Alógica do fragmento nas Guerras Conjugais de Dalton Trevisan e Joaquim Pedro de Andrade

May 24, 2017 | Autor: Wendell Guiducci | Categoria: Literature and cinema, Minificción, Fragmentación
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"O velho de milênios também pode atingir a modernidade: basta que se apresente como uma negação da tradição e que nos proponha outra. Ungido pelos mesmos poderes polêmicos do
novo, o antiquíssimo não é um passado: é um começo. A paixão contraditória ressuscita-o, anima-o e o transforma em nosso contemporâneo. Na arte e na literatura da época moderna há uma pertinaz corrente arcaizante que vai da poesia popular germânica de Herder à poesia chinesa desenterrada por Pound, e do Oriente de Delacroix à arte da Oceania amada por Breton. Todos esses objetos, sejam pinturas e esculturas ou poemas, têm em comum o seguinte: qualquer que seja a civilização a que pertençam, sua aparição em nosso horizonte estético significou uma ruptura, uma mudança." (PAZ, 1974, p.21)
Lacoue-Labarthe e Nancy trabalham aqui com a noção de sistema proposta por Heidegger, desenvolvida a partir do termo grego sýstasis. "O sistema não pode ser rejeitado, pois ele é necessariamente posto desde que o fato da liberdade é posto. Como assim? Se a liberdade de um indivíduo existe efetivamente, isso significa também que ela coexiste de uma certa maneira com a totalidade do mundo. Ora, é precisamente esta coexistência, esta con-sistência [Zusammenbestehen] – sýstasis – que designa o conceito, e mesmo já, o termo de "sistema". (Heidegger, apud PENNA, in: A exigência fragmentária [nota de tradução], 2004, p.92)
Para este artigo analisamos a 2ª edição, de 1970, à qual tivemos acesso. É importante sabê-lo, pois é do programa estético de Dalton Trevisan não apenas reescrever seus contos para outras publicações, mas também para reedições dos mesmos volumes. Observa Luiz Alberto Andrioli Silva em sua dissertação: "Faz-se necessário relembrar que Dalton Trevisan é um escritor que constantemente revisa, revisita e reescreve seus textos. Entre a primeira e a última edições de um conto, podemos encontrar diferenças muito significativas, principalmente no que diz respeito à extensão dos escritos" (2010, p.16).
Publicado na 2ª edição de Ah, é?, de 1994, sem título, à forma dos hai kais japoneses.
Em sua apresentação à 2ª edição brasileira (traduzida por ele mesmo) de Pólen, o poeta e historiador de filosofia Rubens Rodrigues Torres Filho lembra que muitos textos da Antiguidade tornaram-se fragmentos pois perderam-se no tempo, e o que pôde ser compilado foram partes de um todo original. Os primeiros românticos, os fundadores do Romantismo Alemão, todavia, já escreviam de forma fragmentária, "produto, talvez, de uma erosão e conflagração no próprio pensamento?". Torres Filho reforça sua colocação citando o fragmento que Friedrich Schlegel escreveu, em 1798, na revista Athenäum: "Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos modernos o são logo em seu surgimento."


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Wendell Guiducci de Oliveira












A LÓGICA DO FRAGMENTO NAS
GUERRAS CONJUGAIS DE DALTON TREVISAN
E JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

















Salamanca
Maio de 2015

A obra de Dalton Trevisan é construída sobre os escombros de uma literatura escavada, demolida e reerguida em nome da síntese, da palavra aforística, da totalidade fragmentária. A economia de meios em favor do maior efeito – um efeito explosivo – é marca de sua prosa contaminada de poesia dura, na qual abundam a violência e o sexo, em grande parte das vezes presos um ao outro como amantes que se amam-odeiam. Contista por excelência, microcontista por obsessão, Trevisan vem parindo ao longo de mais de 50 anos de produção uma obra singular, em que um marcado hibridismo cria pontes entre as trincheiras que separam os gêneros literários e mesmo extraliterários.
Na busca incessante por um reducionismo criador, o Vampiro de Curitiba – alcunha inspirada em seu célebre livro de 1965 e pela qual ficou conhecido – esquartejou a própria carne, retalhando e reescrevendo muitos de seus contos, reinventando-os e republicando-os em versões mínimas que ele mesmo batizou de ministórias ou haikais. E mais, como observou Silveira: "Ei-lo não só a reescrever contos já publicados. Vemo-lo também a pinçar de narrativas anteriores uma frase, um parágrafo, o trecho de um diálogo, republicando-os ora ipsis litteris, ora retocando-os com a mudança de uma palavra, uma frase, uma expressão" (2003, p.127).
Em certo sentido, Trevisan filia-se inicialmente à "tradição da ruptura" proposta por Octavio Paz em seus estudos sobre a modernidade, negando o conto clássico e depois o próprio conto moderno, flertando descaradamente com procedimentos da poesia; e então vai além, surfando a "modernidade líquida" identificada por Zygmut Bauman (2001), na qual nada é permanente. Sua obra é profundamente identificada com esta transitoriedade, uma vez que o próprio autor não estabelece uma rigidez para suas histórias, recusando-se a considerá-las definitivas sob todos os aspectos. Esta nova modernidade com a qual Trevisan comunga, que não é a pós-modernidade – esta, segundo Bauman, ainda não foi alcançada pelas sociedades contemporâneas -, escancara "a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo" (2007). Tudo é volátil, e a literatura também reflete esta realidade.
As ministórias de Trevisan, também chamadas por ele de haicais, são correspondentes formais às minificções tão caras a uma extensa linhagem de escritores de língua espanhola, mas que no Brasil ainda não sedimentaram uma tradição. Todavia, não resta dúvida de que Trevisan é o minificcionista brasileiro de maior vulto. Seus textos refletem constantemente diversos rasgos distintivos do gênero, como a brevidade, o uso da elipse, a intertextualidade (e, no caso específico de Trevisan, a intratextualidade), o hibridismo genérico. Como destaca o teórico mexicano Lauro Zavala,
as características literarias de la minificción son, entre otras, una intensa intertextualidad con géneros literarios y extraliterarios (a lo cual podemos considerar como hibridación genérica), una tendencia a la ironía estable o inestable (cuya intención depende de cada relectura) y un final anafórico (es decir, un final que anuncia lo que está por ocurrir). (ZAVALA, 2011, p.9)

A contística de Trevisan atende a todos estes requisitos. Ela vai além da prosa, relacionando-se com a poesia, com o aforismo, com o epigrama, com o koan zen-budista, com o haikai, mas também com formas extraliterárias como o slogan, o grafite e a manchete. "Podemos entender isso como uma crítica aos gêneros, como uma forma de satirizar a rotulação convencional. Ele se coloca fora da concepção tradicional do conto, criando um modo de expressão pessoal que põe em xeque os parâmetros da teoria da literatura" (MARCHI, 2003, p.91). Os clichês transbordam neste discurso "cuja meta é o silêncio, espaço onde as pessoas se destroem" (WALDMAN, apud Farinaccio, 2008, p.237). Na confecção de suas narrativas, Trevisan lança mão de formatos consagrados pelo jornal, pela revista, pela televisão, pelo rádio, pelo poema, anulando toda subjetividade sem jamais deixar de contar uma história, promovendo assim um trânsito fluido entre disciplinas distintas.
Adaptar suas próprias histórias para outras roupagens, conferindo-lhes novas versões, é para Trevisan uma constante desde o início da década de 1970, época em que cruzou mais uma fronteira, saltando da literatura para o cinema para trabalhar com o diretor Joaquim Pedro de Andrade no roteiro do filme Guerra conjugal, lançado em 1975. A película é inspirada em pelo menos 17 contos de Dalton Trevisan, a saber: "A sopa" e "A velha querida", extraídos do livro Novelas nada exemplares (1959); "Cena doméstica", de Morte na praça (1964);"Dia de matar porco" e "O roupão", de Cemitério de elefantes (1964); "Menino caçando passarinho", "Cafezinho com sonho", "Na pontinha da orelha" e "As uvas", de O Vampiro de Curitiba (1965); "Alegrias de cego", "Mocinha de luto" e "Chapeuzinho vermelho", de Desastres do amor (1968); "O anjo da perdição" e "Os mil olhos do cego", de Guerra conjugal (1969); e "Sonho de velha", "Eis a primavera" e "Minha querida madrasta", de O rei da Terra (1972).
Trevisan não somente cedeu suas histórias ao filme, como também reescreveu os diálogos, adaptando-os para o roteiro, ato (o de reescrever sua própria obra) que já vinha experimentando há alguns anos, pelo menos desde 1970. Quanto a Joaquim Pedro de Andrade, também não foi essa sua primeira experiência de apropriação da literatura através do cinema. Aliás, pode-se dizer que a relação do cineasta com escritores vem de berço. Seu pai, Rodrigo Melo Franco de Andrade, foi idealizador e primeiro presidente do Instituto Nacional de Patrimônio Histórico e Artístico, além de advogado, jornalista e escritor ligado a intelectuais como Carlos Drummond de Andrade, Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Vinicius de Moraes. Manuel Bandeira, especialmente íntimo da família, foi padrinho de crisma de Joaquim Pedro.
Nascido em 1932, o cineasta foi fortemente influenciado pelo projeto cultural do Modernismo brasileiro, tanto que suas duas primeiras obras, dois curta-metragens, indicam esta relação: O mestre de Apipucos, sobre Gilberto Freyre, e O poeta do castelo, sobre o padrinho Manuel Bandeira.
Na construção dos filmes, igualmente, a diversidade de abordagens. Enquanto O Mestre de Apipucos utiliza a narrativa clássica, dando voz e presença ao personagem; em O Poeta do Castelo, Joaquim Pedro lança mão de recursos que mais tarde iriam identificar o Cinema Novo: as filmagens feitas em espaços públicos, utilizando a luz solar, sujeita às intempéries e obstáculos de uma caminhada no centro de uma metrópole, o cotidiano elevado à condição de protagonista, o naturalismo das cenas. Essas diferentes formas de abordar caracterizariam o cinema de Joaquim Pedro de Andrade, culminando num processo dialético revelador das contradições do projeto modernista. (MALAFAIA, 2011, p.3)

Antes de chegar a Trevisan, Joaquim Pedro ainda dirigiria, entre outros filmes, O padre e a moça (1965), inspirado em poema de Carlos Drummond de Andrade, e aquela que talvez seja sua obra máxima, Macunaíma (1969), marco do Cinema Novo. Ainda navegando ao largo da praia do Modernismo, banhando-se especificamente na antropofagia, ele realizaria seu último filme, O homem do Pau-Brasil (1981), adaptação livre da vida e da obra de Oswald de Andrade.
Com Dalton Trevisan, Joaquim Pedro de Andrade compartilhou mais que histórias, mas também uma lógica fragmentária na realização de Guerra conjugal. Assim como o Vampiro de Curitiba costura sua produção como um tapete de retalhos, repetindo cores, texturas e temas, Joaquim Pedro lança mão de fractais para compor o mosaico de situações sórdidas representadas na tela. No aparente caos de eventos justapostos, tanto no escritor quanto no cineasta, há, mais que uma lógica, um sistema, entendido aqui não como "a ordenação sistemática do conjunto, mas aquilo pelo qual um conjunto se mantém junto" (LACOUE-LABARTHE e NANCY, 2004, p.77). Isso não faz, entretanto, da obra fragmentária uma obra gerada no seio de um pensamento sistemático. Pensando com Walter Benjamin, trata-se de apreender absolutamente o sistema, e não compreender de forma sistemática o absoluto. Ao comentar sobre Friedrich Schlegel, disse Benjamin: "O absoluto era para Schlegel, na época do Athenäum, o sistema na figura da arte. Mas ele não buscou compreender sistematicamente este absoluto; antes, ao contrário, tentou compreender de maneira absoluta o sistema" (apud Lacoue-Labarthe e Nancy, 2004, p.77).
Não é também que cada peça fragmentária exposta por Trevisan ou Joaquim Pedro seja tomada como uma encarnação da obra – um livro, o filme – como um todo. Trata-se mais de um microcosmo da obra, do exórdio de uma composição fragmentária, sempre aberta, inacabada, incompleta, em devir. No caso de Guerra conjugal, há um universo contístico específico reunido e retrabalhado, de forma que, transpostos e justapostos na tela, coexistem em uma unidade macro, um conjunto, o filme em si. Os próprios contos-fragmentos ligam-se uns aos outros através de linhas de força bastante claras, de ordem histórica e cultural, a retratar tipos bem particulares de personagens e situações.
José Luiz Matias identifica três eixos narrativos em Guerra conjugal, girando cada um em torno de um personagem: Joãozinho (e sua mulher Amália), Doutor Osíris e Nelsinho. No primeiro, transborda o ódio conjugal mútuo nutrido pelo casal atado desgraçadamente um ao outro, uma quase obsessão na contística de Dalton Trevisan desde sempre. No segundo, o personagem vivido pelo ator Lima Duarte representa um tipo asqueroso que "expressa a idiossincrasia do bacharelado brasileiro" (MATIAS, 2014, p.187). Por fim, o Nelsinho idealizado para a tela por Joaquim Pedro dá corpo e voz ao próprio Vampiro de Curitiba, amante incorrigível de qualquer mulher, jovem ou velha, gorda ou magra, feita ou bonita, expoente máximo entre os protagonistas paridos por Dalton Trevisan. Estes personagens de Guerra conjugal condensam os tipos que habitam a obra de Trevisan, bem identificados por Berta Waldman:
Ambientados na periferia da periferia, desfilam nos contos, sob um facho de luz fria, funcionários públicos, prostitutas, donas de casa, domésticas, normalistas, trabalhadores da terra, malandros, bandidos, policiais, viciados em droga, bêbados, religiosos, machões, abusadores de menores. O autor monta uma cena ficcional presa entre quatro paredes, que objetiva, entre nós, a negatividade de uma obra construída segundo a melhor tradição literária no mapa da narrativa contemporânea. (WALDMAN, 2012, p.5)

Estes personagens e as situações que experimentam, entretanto, não são dispostos de forma linear. A narrativa dá saltos, abre crateras, volta. Isolados pela ruptura da montagem cinematográfica, que os divide sem extirpá-los do todo, os episódios sustentam-se como pequenas unidades narrativas de poderosa significação. Trata-se da transfusão para a tela de um procedimento típico de Trevisan, no qual as ministórias ou "haicais são antes fragmentos deslocados de contos matriciais que, isolados, criam uma autonomia, embora continuem, paradoxalmente, inseridos nas grandes linhas associativas criadas pelas dobras da repetição" (WALDMAN, 2012, p.5). Há um sentido da perda da totalidade na disposição estilhaçada das histórias, ainda que elas permaneçam juntas pela sýstasis que as une. Este paradoxo só é possível em Dalton Trevisan e Joaquim Pedro graças à natureza fragmentária de suas obras. "O fragmento bloqueia em si mesmo, de certa forma, o acabamento e o inacabamento, ou de maneira ainda mais complexa, não seria sem dúvida impossível dizer que ele acaba e inacaba ao mesmo tempo a dialética do acabamento e do inacabamento" (LACOUE-LABARTHE e NANCY, 2004, p.82).
Para Friedrich Schlegel, "um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho" (apud Souza, 2008, p. 79). Friedrich Nietzsche recorre a esta tão replicada metáfora para sublinhar as possibilidades infinitas de ressonância do gênero aforístico: "nada é mais sábio do que uma palavra proverbial – dizia o porco-espinho enquanto o sol lhe aguilhoava" (apud Souza, 2008, p. 79). Se para Nietzsche o provérbio permite, à luz do pensamento dedicado, múltiplas interpretações, assim como o porco-espinho, à luz do sol, expande múltiplos espinhos, Schlegel defende o fragmento como obra de arte apelando para a natureza ambígua do mesmo animal, "o qual por seus múltiplos espinhos, é, ao mesmo tempo, isolado, arisco, mas voltado absolutamente para fora e sensível às mínimas ameaças" (apud Souza, 2008, p. 79).
Guerra conjugal é um filme fragmentado, lacunar, cujos personagens o tempo todo proferem falas aforísticas, proverbiais, intuições incandescentes dentro dos diálogos – sempre ácidos - a iluminar, como relâmpagos, toda a narrativa fílmica. A descontinuidade, logo, não redunda em incompreensão. Muito pelo contrário. Nietzsche, que edificou sua obra sobre muitos estilos textuais, acreditava na claridade fulgurante da escrita fragmentária, sem exigir uma leitura linear. Não à toa elogiava Heráclito e a maneira fragmentária com que o filósofo de Éfeso escrevia seus textos, tão concisos quanto lacunares. Disse o alemão sobre o pai da dialética: é provável que jamais homem em tempo algum tenha escrito de um modo mais claro e luminoso" (apud Souza, 2008, p. 80).
Trevisan também persegue esta escrita aforística, o que se intensifica a partir do momento em que se lança a um processo reducionista, assumindo a busca pela máxima concisão como parte de seu programa estético. Em 1974, ele já decretara:
Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta. Nunca termino uma história. Cada vez que releio eu a reescrevo (e, segundo os críticos, para pior). Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e depois para o haicai (apud WALDMAN, 1989, p.94).

No núcleo narrativo ancorado na figura do Doutor Osíris, há uma sequência baseada no conto "Menino caçando passarinho", em que o advogado tem um encontro às escondidas com Olga. A partir deste fragmento de três minutos e dez segundos de duração, podemos identificar claramente o processo reducionista de Trevisan em três momentos distintos: no conto original que inspira o segmento, no diálogo retrabalhado para o filme e na ministória derivada do conto e publicada posteriormente. Do conto original, que soma 1.489 palavras, extraímos o trecho abaixo.
Deu volta à chave. Ela caiu-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar podia, tão assustada. Desabotoava o casaquinho - cuidado, querido, o pregador! Ele arrancou a gravata. Aos cochichos - já era hábito. Bem o marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo - sedas e rendas! Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados no sofá. Deitados no tapete, rolando.
- Quer que morda ou beije?
- Sim.
- Beije ou morda?
- Sim. Ai, sim. Ai. Sim.
- Abra o olho.
- …
- Gema comigo, anjo. Agora.
O herói gemeu. Ela o acompanhou em tom mais baixo.
- Ai, ai. Eu morro (TREVISAN, 1970, p.62)

No roteiro de Guerra conjugal, o excerto supracitado foi assim adaptado para o diálogo entre Osíris e Olga, enquanto ele a despe e empurra para o sofá:
- Seu marido tinha razão: a maravilhosa roupa de baixo, pele pura, sedas e rendas! Quer que eu morda ou beije?
- Ai, sim, doutor, sim…
- Quer que eu morda ou beije?
- Ai, sim, doutor, sim…
- Quer que eu morda ou beije?
- Ai, sim, doutor, sim…

E a sequência corta então para a saída de Osíris pela porta dos fundos, conduzido por Olga. Em 1994, Trevisan revisita esta mesma cena, agora retrabalhada para uma ministória sem título, contando meras 67 palavras, bem à feição da minificção contemporânea:
Ela cai-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar pode, assustada. Desabotoa o casaquinho – cuidado, querido, o pregador! Ele se desfaz da gravata.
Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados. Deitados no tapete, rolando.
- Quer que morda ou beije?
- Sim.
- Beije ou morda?
- Sim. Ai, sim.
- O que você quer, anjo? Fale.
- Ai, sim.
Essa aí a grande tarada do sim, sim. (TREVISAN, 1994, p.75)

Trevisan, tanto em seu trabalho literário quanto na confecção de seu roteiro para Guerra conjugal, procede um trabalho obsessivo de depuração e lapidação da própria criação, em busca de uma síntese explosiva, uma concisão nuclear que confere a suas ministórias o caráter fragmentário. Neste exercício constante, reduzindo o texto à menor e mais impactante porção narrativa possível, desvela o fragmento dentro do fragmento, ainda vibrante, perfeito em seu inacabamento. Em seu ensaio Plenitude e carência: a dialética do fragmento, Maria Lucia Guimarães de Faria defende o fragmento como uma autêntica manifestação do pensamento. Em sua análise, ela confronta a visão de Schlegel, que compreende o fragmento como "a centelha primordial de um pensamento em gestação" (2010), e a de Walter Benjamin, que o enxerga como a representação de um mundo em ruínas. Deste ponto de vista, vislumbra sua natureza ambígua.
Realizando-se na fronteira entre o entusiasmo da reflexão poética e a angústia de uma meta sempre fugidia, o fragmento reúne dialeticamente o ardor de um pensamento em demanda da perfeição e a dor de nunca chegar a perfazer-se. (FARIA, 2010, p. 2)

Ente finito com aspiração ao infinito, o ser humano tende naturalmente à fragmentação, segundo a visão de Schlegel. E como toda e qualquer expressão limita, o homem sempre cai na miséria de criar representações limitadas em suas tentativas de exprimir o absoluto. Assim, o melhor que pode fazer é tentar encapsular seus momentos de intuição, pois "a verdadeira forma da filosofia universal são fragmentos" (SCHLEGEL, apud Faria, 2010, p. 3). Ao escolher o fragmento como forma de expressão, Schlegel - como Nietzsche, como Trevisan, como Joaquim Pedro – elege-o como formato adequado à fragmentação do próprio eu. É na "simultaneidade de caos e cosmos, na interpenetração dinâmica de finito e infinito, na contemporaneidade instantânea da plenitude de um pensamento autopropulsivo e da inevitável limitação decorrente da finitude radical do conhecimento humano" (FARIA, 2010, p. 9) que jaz a grandeza do fragmento.
O texto fragmentário encarna a incompletude do que está em devir, entendido aqui segundo abordagem de Gilles Deleuze:
Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população. Pode-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê, sob a condição de criar os meios literários para tanto (2008, p. 11).

Em seu estudo sobre a escrita fragmentária no barroco alemão, Walter Benjamin elabora uma interpretação diferente da de Schlegel, mais melancólica. Para ele, o fragmento é a representação de um mundo feito em estilhaços. "Benjamin percebe o fragmento como a ruína do todo, e o sentimento que ele lhe inspira, longe do entusiasmo autopropulsivo de Schlegel, é a nostalgia pela perda irrecuperável de uma totalidade amada e sagrada" (FARIA, 2010, p. 11).
Despedaçados também são os personagens de Guerra conjugal, figuras desajustadas, grotescas, vivendo numa espiral de violência, traição, instintos primitivos, enfim, um mundo em ruínas socialmente indesejado. Para o realismo cru e o coloquialismo da escrita de Trevisan, onde os aforismos travestem-se de clichês construídos à base de frases feitas e jargões populares, Joaquim Pedro de Andrade encontrou na estética da pornochanchada o melhor veículo, um gênero que "estabelece com o público espectador um vínculo de amor-ódio ao conduzir à representação cinematográfica fenômenos socioculturais pouco apreciados" (FARINACCIO, 2008, p.240). Através do grotesco, Joaquim Pedro rompe com a expectativa comum à pornochanchada e promove sua crítica às relações humanas, particularmente na sociedade brasileira, e é duplamente bem-sucedido: comunica-se com um público maior, através de um modelo de cinema extremamente popular à época, e cria empatia, ainda que velada e indesejada, dos espectadores com os personagens e suas experiências desconcertantemente comuns. Uma vez dentro da Guerra conjugal, o leitor-espectador é obrigado a encarar sua própria miséria.
Fiel a Trevisan, Joaquim Pedro de Andrade busca não só na forma fragmentária, mas também na estética do grotesco outro ponto de contato entre sua adaptação e os contos do dionisíaco Vampiro de Curitiba, que serve-se dos ingredientes mais baixos do comportamento humano para cozinhar sua obra, onde quase tudo é erotismo, desastre e caos. Mas o baixo e o grotesco, como concepções estéticas, não se vinculam necessariamente sempre a um caráter negativo, como bem observou Mikhail Bakhtin em sua análise sobre a cultura popular da Idade Média.
Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida
como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida, em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como o coito, a concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação. Precipita-se não apenas para baixo, para o nada, a destruição absoluta, mas também para o baixo produtivo, no qual se realizam a concepção e o renascimento, e onde tudo cresce profusamente. O realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, é o seio corporal; o baixo é sempre o começo. (BAKHTIN, apud Marchi, 2003, p.88)

O fragmento, enquanto representação de um pensamento em gestação, habita também o lugar da concepção, como observou Novalis, um dos fundadores do Romantismo Alemão ao lado dos irmãos Schlegel, em seu Pólen: "Fragmentos desta espécie são sementes literárias. Pode, sem dúvida, haver muito grão mouco entre eles – mas contanto que alguns brotem" (NOVALIS, apud Lacoue-Labarthe e Nancy, 2004, p.81). A obra de Dalton Trevisan é, neste sentido, uma obra geradora. No caso específico do filme de Joaquim Pedro de Andrade, seus contos, lapidados para o roteiro, quebram-se em unidades mínimas, sementes abertas que anunciam um porvir ao mesmo tempo em que realizam-se em si próprias. Assim, a totalidade fragmentária de Guerra conjugal encontra-se simultaneamente no todo e na parte: uma totalidade plural de fragmentos, compreendida não como soma de partes, mas como uma composição constelar, na qual no todo reluzem as partes, e nas partes, o todo.


REFERÊNCIAS

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FARINACCIO, Pascoal. As representações indesejadas: a Guerra conjugal na literatura e no cinema. In: ---. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n.34, p. 237-247, 2008. Disponível em: . Acesso em 11 de dezembro de 2014.

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MALAFAIA, Wolney Vianna. O Modernismo revisitado: cinema e política em Joaquim Pedro de Andrade. In: ---. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH, p. 1-16, São Paulo, jul. 2011. Disponível em: < http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1299614858_ARQUIVO_JPA.Politica.2011.pdf >. Acesso em 22 de dezembro de 2014.

MARCHI, Diana Maria. Dalton Trevisan – Ah, é?. In: ---. Cienc.let., Porto Alegre, n.34, p. 83-92, jul/dez 2003. Disponível em: Acesso em 10 de março de 2015.

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