Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes

Share Embed


Descrição do Produto

Comida, Cultura e Sociedade Arqueologia da alimentação no Mundo Moderno

Comida, cultura e sociedade Arqueologia da alimentação no Mundo Moderno

Fernanda Codevilla Soares (Organizadora)

Editora Universitária UFPE Recife 2016

Universidade Federal de Pernambuco Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero Marques Diretor da Editora UFPE: Prof. Lourival Holanda Comissão Editorial Presidente: Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler, Antonio Motta, Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima. Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Eduardo Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antônio Simões Galindo, Maria do Carmo de Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana Cavani Rosas. Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas

Série Estudos Contemporâneos na Arqueologia Editor Responsável Scott Joseph Allen, Universidade Federal de Pernambuco Comissão Científica Antoine Lourdeau, Muséum National d’Histoire Naturelle, França Eduardo Góes Neves, Museu de Aqueologia e Etnologia, USP, Brasil Fabíola Andréa Silva, Museu de Aqueologia e Etnologia, USP, Brasil Ivan Briz i Godino, CONICET, Argentina Marcos Torres de Souza, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Natàlia Moragas Segura, Universitat de Barcelona, Espanha

Imagem da capa e Capítulo 5: João Carlos Lima de Morais

SUMÁRIO

Prefácio

7

Os autores

9

Introdução – F. Codevilla Soares

11

Capítulo 1 – Comendo o Que Ninguém Quer: Consumo de Cabeça de Boi entre Escravos Urbanos do Rio de Janeiro, Século XVIII

25

Tania Andrade Lima Martha Locks

Capítulo 2 – A alimentação em dois engenhos brasileiros nos séculos 18 e 19: circulação, sujeitos e materialidades

65

Marcos André Torres de Souza Gilberto Guitte Gardiman

Capítulo 3 – Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ)

95

Luís Cláudio Pereira Symanski Geraldo Pereira de Morais Júnior

Capítulo 4 – Gênero, alimentação e cultura material em contextos urbanos do século XIX: mulheres, corpos e vida cotidiana. Algumas diretrizes para o estudo em arqueologia histórica

113

Glaucia Malerba Sene

Capítulo 5 – A (des) Construção da Embriaguez em Solos Antárticos

139

Fernanda Codevilla Soares Luiz Alberto Silveira da Rosa Taísa Corrêa Jóia Will Lucas Silva Pena

Capítulo 6 – Incorporando comidas e contextos: a alimentação dos grupos foqueiros nas Shetland do Sul (Antártica, século XIX)

169

María Jimena Cruz

Capítulo 7 – Mudarse por mejorarse. Traslado y cambio en la alimentación en Nuestra Señora de Talavera (Salta, Argentina, s. XVI-XVII) y en la Colonia de Floridablanca (Santa Cruz, Argentina, s. XVIII) María Marschoff

6

191

CAPÍTULO 3

Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ) Luís Cláudio Pereira Symanski Geraldo Pereira de Morais Júnior

INTRODUÇÃO Pretendemos, neste artigo, discutir os hábitos alimentares e as práticas relacionadas à alimentação dos grupos escravizados que viveram em um espaço da senzala do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ) entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Para tanto nos ateremos em diversos elementos da materialidade desse coletivo, discutindo os modos como pessoas, uma fogueira, pedaços de animais domesticados, carcaças de animais silvestres, peixes, louças e cerâmicas se embrenharam e construíram um mundo próprio - simultaneamente material, social e cultural. Nesse sentido, a prática do preparo e do consumo coletivo de alimentos serviu como uma liga, que consolidava os sentimentos de pertencimento a uma comunidade, ao mesmo tempo em que aludia a relações verticais, entre os membros do grupo e seus ancestrais, representados pelas louças e cerâmicas antigas, que continuavam em uso em volta da fogueira. As escavações na Fazenda dos Jesuítas foram realizadas nos quadros do projeto “Café com Açúcar: Arqueologia da escravidão no sudeste rural em uma perspectiva comparativa”. 32 O projeto tem como objetivo o estudo da vida material de grupos escravizados das plantations do sudeste do Brasil, a partir de escavações em senzalas coletivas e familiares de engenhos de açúcar e de fazendas de café. A partir de uma perspectiva comparativa buscamos obter informações sobre as diversificadas configurações econômicas, sociais e culturais desenvolvidas em função tanto da estrutura produtiva quanto da composição cultural diferenciada dos grupos escravizados. O foco recai, por um lado, nas estratégias de dominação empregadas pelos senhores nesses estabelecimentos e, por outro, nos mecanismos desenvolvidos pelos escravos para lidar com as mesmas. Tais mecanismos dizem respeito à capacidade de agência desses grupos, entendida como as

32

Projeto financiado pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Edital Universal 14/2011.

Comida, Cultura e Sociedade

possibilidades que eles buscaram para a realização de seus próprios projetos nessas estruturas de limitação. No caso deste artigo, o foco recai nos modos como o domínio da alimentação consistiu em uma das práticas de reprodução cultural, de auto-expressão e, assim, de rejeição dos valores dominantes por parte dos cativos que viveram no Colégio dos Jesuítas. ENGENHOS E ESCRAVIDÃO EM CAMPOS DOS GOYTACAZES A região de Campos dos Goytacazes teve o início da sua colonização nas primeiras décadas do século XVII. Antes era habitado pelos índios Goitacás, considerados "ferozes e bravios", dificultando a interiorização de colonos e o estabelecimento de propriedades. Até o início do século XVIII predominou a atividade criatória de gado. A partir de então desenvolveu-se a cultura de cana-de-açúcar. Em 1737 esta região possuía apenas 34 engenhos de açúcar. De 1750 para 1779 o número de engenhos passaria de 50 para 113. Já em 1779 existiam cerca de 180 fábricas de açúcar. Em 1785 contava-se 288 engenhos e engenhocas de aguardente. Segundo o que anotava o Marquês do Lavradio (1842) entre 1779 e 1789 os engenhos da região de Campos produziam açúcar "em maior abundância que o dos engenhos da capital e seu recôncavo". De fato, na segunda metade do século XVIII, com a franca expansão da cultura açucareira na região de Campos, o número de fábricas multiplicou-se por seis. Em 1779 Campos possuía 52% dos engenhos de toda a Capitania e 43,6% da população escravizada. Nos derradeiros anos dos oitocentos existiam nesta região 324 engenhos, correspondendo 52,6% do total de 616 engenhos de açúcar de toda a Capitania (Faria, 1998; Lara, 1988). A consequência desta expansão açucareira foi o aumento populacional com a demanda de africanos para trabalhar nas lavouras (Faria, 1998; Lara, 1998). No final do século XVIII a população total da Capitania do Rio de Janeiro era de 179.595 pessoas, sendo 52,5% livre e 47,5% cativa. Nesta ocasião, Campos mantinha um dos maiores contingentes de escravos da Capitania, só perdendo para as regiões do recôncavo da Guanabara, próximas à Corte (Soares, 2009). De acordo com Soares (2009), até 1789, 90% dos cativos viviam em estabelecimentos que mantinham de 1 a 49 cativos, sendo que 30% destes viviam em estabelecimentos de até 10 escravos. Somente 8% viviam em propriedades com mais de 50 cativos. Entre 1790 e 1808, estas tendências aparecerão invertidas com mais de 48 % dos cativos em grandes escravarias. No período de 1809 a 1825, estas tendências seriam novamente reequilibradas com quase 40% dos escravos trabalhando em propriedades de 20 a 49 escravos. No período de 1826 a 1831, o impacto do tráfico sobre esta população voltaria a se destacar, com quase 70% deles vivendo em propriedades de mais de 50 escravos. No século XIX haveria os seguintes padrões em Campos: alta incidência de africanos centrais, homens, e jovens, vivendo em grandes escravarias. Em 1826 a população cativa já era de 52,5%, sendo que pardos e pretos livres, muitos dos quais libertos, perfaziam 73,8% da população total. As fazendas das ordens religiosas dos jesuítas e beneditinos, contudo, tiveram processos diferenciados daquelas das demais grandes propriedades rurais da região, dado que contaram com o trabalho de indígenas e africanos no período da sua formação, nos séculos XVII e XVIII, passando, por um intenso processo de crioulização demográfica e cultural. Em termos de regime escravista, tais mantinham características demográficas de maior equilíbrio entre cativos homens, mulheres e crianças (Graham, 1979). O COLÉGIO DOS JESUÍTAS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES 96

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

O colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes foi fundado em meados do século XVII pelos padres da Companhia de Jesus, que desenvolveram, inicialmente, a atividade criatória de gado, e, posteriormente, o cultivo e processamento da cana de açúcar. Com a expulsão dos jesuítas da colônia, em 1759, a propriedade passou para o controle da coroa portuguesa. Em 1781 o comerciante português Joaquim Vicente dos Reis, em sociedade com João Francisco Vianna e Manoel José de Carvalho, arrematou, na praça do Rio de Janeiro, a propriedade. O trio recebeu a fazenda em 1781 com “... todos os seus pertences, casa, Igreja, engenho, seus acessórios, escravos, terras, e todas mais coisas e posses com que a possuíram os denominados jesuítas” (Guglielmo, 2011:27). Nesta época a fazenda mantinha quase 1500 cativos. Cabe destacar que a fazenda do Colégio, também conhecida como Fazenda de Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio, era a maior propriedade existente em Campos. Em 1796, contudo, morreram os dois sócios de Joaquim Vicente e este reteve a propriedade da fazenda, tornando-se assim, segundo alguns, o “mais rico e poderoso vassalo de Portugal no Brasil” (Guglielmo, 2011:03). Com a morte de Joaquim Vicente, em 1818, o seu vasto patrimônio, superior a 969 contos, foi herdado por suas três filhas, Maria Joaquina dos Nascimento, Ana Bernardina do Nascimento Reis e Joana Bernardina do Nascimento Reis. O maior beneficiário desse patrimônio, contudo, foi o seu genro Sebastião Gomes Barroso, casado com Joana Bernardina, os quais detiveram a propriedade da fazenda (Guglielmo, 2011:7779). Ele manteve a propriedade até a sua morte, em 1843. Quem herdou a fazenda foi o seu filho, o tenente-coronel Francisco de Paula Gomes Barroso (1822-1892) (Lamego, 1938:37). Com a sua morte, a propriedade foi herdada por seu filho, João Baptista de Paula Barroso. A partir de então, a fazenda permaneceu nas mãos dos seus descendentes até a desapropriação da mesma pelo governo do estado, na década de 1970. Seu último proprietário, porém, João Batista Barroso, continuou vivendo na fazenda até o ano da sua morte, em 1980 (Ferreira, s.d.). Até essa data, uma comunidade afro-descendente, muito da qual descendente direta dos cativos que viveram na fazenda nos oitocentos, e provavelmente nos setecentos, se manteve agregada à propriedade, ocupando a mesma quadra que originalmente conformava a senzala. A sede da propriedade hoje abriga o Arquivo Público Municipal de Campos, sendo uma das mais antigas construções de Campos dos Goytacazes. Foi Tombada pelo Patrimônio Histórico em 1946. Com a morte de João Batista Barroso, o edifício foi abandonado. Em 1991 passou por processo de restauração para que fosse implantada a Escola de Cinema da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), sofrendo posteriormente novo abandono. Em 2001 foi implantando no lugar o Arquivo Público Municipal (Ferreira, s.d.). A comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas Até o momento não dispomos de informações sobre o perfil da comunidade escravizada da fazenda no período dos inacianos. É sabido, contudo, que estes exploraram largamente o trabalho escravo, sobretudo nas atividades relacionadas com o cultivo e processamento da cana-de-açúcar (Zeron, 2011:170-173). No ano de 1795 Couto Reis notificava que a propriedade de Joaquim Vicente dos Reis mantinha 1482 cativos, sendo 765 crianças, 340 homens e 377 mulheres (Reis, 1997 [1795]). Esse perfil era muito contrastante com as demais propriedades rurais da região, que, conforme discutido, tendiam a apresentar uma taxa muito mais elevada de masculinidade e um número reduzido de crianças. É condizente, contudo, com um padrão de reprodução natural da comunidade escravizada, sem a introdução de novos cativos pelo 97

Comida, Cultura e Sociedade

tráfico. De fato, a taxa de legitimidade – de pais casados perante a Igreja – dessa comunidade era muito elevada, compondo 77% no ano de 1782 (Faria, citada em Guglielmo, 2011: 29). Guglielmo (2011:29-30) observou que os casamentos, nesse período (1782-1783), ocorriam quase que integralmente entre os membros da dita comunidade. Portanto, no final do século XVIII a população escravizada da Fazenda do Colégio estava organizada por arranjos familiares. Tais arranjos levaram, nesse período, a taxas elevadas de reprodução natural. Apenas entre o início de 1782 e o final de 1783 foram registrados 123 nascimentos entre os cativos na capela da propriedade. Assim, no ano de 1796, a fazenda já contava com quase 2000 cativos (Guglielmo, 2011:29-30). Essa população, contudo, já no começo do século XIX deixa de apresentar níveis ascendentes e decai sensivelmente, a confiar na informação de Saint-Hilaire (1941:416-417) sobre o número de 1500 cativos vivendo no Colégio no ano de 1819. Essa informação torna-se mais consistente ao se analisar o próximo documento que informa sobre essa população: o inventário de Sebastião Gomes Barroso, datado de 1843 33. Neste documento são listados 1111 cativos. Há, assim, um declínio de cerca de 45% na população escravizada entre os anos de 1796 e 1843. Esse intenso declínio está muito provavelmente relacionado com o processo de partilha dos bens por ocasião da morte de Joaquim Vicente dos Reis. Com relação ao perfil demográfico, em 1843 essa comunidade era composta por 579 mulheres e 532 homens. Tal equilíbrio entre os sexos é condizente com uma continuidade no padrão de reprodução natural, a qual é ainda sugerida pelo grande número de crianças e jovens com a indicação de ambos os pais no inventário. Cabe destacar que há uma ausência total de africanos neste documento, indicando a não introdução de novos cativos via tráfico atlântico. De fato, as informações disponíveis fortemente sugerem que não houve introdução de africanos na fazenda desde a expulsão dos jesuítas em 1759. Isto significa que essa população, já no final do século XVIII, era essencialmente crioula, no sentido de nascida no seio da própria comunidade, sobretudo em arranjos familiares. Este padrão prosseguiu por toda a primeira metade do século XIX e, muito provavelmente, até a emancipação, em 1888, dada a proibição do tráfico atlântico em 1850. Em suma, a comunidade escravizada do Colégio caracterizou-se, pelo menos desde meados do século XVIII, por arranjos familiares endogâmicos, por um alto grau de reprodução natural, e pela não inserção de novos cativos, como os africanos que entraram em peso na região durante o segundo quarto do século XIX. Esses elementos resultaram em um perfil demográfico de gênero bastante equilibrado e, assim, destoante das demais escravarias da região, caracterizadas, como já mencionado, por uma alta incidência de centro-africanos, homens, e jovens (Soares, 2009). Ocorreu, assim, no Colégio, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um intenso processo geracional de crioulização, bem como a construção de um forte senso de comunidade entre a população escravizada. O TRABALHO DE CAMPO As escavações arqueológicas no Colégio dos Jesuítas ocorreram em duas etapas. A primeira se deu entre os dias 3 e 30 de julho de 2012 e a segunda de 08 a 30 de julho de 2014. Neste trabalho nos ateremos às informações sobre a primeira temporada de escavações, dado que o material a ser discutido provém desses contextos.

33

Inventário de Sebastião Gomes Barroso. Ano: 1843.Arquivo Público de Campos dos Goytacazes. 98

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

Na primeira etapa foram contemplados dois setores: um de deposição de refugo referente aos ocupantes da sede, situado à cerca de 45 metros a noroeste desta edificação; e o outro 80 metros a norte da mesma, referente à extremidade noroeste de uma grande senzala em conformação de U situada de frente para a sede, cujas extremidades originalmente ultrapassavam a linha da parede frontal da sede da fazenda em aproximadamente 10 metros, formando uma praça de cerca de 200 x 250 metros. Neste segundo setor foram abertas duas áreas de escavação, sendo uma referente a um espaço de uso cotidiano atrás da linha da senzala (unidade leste), e a outra (unidade oeste) consistindo em um espaço destinado exclusivamente à deposição de refugo (Figura 1).

Unidade oeste

Unidade leste

Lixeira do solar

Figura 1: Planta do Colégio dos Jesuítas com indicação das áreas escavadas na temporada de 2012. As unidades oeste e

99

Comida, Cultura e Sociedade

leste dizem respeito, respectivamente, à lixeira e a área da estrutura de combustão. As duas unidades totalizaram 48m2 de área escavada. Ambas foram rebaixadas até atingir a base do depósito arqueológico, entre 40 e 50 cm de profundidade. O padrão de deposição material indicou que a área leste era de atividades cotidianas, concentradas, sobretudo, no entorno de uma fogueira em frente à unidade de habitação. Essa estrutura de combustão, evidenciada entre 35 e 50 centímetros de profundidade, era composta por grandes tijolos soltos, em conformação circular, os quais contornavam uma vala que continha uma grande quantidade de carvão e de material ósseo - destacando-se as mandíbulas de dois porcos, de uma cabra e de um gambá – a qual era cercada por carapaças de mariscos (Figura 2). A área de escavação oeste, por sua vez, revelou uma vala irregular preenchida com o refugo das atividades cotidianas desses grupos, composta, predominantemente, por ossos de animais domésticos e silvestres, além de material cerâmico. Provavelmente como forma de higienização eles cobriram o conteúdo dessa vala com uma camada de telhas, retornando, a seguir, a depositar mais refugo em cima dessa camada e, novamente, encobrindo com outra camada de telhas (Symanski, 2014; Symanski et al., no prelo).

Figura 2: a) Estrutura de combustão da unidade leste; b) da esquerda para a direita – tíbia, carpo, falange e metacarpo de boi; c) fragmentos de mandíbulas de gambás (didelphidea); d) dentes e osteodermas de jacaré.

100

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

Essas duas unidades de escavação apresentaram uma grande quantidade de material arqueológico, sendo cerca de 50% da amostra referente a material ósseo de animais domésticos como bois e porcos, mas também silvestres e aquáticos, incluindo jacarés, gambás e peixes. Dentre os itens da cultura material, foi recuperada uma grande quantidade de fragmentos de cerâmicas artesanais de produção local ou regional, cerâmicas torneadas, faianças portuguesas do século XVIII, louças inglesas do século XIX, ornamentos simples de cobre martelado, como pulseiras e pingentes, contas de colares de vidro e cachimbos de cerâmica. Para melhor entender a dinâmica deposicional nas duas áreas da senzala em termos de intervalo temporal de deposição, a Fórmula para a Datação Média de Louças, proposta por South (1972), foi aplicada às amostras de louças presentes nos distintos níveis de escavação (Tabela 1). Trata-se de um método quantitativo que visa estabelecer datações médias de ocupação de um sítio histórico com base nas médias dos intervalos de produção dos tipos de louças identificados. De um modo geral, as louças da unidade leste apontam para uma ocupação concentrada na primeira metade do século XIX, com um intervalo máximo entre 1760 e 1860, e um intervalo mais provável entre 1790 e 1850. Um intervalo similar foi definido na unidade oeste, com a ressalva de o nível de base desta apresentar a datação média mais recuada da sequência das duas áreas (1800.6). Para ambos os casos optou-se por juntar as louças dos níveis 3 (30-40 cm) e 4 (40-50 cm) pelo fato dessas amostras apresentaram-se muito reduzidas nesses níveis. Pode-se observar que as datações médias apresentam uma notável consistência cronológica em ambas as unidades, com as mais recuadas sendo referentes aos níveis inferiores e as mais recentes aos níveis superiores. Tabela 1. Datação média dos níveis das unidades leste e oeste Unidade leste

Unidade oeste

Nível 1 (0-20cm)

1826.8

1832.8

Nível 2 (20-30 cm)

1824.6

1821.5

Níveis 3+4 (30-50 cm)

1816.9

1800.6

Tal coerência deposicional permite organizar cronologicamente as amostras de cada nível, e assim estudar a variabilidade diacrônica do material depositado e o que esta informa sobre possíveis mudanças nas práticas desse grupo através do tempo. ALIMENTAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO NO ESPAÇO DA SENZALA A fogueira evidenciada na área de escavação leste é indicativa de atividades, sobretudo relacionadas ao preparo e consumo de alimentos, que se processaram no lugar em questão. Trata-se de um espaço adjacente à unidade de habitação, situado imediatamente atrás da linha das casas de senzala, que foi utilizado para práticas relacionadas à alimentação e ao lazer. Em um estudo anterior (Symanski et al., no prelo), analisamos a distribuição espacial dos ossos, cerâmicas e louças referentes ao nível da fogueira, sendo verificado a presença de dois núcleos de concentração de material, o primeiro no interior da estrutura e em seu entorno imediato, e o segundo a um metro a 101

Comida, Cultura e Sociedade

leste da mesma, indicando práticas de socialização relacionadas à alimentação nas quais os cativos se sentavam em volta da fogueira e depositavam os resíduos por eles gerados nesses momentos diretamente nessa estrutura, consistindo em uma drop zone ou zona de queda, ou então imediatamente atrás de si, consistindo em uma toss zone, ou zona de recepção (Binford 1978). Este padrão distribucional é similar ao identificado por Souza (2010: 171172) no interior de um recinto da senzala do Engenho de São Joaquim, em Pirenópolis (GO), sendo, assim, sugestivo de práticas de socialização no entorno de fogueiras que teriam sido comuns entre grupos de cativos. Essa forma de uso do espaço é, de fato, bastante similar àquelas mantidas pelas sociedades tradicionais da África Ocidental e Central. Nessas regiões as casas são utilizadas primariamente para dormir, estocar e abrigar, ao passo que outras atividades cotidianas, como trabalhar, cozinhar, comer e socializar ocorrem no lado externo (Ferguson, 1992:6971; Slenes, 2011 [1999]; Heath e Benneth, 2000:39). Essas formas de uso do espaço adjacente às unidades de habitação foram mantidas pelos africanos na diáspora, tanto no sul dos Estados Unidos e no Caribe (Heath e Benneth, 2000), quanto no Brasil (Slenes, 2011 [1999]:177-178; Symanski e Zanettini, 2010:112-115). Nesse sentido, a estrutura de fogueira e os padrões de dispersão dos resíduos relacionados com o preparo e consumo de alimentos atrás da unidade doméstica demonstram que esses espaços consistiram em importantes núcleos de socialização dos grupos escravizados que ocuparam a fazenda. A prática comunal do preparo e consumo de alimentos nesse espaço foi, assim, uma dimensão fundamental da vida cotidiana desse grupo de cativos, que não somente servia para agregar aqueles pertencentes ao mesmo grupo doméstico/familiar, enfatizando suas similaridades, mas também servindo para expressar as suas diferenças em relação aos brancos (Ferguson, 1991:35). Assim, ao deter a autonomia para preparar suas próprias refeições, os cativos mantinham controle sobre um domínio extremamente significativo de suas vidas, o qual, mais do que a simples subsistência, diz respeito à manutenção de expressões culturais fundamentais para esses grupos. Isto porque o domínio da alimentação consiste em um componente básico da identidade, podendo servir tanto para indicar e construir relações sociais baseadas na igualdade, intimidade e solidariedade, quanto para sustentar relações caracterizadas por hierarquia, distância e segmentação, atuando como um lócus fundamental de identidade, conformidade e resistência (Appadurai, 1981:496; Smith, 2006:480). Esse consumo comunal de alimentos envolve, ainda, uma dimensão mais profunda do que a socialização e a endoculturação do grupo; a ingestão de alimentos é, antes de tudo, o que garante a sobrevivência biológica e, assim, a continuidade do grupo. Ao mesmo tempo, a natureza sensorial da comida atua como uma poderosa evocação de memória, dado o seu potencial de trazer para o presente as situações vivenciadas no passado (Appadurai, 1981). Charles Joyner (1984, citado em Slenes, 2011:196 [1999]), em seu estudo sobre uma comunidade escravizada na Carolina do Sul, destaca a enorme significação cultural e ideológica do preparo e consumo da comida, o qual era crucial para o sentido de identidade dos escravos, dado que envolvia as receitas herdadas dos ancestrais bem como ingredientes que, além do corpo, alimentavam a alma. No caso da senzala do Colégio, a maior parte do material exumado está diretamente relacionada ao domínio da alimentação, seja na estocagem – em vasilhames cerâmicos torneados –, na cocção – em panelas de cerâmica acordelada e torneada –, no consumo – em pratos e tigelas de cerâmica torneada vidrada, de faiança, e de faiança fina –, e nos restos da proteína animal consumida, expressa pelos ossos de mamíferos domesticados e silvestres, de répteis, de peixes, e pelas carapaças de mariscos. Todo esse 102

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

aparato material foi intensamente mobilizado no entorno da fogueira, em momentos em que provavelmente mulheres e homens, crianças, jovens, adultos e idosos, se aglutinavam com a cultura material em torno de uma prática essencial para a sua sobrevivência biológica e reprodução cultural. O contexto da fogueira está relacionado a um período inicial de ocupação desta área da senzala, no início do século XIX. Este é um período em que a chegada da Família Real e a abertura dos portos estão trazendo ares de modernidade para a colônia, expressos na rápida adoção da cultura material, sobretudo britânica, do capitalismo industrial, que tinha nas louças uma de suas principais expressões na esfera doméstica (Lima, 1999; Symanski, 2002). Contudo, para o caso desse contexto de senzala, as velhas louças portuguesas coloniais serão utilizadas pelos cativos até meados do século XIX, embora tenham gradualmente sido substituídas pelas faianças finas inglesas mais modernas ao longo deste intervalo (Figura 3). Cabe destacar que a grande maioria dessas faianças portuguesas foi produzida em períodos anteriores ao ano de 1800, sobretudo no intervalo entre 1700 e 1800 (Symanski, 2014). A manutenção, por este grupo, dessas louças antiquadas, que eram continuamente utilizadas até quebrarem, pode ser indicativa, por um lado, de uma economia da restrição, apontando para as limitações dos padrões de vida material dessa comunidade escravizada. Por outro lado, é também indicativa de um certo conservadorismo por parte deste grupo, relacionado à rejeição dos valores que estavam sendo disseminados por meio da cultura material da sociedade capitalista européia para os segmentos médios e altos da sociedade brasileira.

Figura 3: Proporção da faiança fina em relação à faiança portuguesa na área da senzala Podemos, portanto, imaginar esse coletivo fazendo muitas de suas refeições em volta da fogueira, ocasiões nas quais alguns de seus membros consumiam os alimentos nos velhos pratos e tigelas de faiança portuguesa, produzidos no século anterior, enquanto 103

Comida, Cultura e Sociedade

outros se utilizavam das louças inglesas mais novas. Ora, essas louças velhas poderiam ter sido, em muitos casos, as mesmas nas quais seus pais e avós - muitos dos quais já mortos e, assim, presentes na comunidade como espíritos ancestrais – fizeram suas refeições em volta de outras fogueiras no pátio da senzala. Cabe lembrar que a ancestralidade tinha uma importância fundamental nas sociedades centro-africanas matrizes desses grupos diaspóricos, consistindo em uma das diversas forças espirituais que atuavam diretamente sobre todas as facetas do cotidiano desses grupos. Tais forças incluem as almas de parentes recentemente falecidos, os espíritos mais distantes de pessoas mortas há mais tempo, os espíritos inferiores daqueles que sofreram morte violenta ou que causavam desarmonia social, e o espírito mais distante do criador do universo, Nzambi Mpungu (Thornton 2002; Sweet 2003; Agostini 2011). Nesse sentido, a utilização, pelos cativos do Colégio, das louças utilizadas pelos pais e avós não somente referenciava a memória, mas, de fato, envolvia a comunhão com os espíritos ancestrais, tanto aqueles mais recentemente falecidos quanto os que partiram há mais tempo. A socialização, neste caso, ia além das relações horizontais, entre os vivos co-participantes da refeição, mas envolvia também as relações verticais com os ancestrais, com aqueles que no passado haviam compartilhado das refeições com os membros mais velhos do grupo. O material zooarqueológico, por sua vez, complementa, em muito, esse quadro das relações sociais no espaço da senzala, demonstrando as tanto as escolhas quanto as imposições alimentares as quais esses grupos estiveram sujeitos 34. Vamos começar pelos animais domesticados presentes no contexto da senzala. Em primeiro lugar, é importante considerar quais foram as possibilidades de acesso à carne desses animais, se provenientes de criação própria ou recebidos na forma de ração, em um processo de redistribuição controlado pelos proprietários. Ascher e Fairbanks (1971) já consideravam que os grupos escravizados afro-americanos poderiam ter formas de classificação de sua comida bastante diferenciadas daquelas da cultura hegemônica. Um critério de diferenciação fundamental, para esses cativos, era entre o alimento distribuído pelos proprietários e aquele obtido por eles próprios. A figura 4 demonstra a popularidade das categorias (famílias, subfamílias e subordem) identificadas nas amostras das unidades leste (de atividades) e oeste (lixeira) do espaço da senzala de acordo com os dentes identificados. Como detalhado acima, as amostras foram separadas por níveis de escavação nas duas áreas, de modo que podemos visualizar a variação diacrônica dessas famílias. Embora esta figura diga respeito somente aos dentes, ela dá uma clara idéia das famílias dos animais consumidos no espaço da senzala. Cabe destacar que na quantificação dos dentes, as mandíbulas foram quantificadas como unidades, com cada uma representando somente um dente. Embora haja o risco desta quantificação não representar a significância numérica de cada família identificada, observamos que há uma forte correlação entre a popularidade dos dentes com as demais partes ósseas referentes a cada família presente na amostra.

34

A identificação do material faunístico contou com o auxílio dos zoólogos Mario Alberto Cozzuol, do Departamento de Zoologia da UFMG, Germán Arturo Bohórques, do Departamento de Morfologia da UFMG, bem como dos biólogos Rodrigo Parisi Dutra e Marcelo Greco. 104

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

Figura 4: Freqüência dos dentes das categorias identificadas nos cinco níveis da área da senzala. Como se pode observar na figura 4, são fortemente dominantes na amostra os bois (subfamília Bovinae) e porcos (família Suidae), com uma presença bem mais discreta de cabras (subfamília caprinae), cavalos (aamília equidae) e canídeos (família canidae), sendo que estes últimos podem ser referentes tanto a animais domesticados quanto a silvestres. Vamos nos ater aos ossos de porcos e bois. O primeiro aspecto que deve ser considerado é a possibilidade dos escravos terem tido acesso independente à carne desses animais, por meio de criação própria. Embora não tenha sido impossível que, em alguns casos, escravos tenham criado seus próprios bois, esta foi uma prática pouco usual. Por outro lado, a criação de porcos era viável, sobretudo para aqueles cativos que tinham acesso a lotes de terra para cultivar suas próprias hortas. No Brasil diversos estudos indicam que o cultivo próprio foi uma prática comum entre grupos escravizados, sendo muitas vezes incentivada pelos proprietários, que concediam um dia da semana, usualmente o sábado, para tais atividades (Cardoso, 1982; Reis e Silva, 1989; Slenes, 2011 [1999]:191-192). Conforme observa Slenes (2011 [1999]:191) a criação de animais pelos cativos estaria diretamente relacionada ao cultivo de uma roça, dado que somente aqueles que plantassem para si disporiam de ração para animais como galinhas e porcos. De fato, sabemos que os cativos do Colégio, pelo menos desde o tempo do primeiro proprietário, Joaquim Vicente dos Reis, tinham o dia de domingo destinado para o seu sustento próprio. O proprietário, porém, também se encarregava de vestir e sustentar os cativos, provavelmente através da distribuição de uma quota de peças de roupa anual e de rações a intervalos regulares (Guglielmo, 2011: 31). Como bem coloca Guglielmo, o acesso a roças próprias poderia dar aos cativos algum grau de independência econômica, com os alimentos produzidos podendo ser utilizados como alimentação suplementar à ração ou mesmo comercializados em mercados locais ou para os próprios proprietários. Embora talvez não fosse a regra, também não era incomum que os cativos dos engenhos de Campos dos Goytacazes acumulassem pecúlio por meio de atividades 105

Comida, Cultura e Sociedade

econômicas próprias. Lara (1998:181, 209-210), chama a atenção para quatro casos nessa região de cativos que mantinham cultivos próprios para a comercialização e mesmo criação de porcos. Portanto, a criação de porcos pelos cativos do Colégio é uma hipótese viável para explicar a alta popularidade dos ossos da família suidae no espaço da senzala. Por outro lado, se tal fato ocorreu, seria esperado que esses animais estivessem representados por ossos de todas as partes dos seus corpos. Porém não é isto que ocorre na amostra. Tanto os bois quanto os porcos estão representados por uma baixa diversidade de peças esqueletais. Enquanto que nos porcos as vértebras compõem o elemento mais expressivo, no caso dos bois há uma forte predominância dos ossos referentes aos membros inferiores – falange, tarso, metacaro, tíbia e patela (Tabela 2). Apesar dessa variação, há um expressivo aspecto comum: a quase totalidade de ossos é referente às partes mais pobres em carnes desses animais. Em outras palavras, esses cativos estavam tendo acesso quase que exclusivamente a cortes pobres em carne, de reduzido valor nutricional, cujo consumo somente poderia ser potencializado através do cozimento na forma de caldos e ensopados. Tabela 2: Freqüência entre os elementos de bovinae e suidae da área da senzala Bovinae

Suidae

Vértebra

2

43

Crânio

4

0

Mandíbula/maxila

2

6

Úmero

4

2

Carpo

4

0

Metacarpo

5

2

Falange

31

8

Patela

2

0

Tíbia

3

0

Tarso

16

0

A ênfase em animais domesticados, sobretudo boi e porco, como a principal fonte de proteína animal na dieta dos escravizados é também verificada nas senzalas de plantations dos Estados Unidos (Samford, 1996:95). Para o caso do Caribe, Wallman (2014), estudando os restos faunísticos da senzala uma plantation na Martinica, observou uma grande abundância dos membros inferiores dos bois, compondo 95% dos ossos da subfamília bovidea. Otto (1980), em seu estudo na plantation Cannon’s Point, Georgia, observou que os cativos recebiam cortes de carne de baixa qualidade dos proprietários, que eram melhor aproveitados na forma de cozidos misturados com grãos e vegetais. Muitos dos ossos longos nas senzalas haviam sido despedaçados, como uma forma de aproveitar o 106

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

tutano presente nos mesmos durante o cozimento. Este padrão de estraçalhamento dos ossos é também observado por Samford (1996:99) na plantation Monticello, Virginia. Para o caso da senzala do Colégio dos Jesuítas, é também provável que a grande quantidade de ossos estraçalhados, não passíveis de identificação, tenha sido decorrente dessa prática de obtenção do tutano. A preponderância das partes pobres em carne de bois e porcos – patas, cabeças e vértebras – na senzala do Colégio sugere que os cativos receberam esses cortes dos proprietários, antes do que de criações próprias. Como no caso de seus similares dos Estados Unidos e do Caribe, eles tinham poucas opções de consumo desses cortes, além do preparo de ensopados. Cabe, contudo, considerar que a prática do cozimento de alimentos em uma única panela é comum nas sociedades da África Central e Ocidental (Ferguson, 1991:32-34), de modo que, mesmo que esses cortes tenham sido distribuídos pelos senhores, foram incorporados dentro de práticas culinárias tradicionais da comunidade de senzala. Alimentos ensopados são mais propriamente consumidos em recipientes côncavos, como malgas e tigelas, de modo que outra evidência do seu consumo na amostra diz respeito a uma incidência significativa dessas categorias de louças e cerâmicas. A figura 5 apresenta a proporção das categorias funcionais das faianças finas. Optamos por adicionar em uma mesma categoria as malgas e peças côncavas não passíveis de uma identificação mais precisa, dado que estas últimas podem ter atuado no consumo de alimentos ensopados. Conforme pode ser observado, as peças côncavas constituíram a segunda categoria mais popular das amostras em todos os níveis considerados, oscilando entre 25% e 37% do total das peças, perdendo em popularidade somente para os pratos. Cabe ressaltar que este gráfico diz respeito somente à categoria das faianças finas, de modo que as louças portuguesas e as tigelas de cerâmica vidrada, que foram também utilizadas com o mesmo propósito, não foram contempladas. Temos, assim, uma alta incidência na senzala de peças que foram provavelmente utilizadas para o consumo de ensopados. Esta alta incidência de peças côncavas condiz com aquela comumente verificada em contextos de ocupação afro-americana dos Estados Unidos, onde tais peças tendem a predominar, indicando uma ênfase no consumo de alimentos assim preparados (Baker, 1980; Otto 1984; Orser, 2001).

107

Comida, Cultura e Sociedade

Figura 5: Variabilidade morfológica da faiança fina nos cinco níveis da área da senzala Um último aspecto relacionado aos restos faunísticos de porcos diz respeito a uma discreta presença de ossos de indivíduos juvenis de porco e de boi na amostra, além de uma mandíbula de filhote de cabra presente na fogueira. Tais vestígios, sobretudo de porcos, também ocorrem em contextos de senzala norte-americanos, e têm sido interpretados como possíveis evidências de furto por parte dos cativos, dado que seria incoerente em termos econômicos sacrificar um animal ainda na sua infância (Young, 1997). Considerando a já discutida baixa probabilidade da criação de porcos pelos cativos do Colégio, é também provável que esse tipo de vestígio seja indicativo de uma eventual prática de furto e, assim, de uma forma de resistência oculta, no sentido que Scott (1990) atribui ao termo, à escravidão. Os restos faunísticos também são indicativos de atividades de caça, pesca e coleta por parte da comunidade escravizada do Colégio. Como se pode observar na figura 4, as famílias aligatoridae e didelphidea, referentes, sobretudo, a jacarés e gambás, predominam entre os animais silvestres presentes na amostra da senzala. Um aspecto relevante a ser considerado é que na área da lixeira da casa grande não há raras evidências de ossos de animais silvestres, somente representados por alguns fragmentos de osteoderma de jacaré, demonstrando que a prática da caça muito mais intensa na comunidade escravizada do que entre os proprietários. Ossos de animais silvestres ocorrem com freqüência nos contextos das senzalas dos Estados Unidos (Samford, 1996:96), demonstrando que a prática da caça, como uma forma de melhorar e diversificar a dieta, foi comum entre os grupos escravizados na diáspora. Sobretudo no caso dos gambás e demais animais de pequeno porte, a estratégia de captura deve ter sido pelo uso de armadilhas. É também provável que a captura desses animais não envolvesse um grande investimento de tempo, dado que são espécies que poderiam ter sido capturadas nos arredores da propriedade. Os jacarés – representados, além dos dentes, por 90 osteodermas, 22 vértebras, 3 fragmentos de mandíbulas e duas costelas - podem ter sido caçados no rio e nos lagos que existem próximos à propriedade. Com relação à pesca, esta é representada por um significativo número de vértebras de peixe, em número de 65, e de dois espinhos (dorsais/peitorais) de bagre. Há ainda uma significativa quantidade de conchas de mariscos (família Donacidae, espécie Donax hanleyanus Philippi). Embora os peixes possam ter sido pescados nos rios e lagoas próximos à propriedade, este não foi o caso dos mariscos. Cabe considerar que o Colégio dos Jesuítas localiza-se a 30 quilômetros do mar, de modo que o acesso a esses recursos se daria ou pelo comércio com pescadores, ou por membros da comunidade que teriam condições de circular no mínimo por sessenta quilômetros. Cabe, por fim, destacar que há uma correlação entre o aumento no consumo de jacarés e de gambás, concentrados no intervalo das datações médias entre 1816.9 e 1826.8, as quais correspondem ao período de declínio no fornecimento da carne de boi (figura 4). Um aspecto relacionado diz respeito ao pico do consumo de peixe ter ocorrido justamente neste mesmo intervalo (Tabela 3) que corresponde ao período de maior freqüência dos ossos de jacaré e de gambá. É provável, assim, que o declínio no fornecimento da carne de boi em detrimento da carne de porco tenha levado os cativos a investirem mais tempo na busca por outras formas de proteína animal, de modo a manter a diversificação da sua dieta. Cabe, ainda, considerar que este é justamente o intervalo em que os cativos tiveram uma maior inserção no mercado local e regional, marcado pelo acesso a uma maior 108

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

diversificação de itens industrializados e manufaturados (Symanski 2014). Deste modo, o maior investimento na caça e na pesca também pode ser considerado como uma conquista de maiores espaços de autonomia pela comunidade escravizada durante este período. Tabela 3: Número de vértebras de peixe identificados na área da senzala Peixes

N

8.3, n. 3/4 - 1800,6

1

8.1, n. 3/4 - 1816,9

11

8.1, n. 2 – 1822,2

38

8.1, n. 1 – 1826,8

14

8.3, n. 1 – 1832,8

1

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os cativos do Colégio dos Jesuítas não foram vítimas passivas do sistema escravista. Antes, por meio de diversas táticas buscaram melhorar suas condições de vida, seja pela obtenção de bens materiais que lhes trariam um mínimo de conforto físico e psicológico, seja pela busca de alternativas para complementar a sua dieta, por meio da caça, da pesca, da coleta e, provavelmente, da comercialização e do escambo dos produtos que produziam em seus momentos de folga. Dado o colossal tamanho dessa comunidade, que chegou a abrigar dois mil indivíduos, é bastante provável que mantivessem uma bem desenvolvida economia interna, em que produtos da roça, de pequenas criações, e de atividades artesanais fossem comercializados ou trocados. Do mesmo modo, eles ativamente se envolveram com a economia local e regional, tendo acesso a itens industrializados europeus e manufaturados locais. O registro arqueológico permite um acesso direto ao cotidiano desses grupos e, assim, às práticas que eles desenvolveram para conseguir agenciar aspectos essenciais de suas vidas. O domínio da alimentação foi, de fato, uma das dimensões centrais da existência desses grupos, a qual não somente lhes garantia a sobrevivência biológica, mas também a reprodução cultural. Naqueles momentos especiais em que famílias ampliadas, compostas por casais, filhos, netos, avós, compadres e amigos, se reuniam em volta da fogueira, para saborear a carne caçada, o peixe pescado e, provavelmente, o filhote furtado da criação do proprietário, elas não somente apaziguavam o sofrimento da sua condição de escravizados, mas reforçavam os laços de comunhão entre si e com seus ancestrais, e, assim, mesmo que por breves momentos, podiam se sentir livres e renovar a fé de que suas ações acabariam lhes levando a um mundo melhor. AGRADECIMENTOS A Carlos Roberto Freitas, diretor do Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes, bem como às funcionárias Rafaela Machado e Larissa Manhães Ferreira pelo total apoio à realização da pesquisa de campo. Agradecimentos especiais aos zoólogos Mario Alberto Cozzuol, do Departamento de zoologia da UFMG, e Germán Arturo 109

Comida, Cultura e Sociedade

Bohórques, do Departamento de Morfologia da UFMG, e aos biólogos Rodrigo Parisi Dutra e Marcelo Greco, pelo inestimável auxílio na identificação do material faunístico. Agradecemos ao olhar zooarqueológico de Daniela Klokler, pelas sugestões à primeira versão deste artigo. O sucesso da escavação arqueológica de 2012 deveu-se ao incansável trabalho da equipe, composta por Isabela Suguimatsu, Fernando Myashita, Patrícia Marinho, Bárbara de Ridder Barros, Caetano Tocchetto, Carlos Eduardo Lançoni, Daniele Jesus, Fernando Cantele, Jean Lovato, Kendra Andrade, Luara Stollmeier, Lucas Roahny da Silva, Monique Seidel, Sabrina Andrade, Suzana Munsberg e Tamires Lico. Por fim, o trabalho de laboratório contou com o auxílio dos estagiários Lara Espechit Gomes, Letícia Rodrigues Miranda, Nathalia Rodrigues de Lima e Nicolas Silva do Carmo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINI, C. 2011. A vida social das coisas e o encantamento do mundo na África Central e na diáspora. Métis, vol. 10, n. 19:165-186. APPADURAI, A. 1981. Gastro-Politics in Hindu South Asia. American Ethnologist, Arlington, vol. 8, n.3:494–511. ASCHER, R. & FAIRBANKS, C. 1971. Excavation of a Slave Cabin: Georgia, USA, Historical Archaeology, vol. 5:3-17. BAKER, V. 1980. Archaeological Visibility of Afro-American Culture: An Example from Black Lucy’s Garden, Andover, Massachusetts. In SCHUYLER, R. (Org.) Archaeological Perspectives on Ethnicity in America. Baywood, New York. Pp. 29-37. BINFORD, L. R. 1978. Dimensional analysis of behavior and site structure: learning from an Eskimo hunting stand. American Antiquity, vol. 43, n.3: 330-361. CARDOSO, C. F. 1982. Agricultura escravidão, e capitalismo. 2.ed. Vozes, Petrópolis. FARIA, S. 1998. A Colônia em Movimento – Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Nova Fronteira, Rio de Janeiro. FERGUSON, L. 1991. Struggling with pots in colonial South Carolina. In MCGUIRE, R. H.; PAYNTER R. (Org.) The Archaeology of Inequality. Blackwell, Oxford. Pp. 28-39. FERGUSON, J. 1992. Uncommon Ground: Archaeology and early African America, 16501800.Smithsonian Institution Press, Washington. FERREIRA, L. M. s.d. O solar do colégio e as políticas culturais: a preservação deste patrimônio e a sua resignificação. Manuscrito não publicado, 14 pags. GRAHAM, R. 1979. Escravidão, reforma e imperialismo. Editora Perspectiva, São Paulo. GUGLIELMO, M. G. 2011. As múltiplas facetas do vassal “mais rico e poderoso do Brasil”: Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goytacazes (1781-1813). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói. HEATH, B. J. & BENNETT, A. 2000. The little Spots allow'd them: The archaeological Study of African-American Yards. Historical Archaeology, vol. 34, n.1:38-55. LAMEGO, A. 1934. A Planície do Solar e da Senzala. Livraria Católica, Rio de Janeiro. LARA, S. H. 1988. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 17501808. Paz e Terra, Rio de Janeiro. LAVRADIO, M. 1842. Relatório do Marques de Lavradio, Vice Rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de Vasconcellos e Souza, que o sucedeu no Vice-reinado”. Revista do Instituto Histórico Brasileiro. Tomo IV.

110

Symanski & Morais Júnior – Alimentação, socialização & reprodução cultural

LIMA, T. A. 1996. Humores e Odores: Ordem Corporal e Ordem Social no Rio de Janeiro, Século XIX. História, Ciências, Saúde, vol. 2, n.3:46-98. LIMA, T. A. 1999. El Huevo de la Serpiente: Una Arqueologia del Capitalismo Embrionário en el Rio de Janeiro del Siglo XIX. In ZARANKIN, A. & ACUTO, F (Org.), Sed non Satiata – Teoria Social em la Arqueologia Latinoamericana Contemporánea, Ediciones del Tridente, Buenos Ayres. Pp.189-238. OTTO, J. S. Race and class on Antebellum plantations. In SCHUYLER, R. (Org.) Archaeological Perspectives on Ethnicity in America. Baywood Publishing, Amityville. Pp. 3-13. OTTO, J. S. 1984. Cannon’s Point Plantation – 1794-1860 – Living Conditions and Status Patterns in the Old South. Academic Press Inc., Orlando, San Diego, San Francisco, New York. ORSER, C. 2001. Race and the Archaeology of Identity in the New World. In ORSER, C. (Org.), Race and the Archaeology of Identity. The University of Utah Press, Salt Lake City. Pp. 113. REIS, J.; SILVA, E. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Cia das Letras, São Paulo. SAINT-HILLAIRE, A. 1941. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Companhia Editora Nacional, São Paulo. SCOTT, J. 1990. Domination and the arts of resistance: hidden transcripts. Yale University Press, New Haven e London. SLENES, R. 2011. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Segunda edição. Editora da UNICAMP, Campinas. SAMFORD, P. The archaeology of African-American slavery and material culture. The William and Mary Quarterland, vol. 53, n.1:87-114. SMITH, M. 2006. The archaeology of food preference. American Anthropologist, vol. 108, n.3:480-493. SOARES, M. S. 2009. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos de Goitacases, c.1750- c.1830. Apicuri, Rio de Janeiro. SOUTH, S. 1972. Evolution and Horizon as Revealed in Ceramic Analysis in Historical Archaeology. The Conference on Historical Site Archaeology Papers, Institute of Archaeology and Anthropology. University South Carolina, Columbia, 6:71-116. SOUZA, M. A. T. 2010. Spaces of difference: An archaeology of slavery and slave life in a 19th Century Brazilian Plantation. Tese (Doutorado em Antropologia), Departmento de Antropologia. Syracuse University, Syracuse. SWEET, J. 2003. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African- Portuguese World – 1441-1770. The University of Carolina Press, Chapel Hill e London. SYMANSKI, L. C. 2002. Louças e Auto-Expressão em Regiões Centrais, Adjacentes e Periféricas do Brasil. In ZARANKIN, A. & XIMENA, M. (Org.) Arqueologia da Sociedade Moderna na América do Sul. Ediciones del Tridente, Buenos Aires. Pp. 31-62. SYMANSKI, L. C. 2014. Projeto Café com Açúcar: Arqueologia da escravidão em uma perspectiva comparativa no Sudeste rural escravista – séculos XVIII e XIX. Relatório final encaminhado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. 164 p. SYMANSKI, L. C.; GOMES, F.; SUGUIMATSU, I. No prelo. Práticas de descarte de refugo em uma plantation escravista: o caso da fazenda do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira.

111

Comida, Cultura e Sociedade

SYMANSKI, L. C. & ZANETTINI, 2010. Encontros culturais e etnogênese: o caso das comunidades afro-brasileiras do Vale do Guaporé. Vestígios. Revista latino-americana de arqueologia histórica, vol. 4:89-124. THORNTON, J. 2002. Religious and Cerimonial Life in the Kongo and Mbundu Areas, 1500-1700. In HEYWOOD, L. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge University Press, Cambridge. Pp. 71-90. WALLMAN, D. 2014. Slave community food ways on a French Colonial Plantation. In KELLY, K. e BÉRARD, B. (Orgs.) Zooarchaeology at habitation Crève Couer, Martinique. Bitasion:Lesser Antilles Plantation Archaeology. Sidestone Press Academic, Leiden, The Netherlands. Pp. 45-68. YOUNG, A. 1997. Risk Management Strategies among African-American Slaves at Locust Grove Plantation, International Journal of Historical Archaeology, vol.1, n.1:3-29. ZERON, C. R. M. R. 2011. Linha de fé: a Companhia de Jesus e a Escravidão no processo de Formação da Sociedade Colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). Edusp, São Paulo.

112

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.