Alienação e técnica em Kafka e Benjamim

July 4, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Walter Benjamin, Franz Kafka
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ALIENAÇÃO E TÉCNICA EM KAFKA E BENJAMIN Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

A reprodução técnica em massa de imagens, seja a partir da fotografia ou do cinema, arte que só se faz possível sob o princípio formal da reprodução técnica, a partir do corte de imagens e da montagem; bem como a técnica de materiais impressos e da reprodução técnica da música, revoluções técnicas estas que ocorreram no último século e que não obstante foram apropriadas hegemonicamente pela burguesia. Isto é, tal técnica instrumentalizada principalmente enquanto mecanismo para difusão de informação - “formação”cultural, a partir de suas instituições e associações político-culturais (rádios, redes de televisão, jornais impressos, revistas, livros, gravadoras, editoras, Institutos de Pesquisa voltados para o ensino e produção intelectual, difusão cultural de informações via Internet, armas, etc), visam não obstante legitimar cosmovisões que tem como características em comum, apresentar a ilusão falseadora de um mundo em que liberdade e opressão, miséria e luxúria, produtividade e destruição, alienação coletiva diante da técnica enquanto instrumentos

de

autoconhecimento

e

resistência

em

função

da

livre

apropriação desta técnica como formas de manipulação social e legitimação das necessidades políticas, econômicas e culturais da classe hegemônica no interior da sociedade capitalista, possam coexistir aterrorizantemente em uma suposta harmonia. Benjamin a partir daí afirma que estamos sujeitos à uma comunidade onde “o mundo do trabalho toma a palavra”1 . Produzindo uma compreensão de realidade onde o universo da contradição é refutado, e sobretudo é afastada a possibilidade de se vislumbrar algumas das resultantes da pobreza de experiência da comunidade humana contemporânea urbana, que consegue 1

 “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (Primeira versão), Benjamim   



apenas transmitir, tal qual o cão narrador e Odradek, através de seus gestos e relatos, a impossibilidade da comunicabilidade de uma vivência por vezes  animalesca e deformada no interior da sociedade da desagregação e do mundo onírico de angustiante riqueza, criado pelo mundo dos objetos produzidos pelo trabalho alienado. A partir desta constatação podemos compreender, ao menos em

parte,

algumas

das

consequências

resultantes

do

"pensamento

unidimensional" e da "estética do belo", no que se refere à sua difusão em massa, tal qual Marcuse afirma:

"os nossos meios de informação em massa encontram poucas dificuldades em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos homens sensatos. As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais. Sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria personificação da Razão "2

Kafka conseguira descrever em sua literatura - que consiste segundo ele próprio em um “assalto contra as fronteiras, e, se o sionismo não tivesse intervindo, teria podido facilmente chegar a ser uma nova doutrina secreta, uma cabala. Restam- lhe disposições para isso...”3 -, o absurdo contraste que o capitalismo desenvolvera no decorrer dos tempos, isto é, a existência de homens e mulheres animalizados(as) e deformados(as), que em virtude de sua miséria social têm a necessidade de permanecer todo o curso de suas vidas a buscarem mecanismos de sub - existência, com vistas a sacrificarem-se a si próprios, em função da “satisfação” de suas necessidades mais vitais, isto é, moradia, alimentação, vestimenta, etc, e que para terem a possibilidade de alcançarem a efetivação de tal empresa, têm que se submeter à labuta miserável, necessária e alienante, que o sistema oferece.

2

 Marcuse, "A Paralisia da Crítica: Sociedade sem Oposição", p. 13   Diário, 16 de Janeiro de 1922, Kafka, p. 530 in: Marthe Robert, Franz Kafka, p. 243 

3



Tal qual narra o escritor checo de língua alemã4 no conto "Durante a Construção da Muralha da China", quando da oportunidade em que o narrador descreve algumas das conseqüências do processo de construção de tal muralha, que consistia em um "sistema de construção por partes", no qual eram constituídos dois grandes exércitos de trabalho: "o exército do leste e o  exército do oeste", exércitos de trabalho estes que: " precisavam erguer uma muralha parcial de cerca de quinhentos metros de comprimento, enquanto um grupo

vizinho

construía

em

sua

direção

outra

muralha

do

mesmo

comprimento"; sendo que: "Quinhentos metros podiam

ser aprontados nuns cinco anos,

naturalmente depois os mestres estavam em regra esgotados demais e tinham perdido toda confiança em si mesmos, na construção, no mundo; por isso então, quando ainda estavam no entusiasmo da festa de união dos mil metros da muralha, eles foram despachados para longe, muito longe, vendo na imagem sobressaírem aqui e ali partes prontas da muralha, passando pelos alojamentos dos chefes superiores, que os presenteavam com condecorações...”5

Kafka a partir deste conto insere em sua narrativa o tema que Marx suscitou,

sob

diferente

abordagem,

nos seus Manuscritos Econômico-

Filosóficos, isto é, a temática do trabalho alienado. A labuta miserável e alienante que o sistema capitalista oferece à maioria das vidas humanas animalizadas na era da “experiência inóspita, ofuscante da época da industrialização em massa”6 , aparece explicitamente neste conto como a negação do autoconhecimento do trabalhador a partir de seu próprio trabalho. Trabalhador(a) este(a) que “desce até ao nível de mercadoria, e de miserabilíssima mercadoria”7 . Sendo a desvalorização do ser humano a partir desta forma de trabalho que nomeamos como alienado no interior da comunidade humana urbana o que podemos apontar como uma das características que de certo influenciaram bruscamente na impossibilidade 4

 Para o qual a legitimidade da narrativa literária atinge tal patamar, a ponto de Kafka afirmar com veemência: “Tudo o  que não seja literatura me aborrece, e eu odeio...”, Kafka, Carta ao futuro sogro, Diário, 21 de agosto de 1913, p.  289 in: Marthe Robert, Franz Kafka, p. 242  5  “Narrativas do Espólio”, p. 76­77  6  Benjamim, “Sobre Alguns Temas em Baudelaire”, p. 105  7  Marx, “O Trabalho alienado”, p. 110 



cada vez mais crescente dos seres humanos relatarem suas experiências à alguma tradição, “faculdade que nos parecia segura e inalienável”, como afirma Benjamim no seu ensaio “O Narrador”.

Denúncia da crise da tradição esta narrada por Kafka, onde o trabalho faz de seu sujeito “uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número  de bens produz”8 , e que não obstante faz do mundo das coisas, isto é, dos produtos reproduzidos em grande escala pelo seu trabalho, algo que “se opõe a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor”9 . Ora, se Benjamim afirma que “o mundo do trabalho toma a palavra”, podemos compreender a partir daí

o trabalho na sua forma alienada, que em sua

efetivação torna-se cada vez mais especializado, como processo que de certo influi diretamente na ausência de linguagem comum exterior a este trabalho que nega a possibilidade de autoconhecimento e resistência dos seres humanos que a ele estão sujeitos. Segundo Marx, o trabalhador portanto “não se afirma no trabalho, mas nega- se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais mas esgota-se fisicamente e arruina o espírito”, e sobretudo, “no trabalho se sente fora de si.”10

No conto “Durante a Construção da Muralha da China”, a única linguagem que é digna de ser comum entre aqueles que efetivam o trabalho, cujo

“pressuposto

indispensável”

é

o

“sentimento

duradouro

da

responsabilidade pessoal”11 , é justamente a linguagem indispensável ao sistema de trabalho alienante estabelecido pelo obscuro “comando”, que na memória de muitos de seus subordinados afirma veementemente: “tente com todas as forças entender as determinações do comando, mas até um certo limite, depois pare de pensar”12 . Ausência de linguagem comum exterior ao

8

 Idem, p. 111   Idem, p. 111  10  Marx, “ O trabalho alienado”, p. 114  11  Kafka, Narrativas do Espólio, p. 74  12  Idem, p. 80  9



processo de trabalho que não é lançada ao ocultamento pelo narrador do conto:

“Nós –certamente falo aqui em nome de muitos– na verdade só nos conhecemos ao soletrar as determinações do comando supremo e descobrimos que sem ele não bastariam nem o nosso conhecimento escolar nem o senso comum para a pequena função que tínhamos dentro do grande todo”13

Tal ausência de linguagem comum exterior ao processo de trabalho alienado pode ser identificado também a partir da atuação de forças arcaicas na memória coletiva do povo chinês trazidas sobretudo pelos ecos da experiência da

tradição

mística

em crise. Ecos estes

que fazem do

comportamento em relação ao passado algo extremamente confuso fazendo com que o povo da aldeia do narrador do conto misture os imperadores mortos com os do presente e não obstante continuem na condição de passividade diante de autoridades que não sabem ao menos de onde vem a sua própria legitimidade14 .

É justamente do estranhamento do homem vinculado à tradição e à experiência mística diante da experiência que toma corpo e espaço a partir do mundo urbano contemporâneo que Kafka se pré- ocupa temporalmente em relatar em suas narrativas impressas às quais tivemos acesso. É sobretudo a crise da memória historicamente referenciada nos ecos da tradição mística e que ao se ver confrontada com a experiência fragmentária do solo violento e autoritário no espaço da “cidade”, é tomado de súbito por um estranhamento cultural enquanto experiência do choque e muitas das vezes não confortável.

13

 Idem    “Assim  pois  o  povo  se comporta com os senhores do passado, mas os  do presente ele mistura com os mortos. Se uma  vez,  uma  vez  numa  existência,  um   funcionário  imperial  que  percorre  a  província  chega  por  casualidade  à  nossa  aldeia,  levanta  certas  exigências  em  nome  dos  governantes,  examina  as  listas  de  impostos,  assiste   às  aulas  na  escola, interroga  o  sacerdote sobre  as nossas atividades  e depois,  antes de  subir à sua liteira, resume tudo em longas   admoestações  à  comunidade  convocada,  aí  então  um  sorriso  atravessa  todos  os  rostos,  um  olha  dissimuladamente  para  o  outro  e  se  inclina  para  as  crianças  a  fim  de  não  ser  observado  pelo  funcionário.”  Kafka,  Durante  a  Construção da Muralha da China, p. 87 e 88   

14



O olhar do narrador acerca deste espaço em que podemos perceber tal gesto que se movimenta à distância, “que age em outra direção”, como uma testemunha15, é o que podemos depreender a partir do narrador de “Durante a construção da Muralha da China”, quando da oportunidade em que este se pergunta como poderia existir um lugar no espaço tal qual Pequim, em que o estranhamento desta cidade diante de sua aldeia16 era maior do que o estranhamento de Pequim com a “vida do além17 ”. A partir daí o narrador  construtor, que fora “aprovado na prova máxima da escola de nível inferior” no período inicial da construção da muralha que deveria ser uma “proteção por séculos” contra os nômades do norte, chega ao ponto de se questionar: “Será que realmente existe uma aldeia onde uma casa se segue ao lado da outra, cobrindo os campos numa extensão maior do que a nossa vista alcança, e que entre essas casas dia e noite se aperta um monte de gente?”. O narrador do conto que se insere ao mesmo tempo que se confronta com memória coletiva da tradição mística em crise, no entanto não hesita em narrar

a pobreza

nostálgica deste olhar acerca da “cidade”, ao afirmar que tanto para ele quanto para o povo chinês “é mais fácil imaginar uma cidade assim do que acreditar que Pequim e seu imperador sejam uma coisa só, algo como uma nuvem vagueando tranqüila

sob o sol no decurso dos tempos18 .” Entretanto, a

“expressão exata” acerca das narrativas de Kafka encontra – se inacessível.

Talvez,

o ex-funcionário

do Instituto de Seguro Operário Contra

Acidentes de Trabalho, tenha narrado, aquilo que Benjamim apontou como pobreza de experiência,

esta que por sua vez tem relação direta com o

asfiximento da experiência da arte de narrar, processo histórico este impulsionado pela criação das novas modalidades narrativas e formas de controle da sociedade da técnica nas últimas dezenas de anos, que

15

  “...que,  ainda por cima, sabe tão pouca coisa  a seu respeito que parece ir  à sua descoberta, sem nunca prever o  que lhe  vai  acontecer. Quer  diga  eu,  nós ou ele, esse narrador é tão passivo, tão atento como uma testemunha; inacessível à  uma indignação como à surpresa”, Robert, Franz Kafka, sobre o “narrador kafquiano”, p. 132    16   Em  que:  “De  fato o  dragão  sagrado  está na pequena coluna à saída  da aldeia, soprando desde tempos imemoriais, em   sinal de homenagem, o hálito de fogo na direção de Pequim.” Kafka, “Narrativas do Espólio”, p. 89    17  “... a própria Pequim é muito mais estranha às pessoas da aldeia do que a vida do além”, Kafka, Idem    18  K. 



influenciaram no fato de sermos no espaço urbano cada vez mais “pobres em experiência comunicável”19. Tal processo histórico não pode ser desvinculado da identificação de transformações bruscas pelas quais passaram as forças produtivas no último século e que não obstante expulsam “gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo”20 . A era de Kafka é a época segundo o ensaísta alemão, em que “no cinema, o homem não reconhece seu próprio andar e no gramofone não reconhece

a

sua

própria

voz.

Esse

fenômeno

foi

comprovado

experimentalmente. A situação dos que se submetem a tais experiências é a situação de Kafka.21 ” Técnica esta não socializada para a grande maioria da comunidade humana, sobretudo à margem e alienada de seus potenciais  transgressores de autoconhecimento e resistência que tal técnica pode oferecer, e que no entanto resultou no fato de que: "Uma nova forma de miséria

surgiu

com

este

monstruoso

desenvolvimento

da

técnica,

sobrepondo-se ao homem. "22 Nova forma de miséria esta que fizera com que os valores e aspirações individuais burgueses e reacionários assumissem cada vez mais o universo de uma história coletiva, a partir da indústria cultural e da reprodução técnica da arte em grande escala. Não levando em consideração – seria muita ingenuidade esperarmos isso daqueles que se apropriaram da técnica desenvolvida no último século- a dispersa possibilidade de na memória coletiva criar-se lentamente a necessidade e a efetivação de uma linguagem comum capaz de se inserir em alguma tradição depositária de um sentido comum entre as gerações, ao contrário a apropriação da técnica influencia diretamente na interdição do possível “anel” que entre elas poderia existir no raio histórico. Jeanne Marie Gagnebim no seu ensaio “Não Contar Mais?” identifica no

pensamento de Benjamim “o surgimento de um novo conceito de experiência"23 19

 Benjamim, “O narrador”, p. 198   Idem, p. 201  21  Benjamim, “Franz Kafka: A Propósito do...”, p. 162  22  Benjamim, "Experiência e Pobreza", p.115  23   “Benjamim  situa  nesse  contexto  o  surgimento  de   um  novo  conceito  de  experiência  em  oposição  àquele  Erfarung  (experiência),  o  de  Erlebnis  (vivência),  que  reenvia  à  vida  do  indivíduo  particular,  na  sua  inefável  preciosidade,  mas  também  na  sua  solidão. Essa  interiorização  psicológica  é  acompanhada  por  outra  especificamente  espacial:  a  20



isto é, a “vivência”, que se constitui não mais como depositária de uma linguagem comum que possa se inserir em alguma tradição, pois em virtude da

crescente

desagregação

social

e

cultural

a

possibilidade

da

transmissibilidade de um saber prático, que “é uma das características de muitos narradores natos”24 , se atrofia bruscamente principalmente pelo fato de que “as experiências estão deixando de ser comunicáveis”25 . Benjamim vai relacionar a vivência burguesa do início do século passado na Europa ao desenvolvimento monstruoso da técnica que influenciou segundo ele no surgimento de novas formas de miséria. Uma no âmbito espacial, sobretudo devido ao distanciamento do indivíduo burguês da experiência coletiva espontânea no espaço urbano, vivência esta que tenta a todo custo vincular a presumida grandeza de sua existência a objetos  ​ pessoais, lenços e

toalhas com iniciais, caixinhas, fotografias e pinturas escolhidas como forma de disfarçar a mediocridade de sua própria vivência no interior de sua moradia, que acaba por se tornar no seu único refúgio “todo cercado, arrodeado de grades” com “porteiro, guarda e alarme”, tal qual denuncia Tom Zé. Outra forma de mediocridade será visível no âmbito cultural devido à difusão de uma “angustiante riqueza de idéias” que não obstante visa o disfarce da pobreza de experiência, isto é, o ocultamento ideológico da barbárie, pois segundo o filósofo alemão, tal disfarce acaba por se tornar na “Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças "26 . Esta nova forma de miséria terrível e caótica reside no oposto da “representação autêntica” da barbárie , ou seja: "a

angustiante riqueza de

idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas com a renovação da astrologia, da Yoga, da

Christiam Science, quiromancia,

vegetarianismo,

gnose, escolástica, espiritualismo"27 , bem como da ciência da consciência, da conscienciologia, da projeciologia, enfim, tais formas depositárias

das

arquitetura começa  a  valorizar,  justamente  o ‘interior’. A casa particular torna­se uma espécie de refúgio contra um  mundo exterior e hostil”, J. Gagnebim, “Não Contar mais?”, p. 68    24  Benjamim, “O narrador”, p. 200  25  Idem  26  Benjamim, "Experiência e Pobreza", p. 115  27  Idem 



esperanças de muitos, segundo Benjamim, "não é uma renovação autêntica que está em jogo, mas sim uma galvanização"28 , um disfarce da miséria cultural e social do mundo contemporâneo. Kafka abrira mão da certeza positivista em função da transmissibilidade do universo dos acontecimentos circunscritos ao âmbito do comportamento e do discurso de uma sociedade, que esteve diante de fenômenos tão radicais quanto incompreensíveis pela linguagem, tal qual o desenvolvimento e apropriação monstruosa da técnica pela burguesia. Sociedade esta que não cessa de produzir “especialistas” formados pelas Universidades

com

conhecimentos cada vez mais fragmentados, e que não obstante têm como fim manter a Universidade colonizada e sobretudo à margem das tensões sociais. Bem como, a difusão dos meios de informação em massa e seu conteúdo mistificador, seguido do surgimento de uma "angustiante riqueza de idéias" que se difundiu, segundo Tom Zé, "por baixo da consciência da cidade". Kafka e Tom Zé estão, de maneiras diferentes, justamente no lado oposto do ato narrativo que tem como objetivo o disfarce da barbárie. Encontramos na narrativa kafquiana uma reação estética autêntica no que se refere à sua capacidade em se apropriar da matéria narrável de sua época através de uma ficção que está para além de seu próprio tempo, ato narrativo este que encontra no “solo sobre o qual vivemos”29 marcado pela crise da experiência, pela violência da morte do outro nos grandes centros urbanos e no campo, bem como pela interdição da transmissibilidade e pela ausência de linguagem comum entre as gerações, aquilo que constitui-se enquanto universo narrado em sua literatura que não hesita em relatar em “Durante a construção da Muralha da China”, a miséria cultural e social do mundo urbano depositário de uma vivência de uma época marcada sobretudo pela pobreza de experiência que acaba por se tornar a condição por excelência

28

 Idem 

      29

 Kafka, Narrativas do Espólio, p. 91 



de união entre o povo chinês, vivência esta marcada segundo o narrador construtor do conto pela: “fraqueza na capacidade de imaginação e crença de nosso povo, que não consegue tirar o império da funda introspecção de Pequim e torná-lo inteiramente vivo e presente no peito dos seus súditos...Tanto mais chama a atenção que precisamente essa fraqueza parece ser um dos mais importantes meios de união de nosso povo; sim, se for permitido que a audácia de expressão chegue a esse ponto, ela é literalmente o solo sobre o qual vivemos...E por isso não quero por enquanto prosseguir mais na pesquisa desta questão”30

Kafka insere em sua narrativa a denúncia da barbárie do “solo sobre o qual vivemos” marcado pela pobreza de experiência de um grande contingente da comunidade humana submetido à exclusão totalitária produzida pelo sistema capitalista e pelas suas forças arcaicas em atuação no mundo contemporâneo, estranho à uma tradição coletiva depositária de um sentido comum e presa fácil para tudo aquilo que se propõe enquanto “novidade livre do passado31 ”, e que não obstante passara pela era da crise da  ​ experiência mística e de toda e qualquer tradição. KafKa é justamente o contraponto estético- histórico na esfera da prosa literária ao período de asfixiamento da arte de narrar e da técnica e do trabalho enquanto alienação do homem e não como autoconhecimento e resistência da comunidade humana. Solo este em que vivemos, segundo o escritor checo de língua alemã, onde “há muita esperança, só não para nós”.

30

 Idem    “O  passado  é um animal  que  te  persegue/  já  não está aqui quem te falou.../se enxergasse um palmo à  frente do nariz/  mas olhou apenas numa direção”, “Que fim levou Paris...!”, Nasi e Johnny Boy 

31

10 

Referências:



BENJAMIM, W. Obras Escolhidas v. I: Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.



KAFKA, F. Narrativas do Espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.



.............. Um Médico Rural, pequenas narrativas. Trad. Modesto Carone: São Paulo: Companhia das Letras, 2002.



..............

O Processo. Trad. Torriere Guimarães. São Paulo: Abril

Cultural,1979. ❑

.............

Nas Galerias. Trad. Flávio Kothe. São Paulo: Estação

Liberdade,1989. ❑

.............

Carta a meu Pai/ A metamorfose/ Um artista da fome. Trad.

Torriere Guimarães. São Paulo: Martim Claret, 2001. ❑

GAGNEBIN, J. M. História e Narração em Walter Benjamim. São Paulo: Perspectiva, 1994.



MARCUSE, H. A Ideologia da Sociedade Industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.



MARX, K. Manuscritos Econômico - Filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002.



ROBERT, M. Franz Kafka, Trad. José Manoel Simões. Editorial PresençaLisboa- 1963.

11 

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