ALIMENTAÇÃO INDÍGENA SATERÉ-MAWÉ: UM PANORAMA ATUAL

July 25, 2017 | Autor: Kalinda Felix | Categoria: Antropología Social
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ALIMENTAÇÃO INDÍGENA SATERÉ-MAWÉ: UM PANORAMA ATUAL1 APRESENTANDO UM BREVE CONTEXTO SIMBÓLICO

KALINDA FÉLIX DE SOUZA (PPGAS/UFAM/AM)

RESUMO O presente artigo visa abordar sobre a alimentação indígena, em específico da etnia Sateré-Mawé no baixo Amazonas. Nossa intenção é discutir o simbolismo da dieta do grupo com ênfase em alimentos utilizados em ritos de cura e de passagem tais como guaraná, mel entre outros, enfocando suas correlações com a produção mítica e dimensões pragmáticas do preparo e consumo alimentar. Os dados foram coletados em pesquisa realizada entre 2012 e 2013, e ainda em curso, desvelando parte do cenário alimentar dos Sateré-Mawé, sua agricultura e relações com o meio ambiente. O aporte teórico foi fornecido por Lévi-Strauss (2004), Mary Douglas (1996), Poulain (2004) e Lorenz (1992). Os resultados mostram que alimentos como o guaraná e o mel são entendidos tanto como produtores de pessoas quanto meios de produção de relações sociais sedimentando alianças e reciprocidades e amenizando tensões. Entre os SateréMawé as cerimônias e rituais que envolvem o consumo desses alimentos são parte integrante do equilíbrio social no grupo, remetendo à mitocosmologia produtora de parentes e de harmonização nas relações com a natureza. Tais relações altamente simbolizadas se reconstroem cotidianamente no espaço doméstico onde são produzidos e consumidos coletivamente os alimentos, promovendo a (re)organização da sociedade Sateré-Mawé. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia da alimentação; Índios Sateré-Mawé; Mitocosmologia sul americana.

CENÁRIO DO CONTATO SATERÉ-MAWÉ Os relatos atestam que o contato com os portugueses foi feito em 1669, quando da instalação da missão jesuítica Tupinambarana (Uggé, 1991). A partir daí, segue-se uma história de luta dos índios Sateré-Mawé frente à sociedade não indígena. Os mais de trezentos anos de contato com outras sociedades revelam a resistência desse povo frente aos vários episódios históricos de imposições sociais, 1

“Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.”

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culturais, econômicas e políticas e as estratégias de luta implementadas por eles, em prol de uma (re)organização do modo de vida Sateré-Mawé. Selecionamos nas linhas a seguir alguns eventos marcantes da história de contado dos Sateré-Mawé com outras sociedades. Tais relatos estão baseados nas pesquisas de Bernal (2009), Nunes Pereira (2003), Lorenz (1992), Uggé (1991) os mesmos apuram historicamente que no século XVIII as tropas de resgate, as missões jesuíta e carmelita desenfrearam a redução da população Sateré-Mawé, bem como, o seu território. A história oral desse povo atesta que participaram da Cabanagem (1835-1839) no século XIX, havendo participação de outras etnias indígenas, ocasionando em muitas mortes. Segundo Bernal (2009), na primeira metade do século XX, a violência do ciclo da borracha acrescentou-se a dos exploradores de madeira de lei (pau-rosa) no sudoeste do Estado do Amazonas. Consequente a isto, os Sateré-Mawé foram obrigados a deslocarem-se subindo o curso dos rios Tapajós e Madeira até se instalarem lá onde estão hoje (Terra Indígena Andirá-Marau). Finalmente, quando o território pareceu bem instalado, uma nova ameaça apareceu com o projeto de abertura de uma estrada ligando Itaituba/PA e Maués/AM. Isto foi o principal problema até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Depois, veio o empreendimento brutal, sem nenhuma preparação, de um projeto de exploração petrolífera nos territórios Sateré-Mawé e Mundurucu. Para essa questão, na qual estava envolvida a empresa francesa ELF-Aquitaine, Figeroa (1997) destaca que os Sateré-Mawé sofreram vários tipos de pressões relacionadas à questão territorial. No final a década de 70, foi iniciado o processo de demarcação do território Sateré-Mawé, sendo identificados os sítios, aldeias, roças, cemitérios, locais de caça, pesca, coleta de frutíferas, área de extrativismo, e áreas por onde se movimentam localizadas entre os arredores dos rios Marau, Miriti, Urupadi, Majuru e Andirá. Segundos os mais velhos essas áreas é apenas uma parte do território mais antigo, citado nas histórias desse povo, contudo conseguiram demarcar boa parte do território que outrora ocuparam. E em 1982, concluíram o trabalho de demarcação das terras. A Terra Indígena Andirá-Marau, foi homologada em 1986, com 788.528 hectares distribuídos nos municípios de Parintins, Barreirinha, Maués no Amazonas e; Itaituba e Aveiro no estado do Pará. (Lorenz, 1992) (vide mapa 1).

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MAPA 1 – Terra Indígena Andirá-Marau. FONTE: Lorenz, 1992 (p. 23).

Habitam a T.I Andirá-Marau cerca de 11.060 Sateré-Mawé, segundo dados divulgados pelo Censo Demográfico produzido pelo IBGE (2010). Sendo o segundo maior povo indígena em termos de números de indivíduos no Estado do Amazonas. Quanto as divisões territoriais outra fonte informa o número de aldeia também chamadas de comunidades pelos Sateré-Mawé, a pesquisa realizada por Teixeira (2005, p. 24) identificou 91 aldeias, distribuídas ao longo dos principais rios e igarapés. A região mais populosa é a do rio Andirá. Na região do rio Marau são 37 aldeias. Referente aos dados linguísticos o estudo de Rodrigues (2013) aponta esse povo

como o segundo, da região em número de falantes da língua Sateré-Mawé, também conhecida como Sateré ou Mawé, contabilizando cerca de 8.500 pessoas residentes na T.I Andirá-Marau, sendo esta classificada como originária de uma família do tronco Tupi. Curt Nimuendajú (1948) foi um dos primeiros a classificar essa língua como pertencente a esse tronco. Outra informação importante é a presença dos Sateré-Mawé na cidade de Manaus, estudos apontam a década de 70 o início de um número expressivo de deslocamentos de

indígenas para a capital do Amazonas, mas de acordo com Romano (1982), há relatos da presença de famílias Sateré-Mawé em Manaus a partir da década de 40. Estudo realizado por Souza (2011) registrou que em 2010, no conjunto Santos Dumont, bairro da Redenção, zona Centro-Oeste de Manaus residem na aldeia Y’apyrehyt (terceira luva da tucandeira) cerca de quatro famílias; na aldeia Waikiru (estrela) vinte e três famílias, essas duas aldeias foram fundadas pelas famílias vindas do rio Andirá e Marau, respectivamente, ainda na década de 80, todavia, foi no final dos anos 70 que ocorreu a ocupação pelos Sateré-Mawé nesta área da cidade, considerada nobre. No Tarumã-Açu 3

(lago do Tiú), zona Oeste, área afastada do centro urbanizado de Manaus, residem na aldeia Inhaã-Beé (chocalho do joelho) cerca de cinco famílias e nas proximidades deste mesmo local a aldeia Hiwy (gavião) com cerca de três famílias, desde a década de 90. Registramos também, mais aldeias Sateré-Mawé no Estado do Amazonas, situadas no município de Iranduba, margem direita do rio Negro a aldeia Sahu-Apé (casco de tatu) com cerca de sete famílias residentes, fundada em 1996; No município de Manaquiri está à aldeia Waraná (guaraná) formada em 2006 com cerca de quatro famílias. Informamos que a pesquisa sócio demográfica de Teixeira (2005) indicou a existência de famílias Sateré-Mawé residindo no município de Nova Olinda do Norte e um grupo vivendo na Terra Indígena Coata-Laranjal dos Munduruku, em Borba, áreas do estado do Amazonas. Portanto, este breve cenário geográfico e histórico, colocam em evidência o quanto os Sateré-Mawé resistiram em termos coletivos, os vários motivos dos deslocamentos realizados por eles, justificam-se em sua maioria no propósito de proteção, defesa, manutenção e busca de um possível equilíbrio e harmonia da vida em sociedade. Torna-se fundamental entendermos esses processos históricos de deslocamentos e a motivação, visto que isto implica em uma (re)organização da vida social, econômica e cultural, ou seja, produção simbólica e material da vida social ocupando outros ambientes e convivendo com outras sociedades. Considerando todas estas fases da vida Sateré-Mawé priorizamos por dar ênfase a vida simbólica buscando relacionar a mitocosmologia do grupo e o seu contexto alimentar, optamos em focar o teor simbólico, ritual do guaraná, e do mel e perpassar rapidamente por outros alimentos que compõe este breve cenário da alimentação Sateré-Mawé, entendida aqui como produtora de pessoa, relações e alianças.

METODOLOGIA E LÓCUS DA PESQUISA As aldeias selecionadas para a pesquisa ainda em andamento, situam-se nas margens do rio Andirá, sendo as três primeiras no baixo curso do Andirá e a última citada no trecho alto do mesmo rio no município de Barreirinha. É válido informar que a pesquisadora responsável pelo campo, ainda não esteve de fato visitando as aldeias in lócus, os dados informados neste artigo foram coletados através de conversas, diálogos e ocasiões em os Sateté-Mawé estiveram dispostos a contribuir com a pesquisa pré-

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campo. Desta forma, descrevemos melhor as situações e condições durante a coleta de dados. Em atividade pré-campo2, visando uma aproximação do objeto e a definição de possíveis locais de investigação, foram entabuladas diversas conversas informais, diálogos com lideranças políticas Sateré-Mawé das quais algumas fazem parte do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé – CGTSM; Diálogo com os servidores públicos Sateré-Mawé da Funai; Com moradores das aldeias que estavam participando da inauguração do escritório do Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé – CPSM, local onde é embalado o guaraná produzido pelos Sateré-Mawé associados, e onde colocam expostos para a venda o guaraná em pó, pão ou bastão de waraná, mel de abelhas nativas de várias espécies, extrato de própolis de abelha canudo (awi’a sese) e muitos outros produtos florestais como pó de mirantã, óleo de copaíba, óleo de breu, cumarú, muiraruira, unha de gato, etc. Também conversamos com os cursistas Sateré-Mawé da Licenciatura Intercultural da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, residentes nessas aldeias. O período das visitas pré-campo ocorreram em maio de 2012 e setembro de 2013 em Parintins e Barreirinha. Dessas interlocuções identificamos moradores da aldeia Nova União, que fica no baixo Andirá que se constituiu na década de noventa, por esse motivo, ainda não está nos mapas da Funai, segundo morador entrevistado, muito embora já exista há vinte anos, informou ainda que todas as famílias desta aldeia praticam a religião adventista. Segundo os Sateré-Mawé relatam que neste local as práticas alimentares “tradicionais” ou “antigas” são correntes, posto que as dez famílias que moram no local têm plantações de roças de guaraná, palmeiras, e outras frutíferas que compõe o cardápio alimentar diário, exercem ainda atividades de caça e pesca feita pelos homens. Situação similar seria encontrada na aldeia Boa Fé, que possui cerca de doze famílias, os moradores mantém uma dieta alimentar significativamente “tradicional” como dizem, preservando costumes antigos de consumir certos alimentos em períodos especiais e significativos para o grupo, e mesmo estando localizada nas proximidades da área urbana da cidade de Barreirinha, seus moradores preservam um conhecimento específico de várias plantas medicinais para cura e prevenção de doenças, informam que são praticantes da religião evangélica da igreja Assembleia de Deus. Ponta Alegre é a aldeia mais populosa, com cerca de 800 pessoas residentes as margem do rio Andirá, 2

A atividade faz parte da pesquisa de campo de doutorado em andamento, da pesquisadora Kalinda Félix de Souza. As interlocuções foram realizadas em Parintins e Barreirinha entre os anos de 2012 e 2013.

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município de Barreirinha, entretanto sua localização fica mais próxima da cidade de Parintins, com a qual seus moradores constantemente buscam os serviços de saúde, educação, bancários, entre outros, utilizando embarcações fluviais. Segundo servidores da Funai, originários de Ponta Alegre, é a aldeia que mais consome os produtos alimentícios congelados, embutidos, enlatados adquiridos na cidade de Parintins, havendo raras plantações de frutíferas e roças, esses funcionários informam que têm filhos e parentes residentes na aldeia e em períodos de férias do trabalho costumam ir para Ponta Alegre. Completando o quarteto das aldeias selecionadas, Santa Cruz fica no alto Andirá e segundo informações coletadas, possui cerca de dez famílias que seguem a religião católica. Relatos indicam que os costumes antigos, como o cuidado com as roças de guaranazais, o modo de caçar, pescar são praticados pelos moradores. De acordo com as interlocuções, as famílias de Santa Cruz, adquirem poucos alimentos industrializados, pois se mantêm com os produtos obtidos das roças, frutíferas e outros meios que encontram para viver nos moldes “tradicionais” da cultura Sateré-Mawé. Diante destes cenários descritos pelos interlocutores Sateré-Mawé, imaginamos que os aspectos da vida diária nessas comunidades, são bem distintos. Dado que as três primeiras aldeias citadas se encontram em áreas mais próximas a cidade, como disseram os Sateré-Mawé, porém salientaram que os moradores de Ponta Alegre vivem num ambiente onde as roças e as frutíferas são raras, assim como, as atividades de pesca e caça. Enquanto, Santa Cruz é a mais distante os moradores costumam visitar com menor frequência a cidade. Contudo, a distância dos grandes centros urbanos, não se configura como principal motivo para as mudanças alimentares. Como bem descreve Jean-Pierre Poulain (2004) o consumo dos alimentos envolvem princípios biológicos, ecológicos, psicológicos, culturais e sociais, bem como, abrange uma série de circunstâncias como acesso aos alimentos, ambiente, escolhas individuais e coletivas. Para o autor a alimentação humana esta situada no seguinte entendimento:

A alimentação humana é submetida a duas séries de condicionantes mais ou menos flexíveis. As primeiras são referentes ao estatuto de onívoro e impostas aos “comedores” por mecanismos bioquímicos subjacentes à nutrição e às capacidades do sistema digestivo, deixando um espaço de liberdade largamente utilizado pelo cultural e contribuindo, assim, para a socialização dos corpos e para a construção das organizações sociais. Já as segundas são representadas pelas condicionantes ecológicas do biótopo no qual está instalado o grupo de indivíduos; essas condicionantes também oferecem uma zona de liberdade na gestão da dependência do meio natural. (POULAIN, 2004, p. 251)

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Tais condicionantes são analisados dentro do pensamento social e cultura dos Sateré-Mawé, bem como, as formas e cuidados com que devem ser preparados, servido o alimento, principalmente os simbólicos. Todavia, as formas de classificar o que comem e não comem são importantes para iniciar, ou melhor, para entender a ordem e entendimento de mundo. Desta forma, lembramos que Lévi-Strauss (2004) analisa que o homem classifica o que é comestível e não comestível,

o que se interliga ao

pensamento mitocosmológico, onde a incorporação do alimento é significativa, como no caso do mel e do guaraná Sateré-Mawé, aludidos nas histórias de origem e organização social destes.

DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO GRUPO Na cosmologia dos Sateré-Mawé existe um lugar chamado Noçoquém (lugar das pedras), no qual se tem certeza de que lá moram as “pedras que falam” e os “animais gente”. Os Sateré-Mawé traduzem este local como um paraíso, onde tudo de que precisam está nesse lugar, que parece ser o primeiro da morada dos Sateré-Mawé. De onde vieram? Segundo relatos dos velhos Sateré-Mawé, seus ancestrais habitavam em tempos imemoriais o vasto território entre os rios Madeira e Tapajós, delimitado ao norte pelas ilhas Tupinambaranas, no rio Amazonas e, ao sul, pelas cabeceiras do Tapajós. Os Sateré-Mawé referem-se ao seu lugar de origem, como sendo o Noçoquém, lugar da morada de seus heróis míticos. Eles localizam-no na margem esquerda do Tapajós, numa região de floresta densa e pedregosa, "lá onde as pedras falam" (Pereira, 2003). Nunes Pereira (2003), que viveu com esse povo na década de 1950, descreve que “os lagos e rios piscosíssimos que irrigam as terras em que viveram outrora os Maués e, bem assim, as florestas e campinaranas ricas em caças de toda espécie, deveriam constituir, numa época mais remota, uma paisagem magnífica para as atividades desse povo”. A representação do Noçoquém - sítio onde se encontravam todas as plantas e animais úteis aos Maués, segundo o mito do Guaraná, deveriam corresponder, outrora, o território por eles ocupado. Autodenominam-se Sateré-Mawé. Mas, ao longo de sua história, já receberam vários nomes, dados por cronistas, desbravadores dos sertões, missionários e naturalistas: “Mavoz, Malrié, Mangnés, Mangnês, Jaquezes, Magnazes, Mahués, Magnés, Mauris, Mawés, Maragná, Mahué, Magneses, Orapium” (Nunes Pereira, 2003). 7

O primeiro nome - Sateré - quer dizer "lagarta de fogo", referência ao clã mais importante dentre os que compõem esta sociedade, aquele que indica tradicionalmente a linha sucessória dos chefes políticos. O segundo nome - Mawé - quer dizer "papagaio inteligente e curioso" e não é designação clânica (Alvarez, 2005). Alba Figueroa (1997) identificou a ordem dos clãs, com nomes de frutas, aves, animais, não havendo um número exato de clãs existentes, identificado pelos pesquisadores, variando entre 12 e 40. Os casamentos ocorriam por exogamia, ou seja, eram realizados entres clãs díspares, onde em geral a residência era patrilocal. Entretanto, a autora também registrou que a ordem clânica e os casamentos atualmente não seguem com tanto rigor a essa regra, havendo vários matrimônios entre pessoas do mesmo clã, evitando-se apenas os consanguíneos biológicos. Alvarez (2011) relata que o parentesco patrilinear define a posição no sistema de clãs. As pessoas pertencem ao clã de seu pai, aqueles que são filhos da mãe e do pai não Sateré-Mawé são considerados Sateré asiag, “mestiços”, em contraste com a sesse Sateré, “puro” ou “verdadeiro”. A relação de associação de grupo é dada por descendência, mas há outras formas de incorporação, pelo casamento com mulheres Sateré-Mawé. Nestes casos, os filhos dessas mulheres são considerados Sateré asiag, ou “impuro”, e a condição mestiça é passada de geração em geração. Tradicionalmente, toda aldeia possui um tuxaua local Sateré-Mawé, na língua materna é chamado de tui’sa acima deste, existe o tuxaua geral, liderança máxima entre os grupos das aldeias, as chefias destes é através da herança genealógica e linhagem (Uggé, 1991), com a introdução da Funai em seus territórios, trouxe a figura do capitão. Havendo também a presença dos pajés ou curadores, rezadores, pegadores de ossos, ervateiros, estes praticam os componentes da doença espiritual e física, identificadas e tratadas conforme sua “força espiritual” e conhecimentos adquiridos ao longo da vida (Souza, 2011). No que se refere a cultura material, ambiente e formas de trabalho, Lorenz (1992) tecem peneiras, cestos, tipitis, abanos, bolsas, chapéus, paredes e coberturas de casas, etc, feitas com talo e folhas de caraná, arumã e outros. As práticas ceramistas entre os Sateré-Mawé já não tão visíveis. Quanto ao ecossistema além das roças de guaraná, têm-se as palmeiras de buriti, açaí, bacaba, tucumã, pupunha, que sazonalmente comparecem a dieta alimentar; os rios são igarapés estreitos, com corredeiras de água fria. Os trabalhos coletivos são chamados “puxiruns” onde as famílias se reúnem para a abertura de roças de guaraná e mandioca, limpeza, coleta e 8

beneficiamento dos guaranazais, os quais tem grande importância social e econômica, foco de nossa análise.

O SIMBOLISMO DO WARANÁ Os Sateré-Mawé realizam suas trocas comerciais, desde os primeiros contatos com a sociedade não indígena. Segundo Uggé (1991) no que segue a produção agrícola, cultivam batata doce, mandioca, guaraná, cacau, castanha entre outras frutas e tubérculos, mas o principal produto de sua exportação é o guaraná, vendido em bastões ou em pó, principalmente para fora do país. O guaraná (Paullinia sorbilis), é um produto vegetal com que se prepara uma bebida típica da Amazônia, é está intimamente ligado à história mítica dos Sateré-Mawé. Por este fato, são também conhecidos como filhos do guaraná. Nesse contexto a ligação mítica do guaraná com o surgimento do primeiro ser Sateré-Mawé é aludido na história oral do grupo a qual relata que antigamente existiam na região do Rio Maués Açu, três irmãos: Ocuamató, Icuamã, (homens) e Onhiamuaçabê (mulher). A jovem não tinha marido e era cobiçada pelos animais da floresta. Os irmãos não queriam vê-la casada, pois Onhiamuaçabê era quem conhecia todos os segredos das plantas medicinais do Noçoquém (floresta onde ficam as plantas e animais úteis). Um dia, uma serpente ficou à espreita. Quando a moça passou, tocou-a levemente na perna, engravidando-a. Nasceu então forte e bonito denominado Anumarei’t. A mãe contou para ele que plantou uma castanheira no Noçoquém, mas os irmãos enciumados haviam tomado o lugar. O menino quis provar das castanhas e acabou morto pelos guardas que os tios haviam deixado no Noçoquém. Desesperada, Onhiamuaçabê plantou na terra o olho esquerdo do menino e nasceu um cipó ruim (guaranarana, o falso guaraná). Plantou então o olho direito e daí surgiu o verdadeiro guaraná. E o solo escolhido virou chão sagrado (refere-se a região do município de Maués). Onhiamuaçabê exclamou profetizando: “Tu, meu filho Waraná, serás a maior força da natureza, farás o bem a todos os homens, teu warã sagrará todas as festas e ritos; o amor fará de ti um símbolo e todos amigos e inimigos falaram o teu nome, porque és filho de Anuamauató”. O guaraná foi crescendo e, de tempos, saía da sepultura do menino um animal: nasceram assim o macaco coatá, o cachorro-do-mato e o porco queixada. E, finalmente, Onhiamuaçabê viu brotar de dentro da cova um menino: era o primeiro Sateré-Mawé, a origem da “tribo” e ao mesmo tempo o seu filho ressuscitado. Os mais velhos contam que esse menino foi buscar na floresta seu povo, 9

formando os clãs denominados com nomes de frutas, aves, animais como já foi apontado neste trabalho, o menino foi chamado Sateré, pelo fato de esconder-se dentro de um pau de árvore oco, onde havia a presença de lagartas grandes de cor vermelha, também chamada “lagarta de fogo” seu contato com a pele humana queima ardilosamente. Já o nome “mawé” é apontado por alguns interlocutores como sendo de origem dada através do homem “branco”, pois segundo estes, os Sateré eram ardilosos e pouco aceitavam as condições impostas à eles, e assim foram chamados de “mau és”, mais tarde “mawés”. Outros informaram que na floresta dos tempos antigos existia uma ave similar ao papagaio muito inteligente e curioso chamado de mawé, nome que recebeu esse povo por sua característica comunicativa e consequentemente excelentes negociadores. Porém, um dos fatos em que todos concordam é que são eles, os primeiros cultivadores da planta de guaraná e seu consumo como alimento. O cultivo da planta, a produção, benefício do fruto e comercialização datam desde 1699, mesmo ano em que houve o contato com o homem branco. O padre João Felipe Betendorf escreveu que:

Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam guaraná, a qual secam e depois pisam, fazendo dela umas bolas, que estimam como os brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando, e em uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças, que indo os índios à caça, um dia até o outro não têm fome, além do que faz urinar, tira febres e dores de cabeça e cãibras. (Betendorf, 1910, apud LORENZ, 1992, p. 39).

No entanto, dados coletados em campo, revelam que o simbolismo do Waraná está presente desde os cuidados com a roça, coleta e formas de preparo da bebida e consumo. Os Sateré-Mawé referem que existe o Waraná verdadeiro e o guaranarana, o chamado guaraná falso. Isto se explica ao fato de que a primeira planta de guaraná na mitocosmologia do grupo, teve sua origem na área de Maués, rio Marau, o verdadeiro guaraná, entretanto deste arbusto originaram-se outras plantas que foram transportadas para a área do rio Andirá preservando assim a originalidade mítica do guaraná, posteriormente multiplicaram-se os pés de guaranazais, que hoje em dia continuam sendo consumidos e comercializados nas cidades de Parintins, Maués e Barreirinha e exportados também para fora do país. As dicotomias “verdadeiro” e “falso” que aparecem nas históricas míticas do Sateré-Mawé manifesta-se como uma forma de enaltecer e prestigiar os cuidados com as roças e formas de beneficiamento do Waraná, como a volta, por exemplo, do uso de 10

forno de barro na torrefação do mesmo, tais práticas envolvem a gênese do grupo, o que Lévi-Strauss (2004) analisa que os mitos são formas de entender o mundo vivido, dando significado as práticas sociais. A mitocosmologia dos índios sul americanos demonstra que tanto a natureza como a cultura são partes interligadas da vida real, fazem parte da vida sociocultural, como o consumo do waraná. Para o consumo próprio, a maioria dos Sateré-Mawé dá preferência à preparação do Waraná em forma de bastão. No preparo do bastão de guaraná, a divisão de trabalho é bem definida. A maior parte do cultivo cabe aos homens; as mulheres torram, ralam e servem. Quando menstruadas as mulheres devem evitar a participação nas formas de preparação e oferta do waraná. Os Sateré-Mawé falam o wará é o espírito que rege o guaraná, invocando sabedoria e harmonia no grupo reunido e no momento de sua ingesta, o corpo e a mente o recebem. A mulher, para os Sateré-Mawé, é a geradora da vida. Entretanto, ela aparece como o centro cíclico da vida, geradora da vida e da morte. O sangue significa vida, mas ao mesmo tempo, a morte (hu’uro). Na mulher menstruada, o sangue “ruim” é colocado fora do corpo: é a morte iminente da vida. As formas de preparar a bebida sapó a ser servida aos convidados envolvem os aspectos da vida social e do seu controle.

Mary Douglas (1996) em “Pureza e Perigo” nos encaminha para entender as atitudes de controle do corpo e sua relação com o controle social, apontando que a purificação e a poluição são contrários e desequilibram a relação que tendem a serem controlados dentro do grupo social. A mulher menstruada indica desequilibrar o ciclo da vida, pois ao ingerir o waraná, eles estão interligando a vida mítica com a vida real. O encontro do passado e o presente, vivos e o wará é por excelência o espírito dessa harmonização. O waraná nesse momento é bebido para se buscar o equilíbrio do ciclo da vida. Por isso, o bastão de Waraná ralado (sapó) está presente em todos os momentos da vida dos Sateré-Mawé, seja no cotidiano, em reuniões sociais e em rituais como a dança da Tucandeira3. Contudo, as mulheres podem ingerir a bebida em períodos menstruais, de pós-parto e no luto. Abriremos aqui um breve parágrafo para explicar sobre a festa da Tucandeira, ritual de passagem do menino para a vida adulta, onde suas mãos são colocadas dentro de luvas tecidas de palha e enfeitadas com penas de gavião, recheadas com as formigas 3

Formiga da espécie Paraponera clavata que chega a medir pelo menos 2,5 cm, a ferroada pode durar até 24 horas, podendo provocar náuseas, vômitos, dor no estomago, inchaço na área onde ela deixa o ferrão, e vermelhidão nos olhos.

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tucandeira, geralmente e na fase da puberdade que este inicia sua saga ritual. O ritual é realizado todos os anos nas aldeias, o menino precisa completar vinte vezes em colocar as mãos dentro das luvas com as tucandeiras, isto é feito ao longo dos anos, e será considerado um homem adulto, guerreiro, trabalhador, bom caçador, pescador, livre de doenças, por que, recebeu a vacina no seu corpo, durante o ritual, que exige coragem e preparo, que limitam a abstinência do sexo, certos alimentos como o sal, peixes e caças considerados inadequados, pois deixariam o neófito sem forças para vencer as ferroadas da tucandeira. Essa espécie de formiga tem uma relação simbólica com o grupo, pois ela representa segundo Sateré-Mawé a mulher, originada das partes intimas da cobra-fêmea. Sendo o tatu, na língua sahu o responsável por trazê-las para o ritual. Nesse contexto, o Waraná, é ingerido pelo guerreiro durante o ritual, pois ele dá as forças necessárias para que este continue dançando e cantado para watyama. Dessa forma, o beber do Waraná acompanha o ritual da Tucandeira, que na forma de bebida é chamado pelos Sateré-Mawé de sapó. Para eles o sapó dá força ao guerreiro, caçador, trabalhador; dá vigor às pessoas que o bebem. Ritualmente o sapó poderá ser bebido por qualquer pessoa, inclusive crianças. Em geral o chefe da casa é o dono do Waraná, que é servido numa cuia grande com água para os convidados, passado de mão em mão, onde o primeiro a beber é sempre o dono da casa. Não se pode deixar a cuia vazia, portanto, a esposa, filha ou neta deve estar ralando o bastão com a ajuda de uma língua de pirarucu (peixe da região Amazônica) ou utilizar uma pedra de basalto, onde se produz uma baba que é dissolvida na água e servida aos convidados. Deve-se ingerir pequenos goles, a etiqueta Sateré aponta que é deselegante não beber o sapó, caso esteja no círculo de conversa, reunião, assembleia, ou qualquer outro evento em que o sapó é servido. Na mitocosmologia do grupo o Waraná é sinônimo de sabedoria, um importante comunicador, interligando a origem do povo com a situação atual que em geral é discutida ingerindo-se o sapó principalmente quando na leitura do Poranting4 outro símbolo dos Sateré-Mawé indicam simbolicamente como um legislador da vida social. Pois, à medida que se intensificam os conflitos, os tui’sa, que são chefes políticos se reúnem para ler o Poranting indo buscar neste a pacificação social. Portanto, o consumo do Waraná, busca-se encontrar soluções, realizar discussões, debater assuntos pertinentes ao povo Sateré-Mawé, se procura dialogar, 4

Peça de madeira, uma espécie de bastão, onde estão grafados com desenhos o passado e o futuro deste povo. (Uggé, 1991). Os mais antigos contam que era utilizado como clava nas guerras.

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obter relações de amizade. Tomar sapó é comunicar-se, interligar-se com o mundo mítico desse povo, é também produzir relações amigáveis, angariar parceiros, reunir parentes, lembrar os tempos antigos, contar as histórias míticas, e viver os dias atuais.

CONSUMO DO MEL PELOS SATERÉ-MAWÉ Lévi-Strauss (2004) O mel e o tabaco são substâncias comestíveis, mas nem um nem outro dizem propriamente respeito à cozinha. Pois o mel é elaborado por seres não humanos, as abelhas, que o entregam pronto para o consumo, ao passo que a maneira mais comum de consumir o tabaco o situa, à diferença do mel, não aquém mas além da cozinha. Não é absorvido cru, como o mel, ou exposto previamente ao fogo para cozer, como se faz com a carne. Ele é incinerado, para que se possa aspirar sua fumaça. A elaboração do texto do Lévi-Strauus (2004) comentando sobre os significados do mel, dentro das sociedades, nos faz pensar as diversas formas que os Sateré-Mawé preparam para o mel para o consumo passam por um emaranho e complexo social e cultural ligado a ordem mítica. No contexto mítico o consumo do mel, narra-se como um alimento produzido por uma irmã de “Tupana” ou “Tupã”. Os anciãos relatam que, quando Anumaré Hit foi para o céu para transformar-se no sol, ele convidou sua irmã Uniawamoni a segui-lo (Uggé, 1991). Ela decidiu ficar na Terra sob a forma de uma abelha para poder ajudar os Sateré-Mawé a cuidar das florestas sagradas de guaraná. Nesse contexto mítico, tanto a abelha quanto seus produtos, como, o mel, o própolis e o polén, são importantes fontes de alimento, e tem relação mitocosmológica com o grupo. Na narrativa mítica “Tupana” é a divindade mais poderosa e protetora máxima dos Sateré-Mawé, tendo Ele concordado com a decisão da irmã de ficar na terra, transformada em abelha, para servir aos Sateré-Mawé, consumindo o néctar das flores dos guaranais, o mel produzido dessa florada tem um caráter altamente privilegiado dentro da cultura do grupo. Um de nossos interlocutores faz menção a abelha, como sendo um animal que vive em sociedade, não vive sozinha, trabalha muito, e ainda ajuda na agricultura, polinizando as plantas. Além de nos dá essa noção da vida em sociedade, ela nos mostra que temos que ter organização, respeito, ter harmonia, trabalhar juntos e cuidar um do outro, como elas fazem conosco ao cuidar das nossas florestas, do nosso ambiente nos mantendo fortes e sadios. 13

Dessa forma, o consumo do mel revigora a memória mitocosmologica, porque, sua produção esta intimamente ligada a um ancestral divino. Pois o mel adquirido das florestas, aquele encontrado na natureza, ou dos meliponário tem um efeito reciproco entre os Sateré-Mawé e as abelhas produtoras do mel. Os Sateré-Mawé também apontam que as abelhas necessitam de muitas plantas para retirar o néctar, dessa forma, eles precisam preservar a floresta, as flores para que estas possam também alimentar-se. Desse ponto de vista, verificamos que o meio ambiente bem preservado é essencial para a produção do mel. O mel é produzido nas comunidades Sateré-Mawé segundo os interlocutores desta pesquisa, com as chamadas abelhas sem ferrão, são mansas e oferecem um produto de boa qualidade para consumo próprio e para ser comercializado. No que se refere à abelha são considerados animais sagrados para os Sateré-Mawé, muitos criticam as formas predatórias com que tratam e lidam algumas pessoas. Atualmente existem diversos meliponários nas aldeias, onde são extraídos o mel, pólen, própolis, néctar e a colmeia. Produtos atualmente comercializados através de projetos econômicos acompanhados pelo CGTSM. Os Sateré-Mawé indicam que o mel além de servir a saúde, é consumido enquanto alimento em várias ocasiões onde precisam ficar horas sem consumir outros alimentos. Esse produto é de longa data, entre eles, além disso, a abelha também ajuda a polinizar as florestas de guaraná, outro alimento que compõe a mitocosmologia do grupo. Dessa forma, o mel está simbolicamente relacionado às formas de preservar, nas florestas, as colmeias construídas no ambiente. Assim como, no processo de criação dos abelheiros, onde estas merecem toda reverencia do grupo. Também as abelhas no processo de polinização ajudam a manter e produzir novas árvores frutíferas, agregando na dieta do grupo, outros alimentos como as frutas e o retorno das caças, onde já se evidenciam escassez. Os diálogos destacam que as abelhas além de fornecerem o alimento, ajuda na conservação dos guaranazais, essencial na vida social, religiosa e politica dos SateréMawé. Sendo que a abelha simbolicamente representa uma espécie de protetora e multiplicadora do fruto mítico – o Waraná sustentando uma rede de relações sociais, culturais e econômicas entre os Sateré-Mawé e outras sociedades. Uma verdadeira mãe, aquela que cuida, acolhe e resguarda seus filhos, esperando destes apenas o respeito. Como já dissemos o mel também é comercializado, assim como o guaraná, sendo que a produção e lucros não se comparam a do guaraná. 14

Os interlocutores afirmam que a criança muito pequena não pode consumir o mel in natura, mas poderá consumi-lo misturado a outros produtos para amenizar os sintomas da gripe, resfriado, tosse, dor de garganta e outros sintomas relacionados a doenças respiratórias. Nesse contexto o mel é um alimento que cura e ajuda no trato das doenças infecciosas, alguns Sateré disseram que as rezas são importantes nas crianças muito pequenas, além de utilizarem os chamados xaropes e lambedores, com mel. Os adultos Sateré-Mawé são apreciadores do mel consumindo em várias ocasiões, como por exemplo, durante a pesca, a caça, períodos que se sabe que irá ficar várias horas sem poder comer outros alimentos. O mel é um excelente condutor nessas atividades. Há relatos em que o mel deve ser apreciado e respeitado, já que o mesmo é produzido simbolicamente por um ser mítico que foi transformado para beneficiar e alimentar esse povo. Pois a abelha, não só excrementa de seu próprio corpo o mel, ela trabalha arduamente todos os dias para ajudar a produzir o guaraná de qualidade e livre de impurezas. Portanto, quando os Sateré-Mawé consomem o mel, estão também introjetando em seus corpos simbolicamente a sua própria natureza mítica. Aquela que outrora é a conhecedora das plantas que curam, das rezas e de tudo que havia no paraíso, é a condutora de um tempo cíclico, já que o consumo do mel, significa retornar as origens, configurando-se como um marcador de reciprocidade. Haja vista que os Sateré-Mawé cotidianamente cuidam de seus abelheiros e carregam a simbologia do mel como sendo um alimento benéfico na cura de doenças e a abelha como a produtora, cuidadora e transmissora dessa interligação mitocosmológica. O mel é consumido in natura, há também a presença de projetos econômicos, nas comunidades dentre eles a apicultura. A relação das pessoas com as abelhas melíponas; as relações com o ambiente e a produção/reprodução da saúde; e a relação das pessoas com o ambiente para escolha de roças e sítios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O contexto alimentar dos Sateré-Mawé foi brevemente analisado aqui neste artigo, merecendo ainda outras reflexões acerca do consumo de outros alimentos, que fazem parte do contexto simbólico alimentar da vida diária, e em contextos especiais como nos rituais e nas etapas do ciclo da vida, como analisa Poulain (2004). Esta resumida experiência alimentar com o grupo, nos trouxe reflexões a respeito da sociedade e de como a mesma é regida por processos mitocosmológicos. Em outros 15

contatos com os Sateré-Mawé observamos em pesquisa realizada anteriormente, a presença de uma dieta específica, como por exemplo, o consumo ritual do Waraná guaraná, maniuera (formiga), mel, pupunha, tubérculos como cará, batata doce, entre outros, que são consumidos de maneira regular, possuem um significado mitocosmológico para eles desde seu preparo, escolha, e formas de ingestão em períodos distintos, como em processos rituais. Nesse aspecto passamos a observar e nos interessar pela dieta que produzem efeito processos rituais e simbólicos para o grupo. E assim, esta pesquisa esta sendo realizada, no âmbito de trazer os códigos sociais e culturais que envolvem o modelo alimentar dos Sateré-Mawé. Refletirmos que o mel e waraná são alimentos consumidos nos vários espaços sociais, compartilhando com outras pessoas não indígenas e ofertado sempre que se deseja um diálogo harmonioso, como no caso a ingesta do sapó. Como diria LéviStrauss (2004) em O cru e o cozido, os mitos sul americanos sobre a origem da cozinha, utilizou conceitos universais. Em Do mel as cinzas, o contexto dicotômico esteve mais presente, porém o mel representa o estado de natureza, onde o alimento já encontra pronto para ser consumido de forma que se consumo não estaria ligado a cozinha, mas percebemos que os Sateré-Mawé utilizam o mel de diferentes formas, observando outros aspectos da vida, como saúde, doença. Enquanto o guaraná, esta ambientado tanto ao contexto de dentro dos cômodos da casa, como fora dela.

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