Alguns destinos do olhar e da voz na sexuação

June 14, 2017 | Autor: Luciano Mattuella | Categoria: Psychoanalysis, Psicanálise
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Alguns destinos do olhar e da voz na sexuação1

Luciano Mattuella

Ao longo de toda a sua produção teórica, Freud parece dar uma importante ênfase às dimensões do olhar e da voz na constituição psíquica, especialmente no campo da fantasia. Sempre fiquei tomado por este assunto, ao qual tenho me dedicado a um estudo mais cuidadoso ultimamente. Animado pela temática de estudos que estamos desenvolvendo na APPOA desde o ano passado, fiquei pensando na relação do olhar e da voz no que se refere à castração e à sexuação, tema que pretendo trabalhar neste texto. Meu intuito é sugerir alguns caminhos que me parecem intrigantes. Deste modo, começo minha linha de raciocínio com a seguinte passagem do artigo “A dissolução do complexo de Édipo” (1924):

Em algum momento, o menino orgulhoso de possuir um pênis vê a região genital de uma menina e tem de se convencer da falta do pênis, num ser tão semelhante a ele. Com isso também a perda do próprio pênis se torna concebível, a ameaça de castração tem efeito a posteriori.2

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Trabalho apresentado na Jornada de Abertura 2013 da APPOA - Quatro ensaios sobre o sexo, em 6 de abril de 2013. 2

FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo [1924]. in. ______________. Obras Completas - Volume 16: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras: 2011, p. 207 (grifos nossos).

Eu gostaria de colocar a ênfase na dimensão do olhar que surge nesta citação uma entre tantas outras em que esta questão está presente: é a visão o sentido privilegiado por Freud para sustentar o primeiro contato do menino com a ausência de pênis no sexo oposto. Na menina também podemos perceber este relevo dado ao olhar, uma vez que, como aponta Freud, ela “nota o pênis de um irmão ou companheiro de jogos, flagrantemente visível e de tamanho notável, reconhece-o de imediato como a superior contrapartida de seu próprio órgão pequeno e oculto, e passa a ter inveja do pênis.”3 Também vale sublinhar que, para o menino, ter um pênis é motivo de orgulho é algo que a menina inveja: ou seja, em Freud, o pênis é também um índice de poder e não deixa de ter consequências na economia da relações entre os pares. Ainda na citação anterior podemos ver que Freud distingue claramente pelo menos dois tempos na relação do menino com a ameaça de castração: o primeiro, puramente visual, e o segundo, podemos supor, ligado à voz e à palavra - tempo que, a posteriori, recoloca o visual em jogo, permitindo-nos inferir que o primeiro tempo, como costuma acontecer nas reflexões freudianas, é um tempo mítico, ou pelo menos suposto. Este ponto abre o problema do estatuto da imagem: será que não poderíamos dizer que, para Freud, a imagem pura, ou seja, não respaldada pela palavra, não existe? Pensando também na lógica lacaniana do traço unário, não se poderia dizer que é a palavra que cria o silêncio anterior à ela, de modo que todo discurso se erige sobre o silêncio - talvez um silêncio também imagético? Como apontei há pouco, Freud fala que o menino orgulha-se de ter um pênis, assim como a menina inveja-o por não ter um pênis; desta forma, acredito ser possível 3

FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1925]. in. ______________. Obras Completas - Volume 16: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras: 2011, p. 290 (grifos nossos).

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dizer que tanto o orgulho quanto a inveja estão inscritos no registro do visual, do escópico, ou seja, na relação com a imagem: o menino siderado pela completude da presença da imagem, e a menina, por sua vez, pela completude da falta. Como bem nos lembra Lacan:

Invidia vem de videre. (...) [A inveja] faz empalidecer o sujeito diante do quê? - diante da imagem de uma completude que se refecha, e do fato de que o a minúsculo, o a separado ao qual ele se suspende, poder ser para um outro a possessão com que este se satisfaz (...). 4

A completude não deixa de ser uma marca do silêncio, do silêncio do sujeito. Acho que podemos ver isso em nossa clínica cotidiana quando nos percebemos diante de pacientes cujo discurso insiste ou em manter “tudo em ordem” (ou seja, sem falta) ou em apontar justamente para a falha que, como sabemos, não é possível de ser suturada. São duas formas de fixação do olhar em uma cena que não desliza, sendo necessária a intervenção simbólica, ou seja, o advento da potência da palavra, para que a narrativa siga adiante - para que um segundo tempo possa se desenrolar através da abertura de um ponto de fuga na cena. Afinal, não seria a perspectiva justamente uma das formas de o objeto olhar cair, desprender-se?

Tendo isso em vista, insistirei no seguinte ponto: o primeiro anúncio de castração se dá pela via do olhar - no caso do menino, por uma imagem de algo que deveria estar na cena, mas não está; no caso da menina, se posso dizer assim, por uma

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LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11..., p. 112.

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imagem de algo que não deveria estar ali, mas está. No menino a ameaça de castração aparece sob a forma de “tenho, mas posso vir a perder”; na menina, como “não tenho, mas poderia ter tido”, o que lança ambos os sexos em uma lógica temporal escandida pelo próprio advento da castração. De toda forma, estamos falando de uma imagem que interpela aquele que a olha, lançando-o para dentro da cena: é uma imagem potente - como se a imagem não fosse somente vista, mas também olhasse aquele que a vê. Como diz Lacan em seu Seminário 11, “o sujeito que nos interessa é preso, manobrado, captado, no campo da visão”5 . A falta, ao ser percebida, interroga pela posição que ocupa aquele que a vê. Relembro aqui Didi-Huberman e seu belíssimo livro O que vemos, o que nos olha: “O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”6 . Portanto, neste momento de olhar a castração a criança também se sente concernida - aquela diferença que ela percebe diz algo sobre seu lugar no mundo. A imagem vinda do campo do Outro interroga o sujeito. Impossível não lembrar aqui da anedótica história da “lata de sardinha”. Lacan pescava com um amigo quando, no momento de puxar a rede - o que não deixa de ser um momento de captura, aliás - este amigo aponta para a superfície das ondas, mostrando algo. Segundo Lacan conta: “Era uma latinha, e mesmo precisamente, uma

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LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 91. 6

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 29.

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lata de sardinhas. (...) Ela respelhava ao sol. E Joãozinho me diz - Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não!”7 Inquietado por este inusitado episódio, Lacan diz: “(...) se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo (...)”8. Como de costume, a fineza da interpretação de Lacan está nas sutilezas das palavras. Em francês, regarder significa tanto olhar quanto ter a ver, implicar. Se digo que alguma coisa “me regarde” quero dizer que esta coisa tanto me olha quanto me interpela. Aqui Lacan faz uma outra volta na relação entre aquele que olha e aquele que é olhado. Citando o próprio Lacan:

Não sou simplesmente esse ser puntiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro. (...) E eu, se sou alguma coisa no quadro, é também essa forma de anteparo, que (...) chamei de mancha. 9

Esta cisão do olhar - esquize do olhar, como denomina Lacan - sugere que uma imagem é potente na medida em que além de inscrever-se por si própria, ela também inaugura uma posição desde onde o olhar é lançado, ou seja, a imagem cria tanto a sua própria pregnância quanto a condição de possibilidade de ser vista. Ver uma imagem,

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LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11..., p. 94.

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LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11..., p. 94.

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LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 11..., p. 94.

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portanto, implica uma certa sideração naquilo que é visto - uma espécie de alienação; em outros termos, implica identificar-se à mancha. Uma decorrência preliminar, portanto: em um primeiro momento, o menino olha a - e é olhado pela - falta desde a posição daquele que tem; a menina, desde a posição daquela que não tem. Estes dois lugares a partir dos quais se colocam o garoto e a garota engendram a própria condição de visibilidade - de figurabilidade - da falta. Mesmo que a narrativa não se encerre neste ponto da história, eu gostaria de levantar a hipótese de que este momento fundamental de percepção da castração funda o lugar a partir do qual homens e mulheres veem o mundo. Deste modo, o ver para o homem seria diferente do ver para a mulher. Uma questão que eu gostaria de lançar, então: quais reverberações deste primeiro momento de percepção da castração podemos escutar em nossa clínica cotidiana? O que significa, no campo da clínica, esta suposta distinção entre o olhar do homem e o olhar da mulher?

Sigo adiante agora por uma segunda linha de raciocínio, decorrente do que vinha falando até agora. Se Freud propõe que para ambos os sexos o complexo de castração começa pela visão dos genitais do sexo oposto, parece que as coisas a partir daí tomam caminhos diferentes para o menino e para a menina. No caso do menino, como escreve Freud em “Algumas consequências psíquicas...”:

quando o garoto avista pela primeira vez a região genital da menina, ele se mostra inicialmente indeciso, pouco interessado; ele nada vê, ou recusa [verleugnet - LAM] sua percepção, enfraquece-a, busca expedientes para harmonizá-la com sua expectativa. Somente depois,

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quando uma ameaça de castração teve influência sobre ele, tal observação lhe será significativa; sua recordação ou renovação suscita nele uma terrível tempestade de afetos e o força a crer na realidade da ameaça até então desdenhada.10

Frente à visão da falta no outro, o menino assume uma postura de hesitação: a imagem da castração não é suficiente para que ele se convença de sua existência. Ele recusa, como diz Freud, a sua própria percepção. Aqui vale a pena percebermos que o termo utilizado no original alemão é verleugnet - uma modulação muito específica da negação: a recusa, forma de negação que é colocada, por Freud, em 1926 do lado da perversão e do mecanismo da fixação do fetiche. Escreveu Freud, em “Fetichismo”: “o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem um pênis.”11 Interessante relação entre a perversão, o olhar e o registro da imagem. Freud diz que o menino “busca expedientes” para harmonizar a imagem da castração com as suas hipóteses anteriores, com sua expectativa (de que o outro também seria não-castrado). Parece-me que este “buscar expedientes” para a manutenção da não-castração do outro sexo se configura clinicamente de forma bastante evidente na relação da neurose obsessiva com a falta - algo que em transferência podemos perceber na busca por parte do obsessivo de não colocar em questão os pontos de resistência do analista, não sair do seu campo de visão, por assim dizer.

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FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas..., p. 290 (grifos nossos).

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Sigmund. Fetichismo [1927]. in. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, s/d, p. 180 (grifos nossos).

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Retornando. Há, portanto, dois momentos no reconhecimento da castração pelo menino: ver os genitais do sexo oposto não é suficiente para a inscrição da falta; é preciso ainda um segundo tempo que - como parece sugerir Freud -, caso não ocorrer, apontará para a organização de uma perversão. Este segundo momento, acredito, tem relação com a voz e a palavra. É ao relembrar as ameaças de castração (as injunções de proibição e rechaço da masturbação) - ou quando estas ameaças acontecerem novamente - que o menino finalmente dá consistência à imagem que inicialmente recusou. Portanto, para o garoto, a efetividade da castração passa necessariamente pela dimensão da voz. Entretanto, para que a ameaça de castração tenha efeito, é necessária a passagem pela figurabilidade, pela imagem. Encontramos no menino a ideia de uma imagem em suspenso, como que à espera de uma significação pela fala. Parece que Freud acaba sugerindo, no lado do masculino, uma espécie de desconfiança fundamental na imagem - o que é visto nunca é suficientemente efetivo apenas por ter sido visto. A imagem é sempre insuficiente. Um outro modo de dizer isso: a visão da falta não é suficiente para que o homem faça ceder seu orgulho - há, portanto, algo de narcísico neste enredo. Já pela via da menina, a história é outra. Segundo Freud: “Com a menina é diferente. Num instante ela faz seu julgamento e toma sua decisão. Ela viu, sabe que não tem e quer ter”12 . A garota portanto é lançada diretamente na lógica da inveja: ela quer ter o que viu que o outro tem. Enquanto no menino a visão da falta inaugura uma fase de hesitação - engendrada pela recusa da percepção -, na menina parece tudo estar desde já decidido. A cena monta-se de imediato. É como se Freud dissesse que, para a

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FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas..., p. 291 (grifos nossos).

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garota, a imagem seria suficiente para fazer operar a castração. Já no momento da visão dos genitais dos meninos ela dividiria o mundo em dois grandes grupos: os que têm e os que não têm. Freud comenta que um dos destinos desta inveja inicial é o deslocamento para a configuração da cena de ciúme. Entendo que o ciúme teria algo a ver com o relançamento da inveja no campo do Outro, ou seja, uma cena que supostamente se dava “a dois” passa a levar em conta o terceiro; não se trataria mais do “você tem o que eu não tenho”, mas sim de “este terceiro, que sustenta a cena, não me deu o mesmo que deu a ele”, o que diz da inescapável captura no olhar do Outro. Desta forma, uma outra consequência importante da inveja do pênis, como nos diz Freud, é o afrouxamento do laço terno com o objeto materno. A mãe passa a ser entendida como aquela que foi responsável pela ausência de pênis na menina, culpada, como afirma Freud, “por tê-la posto no mundo tão insuficientemente aparelhada”13 . Notemos que aqui, mesmo que Freud pareça apressar as coisas para a menina, já nos encontramos no registro narrativo, uma história mínima é contada dando condição de figurabilidade à imagem da castração. Trata-se da construção da fantasia, uma vez que podemos entender que a palavra permite a construção de um ponto de vista, ou seja, um deslocamento da posição de alguém capturado pelo desejo do Outro para outra posição, aquela de alguém que cria uma narrativa - entre tantas outras possíveis - e através dela conta a sua história. Criar um ponto de vista é uma forma de acesso à ficcionalidade, esta característica sustentada pela potência do significante em sua variedade de destinos possíveis. É na palavra que se agencia a castração do Outro, ou - dito de outra forma - é através da palavra que se pode saber que não há uma história de si já contada

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FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas..., p. 293.

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anteriormente, mas que se faz necessária a passagem pelos significantes herdados para, a partir deles - mas não restrito a eles -, contar a própria história. Mais uma vez esta questão parece ter alcance clínico bastante evidente: afinal, não seria esta suposição - “vim ao mundo sem as ferramentas necessárias” - que estaria por detrás das fantasias de castração que tão recorrentemente escutamos em nossa clínica? Algo que, como sabemos, pode coagular-se sob a forma de um insidioso ressentimento, como nos lembra Maria Rita Kehl. Por vezes também parece-me que esta suposição está na base do discurso daqueles homens e mulheres que acreditam ser necessário todo um preâmbulo para então começar a construir um lugar no mundo - não estaria aí a distinção entre trabalhar a partir do que se tem, e esperar ter tudo para então trabalhar? Em outros termos, aí parece-me estar apresentada a questão do que significa trabalhar a partir do desejo ou a partir do ideal. Mas, então, se para o garoto é esperada uma fase de hesitação frente à castração, para a menina, segundo Freud, parece que tudo tem de estar desde o início decidido. A imagem sendo suficiente para confirmar a hipótese da menina. Aliás, a dúvida com relação à castração pela menina é vista por Freud como um obstáculo na direção da constituição da feminilidade, como podemos perceber na passagem a seguir:

Neste ponto se separa o chamado complexo de masculinidade da mulher, que eventualmente reservará grandes dificuldades ao desenvolvimento prescrito rumo à feminilidade, caso não seja logo superado. A esperança de ainda ter um pênis, tornando-se igual ao homem, pode se manter por um período improvavelmente longo e se tornar motivo de atos peculiares, de outra forma incompreensíveis. (...) A menina se recusa a admitir o fato de sua castração, aferra-se à

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convicção de que possui um pênis, e se vê compelida, subsequentemente, a agir como se fosse um homem. 14

Portanto, percebemos que Freud faz uma distinção clara no que se refere ao reconhecimento da castração por ambos os sexos: para a menina, a falta é um fato consumado e é a partir daí que ela vai ter que trilhar seu caminho rumo à feminilidade; para o menino, entretanto, há um primeiro movimento de recusa e de suspensão - é apenas com a rememoração das ameaças de castração que o enredo se fecha; rememoração que, naturalmente, implica a palavra e a narrativa. Mais uma questão a partir da clínica: como podemos pensar aqueles homens que parecem buscar, na cena do mundo, no dia-a-dia de suas vidas, situações em que procuram que alguém opere como figura castradora? Penso aqui naqueles homens que se lançam a provas de masculinidade e que parecem se angustiar justamente quando não fracassam. Ainda: não estariam os sintomas de impotência sexual relacionados com isso tudo que falamos até agora - talvez como uma forma de fazer frente à demanda de potência?

Assim, se para o menino a voz é tão importante para dar consistência à percepção da falta, que lugar esta voz teria na economia psíquica da menina? É interessante percebermos que Freud parece não falar sobre isso - mesmo que a questão do feminino, como sabemos, passe nos seus primórdios justamente pela voz: a mãe que canta enquanto embala a sua criança, a prosódia da fala da mãe que dá ritmo ao mundo... Essa é uma questão que fica em aberto para mim, mas, mesmo assim, tentarei lançar algumas luzes sobre a seguinte pergunta: qual a função da voz na constituição da 14

FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas..., p. 291.

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feminilidade, uma vez que parece que a imagem é suficiente - no caso da menina - para o reconhecimento da castração? Não deixa de ser um tanto irônico lembrar que a Psicanálise começou com uma mulher reivindicando o seu direito à fala pedindo que Freud se calasse - ou seja, sobre o feminino, cabe às mulheres falarem em próprio nome. A palavra, a voz, parece então ter essa função - como é o caso para o menino, na realidade - de abrir para uma narrativa sobre a castração - de criar uma ficção de si a partir da castração do Outro. Uma forma de pensarmos este ponto é trazermos para a discussão aquilo que Freud fala sobre a constituição do Super-eu na mulher:

Hesitamos em expressar isto, mas não podemos nos esquivar da noção de que o nível do que é eticamente normal vem a ser outro para a mulher. O Super-eu jamais se torna tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens afetivas como se requer que seja no homem. 15

Aqui se faz interessante lembrar que, como diz Freud em outros textos, o Supereu conserva em si o caráter do pai, melhor ainda: da voz do pai - ele é a conservação despersonalizada da voz do pai em seu registro proibitivo e regulador. Em outros termos, trata-se de uma voz não dependente de um referente material, uma voz cuja mensagem é escutada como vinda do campo do Outro, difusa porém eficaz. Seguindo o fio da meada que venho tentando esboçar até aqui, talvez se possa pensar que a mulher,

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FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas..., p. 297.

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ao tomar a percepção - a imagem, portanto - da castração como suficiente, acaba por criar para si um trânsito diferente daquele do homem pelos imperativos superegóicos. Ao estabelecer uma posição diferente da do homem com relação ao Outro, à Cultura, ou seja, por constituir-se pela, mas também para-além da ordem fálica, a mulher parece poder explicitar de uma forma muito particular aquilo de ridículo ou de dissonante que há nos imperativos fálicos de uma determinada época. Da mesma forma, é próprio do feminino fazer alto às ilusões de saberes totalizantes, como fica bastante evidente no papel desempenhado pela histéricas à época de Freud: elas mostravam, com seu corpo, a insuficiência do saber científico em dar conta da subjetividade. Assim, arrisco-me a dizer que toda crítica da Cultura acaba trazendo consigo um traço do feminino. Ainda, agora do lado do homem, penso que aquele momento de hesitação frente à castração pode acabar volta e meia ressurgindo em sua vida sob a forma de uma suspensão na dúvida e um receio de bancar a sua posição no mundo, uma vez que sustentar-se como desejante implica entrar na cena da castração e reconhecer-se como castrado através da castração do Outro - o que, de algum modo, coloca a própria masculinidade em questão, relança a pergunta a respeito das insígnias fálicas que povoam a Cultura. Assim, parece ficar mais clara a proposição lacaniana de que a mulher é não-toda, ou seja, que as mulheres, uma a uma, podem se constituir também para-além dos imperativos fálicos (uma vez que o significante mulher não fecha um conjunto); o homem, por sua vez, precisa da garantia fálica para se sustentar, uma vez que tem o falo como sua única referência.

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Já encaminhando meu texto para o final, gostaria de propor algo que ainda é uma hipótese teórica, e por isso mesmo interesso-me em compartilhar com vocês: será que não poderíamos dizer que essa narrativa que Freud apresenta sobre a castração não é também, de uma certa forma, a narrativa de como alguém faz o luto de uma imagem idealizada? Ceder do orgulho e mesmo da inveja não poderia ser entendido como a possibilidade de ir para-além da fascinação narcísica e fazer algo com a falta estrutural simbolizar esta falta? O que resta desta simbolização? Pensei isso a partir de uma preciosa contribuição que Ana Costa recentemente nos apresentou sobre os tempos do luto - tempos escandidos logicamente, como propõe Lacan. O primeiro tempo, tempo de ver, segundo Ana Costa, teria relação com algo do olhar que captura o sujeito, uma espécie de fascínio pela imagem; um momento de profícuas produções no registro visual. Acredito que isto dialoga de perto com o que chamei anteriormente de fixação do olhar, uma vez que me parece que, neste primeiro momento, o objeto olhar ainda não cai, o furo no Outro ainda não se apresenta propriamente como um furo. A perda não é subjetivada, o que suponho ter sua contrapartida na cena do mundo pela via do enrijecimento, no lado do homem, do orgulho e, no lado da mulher, na inveja - lembremos que propus que orgulho e inveja tem algo a ver com o narcísico e, portanto, com o registro da imagem. O segundo tempo - ainda seguindo a proposta de Ana Costa -, tempo de compreender, coloca em causa o “eu”: por que essa ofensa foi dirigida a mim? Pergunta que marca uma posição discursiva que já implica um terceiro. É um momento de “reivindicação da injustiça”. A partir do que vimos anteriormente, parece-me que é nesta altura que a mulher passa da lógica da inveja para a do ciúme, ou seja, passa a

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convocar o Outro como o agente da castração, reivindicando algo que ele deveria ter-lhe dado - já anunciando uma possibilidade de subjetivação da falta. No lado do homem, entretanto, como Freud aponta, aqui parece haver uma suspensão na imagem marcada pela hesitação - talvez uma fixação que diz algo dos embaraços com a questão fálica. Por fim, no terceiro tempo, momento de concluir, a palavra faz furo e pode-se pensar na subjetivação da falta: em vez de estar fascinado pela imagem da castração, o sujeito parte da perda para encontrar uma posição discursiva que lhe permita enredar uma narrativa. Este algo que lhe foi tirado não será nunca restituído. Seria o momento em que o homem passaria a valer-se do falo em nome próprio e em que a mulher deslizaria da reivindicação para outra forma de trânsito na Cultura, um modo de relação com o falo que não se esgotasse nos imperativos deste mas apontasse também para um gozo mais-além: trata-se da assunção da feminilidade. É também um momento de separação, em termos lacanianos.

Para finalizar, portanto, relanço as questões que me trouxeram até a escrita deste texto: pode-se dizer que há uma diferença na incidência do olhar no campo do masculino e do feminino? E com relação à palavra: uma vez que a cena da castração e da sexuação se monta de forma diferente para estes dois campos, poderíamos dizer que a palavra também incide de forma diversa? A desidealização da imagem, ou seja, a passagem do registro do visual para o do invocante, do estático para o narrativo, se daria de forma diferente?

Referências Bibliográficas

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DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo [1924]. in. ______________. Obras Completas - Volume 16: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras: 2011.

_____________. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos [1925]. in. ______________. Obras Completas - Volume 16: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras: 2011

_____________. Fetichismo [1927]. in. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, s/d.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.

LACAN, Jacques. O Seminário - Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

_____________. O Seminário - Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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