“Alôxê mi, Agué mirô”. Hibridismo e invenção da tradição no candomblé do Engenho Velho

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III Colóquio Doutoral ISCTE-IUL Painel do Doutoramento

“Aloxe mi, Agué miro”. HIBRIDISMO E INVENÇÃO DA TRADIÇÃO NO CANDOMBLÉ DO ENGENHO VELHO

Em Estudos Africanos 19 abril 2015

A presente comunicação pretende

debater

os

processos híbridos e a

O CANDOMBLÉ IMPLICA ser

olhado pelo viés do questionamento. O que é a

tradição africana? Qual a tradição que se impõe veicular? O que é o autêntico? São perguntas centrais na abordagem histórica e antropológica

invenção da tradição no

dos cultos africanos no Brasil. O autenticamente africano configura-se como

seio do Candomblé nagô

marca d’água nos discursos ideológicos e nos horizontes rituais dos

baiano, onde a memória

especialistas religiosos candomblecistas. Nina Rodrigues (1900) registava a

instituída

preconiza

o

recusa das negras africanas de participarem das celebrações do candomblé

ideal

continuidade.

do Gantois, por considerarem que este seria coisa de crioulos e não de gente

de

Para tanto, parte-se do estudo-de-caso

da

divindade não-nagô Agué (Maré) e sua introdução

africana. Este tipo de narrativa demarca o debate das autenticidades. Um terreiro hoje tomado como histórico, tradicional e autêntico, verdadeiro locus de ortopraxia candomblecista – num exercício de cruzamentos entre

Casa

etnografia e comunidade religiosa (Capone 2004, Seeber-Tegethoff 2007,

Branca do Engenho Velho.

Earl Castillo 2010) – foi, em tempos, colocado em causa como degenerado

no

Terreiro

da

do ideal africano. Tais acontecimentos revelam um campo religioso onde a dinâmica se sobrepõe a um ideal de permanência e continuidade. Tal facto colocanos num cenário de contraste entre processos híbridos e de bricolage (Bastide 1970), que se aportam à constituição dos fenómenos religiosos africanos no Brasil, com os calundus coloniais e os sucessores candomblés (Parés 2006, Silveira 2006), e uma memória instituída – fazendo uso do conceito de Triaud (1999) – que estabelece um ideal de imutalidade ortopráxica. *** Esta memória instituída é um recurso ideológico e um instrumento político de veiculação de autoridades. O Candomblé, enquanto território de conflitos e alinhamentos estratégicos, de que são exemplo as “trocas de águas”, i.e., a adesão a uma outra linhagem religiosa que não a de origem COMUNICAÇÃO A COLÓQUIO

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com a qual se rompe (Capone 2004: 131), opera na veiculação de eixos normativos, lieux de mémoire, nos dizeres de Pierre Nora (1984), que se difundem em, chamemos-lhes, lieux de pouvoir, representados pelas casasmatrizes baianas, em particular a santíssima trindade da etnografia: Casa Branca do Engenho Velho, Gantois e Axé Opô Afonjá. Nessa lógica que pressupõe memória e poder, a imutabilidade é um ativo político poderoso, pois que baliza os debates das autenticidades cristalizadas e perdidas. Todo este cenário que se encerra no longo debate da pureza (nagô), desde o tempo de Nina Rodrigues (1900), altura em que, como visto, as africanas se recusavam a frequentar as celebrações no Gantois por ser um espaço de culto já de crioulos, conduz-nos ao problema em análise nesta comunicação. Conforme mencionado, o terreiro do Engenho Velho é um dos pilares centrais da normatividade ideológica candomblecista. A antiguidade ligada aos processos históricos de instituição de costumes religiosos africanos na Bahia, através do chamado Candomblé da Barroquinha (Silveira 2006), e o facto de ser a casa-mãe do Gantois e Axé Opô Afonjá, criados em resultado de dissidências sucessórias no primeiro, permitiriam instituir este terreiro como ponto de partida do Candomblé. Por essa razão, a par de outros terreiros valorizados na etnografia ou somente na comunidade imaginada candomblecista brasileira, o candomblé do Engenho Velho figura como locus de autenticidade, quer em termos de linhagens religiosas quer em matéria de padrões rituais e estéticos. É em face destes, igualmente, que se operam os processos de reafricanização (Capone passim), os quais visam restaurar uma autenticidade africana, sabendo que o Candomblé, enquanto território de nostalgias é tecido em perdas culturais e horizontes de imutabilidade. Chegamos, então, ao ponto da discussão. Temos, pois, evidente, um cenário contrastativo e coincidente, uma verdadeira situação de coincidentia oppositorum, em que a realidade dinâmica e híbrida – em que se dão processos continuos de bricolagem, desde os primórdios calundus até aos candomblés jejes e nagôs (Silveira 2006, Parés 2006), com verdadeiras tecelagens rituais e normativas, até ao quotidiano presente, nos encontros entre ‘nações de Candomblé’, entre o Candomblé e a Umbanda, acompanhando os trajetos de vida de especialistas e agentes religiosos, pais, mães e ‘filhos-de-santo’, que transitam entre terreiros e campos religiosos distintos, carregando espíritos e entidades e modos rituais aprendidos e veiculados diferentemente (Capone 2004) – realidade que contrasta com os aportes COMUNICAÇÃO A COLÓQUIO

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ideológicos que veiculam a ideia de imutabilidade, porque o que muda se degenera1. No entanto, já Eric Hobsbawm e Terrence Ranger (1983) nos haviam alertado para o facto de que as tradições são produtos culturais, são invenções que visam estabelecer, geralmente de um modo político, uma continuidade face a um passado, conferindo sentido a práticas presentes. É precisamente o caso que trago hoje como contributo para a discussão sobre hibridismos e tradições inventadas em cenários onde a imutalidade é uma instituição de memória e onde a autenticidade nagô é uma narrativa política. A invenção dos Obás de Xangô2 no Axé Opô Afonjá abriu o debate sobre as recuperações de instituições africanas e as invenções com fins de autenticidade. Apesar de emblemático não é, de longe, o único caso de transformação. Não há memória no Engenho Velho de quem era a agente religiosa, i.e., a ‘filha-de-santo’, responsável pelo evento em análise. O que se sabe, e que é narrado pelo alabê3 da casa, Edvaldo Araújo, é que a louvação a Agué, divindade jeje-daomeana das folhas e da medicina herbalista, equivalente ao nagô-yorubá Ossain, já está no xirê4 do Engenho Velho desde o tempo do alabê Cipriano Manuel do Bonfim, ou seja, desde a década de 1920. O que se tem conhecimento, é que a ‘filha-de-santo’ em questão, no dia do ritual em que vai tirar a sua cantiga, i.e., em que o Orixá em transe irá entoar o seu cântico particular, aquele que o identifica, na obrigação de sete anos, chamada de odunjé, ela entoou: “Aloxê mi Agué mirô, aê Agué, Aloxê mi Agué mirô, aê Agué”. Se de facto os termos utilizados na cantiga são de proveniência yorubá, não é menos importante que o nome da divindade, Agué, é invocado a partir do “panteão”5 jeje-daomeano. Tal facto teve repercussões importantes no ritual do xirê no terreiro da Casa Branca. Como conta Edvaldo “Papadinha” Araújo, atual alabê da casa, «alguém aí introduziu, botou “Agué Maré para kessô Dan ô...” que é cantiga lá de cima e botou cá em baixo, mudou». Naturalmente que “lá de cima”, se refere ao Os debates sobre as autenticidades, mudanças e permanências a partir de referenciais nostálgicos do passado são objeto de análise em sede de tese de doutoramento (2016). 2 Para efeitos de facilitação de leitura é utilizada a grafia aportuguesada dos termos yorubás. 3 Tocador-chefe. 4 Regra-geral, o xirê corresponde, na linguagem dos terreiros, à festa, à celebração religiosa propriamente dita. Tal é veiculado pela literatura especializada. Contudo, no Engenho Velho e outros terreiros baianos, o xirê diz respeito não à celebração toda, mas à parte inicial, ao momento em que são louvados todos os Orixás, antes da convocação para o transe dos iniciados. 5 Sobre o problema do uso do termo “panteão”, ver Ferreira Dias (2013d): . 1

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terreiro Zogodo Bogun Male Rundó, mais conhecido como Bogun, histórico templo de culto jeje-daomeano cuja trajetória é abordada por Luís Nicolau Parés (2006). Tal como Parés detalha, e Nina Rodrigues havia mencionado, as interpenetrações jeje-nagôs são evidentes nos históricos terreiros baianos, mesmo que as suas lideranças sempre se hajam declarado «elas próprias, ou apenas jejes, ou somente nagôs» (Vivaldo da Costa Lima 1976: 75). Todavia, as provas de hibridismo são inúmeras. A pureza nagô é mítica porque vem contaminada, de base, pelos encontros híbridos com outros elementos africanos, com o catolicismo colonial, com práticas ameríndias e com o islão africano (os malês). O caso em questão, também denota, os processos de invenção da tradição, evidenciando a plasticidade resultante do caráter pragmático e eficaz (enquanto elemento estruturante, ritual e simbolicamente) do negro afro-brasileiro. Um evento, a priori, desregulador de um corpus ortopráxico, é filtrado e o elemento novo vê-se incorporado ao cosmos do terreiro, gerando uma nova composição no quadro da tradição. A tradição, encontra-se, portanto, em permanente invenção. No entanto, se a invenção da tradição a partir de novos elementos que impõem a sua presente desreguladora, e o hibridismo como processo, igualmente, permanente, estão evidenciados na introdução da divindade Agué (Maré) ao ritual do xirê do Engenho Velho, o qual sofre uma transformação pois passa a invocar Ossain e Agué (Maré) separadamente, e este último é louvado com um cântico ritual proveniente do jeje-daomeano terreiro Bogun, ocorrência que parece evidenciar um processo de otherness, Vodun que permanece reconhecido como exógeno, eles são ampliados, no caso, com a transformação linguística da cantiga, que aporta a outros elementos invocados e portadores de alterações normativas. Explicitando através das palavras do alabê: «(...) que as pessoas cantam “Bomboxê mi”, que a história não é “Bamboxê” é “Aloxê mi”. Alguém adaptou e deixou “Bamboxê”. Alguém achou que aquilo era... que não poderia ser, que não tem ideia, uma referência a Bamboxê, tanto que você canta isso na Casa Branca e se o Air José tiver e levantar todo o mundo levanta, mas se ele não tiver ninguém levanta. Porquê? Porque a cantiga não é de Bamboxê, a cantiga é de Agué».

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Esta alteração não é de menor importância porque remete, definitivamente, para o cenário das tradições inventadas. Como visto, Agué (Maré) é uma divindade do “panteão” jeje-daomeano, senhor das folhas e da medicina herbalista, equiparado ao nagô-yorubá Ossain. É nesse cenário que surge a introdução da cantiga e da invocação deste Vodun num templo de culto aos Orixás. No entanto, a partir do momento em que alguém (cuja identidade não é conhecida) substitui a nomenclatura da divindade pela de um histórico ator dos cultos aos Orixás no Brasil do séc. XIX, Bamboxê Obitikô (Parés e Earl Castillo 2007, Earl Castillo 2016), dá-se uma adulteração do princípio teológico do ritual de louvação. A justificação, do ponto de vista religioso-teológico, torna-se difícil de veicular, uma vez que Bamboxê Obitikô era um babalaô e babalorixá, i.e., sacerdote, ligado, em primeiro lugar e determinantemente, ao culto de Xangô, divindade do império, da realeza, do poder, do fogo e da justiça, símbolo da monarquia yorubana da cidade de Oyó. Regressamos, então, a um cenário de coincidentia oppositorum, em que o sentido é conferido pela repetição e a mesma conduz à invenção da tradição. O problema parece ser resolvido, na Casa Branca, da seguinte forma: quando o babalorixá Air José, do terreiro Pilão de Prata, e considerado tetraneto do próprio Bamboxê está presente, em sinal de respeito todos se levantam e entoa-se “Bamboxê mi”, nas vezes em que o mesmo não está presente, entoa-se o original “Aloxê mi”. Ocorre, deste modo, um cenário de seleção com fins de etiqueta religiosa. Em suma, o que fica patente, a partir do caso da divindade jejedaomeana Agué (Maré), é a capacidade plástica do Candomblé se mutar, se adaptar

e

negociar

as

memórias

instituídas

que

preconizam,

ideologicamente, a imutabilidade, com os acontecimentos híbridos e os processos permanentes de invenção da tradição. Se é um facto que Agué se Citação: Ferreira Dias, João (2016). «“Alôxê mi, Agué mirô”. Hibridismo e invenção da tradição no candomblé do Engenho Velho». III Colóquio Doutoral ISCTEIUL, painel Doutoramento em Estudos Africanos.

trata de uma divindade exógena ao “panteão” do Engenho Velho, não é menos verdade que se encontra incorporado ao xirê do mesmo há quase um século. Não menos interessante é o processo de transformação que faz de uma cantiga de louvação de uma divindade um ato de invocação da memória de um histórico ancestral do Candomblé.

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