2008], na reunião anual da American Anthropological Association (AAA), que contou com uns quinhentos simpósios, houve um único simpósio, entre os quinhentos, que tratava sobre mito, ritual e espírito (“Myth, Ritual and Mind”) consagrado a Claude Lévi-Strauss. Esse simpósio foi colocado no último dia, dos quatro dias da AAA. Eu estava no simpósio e tinha uma plateia de 15 ou 16 pessoas, além dos expositores, que eram apenas seis. Isso, eu acho, é um sinal importante. Com exceção de Marshall Sahlins, um dos maiores antropólogos americanos, e Terence Turner, além de um punhado de brasilianistas que trabalham especificamente com Brasil indígena, realmente não há maior interesse no pensamento de Lévi-Strauss nos Estados Unidos ou há muito pouco interesse sobre o pensamento dele. A maioria dos simpósios era sobre globalização, estudos culturais, temas feministas. Por exemplo, havia um simpósio intitulado “Excitação e gozo”. Eu quero citar uma fala de Lévi-Strauss em seu aniversário de noventa anos, festejado por colegas no Laboratoire d’Anthropologie Sociale, fundado por ele. Um jornalista que estava lá tentou lembrar as palavras precisas dele para publicar, pois Lévi-Strauss não tinha escrito nada, mas falou alguns minutos, sem notas e sem preparação. O tema foi a imagem de um holograma quebrado. Nas suas próprias palavras, tais como lembra o jornalista, ele diz:

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nesta idade avançada que eu não pensei atingir e que constitui uma das mais curiosas surpresas de minha vida, me sinto como um holograma quebrado. Este não possui mais sua unidade inteira, porém, como qualquer holograma, cada parte restante, conserva uma imagem e representação completa do todo. Assim, existe hoje para mim um ego real, que é apenas a metade, ou um quarto de homem, e um ego virtual, que ainda conserva viva a idéia do todo [...]. Minha vida hoje acontece neste diálogo muito estranho (LE MONDE, 1999).

Essa evocação comovente do próprio envelhecimento, como diálogo entre uma virtualidade integral do ego e sua fraqueza crescente, remete, em termos estruturais, ao roteiro de clivagem no indivíduo. Eu acho que depois disso não houve nenhuma modificação radical: ainda pensa nesses termos. Agora eu vou expor três pontos principais. O primeiro diz respeito às etapas de uma carreira singular; o segundo refere-se à questão da estética sobre a ética; e o terceiro tratará do estruturalismo como teoria e não como filosofia, tentando esclarecer uns mal-entendidos a respeito da “filosofia estruturalista”. Depois, tentarei concluir com algumas lições que eu penso serem relevantes para todos. A formação de Lévi-Strauss é totalmente clássica: filosofia, direito. Ele fez um “passeio” pelos cursos mais conhecidos da École Normale Supérieure e preparou o concurso de professor de filosofia, juntamente com famosos alunos dessa escola, como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que, como vocês sabem, fez a primeira resenha de As estruturas elementares do parentesco.3 Uma coisa interessante, que é pouco conhecida, é que o pai dele era um pintor retratista, mas vendia poucos retratos, e, várias vezes, eles faziam pequenos aparelhos para sobreviver. A família toda trabalhava junta e fez vários aparelhos, resultado de bricolagem. Era para vender para turistas, fazia montagens de miniaturas de casas. Isso deixou rastros profundos na vida de Lévi-Strauss, ele sempre gostou da bricolagem. Na sala dele no Collège de France, havia uma maquete das transformações míticas, do terceiro volume das Mitológicas, porque ele construiu um modelo para explicar para si mesmo as transformações.

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O interesse pela etnologia, ao contrário do que foi escrito várias vezes, não veio do seu contato com Marcel Mauss, nem sei se ele conheceu Marcel Mauss, pois não foi aluno dele. Veio, sim, da leitura do Robert Lowie, particularmente do livro Primitive Society, traduzido para o francês em 1935 sob o titulo Traité de Sociologie Primitive, tendo sido praticamente um dos poucos livros que introduziram LéviStrauss na antropologia, até ele ser chamado, no fim de 1934, para a famosa missão francesa em São Paulo, logo após a criação da Universidade de São Paulo (USP). No Brasil, onde Lévi-Strauss passou de 1935 até 1938, esse período foi como a época do “tudo era possível” ou o que se chamou de “a grandeza dos começos”, como ele mesmo declarou em entrevista para Manuela Carneiro da Cunha, em 1985, quando voltou brevemente ao Brasil na comitiva do presidente François Mitterrand. Ele estava revivendo o entusiasmo dos primeiros descobridores, e, mesmo que fosse uma ilusão, a ilusão é necessária para a vida, dizia ele. Lévi-Strauss se imaginava como se fosse André Thevet4 ou como se fosse um Jean de Léry,5 como um dos primeiros escritores que fizeram crônicas dos primeiros tempos do Brasil colonial. Eu vou ler uma citação de Fernanda Peixoto (1998), que escreveu um artigo sobre a permanência de Lévi-Strauss no Brasil no qual diz: A partir dessa experiência, torna-se um americanista: inicia-se na prática etnográfica, expõe o material coletado em museus e galerias franceses, publica seus primeiros textos na área, integra a relação dos americanistas da Société, enfim, retorna à França reconhecido no meio etnológico como um profissional do ramo.

Esse reconhecimento profissional não se refere a um teórico, mas sim a um profissional do ramo, no tempo em que a profissão de antropólogo quase não existia na França, em que havia um filósofo, Lévi-Bruhl, e outro, Marcel Mauss, que nunca fizeram trabalho de campo. E havia também Paul Rivet, médico da Marinha. Era o último antropólogo físico, linguista e também etnógrafo na América do Sul, principalmente da Colômbia. Eles foram os principais “cabeças” do novo Instituto de Etnologia de Paris, fundado em 1925. ILHA volume 12 - número 2

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Depois, com a Segunda Guerra Mundial – e esses episódios são bem conhecidos – Lévi-Strauss foi um pouco inconsciente do fato de que ele, como judeu, não podia mais ensinar no Liceu. E se apresentou ao reitor em Montpellier para pedir um novo posto de professor de filosofia. Essa possibilidade não existia mais. Então, ele refugiou-se na casa de campo dos pais, uma casinha lá nas Cévennes, nas montanhas perto de Montpellier. Ele foi escolhido por uma fundação americana que retirava da Europa os intelectuais ameaçados pelo nazismo. Chegou em 1941, em Nova Iorque, junto com outros exilados. No navio fez amizade com André Breton e, depois, frequentou o grupo dos surrealistas que estavam em Nova Iorque, o que foi decisivo para ele. Graças a André Breton conheceu a arte da Costa Noroeste, acompanhando-o nos antiquários da 5a e da 3ª Avenidas. Breton o ajudou a comprar máscaras de transformações, que custaram entre cinco e dez dólares. Essas máscaras, hoje, no seu valor comercial, valem entre cinquenta e cem mil dólares. Ele ficou absolutamente fascinado, como já era fascinado pelas damas Kadiwéu, pela qualidade e pela beleza das máscaras. Lévi-Strauss começou uma coleção que vendeu somente nos anos cinquenta, quando casou novamente. Essa coleção está hoje reconstituída inteiramente no Musée du Quai Branly, tendo sido exposta semana passada. A segunda grande descoberta de Lévi-Strauss, em 1942, em Nova Iorque, foi Roman Jakobson, um dos linguistas mais conhecidos do século XX e que o introduziu à linguística estrutural. O mesmo Jakobson tinha inventado, junto com Nikolay Trubetzkoy, o conceito de fonema. Segundo o próprio Lévi-Strauss, foi uma iluminação, ou melhor, foi uma confirmação de uma intuição que ele já tinha tido em relação à estrutura da sociedade Bororo e também em relação à leitura de um tratado muito curioso de Granet, um sinólogo francês que escreveu nos anos 1930 um livro sobre as categorias do casamento chinês. Enfim, eu insisto neste último ponto, o do encontro mais simbólico para Lévi-Strauss, que foi quando Franz Boas, que tinha uns oitenta e poucos anos na época e era professor honorário da Columbia University, resolveu fazer um jantar solene para festejar os jovens etnólogos exilados, Claude Lévi-Strauss e Paul Rivet, este ILHA volume 12 - número 2

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antropólogo francês que também era médico. Nesse jantar, em Columbia, estava Lévi-Strauss do lado esquerdo de Franz Boas e do lado direito de Paul Rivet. Quando Franz Boas se levantou para fazer o brinde de boas-vindas, foi fulminado por um ataque do coração. Então, de certa maneira, o último suspiro de Franz Boas passou para Lévi-Strauss. Quem constatou a morte de Boas foi Paul Rivet. Agora imaginem: numa resenha recente, cito de memória, Lévi-Strauss escreveu que o maior antropólogo do século foi Franz Boas, opinião com a qual concordo plenamente. O último suspiro de Boas, sua alma, passou para Lévi-Strauss. Essa Escola Americana foi decisiva na formação antropológica dele, e uma das coisas que eu tento mostrar é que realmente ele é muito mais um culturalista americano do que qualquer outra coisa e que, por exemplo, o encontro dele com os alunos da Escola de Franz Boas, tais como Margaret Mead, Alfred Kroeber, Ruth Benedict, foi uma influência decisiva sobre o modo de seu pensamento geral, senão do estruturalismo. Quanto ao estruturalismo, foi mais influenciado pela linguística de Jakobson e de Saussure. Agora, a outra descoberta que Lévi-Strauss fez em Nova Iorque foi o acervo fantástico da Biblioteca Municipal de Nova Iorque (New York City Municipal Library), na qual ele passou 18 meses trabalhando praticamente todos os dias. Foi lá que elaborou seu livro magistral, As estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949. Esse livro teve um destino mais fecundo no Brasil do que na França ou nos Estados Unidos. Não existem discípulos de Lévi-Strauss na França, acho que a teoria do casamento como troca, generalizada ou restrita, é uma teoria que foi desviada por Françoise Héritier, porque a teoria do casamento como troca é o fundamento do casamento como exogamia e ela mesma funda a proibição do incesto. A questão da proibição do incesto foi retomada por Françoise Héritier, que sucedeu Lévi-Strauss numa cátedra do Collège de France, com uma teoria da acumulação de identidade. Eu não quero desqualificar a teoria do incesto de Françoise Héritier, mas é uma volta atrás em termos de substancialização e de substantivismo. Eu acho que as variações de um antropólogo como Eduardo Viveiros de Castro, que propôs um ILHA volume 12 - número 2

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novo tipo de casamento (dentro da troca restrita) que chama de multibilateral, no qual não vou entrar em detalhes porque é um pouco técnico, são um desenvolvimento mais interessante da teoria do parentesco de Lévi-Strauss do que da teoria da proibição do incesto, adiantada por Françoise Héritier. Voltando ao assunto desta palestra, a carreira de Lévi-Strauss, a partir do reconhecimento de As estruturas elementares do parentesco, foi um pouco demorada, acho que antes vou passar rapidamente pelos Tristes Trópicos.6 De certa maneira, esse livro foi escrito num período de desânimo de Lévi-Strauss, escrito muito rapidamente, porque ele não tinha conseguido um emprego na França na medida do talento e do reconhecimento que teve intelectualmente com as As estruturas elementares do parentesco. Em outras palavras, ele escreveu Tristes Trópicos para tentar outra carreira que não fosse acadêmica, pensando que sua publicação iria lhe dar uma abertura como grand reporter internacional. A Unesco financiou a viagem dele à Índia e ao Paquistão, ele escreveu observações e comentários sobre o Islã que hoje seriam considerados politicamente incorretos. Ali ele faz uma comparação dos alunos de uma madrasa (abrigando hoje os taliban) com os soldados de um quartel prussiano. O imenso sucesso do livro foi uma grande surpresa para LéviStrauss, porque ele escreveu isso para se livrar de algumas frustrações e foi o melhor livro de viagem filosófica publicado na França desde Victor Segalen,7 no início do século, que analisa o exotismo. Felizmente, após duas tentativas sem sucesso, ele entrou no Collège de France, sendo reconhecido academicamente em 1959. A maior homenagem que ele prestou, no fim da aula inaugural, no Collège de France foi aos índios Nambiquara. Agora, para acabar, rapidamente, de falar sobre o fim da carreira dele, a última etapa: seus estudos sobre a mitologia, a quantidade de material que utilizou sobre os índios da América do Sul, indo do mito Bororo até os mitos da Costa Noroeste canadense (e americana), os mitos dos índios norteamericanos das planícies e os mitos norte-americanos de praticamente toda a parte norte do continente, foram um trabalho formidável que levou praticamente uns dez anos da vida dele, uma vida de ILHA volume 12 - número 2

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trabalho cotidiano, sem domingos. Para lembrar os mitos, para analisálos, eu vou simplesmente lembrar que é importante o que vai se seguir, que não é simplesmente fazendo segmentação linguística dos mitos: é fazendo uma leitura dos mitos segundo todos os códigos da etnografia. Quer dizer, não que ele apenas tenha analisado quinhentos, seiscentos e poucos mitos, mas que ele analisou toda a sociedade, conduzindo esses mitos conforme a totalidade da etnografia disponível sobre cada uma dessas mitologias. É realmente um trabalho formidável, como foi o trabalho de As estruturas elementares do parentesco. Como vocês sabem, havia em As estruturas elementares do parentesco um propósito, digamos, durkheimiano. O propósito era mostrar, dentro das formas regulamentadas de casamentos, que havia duas formas principais, uma chamada troca restrita e outra troca generalizada. O propósito era mostrar as formas de solidariedade social. Numa entrevista inédita de Lévi-Strauss que eu fiz junto com um filósofo já falecido, nos anos 1970, perguntei se ainda tinha esse mesmo propósito durkheimiano e ele respondeu: não, foi um erro meu, estava enganado, equivocado. Eu penso que essas estruturas do parentesco são mais uma cosa mentale, como dizem os italianos, que uma coisa funcional, ou funcional-estrutural, uma forma de solidariedade social como Durkheim via as estruturas sociais.

É interessante porque quando ele passou para a análise dos mitos, sem nunca largar a consideração do parentesco, ficou interessado, mas não publicou mais nenhum livro sobre o assunto. Ele escolheu os mitos porque as determinações sociais sobre a produção mítica eram muito menores do que os regimes sobre a produção de esposas ou de esposos. Por quê? Porque a biologia, a ecologia e a economia pesam sobre a escolha de cônjuges, de maridos, de esposas. Enquanto a mitologia é, simplesmente, uma produção mais gratuita da mente humana, no caso levistraussiano, é mais uma produção do pensamento americano. Assim eu poderia chegar mais perto do objetivo dele para determinar as estruturas do pensamento americano, através de uma produção mais gratuita, digamos, a regulação do casamento. Cito mais ILHA volume 12 - número 2

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uma passagem de Fernanda Peixoto do artigo que está na revista Mana: “Poderíamos dizer que a obra espiralar de Lévi-Strauss contém um movimento permanente que se traduz na incorporação de novos objetos e questões, e em um retorno sistemático a antigos resultados, ao começo – os Bororo, os Nambikwara” (1998, p. 96). O mito número um das Mitológicas é o mito Bororo, o do desaninhador de pássaros. Vou passar agora para a segunda parte da palestra: da estética à ética e à moda. Já falei do fascínio que Lévi-Strauss sentiu, viu e descreveu nos Tristes trópicos pelas damas Kadiwéu. Insisto na palavra “damas”, pois, quando fiz esse filme8 com Jorge Bodanzky, passamos nos lugares onde Lévi-Strauss tinha filmado com sua esposa; a recepção que os Kadiwéu nos deram foi muito desigual, entre sujeitos comuns, descendentes de escravos e aristocratas, damas aristocratas dos Kadiwéu. Eu quero simplesmente lembrar que nem todas as sociedades indígenas no Brasil são igualitárias, existem sociedades indígenas aristocráticas no Brasil. Os Kadiwéu, talvez, sejam o melhor exemplo de uma sociedade com aristocracia, com homens livres e descendentes de escravos. Isso nunca impediu aquelas damas de se unirem com descendentes de escravos, às vezes com escravos que, antigamente, vinham de outros povos como os Chamacoco, entre outros. Essas damas levavam essas magníficas pinturas faciais, pelas quais Lévi-Strauss ficou absolutamente fascinado. O encontro dele significou outro fascínio com a arte da Costa Noroeste; e não há dúvida de que, depois de uma infância num atelier de um pintor, seja o do próprio pai ou o dos tios dele, também pintores, o gosto e o sentido estético de Lévi-Strauss tenham se acirrados pela exposição das pinturas das damas Kadiwéu. Ele pediu a elas que fizessem desenhos sobre o papel, pois elas conseguiam muito rapidamente, e a coleção de desenhos mais recentes, que está em São Paulo, mostra a continuidade dessa arte. A coleção de desenhos Kadiwéu que Lévi-Strauss tem é uma maravilha. Escreveu em Tristes Trópicos sobre a representação entre os Kadiwéu, mas também escreveu vários artigos sobre antropologia da arte que retomam uma tradição iniciada por Franz Boas em seu famoso livro Primitive Art, publicado em 1927. ILHA volume 12 - número 2

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Agora, o que tudo isso tem a ver com ética? Se vocês lembram bem, em Tristes Trópicos tem um parágrafo muito estranho em que Lévi-Strauss define o que os americanos, os culturalistas americanos, chamavam de ethos cultural. Eu cito de memória, vocês podem achar facilmente a citação: “cada povo tem seu estilo cultural particular”. Essa é uma parte da descrição dos Kadiwéu, nos Triste Trópicos. Essa definição podia ser tomada de Ruth Benedict ou de qualquer antropólogo culturalista. Lévi-Strauss nunca desistiu da crítica de arte. Em seu penúltimo livro, Regarder, écouter, lire (1993), ele fez uma análise de uma pintura de Poussin,9 em que utiliza exatamente o mesmo método para a arte da Costa Noroeste e da Nova Zelândia, ou quando analisou os motivos dualistas Kadiwéu. Enfim, o “estilo cultural” é uma marca culturalista permanente na obra de LéviStrauss. Em 1950, Lévi-Strauss trabalhou para a Unesco, em Paris, e escreveu esse famoso texto chamado Raça e história. Não vou entrar em análise desse ensaio, talvez, a obra mais citada dele, hoje um livro de base no ensino secundário francês, quase uma leitura obrigatória. Se vocês lembram bem, nesse livro há uma tentativa de explicar o fato de que algumas culturas se expandiram, para assim dizer, e se desenvolveram, enquanto outras ficaram, aparentemente, no mesmo nível tecnológico, econômico etc. A explicação que Lévi-Strauss dá a esse fenômeno é o que chama de “coalisão”, dizendo que várias influências, várias culturas podem se aliar, no sentido matemático de coalisão, e enriquecer, por assim dizer, uma cultura até desenvolver uma civilização brilhante. Essa ideia não vem de Lévi-Strauss, ela está num livro raríssimo e muito esquecido de Alfred Kroeber, não republicado, que se acha nas bibliotecas e chama-se Configurations of Culture Growth. O livro do Kroeber é uma reflexão sobre o tema que é uma obsessão do pensamento ocidental desde Gibbon e Montesquieu: a expansão e a decadência das civilizações. Lévi-Strauss buscou refletir sobre a civilização em termos antropológicos, em termos de mistura de culturas, em termos de aquisição, de difusão, tentando formalizar períodos de decadência e apogeu. Como pessoa, ele é um homem conservador e ILHA volume 12 - número 2

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gostou muito de ser eleito na Académie française, gostava de honrarias, mas é totalmente radical em relação ao relativismo cultural. No filme À Propos de Tristes Tropiques, ele falou que se pode apreciar ou não os valores de outra cultura, mas nada, nada mesmo, nos permite julgar as outras culturas. Vou contar uma anedota reveladora do sentimento que LéviStrauss ainda tem com a sobrevivência dos ameríndios, os índios da América do Sul. Eu era militante de uma associação, da qual sou presidente hoje, chamada Survival International, e nós soubemos que uma expedição motonáutica iria percorrer os rios fluviais da Guiana Francesa, subindo um rio, descendendo outro e passando por várias aldeias indígenas. Apesar de serem afetados pelo “raid”, os índios dali não tinham nem sido avisados. Não tínhamos muitos meios de ação, nossa associação era pequena. Eu liguei para Lévi-Strauss, pensei que ele fosse recusar um pedido de intervenção: o senhor aceitaria fazer uma visita, pedimos um encontro com o ministro dos Territórios de Ultramar. Para minha surpresa, ele disse: “É claro que vou!”. Então, nós nos encontramos na sala do chefe de gabinete do ministro. Primeiro, o chefe de gabinete ficou, assim, pasmado ao ver Lévi-Strauss visitá-lo. LéviStrauss falou por cinco minutos com cortesia, extrema cortesia, frieza e muita energia e disse: “Vocês vão tolerar esse circo, enquanto o Brasil do outro lado do rio está protegendo, de maneira eficaz, os índios que são dos mesmos povos, da mesma língua”. Acabou com eles. Uma semana depois, o presidente Jacques Chirac, então primeiro-ministro, visitou a Guiana e interditou o “raid”. Isso quer dizer que não há diferença, para Lévi-Strauss, entre a estética, o sentido estético dele e o sentido ético. Entre as últimas palavras das várias entrevistas que fizemos, ele sempre volta à questão da filosofia. LéviStrauss é um pouco como Karl Marx, no sentido anedótico. Marx falou que, “Se marxista for isso, eu não sou marxista”. É um pouco a posição de Lévi-Strauss em relação à filosofia estruturalista: “se estruturalista for isso, não sou estruturalista”. Ele tem uma filosofia que ele mesmo chama de “rústica”; uma convicção que é a seguinte: ele receia uma catástrofe demográfica; hoje existe acima de seis bilhões de pessoas na Terra e, quando ele tinha 15 anos, havia apenas um ILHA volume 12 - número 2

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bilhão e meio. Lévi-Strauss acreditava que isso é o pior perigo que existe para a humanidade; já falava sobre isso nos Tristes Trópicos há cinquenta anos: isso irá atrapalhar a vida de todo mundo e romper o que poderia se chamar um “equilíbrio”. Ele não usa essa expressão, mas disse repetidamente que poluir o ar, sujar as águas, destruir a vida animal, acabará com a grande cadeia da vida, não da vida humana, mas da vida inteira. De certa maneira Lévi-Strauss poderia ser um “protoecologista”, porque ele começou bem antes de o tema se tornar popular, apesar do fato de que a participação dele em ações, digamos militantes, como essa visita ao gabinete do ministro dos territórios de ultramar, foi relativamente esparsa. Apesar de ser raro, ele foi constantemente atento e ativo à sobrevivência das populações indígenas e, também, isso talvez vocês aqui saibam, mas é sempre interessante citar, sempre recebeu os emissários dos índios quando chegavam à Europa. Recentemente, há uns três ou quatro anos, recebeu um grupo de Bororo, entre os quais havia um antropólogo, melhor, um futuro antropólogo, doutorando em antropologia, e dois seminaristas, que, para agradar Lévi-Strauss, entoaram um canto tradicional dos Bororo. Isso quer dizer que a ligação de Lévi-Strauss com esses povos, apesar de ser discreta, foi constante. É a isso que eu chamo a ética de LéviStrauss. Quando fiz o filme À propos de Tristes Tropiques e retornei de campo, eu o entrevistei, mostrando-lhe nossas imagens dos Kadiwéu e dos Bororo. Esse filme mescla as próprias imagens feitas por LéviStrauss naquele momento e as nossas, mais atuais, e perguntei para ele: “o que mais lhe emocionou nessas imagens?”. Pensou um pouco e disse: “O espetáculo da natureza”, ao que respondi: “e a gente, professor?”. E Lévi-Strauss retrucou: Olha, eu tenho notícia regularmente dos índios, porque todos os meus colegas me escreveram regularmente sobre os Nambiquara, sobre os Bororo, sobre os Kadiwéu. Eu nunca perdi o contato com esses povos. Agora, eu sei que muitos deles estão numa situação péssima. Mas a natureza da América, a natureza do Brasil parece que não mudou; isso é o que eu mais gosto nas suas imagens.

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Vou concluir essa parte dizendo que, para Lévi-Strauss, poderíamos utilizar a frase famosa de Wittgenstein dizendo que: “Esthetic und ethik sind einz”. Em português: “A estética e a ética são uma só”. E, realmente, a postura estética de Lévi-Strauss é uma postura ética, ao mesmo tempo. Para finalizar, a última parte da minha fala: o estruturalismo. A quantidade de mal-entendidos que aconteceram na França pode ser calculada em dezenas de quilos de livros. Não entendo bem isso. Não é porque eu sou antropólogo, aliás, eu tenho uma formação também em filosofia, elementar, mas não entendo bem por que se transformou num ambiente muito “parisiano”, com alguns anexos em Nova Iorque, e transformou Lévi-Strauss, com uma alma de cientista social, em um filósofo. Acho que foi uma grande bolha de sabão e não merece muita reflexão. O melhor exemplo dessa bolha de sabão que estourou, mas que era mesmo isso, foi depois de maio de 1968, que, por sinal, Lévi-Strauss odeia: “Tem essa bagunça, não gosto”, dizia. Um pouco conservador, talvez. Existe um jornal de esquerda, deve ser o Libération, que colocou um título enorme: “O estruturalismo está morto!”. Mas é morto porque nunca foi uma filosofia. Houve uma discussão no último capítulo de La Pensée Sauvage, uma discussão com Sartre, recusando o ponto de vista, digamos, da dialética do Sartre, isto é, o ponto de vista do sujeito, da fenomenologia “sartriana”. Só o Sartre pode aceder ao movimento da história, mas o movimento da história visto como especificidade ocidental. Houve uma discussão cortês com a hermenêutica de Paul Ricoeur, na qual Lévis-Strauss disse, simplesmente, que não tinha nada contra a hermenêutica como interpretação. A história inteira da tradição judaico-cristã é uma história de hermenêutica e nunca acaba, quer dizer, comentário após comentário que, simplesmente, Lévi-Strauss tinha um método mais simples e que não quis tocar nesse cumulativo edifício das teologias ocidentais. O fato de que ele não quer tocar não significa que ele tem outra filosofia ou que seja anticristão, antirreligioso. Simplesmente, ele não tem sensibilidade para religião, e foi ele quem falou isso. Falou da mesma maneira que Max Weber, quando escreveu que não tinha sensibilidade para música. Lévi-Strauss ILHA volume 12 - número 2

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tem pouca sensibilidade para religião, mas estudou brilhantemente alguns rituais. A análise que ele fez dos ritos funerários Bororo é um modelo de análise estrutural. Carregando o mariddo (nome técnico da roda carregada, das duas rodas enormes) no pátio da aldeia, os Bororo representam assim os vivos e os mortos; é uma festa funerária na qual a representação encena a luta dos vivos contra os mortos. Eu vou evocar rapidamente o método estruturalista, pois isso faz parte do bê-á-bá da antropologia, apesar das discussões com os maiores filósofos desse tempo: Sartre, de um lado, Ricoeur, de outro. Não existe uma filosofia estruturalista, existem suposições, eu tentei esboçar a posição ecológica. Existe o pessimismo bastante radical de Lévi-Strauss em relação ao futuro da humanidade, em relação à diminuição da diversidade cultural, mas isso não constitui uma filosofia. Constituir o estruturalismo em filosofia é bem parisiense, bem salão parisiense. O método é de fato muito mais um bricolage intuitivo que um procedimento que pode ser regulado em ponto um, ponto dois, ponto três, e aplicado a qualquer situação. Acho que é por isso que Lévi-Strauss não tem realmente discípulos. Ele inspirou muita gente, muito mais do que se ele tivesse tido discípulos, no sentido técnico da palavra. O inventário das unidades pertinentes ou relevantes, num conjunto que seja ritual, mitológico, artístico, técnico ou econômico, pode ser, evidentemente, interminável. Depende muito da intuição do pesquisador. É verdade que o dualismo institucional não é outra coisa senão o reflexo do dualismo mais fundamental, que para ele é uma estrutura mental. Vou ler uma citação sobre dualismo que está no grande final do último volume das pequenas Mythologiques, chamado “A história de Lince”. Houve um grande debate na antropologia do lado dos ingleses, principalmente da parte de Maybury-Lewis, sobre a natureza das organizações dualistas. O teor funcionalista dos ingleses nesse tempo dos anos 1950 é, evidentemente, colocar as estruturas do dualismo do lado das instituições, enquanto Lévi-Strauss respondeu que essa visão do dualismo é uma visão parada, estática. No final de “A história de Lince”, Lévi-Strauss diz: “Lá como alhures, o dualismo ILHA volume 12 - número 2

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se traduz por um jogo dinâmico entre reciprocidade e hierarquia”.10 Essa é uma nota adicional da nova edição desse livro. É realmente um pensamento espiralar, como bem diz Fernanda Peixoto, porque vocês lembram que essa noção do desequilíbrio dinâmico do dualismo já foi formulada no artigo de 1944, no American Anthropologist, pouco citado, cujo título é “Reciprocity and Hierarchy”; trata-se de uma resposta crítica ao artigo de um autor que escreveu, em 1943, uma matéria sobre o Bororo na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Essa noção de desequilíbrio dinâmico é fundamental porque rebate, contradiz, a crítica mais frequente, formulada na América do Norte, de que o estruturalismo e as estruturas dualistas em particular são uma coisa estática, anti-histórica, que não incluem a diacronia. Acho isso, simplesmente, errado, porque a visão estrutural do dualismo como exemplo do método estrutural é uma visão profundamente dinâmica, todo o movimento do mito de criação dos Guarani, que Lévi-Strauss analisa novamente em A história de Lince, é uma história do desequilíbrio que cria o movimento histórico. A história do mito de criação Guarani é uma história, é uma gênese. Entre as pessoas que acreditavam mais veementemente nessa noção, esse tipo de análise estrutural, existem vários antropólogos brasileiros e/ou europeus, não vou citar todos, um deles recentemente foi Peter Gow, catedrático em Saint Andrews, que aplicou o método estrutural que acredito ser a invenção mais importante que Lévi-Strauss fez para a história dos Piro.11 Cada um pode também fazer a bricolagem com sua intuição, tomando em conta os vários níveis da realidade, quer dizer, simplesmente, fazendo uma etnografia o mais detalhada que puder e utilizando todos os códigos que são formalizados pela própria cultura estudada. Multiplicidade dos códigos, multiplicidade dos níveis, hierarquização dos níveis. Bom, é verdade que o conceito de “hierarquia” foi melhorado, digamos, existe como potencial no artigo de 1944 e foi formalizado por um dos melhores levistraussianos que havia na França, Louis Dumont, especialista da Índia, mas que, de qualquer forma, sabe muito do método estrutural de Lévi-Strauss. A teoria de Dumont é uma aplicação da teoria, do método estrutural. ILHA volume 12 - número 2

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Para concluir, vou tentar aproveitar esse percurso exemplar, secular, de Lévi-Strauss. A primeira lição de cunho culturalista é a de que a diversidade das culturas humanas é uma riqueza tão intelectual como humana, e de que o pessimismo relativista de Lévi-Strauss diante do fantástico crescimento demográfico global não impede que continuemos esse inventário paciente da diversidade humana e, dentro deste último, o inventário de tudo que for pertinente ou relevante, mesmo se isso significar matizar o pessimismo levistraussiano diante da diminuição do número das culturas. Por exemplo, podemos afirmar que as resistências ao movimento global de uniformização criam, ou melhor, recriam diferenças culturais. A segunda lição é mais voltada para o método estrutural. Eu tento mostrar que o método estrutural não pode ser entendido de maneira limitativa, como o pensamento binário ou como o binarismo universal, mas, antes, com a consideração de todo dualismo como estruturas mentais e, na realidade social, na realidade religiosa, na realidade artística, como desequilíbrios dinâmicos. O tratamento, essa é outra coisa interessante da oposição estrutural, da semelhança entre dois objetos, quaisquer que sejam, como um caso particular, um caso “minimizado” ou minimalista de diferença, reintroduz a indispensável primazia da relação sobre os elementos. Claro que semelhança não é diferença, que tende ao zero, tende apenas, mas não é semelhança, não é identidade. Dizendo isso, estou fazendo uma crítica à teoria do incesto de Françoise Héritier, por exemplo, ou ao que ela toma por identidade, apenas a semelhança, ou a semelhança é o caso “minimal” da diferença, dois jeitos de semelhança podem ser analisados como opostos. Em todos os nossos estudos, mas talvez principalmente na antropologia, na linguística, na crítica literária, na teoria literária, o método estrutural nos leva a um deslocamento de ponto de vista em relação às perspectivas clássicas fundadas do ponto de vista do ator ou do indivíduo em geral, e isso não é filosofia, é um princípio metodológico, apenas. Enfim, se vocês me permitem uma reflexão mais pessoal e um tanto polêmica, eu diria algumas palavras a respeito do pós-modernismo. Para a maioria dos nossos colegas norteamericanos e para uma parte dos seguidores deles na Europa – no ILHA volume 12 - número 2

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Brasil não sei muito –, a etnografia tradicional, a análise estrutural e os estudos de parentesco e mitologia cederam lugar ao estudo “multissítio”, sítio no sentido de entrosamento entre as culturas e sociedades hegemônicas ou dominantes e as outras culturas dominadas ou subalternas. Essa perspectiva também deve ser reflexiva e mesmo autorreflexiva, quer dizer, os próprios dominados devem se apropriar dos hábitos, se apropriar dos elementos teóricos dos dominantes, a meu ver, dois limites evidentes. Essa perspectiva supõe que estudos tradicionais, a antropologia desde o século XIX, bem como a antropologia moderna, inventada entre 1850 e 1870, tendo Tylor como pai da antropologia – Tylor e Boas –, estão condenados, por princípio, porque têm origem na cultura “colonialista” ou imperialista ocidental, racista. Os primeiros estudiosos, como Tylor, Boas, poderíamos citar outros, mas esses são suficientes, apesar do ambiente evolucionista dominante no começo desse tempo, acabaram por ser a própria negação dessa tese. O primeiro teórico alemão chamado Theodor Waitz, que inspirou muito Tylor, mostrou que a questão essencial era a possibilidade de uma antropologia social comparativa, porque o postulado da escravidão, a base da escravidão seria abolida, aniquilada, caso houvesse uma comparabilidade entre todas as culturas. Quer dizer, o postulado de início da antropologia faz-se por conta de Tylor, era antiescravista. Enfim, o segundo argumento contra essa doutrina global é o seguinte: os estudos etnográficos dos antropólogos do século XIX e do começo do século XX são reutilizados pela antropologia nativa. Por exemplo, um caso que acho significativo. Visitei a cidade de Prince Rupert no Canadá (Colúmbia Britânica), onde tem um campus para os índios da Costa Noroeste, quis encontrar alguns desses intelectuais indígenas e fui muito mal recebido: — “Você é antropólogo?” perguntou um índio. — “Sou”, respondi. — “Não existem Tlingit, Tsimshian ou Haida, esses nomes são uma invenção da antropologia colonialista”, disse-me ele. ILHA volume 12 - número 2

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Falou-me o nome do povo e eu conheci. Bom, conheço mal, mas muito mal mesmo e depois falei a ele: — “Não vim aqui pra fazer estudo antropológico, vim para fazer uma visita, só como um turista”. — “Mas você é antropólogo, o que faz?” perguntou. — “Tentei estudar os índios do Brasil”, respondi. — “Ah! Tentou estudar os índios do Brasil”... E de repente falou: “Você já viu um xamã?”. — “Claro que vi um xamã no Alto Xingu, um deles foi meu instrutor de xamanismo”, respondi. Foi quando ele olhou para mim e falou: — “Eu te convido pra almoçar, eu pago o almoço”. — “Mas por que você paga o almoço?”, indaguei e ao que ele respondeu: — “Porque eu gostaria de saber como é o xamanismo, porque os missionários tiraram os xamãs da gente quase um século atrás e eu gostaria de saber como funciona o xamanismo”, respondeu. Assim se criou uma grande amizade entre nós, porque eu pude contar a ele como funciona a pajelança no Alto Xingu.

Segundo limite do pós-modernismo. A maioria dos estudos está marcada, para não dizer estigmatizada, pelo fato de se iniciar sempre de cima para baixo, do determinante para o determinado, descendo a escala do poder. Esse preconceito inconsciente caracteriza e informa uma antropologia política extremamente simples, uma antropologia política que nenhum militante adotaria, como se o discurso, senão a retórica dos líderes étnicos e etnicistas, fosse uma simples inversão dos discursos dos dominantes e, infelizmente, às vezes o é. Em outras palavras, discorrer sobre a etnicidade com os líderes de um grupo jamais substituirá o estudo paciente, tenaz e meticuloso do conjunto de relações entre esses líderes que emitem os discursos sobre o grupo e aquilo que eles efetivamente pretendem representar. São as relações entre essas duas categorias – líderes e povo – que são o jeito mais interessante de estudo na antropologia, e não a replicação mecânica dos discursos etnicistas. Enfim, para poder fazer um estudo completo, às vezes indispensável, não basta sair do polo dominante, mas é necessário olhar,

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em todos os níveis, por todos os códigos e analisar as relações complexas que ligam, em uma longa cadeia, os referidos polos, o de cima e de baixo. Mais uma vez a etnografia detalhada é uma exigência, um pré-requisito imprescindível da antropologia. Essa seria mais uma lição de Lévi-Strauss. Notas 1 Professor emérito da École Pratique de Hautes Étude, de Paris. 2 Conferência proferida em 4 de dezembro de 2008, por ocasião do seminário comemorativo ao centenário de Claude Lévi-Strauss, realizado pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. 3 As estruturas elementares do parentesco constitui a maior parte da thèse d’État de Claude Lévi-Strauss, tendo sido publicada pela primeira vez em 1949 pela editora PUF, de Paris. 4 Ver Singularidades da França Antártica, publicada em 1978 pela Itatiaia/Edusp, de Belo Horizonte/São Paulo. 5 Ver Viagem à Terra do Brasil, publicada em 1980 pela Itatiaia/Edusp, de Belo Horizonte/São Paulo. 6 Publicada em 1955 pela editora Plon, de Paris. 7 Victor Segalen é o autor do famoso Lês immémoriaux, editora Plon, Paris, 1956. 8 Referência ao documentário À Propos de Tristes Tropiques, realizado em 1990 por Jorge Bodanzky, Patrick Menget e Jean-Pierre Beaurenaut, exibido no seminário de comemoração ao centenário de Claude Lévi-Strauss, realizado pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. 9 Pintor francês do século XVII, representante do classicismo. 10 Histoire de Lynx, publicada em 1991 pela Plon, de Paris (em português a mesma obra saiu pela Companhia das Letras, em 1993). 11 Of Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazonia, publicada em 1991 por Clarendon Press, de Oxford.

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Patrick Menget

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato Andréa Osório Universidade Federal Fluminense E-mail: [email protected]

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Resumo

Abstract

Baseado nas concepções de Edmundo Leach (1983) sobre o status ambíguo de certas categorias de animais, este ensaio soma dados historiográficos e análises antropológicas para apontar alguns aspectos simbólicos relacionados aos gatos domésticos. Animal utilizado em rituais, associado ao sobrenatural, o gato parece particularmente ambíguo. Procura-se apontar onde residem tais ambiguidades e contribuir, em algum grau, para os debates acerca das relações humano–animal.

Based on the ideas of Edmund Leach (1983) on the ambiguous status of certain categories of animals, this paper adds historiographical data and anthropological analysis to point out some symbolic aspects of the domestic cats. Animal used in rituals associated with the supernatural, the cat seems particularly ambiguous. The paper aims to show such ambiguities and to contribute in some degree to the debates about human–animal relations. Keywords: Cat. Symbolism. Human–animal Relations.

Palavras-chave: Gato. Simbolismo. Relação humano–animal.

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Introdução

O

presente ensaio pretende-se uma reflexão sobre alguns aspectos simbólicos relacionados ao gato na literatura antropológica e em algumas obras historiográficas. Como argumento geral, aponta-se como o gato é um animal ambíguo e rico simbolicamente. Poucas obras antropológicas dedicam-se a falar mais do que uma ou duas linhas sobre gatos. Nenhuma literatura brasileira foi encontrada especificamente sobre eles, mas uma menção especial e necessária é a de DaMatta e Soárez (1999), cuja obra acerca do jogo do bicho no Brasil elabora uma análise sobre o simbolismo que envolve alguns animais do jogo. Exceção geral também é o ensaio historiográfico de Darnton (1986). O objetivo é compreender alguns aspectos simbólicos relacionados a esse animal. Para tanto, a análise está fortemente ancorada na discussão clássica de Leach (1983) acerca da posição estrutural de certos animais ante o ser humano. Como a maioria da bibliografia levantada acerca do gato, conquanto escassa, está ancorada nesse paradigma, soará ao leitor que há uma espécie de consenso. Contudo, deve-se apontar tal como uma abordagem coesa em termos de paradigma. Nesse sentido, o ensaio ora proposto tem mais a qualidade de um “estado da arte” sobre o simbolismo do gato na literatura existente. O paradigma estruturalista de Leach (1983) está em oposição ao funcionalista. O funcionalismo, como aponta Sperber (1975), manteve como preocupação principal a utilidade de certos animais, o que foi jocosamente apontado por Lévi-Strauss como o “bom para ILHA volume 12 - número 2

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comer”, ao passo que a abordagem lévi-straussiana primou pela ideia de que os animais são “bons para pensar”. Para Sperber, essa dimensão influenciou os trabalhos tanto de Douglas (1976) quanto de Leach. Nesse sentido, é a esse “bom para pensar” que o presente ensaio se destina, embora uma parte reduzida da bibliografia consultada apresente explanações do tipo funcionalista. A reflexão está estruturada a partir dos eixos apontados por Leach (1983), que incluem: a comestibilidade como algo que permite pensar sobre os animais e sua carga simbólica, como também fez Sahlins (1979); as categorias animais como insulto (ou elogio) e as corruptelas verbais associadas a categorias animais; e a noção de que certas categorias animais ocupam posições ambíguas. Os dados historiográficos são somados, neste trabalho, às análises antropológicas como exemplos de interpretações de uma realidade passada que pode ou não se manter viva nas concepções atuais. Em alguns momentos, somam-se dados empíricos levantados por pesquisadores da área de veterinária e educação ambiental. Tais dados não apontam, contudo, que as percepções, crenças e representações acerca do gato têm fundamento no que Douglas (1976) chamou de materialismo médico, mas indícios que julguei relevantes para apontar como concepções e ideias àquilo que se apresenta, no senso comum, como fato material. A abordagem leachiana Leach (1983) empreende uma tarefa de fôlego ao estruturar séries de correspondência entre comestibilidade animal e relações de parentesco/afinidade e tem sido obra de referência frequentemente encontrada em estudos acerca do simbolismo animal. Portanto, e antes de tudo, faz-se necessária uma pequena introdução às considerações do autor. Segundo Leach, a linguagem obscena faz uso extenso de categorias animais, porém nem todo animal se presta ao insulto. Não é o animal em si ou sua essência que definem seu uso como insulto, mas esse uso indica que o nome do animal possui algum poder e, portanto, a categoria animal é tabu e sagrada. Para uma melhor compreensão do status de sagrado, Leach indica que ILHA volume 12 - número 2

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alguns animais são foco de rituais, enquanto outros não, e que as categorias de comestibilidade do animal também são relevantes nesse sentido. Empreendendo uma tipologia do grau de sacralidade/tabu e comestibilidade do animal, o autor aponta para três possibilidades: comestíveis e consumidos normalmente; comestíveis e consumidos em situações especiais (conscientemente tabu); ou comestíveis, porém não reconhecidos como comida (inconscientemente tabu). Está claro que, para o autor, a comestibilidade em questão é material (venenoso/não venenoso), mas o reconhecimento como comida está no plano simbólico. O exemplo dado por ele é a proibição do consumo de carne suína na religião judaica: o porco é comestível, mas não é comida para os judeus. Também recaem nessa divisão, como aponta, os animais que, sendo tão próximos ao homem que se tornam do mesmo tipo, não podem ser ingeridos sob o perigo do canibalismo, como seria o caso do cachorro. Da série de comestibilidade Leach (1983) depreende uma associação entre incesto/canibalismo e sexo/alimentação. Decorrem daí as seguintes séries: a) eu, irmã, primo(a), vizinho(a), estranho(a); b) eu, casa, fazenda, campo, longínquo (remoto); e c) eu, animal de estimação (pet), gado (animais de criação), caça, animais selvagens. As três séries devem ser lidas também na vertical: por exemplo, a relação com as pessoas de dentro da casa e com quem não posso me casar (irmã) fornece o padrão de relação que mantenho com meus animais de estimação. O objetivo central do exercício é depreender uma regra que diz que o tabu se aplica a categorias anômalas, quando em relação a categorias bem delimitadas, numa conclusão similar à de Douglas (1976) e a de Hubert e Mauss (2001, p. 143) sobre “o caráter ambíguo das coisas sagradas”. Em outra série, Leach indica que homem (animais domesticados)/não homem (animais selvagens) e, na interseção desses dois conjuntos, ou seja, em posição anômala, estão animais de estimação (caça). A relevância de se indicar o argumento leachiano é compreender a posição anômala que os animais de estimação ocupam na sociedade ocidental contemporânea. Entre tais animais, o gato parece ocupar uma posição especialmente anômala, o que pode ser sugeriILHA volume 12 - número 2

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do a partir das ambíguas restrições ao consumo de sua carne no Brasil (churrasco de gato), aos seus poderes sobrenaturais (sete vidas, gatos pretos que trazem má sorte), à sua ocupação preferencial de territórios liminares (muros, telhados, dentro e fora das casas) e à sua condição de não totalmente domesticado, posto que ele caça (ratos) e não obedece a ordens como cães e cavalos, por exemplo. Esses pontos serão abordados ao longo deste ensaio. Magia e sacrifício ritual Uma obra que é exceção à parca análise sobre gatos é O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (Darnton, 1986). Remetendo-se ao debate douglasiano sobre a ingesta do porco (Douglas, 1976) e às categorias animais conforme debatidas por Leach (1983), Darnton (1986) sugere que a posição ambígua dá a alguns animais (como o gato) um poder associado ao tabu e, portanto, um valor ritual. Segundo Darnton, gatos eram um tema recorrente de rituais e de simbolismo popular na França. A tortura e a morte ritual de gatos faziam parte de passeatas burlescas (charivaris) e da Terça-Feira Gorda do Carnaval tanto quanto das festas juninas e do Corpus Christi, mas também em certos episódios fora da França, como na Alemanha e na Inglaterra. A caça aos gatos nessas situações festivas, diz o autor, assemelhava-se a uma caça às bruxas, incluindo a queima ritual em fogueira. A tortura de animais, especialmente os gatos, era um divertimento popular em toda a Europa, no início dos Tempos Modernos. [...] Os franceses, no início dos Tempos Modernos, provavelmente usaram mais os gatos, em nível simbólico, do que qualquer outro animal, e usavam-no de maneiras diferentes (Darnton, 1986, p. 121-125).

Segundo Cohen (1994), na Idade Média animais vivos faziam parte de procissões públicas. Em Ypres, havia uma ‘festa dos gatos’ na segunda quarta-feira da Quaresma. Originalmente, diz a autora, consistia em procissão seguida pelo lançamento de gatos do alto de uma torre. Uma cerimônia que queimava gatos, afirma ainda, era celebrada em Paris, todos os anos, na véspera do Dia de São João ILHA volume 12 - número 2

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como parte das tradicionais fogueiras do ciclo junino. Uma pira era erguida e dúzias de gatos em sacos eram suspensos sobre ela. Cohen se pergunta se os maus-tratos aos gatos eram mero sadismo e aponta que tais maus-tratos eram públicos, ritualísticos e que os animais, especialmente os domésticos, serviam como um reflexo da comunidade humana e seu bode expiatório. O massacre de gatos, ao coincidir com rituais de limpeza, tornava o gato um animal sacrificial. Hyams (1972) afirma que nenhum outro animal teria sofrido tanto quanto o gato doméstico na Europa Medieval. Na Europa Central, na Alemanha e em Flandres, diz o autor, durante a Quaresma era costume matar, queimar ou enterrar vivos tantos gatos quanto fosse possível. Durante a Páscoa, no Vosges e na Alsácia em geral os gatos eram regularmente queimados vivos. Nas montanhas de Ardennes, eles eram jogados vivos em fogueiras ou assados vivos presos em postes. A razão seria sua identificação com Satã. Segundo o autor, tais práticas seriam ritos mágicos cuja intenção era espantar o diabo. Nos séculos XVI e XVII, ainda segundo Hyams (1972), em toda a Europa e na América (presumivelmente nos Estados Unidos), colocavam-se gatos vivos, mortos ou mumificados nas paredes ou sob o piso das casas, às vezes junto a um rato. O autor então se pergunta por que um animal útil, já que caça ratos, seria considerado medonho. A resposta que fornece, além de suas ligações com o diabólico, seria seu status de animal novo e recém-chegado na Europa, o que teria lhe valido uma reputação ambígua. Para sustentar tal argumento, Hyams demonstra que nem sempre o gato foi um animal doméstico comum no continente, mas que sua introdução ali teria se dado após uma praga de ratos oriunda de levas migratórias germânicas. Além disso, certas características atribuídas ao gato como hábitos noturnos, sua associação com a lua e seus “olhos enigmáticos” teriam contribuído, além de sua “autossuficiência”. Esses aspectos claramente ritualísticos do gato apontam para sua sacralidade e são corroborados por um ritual descrito por Hyams (1972) no qual, em vez de ser destruído, o gato era adorado. Segundo o autor, no festival do Corpus Christi de Aix en Provence, o gato ILHA volume 12 - número 2

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macho mais bonito da região era embrulhado em tecido como uma criança e exibido publicamente, quando os habitantes locais se ajoelhavam e erguiam flores e incenso, “e, em resumo, o gato nesta ocasião era tratado como o deus do dia” (p. 45, tradução minha). Para Darnton (1986), as razões simbólicas do uso ritual do gato residiriam numa correlação entre os gatos e a feitiçaria. Toda uma série de formas de torturar gatos consistia, na verdade, em livrar-se da feitiçaria ou das feiticeiras. Dado esse poder, os gatos também impediam tarefas cotidianas de transcorrerem bem, como o crescimento do pão ou a pescaria, ou serviam para impedir eventos nefastos, como o crescimento das urtigas. Seu uso ritual e mágico para atividades consideradas moralmente boas ou ruins indica a ambiguidade do animal. Simbolicamente, era a sua correlação com o sobrenatural que o tornava propício a práticas mágicas. Para Mauss (2003), entre as diferenças encontradas entre magia e religião, uma delas refere-se, exatamente, ao sacrifício, que está associado à religião, ao passo que o malefício é associado à magia. Nesse sentido, os ritos acima elencados são ritos religiosos em que se sacrificam gatos, que, não obstante, são também usados nos ritos mágicos. O sacrifício, segundo Hubert e Mauss (2001), pode tomar diversas formas. São sacrificados tanto animais quanto alimentos de origem vegetal e deuses, estes na forma de humanos, de animais ou de vegetais. Nos casos elencados acima de sacrifícios de gatos, como o ritual é descrito superficialmente, não é possível uma análise mais aprofundada, a não ser a indicação de que se trata de uma espécie de bode expiatório ou, no ritual descrito por Hyams (1972), um substituto do deus. Segundo Mauss (2003, p. 72), a relação entre magia e animais é bastante comum: a antiga strix, é uma feiticeira e uma ave. Depara-se com a feiticeira fora de casa sob a forma de gato preto, de loba, de lebre, com o feiticeiro sob a forma de bode etc. quando o feiticeiro ou a feiticeira deslocam-se para causar dano, eles o fazem sob sua forma animal, e é nesse estado que se pretende surpreendê-los. [...] As feiticeiras européias, em suas metamorfoses, não assumem indiferentemente todas ILHA volume 12 - número 2

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as formas animais. Elas se transformam regularmente, uma em jumento, outra em rã, outra ainda em gato etc.

O gato preto também é relacionado, no Brasil, à prática de magia e diz-se que traz má sorte. No entanto, nossas crenças mágicas não pretendem que bruxas e feiticeiros transformem-se em animais. É interessante contrastar os animais elencados na citação acima com as séries elaboradas por Leach (1983): se a lebre, a rã e o gato são facilmente classificáveis como ambíguos, a loba, o jumento e o bode não o são. Além disso, é o gato preto que é relacionado, especialmente, mas não somente, à magia e ao diabo (Hyams, 1972). Hubert e Mauss (2001) indicam como o preto esteve relacionado a divindades ctônicas e relatam sacrifícios de vacas negras e cavalos negros para fazer chover, ou rituais que envolvem galos negros para afastar a má sorte. Embora não se possa depreender daí uma lei geral sobre o uso das cores em rituais ligados a cosmologias distintas, é interessante marcar que as cores apresentam um simbolismo. Nos casos apontados pelo autor, e dentro de sua teoria geral da magia, “o poder mágico se deve, nesses diversos casos, à sua familiaridade com animais” (Mauss, 2003, p. 73), isto é, uma aliança entre o mágico e o animal. Embora frequentemente se trate de um animal em especial, Mauss indica que, “com muito raras exceções, não é com um animal em particular, mas com uma espécie animal inteira que o mágico tem relações. Desse modo, já, estas se assemelham às relações totêmicas” (p. 73), quando o animal é tomado como totem individual e não se pode mais consumir sua carne. Mauss aponta, ainda, que “o mágico é definido por suas relações com os animais, assim também ele é definido por suas relações com os espíritos” (p. 76). Espíritos e animais se confundem, ao que parece, na medida em que se trata de animais mágicos, individualmente dotados de poderes espirituais específicos (ou mana), e não de categorias animais, conforme indica a abordagem leachiana. A análise maussiana, embora certamente uma inspiração para o arcabouço estruturalista que viria depois, não chega às mesmas conclusões. Já que se está privilegiando a abordagem estruturalista de Leach (1983) no presente ensaio, acredito que a ressalva seja necessária. Observe-se que ILHA volume 12 - número 2

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Mauss (2003) não cria categorias anômalas para tais animais nem tenta explicar por que esses e não outros. Limita-se, nesse ponto, a uma coleta de dados históricos, religiosos e folclóricos que lhe permita construir uma lei geral na qual os animais aparecem como instrumentos ou metamorfoses dos mágicos para, ao fim, recair no conhecido problema do totemismo. Embora Mauss (2003) indique como a magia opera a partir de inversões dos ritos religiosos, a própria metamorfose do mágico em animal não é apontada claramente por ele como uma dessas inversões que, para ser considerada como tal, necessita estar ancorada numa separação entre homem/animal e natureza/cultura. Mauss também aponta como os mágicos são pessoas especiais, extraordinárias, mesmo quando uma população inteira é considerada assim, como, por exemplo, os judeus diante do catolicismo medieval e os estrangeiros em geral. Não decorre dessa conclusão, tampouco, uma pergunta sobre o status especial dos animais vinculados à magia, o quão extraordinários eles seriam, conclusão que só é trazida à tona a partir das análises estruturalistas. Animais de estimação Antes de serem animais de estimação, como apontam Hyams (1972) e Thomas (1988), os gatos foram classificados como de natureza vil. Não obstante, nos navios eram considerados parte da tripulação, junto com os cães. Na Idade Média, eles eram criados em casa, para combater ratos e camundongos. É bem ocasional que apareçam como companheiros e objetos de afeição [...]. Muitos chefes de família eximiam-se deliberadamente de alimentá-los, de modo a garantir que tivessem um incentivo para caçar. [...] No entanto, ao começar o período Stuart [século XVII] já eram numerosos os amigos dos gatos (Thomas, 1988, p. 131).

Serpell e Paul (1994) indicam que gatos e alguns pássaros eram os únicos animais permitidos em conventos franciscanos, pois eram vistos como úteis na manutenção da limpeza, numa explicação claramente funcionalista. Segundo Thomas (1988), no reinado de Carlos ILHA volume 12 - número 2

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II (1660-1685), a maioria das famílias londrinas possuía pelo menos um gato. Não obstante, foi nesse período que procissões antipapistas queimavam gatos vivos. Só no século XVIII o gato consolidou sua posição de animal de estimação: “é provável que o gato tenha adquirido popularidade à medida que se elevavam os padrões de asseio doméstico”, afirma Thomas (1988, p. 133) ao estilo funcionalista. Segundo esse autor, um vendedor de comida de gato de meados do século XIX chegou a afirmar que havia um gato para cada dez pessoas em Londres e que seu contingente era o dobro do canino. Indica, também, que a primeira exposição de gatos na Inglaterra deu-se em 1871. Antes dos gatos, a Europa teria usado o furão como caçadores de ratos (Hyams, 1972). Domesticado no Egito no segundo milênio a.C., o gato doméstico seria o cruzamento de espécies selvagens domesticadas ou não, introduzidas a partir de levas migratórias germânicas. A presença habitual de animais de estimação nos lares ingleses, segundo Thomas (1988), consolidou-se entre os séculos XVI e XVII. Contudo, Ritvo (1987) afirma que a popularidade desses seria uma característica do século XIX. Antes disso, aqueles que demonstravam afeto por seus animais de estimação eram vistos de forma negativa. Uma das características do animal de estimação, para a autora, era sua função como objeto de afeto, ao contrário de animais que deveriam trabalhar, como cães pastores, animais de tração, entre outros. Essa separação entre animais que trabalham e os que não trabalham é uma representação da relação entre as classes (elite e trabalhadores). Nesse sentido, Ritvo indica que animais de estimação eram vistos como um privilégio de classes abastadas, incluindose a classe média. Nas classes trabalhadoras, a existência de animais de estimação era má vista, reforçando noções de sujeira e insalubridade relacionadas a essas classes. A autora sugere, ainda, que a relação com o animal de estimação, sobretudo na invenção e na criação de raças de cães para concursos, era, no século XIX, uma relação de controle sobre a natureza. Assim, para controlar a natureza (ter um animal de estimação), aparentemente um homem deveria antes dominar outros homens ILHA volume 12 - número 2

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(pertencer à elite). Pesa, ainda, nesse novo tipo de relação com os animais a emergência da ciência como uma forma de explicação e domínio da natureza pelo homem. A análise de Ritvo (1987) equaciona, portanto, um viés de classe com uma nova configuração social na qual a relação natureza e cultura é distinta: de ameaça à sobrevivência humana, diz ela, a natureza passa a objeto de especulação e dominação através do conhecimento científico. É nessa nova relação com a natureza que a sociedade inglesa passa, segundo a autora, a adotar de forma positiva animais de estimação. Serpell (1987), por outro lado, afirma que a associação entre animais de estimação e elite é ilusória. Segundo o autor, há farta indicação de que a realeza britânica fosse entusiasta dos animais de companhia, mas sua existência entre as classes populares não deve ser ignorada. O argumento de Serpell aponta para um discurso no qual a elite é acusada de preferir animais de estimação a seres humanos das classes trabalhadoras, criando assim uma associação entre tais animais e uma vida de ostentação desnecessária e imoral. De certa maneira, o próprio animal de estimação animalizava a elite, apresentada como uma classe desumana. Todavia, as classes populares europeias mantinham animais de estimação cuja existência, durante o período inquisitorial, podia ser interpretada como prática de bruxaria, baseada na noção mágica de familiar, que se refere, como afirma Mauss (2003, p. 72-73), a “um auxiliar familiar do qual a feiticeira permanece distinta. Assim é o gato Rutterkin das feiticeiras Margaret e Fillipa Flower, que foram queimadas em Lincoln, no dia 11 de março de 1619”. Não sabemos o que houve com o gato. Enquanto Ritvo (1987) analisa um discurso sobre os pobres e os animais de estimação no século XIX, Serpell (1987) aponta para um discurso sobre ricos e animais de estimação na Grécia Clássica, no Império Romano e na Europa Medieval, entre outros. O conteúdo parece ser o mesmo: a presença do animal de estimação animaliza seu proprietário, tornando-se uma metáfora dele. Essa antipatia pela sua presença nos lares europeus, segundo Serpell, não seria oriunda de considerações econômicas pela vida dos pobres ou dos ricos, mas de preocupações de cunho moral. É curioso comparar esses discursos com as análises mais atuais (Kulick, 2009, por exemplo) nas quais ILHA volume 12 - número 2

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a presença de animais de estimação nos lares urbanos ocidentais humaniza tais animais. São, certamente, representações diferentes, historicamente constituídas, em jogo e que, seguindo a sugestão de Ritvo, parecem estar de alguma forma associadas ao tipo de relação entre o homem e a natureza que a ciência moderna produziu. O antigo temor da natureza nos tornava potencialmente animais, em perigo de desumanização quando em contato com animais de estimação. O atual paradigma de controle da natureza nos permite controlar tais animais a ponto de vê-los como humanizados. Se os próprios animais não mudam, certamente a sociedade e as ideias dos homens é que terão mudado. Para Thomas (1988), três traços distinguiam o animal de estimação dos outros animais. Em primeiro lugar, ele tinha permissão de entrar na casa; em segundo, possuía um nome; e, em terceiro, não era comida. No caso dos animais de estimação, quanto mais mimados, maior a possibilidade de um nome humano. Essa foi uma tendência acentuada no século XVIII, indicando o vínculo mais estreito entre o animal e seu dono. “Por volta de 1700”, diz o autor, “com freqüência os mascotes eram melhor alimentados que os empregados” (p. 141), tendência que dá origem ao episódio que Darnton (1986) analisa como ‘o grande massacre de gatos’, quando alguns tipógrafos franceses matam uma grande quantidade desses animais em função do que avaliam como maus-tratos, sobretudo aos aprendizes, vindos da parte dos patrões, que tratavam e alimentavam melhor seus gatos do que seus empregados. Como forma de rebelião, os tipógrafos matam uma série de gatos, começando pela gata preferida da esposa do patrão, em um teatro que era, ao mesmo tempo, drama e ritual no qual julgavam e condenavam os gatos no lugar dos patrões. Para Leach (1983), os animais de estimação são uma categoria ambígua na interseção entre o humano e o animal. Na verdade, seriam ambos ao mesmo tempo. A regra que restringe o consumo de sua carne, ou, dito de outra forma, a regra que permite tomar como animal de estimação aquele que não será comido (espécie, sobretudo, mas também indivíduo), é decorrente, segundo o autor, de uma sobreposição estrutural entre o animal de estimação e a relação de parentesco mais próxima – a de irmão/ã – guardada pelo tabu do ILHA volume 12 - número 2

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incesto. Assim, pela analogia entre sexo e comida, o autor afirma que o animal de estimação é parte da família e, portanto, não pode ser comido. Segundo Ritvo (1994), no estabelecimento da taxonomia científica, muitos elementos da cultura popular foram levados em consideração e posteriormente abandonados aos poucos. O gato era considerado simultaneamente doméstico e selvagem, isto é, apenas parcialmente doméstico. Tomando-se o modelo de Leach (1983), os animais em posição ambígua, como é o caso do gato, seriam caracteristicamente animais tabu, isto é, sagrados e sobrenaturais. A ligação do gato com a feitiçaria, conforme apontado por Darnton (1986), assinala essa característica. Tais animais são aqueles preferidos para situações rituais e isso, em parte, explica por que aparecem como animais sacrificiais em ritos europeus, conforme mostrado acima. Para Leach, o tabu envolve, ainda, as questões alimentares. Assim, o animal de estimação, tomado como uma extensão da humanidade, não pode ser consumido, na medida em que isso seria canibalismo. Esse é claramente o caso do cão no mundo Ocidental. Seria o caso do gato? Comestibilidade Pode-se discutir se gatos são comestíveis ou não no Brasil. Há uma jocosidade recorrente sobre o churrasquinho de gato, ou filé miau, que se refere à obscura procedência da carne servida em espeto e churrasqueada na rua por vendedores ambulantes. Outra relação jocosa diz que gatos viram tamborim, instrumento de percussão largamente utilizado nas baterias de escolas de samba que produziria melhor som quando fabricado com couro de gato. Há, ainda, a expressão “comprou gato por lebre”, que se refere à comestibilidade da segunda e não do primeiro. Gatos não são comida e, portanto, seguindo o modelo leachiano, seriam inconscientemente tabu. Contudo, os animais que são conscientemente tabu, como é o caso do porco, podem ser comidos em situações rituais específicas. As refeições que marcam algumas festas religiosas brasileiras (Natal, Ano Novo, ciclo junino, Semana Santa) substituem o consumo de carne de boi pela de outros animais, o que ILHA volume 12 - número 2

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demonstra seu caráter ordinário. O churrasco, contudo, como evento festivo que congrega amigos e parentes, é marcado pelo consumo dessa carne em quantidades que ordinariamente não são consumidas, dando o tom ritual da festa. Como a carne de gato só é possivelmente consumida churrasqueada, através de um engano da parte do consumidor que “compra gato por lebre”, isto é, gato por gado, devemos nos perguntar o quanto esse consumo é um tabu consciente e o quanto ele é inconsciente. O risco do consumo de carne de gato é eminente para quem come o churrasco de rua (gato), sem se discutir aqui o quanto o risco é real e o quanto é imaginário. Contudo, a jocosidade é uma espécie de alerta: tal carne não pode ser consumida conscientemente. Para evitar o risco, deve-se evitar o consumo da carne vendida pelos ambulantes de rua. Assim, pode-se concluir que se trata de um tabu inconsciente. Não há venda de carne de gato nos mercados ordinários, portanto ela não é comida, mas algumas pessoas não se importam se a carne dos ambulantes é bovina ou felina (real ou imaginariamente). É nessas situações que sugiro que a carne felina seja vista como caça dentro do modelo leachiano. A caça é, nesse modelo, tão ambígua quanto o animal de estimação. Há indícios que apontam para outras ambiguidades do gato. Além dos aspectos sobrenaturais e de consumo, diz-se comumente que ele é um animal que caça (ratos), característica dos animais selvagens. Não obstante, é também um animal de estimação e, portanto, humanizado. Seu status é ambíguo. Decorre dessa ambiguidade que se brinque com a possibilidade de ingesta da carne de gato, brincadeira que não é feita com relação ao cachorro, o que indica que um seria mais sagrado do que o outro. Leach (1983) sugere que não se separem, simplesmente, os animais em sagrados e profanos, mas que se observe que alguns são mais sagrados do que outros. Seguindo a proposta leachiana, o gato estaria na interseção entre duas posições em três séries: ele seria ao mesmo tempo irmãcasa-animal de estimação e vizinho-campo-caça. Em oposição ao cão (irmã), ele seria vizinho, portanto possivelmente consumível. A caça é, segundo o autor, por definição, uma posição ambígua. O ditado que diz “levar gato por lebre” coloca os felinos na posição de substitutos de um característico animal de caça, a lebre. O coelho, aparenILHA volume 12 - número 2

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tado da lebre, é ainda mais ambíguo, porque pode ser caça, praga, animal criado em fazenda e animal de estimação ao mesmo tempo. Os animais de caça são comestíveis, como alguns animais criados em fazenda; as pragas e os animais de estimação não o são. Encerrando as séries em três grandes grupos, o autor indica que animais de estimação e animais de caça formam um conjunto que está na interseção entre humanos/animais domésticos (a), de um lado, e animais/ bichos selvagens (b), de outro, cada polo formando um oposto: (a) humano/(b) animal e (a) doméstico/(b) selvagem. O animal de estimação se encontra na interseção entre humano/animal; e a caça, na interseção entre doméstico/selvagem. O felino feminino Uma das facetas simbólicas dos animais é sua associação com masculinidades e feminilidades. Como afirma Motta (2008, p. 201), “se tudo, na prática simbólica, pode ser classificado como masculino ou feminino, também as representações sobre animais veiculam representações de gênero”. O exemplo mais famoso na antropologia contemporânea é, certamente, o galo balinês. Geertz (1989, p. 283284) percebe simbolismos de gênero quando analisa a briga de galos em Bali: Bateson e Mead sugeriram até [...] que os galos eram vistos como pênis separados, autofuncionáveis, órgãos genitais ambulantes, com vida própria. [...] O fato de que eles são símbolos masculinos par excellence é tão indubitável e tão evidente para os balineses como o fato de que a água desce pela montanha.

A partir de Geertz (1989), Motta (2008, p. 212) foi capaz de perceber processo similar em competições de pássaros canoros em Florianópolis: A identidade entre homem e curió é inequívoca. O curió, especialmente o ‘curió-valente’, preparado para torneios de fibra, incorpora atributos de masculinidade extremamente valorizados nesse contexto: valentia, fibra, poder e capacidade de enfrentamento e intimidação. ILHA volume 12 - número 2

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Diversos autores (DaMatta e Soárez, 1999; Darnton, 1986; Leach, 1983) associam o gato a questões de gênero. Leach (1983) aponta que na Inglaterra cão e gato são, respectivamente, masculino e feminino. O uso comum no inglês, como no português, é de indicação de gênero masculino para o cão (fem. cadela). No português, gato é masculino, mas no inglês ele seria feminino, apresentando-se um termo particular (tom cat) para o gato macho. E, da mesma forma que em português, cão e gato trazem, quando juntos, a ideia de uma briga que, na língua inglesa, estaria restrita a maridos e mulheres. Leach também aponta que gato é um insulto, ao passo que no Brasil trata-se de elogio. O insulto, em língua inglesa, estaria vinculado, ainda, ao pelo pubiano feminino, remetendo ao contexto sexual do gato, como Darnton (1986) também aponta. Assim como a esfera de atuação feminina é a esfera doméstica, o gato também era considerado, segundo Darnton (1986), um animal da casa e relacionado ao dono dessa. Por extensão de sua relação com duas características tão marcantemente femininas como a feitiçaria e o ambiente doméstico, o gato, indica o autor, também era associado ao sexo. Na gíria francesa, o órgão sexual feminino era denominado com palavras que significam “gato/a”. Mulheres e gatos eram identificados em provérbios populares. “Em toda parte os gatos sugeriam fertilidade e sexualidade feminina” (Darnton, 1986, p. 127). No episódio do ‘grande massacre de gatos’, a relação entre gato e feminilidade emerge quando Darnton aponta que a gata preferida da esposa do patrão foi a primeira a ser morta, sinalizando metaforicamente a dominação sexual da esposa por parte dos tipógrafos rebelados. Enquanto em Bali os galos são pênis metafóricos (Geertz, 1989), no Brasil os pênis são pintos ou perus, nunca curiós. Na França (Darnton, 1986) e na Inglaterra (Leach, 1983) as vaginas são gatas, ao passo que no Brasil as gatas são mulheres (DaMatta e Soárez, 1999). O gato, em língua francesa e inglesa, nomeia a própria genitália feminina, o que não acontece no Brasil. Ao que parece, como aponta Leach (1983), não é qualquer animal que se presta, como categoria, a relações metafóricas e/ou metonímicas. O gato está simbolicamenILHA volume 12 - número 2

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te associado ao feminino, embora não seja o único animal nessa posição. Conforme DaMatta e Soárez (1999), cobras, vacas, borboletas e cabritas, animais do jogo do bicho, são metáforas de condutas morais femininas no Brasil: a cobra e a cabrita sinalizam sexualidade, ao passo que a vaca representa a maternidade e a borboleta é uma moça matrimoniável. No fundo, o povo vê a borboleta como [mulher] ‘matrimoniável’ em oposição à cabra, que é uma presa legítima. As primeiras seriam moças de família (e da casa); as segundas, moças da rua. [...] A vaca, já vimos, é o bicho símbolo da maternidade e do leite. É esposa, sogra e mãe. Já a cobra é a mulher da rua experiente e sagaz (p. 150).

Classificando os animais do jogo do bicho em termos de gênero, os autores chegam aos seguintes conjuntos: a) masculino: águia, touro, leão, elefante, galo e peru (estes últimos metafóricos da genitália masculina); b) feminino, subdividido em b.1) casa (borboleta e vaca) e b.2) rua (cabra, gato e cobra); e c) “coluna do meio” de “bichos liminares”, como chamam os autores a zona de interseção na qual não se pode definir estritamente nem masculino nem feminino, ou seja, os animais que representam uma espécie de gênero ambíguo, ligado à homossexualidade vista como um masculino afeminado ou a uma masculinidade não hegemônica: veado, pavão, avestruz, cabra e, novamente, gato. É interessante observar que não há ambiguidade feminina, apenas masculina. Não obstante se tratar, a meu ver, de uma classificação que confunde gênero e sexualidade, os autores apresentam-na apenas em termos de “projeções sexuais”, “potencialidades sexuais” e “conotação sexual”. O gato aparece, inexplicavelmente, tanto no conjunto b.2, que se refere ao feminino “da rua”, quanto no conjunto c, que se refere a uma pretensa zona de interseção entre masculino e feminino. Digo inexplicavelmente porque os autores, de fato, não o explicam. O veado é, segundo eles, o animal que, “no Brasil, designa o homossexual passivo masculino” (DaMatta e Soárez, 1999, p. 151). O pavão, referido como vaidoso, apresentaria uma característica feminina. A cabra é um homem subordinado, “um capanga”, tanto quanto “uma moça livre”. O avestruz “é às vezes chamado de ‘biILHA volume 12 - número 2

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cha’, fato que talvez se explique por se tratar de um bicho passivo no embate, que, como o veado, corre velozmente, não podendo ser alcançado” (DaMatta e Soárez, 1999, p. 151). Não se explica a alocação do gato na “coluna do meio”, a não ser através dos adjetivos “dissimulado, sinuoso; lânguido”, de onde se conclui que sejam, conforme os exemplos acima, considerados como características femininas, corroborando a noção de que seria um animal relacionado ao feminino. Bichanos, gatas e gatunos Segundo DaMatta e Soárez (1999), na sociedade brasileira ‘animal’ e ‘bicho’ são categorias distintas: a primeira é englobada pela segunda, que inclui, além dos animais, pessoas e seres sobrenaturais. Mauss (2003, p. 74) afirma que os espíritos que auxiliam o mágico “têm geralmente formas animais, reais ou fantásticas”. Como categoria classificatória, ‘bicho’ seria usada para coisas ambíguas, exóticas ou indefinidas, dizem os autores. Acredito que ‘bichano’, palavra que também define o gato, parece apontar para essa ambiguidade do animal definido, que, além de tudo, é sobrenatural, “tem sete vidas”, dá má sorte e é animal sacrificial. Em uma série de associações entre bichos e situações das quais se pode depreender um palpite para “jogar no bicho”, DaMatta e Soárez (1999) recolhem as seguintes associações acerca do gato: é animal que pega ratos, associado a ladrões e à traição. Segundo os autores, O gato, como um tigre em pequena escala, também ‘só pega rato à traição’ e, mesmo doméstico, é um animal que fica ao lado ‘do fogão’ (onde dorme), preferindo os espaços marginais e ambíguos da casa, como a cozinha (zona na qual os alimentos se transformam em comida), a varanda, os umbrais de portas e janelas e, naturalmente, os telhados (todos situados entre a dimensão interna e externa da moradia). Ademais, quando o gato está na rua, ele vaga com outros gatos, formando bandos que, perambulando pela noite, são uma metáfora perfeita para os bandos de marginais que infestam a rua nas grandes cidades brasileiras (p. 135). ILHA volume 12 - número 2

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É interessante observar toda uma gama de associações que marcam o gato como animal ambíguo, portanto de pouca confiança. Se ‘bichano’ marca o gato como ‘bicho’, que pode ser sobrenatural, ‘gatuno’ marca o ladrão como gato e o gato como ladrão, posto que ambos trafegam pelos mesmos espaços físicos, já tornados espaços sociais (Bourdieu, 1999). Dentro de casa, esse gato imaginado prefere o ambiente feminino e subalterno da cozinha, tão ambígua quanto as próprias mulheres sob a ótica da dominação masculina (Bourdieu, 2003). Mas, ao contrário dessas, trafega livremente entre a casa e a rua, nunca apenas em uma. Na rua e nas interseções entre essa e a casa (muros, telhados, umbrais), o gato se assemelha a uma figura caracteristicamente masculina: o ladrão. Além de tudo, gatos gostam de leite, alimento considerado por DaMatta e Soárez (1999) como feminino. Em oposição ao gato está o cachorro. Segundo esses autores, se o gato está para o tigre numa série de oposição doméstico/selvagem, o cão está para o leão, um animal nobre. Assim, rei da selva: ‘rei do lar’. “O cachorro está para a parte interna (sagrada, ‘humana’, íntima, frágil, secreta e feminina) da casa como o gato está para suas partes externas, que são públicas, visíveis e masculinas” (DaMatta e Soárez, 1999, p. 135-136). Isso, contudo, não faz do cão animal feminino. Segundo os autores, o latido é masculino, ao passo que o miado é feminino. No caso do gato, afirmam, a relação com o universo feminino é tanto metafórica quanto metonímica, na medida em que as mulheres podem ser gatas. Em um esforço classificatório, DaMatta e Soárez (1999) constroem várias séries de oposição para os animais que constituem o jogo do bicho. Como meu interesse é uma análise simbólica do gato, este material provou-se bastante rico em termos dos esquemas classificatórios operantes na sociedade brasileira. Ao usar as análises dos autores acerca do jogo, não opero, necessariamente, uma generalização das associações para toda a sociedade brasileira, mas uma apropriação de tais ideias como parte do simbolismo envolvendo o gato no Brasil.

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Segundo os autores, cães e gatos são animais ativos, pois são caçadores, embora caçadores domésticos. O cão é apontado como um intermediário entre as classes superiores e as inferiores, posto que cumpre ordens e protege o “patrão”. O cão trabalha, o gato rouba (como diz o senso comum: “um olho no gato e o outro no peixe”). A relação canina com o humano, portanto, seria de solidariedade, ao passo que a relação felina seria de traição, na medida em que o senso comum brasileiro aponta que o gato não gosta das pessoas, mas da casa onde vive. Pode-se sugerir que seria visto como um animal mais territorial do que afetivo. Em outra série comparativa, os autores indicam que, em termos de potencialidades sexuais, o gato estaria associado a um feminino da rua, libertino, o que corrobora a ideia de que não é metáfora de afeto. Para DaMatta e Soárez (1999), cães de raça, gatos, cavalos e vacas de leite são sinais de superioridade social. Em oposição ao cão de raça estaria o vira-lata, ao cavalo estaria o burro e à vaca estaria a cabra, cada qual relacionado a um estrato social diferente. Não há oposição ao gato, mas é interessante perceber como Darnton (1986) analisa ‘o grande massacre de gatos’ a partir de uma ótica da revolta de classe na qual os gatos estavam associados aos patrões burgueses, mais bem tratados do que os aprendizes. Essa lógica de associações por estratificação social não é contemplada na análise de Leach (1983), especialmente voltada à compreensão de aspectos simbólicos relacionados ao ritual e à sacralidade. Há que se questionar, portanto, se as abordagens são complementares ou antitéticas. Nesse sentido, creio que o simbolismo envolvendo o gato está muito mais fortemente ancorado em aspectos rituais, dadas suas associações com o sobrenatural, do que em uma estratificação social. No Brasil contemporâneo, parece-me que o gato não é tão associado às elites quanto o cachorro, especialmente os de pedigree, embora este não seja totalmente associado àquelas. Afinal, a “vida de cão” não é, na expressão popular, uma vida confortável ou luxuosa. Em termos de sacralidade, cães e gatos seriam animais ambíguos, pois cão é sinônimo de capeta, ao passo que os autores associILHA volume 12 - número 2

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am o gato, inexplicavelmente, aos anjos. Nesse caso, creio que a análise foi infeliz. A abordagem de Leach (1983) apontaria que cães e gatos são animais sagrados e que as operações de inversão marcam essa sacralidade: se o cão é o melhor amigo do homem, no Brasil é insulto usado para um homem canalha; se o gato é traidor e ladrão, é elogio à pessoa bonita. Contudo, o cão seria mais sagrado do que o gato, posto que a interdição do consumo da carne daquele é maior do que a deste. Não obstante, Ritvo (1987) afirma que no século XVIII inglês as características morais atribuídas ao cão eram outras. Em vez de lealdade e afeto, pinturas e gravuras satíricas sugeririam que o cão representava bestialidade, vulgaridade e subversão. A lealdade ao mestre humano não era questionada, mas alguns apontavam o cão como malcomportado com a própria espécie, egoísta, cruel e injusto. Se fosse possível uma generalização do contexto oitocentista inglês ao contemporâneo brasileiro, ter-se-ia que se pensar em um processo de continuidade entre o cão-capeta e o cão como animal egoísta, cruel e injusto, em vez de um processo de inversão, como foi indicado acima. O mesmo deveria valer para o cão como categoria de insulto no Brasil. É interessante, ainda, salientar que Leach (1983) indica cão (dog) como uma inversão de deus (god). Um animal limpo e independente? Em seu clássico Pureza e perigo, Mary Douglas (1976) indica que a noção de poluição não é física, mas simbólica. Chamando de materialismo médico o debate que indicava a carne suína como imprópria para consumo devido às suas qualidades físicas nocivas e indicando o porco como animal sujo, a autora aponta como as noções de limpeza e sujeira, pureza e poluição são categorias simbolicamente construídas que não demandam uma realidade física. O gato no Brasil é percebido pelo senso comum como um animal “limpo” (Oliveira, 2006), mas o que isso significa? A noção de limpeza do gato é sustentada por dois argumentos gerais do senso comum brasileiro: em primeiro lugar, ele “toma banho” quando mantém o hábito natural da espécie de lamber todo o corpo sistemaILHA volume 12 - número 2

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ticamente; em segundo lugar, o gato enterra seus excrementos. O “banho” do gato, associado à ideia de que gatos não gostam de água, leva, na prática, a que esses animais de estimação não sejam banhados com água e sabão por seus donos, ou seja, em geral, menos banhados do que os cães de estimação. Oliveira (2006), em pesquisa de campo realizada em pet shops, indica que o público preferencial do serviço de “banho e tosa” é o cachorro e que há poucos gatos. Segundo ela, Os principais clientes do ‘banho e tosa’ são os proprietários de cães, seja pelo fato de existirem mais cães do que gatos classificados como animais de estimação nos grandes centros urbanos do país, seja devido à crença de que ‘gatos não gostam de tomar banho’ ou que ‘se limpam com as próprias lambidas’. [...] Os gatos, como já foi dito, são raros. Porém, os poucos que tomam banho nas Pet Shops geralmente dão mais trabalho para os tosadores e banhistas pois, como não estão habituados com o banho, costumam se comportar de forma agressiva e arredia, o que pode ser comprovado ao analisar-se a tabela de preços de um banho e tosa. [...] Os gatos encontram-se numa categoria diferenciada e, apesar de serem animais de porte pequeno, geralmente os preços referentes ao banho e tosa são compatíveis com os dos cães de grande porte (p. 57-59).

Em outras palavras, a autora indica que não é costume banhar os gatos em pet shops, e, já que é costume banhar os cães, podese concluir daí que os gatos tampouco são banhados nas casas onde vivem. Eles não seriam banhados porque não há necessidade e, por uma falta de adestramento do animal, quando banhados, resistem. Essa resistência faz com que o preço do banho em gatos seja proporcionalmente maior do que em cachorros. Em termos econômicos, haveria que se perguntar se o preço não se torna uma falta de estímulo ao proprietário. Se um animal jamais ou raramente é banhado na forma humana, ou seja, com água e sabão, ele pode ser considerado limpo? Como não se trata de materialidade, a questão não é, certamente, a limpeza física, mas a interpretação do hábito natural da espécie como um correlativo de um hábito humano (embora não somente humano): ILHA volume 12 - número 2

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tomar banho. Assim, enquanto os cães têm que ser banhados por humanos, os gatos banham-se a si mesmos, o que é um primeiro indicativo da noção de que são independentes. Quanto aos excrementos, os donos de cães devem recolhê-los das ruas e calçadas quando levam seus cães “para passear”, uma metáfora comumente usada no lugar de “excretar”. Os gatos, por outro lado, enterram seus excrementos. Quando o animal não tem acesso a terra, há um substituto industrializado, até onde pude verificar amplamente disponível nos pet shops e supermercados, chamado “areia sanitária”. A substância granulada é disponibilizada em uma caixa para o animal, que, novamente por hábito inato, a utiliza para depositar seus excrementos. A areia sanitária absorve a urina e o gato cobre, sozinho, a urina e as fezes com a areia. Esses hábitos são, eu sugeriria, interpretados como indicativos da limpeza do gato e de sua independência. Além disso, na qualidade de caçador de ratos, conforme já indicado nesta obra, o gato se torna simbolicamente um purificador do ambiente, afastando um vetor de doenças. Afinal, um animal que toma banho, produz uma espécie de fossa e afasta ratos só poderia ser considerado limpo. Outro aspecto que pode ser analisado acerca das representações contemporâneas sobre o gato no país é a ideia de que ele é um ser independente. Como afirmam Saito et al. (2002, p. 125), ao mesmo tempo, por suas características que foram relacionadas com azar e doenças, muitas pessoas os vêem como uma espécie de ameaça; outros, devido à independência do gato que está entre o limiar de animal selvagem e doméstico, o vêem como uma espécie arrogante e prepotente.

A passagem acima indica representações acerca do gato na sociedade brasileira. Como desenvolvido ao longo deste ensaio, o gato aparece mais uma vez como ser liminar (Turner, 1974), anômalo ou ambíguo (Leach, 1983), na medida em que não pertence nem à esfera selvagem nem à doméstica, apresenta poderes mágicos (azar) e pode provocar doenças. Se Thomas (1988) afirma que o gato é introduzido nas residências inglesas como uma espécie de agente sanitáILHA volume 12 - número 2

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rio que combate ratos, portanto doenças, hoje parece que essa função perdeu vigor e o cientificismo vigente tem condenado os felinos como vetores de doenças, um papel coerentemente relacionado por Saito et al. (2002) na passagem acima à má sorte. Além de vetor de raiva (Genaro, 2010) e toxoplasmose (Saito et al., 2002), o gato seria causador de asma e alergias (Hyams, 1972). A afirmação de independência dos gatos, como é frequente no senso comum, é sustentada por argumentos distintos, factuais ou imaginários: caça e se alimenta sozinho (selvagem), se limpa sozinho, sai da residência e retorna sozinho, permanece sozinho dentro da residência (doméstico). Todas as ações elencadas indicam, propositalmente, que o gato não depende de humanos para sobreviver, não obstante, a medicina veterinária aponta como esse grau de (in)dependência é relativo, posto que é determinado pelo tipo de relação que o animal mantém com os humanos. Conforme Genaro (2010, p. 187-188), O grau de dependência (dos humanos) que o gato apresenta pode variar amplamente e, nesse aspecto, observa-se importante detalhe a ser considerado, que são as populações ferais, muito comuns entre gatos. Um gato feral pode ser definido de várias maneiras, mas fundamentalmente essa condição de ser feral, ou não, dependerá de sua relação com a população humana. Sua dependência, especialmente para alimento e abrigo, pode ser graduada, concebendo-se a partir de grande dependência (como, por exemplo, um gato mantido num apartamento, que dependerá de seu proprietário para toda e qualquer necessidade) até um gato que nasceu e se reproduz livremente numa ilha ou floresta, totalmente afastado do contato humano (exemplificado o animal feral típico, stricto sensu), e dentre esses dois extremos há ampla gama de gradações.

Não se está, portanto, no plano da factualidade quando se afirma a independência dos gatos, mas no plano das representações. Eu gostaria de sugerir que a ideia de que o gato é um animal independente – forjada a partir da interpretação de alguns de seus modos, mas, sobretudo, na forma como os humanos se relacionam com eles e na comparação com outros animais, especialmente o cão – ILHA volume 12 - número 2

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contribui para o abandono de gatos nas ruas, que formam colônias urbanas tão comuns e invisíveis aos transeuntes que parecem ser “um elemento ‘natural’ das ruas”, como afirma Genaro (2010, p. 188). A questão da (in)dependência do gato é interessante na medida em que ela toca no tipo de relação entre natureza e cultura que uma sociedade imagina manter. Como aponta Ritvo (1987), a emergência da ciência parece criar um paradigma de dominação da natureza. Nesse sentido, a popularização dos animais de estimação é equacionada pela autora com uma nova organização social. A dominação da natureza é expressa de diversas formas e a criação de novas raças de cães, expostas e premiadas em concursos criados exclusivamente para essa finalidade, é um exemplo disso. Outra forma de dominação da natureza é criar um animal totalmente dependente de humanos, como é o caso dos animais de estimação que vivem em casas e apartamentos, dependentes de seus donos para ter acesso à alimentação, à rua, à água, entre outros. Gostaria de sugerir, portanto, que ver o gato como dependente é colocar-se no paradigma cientificista de supremacia humana sobre a natureza, mas também é vê-lo como um animal de estimação nas séries analíticas descritas por Leach (1983), conforme elencadas anteriormente, em que o animal está mais próximo do humano. Ao contrário, ver o gato como independente é colocá-lo mais próximo do selvagem. Quando se diz que o gato não tem afeto pelo dono, mas pela casa, é também um aspecto selvagem do gato que é enfocado, salientando-se uma percepção de que ele não depende de humanos. A relação entre gato e traição, conforme apontada por DaMatta e Soárez (1999), parece corroborar essa independência que é, no mais, uma incapacidade de controlar o animal. É necessário, entretanto, se perguntar por que a pretensa independência do gato é correlacionada por algumas pessoas, conforme citação anterior de Saito et al. (2002), com arrogância e prepotência: possivelmente, porque demonstra a incapacidade de controle total da natureza pelo homem.

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Considerações finais No presente ensaio tentou-se efetuar uma espécie de síntese dos aspectos simbólicos relacionados ao gato encontrados na parca literatura historiográfica e antropológica que menciona especificamente esse animal. Amparado em tal material, o trabalho buscou apresentar análises nas quais o gato figura como animal ambíguo, portanto anômalo. Essa ambiguidade, lida à luz da teoria leachiana, permite explicar por que o animal foi associado a práticas mágicas e transformado em animal sacrificial em ritos europeus. Em ambos os casos, a teoria leachiana permite perceber nos animais tabu e nos animais de estimação uma condição anômala e ambígua. Outro aspecto apontado neste trabalho foi a correlação entre o gato e o feminino. Tanto na França (Darnton, 1986) quanto na Inglaterra (Leach, 1983), o gato é associado ao feminino e à sexualidade. No Brasil, a associação não é direta, mas DaMatta e Soárez (1999) apontam alguns aspectos do gato que podem ser relacionados ao feminino. Animal diabólico relacionado a feiticeiras e à lua, especialmente quando preto como a terra, o gato aparece constantemente cercado de símbolos femininos. No Brasil, DaMatta e Soárez (1999) indicam como nossa sociedade faz uma leitura do gato como animal de espaços liminares (Turner, 1974). Busquei, na medida do possível, apresentar outras representações contemporâneas relacionadas ao gato na sociedade brasileira: um animal que é visto como limpo e independente. Essas qualidades atribuídas aos gatos fazem parte do imaginário nacional sobre eles e corroboram as análises simbólicas sustentadas por Leach (1983) e Douglas (1976). Ora puro, ora impuro; ora doméstico, ora selvagem; ora dependente, ora independente; ora mágico, ora bode expiatório; o gato parece guardar uma posição anômala para além de ser atualmente, sobretudo, um animal de estimação. Ainda assim, o caminho percorrido até este posto não o exclui, atualmente, dos maus-tratos que pareciam tão característicos do universo medieval, sob uma ótica dos direitos dos animais. Se não se queimam mais gatos em procissões religiosas, ainda se os matam em colônias de animais abandonados nas grandes cidades (Saito et al., ILHA volume 12 - número 2

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2002). Esse não foi considerado um aspecto ritual da morte de gatos no presente trabalho, mas acredito que mereça considerações futuras. Referências APROBATO FILHO, Nélson. 2006. O couro e o aço – sob a mira do moderno: a ‘aventura’ dos animais pelos ‘jardins’ da Paulicéia, final do século XIX/início do século XX. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: ______ (Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 159-166. ______. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003. COHEN, Esther. Animals in Medieval Percpetions: The Image of the Ubiquitous Other. In: MANNING, Aubrey; SERPELL, James. Animals and Human Society: Changing Perspectives. London: Routledge, 1994. p. 59-80. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DAMATTA, Roberto; SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho. Rio de janeiro: Rocco, 1999. DARNTON, Robert. Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na Rua Saint-Séverin. In: ______. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 103-139. DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976. GEERTZ, Clifford. Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa. In: ______. A interpretação das culturas. Rio de janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989. GENARO, Gelson. Gato doméstico: futuro desafio para controle da raiva em áreas urbanas? Pesq. Vet. Bras., v. 30, n. 2, p. 186-189, fev. 2010. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos Afro-Asiáticos, n. 38, dez. 2000. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2011. HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 141-227. HYAMS, Edward. Animals in the Service of Man: 10.000 Years of Domestication. London: J. M. Dent & Sons Ltda., 1972. ILHA volume 12 - número 2

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Alguns aspectos simbólicos acerca do gato

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Métaphysiques cannibales: lignes d’anthropologie post-structurale. Tradução de Oiara Bonilla. Paris: Presses Universitaire de France, 2009. p. 203.

Rafael Rocha Pansica Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]

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étaphysiques cannibales: lignes d’anthropologie post-structurale é o livro mais recente do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, publicado pela Presses Universitaire de France em 2009, com tradução para o francês de Oiara Bonilla. A proposta central do livro, sugerida já no título, consiste em repensar o empreendimento antropológico a partir das etnoantropologias praticadas pelos povos ameríndios ou, dito de outro modo, a partir das filosofias da relação implicadas em suas metafísicas canibais. Para o autor, as teorias antropológicas devem se constituir como versões das teorias nativas. O que está sendo proposto aqui é o estabelecimento de certa relação de continuidade entre os discursos do nativo e do antropólogo.1 Mas que relação é essa? A proposta de Viveiros de Castro se fundamenta sobre o pressuposto de que os termos desse encontro intersubjetivo estão implicados na relação que estabelecem: implicação assimétrica, visto que os termos são diferentes e irredutíveis entre si. O ponto é que essa implicação significa uma desterritorialização gradual de cada um dos termos envolvidos e, consequentemente, a transformação deles: longe de uma identificação mútua (pois os termos são irredutíveis), a transformação dos termos se dá como um processo de autodiferenciação. É por isso que, para o autor, o objetivo do antropólogo não deveria ser o de se tornar um nativo, mas o de diferenciar seu próprio pensamento, multiplicando-o das questões ILHA volume 12 - número 2

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postas pelas filosofias e pelas metafísicas nativas. Entrevê-se, aqui, como um dos corolários dessa proposta leva adiante o imperativo político-metodológico do reconhecimento do nativo como um sujeito: aqui se trata, mais ainda, de reconhecer os nativos como criadores, uma espécie bem-vinda de teóricos ou filósofos a levantar questões que interessam ao antropólogo. Cabe observar, no entanto, que as questões nativas se mostram muitas vezes completamente diferentes das que o antropólogo formula: as coisas se passam desse modo porque o campo de ação e relação do antropólogo não se manifesta como um uni-verso: ao contrário, o ponto de vista do antropólogo se constitui no espaço de implicação das diferentes ontologias e relação; no espaço da “síntese disjuntiva” (sensu Deleuze) dos discursos do antropólogo e do nativo. Dados os pressupostos, resta pensar a prática antropológica. Como na relação com outrem o antropólogo deve multiplicar seu próprio pensamento e estabelecer uma autodiferenciação conceitual? Como propor uma teoria que seja uma versão das teorias do povo com quem convive? Viveiros de Castro propõe a autodiferenciação como uma relação de sentido fundamentada nas equivocações do encontro intersubjetivo. Por equivocação o autor se refere, aqui, a um acordo conceitual aparente estabelecido nas relações de sentido entre os discursos do antropólogo e do nativo – acordo aparente, porque oculta um mal-entendido mais fundamental (claro está que nem todo acordo conceitual entre os discursos é aparente, mas muitos são...). Dito isso, trata-se de saber perceber as diferenças operantes em um acordo conceitual que imaginávamos ter estabelecido com o discurso de outrem: tarefa que nos leva a restabelecer, em novos termos, a relação de sentido com o discurso do nativo, reformulando nossas questões. Trata-se, portanto, de um passo adiante na pesquisa, o que equivale a afirmar que as equivocações não se constituem como obstáculos. Ao contrário, é preciso saber estabelecê-las para então seguir investigando a partir delas. Mas como estabelecê-las? Aplicando nossos conceitos na economia teórica nativa, observando seu comportamento para anotar seus pontos cegos e destacar aquilo que eles não puderam entender apropriadamente. Eis a habilidade ILHA volume 12 - número 2

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do antropólogo: saber perceber a alteridade referencial naqueles acordos conceituais aparentes, estabelecidos na relação entre os discursos. Assim, por exemplo, ao pesquisar e descrever o perspectivismo ameríndio como um regime ontológico interperspectivo dado nas relações sociais entre as diferentes espécies (os homens, os porcos, as onças...), Viveiros de Castro percebeu que o conceito nativo de ponto de vista não era o mesmo conceito de ponto de vista que compunha seu instrumental analítico: a homonímia dos conceitos não garantiu a eficácia analítica de seu aparato conceitual, de modo que foi preciso, para o autor, modificá-lo a partir da teoria implicada nas concepções nativas sobre o que é um sujeito, um ponto de vista, uma apreensão etc. Em suma: esse processo de investigação se dá, justamente, como um processo de autodiferenciação conceitual ou de multiplicação do pensamento do antropólogo. Nesse ponto do argumento é possível retomar a proposta anunciada nas primeiras linhas desta resenha. Esse fazer antropológico proposto por Viveiros de Castro tem, como inspiração direta, a filosofia da relação implicada nas metafísicas canibais ameríndias. Senão, vejamos. A sugestão do exercício antropológico como sendo o da multiplicação do pensamento do antropólogo, a partir do estabelecimento de uma experiência conceitual com o pensamento nativo, remete, imediatamente, ao trabalho do autor sobre a dinâmica relacional que descreve o canto cerimonial do moropïn’ã araweté, que entoa suas canções a partir do ponto de vista do inimigo (Viveiros de Castro, 2002): a imanência do outro é, de modo geral, o objetivo envolvido no canibalismo tupi, tomado, pelo autor, como modo de subjetivação. Da mesma maneira, a proposta da equivocação como um método de tradução antropológico me parece, de modo geral, inspirado no xamanismo amazônico e, em particular, na assimetria de perceptos que descrevem os encontros intersubjetivos do perspectivismo ameríndio. Enfim, a teoria proposta neste livro se constitui como uma versão das teorias ameríndias, de modo que o autor não está apenas a propor outro fazer antropológico (ou, melhor dizendo, um “fazer antropológico outro”), ele também o exemplifica e o pratica neste livro. ILHA volume 12 - número 2

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Mas há uma segunda tese no Métaphysiques cannibales, a de reconhecer que essa nova proposta não é exatamente inédita. Para Viveiros de Castro, ela se constitui também como o desenvolvimento de certos pontos da obra de Lévi-Strauss, autor que certa vez descreveu a antropologia como “a ciência social do observado”: uma ciência que adota o ponto de vista do “sistema de referência fundado na experiência etnográfica” (Lévi-Strauss, 1967, p. 404). É nesse sentido que Viveiros de Castro qualifica sua proposta – e a de outros antropólogos como Roy Wagner, Bruno Latour e Marilyn Strathern – como uma proposta pós-estruturalista, procurando constituí-la como desenvolvimento ou problematização positiva de certos insights lévistraussianos: em especial aqueles trabalhados nas Mitológicas (a tetralogia, propriamente, e os três livros que a acompanham: A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince), como, por exemplo, o da dinâmica transformacional de um “dualismo em perpétuo desequilíbrio”. Por fim, o pós-estruturalismo da proposta do Métaphysiques cannibales se constitui também em rizoma com a obra de G. Deleuze e F. Guattari, autores que, segundo Viveiros de Castro, souberam extrair do estruturalismo as intuições mais originais sobre a filosofia da relação e da diferença implicada nesse movimento, para então seguir por outros caminhos. A leitura do trabalho deleuzeguattariano como pós-estruturalista constitui-se como tese que o autor vem defendendo com o filósofo Patrice Maniglier: essa tese se sustenta, entre outros pontos, na observação de que a linguagem analítica deleuze-guattariana também passa pelo vocabulário binário do estruturalismo, embora seja desenvolvido aqui em aliança com o que está envolvido nos processos semióticos da metonímia, da indicialidade e da literalidade (recusando, assim, a metáfora, tão estruturalista). De todo modo, a obra de Deleuze e Guattari é inspiração direta do Métaphysiques cannibales: em primeiro lugar, ao propor repensar a antropologia, parece-me que o empreendimento deste livro remete àquele realizado em O que é filosofia? (Deleuze e Guattari, 1991), mas, mais importante, as linhas para uma antropologia pósestrutural ou antinarcísica se tecem através do uso de conceitos

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deleuze-guattarianos como multiplicidade, devir, síntese disjuntiva, desterritorialização, implicação etc. É por isso tudo que comemoramos a chegada de Métaphysiques cannibales e de sua antropologia política que nos parece, verdadeiramente, um instrumento insurreicionário, ao propor dispor os discursos nativos em posição de transformar os discursos antropológicos e, assim, o que é mais importante, ajudar no processo de autodeterminação conceitual (ou seja, ontológica) dos povos do planeta. Nota 1

Uma relação de continuidade e de equivalência epistemológica, pois se trata da interação entre dois discursos, duas teorias.

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ROCHIETTI, Ana María; TAMAGNINI, Marcela (Comps.). Arqueología de la frontera: estudios sobre los campos del sur cordobés. Rio Cuarto: Editorial de la Universidad Nacional de Río Cuarto, 2007. 316 p. Con fotografías, mapas y croquis.

Horacio Miguel Hernán Zapata Universidad Nacional de Rosario, Argentina E-mail: [email protected]

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na de las preocupaciones centrales de las diversas investigaciones que se dieron con la renovación historiográfica argentina a partir de la década de 1980 fue la necesidad de analizar la construcción social, política y territorial del espacio que se definió como “nacional” a lo largo del siglo XIX y principios del XX. Hoy sabemos que dicho espacio no sólo incluía a varias regiones atravesadas por múltiples conexiones a partir de sus circuitos de intercambio y sistemas productivos. También es posible aseverar que se trataba de un espacio que supuso el desarrollo de intensos conflictos por la ocupación y control de áreas estratégicas por parte de múltiples agentes de la realidad social y política del momento. En el cuadro de las líneas de investigación que permitieron avanzar en el sentido reseñado, se encuentran los denominados “estudios de frontera”. Una muy rápida revisión de los estudios de fronteras en el campo de las ciencias sociales nos posibilitaría observar que los avances han sido considerables tanto en lo que hace al aspecto metodológico como al temático. El principal aporte ha sido, sin lugar a dudas, la reformulación del concepto de frontera como una línea que separaba dos mundos en conflicto, proveniente de un enfoque político-histórico y militar por mucho tiempo dominante en las posiciones nacionalistas. Tal ILHA volume 12 - número 2

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enfoque fue reemplazado por otra perspectiva más amplia y flexible que, conjugando los planteos de la historia, la antropología, la sociología y de diferentes ramas de la geografía, interpreta a la frontera como un área donde se producen fenómenos múltiples y dinámicos de interrelaciones entre sociedades distintas, pero siempre en contacto – cualquiera sea la modalidad de vinculación existente (intercambios pacíficos, relaciones desiguales y/o conflictos) – y en el marco de contextos históricos y culturales específicos diseñados por la capacidad de agencia y control que se ejerce en los márgenes territoriales. En efecto, se comenzó a matizar el énfasis puesto hasta el momento en la conflictividad interétnica y a mostrar la existencia de períodos de relativa tranquilidad que permitieron la vinculación entre sociedades indígenas e hispanocriollas a través del establecimiento de redes comerciales, reducciones y prácticas evangelizadoras de las distintas órdenes, acuerdos diplomáticos interétnicos y tratados de paz etc. Precisamente, los artículos reunidos en la compilación Arqueología de la frontera: estudios sobre los campos del sur cordobés dan cuenta de esas innumerables situaciones, actores y prácticas que moldearon aquel mundo fronterizo que escapaba a los férreos parámetros delimitados por las agencias del Estado Nacional. Deconstruir tales límites arbitrarios y, mediante ello, mostrar el tránsito cotidiano de personas y elementos culturales de un lado a otro de la hipotética línea de separación es una de las claves que transita las páginas de la obra. Además, cabe destacar que los artículos que integran la compilación –algunos de ellos dados a conocer previamente a través de versiones preliminares en encuentros científicos y publicaciones especializadas – son el producto de un trabajo común que desarrollan profesionales docentes e investigadores nucleados en el Laboratorio de Arqueología y Etnohistoria de la Universidad Nacional de Río Cuarto. En este sentido, la recuperación de aquello producido en la continuidad de proyectos personales y colectivos de investigación, en los debates sostenidos con otros colegas en seminarios, congresos y jornadas y en las aulas con los

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estudiantes, es otra de las claves que permiten entender su transformación en los seis capítulos de este libro. En el primer capítulo, Marcela Tamagnini presenta un minucioso estudio donde examina las características del conflicto interétnico que se desarrolló en la década de 1860 en la frontera sur de Córdoba. De acuerdo con la autora, dicho conflicto estuvo permeado tanto por las acciones desplegadas para concretar la unificación del Estado argentino como por las resistencias que este proyecto generó, en especial aquellas protagonizadas por las montoneras provinciales lideradas por el Chacho Peñaloza en 1862 y 1863 y por Felipe Varela en 1867. Estos levantamientos trastocaron el complejo panorama político y social regional, sumando un componente más al largo conflicto interétnico que se expresó – conforme las coyunturas lo posibilitaban – a través de la acción combinada de las montoneras provinciales con las invasiones indígenas ranqueles que convulsionaron el espacio fronterizo del sur cordobés a partir de 1861. Deteniéndose en este tema poco explorado por la historiografía argentina, Tamagnini observa que el tránsito de exiliados políticos, prófugos de la ley y desertores de las milicias entre la frontera y las tolderías, el intercambio de información, los estallidos simultáneos de ambas fuerzas e incluso la incorporación de indígenas en las montoneras son algunos de los datos que nos permiten ratificar – como lo han hecho otros estudios – el complejo haz de relaciones que vinculaba al mundo indígena con la sociedad hispanocriolla y viceversa a través de la fluctuante línea que marcaba, de manera no muy precisa, los espacios formales que cada uno de ellos controlaba. En tanto que la autora no dicotomiza entre montoneras federales y malones indígenas, sino que las une y suma conceptualmente para brindarnos una imagen histórica más heterogénea y compleja, pone de manifiesto las diversas dinámicas que resultaron de un mismo fenómeno histórico: las oposiciones al orden mitrista. Ernesto Olmedo se ocupa de la frontera militar en el segundo capítulo. La estructura defensiva, que comprendía diferentes tipos de asentamiento como fuertes, fortines, postas y campamentos, estaba basada en dos principios básicos: uno estático, que conducía a ILHA volume 12 - número 2

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establecer una línea de fortificación, imaginaria y endeble, que procuraba demarcar las tierras apropiadas, las incipientes estancias y/o campos de rodeo de ganado y los caminos; el otro temporal, puesto que la primera de estas líneas, denominada “del río Cuarto”, permaneció por más de ochenta años asentada sobre dicho accidente natural. El autor efectúa un repaso histórico sobre la lenta constitución de esa línea militar y sus diferentes movimientos – primero la del río Cuarto (1784), luego la del Quinto (1869), la “retaguardia entre ambas” (1871) y la correspondiente al Proyecto del Ministro Alsina (1876) –, describiendo tanto las características como las funciones de los diferentes asentamientos militares, para finalmente asentar que la táctica en la cual se asentaron los dos principios mencionados fue la permanente movilización de la tropa. En función de esta premisa, Olmedo considera las distintas fuerzas militares involucradas en la frontera – ejército y milicias – los mecanismos de reclutamiento y las políticas proyectadas por las autoridades nacionales y locales, tanto voluntarias como compulsivas, para remediar la constante falta de fuerzas militares. De esta manera, el fuerte aparece como un locus en el que se sobrellevaban los intentos del Estado Central de subordinar a la población rural, imponiéndole un orden político y social bajo la forma de un servicio militar obligatorio en las milicias o mediante la persecución y reclutamiento de vagos, malentretenidos y ladrones sancionados por los “reglamentos de campaña” incitados por los grupos propietarios de la región. Pero también se asoma el retrato del fuerte como una arena desde donde fue viable para las poblaciones de la frontera formular operaciones de resistencia frente al ordenamiento social y económico que el Estado en formación pretendía imponer. Algunos de esos focos se manifestaron solamente de manera subrepticia, como la apelación al recurso de la deserción individual o colectiva, mientras que otras estrategias adquirieron más notoriedad, desenlazándose en último caso en historias de abiertas sublevaciones y/o levantamientos armados. Con el tercer capítulo, Graciana Pérez Zavala contribuye con una investigación cuyo objetivo principal es explicar las razones por ILHA volume 12 - número 2

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las cuales el Gobierno Nacional logró conducir los movimientos de los ranqueles en la década de 1870. La historiadora plantea que en este período la administración central arrinconó territorial y políticamente a los indígenas mediante una política que conllevó, simultáneamente, la puesta en práctica de ofensivas bélicas, proyectos colonizadores y pactos diplomáticos. En efecto, los avances paulatinos de la línea militar hacia el sur, las “corridas” y campañas punitivas sobre los toldos principales o más cercanos a la frontera, la concreción de tratados de paz con determinadas parcialidades indígenas y la instalación de reducciones de ranqueles en los fuertes del río Quinto fueron algunas de las estrategias que posibilitaron, por un lado, asegurar el repliegue de los indígenas y la neutralización de sus malones sobre la frontera en el corte plazo; y, por el otro, concretar materialmente el plan de avance territorial en el largo plazo. No obstante, la mirada vertida por la autora no registra un camino interpretativo lineal, en términos de acciones y reacciones, o causas y consecuencias inmediatas. Muy por el contrario, devela con astucia e inteligencia la complicada trama de las relaciones intraétnicas e interétnicas que tiñen los vínculos, alianzas y enfrentamientos así como los factores que incidieron en sus trayectorias. De este modo Pérez Zavala reconstruye el camino que va desde el acercamiento entre el gobierno de la Confederación y los grupos ranqueles hacia la década de 1850, momento en el cual los indígenas explotaron al máximo su capacidad de negociación en un escenario salpicado por las disputas, tensiones y desconfianzas entre el Estado de Buenos Aires y la Confederación, pasando por la coyuntura histórica abierta por la batalla de Pavón y el correspondiente recambio en la correlación de fuerzas a nivel nacional. Es por entonces cuando emerge esa suerte de alianza entre los ranqueles y las montoneras provinciales en oposición al gobierno de Mitre analizado previamente por Tamagnini, para finalizar en el quiebre del equilibrio de poder entre los ranqueles y el Gobierno Central en el ocaso de la década de 1860, cuando ya la dirigencia argentina ha resuelto gran parte de sus frentes de conflicto y ha podido avanzar territorialmente sobre la frontera sur. En ese marco, el Estado Central impone a las tribus condiciones de paz ILHA volume 12 - número 2

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unilaterales, recortando sus márgenes de negociación política y obligando a realizar reacomodamientos en el interior del campo indígena, alterando de esa forma el tablero de las alianzas grupales y étnicas, modificaciones que terminan definiendo el consecuente arrinconamiento político. Finalmente, a partir de una investigación sustentada en la arqueología del Fuerte de las Achiras – fundado en 1832 y reconstruido tres veces a lo largo de 34 años hasta su desactivación en 1869 – y la Posta militar de Chaján – que data del año 1871 –, Flavio Ribero y Ana María Rochietti procuran demostrar, tanto en los capítulos cuatro y cinco como en el epílogo del libro, que los vestigios materiales de ese mundo hacen posible, en primer lugar, la construcción de una Arqueología de la Frontera de carácter social y de una Antropología del Desierto; y, en segundo lugar, su descubrimiento relativamente tardío viene a completar la interpretación que sucesivas generaciones de historiadores han esbozado desde el momento mismo en que una y otro, la frontera y el desierto, en tanto constructos sociales e intelectuales de una etapa, dejaron de existir. Respecto del primer aspecto, Rochietti remarca que los abordajes arqueológicos tradicionales privilegiaron el estudio de pasados más remotos, relegando así a la arqueología de la frontera a un espacio marginal en la agenda investigativa, situación que se fue modificando en los últimos años a partir de los avances empíricos y conceptuales antropológicos e históricos sobre la temática. La autora pasa revista a las primeras pesquisas que se dieron en el sentido reseñado, dando cuenta de la heterogeneidad de los problemas, enfoques y metodologías, un ejercicio en el que además puede leerse su propio posicionamiento conceptual y epistemológico en el marco de la discusión general sobre la especificidad y características de la Arqueología Histórica. En lo subsiguiente, Rochietti concentra su estudio en la arqueología del fuerte de Achiras y del fortín de Chaján, aportando para estos dos sitios una pormenorizada descripción y contextualización a partir de los registros materiales que se conjugan con la permanente consulta de fuentes documentales. A su turno, Ribero indaga las razones que llevaron a avanzar a los pobladores rurales más allá de los límites ILHA volume 12 - número 2

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demarcados por la línea de la frontera del río Cuarto desde la época colonial, cuando Chaján aparece mencionado tempranamente como un paraje que más tarde se constituiría en una Estancia, luego en un vecindario y finalmente en una Posta Militar. En cada momento, el autor reconstruye las particularidades del poblamiento y la decisiva influencia que tuvieron sobre ese paraje tanto las oscilaciones de la conflictividad interétnica como las modalidades de la explotación rural y las disputas jurisdiccionales entre las provincias de San Luis y Córdoba por tal espacio. En un plano de reflexión más general, nuestro breve racconto de lo que el futuro lector podrá encontrar en las páginas de Arqueología de la frontera debe considerarse, huelga decirlo, como una síntesis de los capítulos que no le hace justicia al contenido de un libro rico en datos pero por sobre todo en análisis e interpretación. Es así que, en vistas de la escasez de trabajos previos sobre el tema y la región, la obra se presenta como un verdadero libro de cabecera, ya que a la incursión conjunta que hacen historiadores y arqueólogos se agrega la elección más que oportuna de abordar, en ciertos casos, agentes y problemáticas casi ignoradas por la historiografía cordobesa, dejando intencionalmente a un lado otras más trabajadas por el campo académico regional. Tenemos aquí, pues, un análisis minucioso y concreto de esos fenómenos tan fatigados por la literatura antropológica (las relaciones interétnicas) como por la historia nacional (los procesos de construcción estatal y sus resistencias), acompañado por excelentes mapas, croquis e imágenes que no sólo ayudan al lector a ubicarse constantemente, sino que lo distienden e incluso alivian la minuciosa estrategia interpretativa, de gran sensibilidad conceptual y descriptiva, puesta en juego en cada capítulo. Pero también contamos con un excelente material que ofrece una visión sugestiva y crítica acerca de la labor que compete a las ciencias sociales hoy que – a juzgar por los tiempos que corren – mucho tienen para decir y hacer todavía en lo que respecta a los distintos contextos y situaciones de frontera, donde subyace una cultura distinta a la que impera al interior de cada uno de los países. Una cultura resultado de la hibridación de costumbres, tradiciones, creencias y valores que, en ILHA volume 12 - número 2

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su mismo tejido, genera desigualdades y rechazos, tanto entre los de adentro como los de afuera. Por todo lo antedicho, es de esperar que su aparición sirva de disparador para nuevos estudios afines a la arqueología histórica que continúen o complementen al que hoy pone a disposición de la comunidad científica y del público en general este equipo interdisciplinario de la Universidad Nacional de Río Cuarto. Recebido em: 15/09/2011 Aceite em: 31/10/2011

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FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice (Orgs.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Letras Livres/Ed. Universidade de Brasília, 2010. 248 p.

Rui Massato Harayama Universidade Federal de Minas Gerais E-mail: [email protected]

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publicação desta coletânea em meados de 2010 poderia passar despercebida entre outras tantas que foram publicadas no mesmo período, atestando o vigor da área de antropologia assim como a multiplicação das especializações da disciplina em linhas de pesquisa e de suas respectivas publicações. Entretanto, a coletânea Ética e regulamentação na pesquisa antropológica trata de um tema de interesse de todos os antropólogos brasileiros e reatualiza o debate sobre a ética em pesquisa antropológica, cuja última aparição em forma de coletânea se deu em 2004, com a publicação de Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Com isso, não estamos insinuando que o debate sobre ética em antropologia esteja limitado a essas duas obras, a existência da Comissão de Ética dentro da Associação Brasileira de Antropologia é um referencial que pode ser lembrado para atestar que o tema sempre esteve presente no debate brasileiro. Entretanto, uma particularidade presente na obra de 2004 se acentua nesta recente coletânea: a presença de normatizações da investigação antropológica através dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Se em 2004 esse tema aparecia como uma questão específica da antropologia realizada em interface com a medicina institucionaliza, o quadro em 2010 é diferente e o Sistema Brasileiro de Regulação de Pesquisas envolvendo Seres Humanos (Sistema CEP-Conep) começa a estender sua ação para qualquer forma de pesquisa institucionalizada. Esse novo ILHA volume 12 - número 2

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quadro contextual é o ponto central do apanhado desta coletânea, tanto positivo quanto negativo. E nos interessa observar o rendimento dessa especificidade para o debate antropológico brasileiro sobre a ética em pesquisa. A obra é apresentada de forma a espelhar o seminário ocorrido em novembro de 2009 na Universidade de Brasília. Dessa forma, a sua distribuição em três partes, cada qual seguida por comentários que ressaltam pontos do conteúdo de cada apresentação, tenta concentrar questões com o intuito de pautar o diálogo com as regulações vigentes no Brasil, um movimento definido pelas organizadoras do livro como sendo um sinal verde para o diálogo com as arenas oficiais de regulação da pesquisa com as quais antropólogos lidam diretamente. Não parece necessário escrever um comentário sobre cada capítulo, uma vez que a abertura realizada pelas organizadoras consegue sumarizar as questões centrais da obra, que se encontra disponível no endereço eletrônico . Entretanto, em grande parte das reflexões, a ética em pesquisa em antropologia é desenvolvida e pensada tendo como modelo negativo o Sistema CEP-Conep, com suas regulamentações, normatizações e procedimentos padrões. Na economia dos argumentos dos antropólogos encontrados nesta obra, é contra o Sistema CEPConep que se desenvolve a especificidade do trabalho antropológico. Luís Roberto Cardoso de Oliveira, cujo artigo abre a coletânea, reitera o argumento já desenvolvido em obra anterior sobre o tema de que antropólogos realizam pesquisa com seres humanos e não em seres humanos (p. 30). Esse é um artifício poderoso utilizado para desenvolver uma série de pares opositores entre a pesquisa na antropologia e nas ciências biomédicas. Dessa forma, a pesquisa com seres humanos partiria do pressuposto de uma interlocução e do compromisso com o grupo pesquisado, que vai além da pesquisa de campo (p. 30), em contraste com os pressupostos das pesquisas biomédicas, que partiriam de um pressuposto de intervenção e cujos compromissos estariam limitados ao momento da pesquisa.

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É seguindo esse tipo de argumento que Fernanda Vieira apresenta suas desventuras ao lidar com o CEP de um hospital público que impossibilitou a realização de sua pesquisa dentro da instituição hospitalar. O texto é valioso por apresentar um elemento raramente tornado público: a transcrição da árida comunicação entre secretaria executiva de um CEP e a pesquisadora, que questionava a competência científica do comitê para julgar a qualidade metodológica e teórica da sua pesquisa antropológica. A reflexão final da autora aponta para um argumento que se repete em outras literaturas críticas sobre o sistema: o modelo brasileiro é burocrático e o seu desempenho é inferior a outros encontrados no mundo, no caso de Vieira, o modelo estadunidense. É nessa mesma esteira de críticas ao modelo de regulação da pesquisa que Luciane Ouriques Ferreira expõe a problemática do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na pesquisa em ciências humanas e Raquel Lima tece reflexões sobre as relações de poder entre pesquisador e CEP replicadas na relação de poder das ciências biomédicas sobre as ciências humanas. A questão da assimetria das ciências humanas em relação às biomédicas é recorrente quando se discorre sobre a regulação da ética em pesquisa, seja no Brasil, seja alhures. Esse parece um consenso para diferentes autores que caracterizam esse movimento como a instauração de um paradigma biomédico da ética em pesquisa por meio de documentos reguladores e modelos de controle e avaliação. O histórico da ética em pesquisa apresentado por Débora Diniz é essencial para compreender o cerne da questão e das complicações encontradas ao transportar essa problemática ao campo das ciências humanas: os diferentes entendimentos sobre o que seja e para que serve a pesquisa científica. Diniz apresenta a experiência de coordenação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília CEP-IH/UnB, o primeiro exclusivo para as pesquisas em ciências humanas e creditado junto ao Conep (Conselho Nacional de Ética em Pesquisa). Em sua breve exposição, a autora apresenta um indicativo do que pode ser considerado um termo mediador com o Sistema CEP-Conep: a caracterização das pesquisas em ciências humanas como portadoras de um risco mínimo. ILHA volume 12 - número 2

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Ou seja, para implantar um modelo de revisão da ética em pesquisa em ciências humanas que conseguisse dialogar criticamente com o modelo brasileiro instituído é preciso manter a gramática do risco presente, ainda que em um patamar mínimo. É advogando essa especificidade que se torna possível questionar procedimentos considerados fundamentais a um projeto de pesquisa enviado a um CEP, mas que contrariam os pressupostos metodológicos de uma pesquisa em ciências humanas, como o roteiro de perguntas estruturado e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esse parece um ponto fundamental da caracterização da pesquisa dentro do Sistema CEP-Conep e que é ressaltado por Dirce Guilhem e Maria Rita Carvalho Garbi Novaes. As duas pesquisadoras que possuem graduação na área da saúde e pós-doutorado em Bioética partem de um ponto de vista diferente dos outros autores da coletânea e apontam para as semelhanças entre pesquisas biomédicas e sociais, sendo uma delas a variável riscos-benefícios. Ou seja, para além das especificidades do campo humanístico ou biomédico, para as autoras o risco é característico da pesquisa científica e não exclusivo da investigação associada a uma área específica do conhecimento. Em sua grande maioria, os artigos presentes nesta coletânea se preocupam em delinear fronteiras e associações do que seja a particularidade de cada área, demarcação a partir da qual se torna possível a diferenciação de uma ética da antropologia de uma da biomedicina. Entretanto, Cláudia Fonseca e Dora Porto parecem observar nas novas regulamentações da pesquisa no Brasil um momento reflexivo sobre a relação dos pesquisadores com as populações pesquisadas e indicam caminhos que explicam por que antropólogos deveriam se interessar pela regulação da pesquisa científica. Cláudia Fonseca tece sua reflexão a partir da contenda, em 2008, envolvendo, de um lado, neurocientistas interessados em mapear a ‘mente criminosa’ de menores infratores e, de outro, diversos setores da sociedade, incluindo cientistas sociais que acusavam as premissas eugenistas de tal pesquisa. Essa discussão coloca no centro do debate uma pergunta que parece percorrer o livro todo: quem ILHA volume 12 - número 2

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deve decidir o que é um bom fazer científico? No calor da contenda, o argumento utilizado pelos cientistas interessados em mapear a mente homicida era sumário: as críticas à pesquisa vinham de pessoas que desconheciam os avanços da ciência, leigos alheios às inovações da área que não deveriam opinar sobre o livre fazer científico. Para Fonseca, citando os estudos sociais da ciência, há uma grande quantidade de pesquisas que demonstram a imbricação entre técnica, política e ética, e, dessa forma, seria necessário investir em tecnologias do diálogo em vez de demarcar fronteiras científicas nas questões referentes à regulação da pesquisa (p. 61). Em outros termos, a inexistência de um livre fazer científico dissociado da política torna a arena de decisão sobre a pesquisa científica um interesse não somente de cientistas biomédicos ou humanos, mas da sociedade, seja de especialistas, seja de leigos. Essa visão compartilha diversos elementos com a reflexão apresentada por Dora Porto, que relata sua experiência de antropóloga na área da saúde e suas desventuras em submeter seus projetos ao CEP local. Entretanto, em vez de concluir sua reflexão demarcando diferenças entre o modelo antropológico da pesquisa e o modelo do Sistema CEP-Conep, Porto, assim como Fonseca, aponta para a necessidade de uma ampliação da inserção do antropólogo nessas arenas de decisão e deliberação sobre a ética científica. O interesse da autora é criar um quadro de atenção à atuação dos pesquisadores das ciências humanas na atual economia do conhecimento em que grandes financiadores buscam conhecimento mercantilizável a todo custo, sobretudo a indústria farmacêutica e os processos contemporâneos de medicalização da sociedade. Porto aponta para a necessidade de que antropólogos entrem efetivamente nos debates e nas questões suscitadas pelo Sistema CEPConep para aperfeiçoá-lo e, assim como Fonseca, questiona até que medida a distinção advogada por Cardoso e diversos antropólogos da diferença entre uma pesquisa em e pesquisas com seres humanos seria produtiva para refletir sobre o atual cenário da ética em pesquisa (p. 121). Como exposto acima, nos textos apresentados, a questão da ética em pesquisa antropológica surge, então, como uma resposta à ILHA volume 12 - número 2

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consolidação do Sistema CEP-Conep. Em sua grande maioria, os artigos parecem dialogar sobre a regulamentação da pesquisa quando essa se apresenta na interface da atividade acadêmica e na área da saúde. Destoando de todos os outros artigos, a reflexão apresentada pelo grupo de antropólogos inseridos no Ministério Público Federal parece colocar em perspectiva outras questões éticas referentes à atividade antropológica. O mote da discussão apresentada por Amorim, Alves e Schettino é a ausência da reflexão sobre as reais implicações do exercício da etnografia em contraste à exaltação da prática no plano do discurso da disciplina (p. 197). Os autores chamam a atenção para a consolidação da atuação de antropólogos na produção de laudos etnográficos periciais sem uma reflexão mais profunda sobre as implicações éticas e metodológicas de tal atividade, o que tem resultado na desqualificação do papel do antropólogo como um interlocutor efetivo com a arena jurídica: na caracterização do antropólogo como “aquele tipo que escreve, escreve e não diz nada” (p. 207). A exposição desses autores a partir da visão de antropólogos trabalhando no Ministério Público relembra outra faceta das implicações ‘éticas’ contemporâneas e uma especificidade no modo como essa especificidade se apresenta na reflexão acadêmica brasileira. Em nosso contexto nacional, parece latente uma separação entre questões éticas de âmbito acadêmico – pensadas como arenas externas de regulação – e questões éticas de âmbito profissional – pensadas como atividades de antropólogos fora da academia, questões imbricadas mas raramente postas em perspectiva na mesma reflexão. Laudos periciais, sistemas de avaliação da pós-graduação, procedimentos burocráticos requeridos por diferentes órgãos governamentais e Comitês de Ética em Pesquisa, talvez seja necessário aproximar reflexões entre esses diferentes campos nos quais a prática antropológica, seja ela descrita em termos de ética ou não, se depara com modelos externos de regulação. E talvez assim conseguíssemos tornar diferentes formas de regulamentações da prática antropológica em reais interlocutores de nossas pesquisas, como se propõem as autoras (p. 16). Recebido em: 28/09/2011 Aceite em: 31/10/2011 ILHA volume 12 - número 2

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COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores, 2011. 251 p.

Oscar Calavia Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]

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á no início dos anos 1980, nas bancas de jornal e nas telas de tevê brasileiras exibiam-se, ainda com certa inocência, as figuras nuas dos índios do Xingu, emblema do Brasil nativo e exótico. Não muito depois, com o deslanchar do movimento indígena e o ingresso dos índios na política nacional, popularizou-se outra série de imagens dos mesmos índios pintados e adornados com cocares, mas com câmeras de vídeo no ombro, ou escrevendo num laptop, ou com enfeites que reproduziam, em estilo étnico, as formas e as cores da bandeira nacional ou de algum time de futebol. Já neste século nos habituamos a uma sorte de exotismo de terceira geração: índios, com cocares ou sem eles, oferecendo ao mundo a sua cultura em forma de rituais encenados para turistas, cursos de espiritualidade indígena ou seminários de pesquisa psiconeurológica baseados no uso de suas poções enteogênicas. O fato não passou despercebido aos antropólogos, que o comentaram abundantemente, em geral elogiando a estratégia dos nativos. E com ele tem se acirrado também a procura de fórmulas jurídicas para estabelecer e defender o patrimônio intelectual indígena. Muito longe do Brasil, John e Jean Comaroff publicam Ethnicity 1 Inc., que agora aparece traduzido para o espanhol. Um estudo baseado principalmente em dados sul-africanos – embora lhes sirva como contraste um extenso capítulo sobre os índios da América do Norte – que nas suas preliminares e conclusões sugere que o fenômeno de ILHA volume 12 - número 2

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que tratam tem um alcance universal, não menos nas metrópoles ocidentais que nas suas antigas colônias. Para enunciar esse fenômeno – numa paráfrase livre do que dizem os autores –, poder-se-ia dizer que, se durante muito tempo o Estado-nação serviu como uma espécie de modelo oculto de todas as agrupações humanas (as tribos, os partidos políticos, os clubes de futebol), o tempo é chegado em que esse papel tem sido transferido à corporação empresarial. Onde antes proliferavam as bandeiras, agora surgem as logomarcas. A empresa capitalista, com seus modos de organização, sua retórica e sua ideologia, tem se tornado aos poucos o padrão que deve seguir todo coletivo humano que aspire estar na história, desde as nações e as regiões até as religiões, passando obviamente pelas universidades. As etnias, no caso que nos ocupa, viram proprietárias corporativas de um território e uma cultura, e seus dirigentes – reis tradicionais, caciques ou conselhos de anciões – integram conselhos de administração, que tiram o melhor proveito possível de um capital material ou simbólico e se encarregam também de distribuir os benefícios entre os acionistas, isto é, em princípio, entre os membros reconhecidos dessa etnia. Os Comaroff identificam seis dimensões nesse campo. A primeira tem a ver com a pertença: os processos de transformação da etnia em entidade jurídica veem-se acompanhados de uma ênfase crescente na biologia, mais do que nas tramas sociais, na hora de definir a inclusão ou a exclusão de um indivíduo. A segunda, com a etnogênese: é a empresa a que define e consolida a etnia, e não o contrário. A terceira, com o capital: o processo é frequentemente desencadeado por um investimento de risco que vem do exterior. A quarta, com a cultura: cultura como diferença ou senha de identidade, não necessariamente como veículo interno. A quinta, com a aspiração soberana, em difícil disputa contra o Estado. A sexta, com a territorialidade: a reivindicação de um território costuma estar na origem da etnia–corporação e lhe serve de quadro. Uma sétima dimensão, segundo eles, descobre-se nos casos em que o processo não tem seu início na criação de uma pessoa jurídica e no investimento ILHA volume 12 - número 2

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vindo de fora – como quando a empresa étnica administra cassinos ou minérios situados no seu território –, mas na transformação em mercadoria de algum saber tradicional (cultígeno, remédio, arte...). Essa sétima dimensão atravessa perpendicularmente as outras e fornece um ponto de partida diferente ao processo. Ou seja, o núcleo central do argumento dos Comaroff consiste em que a constituição da etnia como pessoa jurídica e a transformação da cultura em mercadoria, embora fenômenos independentes, atraem-se e complementam-se. A Etnia S.A. pode começar por qualquer um desses extremos. Esse perfil da etnicidade corporativa aplicar-se-ia desigualmente a outras regiões – como as Américas Central e Meridional –, onde, por motivos muito diversos, ela dá ainda seus primeiros passos ou disputa o terreno com outro tipo de projetos étnicos. Mas as dimensões citadas não estão totalmente ausentes em nenhum canto do multiculturalismo e a comparação com o panorama traçado pelos Comaroff será muito valiosa para melhor entender sua evolução. Se invoquei no início o caso do Brasil – um dos principais laboratórios atuais da etnicidade – é porque, totalmente ausente no livro dos Comaroff e muito longe do universo que eles descrevem, poderia servir como prova dos nove desse núcleo central do seu argumento. As etnias brasileiras (principalmente as etnias indígenas) ingressam no universo da Etnicidade S.A. pela sua sétima dimensão: estão em vias de objetivar sua cultura e aproveitar seu potencial de mercadoria. Mas suas relações com o Estado são mais matizadas: envolvem reivindicação e conflito, mas também uma maior dependência, que exclui ou limita muito qualquer tentação de soberania – de fato os projetos étnicos estão incluídos num projeto de identidade nacional multicultural desse mesmo Estado. É também o Estado o principal investidor, junto com um bom número de ONGs, num terreno no qual ainda não entrou abertamente o capital privado. As fronteiras étnicas eram no Brasil talvez ainda mais fluidas e indeterminadas que nos casos africanos, e o processo de etnificação inclui alguma vontade de enrijecê-las; mas o próprio movimento indígena tem militado contra critérios biológicos de pertença que agora lhe custariILHA volume 12 - número 2

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am muito assumir. A ênfase na cultura como diferença (às vezes quase limitada a um conjunto de diacríticos) jogou um papel notável na etnogênese, mas o jogou dentro de um paradigma anterior em que se pensava em povos ou nações, sem esperar as iniciativas da corporação. O território, enfim, é uma reivindicação que serve de ponto de partida ao projeto, mas que lhe serve mais como meta que como quadro num país onde, desde há duzentos anos, a sociedade nacional pressiona sobre as fronteiras étnicas com a escusa ainda não caducada de que há terra demais para pouco índio. Todas essas divergências, em conjunto, apontariam processos étnicos diferentes ou seriam apenas rodeios que a Etnicidade S.A. tomaria antes de se realizar? Aquele sistema mundial que tropeçava no obstáculo da diferença estaria voltando à carga com maior sucesso ao contar com a diferença étnica como sujeito do projeto e não mais como objeção? A Etnicidade S.A. conseguiria se constituir por inteiro e igualmente a partir da corporativização da etnia e da objetificação da cultura? Suspeito que essas perguntas apontam para debates futuros. Há um modo de se aproximar de todo esse complexo que talvez seja endêmico entre os antropólogos e que pode ser tachado de nostálgico. Nostálgico das essências ou se não das essências, ao menos de um passado em que as etnias eram conceitos acadêmicos que tentavam delimitar uma realidade mais plástica, e não objetos registrados em cartório; em que a cultura estava sujeita a mutações, mas não a copyrights, e servia para propósitos internos muito mais que a uma negociação externa. Etnias e culturas autônomas, autárquicas e talvez autênticas. É provável que os Comaroff, no seu íntimo, sofram dessa nostalgia: caso contrário talvez não teriam definido esse tema, nem o teriam rotulado de um modo que soa irônico. Eles admitem que a corporativização das etnias traga benefícios aos seus membros, mas objetando que essa é uma contingência histórica: poderiam, sim, se beneficiar dela como oportunidade ou na falta de outros recursos – o que não equivale considerar a Etnicidade S.A. como um projeto autóctone. Não deixam de lembrar que deveremos ficar atentos ao tipo de desigualdades que essa nova configuração produz e ILHA volume 12 - número 2

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que ainda estão por dar seus frutos. E sejam quais forem os lucros auferidos pelos nativos, continuam estando muito longe dos que obtém o capital especulativo que frequenta esse universo. Mas se os Comaroff são nostálgicos, dissimulam bem. Até reconhecem, e sem mostrar pesar, que um filho deles, engenheiro, está implicado no planejamento de uma dessas empresas étnicas na África do Sul. Não aludem a essas novidades – que às vezes já têm seus decênios de existência – com o desprezo que os cientistas sociais costumam usar quando querem dar lições à realidade que descrevem. Seu percurso pelo mundo da patrimonialização da cultura e das corporações autóctones identifica estratégias válidas – e às vezes únicas – de sobrevivência, mas também mostra que nem tudo se reduz a expedientes utilitários. Os bosquímanos San, por exemplo, não só se fantasiam de bosquímanos para atuar perante turistas estrangeiros e ganhar assim uns dólares, eles obtêm, também, um legítimo orgulho deixando de ser por umas horas moradores míseros de favelas para se tornarem de novo – autenticados pelo olhar do turista – expoentes ou pelo menos herdeiros de um modo de vida original. Os rituais da monarquia Bafokeng, potência mineradora do platino sul-africano, lutam por enriquecer com elementos tradicionais uma cenografia inteiramente alheia à tradição; nem mais nem menos o que fizeram sempre outras monarquias mais setentrionais. E nada impede que, por exemplo, a arte destinada a um público novo atinja um novo tipo de autenticidade, uma qualidade, uma diversidade e uma tensão criativa superiores talvez às que teve a arte autêntica de outros tempos. Não foi muito diferente disso o que aconteceu quando os artistas europeus, que viviam até então a serviço de Deus e da aristocracia, começaram a produzir para o mercado – embora fosse, naquele tempo, um mercado mais próximo. Bem-vinda a novidade: como já sugeriu uma vez Marshall Sahlins, não é justo que, quando os europeus inventam uma tradição se fantasiando de ancestrais muito distantes (gregos e romanos), o resultado seja chamado de Renascimento e, quando africanos ou índios fazem o mesmo, lamentemos a inautenticidade. Portanto, que sejam bem-vindas as novidades. Mas outra coisa é que comunguemos entusiasticamente com o Renascimento, com seus déspotas e com a habilidade com que atriILHA volume 12 - número 2

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buiu todas as suas mazelas às épocas obscuras que tinha superado (até agora continuamos acreditando que a caça às bruxas, que de fato grassou na época de Leonardo, Descartes e Galileu, seja coisa da Idade Média). O livro dos Comaroff, a meu juízo, tem a virtude de organizar num quadro coerente e sistemático uma série de tendências que já conhecemos bem: a universalização e a solidificação dos direitos intelectuais, o enrijecimento das identidades, a patrimonialização da cultura, a judicialização que substitui a violência e a política... Em conjunto, todos esses fatores, como já antes se esboçou, apontam para a corporação como um tipo ideal das agrupações humanas. Não há que se recorrer à mão oculta do mercado nem ao espírito dos tempos para explicar como essa visão de mundo permeou tudo: ela tem seus missionários, mais abundantes dos que nunca foram os da Igreja ou os do Estado. Quiçá haja entre eles muitos antropólogos. Muito e ruim se falou já dessa nostalgia antropológica que pretendia manter os outros – e só os outros – na felicidade pré-capitalista. Mas se esqueceu de dizer que há muito que essa nostalgia tem se tornado minoritária: são já legião os antropólogos que, muito pelo contrário, saúdam a debandada das essências e se implicam em empresas muito parecidas com as que os Comaroff descrevem. E desse etnoprogressismo ainda se falou muito pouco. É difícil saber se deseja expandir pelo mundo um modelo que ele tem em alta estima, ou se, tornando do avesso a velha assimetria, entende que aquilo mesmo que o indigna em casa pode ser para os outros o caminho da libertação. Em qualquer caso, e tal como narram os Comaroff, desta vez o que está a acontecer não é uma manobra oculta em colônias longínquas. A corporativização acontece por toda parte, de modo que quem não goste dela poderá a ela se opor bem no mesmo lugar onde mora. Nota 1 A edição espanhola é a tradução de Ethnicity Inc., Chicago, University of Chicago Press, 2009. Recebido em: 02/11/2011 Aceite em: 05/11/2011

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DESCOLA, Philippe (Org.). La fabrique des images: visions du monde et formes de la représentation. Paris: Musée du Quai Branly/ SOMOGY-Éditions D’Art, 2010. 224 p.

Jeremy Deturche Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]

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ste livro é à primeira vista um objeto particular, meio híbrido, cujo entendimento como “livro antropológico” não é óbvio. Oficialmente, trata-se de um catálogo da exposição epônima do Museu do Quai Branly, de Paris (conforme o próprio site do Museu1), onde o organizador dessa coletânea foi também o curador. A exposição aconteceu de 16 de fevereiro de 2010 a 17 de julho de 2011. Portanto, segundo as próprias palavras do curador e organizador, uma exposição “n’étant pas um traité savant” (p. 18). É a partir dos objetos escolhidos e das suas apresentações e justaposição que as reflexões antropológicas, às quais suas análises levaram, estão apresentadas. O resultado é um livro que por certos aspectos poderia ser chamado de “arte”, como confirmado pelo nome da editora ligada ao Museu, “SOMOGY-Éditions D’Art”. O papel liso e a excelente qualidade das ilustrações de 127 peças que faziam parte da exposição – num total de mais de 150 – contribuem para essa impressão. O catálogo, bem como a exposição, tem um propósito muito além da simples mostra exemplar da diversidade das imagens e figurações que a antropologia e os colecionadores teriam acumulado nas suas buscas pelo exotismo. Havia na exposição e há no catálogo a síntese e a demonstração de uma reflexão antropológica levada pelo próprio Descola – apresentada pelo diretor do Museu como refletindo “son oeuvre, qui repose sur la fréquentation conjointe de ILHA volume 12 - número 2

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l’etnhologie, de la philosophie et de l’histoire de l’art” (p. 7). Sem elaborar o que constitui a “obra” de Descola, a organização do catálogo – que, segundo o site do Museu, segue a mesma organização que a exposição – leva a crer que ela está baseada nos trabalhos atuais do autor sobre a problemática das representações. Essa problemática se encontra resumida na introdução escrita pelo próprio Descola – “Manière de voir, manière de figurer” – e é uma continuação de suas reflexões sobre a problemática do par dicotômico natureza– cultura. Além das divisões classificatórias entre as diversas produções figurativas dos mais variados tipos, comuns entre nossos museus (belas-artes, etnológico, de arte dessa ou daquela região do mundo...), dentro do “tohu-bohu de formes, de supports e d’objets representés” (p. 12), existiriam alguns “schème” figurativos comuns? Tal é a pergunta que Descola e os membros dessa coletânea tentam responder. De fato essa reflexão se situa numa intersecção. De um lado, está o recente revival dos estudos antropológicos sobre os objetos e a arte, notadamente após o livro seminal de A. Gell, Art and Agency: An Anthropological Theory, que levou antropólogos a repensarem as “categorias” de objeto e arte e suas qualidades agentivas. O termo “figurações” é pensado por Descola em relação aos trabalhos de Gell, entre outros.2 Do outro lado, estão os trabalhos realizados por Descola sobre o que ele nomeou “modos de identificação”, “ontologias” ou “sistemas de qualidades” (p. 12-17).3 A ideia central do livro é a de que as representações, as figurações, são de fato dependentes do que se percebe ou se imagina e que essas, por sua vez, se encontram dependentes: [de] ce que l’on appris à discerner dans le flux des impressions sensibles et à reconnaître dans l’imaginaire. Or, ce formatage du discernement dépend des qualités que nous avons l’habitude de prêter ou dénier aux choses qui nous environnent ou celles que nous figurons dans notre for interieur (p. 12).

Ou seja, as modalidades de figuração seriam em parte dependentes das ontologias nas quais os autores estariam vivendo. Para ILHA volume 12 - número 2

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Descola, as ontologias não se encontram em número infinito, mas seriam provavelmente limitadas a quatro, organizadas pelas continuidades e pelas descontinuidades entre seres humanos e outros “existentes” – existants – em dois planos distintos, o da “fisicalidade” (physicalité) e o da “interioridade” (Descola, 2005). Essas quatro ontologias seriam o animismo, que postula uma continuidade das interioridades e uma descontinuidade das fisicalidades; o naturalismo, tipo inverso do animismo; o totemismo, que estipula a ausência de descontinuidade tanto no plano “moral” (interioridade) quanto no físico, dentro de uma classe de existentes (as classes totêmicas); e o analogismo, que postula uma descontinuidade entre os existentes nos dois planos.4 Essas ontologias não devem ser entendidas, como adverte Descola, como totalidades e, se é possível encontrar ontologias extremamente dominantes em determinadas regiões do mundo, como o animismo entre os Inuit, o totemismo na Austrália aborígene e o naturalismo entre os “modernos”, são geralmente orientações. Essa coletânea, bem como a exposição, tem então como objetivo mostrar as características que ligam essas ontologias a determinados tipos de representação, ou melhor, mostrar como essas ontologias produzem, “fabricam”, determinados tipos de figurações, o que implica colocar em evidência o tipo de intencionalidade “delegada” a essas imagens. Convém, todavia, notar que, se as ontologias são apresentadas como orientações, nem todas as imagens ou figurações estariam orientadas e determinadas pelas ontologias nas quais elas originar-se-iam. Assim, dois exemplos são dados e algumas “imagens icônicas” não teriam uma “dimension ontologique”: a pictografia e a heráldica. Não está absolutamente claro como poderia se articular esse tipo de imagem com as outras, que têm qualidades ontológicas, pois elas estariam apresentadas como efeitos de uma função expressiva “comum”, “se não universal”. Deve-se entendê-las como além das ontologias e das figurações que as expressam? Esse propósito de exemplificar e de demostrar como se amarram diversas figurações e as quatro ontologias serve de fio condutor e organizador do livro, que se encontra dividido em quatro partes, ILHA volume 12 - número 2

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correspondendo às quatro ontologias. A primeira, “Un monde animée”, corresponde ao animismo. Seguindo um padrão que vai se repetir para as três outras partes, o primeiro texto dessa seção é também de autoria de Descola e se apresenta como mais amplo, tentando evidenciar a diversidade das representações que são ligadas a uma ontologia, diversidade que pode ter um padrão geográfico ou corresponder a uma diversidade de objetos e de destinos diferentes. Algumas dessas diversas representações são então exemplificadas, discutidas e especificadas mais detalhadamente nos artigos seguintes a esse texto de certa maneira introdutório. Assim, no caso do animismo há três outros artigos, “Voire comme un Autre: figuration amazoniennes de l’âme et des corps”, de Anne-Christinne Taylor, “Miniature et variations d’échelle chez les Inuit”, de Frédéric Laugrand, e “Corps e âmes d’animaux em Sibérie: de l’Amour animique à l’Altaï analogique”, de Charles Stépanoff. O texto de Taylor é voltado para a vertente amazônica do animismo e suas figurações específicas centradas na problemática do corpo – e nas apropriações de qualidades alheias pelos ornamentos e pelas pinturas corporais, entre outros –, que, como sabemos, desde um artigo seminal (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979) se encontra no centro das cosmologias ameríndias dessa região. O artigo de Laugrand focalizase principalmente nas miniaturas Inuit, como figuração das almastarniq e sede de poderes transformacionais e de substituição que lhes conferem a possibilidade de ações mediadoras – a miniaturização como figuração anímica. Não se trata, todavia, de considerá-las como objetos mágicos, elas são, antes de tudo, relações, representação como relação. O terceiro texto, de Stépanoff, trata de uma terceira área geográfica, o extremo noroeste da Ásia e as extensões da Sibéria, onde várias populações se encontram em contato e onde o animismo não é a única ontologia presente. Isso permite comparar e observar como em uma mesma área geográfica e contextos ontológicos diferentes outras ontologias são presentes e se expressam através de diversas imagens. Esse esquema se repete então para as três outras ontologias. A segunda ilustrada é o naturalismo, “Un monde objectif”, cuja apreILHA volume 12 - número 2

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sentação de Descola está seguida de dois textos sobre modalidade particular, inclusive com uma dimensão temporal da figuração naturalista. De fato aparece aqui o problema do surgimento e da formação dessa ontologia. O naturalismo que se encontra simbolizado pela separação intransigente entre natureza e cultura se fixa no século XVIII. Mas o livro sugere que uma transformação naturalista progressiva está perceptível na evolução das representações e figurações desde o século XV, em que a objetividade (na representação da singularidade individual e das interioridades), a busca pelo realismo e a imitação (que mostram através da natureza as continuidades da fisicalidade), características da figuração naturalista, já estavam aparecendo. O dois textos complementares dessa parte, o de Michael Taylor, “La peinture et le savant: la fabrique des images au siècle d’or de la peinture hollandaise”, e um artigo sobre a fotografia entendida como objetiva de Monique Sicard, “La ‘photo-graphie’, entre nature et artefact”, buscam exemplificar essas características em momentos históricos e suporte técnicos diferentes. A terceira parte, “Un monde subdivisé”, tenta definir e exemplificar as figurações oriundas da ontologia totêmica. De fato essa ontologia corresponde ao mundo aborígene australiano e representar, figurar, o totemismo é figurar e representar as continuidades nos dois planos da fisicalidade e das interioridades entre indivíduos de uma mesma classe totêmica. Três maneiras diversas, mas ligadas entre si por transformação, são dadas como maneiras de figurar essas continuidades. A primeira, da qual se originam as duas outras, consiste em representar uma combinação dos seres prototípicos (híbridos – os “seres dos sonhos”) na origem das classes totêmicas, no momento de uma ação instituidora; o lugar da ação é ao mesmo tempo o produto dessa ação e os emblemas que caracterizam e são associados à classe totêmica. A partir desse tipo de figuração, é possível de certa maneira tirar a representação da ação e unicamente representar os seres originais, ou ao contrário, representar unicamente o resultado da ação. Os dois artigos complementares, de Françoise Dussart, “De la terre à la toile: peinture acrylique de l’Australie centrals”, e de Jessica de Largy Healy, “L’art de la ILHA volume 12 - número 2

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connexion: tradition figuratives et perception des images em terre d’Arnhem australienne”, vão não somente exemplificar essas possibilidades figurativas, mas também possibilitar a reflexão sobre as diversas técnicas empregadas e as evoluções materiais e estilísticas dentro desse modo totêmico de figuração. Enfim, a última parte, “Un monde enchevêtré”, detém-se sobre a figuração analógica, caraterizada principalmente pela profusão de seres híbridos, de quimeras e de outros seres compósitos, mas também de representações de redes e todas as possibilidades de correspondências entre entidades, como englobamento ou replicação. O objetivo é figurar uma trama que permita inserir cada um dos existentes, que são tantas singularidades, criando uma organização ou uma forma que aloca cada um, por diversos jogos de conexões, no seu devido lugar. O três artigos dessa parte, o de Dimitri Karadimas, “Animaux imaginaires et êtres composite”, o de Allen F. Roberts e Mary Nooter Roberts, “La répétition pour ele-même: les arts itératif au Sénégal”, e o de Johannes Neurath, “Simultanéité de visions: le nierika dans les rituels et l’art des Huichols”, são, novamente, três momentos de especificação: o primeiro focado sobre um tipo de representação específico, os seres compostos, enquanto os dois outros são mais geograficamente localizados. Todos esses textos estão ilustrados a partir dos objetos e das imagens que foram apresentados na exposição, mas sem que isso se transforme numa análise específica de cada um deles, o que torna a leitura extremamente agradável. Concluindo, o objetivo é demonstrar as ligações entre determinada maneira de ver o mundo e uma maneira de figurar que na verdade se apresenta neste livro como uma maneira de expor as relações entre humanos e não humanos que estão pensadas pelas ontologias. Contudo, não é sempre claro se essa relação se deve à formatação promovida pelas ontologias, por orientar as figurações, ou se realmente não seria uma definição de/ por uma categoria de imagens que representam as relações postuladas pelos modos de identificações. Como de fato as imagens que não têm a dimensão ontológica se relacionam com os modos de identificação. Obviamente as reflexões que perpassam essa demonstração ILHA volume 12 - número 2

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visam promover uma nova dimensão de reflexão sobre os objetos do mundo que tenta evitar classificar ou “tipologizar” tais objetos de maneira essencialista e em função de critérios cujo valor é problemático, como a estética ou a origem geográfica. Mas para isso se faz presente uma bipartição entre as imagens, entre aquelas que têm uma dimensão ontológica e as outras. Este livro constitui também uma reflexão interessante sobre as práticas de exposição, no sentido de que essa maneira de pensar as figurações implica repensar as práticas expositivas e museológicas. Se uma exposição não é um “traité savant”, ela não pode também ser uma amostragem. Repensar os objetos implica repensar o destino deles, principalmente nos museus; e, nesse sentido, além do projeto teórico-antropológico, o catálogo (e possivelmente a exposição) consegue mostrar como fugir de categorias essencialistas, notadamente por transparecer em todos os artigos que o que faz a agência dos objetos, as suas qualidades figurativas nas diversas ontologias, não se encontra na “essência” deles, mas justamente nas suas agências, nas suas relações e usos. Notas 1 Por razões de ordem espacial, não me foi possível visitar a exposição no momento de sua apresentação no museu, porém está ainda disponível no site do Museu o descritivo de sua organização e principal propósito: . 2 A figuração é de fato a “operation universelle au moyen de laquelle des objets matériels sont transformés en agents de la vie sociale par-ce qu’on leur donne la fonction d’évoquer avec plus ou moins de ressemblance un prototype réel ou imaginaire […]” (p. 17). 3 Ver também Descola (2005). 4 A construção dessa teoria se encontra detalhada em Descola (2005) e resumida na introdução do livro. Trata-se aqui unicamente de, esquematicamente, caracterizar essas ontologias para entender como se organiza o livro e qual o seu propósito.

Referências DESCOLA, Philippe. Par-delà Nature et Culture. Paris: Edition Gallimard, 2005. GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Oxford University Press, 1998. ILHA volume 12 - número 2

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MUSÉE DU QUAI BRANLY. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2011. SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, n. 32, p. 2-19, 1979. Recebido em: 31/10/2011 Aceite em: 08/11/2011

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Teses defendidas no PPGAS/UFSC em 2010 Isabel Santana de Rose, 07/06/2010, “Tata Ndereko – Fogo Sagrado: encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho” Sandra Rubia Silva, 13/04/2010, “Estar no Tempo, Estar no mundo: a vida social dos telefones celulares em um grupo popular” Matias Godio, 05/03/2010, “‘Somos hombres de platea’: A sociedade dos dirigentes e as formas experimentais do poder e da política no futebol profissional em Argentina”. Juliana Cavilha Losso, 04/03/2010, “Dos desregramentos da carne: um estudo antropológico sobre os itinerários urbanos, territorialidades, saberes e fazeres de profissionais do sexo em Florianópolis” Luciane Ouriques Ferreira, 25/02/2010, “Entre discursos oficiais e vozes indígenas sobre gestação e parto no Alto Juruá: a emergência da medicina tradicional indígena no campo das Políticas Públicas” Ari José Sartori, 19/02/2010, “A ‘experiência’ como mediadora no ensino da Antropologia para quem não vai ser antropólogo”

Dissertações defendidas no PPGAS/UFSC em 2010 Jimena Maria Massa, 17/12/2010, “Saiu no jornal: a construção da violência de gênero no discurso midiático sobre ‘o estuprador serial’ de Córdoba (Argentina)” Larissa Migliavacca Pacheco, 29/11/2010, “Entre ‘nativos’ e ‘de fora’: estudo etnográfico sobre nuanças identitárias no Centro Histórico de cidade litorânea no Sul do Brasil, Garopaba/SC” Ari Ghiggi Júnior, 04/10/2010, “Estudo etnográfico sobre alcoolização entre os índios Kaingang da Terra Indígena Xapecó: das dimensões construtivas à perturbação”

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Tatiana Dassi, 10/09/2010, “‘É, vida Loka irmão’: moralidades entre jovens cumprindo medidas socieducativas” Anelise Fróes da Silva, 27/08/2010, “Mulheres em movimento(s): estudo etnográfico dobre a inserção de feministas e lésbicas em movimentos sociais institucionalizados e autônomos na cidade de Porto Alegre-RS” Nora Epifania Murillo Estrada, 25/08/2010, “Nós continuamos lutando aqui: identidades coletivas e estratégias de luta pelo reconhecimento da comunidade indígena Maia Achí, vitimas sobreviventes dos massacres de Rio Negro Rabinal (Guatemala)” Diego Faust Ramos, 19/05/2010, “O Tempo Kamayurá” Maíra Marchi Gomes, 13/03/2010, “O lado negro do preto: o fardo da farda: narrativas de integrantes do BOPE-SC sobre mandato policial de grupos especiais de Polícia” Sandra Carolina Portela, 26/02/2010, “Diabetes e hipertensão arterial entre os indígenas Kaingang da aldeia sede, TIX: práticas de autoatenção num contexto de intermedicalidade” Dina Susana Mazariegos García, 23/02/2010, “Trajetória e resistência: uma análise antropológica das emergentes práticas discursivas das mulheres intelectuais Maias na Guatemala nas duas últimas décadas (1988-2008)”

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ILHA – Revista de Antropologia aceita artigos, ensaios, resenhas e entrevistas originais que estejam de acordo com sua linha editorial. Os artigos são submetidos à avaliação de pareceristas ad hoc. Os autores receberão dois exemplares do número da revista na qual seus trabalhos forem publicados. A submissão dos trabalhos será feita on line, diretamente no site da revista (www.periodicos.ufsc.br/ilha). Serão aceitos trabalhos para as seguintes seções: Artigos ou ensaios (incluindo os artigos para dossiês e seções temáticas): (aproximadamente 10 mil palavras, incluindo notas e referências). Eles deverão ser acompanhados de resumo (em português e em inglês, entre 100 e 150 palavras), palavras-chave (em português e em inglês, de três a quatro) e título (em português e em inglês. Debates: artigos com especial interesse teórico-metodológico, acompanhados de comentários críticos assinados por outros autores (aproximadamente 10 mil palavras, incluindo notas e referências). Eles deverão ser acompanhados de resumo (em português e em inglês, entre 100 e 150 palavras), palavraschave (em português e em inglês, de três a quatro) e título (em português e em inglês. Entrevistas: (até oito mil palavras), acompanhados de introdução situando a obra e o autor entrevistado), resumo (em português e em inglês, entre 100 e 150 palavras), palavras-chave (em português e em inglês, de três a quatro) e título (em português e em inglês). Ensaio bibliográfico: resenha crítica e interpretativa de vários livros que abordem a mesma temática (até oito mil palavras, incluindo as referências bibliográficas e notas), título, palavras-chave e resumo em português e inglês. Resenhas biblio/disco/cine/videográficas: pequenas resenhas de livros, discos, filmes ou vídeos recentes (até dois anos, até 2.500 palavras, incluindo as referências bibliográficas e notas); Notas de pesquisa: relato de resultados preliminares ou parciais de pes-quisa (até 3.500 palavras, incluindo as referências bibliográficas e notas); Cartas: manifestações sobre textos publicados em números anteriores (o editor se reserva o direito de publicar apenas trechos).

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Normas de apresentação e redação: As normas de redação e citação bibliográfica seguem o padrão da ABNT, com pequenas adaptações (quando for o caso, está sinalizado abaixo). Outras situações não previstas abaixo seguirão o padrão da ABNT. 1. As notas devem ser numeradas em algarismos arábicos e constar no final do texto. 2. Referências a autores deverão ser incluídas no texto e não em nota de rodapé. Ex. (Castells, 1999) ou (Castells, 1999, p. 12). (O uso do nome do autor em minúsculas é uma adaptação das normas da ABNT) 3. As referências bibliográficas são incluídas no final do texto, seguindo o seguinte formato: a) Livros ou coletâneas: MENEZES BASTOS, Rafael J. de. A musicológica kamaiurá. Florianópolis: Ed. UFSC, 1993. Ou: LANGDON, Esther-Jean (Org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: Ed. UFSC, 1996. b) Capítulos de livros: SANTOS, Silvio Coelho dos. A Antropologia em Santa Catarina. In: SANTOS, Silvio Coelho dos (Org.). Memórias da Antropologia no sul do Brasil. Florianópolis: Ed. UFSC/ABA, 2006. p. 1777. c) Artigos em periódico: SÁEZ, Oscar Calávia. Nawa, Inawa. Ilha- Revista de Antropologia, Florianópolis: UFSC, v.4, n.1, p. 17-33, 2002. d) Teses e monografias acadêmicas: GROISMAN, Alberto. 1991. Eu Venho da Floresta: Ecletismo e Práxis Xamânica Daimista no Céu do Mapiá. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1991. e) Artigos e trabalhos da internet: LEITE, Ilka Boaventura. As classificações étnicas e as terras de negros no sul do Brasil, s/d. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2008. f) Tabelas e imagens: serão aceitas no máximo de cinco por artigo. As tabelas devem vir no mesmo programa do texto e as imagens em formato jpeg ou tiff, resolução de 300 dpi. g) Todas as referências devem conter o prenome do/a autor/a. ILHA volume 10 - número 2

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