Alienação e técnica em Kafka e Benjamim
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ALIENAÇÃO E TÉCNICA EM KAFKA E BENJAMIN Abraão Carvalho abraaocarvalho.com
A reprodução técnica em massa de imagens, seja a partir da fotografia ou do cinema, arte que só se faz possível sob o princípio formal da reprodução técnica, a partir do corte de imagens e da montagem; bem como a técnica de materiais impressos e da reprodução técnica da música, revoluções técnicas estas que ocorreram no último século e que não obstante foram apropriadas hegemonicamente pela burguesia. Isto é, tal técnica instrumentalizada principalmente enquanto mecanismo para difusão de informação - “formação”cultural, a partir de suas instituições e associações político-culturais (rádios, redes de televisão, jornais impressos, revistas, livros, gravadoras, editoras, Institutos de Pesquisa voltados para o ensino e produção intelectual, difusão cultural de informações via Internet, armas, etc), visam não obstante legitimar cosmovisões que tem como características em comum, apresentar a ilusão falseadora de um mundo em que liberdade e opressão, miséria e luxúria, produtividade e destruição, alienação coletiva diante da técnica enquanto instrumentos
de
autoconhecimento
e
resistência
em
função
da
livre
apropriação desta técnica como formas de manipulação social e legitimação das necessidades políticas, econômicas e culturais da classe hegemônica no interior da sociedade capitalista, possam coexistir aterrorizantemente em uma suposta harmonia. Benjamin a partir daí afirma que estamos sujeitos à uma comunidade onde “o mundo do trabalho toma a palavra”1 . Produzindo uma compreensão de realidade onde o universo da contradição é refutado, e sobretudo é afastada a possibilidade de se vislumbrar algumas das resultantes da pobreza de experiência da comunidade humana contemporânea urbana, que consegue 1
“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (Primeira versão), Benjamim
1
apenas transmitir, tal qual o cão narrador e Odradek, através de seus gestos e relatos, a impossibilidade da comunicabilidade de uma vivência por vezes animalesca e deformada no interior da sociedade da desagregação e do mundo onírico de angustiante riqueza, criado pelo mundo dos objetos produzidos pelo trabalho alienado. A partir desta constatação podemos compreender, ao menos em
parte,
algumas
das
consequências
resultantes
do
"pensamento
unidimensional" e da "estética do belo", no que se refere à sua difusão em massa, tal qual Marcuse afirma:
"os nossos meios de informação em massa encontram poucas dificuldades em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos homens sensatos. As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais. Sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria personificação da Razão "2
Kafka conseguira descrever em sua literatura - que consiste segundo ele próprio em um “assalto contra as fronteiras, e, se o sionismo não tivesse intervindo, teria podido facilmente chegar a ser uma nova doutrina secreta, uma cabala. Restam- lhe disposições para isso...”3 -, o absurdo contraste que o capitalismo desenvolvera no decorrer dos tempos, isto é, a existência de homens e mulheres animalizados(as) e deformados(as), que em virtude de sua miséria social têm a necessidade de permanecer todo o curso de suas vidas a buscarem mecanismos de sub - existência, com vistas a sacrificarem-se a si próprios, em função da “satisfação” de suas necessidades mais vitais, isto é, moradia, alimentação, vestimenta, etc, e que para terem a possibilidade de alcançarem a efetivação de tal empresa, têm que se submeter à labuta miserável, necessária e alienante, que o sistema oferece.
2
Marcuse, "A Paralisia da Crítica: Sociedade sem Oposição", p. 13 Diário, 16 de Janeiro de 1922, Kafka, p. 530 in: Marthe Robert, Franz Kafka, p. 243
3
2
Tal qual narra o escritor checo de língua alemã4 no conto "Durante a Construção da Muralha da China", quando da oportunidade em que o narrador descreve algumas das conseqüências do processo de construção de tal muralha, que consistia em um "sistema de construção por partes", no qual eram constituídos dois grandes exércitos de trabalho: "o exército do leste e o exército do oeste", exércitos de trabalho estes que: " precisavam erguer uma muralha parcial de cerca de quinhentos metros de comprimento, enquanto um grupo
vizinho
construía
em
sua
direção
outra
muralha
do
mesmo
comprimento"; sendo que: "Quinhentos metros podiam
ser aprontados nuns cinco anos,
naturalmente depois os mestres estavam em regra esgotados demais e tinham perdido toda confiança em si mesmos, na construção, no mundo; por isso então, quando ainda estavam no entusiasmo da festa de união dos mil metros da muralha, eles foram despachados para longe, muito longe, vendo na imagem sobressaírem aqui e ali partes prontas da muralha, passando pelos alojamentos dos chefes superiores, que os presenteavam com condecorações...”5
Kafka a partir deste conto insere em sua narrativa o tema que Marx suscitou,
sob
diferente
abordagem,
nos seus Manuscritos Econômico-
Filosóficos, isto é, a temática do trabalho alienado. A labuta miserável e alienante que o sistema capitalista oferece à maioria das vidas humanas animalizadas na era da “experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em massa”6 , aparece explicitamente neste conto como a negação do autoconhecimento do trabalhador a partir de seu próprio trabalho. Trabalhador(a) este(a) que “desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria”7 . Sendo a desvalorização do ser humano a partir desta forma de trabalho que nomeamos como alienado no interior da comunidade humana urbana o que podemos apontar como uma das características que de certo influenciaram bruscamente na impossibilidade 4
Para o qual a legitimidade da narrativa literária atinge tal patamar, a ponto de Kafka afirmar com veemência: “Tudo o que não seja literatura me aborrece, e eu odeio...”, Kafka, Carta ao futuro sogro, Diário, 21 de agosto de 1913, p. 289 in: Marthe Robert, Franz Kafka, p. 242 5 “Narrativas do Espólio”, p. 7677 6 Benjamim, “Sobre Alguns Temas em Baudelaire”, p. 105 7 Marx, “O Trabalho alienado”, p. 110
3
cada vez mais crescente dos seres humanos relatarem suas experiências à alguma tradição, “faculdade que nos parecia segura e inalienável”, como afirma Benjamim no seu ensaio “O Narrador”.
Denúncia da crise da tradição esta narrada por Kafka, onde o trabalho faz de seu sujeito “uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz”8 , e que não obstante faz do mundo das coisas, isto é, dos produtos reproduzidos em grande escala pelo seu trabalho, algo que “se opõe a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor”9 . Ora, se Benjamim afirma que “o mundo do trabalho toma a palavra”, podemos compreender a partir daí
o trabalho na sua forma alienada, que em sua
efetivação torna-se cada vez mais especializado, como processo que de certo influi diretamente na ausência de linguagem comum exterior a este trabalho que nega a possibilidade de autoconhecimento e resistência dos seres humanos que a ele estão sujeitos. Segundo Marx, o trabalhador portanto “não se afirma no trabalho, mas nega- se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais mas esgota-se fisicamente e arruina o espírito”, e sobretudo, “no trabalho se sente fora de si.”10
No conto “Durante a Construção da Muralha da China”, a única linguagem que é digna de ser comum entre aqueles que efetivam o trabalho, cujo
“pressuposto
indispensável”
é
o
“sentimento
duradouro
da
responsabilidade pessoal”11 , é justamente a linguagem indispensável ao sistema de trabalho alienante estabelecido pelo obscuro “comando”, que na memória de muitos de seus subordinados afirma veementemente: “tente com todas as forças entender as determinações do comando, mas até um certo limite, depois pare de pensar”12 . Ausência de linguagem comum exterior ao
8
Idem, p. 111 Idem, p. 111 10 Marx, “ O trabalho alienado”, p. 114 11 Kafka, Narrativas do Espólio, p. 74 12 Idem, p. 80 9
4
processo de trabalho que não é lançada ao ocultamento pelo narrador do conto:
“Nós –certamente falo aqui em nome de muitos– na verdade só nos conhecemos ao soletrar as determinações do comando supremo e descobrimos que sem ele não bastariam nem o nosso conhecimento escolar nem o senso comum para a pequena função que tínhamos dentro do grande todo”13
Tal ausência de linguagem comum exterior ao processo de trabalho alienado pode ser identificado também a partir da atuação de forças arcaicas na memória coletiva do povo chinês trazidas sobretudo pelos ecos da experiência da
tradição
mística
em crise. Ecos estes
que fazem do
comportamento em relação ao passado algo extremamente confuso fazendo com que o povo da aldeia do narrador do conto misture os imperadores mortos com os do presente e não obstante continuem na condição de passividade diante de autoridades que não sabem ao menos de onde vem a sua própria legitimidade14 .
É justamente do estranhamento do homem vinculado à tradição e à experiência mística diante da experiência que toma corpo e espaço a partir do mundo urbano contemporâneo que Kafka se pré- ocupa temporalmente em relatar em suas narrativas impressas às quais tivemos acesso. É sobretudo a crise da memória historicamente referenciada nos ecos da tradição mística e que ao se ver confrontada com a experiência fragmentária do solo violento e autoritário no espaço da “cidade”, é tomado de súbito por um estranhamento cultural enquanto experiência do choque e muitas das vezes não confortável.
13
Idem “Assim pois o povo se comporta com os senhores do passado, mas os do presente ele mistura com os mortos. Se uma vez, uma vez numa existência, um funcionário imperial que percorre a província chega por casualidade à nossa aldeia, levanta certas exigências em nome dos governantes, examina as listas de impostos, assiste às aulas na escola, interroga o sacerdote sobre as nossas atividades e depois, antes de subir à sua liteira, resume tudo em longas admoestações à comunidade convocada, aí então um sorriso atravessa todos os rostos, um olha dissimuladamente para o outro e se inclina para as crianças a fim de não ser observado pelo funcionário.” Kafka, Durante a Construção da Muralha da China, p. 87 e 88
14
5
O olhar do narrador acerca deste espaço em que podemos perceber tal gesto que se movimenta à distância, “que age em outra direção”, como uma testemunha15, é o que podemos depreender a partir do narrador de “Durante a construção da Muralha da China”, quando da oportunidade em que este se pergunta como poderia existir um lugar no espaço tal qual Pequim, em que o estranhamento desta cidade diante de sua aldeia16 era maior do que o estranhamento de Pequim com a “vida do além17 ”. A partir daí o narrador construtor, que fora “aprovado na prova máxima da escola de nível inferior” no período inicial da construção da muralha que deveria ser uma “proteção por séculos” contra os nômades do norte, chega ao ponto de se questionar: “Será que realmente existe uma aldeia onde uma casa se segue ao lado da outra, cobrindo os campos numa extensão maior do que a nossa vista alcança, e que entre essas casas dia e noite se aperta um monte de gente?”. O narrador do conto que se insere ao mesmo tempo que se confronta com memória coletiva da tradição mística em crise, no entanto não hesita em narrar
a pobreza
nostálgica deste olhar acerca da “cidade”, ao afirmar que tanto para ele quanto para o povo chinês “é mais fácil imaginar uma cidade assim do que acreditar que Pequim e seu imperador sejam uma coisa só, algo como uma nuvem vagueando tranqüila
sob o sol no decurso dos tempos18 .” Entretanto, a
“expressão exata” acerca das narrativas de Kafka encontra – se inacessível.
Talvez,
o ex-funcionário
do Instituto de Seguro Operário Contra
Acidentes de Trabalho, tenha narrado, aquilo que Benjamim apontou como pobreza de experiência,
esta que por sua vez tem relação direta com o
asfiximento da experiência da arte de narrar, processo histórico este impulsionado pela criação das novas modalidades narrativas e formas de controle da sociedade da técnica nas últimas dezenas de anos, que
15
“...que, ainda por cima, sabe tão pouca coisa a seu respeito que parece ir à sua descoberta, sem nunca prever o que lhe vai acontecer. Quer diga eu, nós ou ele, esse narrador é tão passivo, tão atento como uma testemunha; inacessível à uma indignação como à surpresa”, Robert, Franz Kafka, sobre o “narrador kafquiano”, p. 132 16 Em que: “De fato o dragão sagrado está na pequena coluna à saída da aldeia, soprando desde tempos imemoriais, em sinal de homenagem, o hálito de fogo na direção de Pequim.” Kafka, “Narrativas do Espólio”, p. 89 17 “... a própria Pequim é muito mais estranha às pessoas da aldeia do que a vida do além”, Kafka, Idem 18 K.
6
influenciaram no fato de sermos no espaço urbano cada vez mais “pobres em experiência comunicável”19. Tal processo histórico não pode ser desvinculado da identificação de transformações bruscas pelas quais passaram as forças produtivas no último século e que não obstante expulsam “gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo”20 . A era de Kafka é a época segundo o ensaísta alemão, em que “no cinema, o homem não reconhece seu próprio andar e no gramofone não reconhece
a
sua
própria
voz.
Esse
fenômeno
foi
comprovado
experimentalmente. A situação dos que se submetem a tais experiências é a situação de Kafka.21 ” Técnica esta não socializada para a grande maioria da comunidade humana, sobretudo à margem e alienada de seus potenciais transgressores de autoconhecimento e resistência que tal técnica pode oferecer, e que no entanto resultou no fato de que: "Uma nova forma de miséria
surgiu
com
este
monstruoso
desenvolvimento
da
técnica,
sobrepondo-se ao homem. "22 Nova forma de miséria esta que fizera com que os valores e aspirações individuais burgueses e reacionários assumissem cada vez mais o universo de uma história coletiva, a partir da indústria cultural e da reprodução técnica da arte em grande escala. Não levando em consideração – seria muita ingenuidade esperarmos isso daqueles que se apropriaram da técnica desenvolvida no último século- a dispersa possibilidade de na memória coletiva criar-se lentamente a necessidade e a efetivação de uma linguagem comum capaz de se inserir em alguma tradição depositária de um sentido comum entre as gerações, ao contrário a apropriação da técnica influencia diretamente na interdição do possível “anel” que entre elas poderia existir no raio histórico. Jeanne Marie Gagnebim no seu ensaio “Não Contar Mais?” identifica no
pensamento de Benjamim “o surgimento de um novo conceito de experiência"23 19
Benjamim, “O narrador”, p. 198 Idem, p. 201 21 Benjamim, “Franz Kafka: A Propósito do...”, p. 162 22 Benjamim, "Experiência e Pobreza", p.115 23 “Benjamim situa nesse contexto o surgimento de um novo conceito de experiência em oposição àquele Erfarung (experiência), o de Erlebnis (vivência), que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão. Essa interiorização psicológica é acompanhada por outra especificamente espacial: a 20
7
isto é, a “vivência”, que se constitui não mais como depositária de uma linguagem comum que possa se inserir em alguma tradição, pois em virtude da
crescente
desagregação
social
e
cultural
a
possibilidade
da
transmissibilidade de um saber prático, que “é uma das características de muitos narradores natos”24 , se atrofia bruscamente principalmente pelo fato de que “as experiências estão deixando de ser comunicáveis”25 . Benjamim vai relacionar a vivência burguesa do início do século passado na Europa ao desenvolvimento monstruoso da técnica que influenciou segundo ele no surgimento de novas formas de miséria. Uma no âmbito espacial, sobretudo devido ao distanciamento do indivíduo burguês da experiência coletiva espontânea no espaço urbano, vivência esta que tenta a todo custo vincular a presumida grandeza de sua existência a objetos pessoais, lenços e
toalhas com iniciais, caixinhas, fotografias e pinturas escolhidas como forma de disfarçar a mediocridade de sua própria vivência no interior de sua moradia, que acaba por se tornar no seu único refúgio “todo cercado, arrodeado de grades” com “porteiro, guarda e alarme”, tal qual denuncia Tom Zé. Outra forma de mediocridade será visível no âmbito cultural devido à difusão de uma “angustiante riqueza de idéias” que não obstante visa o disfarce da pobreza de experiência, isto é, o ocultamento ideológico da barbárie, pois segundo o filósofo alemão, tal disfarce acaba por se tornar na “Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças "26 . Esta nova forma de miséria terrível e caótica reside no oposto da “representação autêntica” da barbárie , ou seja: "a
angustiante riqueza de
idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas com a renovação da astrologia, da Yoga, da
Christiam Science, quiromancia,
vegetarianismo,
gnose, escolástica, espiritualismo"27 , bem como da ciência da consciência, da conscienciologia, da projeciologia, enfim, tais formas depositárias
das
arquitetura começa a valorizar, justamente o ‘interior’. A casa particular tornase uma espécie de refúgio contra um mundo exterior e hostil”, J. Gagnebim, “Não Contar mais?”, p. 68 24 Benjamim, “O narrador”, p. 200 25 Idem 26 Benjamim, "Experiência e Pobreza", p. 115 27 Idem
8
esperanças de muitos, segundo Benjamim, "não é uma renovação autêntica que está em jogo, mas sim uma galvanização"28 , um disfarce da miséria cultural e social do mundo contemporâneo. Kafka abrira mão da certeza positivista em função da transmissibilidade do universo dos acontecimentos circunscritos ao âmbito do comportamento e do discurso de uma sociedade, que esteve diante de fenômenos tão radicais quanto incompreensíveis pela linguagem, tal qual o desenvolvimento e apropriação monstruosa da técnica pela burguesia. Sociedade esta que não cessa de produzir “especialistas” formados pelas Universidades
com
conhecimentos cada vez mais fragmentados, e que não obstante têm como fim manter a Universidade colonizada e sobretudo à margem das tensões sociais. Bem como, a difusão dos meios de informação em massa e seu conteúdo mistificador, seguido do surgimento de uma "angustiante riqueza de idéias" que se difundiu, segundo Tom Zé, "por baixo da consciência da cidade". Kafka e Tom Zé estão, de maneiras diferentes, justamente no lado oposto do ato narrativo que tem como objetivo o disfarce da barbárie. Encontramos na narrativa kafquiana uma reação estética autêntica no que se refere à sua capacidade em se apropriar da matéria narrável de sua época através de uma ficção que está para além de seu próprio tempo, ato narrativo este que encontra no “solo sobre o qual vivemos”29 marcado pela crise da experiência, pela violência da morte do outro nos grandes centros urbanos e no campo, bem como pela interdição da transmissibilidade e pela ausência de linguagem comum entre as gerações, aquilo que constitui-se enquanto universo narrado em sua literatura que não hesita em relatar em “Durante a construção da Muralha da China”, a miséria cultural e social do mundo urbano depositário de uma vivência de uma época marcada sobretudo pela pobreza de experiência que acaba por se tornar a condição por excelência
28
Idem
29
Kafka, Narrativas do Espólio, p. 91
9
de união entre o povo chinês, vivência esta marcada segundo o narrador construtor do conto pela: “fraqueza na capacidade de imaginação e crença de nosso povo, que não consegue tirar o império da funda introspecção de Pequim e torná-lo inteiramente vivo e presente no peito dos seus súditos...Tanto mais chama a atenção que precisamente essa fraqueza parece ser um dos mais importantes meios de união de nosso povo; sim, se for permitido que a audácia de expressão chegue a esse ponto, ela é literalmente o solo sobre o qual vivemos...E por isso não quero por enquanto prosseguir mais na pesquisa desta questão”30
Kafka insere em sua narrativa a denúncia da barbárie do “solo sobre o qual vivemos” marcado pela pobreza de experiência de um grande contingente da comunidade humana submetido à exclusão totalitária produzida pelo sistema capitalista e pelas suas forças arcaicas em atuação no mundo contemporâneo, estranho à uma tradição coletiva depositária de um sentido comum e presa fácil para tudo aquilo que se propõe enquanto “novidade livre do passado31 ”, e que não obstante passara pela era da crise da experiência mística e de toda e qualquer tradição. KafKa é justamente o contraponto estético- histórico na esfera da prosa literária ao período de asfixiamento da arte de narrar e da técnica e do trabalho enquanto alienação do homem e não como autoconhecimento e resistência da comunidade humana. Solo este em que vivemos, segundo o escritor checo de língua alemã, onde “há muita esperança, só não para nós”.
30
Idem “O passado é um animal que te persegue/ já não está aqui quem te falou.../se enxergasse um palmo à frente do nariz/ mas olhou apenas numa direção”, “Que fim levou Paris...!”, Nasi e Johnny Boy
31
10
Referências:
❑
BENJAMIM, W. Obras Escolhidas v. I: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
❑
KAFKA, F. Narrativas do Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
❑
.............. Um Médico Rural, pequenas narrativas. Trad. Modesto Carone: São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
❑
..............
O Processo. Trad. Torriere Guimarães. São Paulo: Abril
Cultural,1979. ❑
.............
Nas Galerias. Trad. Flávio Kothe. São Paulo: Estação
Liberdade,1989. ❑
.............
Carta a meu Pai/ A metamorfose/ Um artista da fome. Trad.
Torriere Guimarães. São Paulo: Martim Claret, 2001. ❑
GAGNEBIN, J. M. História e Narração em Walter Benjamim. São Paulo: Perspectiva, 1994.
❑
MARCUSE, H. A Ideologia da Sociedade Industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
❑
MARX, K. Manuscritos Econômico - Filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002.
❑
ROBERT, M. Franz Kafka, Trad. José Manoel Simões. Editorial PresençaLisboa- 1963.
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