Alice no País das Maravilhas: 150 Anos

May 22, 2017 | Autor: Rogério Miguel Puga | Categoria: Translation Studies, Visual Arts, Lewis Carroll, Alice in Wonderland, Book Illustration
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Alice no País das Maravilhas 150 anos

Alice no País das Maravilhas 150 anos

Lisboa 2015

Alice no País das Maravilhas: 150 anos

biblioteca nacional de portugal catalogação na publicação

coordenadores Rogério Miguel Puga Manuela Rêgo

Alice no País das Maravilhas : 150 anos / coord. Rogério Miguel Puga, Manuela Rêgo. – Lisboa : Biblioteca Nacional de Portugal, 2015. – 119 p.: il. isbn 978-972-565-566-5 (ed. impressa) isbn 978-972-565-585-8 (ed. eletrónica)

pesquisa bibliográfica Conceição Pereira Manuela Rêgo Margarida Vale de Gato

cdu 012Carroll, Lewis

capa Júlio Amorim, 1936 [25] design tvmdesigners pré-impressão Área de Gestão Editorial bnp

agradecimentos A Biblioteca Nacional de Portugal agradece a colaboração de Conceição Pereira, Margarida Vale de Gato e Rogério Miguel Puga. Agradece ainda todas as indicações fornecidas por Leonardo de Sá quanto às adaptações de Alice em banda desenhada, publicadas em jornais e revistas. E a Maria João Amorim o ter autorizado a reprodução da ilustração da capa.

Introdução Rogério Miguel Puga

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Curiouser and Curiouser: ilustrações portuguesas de Alice Rogério Miguel Puga

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Alice também mora em Portugal Conceição Pereira | Margarida Vale de Gato

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catálogo

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Alice no País das Maravilhas Traduções portuguesas Adaptações

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Alice contada aos mais pequenos Traduções portuguesas

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Alice do outro lado do espelho Traduções portuguesas Adaptações

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Sobre Alice Índice onomástico

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Introdução Em 2015, ao celebrarmos, em todo o mundo, os 150 anos da publicação de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll (1832-1898), uma das mais conhecidas obras para crianças, em boa hora o Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (CETAPS), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), do Instituto de Educação da Universidade do Minho, o Liter21-Grupo de Investigación da Universidade de Santiago de Compostela e a Elos-Asociación Galego-Portuguesa de Investigación en Literatura Infantil e X/Juvenil decidiram juntar-se, na Biblioteca Nacional de Portugal, para celebrar a referida efeméride através da conferência que tive o prazer de coordenar e que teve lugar no dia 9 de Outubro de 2015. Para acompanhar esse evento académico que contou com a participação de investigadores portugueses, espanhóis e brasileiros foi organizada, pela Biblioteca Nacional de Portugal, uma exposição bibliográfica sobre traduções e adaptações portuguesas de Alice e que contemplou também as ilustrações nacionais em torno das aventuras da rapariguinha inglesa. A exposição esteve patente durante o mês de outubro e foi acompanhada pelo catálogo que aqui se publica juntamente com um estudo da minha autoria sobre as ilustrações portuguesas da obra, um outro, da autoria de Conceição Pereira e Margarida Vale de Gato, sobre as traduções portuguesas de As Aventuras de Alice, bem como do catálogo que lista as traduções e adaptações portuguesas e que foi realizado com base no acervo da Biblioteca Nacional de Portugal por Manuela Rêgo, Conceição Pereira e Margarida Vale de Gato. Agradecemos também a preciosa colaboração de Cristina Ferreira e de Carlos Abreu Francisco e Silva na produção da presente obra. Lisboa, 9 de outubro de 2015 Rogério Miguel Puga

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Curiouser and Curiouser: ilustrações portuguesas de Alice Rogério Miguel Puga cetaps, fcsh – Universidade Nova de Lisboa

Enchanting alice! Black-and-white Has made your deeds perennial; And naught save «Chaos and old Night» Can part you now from tenniel; But still you are a Type, and based In Truth, like lear and hamlet; And Types may be re-draped to taste In cloth-of-gold or camlet. Austin Dobson (1907: i)

Everything’s got a moral, if only you can find it. Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland

«What is the use of a book», thought Alice, «without pictures or conversations?» Lewis Carroll – Alice’s Adventures in Wonderland 1. A(s) Alice(s) de Carroll e de Tenniel, ou sobre as funções da ilustração enquanto narrativa visual

É um lugar comum afirmar que vivemos numa ‘era’ visual em que prevalece a imagem (rápida), e áreas de estudo como Cultura e Comunicação Visual provam-no, demonstrando de que forma constructos visuais moldam a nossa forma de percecionar o mundo, pelo que, face à ‘inundação’ de informação e de imaginário(s) visuais em redes sociais, talvez a pergunta que a Lagarta Azul faz a Alice se torne cada vez mais relevante: «Quem és tu?» (carroll 2000a: 51), tal como a temática da busca da identidade que caracteriza vários episódios de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865), cujas ilustrações portuguesas analisaremos de forma representativa ao

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longo deste estudo. Deter-nos-emos, embora de forma breve, nalguns dos ilustradores estrangeiros cuja obra acompanhou traduções lusas e cujo trabalho artístico se tornou parte do nosso imaginário coletivo, o que, de facto, acontece com alguma frequência, pois as editoras utilizam as imagens das edições – traduções e adaptações – que publicam. Com base na nossa investigação na Biblioteca Nacional de Portugal1, acompanharemos, assim, ao longo deste capítulo, o extenso e complexo processo de construção de Alice(s) escrita(s), desenhada(s) e colorida(s). Aliás, essa multiplicidade de Alices da autoria do próprio Carroll e de Sir John Tenniel (1820-1914), conhecido na altura sobretudo pelos seus cartoons políticos na revista Punch, bem como as (re)criadas posteriormente, levam Sircar (1984: 23-48) a conceptualizar uma rede auto- e hetero-intertextual2 de ‘outras Alices’, e Susina (2010) a desenvolver o conceito de ‘meta-Alice’ (visual). Estamos, assim, perante um exercício de inter/hipertextualidade ou dialogismo verbal-visual no caso dos textos escrito e pictórico, bem como de intertextualidade visual, ou seja, entre as várias ilustrações que surgiram desde que Carroll desenha a sua Alice em Alice’s Adventures Under Ground (1864), que referiremos adiante, mas sobretudo desde 1865, quando o autor e Tenniel criam a primeira Alice ‘visual’ pública. No que diz respeito aos Estudos Literários, a análise de textos que são multimodais ou multisemióticos (como é o caso de As Aventuras de 1865 e de Alice do Outro Lado do Espelho de 1871) não tem concedido às ilustrações o mesmo destaque que atribuir ao texto escrito. Como defendem Kress, Leite-García e Leeuwen (2000; 2001), a análise do discurso tem-se debruçado principalmente sobre textos escritos e tem valorizado a linguagem verbal (oral e escrita), em detrimento de outros modos semióticos; no entanto, a experiência literária é também visual, pois o leitor (co-)imagina

1 Agradecemos o precioso e sempre gentil apoio da Dr. a Manuela Rêgo, da Dr. a Gina Rafael e do Carlos Abreu, da Biblioteca Nacional de Portugal, sem o qual o catálogo e a exposição não teriam sido possíveis. Agradecemos à Doutora Emília Ferreira a atenta revisão deste texto. 2 Sobre o conceito de auto-intertextualidade (entre obras literárias e não literárias do mesmo autor, no caso as diversas versões de Alice criadas por Carroll, a sua correspondência e o seu diário) e hetero-intertextualidade, veja-se Roventa-Frumusani (1985: 23-30) .

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os cenários que lê; daí que Kandel (2006: 276) afirme, num estudo sobre a memória: «if you remember anything of this book, it wil be because your brain is slightly different after you have finished reading it». No caso da literatura dirigida aos mais jovens, as ilustrações, para além de adornarem e guiarem, até certo ponto, a leitura, têm também como objetivo prender a atenção do leitor-ouvinte, estimulando e enriquecendo a sua imaginação visual, enquanto se tornam parte da mesma. Aliás, como é sabido, as crianças aprendem a ler imagens antes de aprenderem a ler textos, e há uma diferença entre um texto (bem) ilustrado, em que as imagens/obras de arte conferem maior profundidade à obra, e um texto apenas com imagens (whalley 2004: 318). Como veremos, as duas aventuras de Alice pertencem à primeira categoria de livros; daí que Whalley (2004: 23) pergunte se essas duas obras, tal como as de Beatrix Potter, teriam tido o mesmo sucesso se não tivessem sido (tão bem) ilustradas, num «período notável» da ilustração britânica. Essa popularidade internacional do imaginário aliciano3 deve-se certamente quer ao facto de os enredos verbal e visual de As Aventuras não serem localizados concretamente em termos cronológicos ou espaciais (daí os seus universalismo e intemporalidade), quer à sua constante reedição, à ilustração-adaptação e à atualização nos mais variados meios. O universo das obras de Carroll é recuperado nos mais variados objetos, das formas mais surpreendentes, de canecas a filmes, pelo que a protagonista e o seu mundo se tornaram gradualmente um sucesso de marketing e uma sugestiva metáfora também nos mundos político e acadé-

3 Siegler (1997: xvii) lista as características do universo aliciano, que se foi desenvolvendo ao longo de muitas obras-intertextos até à atualidade: «an Alice-like protagonist, or protagonists, male and/or female, who is typically polite, articulate, and assertive; a clear transition from the ‘real’ waking world to a fantasy dream world through which the protagonist journeys; rapid shifts in identity, appearance, and location; an episodic structure often centering on encounters with nonhuman fantasy characters and/or characters based on nursery rhymes or other popular children’s texts, including Alice herself; nonsense language and interpolated nonsense verse, verse-parodies, or songs; an awakening return to the ‘real’ world, which is generally portrayed as domestic (a literal return home); and, usually, a clear acknowledgment of indebtedness to Carrroll through a dedication, apology, mock-denial of influence, or other textual or extratextual reference».

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mico, bastando recordar títulos como o do romance de Cathleen Schine, Alice na Cama (Alice in Bed (1983)), e os dos estudos Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, de Boaventura Sousa Santos (1994), e Alice no País do Género (Alice in Genderland (2005)), de Richard J. Novic. As Aventuras de Alice é, sem dúvida, uma das obras literárias mais publicadas, adaptadas, ilustradas e revisitadas. Como informa Siegler (1997: xi), entre 1869 e 1930, surgiram cerca de 200 adaptações e paródias das obras de Carroll em língua inglesa, período que é considerado, pelo autor, «the golden age of Carroll’s influence on popular literature». Porque somos leitores visuais desde pequenos, há imagens de livros infantis que recordamos sempre, e essa é uma das razões pelas quais muitos de nós não lemos ‘Alice’, mas conseguimos identificá-la imediatamente, bem como ao Gato de Cheshire e ao Chapeleiro, devido quer às quarenta e duas ilustrações de Tenniel em As Aventuras de Alice no País das Maravilhas (1865) e cinquenta em Do Outro Lado do Espelho (morris 2005), quer ao filme da Disney (1951)4 e às sucessivas adaptações fílmicas das obras de Carroll, como Alice in Wonderland (2010) e Alice through the Looking Glass (2016), de Tim Burton, tendo o primeiro filme dado já origem a estudos como Disney Alice in Wonderland: A Visual Companion (salisbury 2010). Aliás, a imitação, o pastiche e a recriação das Alices textual e visual começam pouco depois da publicação das Aventuras, como Carroll (1997: 2, 486) – ele próprio um artista visual enquanto desenhador amador, mas sobretudo enquanto fotógrafo (avelar 1994; taylor; walking 2002)5 – conclui ao mencionar a proliferação de «books of the Alice type». Logo no século xix, desenvolveu-se uma ‘indústria’ em torno de Alice, desde selos a jogos de cartas autorizados pelo próprio Carroll, à mais diversa memorabilia, tendo o efeito da obra nas artes visuais sido estudado por Schulz (2011: 8-35), sobretudo nos artistas minimalistas e conceptualistas e nos surrealistas, cujos teóricos e artistas consideravam Dodgson (Carroll), criador do sonho e 4 As ilustrações de Tenniel influenciam inclusive a caracterização física de Alice no famoso filme da Disney: as meias, os sapatos pretos com fita, o vestido cintado, o avental branco, o cabelo louro apanhado com fita (brooker 2004: 105) . Para uma descrição pormenorizada do vestuário de Alice, veja-se Jones e Gladstone (1998: 74-75). 5

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Sobre Carroll e o mudo artístico vitoriano, veja-se Wakeling (2011:36-55) .

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dos espelhos de Alice, um surrealista avant la lettre (schulz 2011: 14). Se, em 1995, Cohen perguntava «what charm enables them [Alice’s adventures] to transcend language as well as national and temporal differences and win their way into the hearts of young and old everywhere and always?» (cohen 1995: 135), dois anos depois Siegler (1997: xiv) responde a essa questão: «a possible answer may be found in the very number and variety of responses enabled by the form and content of the novels. Their loose, episodic dream structure and playful use of symbolic nonsense enabled varied and even contradictory readings […] like dreams, they [Alice’s books] can mean whatever readers need them to mean», resposta à qual adicionaríamos um outro argumento: as ilustrações que vão sendo adicionadas ao texto imutável e que vão gravitando em torno do e adensando o mito de Alice, pois são inúmeros os ilustradores que (re)adaptam motivos visuais e literários, tentando inclusive responder a questões levantadas pela obra e pela crítica que dela se ocupa. Em língua inglesa existem já vários estudos sobre a história da ilustração (sobretudo) anglófona de Alice, entre os quais destacamos Ovenden e Davis (1979), Stoffel (1998), Matey (1998: 48-56), Sunshine (2004), Delahunty e Schulz (2011), Jaques e Giddens (2014) e Nichols (2014), para os quais remetemos o leitor interessado. Como é sabido, a história de Alice começa em 1862, durante uma viagem de barco entre Oxford e Godstow e um lanche nesta última localidade (brooker 2004: 6-17), quando o matemático Charles L. Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, decide entreter o seu colega Robson Duckworth e as irmãs Alice (10 anos), Edith (8) e Lorina (13), filhas de Henry George Liddell, diretor do Christ Church College, contando-lhes um original ‘conto de fadas’. Carroll narra, assim, pela primeira vez, o início das aventuras da Alice ficcional, que mais tarde Alice Liddell lhe pediria que redigisse. O autor ofereceria o primeiro manuscrito (com o título Alice’s Adventures Under Ground) a Alice em novembro de 1864, como prenda de Natal, um texto com quatro capítulos, muito mais pequeno que a versão final e ilustrado pelo próprio Carroll. Nessas ilustrações amadoras, Alice parece ser mais velha que a imaginada por Tenniel, e a sua fisionomia muda de desenho para desenho, mas se as observarmos é notória a sua influência na linguagem gráfica e no imaginário de Tenniel, que recebeu os desenhos do escritor para utilizar como modelos para o imaginário visual

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da obra (hancher 1985)6, nomeadamente: Alice a desviar os cortinados, a chorar acompanhada por animais, com o pescoço alongado, a falar com o Coelho, a nadar no lago das suas lágrimas sozinha, com o rato e ainda com os demais animais, a beber da garrafa mágica, crescida e encolhida na Casa do Coelho, com a mão fora da janela, o Lagarto Bill a ‘voar’ pelos ares, a Lagarta Azul sentada no cogumelo a fumar (cachimbo), a canção do pai Guilherme, que funciona como uma história-dentro-da-história, a porta na árvore, os jardineiros a pintar rosas, o casal real no seu jardim, o jogo de croquet com animais, o Coelho a tocar a trombeta durante o julgamento e a Rainha de Copas. Todas estas ilustrações-episódios já se encontram no manuscrito de Carroll e serão depois recriadas por Tenniel, pelo que as ilustrações são um trabalho de cooperação entre ambos os artistas, com base nos desenhos de Carroll. Se é um facto que Carroll não descreveu propositadamente as personagens, deixando liberdade ao leitor e a futuros artistas, as suas ilustrações na versão manuscrita e a correspondência entre ele e Tenniel confirmam essa cooperação (ovenden; davis 1979: 6-9); aliás o próprio Carroll (2000a: 106) aconselha os leitores, num aparte do narrador: «(se não sabem o que é um Grifo, vejam na gravura)». Uma versão portuguesa (Edições Afrodite) das Aventuras recuperaria curiosamente, como veremos adiante, um desses desenhos originais de Carroll, o da Alice-telescópio. A história da ilustração da obra de que nos ocupamos começa, assim, logo na sua primeira versão manuscrita, ilustrada pelo próprio

6 Hancher (1985: 126) demonstra como Carroll escolheu a localização exata nas páginas da sua obra onde cada gravura específica iria ficar, e esta última comunicaria e misturar-se-ia estrategicamente com ‘momentos’ específicos do texto, por exemplo, a gravura de Alice a abrir o cortinado e a encontrar a portinhola é disposta para ficar ao lado do seguinte excerto da obra de Carroll «she came upon a low curtain she had not noticed before, and behind it was a little door». Esse casamento entre texto ‘verbal’ e visual concorre para o que Hancher (1985: 121-122) chama «dramatic immediacy», concluindo o mesmo autor (1985: 59) : «the hierarchy of reality according to which Tenniel ranks the figures in the foreground corresponds to the degrees of complexity that the figures present in Carrol’s story [...]. Alice is the only character in the book who might be called a “round” character [...], one who is capable of surprising in a convincing way. The Queen is relatively inflexible and predictable [...] yet she has a certain capacity to surprise, and so gets a degree of modelling».

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Carroll, continuando em As Aventuras, em Do Outro Lado do Espelho (cujas ilustrações, no que diz respeito aos movimentos e expressões faciais de Alice, são mais dinâmicas do que as da obra anterior) e em Alice Contada aos Mais Pequenos (1890), cujo título completo em inglês refere as ilustrações de Tenniel (The Nursery «Alice», Containing Twenty Coloured Enlargements from Tenniel’s Illustrations to Alice’s Adventures in Wonderland, with Text Adapted to Nursery Readers by Lewis Carroll). No início da ação, Alice pergunta a si mesma: «E de que serve um livro [...] se não tem gravuras nem diálogos» (carroll 2000a: 9), remetendo claramente para o texto visual de Tenniel que acompanha o de Carroll. Como a protagonista sugere, a ilustração e as metáforas visuais têm (também) como objetivo despertar o interesse do leitor, e quantos de nós já não pegámos num livro (e o comprámos) devido às ilustrações, que também acabam por sequencializar o imaginário de uma obra? Por essa mesma razão, Gombrich (1972: 82), defende que «the visual image is supreme in its capacity for arousal». A ilustração pode ser definida como «applied imagery; a ‘working art’ that visually communicates context to audience» (male 2007: 5), e, tal como recorda Wigan (2007: 6): […] the viewer/reader interprets and deciphers the layers of content of the visual message from their own point of view and creates a cultural context and meaning. Constructing meaning engages seeing, reading, intuition, analysis, perception, intellect, cognition, values, emotions, editing, selecting and the search for coherence. Most illustration assignments require the interpretation, decoration, clarification and intensification of a text, theme, concept or idea provided by someone else. Applied artists are faced by limitations and constraints including briefs, deadlines, reproduction, format, budget, the client and target issues.

Numa outra obra, Wigan (2008: 6) define a tarefa do ilustrador (que seguimos de perto) da seguinte forma: […] illustrators are visual communicators and picture-makers who construct meaning and convey ideas, narratives, messages and emotions to specific audiences, readers and users. Fundamental to this process is personal creative expression, the pleasure and sheer enjoyment of creative image-making and the interpretation of words and ideas into

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images. Illustration has been defined as the amplifying, elucidating, adorning, illuminating, decorating, enhancing and extending of the text. As such illustration is much more than a literal translation of the text; it can be allusive and function as an oblique counterpoint to the copy.

O mesmo autor (wigan 2008: 13) distingue ainda as diversas abordagens7 que concorrem para uma definição contemporânea e abrangente de ilustração como comunicação visual, comentário social, arte aplicada, narrativa, construção de imaginários, e que informa o nosso estudo sobre os vários ilustradores portugueses de Alice: […] to some it can be a form of visual communication, or a problem-solving activity, or a means of social commentary or journalism. To others it can be an applied art in a commercial context, or a popular humane narrative art. For designers, it is often referred to as image-making; a specialism or adjunct of the hybrid discipline of graphic design. Finally, some claim that all contemporary art and design is in fact now illustration.

De um modo geral, são várias as funções específicas da ilustração, nomeadamente a de documentar, referir ou remeter para, instruir, comentar, contar uma história, persuadir, criar identidades e imaginários (male 84-183), todas elas presentes nas obras que analisaremos, e, no que diz respeito à literatura, poderá servir (de estímulo visual) para ilustrar, enriquecer, complementar o texto e adicionar um mundo possível visual ao mundo verbal para o reforçar, questionar, parodiar ou desconstruir. Se atentarmos em Alice, há gravuras que demonstram e intensificam a momentânea falta de escala do mundo em que a protagonista se move e muda de tamanho, quando ela cresce e encolhe face ao ambiente que a rodeia. Por outro lado, se Stephens (1992) e outros autores abordam a literatura para crianças (também) como forma de controlo ideológico e de socialização das crianças pelos adultos, obviamente as imagens dessas obras também concorrem para esse objetivo, pois o leitor-observador é simultaneamente convidado

7 Sobre a ilustração como negócio e arte, e sobre a ética que deve pautar esse processo artístico, vide Heller e Arisman (2004: 1-17, 29-62, 113-126).

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a descodificar significados e significantes linguísticos e visuais. A ilustração é, portanto, também uma ‘ferramenta’ ideológica. O leitor das várias aventuras de Alice é convidado a decifrar as linguagens de Carroll e Tenniel e dos demais artistas, e todos esses criadores narram eventos e (re)criam espaços e mundos possíveis escritos e desenhados, tendo o ilustrador e o autor da obra, como demonstra a colaboração entre Carroll e Tenniel, várias questões técnicas a ponderar: que tipo de imaginário se pretende, onde deverá ficar a gravura na página, que funções tem essa ilustração e as suas cores e como dialogam com a narrativa escrita, como reforçar, ampliar, confundir, negar ou questionar a mensagem do texto e estereótipos, que tipo de desenho, materiais e de impressão utilizar, o tamanho e o formato do livro, entre tantas outras decisões técnicas, das quais não nos ocuparemos. Se, no chamado livro ilustrado, a imagem complementa o texto escrito, e no álbum/livro de imagens as imagens prevalecem, a relativamente desconhecida versão infantil de Carroll, Nursery Alice (Alice para os Mais Pequenos, doravante apmp [Fig. 1]), é um misto de ambos e prova que esses dois tipos de livro se ‘fundem’, pois Carroll, ao adaptar as viagens de Alice, reconta essa mesma história simplificada a partir das ilustrações de Tenniel, que são alteradas e coloridas pela primeira vez para essa versão dedicada às crianças dos zero aos cinco anos, que ainda não aprenderam a ler. Essa versão é inovadora, na medida em que contém a primeira capa que não é da autoria de Tenniel e as primeiras (vinte) ilustrações a cores, tendo as gravuras originais sido alteradas por Tenniel e coloridas provavelmente por Edward Evans. A capa é ilustrada por E. Gertrude Thomson (1850-1929), amiga de Carroll8, e a ideia de colorir as ilustrações originais poderá ter surgido quando Carroll viu uma adaptação holandesa de Aventuras de Alice publicada em 1874, com gravuras aumentadas e coloridas, como ele refere numa carta datada de

8 Em 1878, Dodgson vê alguns postais de Natal da série ‘Fairland’, ilustrados pela artista escocesa Emily Gertrude Thomson, escreve-lhe em dezembro e encontram-se em junho de 1879, tornam-se amigos e o autor convida-a para ilustrar Three Sunsets and Other Poem (1898), tendo a artista também redigido uma breve biografia do escritor. A ilustradora demorou tanto tempo a terminar a capa de Alice Para os Mais Pequenos que a obra quase foi publicada sem ela (cohen; wakeling 2003: 229-231; thomson 2007; wakeling 2015: 86, 111).

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Fig. 1

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1881, adiantando: «Eu fazia bem se mostrasse a minha obra às crianças mais pequenas. Estou a pensar numa Alice a cores, uma edição ‘para os mais novos’». Numa outra missiva, em 1889, descreve a obra como sendo composta por «explicações em palavras fáceis, tal como explicaríamos as gravuras às crianças» (carroll 1979: 1, 418; 2, 734, respetivamente; tradução nossa). Um dos objetivos de Carroll seria publicar um novo livro-objeto para crianças com a qualidade que a nova tecnologia de impressão então já permitiria. A referida edição holandesa de As Aventuras terá assim influenciado a adaptação do texto e a ‘atualização’ das suas gravuras. Nessa mesma versão, as narrativas paralelas (a escrita e a desenhada) vão-se tornando interativas através dos comentários e perguntas-desafios e de humorísticas sugestões (para abanar o livro físico e ver o coelho tremer), ou seja, a história gira em torno das gravuras e assemelha-se às pinturas narrativas tão apreciadas pelos vitorianos. Para ilustrar esta última obra, Carroll contratou Edmund Evans (1826-1905), conhecido pela sua inovadora técnica de impressão a cores; daí que a marca dos gravadores que produziram as ilustrações de As Aventuras, os irmãos Dalziel, desaparecesse. Evans utilizou a xilogravura polícroma, um processo que era, na altura, dispendioso, mas que permitia conseguir uma maior variedade de tons. Carroll não gostou da primeira impressão das ilustrações e exigiu uma outra impressão à Macmillan, em junho de 1889. Tal como acontecera com as primeiras Aventuras, Carroll acompanhou de perto a impressão de apmp, certificando-se da sua qualidade, como revelam Jaques e Giddens (2014) num estudo sobre a história da edição e da ilustração da Obra de Carroll para o qual remetemos o leitor interessado. Tendo as gravuras sido adaptadas e coloridas para apmp, são várias as diferenças relativamente às ilustrações de As Aventuras (puga 2015: xiii, xvi-xvii)9. Não é, portanto de admirar que Cohen (1983: 120) considere apmp uma «destilação» da versão de 1865 de cariz sobretudo oral e visual, pois assenta nos atos de contar (telling) e de mostrar (showing).

9 Sobre as alterações e inconsistências nas ilustrações de apmp, vejam-se, entre outros, os trabalhos pioneiros de Gardner (1966: v-xi) , Crutch (1975: 87-89) e Sibley (1975: 92-95).

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A adaptação10 de um mesmo universo ficcional para públicos diferentes foi assim levada a cabo pelo próprio Tenniel e pelos ilustradores de que nos ocuparemos ao longo deste capítulo. Por exemplo, Walt Disney (1951: 9) confessa, num artigo intitulado «How I Cartooned Alice», que a animação da obra de Carroll «presented the most formidable problems we have ever faced in translating a literary classic into the cartoon medium», utilizando termos interessantes como ‘tradução’ (intersemiótica) da Alice textual para um outro ‘meio’, nomeadamente a animação cinematográfica e televisiva, tornando-se claro que essa tarefa a que Disney chama tradução é um processo de adaptação. O empreendimento de ‘adaptar’ as ilustrações à faixa etária, à cultura e às necessidades do público alvo da publicação – tendo em mente as capacidades de descodificar símbolos e metáforas visuais do ‘recetor’ implicado – é levada a cabo por cada ilustrador. Num estudo sobre tradução de literatura para crianças, Klingberg aborda o conceito de adaptação – supressão, reconto, ‘censura’ ou mudança de valores, omissão/transformação de gravuras e palavras, modernização da linguagem, adição, edição, explicação, resumo, simplificação, localização, tradução, explicação ou transformação do contexto cultural –, bem como os diversos níveis de adaptação de um determinado texto (que pode ser verbal e até visual) ao ‘horizonte de expectativas’ do leitor/observador implícito, horizonte que, por sua vez, é influenciado por fatores como os interesses, saber e capacidade de leitura, entre outros (klingberg 1986: 7, 65, 85-86). Esses conceitos, debatidos no âmbito da ‘teoria da adaptação’ (hutcheon 2006), são-nos úteis para estudar as várias Alices como criações artísticas autónomas, adaptações e recriações, ou até sugestões (como

10 Se excetuarmos as versões para crianças/jovens da Bíblia e de textos clássicos para fins educativos, a adaptação de clássicos para crianças na Europa data do século xviii, por exemplo, quando Joachim Heinrich Campe publica Robinson der Jüngerer (1779), uma adaptação de Robinson Crusoe (1717). Poderemos recordar também a adaptação ‘censurada’ Family Shakespeare (1807), de Thomas Bowdler, cujo apelido é hoje usado em inglês para referir a simplificação/censura nas adaptações de clássicos («bowdlerizing»). Sobre a adaptação de clássicos, vejam-se: Lefebvre (2013) e Müller (2014 ), que, na página 3, afirma que os estudiosos dessas adaptações ‘fogem’ à teorização, ocupando-se sobretudo de estudos de caso, com a exceção de Cartmell (2007: 166-180) , que analisa a ‘censura’ das adaptações fílmicas de clássicos pela Disney com base na ideologia dessa empresa.

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acontece com a obra de António Bronze [Fig. 2]) das narrativas de Carroll. A adaptação, quer seja textual, quer seja visual, é sempre um processo dinâmico, e, neste caso, trata-se de reconsiderar e transformar uma obra que já era lida por adolescentes e jovens, e que é ‘reinterpretada’ para ser lida-observada por outros recetores. Por exemplo, como veremos, Teresa Lima insere no imaginário aliciano elementos culturais portugueses, como os azulejos, adaptando a obra culturalmente ao público lusófono, enquanto versões anteriores a 1974 ‘normalizam’ o nonsense visual, nomeadamente o episódio da Lagarta Azul a fumar narguilé.

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Fig. 2

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Não foi há muitos anos que as ilustrações de livros para crianças deixaram de ser consideradas como uma arte ‘menor’, complementar, antes de começarem a ser estudadas como obras de arte (por vezes) independentes do texto e como um meio de estimular a criança para apreciar arte (literacia visual), nomeadamente nos estudos de D. Klemin, The Art of Art for Children (1966), P. Gianciolo, Illustrations in Children’s Books (1970), J. Schwarcz, Ways of the Illustrator: Visual Communication in Children’s Literature (1982) e The Picturebook Comes of Age (1991), L. E. Lacy, Art and Design in Children’s Picture Books (1986), entre outros. Se, em 1991, Hunt (1991: 175-188) recordava que ainda não havia uma metalinguagem apropriada para estudar os complexos picturebooks, Bradford (1993, 1994) defenderia que a relação imagem/texto faz parte do paradigma pós-moderno no que diz respeito à literatura para crianças, tendo-se intensificado por altura da publicação de As Aventuras de Alice, que, enquanto texto visual, exige quer uma descodificação, por exemplo, da linguagem corporal das personagens, de intertextualidades, de onomatopeias e de metáforas visuais, quer o preenchimento de vazios11 que o texto fragmentário e as ilustrações deixam propositadamente. No que diz respeito às Aventuras, poderemos listar os seguintes episódios e núcleos temáticos mais comuns nas ilustrações, muito por influência de Tenniel: Alice a ler com a irmã, o encontro com o Coelho e a sua perseguição, a queda na toca, a sala das portas, o lago de lágrimas, a corrida eleitoral/sem meta, o diálogo com o Dodó, Alice na casa do Coelho, Bill a voar pelos ares, a conversa com a Lagarta Azul, os empregados-peixe e rã, a cozinha da Duquesa, Alice e o Porco Bebé, o chá dos loucos, o jogo de croquet, o encontro com o Grifo e a Falsa Tartaruga, a dança das lagostas, o julgamento, a chuva de cartas e o acordar final de Alice, junto à sua irmã. O Coelho Branco é uma personagem constante nas Aventuras e em apmp e, sendo o motor da queda da protagonista exploradora, acaba por (per)correr quase todas essas obras, e esses ressurgimento e dinamismo adensam o suspense e agradam obviamente ao público misto (adulto e infantil) das narrativas. A queda de Alice na toca desse animal e o mundo fantástico para o qual esta é uma porta de entrada e fronteira são retomados intertextualmente por autores como

11 Sobre todas estas temáticas, consulte-se Salisbury e Styles (2012: 56-59) .

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Salman Rushdie como símbolos simultaneamente sérios e cómicos para a experiência da emigração (walkovitz 2006). Aliás, essa descida de Alice tem sido interpretada como a entrada na «Uncanny-Land», viagem durante a qual significado e significante se fundem, sugerindo as possibilidades do universo simbólico (rudd 117) que se instaura durante a queda que é ‘universal’ também em apmp, obra na qual as ilustrações passam a ser o motor através do qual o narrador conta a história de Alice às crianças, exigindo e ensinando uma observação atenta aos detalhes reveladores dessas obras de arte, pelo que a narrativa refere, inclusive, Tenniel, como o autor dos significados e significantes das mesmas. Centenas, senão milhares, de ilustrações de artistas estrangeiros foram atualizando e diversificando a semântica e o ambiente do imaginário do país das maravilhas, através de pop-up books (e. g., o de Robert Sabuda (2003)), de livros de receitas culinárias (The Alice in Wonderland Cookbook, de John Fisher (1976)), de alegorias de mecânica quântica (Alice in Quantumland, de Robert Gilmore (1995)), de livros de autocolantes (Alice in Wonderland: First Sticker Activity Book, ilustrado por Dan Taylor (2015)), de adaptações do enredo com ambientes góticos ou universos habitados por zombies (Alice in Zombieland, de Nikolas Cook (2009)) e de inúmeros livros de atividades lúdicas e educativas, passando, no caso de Portugal, por exemplo, por adaptações teatrais para crianças, como a que Filipe La Féria encenou com base nos principais episódios da obra que temos vindo a referir, imagens que foram posteriormente publicadas no livro da peça da autoria de La Féria (texto) e da ilustradora Marta Anjos (2010) [Fig. 3]. O mundo da moda é outro universo que se ‘apropria’ do imaginário de Alice, nomeadamente os estilistas Donatella Versace, Stella McCartney, Antonio Marras e Yasutaka Funakoshi. Torna-se, portanto, evidente que as aventuras de Alice interessam a todos os tipos de público e ganham forma nas mais variadas manifestações culturais ‘populares’ e ‘eruditas’, do teatro aos parques de diversão. Entre muitos outros guionistas e realizadores, Nick Willing, filho dos pintores Paula Rego e Victor Willing, adaptou a história de Alice para a nbc em 1999 (Alice in Wonderland) e transportou-a até ao futuro para o canal Syfy, em Alice (2009). Essas transformações acontecem através de mundos (im)possíveis ora mais coloridos, ora mais sombrios, como acontece com as aguarelas de Peter Newel (1901), um d os primeiros ilustradores norte-americanos a produzir o seu próprio

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imaginário aliciano, e de Mira Coviensky (It’s Always Tea-time, Acetate tunnel book (1998)), passando pelas paisagens oníricas e algo metafísicas de Anne Bachelier (2005), ou pelos universos mais surreais das doze heliogravuras de Salvador Dalí (1969), ou os padrões geométricos de Max Ernst (1970), que transportam Alice para o século xx, juntamente com artistas como Leonard Weisgard (1949), Adrien Piper (1966), Tove Jansson (1966), ou Ralph Steadman (1973), entre tantos outros.

Fig. 3

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2. Down the Rabbit Hole: ilustrar Alice em Portugal

Antes de analisarmos as ilustrações lusas de As Aventuras, debrucemo-nos um pouco mais sobre o diálogo entre palavra e imagem em obras literárias. Num estudo pioneiro sobre álbuns/livros de imagens, Nodelman (1988) analisa a inter-relação entre os aspetos visuais e ‘verbais’ sobretudo dos livros para crianças e a forma como estes estimulam e veiculam informação, e fá-lo através de conceitos como ritmo, estilo (significado), design e outras características visuais, estudando de que forma os elementos imagéticos se relacionam entre si, como se representa visualmente a ação e a passagem do tempo, bem como de que forma a sequência de eventos afeta o significado daquilo que é representado, processos que analisaremos em algumas das ilustrações portuguesas. Na página x, o referido autor defende que a comunicação visual, tal como a comunicação verbal, tem um ‘gramática’ própria, um sistema de relações e de contextos de que nos ocupamos ao longo deste trabalho. Wigan (2007: 35) define essa mesma gramática da seguinte forma: […] design elements must be co-ordinated into a whole, combining balance and harmony with variety and the unexpected in order to avoid monotony. Diversity and vitality can be achieved by exploiting the vertical or horizontal formats of pages and the flow and positions of images, for example, the use of margins, gutters, page bleed, double-page spreads, spots, half pages, full pages, vignettes and panels. Illustrators control the use of visual grammar and play with syntax as they craft narratives that enable readers/viewers to identify and empathise with characters and dramatic situations12.

Para Kennedy (1974: 56) e Nodelman (1988: 6), a interpretação imediata (reconhecimento) de imagens não necessita de tanto treino como a da componente verbal de um ‘iconotexto’13, pois esse visionamento é (mais)

12 Para um estudo sobre a gramática do design visual e a semântica social da imagem (visual), veja-se Kress e Leeuwen (1996). 13 As Aventuras de Alice é um ‘iconotexto’ (composto por texto e ilustrações), conceito de Hallberg referido por Nikolajeva e Scott (2006: 11-12) .

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imediato, defendendo esses autores que as imagens clarificam um texto porque (se) comunicam imediatamente e sem grande esforço de descodificação; no entanto, esta posição tem-se tornado cada vez mais problemática, à medida que os universos visuais de obras literárias se foram complexificando e até melhorando, e foram também sendo interpretados como obras de arte, exigindo atenção e interpretação por parte do leitor-‘observador’ interessado. Por essa mesma razão, a partir dos anos 80 do século passado, autores como Roxburgh (1983-1984: 20) reclamam que a narrativa é «the most vital element in literature for children, not only in the novel, but also in the modern picture book», falando Salisbury e Styles (2012: 9) da «arte visual de contar histórias» e de «literatura visual» ao estudar picturebooks. Já Lewis (2001: 46-60), ao analisar aquilo a que chama «ecologia do picturebook», discute (2001: 35) o útil conceito de ‘interanimação’ para veicular o movimento dos nosso olhos (e mental) entre as palavras e as imagens sucessivamente: «far from leaving behind the meaning or effects of one medium as we enter the other, we carry with us something like semantic traces that colour or inflect what we read and what we see», ou seja, as palavras e as imagens «interanimam-se» (expressão de Margaret Meek, citada por Lewis (2001: 35), nossa tradução), não sendo, de acordo com o autor, a relação simétrica, pois o que o texto faz às imagens não é o mesmo que as imagens fazem ao primeiro. O autor chama a nossa atenção para detalhes das ilustrações, pois estas fornecem especificidades ao texto – cor e forma, por exemplo – que de outra forma este não teria 14. As três obras de Carroll sobre Alice vivem desta interanimação e do diálogo íntimo e revelador entre texto verbal e visual, relação que se esbate, até certo ponto, nos ilustradores posteriores, mas que continua a ser essencial. Se a história é contada através da viagem-fuga entre as ilustrações e o texto, também se torna óbvio que as ilustrações têm beneficiado do desenvolvimento das técnicas de impressão e da tecnologia digital, sendo cada vez mais frequentes os profissionais que se auto-designam como ilustrador-designer, ilustrador-escritor ou artista digital (vide frank 2007). 14 Estudos como o de Bang (2000) analisam de que forma as imagens e os seus elementos individuais se relacionam para ‘contar’ uma história que convoque emoções, explorando a autora as razões pelas quais as curvas acalmam, o azul é uma cor considerada fria e o vermelho quente; veja-se também Mitchell (1994).

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Essas transformações alteram a forma de representar Alice e o seu maravilhoso país, pelo que os sucessivos livros sobre a protagonista e as suas ilustrações artísticas são também documentos culturais e históricos. Aliás, «The Mouse’s Tale» é um dos primeiros exemplos de texto literário visual que assume a forma do tema que aborda de forma semelhante à da poesia visual ou experimentalista, tornando-se ilustração e texto um só. Sendo o leitor convidado a organizar a informação visual, a análise das ilustrações terá que considerar os aspetos psicológicos e pedagógicos da perceção e da leitura visual; daí que Virginia Woolf (1948: 83) afirme, de forma arguta: «the two Alices are not books for children; they are the only books in which we become children... To become a child is very literal; to find everything so strange that nothing is surprising; to the heartless, to be ruthless, yet to be so passionate that a snub or a shadow drapes the world in gloom. It is so to be Alice in Wonderland». As novidades ao nível da ilustração surgem sobretudo no século xx, após 1907, quando a obra deixa de estar ‘protegida’ pela lei do copyright. Os artistas surrealistas sentiram-se obviamente atraídos pelo mundo onírico e algo alucinante de Alice e das maravilhas, nomeadamente, Salvador Dalí, René Magritte, o pintor pop Peter Blake e uma das mais conhecidas artistas japonesas, Yayoi Kusama (n. 1929), cujas ilustrações remetem para um universo algo alucinado/alucinante. Em Portugal, no início da década de trinta do século xx, as primeiras ilustrações representam uma Alice morena, cujo universo perde alguma dimensão do nonsense, como podemos verificar logo na capa de Alice no País das Fadas, da coleção Manecas (1930), iniciada nos anos 20 pela editora Romano Torres [Fig. 4]. A capa da autoria do artista júlio de amorim (1909-1988), ilustrador da referida coleção, é interessante pelo facto de Alice não ser uma criança de sete anos loura, mas sim uma adolescente morena, estereótipo que se adequaria mais à autoimagem dos portugueses (na altura). Curiosamente, no desenho a tinta-da-china colorido a guache, Alice é mais alta que os minúsculos cogumelos e olha para baixo, para poder ver a Lagarta, que segura um familiar cachimbo fumegante e não o narguilé, que seria mais estranho para o jovem público português. Há, portanto, uma adaptação cultural (e étnica) com base no horizonte de expectativas dos leitores e dos ethos e moral vigentes, sendo o nonsense esbatido, pois a proeminente lagarta é transformada num animal de

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Júlio de Amorim

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Fig. 4

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tamanho reduzido e personificado de forma (mais) ‘normal’, a fumar cachimbo (objecto associado ao universo masculino). Na capa de uma outra edição da mesma coleção (1942), mas já com o título Alice no País das Maravilhas: Novela Contada às Crianças por Henrique Marques Júnior, com a informação «desenhos de Amorim», Alice está também vestida de azul, com um laçarote na cabeça e um outro que ata o vestido atrás, como acontece em apmp. No entanto, os tamanhos de Alice e dos outros elementos e a sua disposição mantêm-se. Os desenhos no interior da obra ilustram apenas cada início de capítulo e contemplam, logo no início da ação, curiosamente, Alice e a sua irmã a ler, o Coelho que passa de relógio na mão, o lago de lágrimas e uma conversa entre o rato e a protagonista. A irmã de Alice, mais ‘adulta’, é uma personagem pouco frequente nas ilustrações da obra, aparecendo normalmente no início (antes do sonho) ou no fim da ação, quando Alice acorda. Tenniel não contemplou a irmã (anónima), mas Carroll desenhou-a logo no início do seu manuscrito Under Ground, e a personagem poderá simbolizar o mundo dos afetos, da família, da realidade e dos adultos. A irmã, tal como a toca do Coelho Branco, baliza os mundos reais e maravilhoso, logo não faz parte das múltiplas dimensões que compõem Wonderland no texto de Carroll e sobretudo nas ilustrações, dimensões essas que incluem gestos (ações e movimentos), expressões faciais, vestuário, arquitetura e paisagens natural, humana, etnográfica e cultural, bem como artefactos e objetos transportados pelas personagens, entre outros símbolos. A tradução de Maria de Meneses (Aventuras de Alice no País das Maravilhas), publicada pela Portugália Editora, em 1943, e posteriormente, como n.o 3 da coleção «Biblioteca das Crianças», é acompanhada pelas gravuras originais de tenniel. Essas ilustrações originais são ainda utilizadas, em 1971, pelas Edições Afrodite, na coleção «Extra-Colecção», coordenada por Fernando Ribeiro de Melo. As gravuras são quase só utilizadas na capa e acompanham uma tradução ‘livre’ de José Vaz Pereira e Manuel João Gomes, que também redige a introdução e as notas, num curioso formato reduzido, com uma ilustração extra na introdução, e um original arranjo gráfico de José Marques de Abreu que dialoga com o paratexto inicial também chamado «átrio». A introdução é ilustrada por uma Alice de pescoço esticado que sai do chão, imagem que o próprio Carroll desenhou na p. 62 do manuscrito original da história, «Alice’s Adventures Under

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Ground». Na página 12 da introdução, o leitor descobre que «Alice é uma personagem-telescópio» numa viagem erótica (16) e de amor, tema que percorre toda a front matter. Essa mesma metáfora da personagem-telescópio que se abre e fecha é utilizada pela própria Alice de Carroll na sala das portas, ao desejar poder encolher e esticar, como o referido objeto. Os textos que acompanham essa edição são um interessante jogo também parodístico em torno da obra de Carroll, como o próprio arranjo gráfico indica. Em 2000, a Relógio D’Água publica a melhor tradução para português dos dois livros sobre Alice (As Aventuras e Do Outro Lado do Espelho), da autoria de Margarida Vale de Gato, que também é acompanhada pelas ilustrações de Tenniel, como já acontecera com as traduções de Maria Filomena Duarte (Publicações D. Quixote, (carroll: 2000b)) e de Vera Azancot (Abril/Controljornal, 2000), que apenas contém uma dessas gravuras, a do Grifo deitado sozinho (67), sendo a ilustração a cores da capa da autoria de andré kano, na qual uma Alice ‘modernizada’ (e acompanhada pelo Coelho Branco que vê as horas) é ladeada por cartas com os símbolos de oiros e de copas. O tradutor e artista modernista francês rené bour (1909-1934)15 traduz a obra de Carroll para francês e ilustra-a com desenhos em linha minimalistas, criando uma Alice que ganha forma através de simples contornos [Fig. 5]. A sua edição é publicada postumamente nos anos 30 do século xx por diferentes editoras francófonas (1932, 1937, 1938), mas as ilustrações seriam ‘reveladas’ sobretudo através de uma edição suíça de 1951. Os desenhos de Bour assemelham-se às construções do artista norte-americano Alexander (Sandy) Calder (1898-1976), e são utilizados em Portugal na versão da editora Guimarães, publicada em dezembro de 1951 e com uma nova tradução de Henrique Marques Júnior. A Edições Majora (1962) publica as aventuras de Alice num livro de pano para crianças que apresenta uma linguagem gráfica tradicional, gramática visual que era comum na literatura para crianças da altura. Essa adaptação de Costa Barreto é ilustrada pela pintora portuguesa laura

andré kano rené bour

15 A tradução de Bour (Alice au pays des merveilles), publicada em Paris, pela editora Desclee de Brouwer, em 1937, é prefaciada pelo jornalista, ensaísta e romancista Pierre Mille (1864-1941), que se refere a Bour, que falecera aos 25 anos de idade, como uma figura trágica (um clássico herói trágico) no mundo artístico francês.

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Fig. 5

(Nogueira) costa (Porto, 1910-1992), conhecida sobretudo pelas suas ilustrações de trajes típicos portugueses, de catecismos e de livros de contos e escolares, e que foi das mais produtivas ilustradoras de livros para crianças e de costumes tradicionais lusos da década de quarenta do século xx. A sua Alice é loura e terá menos de sete anos, sendo representada inicialmente a dormir e, logo, a sonhar, num ambiente bucólico. As outras ilustrações exibem-na a beber da garrafa mágica e a dialogar com o Coelho à porta da casa dele, edifício que é ‘exoticizado’ através da arquitetura nórdica. Entre os espaços alicianos mais recriados por ilustradores encontramos os três lares da obra, o da Duquesa, o do Coelho e o do Chapeleiro, o paupérrimo chá de loucos, ao ar livre. Laura Costa representa ainda um outro diálogo, o de Alice com as flores, cujas cabeças femininas veiculam a estratégia literária da personificação. A moldura do encontro-diálogo de Alice com os guardas da Rainha, que pintam as rosa de vermelho, ecoa Tenniell, tal como a chuva de cartas que, no caso desta obra, já aterraram no solo e são soldados ameaçadores, de espadas e braços em riste, enquanto Alice foge, rumo à realidade [Fig. 6].

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Laura Costa

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Fig. 6

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Em 1981 as edições Europa-América publicam, na coleção «Os Grandes Clássicos Infantis», uma adaptação da obra de Soledad Martinho Costa para o público infantil, ilustrada por rui pimentel (1924-2015). As coloridas ilustrações representam uma Alice loira, com vestido azul e avental branco, semelhante à de Tenniel, mas adaptada a um público infantil dos anos 80 do século xx. No entanto, na folha de rosto há um interessante exercício de atualização, pois a sorridente protagonista é representada com jardineiras vermelhas e ténis, mais à semelhança das leitoras de então. Trata-se de uma Alice visual mais «cheinha» que vive os episódios representados por Carroll e Tenniel, que são obviamente atualizados e coloridos, da queda na toca que está decorada como se fosse um quarto de criança, à colorida sala das portas onde Alice encolhe. Tal como na obra de Teresa Lima, também Rui Pimentel desenha, numa mesma ilustração,

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várias sequências de ações ou de elementos que, por sua vez, remetem, de uma só tirada, para diferentes momentos da ação, por exemplo a imagem de Alice com o pescoço esticado junto da Lagarta que não é azul e se assemelha a uma lagosta, encontrando-se o cogumelo já trincado. A leitura do texto verbal dará sentido a esta panóplia (sequencial) de ações, nomeadamente à cena da cozinha da Duquesa, que se presta a uma interpretação grotesca e humorística, tirando o artista partido da expressividade das faces da protagonista e das demais personagens ao longo da obra, como acontece com a Rainha, representada sempre de forma grotesca, retrato que caracteriza a sua personalidade, em consonância com o texto de Carroll [Fig. 7]. Se a Rainha é apresentada como uma mulher determinada, corpulenta e violenta, o Rei é envelhecido e caracterizado como resignado e física e psicologicamente debilitado, havendo, portanto, uma intensificação visual da estratégica inversão dos papéis tradicionais em termos de género, num universo policromático em que prevalecem o vermelho e outras cores quentes. A Editora Portugália publica várias vezes (5.a edição, 1966) a tradução de Maria de Meneses, nomeadamente na coleção «Os Pioneiros» (para crianças com mais de oito anos), com ilustrações coloridas e a preto e branco da autoria do criativo gráfico de publicidade, ilustrador, escritor, maquetista-cenarista, escultor e pintor figueiredo sobral (1926-2010), que são das mais originais representações portuguesas de Alice. Figueiredo Sobral auto-caracterizava-se um ‘surrealista barroco’, e as suas ilustrações

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Figueiredo Sobral

Fig. 7

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revelam uma Alice de vestido cor-de-rosa, amadurecida, sorridente, de cabelo curto louro, rodeada por uma ‘multidão’ de animais (personificados) e das respetivas sombras, envolvidos por tons quentes [Fig. 8]. As obras demonstram uma influência surrealizante, e na ilustração da sala das portas alguns riscos pincelados criam a sensação de movimento de Alice ao beber a poção mágica, destacando-se, ao longo das ilustrações, o jogo de cores e sobretudo de texturas na representação da decoração interior. As ilustrações a preto e branco contemplam a mesa da sala de vidro, o gesto da tentativa de abertura da portinhola, com um plano inclinado, o encontro com o Coelho na sala, a corrida eleitoral, ou sem meta, e o diálogo com um Dodó magro (e que facilmente se confundiria com outra ave), que é aliás, uma das mais ilustradas personagens personificadas por Carroll. O recurso ao enigmático e famoso dodó permite ao escritor localizar a ação num passado recuado e intensificar o aspeto ficcional (e até o nonsense) da narrativa, pois esse animal estava já extinto em 1850, e só foi ironicamente imortalizado após ter desaparecido por completo16. O dodó tornar-se-ia um símbolo ambiental vitoriano, e alguns ossos de um desses animais que faziam parte do espólio do Museu Ashmolean de Oxford despertaram o interesse académico, tornando-se, portanto, curioso que Carroll o utilize, provavelmente como uma autorreferência parodística, pois crê-se que Dodgson, que gaguejava, terá utilizado o cacofónico nome do animal para brincar com a forma como ele próprio diria o seu nome «Do...Do... Dodgson» (haughton 1998: xvi). Já o Pato e a Arara que, na obra original, aparecem na corrida e que Figueiredo Sobral também representa, funcionariam como caricaturas de pessoas reais, o Pato (Duck) seria a caricatura do Reverendo Duckworth, o quinto membro da viagem de barco durante a qual Dodgson inventaria a história do País das Maravilhas, e a Arara (Lory)

16 Tendo sido considerado um animal mítico por alguns cientistas até ao século xix, o dodó foi extinto por ação humana (colonização europeia das ilhas Maurícias) um século antes de Cuvier provar a sua extinção e de o animal ‘conquistar’ fama póstuma. Um retrato de um dodó da autoria de Jan Savery (1651), que se encontra ainda no Museu de História Natural de Oxford, terá influenciado Carroll, que visitou o museu várias vezes com Alice Liddell e outras crianças. O famoso quadro de George Edwards (1759) poderá também ter servido de inspiração ao escritor (turvey; cheke 2008: 149-163; parish 2013).

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Fig. 8

seria a caricatura de Lorina Liddell, a irmã mais velha de Alice. Quanto a outras personagens também contempladas por Sobral, o Chapeleiro Louco seria a caricatura de um conhecido residente de Oxford que usava sempre chapéu (Theophilus Carter), ecoando a personagem também o ditado popular britânico «louco como um chapeleiro» («as mad as a hatter»), enquanto o Gato de Cheshire invoca um outro ditado «sorrir como um gato de Cheshire» («a grin like a Cheshire Cat»). Também a

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Fig. 9

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louca Lebre de Março faz eco do ditado «louca como uma lebre de Março» («Mad as a March Hare»), que remeterá para o comportamento das lebres que acasalam em março17.

17 Sobre as possíveis figuras históricas que influenciaram personagens do mundo de Alice, veja-se Nichols (2014: 13-14). Brooker (2004: 69-70) nega que o nome Bill the Lizzard seja um jogo fonético em torno do nome Benjamin Disraeli.

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Uma outra ilustração, a do diálogo com os animais antes e depois da corrida sem meta/eleitoral, exibe uma ‘explosão’ de cores, pois os convivas são fortemente coloridos, inclusive o Dodó, que é pintado de azul, vermelho e branco, lembrando a profusão de cores de um pavão ou de outro animal exótico. A ‘exoticização’ através da cor concorre, assim, para a desfamiliarização do espaço da ação e dos protagonistas do mundo das maravilhas, invocando o ambiente onírico e desconhecido que caracteriza, aliás, esse mesmo universo do nonsense. É ainda adicionado um exótico macaco ao retrato zoológico, sendo Alice a mais pequena e indefesa das criaturas, sentada no chão, tal como na gravura de Tenniel, enquanto quase todos os animais assumem uma postura vertical, e o pano de teatro transforma o espaço num palco e a ação em algo encenado, ou até num circo, universos para os quais remete a colorida e circular vedação que rodeia o espaço em que os animais (na sua esmagadora maioria aves) e Alice se encontram. O exotismo policromático marca, aliás, todas as ilustrações coloridas, nomeadamente a que representa a Lagarta no alto do seu cogumelo a conversar com a protagonista. Os padrões de cores da Natureza, nomeadamente dos cogumelos ‘psicadélicos’ (ecos da crítica literária dos anos 60-70 do século xx), bem como do tapete em que a Lagarta, com face exótica, se encontra, concorrem para essa sensação de dépaysement quase forçado. Aliás, a Lagarta poderia ser um génio e o narguilé a sua garrafa, pois o fumo expelido sugere o rasto que o primeiro deixaria ao sair do recipiente mágico. O episódio do Lagarto Bill a voar pelos ares ecoa a ilustração de Tenniel, não faltando o fumo a sair da chaminé. A casa do Coelho Branco é vista de fora e marcada pela arquitetura nórdica, tal como acontece com a ilustração de Laura Costa (Edições Majora), paisagem bucólica que não foi representada por Tenniel e que mais à frente regressa, quando o Coelho é representado a ver as horas a caminho de casa. Um outro lar exterior, emoldurado por uma casa ‘rendilhada’, é o Chá dos Loucos, muito semelhante ao de Tenniel, embora a Lebre e o Arganaz se assemelhem a animais de peluche e o Chapeleiro seja uma criança, destacando-se o faustoso cadeirão em que Alice está sentada [Fig. 9]. Traços iconográficos como o preço do chapéu do Chapeleiro desaparecem na ‘realidade’ portuguesa, enquanto a caracterização física de algumas personagens é, por vezes, alterada por sucessivos ilustradores que não seguem as ‘didascálias visuais’ do autor, como acontece no caso da Duquesa, que, no texto de Carroll, tem

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queixo pontiagudo, ou com Alice, cujo cabelo o Chapeleiro afirma estar demasiado comprido e que nas ilustrações de Figueiredo Sobral está curto. Há, como já vimos, ilustrações fortemente influenciadas pelas de Tenniel, como o encontro de Alice com o cachorrinho algo abstrato (42); o Chapeleiro em movimento, com a torrada e o chá nas mãos (109); o Coelho Branco a tocar a Corneta com o pergaminho na mão (118), num palco algo ‘mondriano’; os jardineiros-cartas a pintar as rosas (80); o Gato de Cheshire sobre o rei e a rainha (83); a Lagosta ao espelho (102), quadro adornado por mobília ‘barroca’ e a chuva de cartas (120), encontrando-se Alice rodeada de animais apavorados, o que intensifica os seus pânico e solidão; Alice com o porquinho bebé; o Gato de Cheshire, mais normal e ameaçador e menos sorridente que o de Tenniel; as imagens alusivas à canção sobre o Pai Guilherme (47-48), que é um micro-enredo pouco ilustrado, desta feita com menos background que as de Tenniel; a Quadrilha das Lagostas (96); o diálogo do Chapeleiro e do Arganaz à mesa (68); o Criado-Peixe e o Criado-Rã, de libré e, mais uma vez, numa situação de diálogo (56). Muitas das ilustrações, nesta e noutras edições das aventuras de Alice, representam situações de diálogo entre personagens, porque a obra assim o exige e devido ao dinamismo e à mensagem que a imagem reforça em relação ao texto. O ambiente humanizado no jardim da Duquesa, um novo espaço no universo aliciano, é algo modernista, das formas geométricas arquitetónicas, aos padrões, formas e texturas sugeridos, passando pela representação da estatuária decorativa exterior. Também existem ilustrações que representam episódios não ilustrados por Tenniel e que são da inteira responsabilidade de Sobral, como a do passeio de Alice, por entre vegetação, passando por uma fonte em forma de concha (recorde-se o epíteto de ‘surrealista barroco’ que Sobral atribui a si mesmo), com um peixe por onde sai água, enquanto outras gravuras são ‘modificadas’ (relativamente às de Tenniel), por exemplo, a de Alice a falar com a Duquesa no intervalo do jogo de croquet, em que esta última está vestida de fada e carrega um bebé (animalizado) nos braços (88), mantendo o semblante pesado, ou a ilustração do Grifo e da Tartaruga Falsa, em que Alice se encontra de costas (92). Essas ilustrações e a tradução de Maria de Meneses seriam utilizadas de novo pela editora Vega, na sua edição da obra em 2008. É curioso que Sobral vista a Duquesa de fada, pois o mundo das fadas é recuperado por Carroll nos paratextos que acompanham as aventuras de Alice, afirmando

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estudiosos como Sundmark (1999) que as histórias do país das maravilhas assemelham-se a contos de fadas. Em apmp, as aventuras são ‘contadas’ por alguém em voz alta que mimetiza a antiga arte de ‘contar histórias’, e o incipit do texto («Era uma vez») remete para os contos de fadas, que a própria Alice refere em As Aventuras18 e que marcam presença nos paratextos e no episódio do Gato de Cheshire em apmp. Se Charles Dickens se refere aos contos de fadas como «reservatórios de imaginação» («nurseries of fancy» (apud stone 1973-1974: 237)), o paratexto poético de As Aventuras «Votos de Natal» remete para esse universo de fadas e duendes, que Carroll associa à sua obra numa carta (10-06-1864) que refere as dificuldades que ele sente ao tentar escolher um título para As Aventuras, apresentando várias hipóteses: «As Aventuras de Alice no Subsolo... A Hora Dourada de Alice... Aqui estão os outros títulos em que pensei: Alice entre os duendes/goblins; os feitos/as horas/as aventuras de Alice na terra dos duendes/no país das maravilhas» (lewis 1979: 1, 65; tradução nossa), informando que a última opção é a sua favorita. Uma das recriações do universo aliciano mais (des)conhecidas dos residentes de Lisboa e de viajantes é o Coelho apressado a olhar para o relógio nos gigantescos painéis de azulejos que adornam as paredes das plataformas da estação de Metro do Cais do Sodré, da autoria de antónio dacosta (1914-1990), cuja legenda simbólica recorda os viajantes que o animal personificado e em trânsito está ‘atrasado’. O sítio da Câmara Municipal de Lisboa informa que «Dacosta, pintor surrealista e depois abstrato, […] antes de falecer deixou alguns esboços para a estação do Cais do Sodré, os quais foram integrados na estação segundo a interpretação do pintor Pedro Morais»19. Aliás, o original dessa imagem literária, (re)interpretada por Pedro Morais, foi o cartão de visita da exposição retrospetiva e comemorativa do centenário do nascimento do pintor organizada, entre outubro de 2014 e janeiro de 2015, no Centro de Arte Moderna

António Dacosta

18 Na casa do Coelho, Alice afirma: «Dantes, quando lia histórias de fadas, costumava pensar que esse género de coisas nunca aconteciam, e agora aqui estou no meio de uma! Deviam escrever um livro sobre mim, isso é que era!» (carroll 2000a: 41).

19 Câmara Municipal de Lisboa (acesso 12-05-2015).

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(cam), da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, cujo catálogo António Dacosta: Catálogo Raisonné20 informa que a proposta de decoração da estação do Metropolitano do Cais do Sodré foi feita em novembro de 1989 pelo arquiteto Nuno Teotónio Pereira e pelos responsáveis do Metropolitano. Em outubro de 1990, Dacosta inicia um bloco de desenhos preparatórios (Coleção Família Dacosta), mas falece antes de terminar o projeto. Pedro Morais, que já estava envolvido no projeto, é convidado por Miriam Dacosta para desenvolver a obra com base nesses esboços originais do pintor. Morais optou por escolher um só desenho que foi repetido 12 vezes com a frase «estou atrasado». Note-se que no esboço original a frase redigida por Dacosta está em inglês «I’m late»21. A produção e instalação dos dois painéis foi iniciada pela Azulejos Rugo a 28 de fevereiro de 1997 e concluída a 14 de janeiro de 1998, e a estação foi inaugurada em abril desse ano. O imaginário do país das maravilhas, sobretudo a única personagem que habita os dois mundos sem ser Alice, acompanha o viajante no Metro de Lisboa, uma enorme ‘toca’, semelhante à que possibilita Alice viajar rumo a um novo mundo. Fig. 10 Nicolae Negura (2014) Coelho em forma de sardinha.

20 Fundação Calouste Gulbenkian – António Dacosta: Catálogo Raisonné: (acesso 12-08-2015). 21 O esboço original pode ser visto no catálogo digital da obra de Dacosta organizado pelo cam:
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