Alguns pontos luminosos

August 25, 2017 | Autor: Erik Gramstrup | Categoria: Filosofia do Direito
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ALGUNS PONTOS LUMINOSOS Erik F. Gramstrup Juiz Federal Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo INTRODUÇÃO Graças à generosidade de nossos amigos 1, tivemos a oportunidade de estar à mesa da conferência proferida pelo Prof. Paulo Ferreira da Cunha, na Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo. O eminente professor de Coimbra e autor de mais de trinta obras é ums dos jusfilósofos vivos mais importantes, na comunidade de lingua portuguesa. Já nos era grata a convivência com sua estatura intelectual, por via de seus textos conhecidos no Brasil 2; tornou-se ainda mais pelo contato com sua simpatia e simplicidade. Na alocução sobre o problema científico e pedagógico do Direito Natural, restou evidente que a tais qualificativos deve ser acrescido o dom retórico, pois o mestre, a rogo dos organizadores, deixou de lado o texto para brindar o público com animadas e envolventes indicações, temperadas por seu natural bom-humor, preciosas para quem principia o estudo do tema e que procuramos, com avidez, registrar. O que pretendemos fazer aqui é desprovido de qualquer pretensão de originalidade. Queremos apresentar aos estudantes alguns tópicos tratados pelo conferencista, por entender que aplainam o caminho e apressam os passos de quem se introduz na Filosofia do Direito. Decerto que seu próprio artigo anotará com maior rigor e irá mais longe; não podíamos, no entanto, perder e oportunidade de deixar grafadas as idéias do modo informal e atraente como apresentadas naquela ocasião. Acrescentaremos comentários de nossa lavra, mas queremos deixar claro que somos tributários do pensamento do preclaro professor luso. Com estas advertências, seja-nos permitido, com objetivos apenas didáticos, alguns tópicos. I. O DIREITO NÃO SE CONFINA NAS NORMAS Iniciou-se a exposição pela crítica da (hoje imperante) teoria normativista do Direito. É demasiado difundida e ensinada nas escolas, explicitamente ou não, a idéia de que o Direito compõe-se de moléculas 3 chamadas normas, cujo atributo principal é o de ser coativamente impostas. O conferencista chamou tal estereótipo mental de “engenharia legal” ou ainda de “tecnológico”. Não negou, é claro, a 1 2

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Registramos, nominadamente, nossa gratidão ao Prof. Luis Jean Lauand e ao Dr. Mauro de Medeiros Keller. Em particular, temos recomendado a nossos alunos a leitura de sua excelente Propedêutica Jurídica, escrita em autora com o Dr. Ricardo Dipp. Logo a seguir esclareceremos porque não grafamos “átomos”.

presença de normas dentro da conotação do verbum Direito, mas as classificou como mera estilização ou formulação verbal deste. De fato, não há como negar que o reducionismo normativista predomina na Academia e na prática, ligado a outro, ainda mais restritivo, que identifica as normas com aquelas impostas pelo Estado (ou pelos menos reconhecidas pelo Estado) e vincula-se ao preconceito legalista: o Direito é o conjunto de prescrições que consta dos Códigos, dos Estatutos, das leis complementares, das lei ordinárias et coetera. Jurista seria o manipulador desse fraseado; um técnico versado em lógica e em retórica, que reúne os átomos (as proposições prescritivas que encontra nos diplomas legais) e constrói as normas. As elabora e interpreta, atribuindo-lhes sentido e buscando otimizá-las (preenchendo lacunas, corrigindo antinomias, conferindo sentido a termos indeterminados...). Esta visão projeta pano de fundo nos manuais elementares: quando se define qualquer ramo do Direito, o gênero é “o conjunto de normas que trata de...” , seguido da diferença específica atinente a uma área de relações sociais, como “a vida privada”; “a receita e a despesa do Estado”; os “fatos típicos e as penas”; e assim por diante. Mas tudo se resolve em um amontoado de regras, mandamentos, prescrições, princípios ou como se lhes queira chamar. À força de repetir-se a cantilena, nem é necessário discuti-la com os estudantes; bacharelam-se com a convicção de que assim é, e pronto. E tudo isto, em País cujo maior expoente crítico, o Prof. Miguel Reale, tem procurado ressaltar, pelo menos, que à dimensão normativa deve ser acrescida a dos valores e a dos fatos, para compreensão do fenômeno jurídico! 4 Presenciamos, em certa ocasião, a seguinte crítica de Ricardo Guibourg: como pode ser o Direito três espécies totalmente heterogêneas? Responde-se a isto que talvez não seja por menos que não possa ser facilmente encerrado em definição concisa; continuando seus cultores em busca incessante, porque produzida no lugar equivocado. O reducionismo normativista converteu-se em armadilha inescapável, quando se aliou à perspectiva nominalista. Deixou o pensamento humano de concentrar-se na busca humilde do ser, voltando-se para si mesmo. Há algo de mórbido nesse processo: como se o artista ficasse tão encantado com seus instrumentos, que abandonasse a obra para adorá-los! Num segundo passo, ainda mais desastrado, voltou-se para as palavras. Assim, “dos entes para os conceitos e destes para os termos”, eis o grito de batalha do que se converteu na filosofia contemporânea. Tudo é um mundo (terrivelmente aborrecido, notemos) de signos, deixando-se de lado a elementar idéia de que signo é o que está em lugar de outra coisa... Os operadores do Direito não foram exceção à virada do cognoscente para o estéril e para o vazio: concebe-se o jurista como tecnocrata do conjunto de sinais que compõem o discurso prescritivo. Não por outra razão, os centros de ensino jurídico produzem gerações de entediados. Em vista do que, abriu-se um abismo, de linha kantiana, entre ser e dever-ser. Seriam duas dimensões incomunicáveis. Lançou-se fora a clássica identidade dos transcendentais: no ser está o belo, o verdadeiro e o bom. Quem ouse afirmá-lo é excomungado da comunidade pensante, pela heresia de “platonismo”. 4

O que se batizou de teoria tridimensional.

Livra-se o Prof. Ferreira da Cunha deste emaranhado com uma salutar retificação – e quiçá nossos estudantes façam uso do antibiótico: as normas são mera estilização, formulação verbal ou “casca” do Direito. Este é o SUUM, decorrência da Justiça. II. A COERCIBILIDADE NÃO É ESSENCIAL AO DIREITO A coragem de asseverar a não correspondência dos termos Direito e Coercitividade pode ser mesmo escandalosa para os ouvidos contemporâneos. Afinal, vêem neste o divisor de águas entre o sistema de normas jurídicas e outros, como as éticas, religiosas, de etiqueta e outras. Em perspectiva, de novo, kantiana, faz-se vulgarmente a distinção do Direito, pelo atributo de ser imposto de fora ao indivíduo (heterônomo) – e mediante a força, se necessário – da Ética, que seria autônoma. Tudo isto é irrelevante para quem não encerre o Direito em normas, porque a coercibilidade seria um qualificativo das mesmas. Do peso daquelas distinções artificiais livrou-se o Prof. Ferreira da Cunha, invocando o exemplo de S. Agostinho: apresentado o pirata diante de Alexandre Magno, justificou-se o primeiro, esclarecendo que a diferença de sua profissão com a dos imperadores era uma questão de grau. O que seriam os reinos senão grandes ladrões? Efetivamente, se o atributo distintivo do Direito for a violência, cairemos na aporia de Kelsen: torna-se muito sutil a diferença de um governo com um bando de facínoras. III. O DIREITO NÃO É MERO PRODUTO DO ESTADO Ademais, lembrou o comentado conferencista, permanece por explicar o fenômeno do Direito Internacional, que não dispõe de soberano único, nem de polícia que o imponha. Assim é que, livrando-nos do dogma da coercitividade, devemos também nos despir do postulado da estatalidade. Ao lado do Direito do asfalto, há um Direito da favela. 5 O Estado é apenas um ator dentre outros. Ridiculariza-se o desejo de intrometer a vontade governamental em tudo. No Código Civil Português, há dispositivo que permite ao Juiz, não havendo acordo entre os pais, decidir o nome do filho de acordo com seu melhor interesse... 6 Acenou o Prof. Ferreira da Cunha com a noção de que não tem o Direito fonte apenas na lei positiva estatal, o que nos trouxe a memória a circunstância de que, realmente, o preconceito contrário não tem foros de respeitabilidade, fruto que é de tradição histórica bem recente. No máximo, remonta ao século XVIII. Até então, sempre se admitiu a pluralidade de fontes. Surgia o Direito da natureza das coisas; da atividade prudencial de seus operadores; do estudo e discussão dos casos; do aproveitamento das fontes históricas – ao lado do Ius Romanum, ensinado nas 5 6

Comparação que nos lembrou a de um insigne romanista germânico, entre Reichsrecht e Volksrecht. De fato, cuida-se do art. 1875o., 2, do CC de 1966: A escolha do nome próprio e dos apelidos do filho menor pertence aos pais, na falta de acordo decidirá o juiz, de harmonia com o interesse do filho.

escolas, havia o Direito das Cidades, das Corporações, dos Feudos, da Igreja e do Império. IV. O DIREITO NATURAL NÃO É UMA CARTILHA DE EMPREGO RESIDUAL Permanecendo fiel às palavras do conferencista, o Direito Natural não pode ser tomado como “código-sombra de reserva.” Vale dizer, na omissão ou na insuficiência da lei estatal, recorrer-se-ia a uma espécie de cartilha ou catecismo, para solução de um litígio. V. ABORDAGEM TÓPICO-FRONOLÓGICA Definir o Direito, portanto, preferível de evitar-se, do estatalismo positivista. Melhor método consiste em relacioná-lo com a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o que é seu. VI. O DIREITO NATURAL NÃO É UM DIREITO IDEAL A observação de que o Direito Natural não deva ser confundido com um ideal abstrato decorre imediatamente da anterior. Na verdade, o Direito Positivo está embebido do Natural. Este tem a feição de um moto-perpétuo; não é uma entidade morta, como que um ideal estético irrealizável. Suas características são a incompletude e a permanente inquietação. VII. O DIREITO NATURAL SUPÕE UM TORMENTOSO PROBLEMA DIDÁTICO Um dos piores desastres (pensamos) para a História do pensamento em torno do Direito Natural foi a tentativa de fechá-lo em um catálogo de preceitos. É antes uma metodologia, uma dialética. Por isto, não pode ser ensinado segundo método puramente expositivo. Apreende-se, mas não se ensina. Nasce do diálogo, da técnica do pro et contra e da quaestio, da qual, um dos poucos sobreviventes, segundo o Prof. Ferreira da Cunha, seria a dissertation française. Lembrou o conferencista um divertido exemplo tirado de sua experiência didática, digno de ser registrado: em certa ocasião, sustentava um estudante que a desigualdade de tratamento, para efeito de sucessão causa mortis, entre filhos legítimos e naturais seria de Direito Natural. O que muito espantou seus colegas, que enxergavam, na isonomia perfeita, a expressão do justo. Logo se esclareceu a origem da divergência: o defensor da discriminação provinha do meio rural, no qual o trabalho em regime de economia familiar era comum, gerando patrimônio que, em parte, advinha da colaboração do filho legítimo. Por aí se enxerga o perigo de

encerrar o problema do Direito Natural em fórmulas prontas de uma vez para sempre. VII. CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES Como se nota, o ilustre conferencista tratou do tema à moda de médico que procurasse extirpar certos males, que turvam a vista do paciente, de onde as proposições em torno do que o Direito em geral – e o Natural – não é. E no tempo corrente não há outra saída. É que a mentalidade reinante de preconceito e rejeição perante o assunto deriva de dois desvios. O primeiro, já poderíamos batizar de desvio linguístico, que já comentamos. Está muito ligado a certas correntes nominalistas que principiaram no século XIV, foram abraçadas pelo empirismo anglo-saxão e finalmente encontraram guarida na filosofia analítica. Esta, por sua vez, impregna o pensamento de muitos jusfilósofos, e o faz notavelmente em países como o Brasil e a Argentina (há mesmo uma “escola analítica” em Buenos Aires). É muito difícil sintetizar o que tudo isto significa, mas podemos dizer que se trata do confinamento do Direito a um problema de linguagem. Comportaria, portanto, três abordagens, semântica, sintática e pragmática, referidas a um discurso de caráter prescritivo. Tal discurso seria o das normas, um tipo especial de prescrição, ao qual se acrescentam os supostos atributos que já analisamos. Há uma preocupação especial com os termos jurídicos indeterminados e com a associação da atividade do jurista como atribuidor de sentido. Rejeita-se a concepção da dita “Escola da Exegese”, que predominou no séc. XIX, porque via um único sentido correto como resultado da atividade interpretativa; mas não se consegue fugir do estatalismo, do positivismo e da associação do Direito com a violência e com a coerção. Produzem-se, assim, jogos e passatempos interessantes, mas o Direito, pensamos, é mais que isto. As justas observações do Prof. Ferreira da Cunha parecem-nos terapia adequada em vista destes equívocos. A segunda distorção está na identificação do Direito Natural com aquele apresentado pela escola jusnaturalista. Estamos a nos referir a autores como Grócio, Puffendorf e Thomasius. Na melhor linha de um evolucionismo canhestro, costuma-se pensar que este é a melhor e mais acabada concepção do Jus Naturale e que, com sua crítica e dissolução, o problema está enterrado de uma vez para sempre. Como este tipo de antolhos é voluntário, não há o que fazer em benefício do paciente senão dizer: retire as viseiras, pois existem concepções alternativas (se nos for perdoado o emprego do termo, tão em voga). Antes de discutir-se da pertinência da lei natural, é preciso, seguindo Tomás de Aquino, estabelecer que a lei (em geral) é certa medida dos atos, segundo a qual alguém é induzido a agir ou se abster. 7 Pode-se dizer, portanto, que a lei pertence à ordem da razão, porque este é o princípio de todo ato humano.

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Suma Teológica, c. 90, a. 1.

O fim a que almeja o ser humano é a felicidade, do que se infere que a lei deva dirigir-se ao bem-comum. Nenhum preceito assim pode ser chamado enquanto não se ordenar à felicidade geral, em comunidade perfeita. E se assim é, o poder de legislar é de toda comunidade, ou de quem tenha de velar pela mesma 8. Ganha força obrigatória quando promulgada. Logo, a lei é certa ordenação da razão ao bem comum promulgada por quem tem a comunidade a seu cargo. 9 Ou, em outra formulação, ditame prático de quem governa uma comunidade ordenada ao bem-comum. Para os que crêem, e reconhecem o mundo regido pela Providência, não é difícil extrair a regência da lei eterna, ditame prático da Razão Divina. A participação da lei eterna nas criaturas é a lei natural. Não há problema nenhum em admitir, a par daquela, uma lei oriunda da razão humana. Já estamos a antecipar a velha objeção de que há uma petição de princípio aqui: estar-se-ia definindo lei com o atributo inerente de justa. Mas isto não é correto. Tomás de Aquino distingue lei humanas injustas, em trecho de espantosa atualidade, por três motivos: a) pelo seu fim, quando o governante impõe leis não dirigidas ao bemcomum, mas a sua gloria ou capricho; b) por sua forma, pela distribuição desigual de cargas entre os súditos; e c) pela indução à idolatria ou incongruência com a Lei Divina. 10 Isto é apenas um deformador resumo ou extrato, que pretende apenas ilustrar que há uma visão pluralista, generosa e diferente do que seja a lei natural; e bem mais ampla e flexível do que se imagina, quando se reporta ao Direito Natural. Será trabalho para outra ocasião, com maior desenvolvimento.

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Não há sombra de autoritarismo nesta concepção, porque se está a referir, justamente, à autoridade legítima, reconhecida como tal pela comunidade. 9 Op. cit., c. 90, a. 4. 10 Op. cit., c 96, a. 4.

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