ALMEIDA, resenha do livro de MACEDO, José Rivair; Riso, cultura e sociedade na Idade Média

July 21, 2017 | Autor: Cybele Almeida | Categoria: Medieval History, Medieval Studies
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Resenha do livro: MACEDO, José Rivair; Riso, cultura e sociedade na Idade Média. Porto Alegre/São Paulo, Ed. da Universidade/UFRGS/Editora Unesp, 2000. Publicada em Signum, Revista da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), Nr. 4. 2002, pp. 283-290. As imagens que temos a respeito da Idade Média são geralmente marcadas pela polarização entre dois estereótipos: de um lado a idade das trevas, com suas pestes, fomes endêmicas, superstição e medo. De outro lado, uma época festiva, com suas representações teatrais, vitrais e roupas em tons alegres, torneios, amor cortês, quase uma idade da inocência1. Em "O nome da rosa", genial romance de Umberto Eco, é ainda aquela primeira visão que predomina, com o seu mosteiro/cenário lúgubre, uma igreja avessa ao riso e disposta a punir os que ousarem transgredir a verdade bíblica segundo a qual Cristo nunca teria rido. O livro de José Rivair Macedo mostra que estas imagens – ao invés de opor-se drasticamente – se misturam e complementam. Já nas primeiras páginas o autor defende que "jamais houve dentro do cristianismo negação absoluta do riso como valor" (p. 27). A rígida hierarquia social de uma sociedade tida geralmente como imóvel tem suas brechas nas inversões realizadas pelas festas dos loucos, um dos rituais precursores do moderno carnaval (p. 228s.). A rígida hierarquia da igreja convive com um processo sincrético que incorpora elementos do paganismo greco-romano e germano-celta, tendo sua ordem invertida na paraliturgia da festa do asno, momento em que a "missa" era celebrada por membros do baixo clero, com uma assistência que cantava em vernáculo, dançava e proferia "preces blasfematórias", dentro das próprias igrejas (p. 235s.) atitude contrária às normas do alto clero, (in)diretamente ridicularizado por estas práticas. Além disso, no teatro sacro a partir dos séculos XII e XIII "a corte satânica [era apresentada] uma paródia da corte celeste" (p. 215) na qual o diabo fazia "o papel de zombeteiro" (p. 214), o que poderia ser interpretado como uma maneira de exorcizar o medo através do riso desarmando situações potencialmente nefastas aos seres humanos. 1

) Visões que correspondem ao que Hilário Franco Jr. (em O ano 1000: tempo de medo ou de esperança? São Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 17) define como "extremismo interpretrativo" e que refletem as visões historiográficas clássicas sobre a Idade Média: "depreciativa dos renascentistas e iluministas e idealizadora dos românticos", tema já abordado por este autor em A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 19-24.

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Ao enfatizar o aspecto de crítica social e de catarse propiciado pelo riso, pela festa e pelos rituais de inversão da ordem estabelecida, o autor – retomando Huizinga – mostra que aspectos

considerados

antitéticos

pela

sociedade

industrial

(alegria/tristeza,

desespero/esperança etc.) estavam, na realidade, integrados na cultura medieval (p. 253). E é essa cultura que Rivair nos faz ver mais de perto e sob um ângulo diferente do habitual. Pois embora a questão do riso seja o fio condutor da obra, seu desenrolar vai revelando ao leitor um universo já conhecido mas sob uma abordagem, por assim dizer, "invertida", aliás, outra palavra chave para compreender o texto de José Rivair. Fruto de um árduo trabalho de pesquisa, a obra nos convida a pensar a questão do riso nas sociedades pagãs greco-romanas e na tradição judaico-cristã para, através do embate destas culturas e do seu encontro com as raízes celta e germânica, compreender como a Idade Média ocidental elaborou a sua própria sensibilidade no tocante ao riso e como foi encarada a questão da sacralidade do riso ou o lugar que o riso teria nesta sociedade que viria a se tornar a nossa. A tradição pagã (tanto greco-romana quanto celtagermânica) encarava o riso como elemento vital, associado aos rituais de fertilidade e preservação da vida. A tradição monoteísta, ao contrário, talvez exatamente para demarcar fronteiras com o paganismo, dessacraliza o riso considerando-o como sinal de apego à vida mundana, contrário ao ideal salvacionista de desprezar este século e esperar pelas recompensas post mortem (p. 55s.) Mas esta visão não permaneceu inalterada durante a Idade Média: um dos grandes méritos da obra de José Rivair é que, embora eleja como foco de análise a Idade Média tardia, período entre os séculos XIII e XV, não limita a questão a este período, mas o insere no quadro de transformações – objetivas e subjetivas – da Idade Média, sem deixar-se seduzir pela – sem dúvida mais simples – visão atemporal do fenômeno. Retorna assim à crise do Império Romano para compreender a formação do cristianismo na sua "renúncia aos prazeres" e negação do corpo2 em todos os seus aspectos

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) Esta negação do corpo tinha como manifestação extrema a flagelação, fenômeno que em maior ou menor medida sempre presente na Idade Média mas que chegou ao auge, significativamente, no século XIV, quando a devoção ao "Cristo doloroso" levou grupos de indivíduos a desejar "sofrer como Cristo sofrera", como descrito por MACEDO, J. R., Religiosidade e messianismo na Idade Média, São Paulo, Moderna, 1996.

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(p. 51-52). Os deuses pagãos, transformados em demônios no imaginário cristão3, seriam banidos e com eles seus hábitos detestáveis. O corpo que era algo positivo no paganismo passa a ser algo negativo no cristianismo (p. 52), pois é a prisão que separa o Homem do seu Criador. Esta posição no entanto será parcialmente revista a partir do século XII quando se inicia um processo que Jacques Le Goff denomina "a liberação controlada do riso" (p. 68). Devido ao crescimento das cidades, das ordens mendicantes e das universidades, elementos relacionados entre si, a doutrina cristã retoma a questão do Cristo agelastos, tão cara aos Padres da igreja para concluir, dentro do raciocínio escolástico característico deste período, que "Cristo era dotado da faculdade de rir (...) sem que necessariamente o tenha feito" (p. 69). A distinção entre o riso permitido e o riso nefasto é aprofundada (p. 70), abrindo caminho para o momento posterior quando "o riso irromperia em todas as manifestações culturais de cunho profano" (p. 72). Naturalmente não se deve esperar uma divisão rígida entre estes períodos ou entre as esferas secular e temporal pois foi em reação às manifestações da primeira que as autoridades eclesiásticas se viram obrigadas a proibir ou, num segundo momento, controlar o riso. Subjacente está a noção do riso e da comicidade como fenômeno portador de crítica e portanto potencialmente desagregador da ordem estabelecida ou desejada. Mas enquanto a igreja abominava o riso e tornava-o um atributo demoníaco, como demonstrado pelo autor na análise dos tímpanos das igrejas românicas em oposição à seriedade/severidade do Cristo pantocrator (p. 77s.), a população camponesa seguia com suas próprias tradições que conviviam com vestígios do paganismo sob a forma de sincretismo cristão ou superstição. Com o renascimento urbano a partir do século XI e graças ao intercâmbio crescente entre cidade e campo estas tradições seriam trazidas para dentro das cidades, ganhando novas formas como o teatro popular. Desenvolvido a partir da liturgia e do teatro sacro (p. 209) estas manifestações da cultura popular foram inicialmente organizadas por "confrarias alegres" (p. 223), parte da tradição associativa medieval. Interessante e irônico é o fato que estas performances que surgiram "imitando e 3

) Este processo segundo o qual os deuses dos povos vencidos se transformam em demônios para os vencedores foi há muito descrito por FREUD em Uma neurose demoníaca do século XVII, Rio de Janeiro, Imago (1922/23), 1987, p. 110. Esta transformação também aparece em um "sermão [do século VII] atribuído a São Elói" no qual os fiéis são conclamados a não invocar o "nome de demônios como Netuno, Plutão, Diana, Minerva" (citado por MACEDO, 2000, p. 232).

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deformando a grandeza dos poderosos" (p. 224) tenham sido afinal patrocinadas e moldadas por estes. O autor traz diversos exemplos que mostram como o patriciado urbano em fins da Idade Média, ao patrocinar festas e espetáculos teatrais, acaba por institucionalizar estas manifestações mais ou menos espontâneas da cultura popular (p. 242243). A obra de José Rivair Macedo destaca-se sobretudo por dois aspectos: a originalidade do tema e a erudição com que o autor trata do assunto. A literatura de apoio inclui a Bíblia, que o autor sabe manejar com destreza, as obras de teólogos como St. Agostinho, S. Tomás de Aquino e outros menos conhecidos, historiadores de diferentes períodos e tendências, filólogos, filósofos, antropólogos e até mesmo Freud, que vem sendo resgatado pelos historiadores já há algum tempo. Outro ponto positivo da obra é o conjunto de fontes que explora, apesar de todas as dificuldades para a realização de pesquisas medievais no Brasil, que vão desde obras literárias - especialmente através da rica análise dos fabliaux, que têm um capítulo à parte na obra – de história oral – através de provérbios – e iconográfica. Considerando que o riso é historica e culturalmente determinado, Rivair procura entendê-lo à partir da matriz do pensamento ocidental que é a cultura judaicocristã, mas sem negligenciar outras contribuições. Após situar o fenômeno do riso e do cômico na Idade Média em linhas gerais, foca com especial destaque os séculos XIII e XIV. Trabalho de fôlego, o livro se propõe a mapear as diferentes formas pelas quais o fenômeno foi encarado diacronicamente – pelos representantes do clero – e sincronicamente – por diferentes segmentos sociais. A multiplicidade de aspectos e a análise cuidadosa dispensada a cada um deles pelo autor impede que se faça, no espaço limitado de uma resenha, um levantamento mais detalhado da obra. Mas como todo trabalho instigante, este também desperta novos questionamentos, que penso possam ser úteis, especialmente no sentido de "miscigenar" as duas visões de Idade Média inicialmente apresentadas, sob dois aspectos, aparentemente contraditórios: a história do riso e a história do medo. Embora esta aproximação possa parecer estranha, há alguns pontos de contato4. Jean Delumeau na sua magistral "História

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) O paradoxo contido no binômio medo/esperança foi captado no já mencionado "O ano 1000", p. 85. Concordo com o autor que esta polarização não é algo restrito a apenas um período histórico.

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do medo no Ocidente"5 discute algumas das questões que também aparecem na obra de Rivair, como o papel dos rituais litúrgicos e especialmente a encenação da páscoa na formação do teatro e como válvula de escape para tensões sociais. Delumeau afirma que "o teatro religioso foi, ao menos nas cidades, um dos grandes meios da catequese antijudaica" (DELUMEAU, p. 284) gerando violência contra a comunidade judaica a tal ponto que as autoridades urbanas em Frankfurt e Freiburg se verem obrigadas a proibir "representações de certas cenas antiquais" (DELUMEAU, p. 284). Neste sentido não seria possível incluí-lo no rol dos "rituais sociais violentos" como o charivari (MACEDO, p. 247)? A substituição de membros da comunidade judaica por bonecos nas cenas de espancamento de Judas talvez tenha sido um compromisso entre os "fiéis" e as autoridades, interessadas em manter a ordem e também nos vultosos impostos pagos pelos judeus. Outra questão interessante advinda da leitura de "Riso, cultura e sociedade" é o paradoxo apontado pelo próprio autor que lembra a "dimensão hierofânica do riso" (p. 250) como fenômeno comum às sociedades agrárias tal como romana, germana, celta etc. Então, como explicar a ruptura neste sentido realizada pela Idade Média, também ela uma sociedade essencialmente agrária (p. 250)? Certamente o autor tem razão ao apontar para o cristianismo como o elemento responsável pela dessacralização do riso na sociedade medieval. No entanto, esta resposta ainda me parece insuficiente. Penso que o cristianismo só teve sucesso na sua "missão" de dessacralizar o riso - relacionado aos rituais de fertilidade, como relembra o autor (p. 49) - porque, como afirma Phillipe Ariès6, foi capaz de dessacralizar a natureza que no paganismo era algo semi-mágico sendo suas propriedades associadas a deuses ou outras entidades com poderes sobrenaturais. Também considero importante levar adiante a reflexão a respeito da oposição que faz José Rivair entre o riso medieval e moderno. Se a separação entre o sério e o cômico é digna de nota entre os dois períodos, e se tal demarcação se deve à razão, "ao pensamento cartesiano erudito" (p. 254) como afirma o autor, como explicar que esta cruzada racional da Idade Moderna tenha convivido e inclusive aprofundado práticas e medos medievais como a astrologia, alquimia, bruxaria etc? A Idade Moderna não eliminou o pensamento mágico e

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) DELUMEAU, J., História do medo no Ocidente: 1300-1800; São Paulo, Cia. das Letras, 1989. ) ARIÈS, Ph., O tempo da história. RJ, Francisco Alves, 1989.

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irracional, como por vezes se costuma pensar, e há vários exemplos disso7. No século XVI o grande jurista e teórico do absolutismo francês Jean Bodin não apenas acreditava em bruxas como as perseguia e chegou mesmo escreveu um tratado sobre o tema8. O fundador da física moderna, Isaac Newton, acreditava no poder da alquimia, em pleno século XVII9. Uma das grandes injustiças do senso comum é associar a Idade Média à "idade das trevas" é esquecer que o maior fenômeno irracional da era cristã, a caça às bruxas, foi um fenômeno tipicamente moderno e não medieval10. A própria concepção de demônio foi modificada: enquanto na Idade Média se lidava com a idéia de um demônio utilitário, um demônio que obedecia ao seu senhor (i.e. aquele que o invocava) na Idade Moderna o demônio é um senhor absoluto e é uma tecnologia moderna, a imprensa, que passa a divulgar esta nova concepção e com ela a paranóia contra as bruxas (DELUMEAU, 1989, p. 341). Um longo caminho havia sido percorrido desde o "diabo cômico" (MACEDO, p. 214) medieval que "longe de provocar medo, desperta o riso" (MACEDO, p. 216). Outra inversão significativa é aquela operada na forma de encarar as utopias. Enquanto na Idade Média parece haver predominado a tendência de enfrentar frustrações e privações projetando os desejos de mesa farta e sexo sem culpa para um reino imaginário11, na Idade Moderna a utopia se transforma em pesadelo sendo associada aos rituais satânicos nos quais "os bruxos banqueteiam-se e festejam"12. Também os benandanti analisados por Ginzburg13 caem nas malhas da inquisição por serem associados aos feiticeiros que acreditavam combater. Mas permanece em aberto a questão do que teria causado esta inversão e mesmo ruptura: teria sido a peste negra que devastou a Europa no século XIV e a crise econômica subseqüente da qual algumas regiões levaram mais de um século para se recuperar? A peste que afetou a própria religiosidade em suas crenças e formas de

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) Ao examinarmos o nosso próprio século, marcado pela tecnologia de ponta, também fica claro que o pensamento mágico irracional não foi eliminado, apenas mudou de roupagem. Bom exemplo disso são as expectativas em torno do milênio – 1000 e 2000 – como demonstra FRANCO Jr. em O ano 1000, p. 82-83. 8 ) BODIN, J., De la Démonomanie des sociers, Anvers, 1586; citado por LEVACK, A caça às bruxas na Europa moderna. Campus, Rio de Janeiro, 1988., p. 61. 9 ) GOLDFARD, A.M.A., Da alquimia à química, São Paulo, Nova Stella/Ed. da Universidade, 1987, p. 234. 10 ) A perseguição atingiu o auge entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século XVII; vide a já mencionada obra de LEVACK, B., A caça às bruxas. pp. 57 e 1 respectivamente. 11 ) MACEDO, Riso, cultura e sociedade, p. 240 e também FRANCO Jr., H., Cocanha: história de um país imaginário, São Paulo, Cia. das Letras, 1998. 12 ) DUMAS, F.R., Arquivos secretos da feitiçaria e da magia negra, Lisboa, Ed. 70, p. 68 13 ) Ginzburg, C.; Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII, São Paulo, Cia. das Letras, 1988.

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expressão como aponta Bulst14. Ou seriam os Estados absolutistas em formação que se esforçavam por derrotar os vestígios medievais tanto em termos objetivos quanto subjetivos, invertendo algumas das características principais daquele período15? Uma das inversões operadas neste sentido teria sido exatamente a demonização da mulher. Na Idade Média os clérigos se dividiam entre dois paradigmas femininos "um da mulher essencialmente má e o outro da mulher perfeita"16, personificadas nas figuras bíblicas de Eva e Maria. Embora concorde com o autor com o fato de que na tradição popular, como expressa nos fabliaux, predominasse a misoginia (MACEDO, 2000, p. 175s.) temos na Idade Média uma forma bastante amena de misoginia. A mulher, como o diabo, inspirava geralmente risadas, e não medo. E é exatamente o medo às mulheres que vai levá-las maciçamente às fogueiras no período seguinte. Questões como essas suscitadas pela leitura de "Riso, cultura e sociedade" permanecem em aberto. Mas dar espaço a elas, matizar a versão tradicional que faz da Idade Média um vale de lágrimas, sem contudo idealizá-la como faziam os românticos do século XIX, é um dos seus muitos méritos. Cybele Crossetti de Almeida Prof. do Depto. de História, IFCH/UFRGS

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) BULST, N., Heiligenverehrung in Pestzeiten. Soziale und religiöse Reaktionen auf die spätmittelalterlichen Pestepidemien. In: LÖTER, A./MEIER, U./SCHNITZLER, N./SCHWERHOFF, G./SIGNORI, G. (Hrsg.), Mundus in imagine: Bildersprache und Lebenswelten im Mittelalter. Festgabe für Klaus Schreiner. München, 1996, p. 63-97, aqui especificamente p. 68. 15 ) ALMEIDA, C. C., O magistério feminino laico no século XIX: uma abordagem histórico-filosófica. Diss. de mestrado, FACED/UFRGS, Porto Alegre, 1991, p. 59ss. 16 ) MACEDO, J. R., A mulher na Idade Média, São Paulo, Contexto, 1990, p. 42s.

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