Alquimia e Cosmos: hermetismo e concepção de mundo no século XV.

June 15, 2017 | Autor: Bruno Godinho | Categoria: Medieval History, Alchemy, Historia Medieval, Alquimia, History of alchemy
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE HISTÓRIA LICENCIATURA EM HISTÓRIA

BRUNO SOUSA SILVA GODINHO

ALQUIMIA E COSMOS: Hermetismo e concepção de mundo no século XV.

Rio de Janeiro 2015

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The bird of Hermes is my name Eating my wings to make me tame _________ Sir George Ripley

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A Ronaldo Godinho, in memoriam.

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Sumário:

Agradecimentos - 5 Introdução - 6 Capítulo 1: O cosmo no século XV - 8  1.1. O mundo fechado  1.2. A leitura do mundo  1.3. A douta ignorância Capítulo 2: A concepção alquímica de mundo - 24  2.1. Origens da alquimia e tradição hermética  2.2. Problemáticas da historiografia da alquimia  2.3. Alquimia e imaginário Capítulo 3: Conselhos ao monarca: a alquimia de Ripley - 41  3.1. George Ripley: a problematização da figura social de um alquimista  3.2. O cosmo expresso na simbologia Conclusão - 54 Bibliografia - 55

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Agradecimentos Essa monografia, certamente, não se construiu sozinha ao longo destes quatro anos e meio cursando a licenciatura em História na Unirio. Em primeiro lugar, agradeço à minha mãe por todo o apoio em momentos críticos de minha vida pessoal. Diante de tantas dificuldades, seu suporte e cuidado – mesmo que à distância – foram fundamentais na paz de espírito necessária à construção desse texto. Na própria universidade, meu orientador, professor Paulo André, não poderia ter um local menos privilegiado. Por todo o apoio, conhecimento compartilhado, e pela escolha de aceitar um trabalho tão atípico, meu mais sincero “obrigado”. Aos amigos, citarei alguns nomes pois indubitavelmente sem eles a experiência da academia teria sido por demais solitária: Eduardo Dias, Maísa Braga, João Henrique, Thatiana Veronez, Giovane Cella, Sara Vieira e, finalmente, Caroline Arosa que foi amiga, companheira, e sobretudo, motivação para chegar aqui hoje. A todos vocês, obrigado por todas as discussões, conversas, risadas e momentos diversos que me fizerem crescer não apenas como historiador, mas como ser humano. Finalmente, agradeço a meu pai. Falecido em 2014, não pode me ver chegar a este momento. Porém, todo seu apoio durante todos os anos, desde minha decisão – controversa para minha mãe – de ser historiador e professor de História. Sem você, nada teria sido possível. Tivemos todas as nossas divergências e muitas delas graves, no entanto sempre nos reconciliamos. Jamais esquecerei tudo que fez por mim e, nesta monografia, que marca apenas o início de um caminho mais árduo, fica este geste singelo de agradecimento – pelo apoio, pela criação, pelo amor. Te amarei hoje e sempre, pai.

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Introdução A escrita deste texto conclui um caminho iniciado ainda nos primeiros semestres de universidade, quando entrei em contato com a Idade Média. Ao ouvir repetidas vezes o professor Paulo André citar alquimistas em suas aulas de Idade Média oriental, surgiu a primeira faísca de interesse pelo tema. Hoje, quatro anos depois, após uma série de embates intelectuais com as obras dos diversos autores aqui utilizados e tantos outros lidos durante minha formação acadêmica, esta monografia vem coroar todo esse processo. Estruturado em três capítulos, o texto a seguir trata-se de um estudo da alquimia através de uma ótica da cultura medieval, e de sua posição entre as concepções de mundo no século XV. Foi necessário transitar entre a história, a filosofia e a religião – sem contar, claro, as minúcias de cada uma – para que pudéssemos chegar a uma base sólida de escrita. A alquimia é um tema que voltou a ganhar proeminência acadêmica nos últimos 20 anos, adentrando o âmbito histórico através das narrativas da história das ciências. Nosso trabalho leva em consideração essa historiografia, porém fazendo oposição a ela, tirando inspiração sobretudo da historiografia francesa e do movimento da “antropologia histórica”. No primeiro capítulo, tentaremos esboçar o contexto das concepções de mundo e universo medievais, dando atenção sobretudo ao conceito de “cosmos” e suas subcategorias, “macrocosmo” e “microcosmo”. Aqui estaremos discutindo sobretudo questões da filosofia e teologia do fim da Idade Média e dos conceitos que organizam o mundo tardo-medieval. O segundo capítulo possui um viés historiográfico e teórico-metodológico, composto por três seções. Na primeira seção, fazemos uma breve introdução à história da alquimia no ocidente, mostrando suas origens orientais. A segunda seção é composta de uma discussão historiográfica que reúne algumas das principais abordagens do tema no século XX e outras mais recentes, datando do fim da década de 1990 para os dias atuais. Essa discussão nos leva à nossa proposição de uma história da alquimia vista pela ótica do imaginário medieval. O capítulo final dedica-se a um estudo de caso, do nosso alquimista escolhido, George Ripley. Em primeiro lugar, através de alguns dados biográficos e pontos de sua obra, buscamos elucidar como o alquimista era visto na Idade Média. Em seguida, passamos a uma discussão sobre a alquimia praticada por George Ripley e como nela se espelha a concepção de um mundo cósmico.

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Capítulo 1

O cosmo no século XV

8 1.1. O mundo fechado Abrimos este capítulo com esse primeiro tópico, guiado por um conceito tomado da obra de Alexandre Koyré, o “mundo fechado”. É fundamental que falemos desta noção pois é nela que se insere todo o componente teórico-filosófico da reflexão alquímica. Deve-se compreender que este mundo fechado se quebra – ou começa a se quebrar – em duas frentes: a primeira delas, com a “destruição do cosmo”, uma visão do mundo que permeou a Idade Média; a segunda, com o nascimento da ciência moderna, sobretudo a física cartesiana, que revoluciona o conceito de espaço, logo, revolucionando a forma como o homem se insere e se vê no mundo (KOYRÉ, 2011, p. 6-7). Em razão disso, retrocederemos em cerca de um século com Étienne Gilson aos estudos teológicos e filosóficos do século XIV, para que se esclareça o movimento que ocorre nessa transição que Koyré identifica no título de sua obra, “do mundo fechado ao universo infinito”. Dentre os vários segmentos da filosofia do século XIV estudados por Étienne Gilson, um deles nos chama mais atenção e é mais importante para nós: o misticismo especulativo, tendo como seu principal expoente o pensador Johann Eckhart. Dentre os vários filósofos e teólogos estudados pelo autor, Eckhart é quem em nossa opinião melhor serve para ilustrar o conceito de “mundo fechado” (GILSON, 1995, p. 864). Mestre Eckhart, como era conhecido, vinha de uma tradição de estudiosos dominicanos franceses, que reconheciam o devido valor da obra de Aristóteles, assim como aquela de São Tomás de Aquino e Alberto Magno. Embora utilizasse as fórmulas de São Tomás, suas diretrizes metafísicas e teológicas deviam muito mais às de Alberto de Magno, ainda assim “superando-as no sentido do neoplatonismo sob a influência de Proclo” (ibid., p. 864). Na doutrina de Eckhart, Deus assumia um papel privilegiado no mundo. Era considerado puritas essendi: livre de todo ser; por isso mesmo, em relação ao ser, Deus era sua causa primeira. Diz o autor: Aristóteles dissera que a vista deve ser incolor para ver toda cor; semelhantemente, deve-se recusar a Deus todo ser para que ele seja a causa de todo ser. Por isso, Deus é algo mais elevado do que o ser: est aliquid altius ente. Ele possui tudo em si de antemão em sua pureza, sua plenitude, sua perfeição de raiz e causa de tudo [grifo nosso], e foi o que ele quis dizer ao afirmar: Ego sum qui sum (GILSON, 1995, p. 865).

9 Em Eckhart, portanto, Deus precede tudo porque ele próprio é privado do ser. E por essa razão ele pode tudo abarcar em si, constituindo assim uma plenitude: o mundo fecha-se dentro de Deus. Contudo, Eckhart vai mais além. Essa anterioridade de Deus identifica-o com outra característica: o intelligere. “No princípio era o Verbo (João 1, 1), logo est ipsum intelligere fundamentum ipsius esse. Ora, o Verbo disse de si mesmo: ‘Eu sou a verdade’ (João 14, 6), isto é, a Sabedoria” (ibid. loc. cit.). Na condição de Sabedoria, Deus é precursor de tudo, vendo-se livre até mesmo do próprio ser. Na progressão de seu pensamento, Mestre Eckhart pondera sobre o ternário esse, vivere e intelligere e associa-os à Santa Trindade. No entanto, é o terceiro elemento que assume a posição primordial: “o intelligere divino não pode ser causa de todo o ser, se não for ele mesmo ser” (ibid., p. 866). Ora, isto não estaria em contradição ao que vimos anteriormente: Deus está livre de todo ser, desde que seja Sabedoria? Segundo Gilson, não. Na interpretação de Eckhart, Deus só é Ser se for Sabedoria conquanto esteja fazendo parte do ternário acima mencionado. Para Gilson, a interpretação de Eckhart identifica em Deus tanto a essência una e as três pessoas divinas. Porém, para além do intelligere e de sua precedência com relação às outras duas manifestações do ternário, a unidade é o que configura a raiz do ser divino. É esse o cimo e o centro de tudo: a imóvel unidade, o repouso, a solidão e o deserto da deidade. A deitas assim entendida reside, pois, além das três pessoas divinas. Mas vimos que a “pureza” da essência, que é sua unidade, é ao mesmo tempo Intelecto, pois apenas o Intelecto é perfeitamente uno. Colocar a pureza da essência divina é, pois, colocar o Intelecto, que é o Pai, com o qual passamos do repouso do Uno ao fervilhar interno das gerações e processões divinas, preâmbulos da criação (ibid., p. 867).

Por tudo isto, o que Eckhart propõe é que Deus é unidade fechada e toda a criação estaria dentro dele – pois todo ser a ele remete. É uma dialética que contrapõe as três pessoas divinas, de modo que “a Unidade da essência é a mesma do Intelecto, que gera a Vida, ou Filho (Quod factum est in ipso vita erat), e de que procede o ser, ou Espírito Santo” (ibid. loc. cit.). Onde está o homem – e por consequência todas as criaturas – nessa concepção de Eckhart? Segundo ele, a criatura seria nada. Deus é ser porque Uno, e nada além de Deus pode ser uno; logo, nenhuma criatura, por si mesma, será. Na verdade, o ser da criatura resume-se à sua existência dentro da divindade – e, por oposição, da manifestação da divindade dentro dela. Sempre uma relação dialética. Eckhart reconhece, assim como Agostinho, Avicena e Alberto

10 Magno, que a alma é uma substância espiritual, de função animadora. Ela seria o que o autor chama de uma “citadela” ou “centelha”, um elemento propriamente divino, uma porção do Intelecto de Deus no homem (ibid., 868). Sendo assim, chegamos ao mundo fechado. Essa doutrina de Eckhart “levava direto à união da alma a Deus por um esforço no sentido de se entrincheirar nessa ‘citadela da alma’ em que o homem não se distingue mais de Deus, pois que ele próprio não é mais que o Uno” (ibid., p. 869). O mundo medieval, como entendido por Koyré, nada mais é do que a conjunção entre homem e Deus. O cosmo constitui a relação dialógica do homem com Deus, da qual surge sua representação do mundo à sua volta. Já que a alma se liga por seu fundo mais íntimo à Deidade, ela certamente nunca pode estar fora de Deus, mas pode ou prender-se a si mesma e se afastar dele, ou, ao contrário, prender-se ao que há nela de mais profundo e unir-se a ele. Para lográ-lo, o homem deve se esforçar por reencontrar Deus para lá das criaturas, e a primeira condição para ter êxito nisso é compreender que, em si mesmas, isto é, independentemente do que têm de ser divino, as criaturas não são mais que puro nada. É por isso que o amor às criaturas e a busca do prazer não deixam na alma senão tristeza e amargor. A única criatura capaz de nos levar diretamente de volta a Deus é a própria alma, que é a mais nobre de todas [grifo nosso]. Tomando consciência de seus próprios limites e negando-os voluntariamente, a alma renuncia a tudo o que faz dela esse ser particular e determinado. Uma vez caídos os entraves que a retinham e as paredes que a particularizavam, ela só passa a perceber em si a continuidade de seu ser com o Ser de que deriva (ibid., p. 870).

Com Mestre Eckhart estamos caminhando nos planos da filosofia e teologia medievais, ou seja, no seio do cristianismo. O papel capital que a alma tem na doutrina do dominicano, é semelhante ao que ela assume na alquimia, porém sua relação não se dá com Deus – ou, necessariamente, com o deus cristão.1 1.2. A leitura do mundo Com base nos apontamentos de Gilson sobre os ensinamentos de Mestre Eckhart e suas concepções acerca do homem, do mundo e de Deus, devemos agora prosseguir ao segundo ponto de nossa questão: a interpretação do mundo. Ora, se o mundo era concebido como um cosmo que integrava homem e Deus através da alma, o mundo deveria ser lido de uma forma algo semelhante. Primeiro a forma é pensada; depois, ela é interpretada.

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Fazemos esta ressalva pois a relação entre cristianismo e alquimia não é geral, mas se dá em casos específicos, como veremos adiante na alquimia de George Ripley.

11 Explorando esta questão do ponto de vista da construção do saber, Michel Foucault nos dá um panorama da leitura do mundo feita pelo homem até o século XVI. Segundo Foucault, o mundo “enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas [grifo nosso] e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem” (FOUCAULT, 2007, p. 23). O homem, nesse período destacado, vislumbrava no mundo um livro que apenas aguardava para ser lido – como sugere o título de Foucault para o capítulo, “a prosa do mundo”. Para que exista interpretação, devemos partir de uma chave de leitura. Foucault identifica como chave de leitura do mundo nesta época um conceito: a semelhança. Para o autor, a semelhança guiava o homem nas diversas formas de interpretação, organizando os símbolos e permitindo ao homem desbravar as coisas visíveis e invisíveis. Por outro lado, o mundo se apresentava como repetição: “teatro da vida ou espelho do mundo” (ibid. loc. cit.). A semelhança, contudo, subdividia-se em quatro categorias de leitura ou de interpretação: a convenientia, a aemulatio, a analogia e, finalmente, a simpatia. Cada uma destas formas, embora tratando as relações de intérprete e interpretado com base nas similitudes entre eles, possuía uma especificidade que a diferenciava de todas as outras. Examinaremos mais detidamente cada uma a seguir. A primeira delas é a convenientia. As coisas convenientes são aquelas que, ao se aproximarem, emparelham-se. Esse emparelhamento causa um primeiro entrecruzamento, mas não total. A alma do homem e o Intelecto Divino no pensamento de Eckhart são um exemplo disto. A alma do homem constitui uma pequena centelha daquilo que é o corpo maior, tocando esse maior apenas em suas bordas. Todavia, a convenientia é uma característica muito mais própria ao mundo do que às coisas nele contidas. Assim, pelo encadeamento da semelhança e do espaço, pela força dessa conveniência que avizinha o semelhante e assimila os próximos, o mundo constitui cadeia consigo mesmo. Em cada ponto de contato começa e acaba um elo que se assemelha ao precedente e se assemelha ao seguinte: e, de círculos em círculos, as similitudes prosseguem retendo os extremos na sua distância (Deus e a matéria), aproximando-os, de maneira que a vontade do Todo-Poderoso penetre até os recantos mais adormecidos (ibid., p. 26).

Importa notar que Foucault identifica na convenientia uma ligação ao espaço, na forma de uma aproximação gradativa. Ela seria da ordem da conjunção e do ajustamento. Diferentemente da aemulatio. Esta segunda forma de semelhança atua imóvel, distante, liberada da necessidade de

12 um espaço de atuação. “Um pouco como se a conveniência espacial tivesse sido rompida, e os elos da cadeia, desatados, reproduzissem seus círculos longe uns dos outros, segundo uma semelhança sem contato” (ibid. loc. cit.). A emulação seria, portanto, o efeito de espelho no mundo: as coisas que estiverem dispersas no mundo encontram nela uma correspondência. Através da emulação é possível ao homem identificar os signos uns com os outros. Sejam esses signos de ordem material ou espiritual, ou até mesmo mística. De longe, o rosto é o êmulo do céu e, assim como o intelecto do homem reflete, imperfeitamente, a sabedoria de deus, assim os dois olhos, com sua claridade limitada, refletem a grande iluminação que, no céu, expandem o Sol e a Lua; a boca é Vênus, pois que por ela passam os beijos e as palavras de amor; o nariz dá a minúscula imagem do cetro de Júpiter e do caduceu de Mercúrio. Por esta relação de emulação, as coisas podem se imitar de uma extremidade à outra do universo sem encadeamento nem proximidade: por sua reduplicação em espelho, o mundo abole a distância que lhe é própria; triunfa assim sobre o lugar que é dado a cada coisa (ibid., p. 27).

Em seguida temos a analogia. Segundo Foucault, era um conceito já conhecido entre os gregos antigos e os pensadores medievais. A partir do século XVI, a analogia teria superposto a convenientia e a aemulatio. De maneira que ela retém a característica de atuar no espaço, ao mesmo tempo que se pronuncia através dos ajustamentos e dos liames. Sua força se daria por não tratar das semelhanças visíveis, mas sim daquelas mais sutis – “por exemplo, dos astros com o céu onde cintilam, reencontra-se igualmente: na da erva com a terra, dos seres vivos com o globo onde habitam, dos minerais e dos diamantes com as rochas onde se enterram” (ibid., p. 29); enfim, é o conceito que rege a semelhança entre relações semelhantes. As relações análogas gozam, contudo, de um ponto privilegiado: o homem. A polivalência e reversibilidade das relações análogas proporcionam uma aplicação universalizada, na qual o homem dispõe de uma equidistância para quaisquer pontos que se escolham para relacioná-lo. Passando pelo homem, qualquer analogia é capaz de nele encontrar um dos seus pontos de apoio. E, ademais, o homem é ponto no qual as relações se invertem sem sofrer alteração. Como diz Foucault, “o corpo do homem é sempre a metade possível de um atlas universal” (ibid., p. 30). Mais do que nunca, essa é a força do homem-microcosmo, que veremos adiante. O espaço das analogias é, no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo. Ele é o grande fulcro das proporções – o centro onde as relações vêm se apoiar e donde são novamente refletidas (ibid., p. 31).

13 Finalmente, a última semelhança é a simpatia. A simpatia atua como que uma força externa, que impele as coisas semelhantes ao encontro. Diferente das outras, a simpatia causa fusão: os semelhantes unem-se, confundem-se, assimilam-se um ao outro. Ela atua na distância, mas de forma a unir. A aemulatio atua na imobilidade; a simpatia é o extremo oposto, ela é o princípio da mobilidade, “atrai o que é pesado para o peso do solo e o que é leve para o éter sem peso” (ibid., p. 32). A simpatia difere das outras, ainda, por ser a única que dispõe de um conceito oposto: a antipatia. É através da oposição entre estas duas que o mundo não se resume à figura do “Mesmo”, em que “todas as suas partes se sustentariam e se comunicariam entre si sem ruptura nem distância, como elos de metal suspensos por simpatia à atração de um único ímã” (ibid., p. 33). A antipatia impede a assimilação total das coisas umas pelas outras, preservando assim as diferenças fundamentais entre as espécies. A oposição da simpatia com a antipatia retoma as outras três similitudes, na medida em que aproxima ao mesmo tempo que separa as coisas. A soberania do par simpatia – antipatia, o movimento e a dispersão que ele prescreve dão lugar a todas as formas da semelhança. Assim se encontram retomadas e explicadas as três primeiras similitudes. Todo o volume do mundo, todas as vizinhas da conveniência, todos os ecos da emulação, todos os encadeamentos da analogia são suportados, mantidos e duplicados por esse espaço da simpatia e da antipatia que não cessa de aproximar as coisas e de mantêlas a distância. Através desse jogo, o mundo permanece idêntico; as semelhanças continuam a ser o que são e a se assemelharem. O mesmo persiste o mesmo, trancafiado sobre si (ibid., p. 35).

Para Foucault, no entanto, não pode haver semelhança sem que exista uma forma de marcar na superfície das coisas o que elas são. Se as analogias são as relações invisíveis, é necessário que haja uma marca visível para que estas relações se deem. Ele as chama de assinalações. O sistema das assinalações inverte a relação do visível com o invisível. A semelhança era a forma invisível daquilo que, do fundo do mundo, tornava as coisas visíveis; mas para que essa forma, por sua vez, venha até a luz, é necessária uma figura visível que a tire de sua profunda invisibilidade. Eis por que a face do mundo é coberta de brasões, de caracteres, de cifras, de palavras obscuras – de “hieróglifos”, dizia Turner (ibid., p. 37).

Diante dessa explicação, torna-se mais fácil compreender: as quatro categorias de semelhança dizem respeito muito mais à essência, enquanto as assinalações constituem as formas pelas quais essas essências se expressam no mundo. Se retornarmos à Eckhart, compreende-se que na relação

14 do homem com sua alma – e, consequentemente, com Deus – o primeiro corresponde à assinalação e a segunda à essência. Essência, contudo, que não corresponde necessariamente ou completamente a uma natureza humana, mas a uma presença do Intelecto Divino no homem, como vimos acima. Afinal, para Eckhart, assim como para seus predecessores (Agostinho, Avicena e Alberto Magno), “a alma é uma substância espiritual, e esse nome designa menos sua essência do que sua função animadora” (GILSON, 1995, p. 868). Mais uma vez é possível ver que desde a teologia de Mestre Eckhart até as interpretações proporcionadas pelas semelhanças permanece uma relação dialética. Tudo funciona como que em círculo, partindo de um ponto e sempre retornando a esse mesmo ponto – ainda que em níveis diferentes. Retomemos a explicação de Foucault: Toda semelhança recebe uma assinalação; essa assinalação, porém, é apenas uma forma intermediária da mesma semelhança. De tal sorte que o conjunto das marcas faz deslizar, sobre o círculo das similitudes, um segundo círculo que duplicaria exatamente e, ponto por ponto, o primeiro, se não fosse esse pequeno desnível que faz com que o signo da simpatia resida na analogia, o da analogia na emulação, o da emulação na conveniência, que, por sua vez, para ser reconhecida, requer a marca da simpatia... A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a que obedecem é diferente; a repartição é a mesma (FOUCAULT, 2001, p. 40).

Importa, nesse momento, atentarmos a um fato: em sua escrita, Michel Foucault está pensando nessas categorias com base em referências do século XVI. No entanto, como já exposto na primeira parte com os ensinamentos de Eckhart e, como veremos a frente quando discutirmos as representações alquímicas, essas categorias permearam as formas de representação e leitura do mundo desde há alguns séculos. O próprio autor chama atenção para este fato quando chegamos ao último ponto de nossa discussão: se as relações de semelhança se dão nesse formato circular, o que há de diferente no mundo? Segundo Foucault, é a partir desse momento que entra em jogo o conceito de microcosmo. Dando sua influência histórica como renovada pelo neoplatonismo da Idade Média e do Renascimento, o autor indica que esse conceito foi fundamental à construção do saber no século

15 XVI, onde teria tido seu ápice. Teriam sido duas suas principais funções na configuração epistemológica do século XVI: categoria de pensamento e configuração geral da natureza.2 Como categoria de pensamento, o conceito de microcosmo possibilita a aplicação do jogo das semelhanças a todos os domínios da natureza. Proporciona uma garantia de que uma coisa encontrará sua contrapartida macroscópica ao realizar uma investigação. Por outro lado, quando atua como configuração geral da natureza, ela traça o limite do mundo. Seu perímetro delimita o alcance da criação, enquanto no outro extremo elas encontram o homem – a posição privilegiada que consegue reproduzir, em suas dimensões restritas, a ordem de todas as coisas (ibid., p. 42-43). Por isso mesmo, a distância do microcosmo ao macrocosmo pode ser imensa, mas não é infinita; os seres que aí residem podem ser numerosos, mas afinal poderíamos contá-los; e, conseqüentemente, as similitudes que, pelo jogo dos signos que elas exigem, apoiam-se sempre umas nas outras, não se arriscam mais a escapar indefinidamente. Para se apoiarem e se reforçarem, elas têm um domínio perfeitamente cerrado. A natureza, como o jogo dos signos e das semelhanças, fecha-se sobre si mesma segundo a figura redobrada do cosmos (ibid., p. 43).

Foucault conclui que, para o século XVI, a ideia do microcosmo tinha sua importância, porém sozinha não bastava. Era necessário pensá-la sempre em conjunto com o macrocosmo, pois era este binômio que delimitava a construção do saber e a expansão de uma epistémê em que os signos e semelhanças se confundiam quase que irrestritamente. E, nesse contexto, Foucault aponta para outra questão que teve destaque no século XVI, mas já possuía raízes no século XV: o acolhimento das chamadas ciências ocultas: “uma mistura instável de saber racional, de noções derivadas das práticas da magia e de toda uma herança cultural, cujos poderes de autoridade a redescoberta de textos antigos havia multiplicado” (ibid., p. 44).3 As quatro formas de semelhança até aqui vistas, para Foucault agem de maneira a criar uma estruturação do saber no fim da Idade Média e, sobretudo, no século XVI. Em nossa interpretação, elas serviram não só à organização do saber, mas também à toda concepção de mundo dessas épocas. É importante lembrar que em nossas considerações a alquimia constituiu

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Embora Foucault esteja privilegiando o século XVI, a ideia do microcosmo já estava presente no pensamento ocidental desde a Idade Média. 3 Foucault aqui se refere a um processo que levou os italianos a redescobrirem os escritos de Hermes Trismegisto. Esse processo é melhor explicado por Frances A. Yates em sua obra Giordano Bruno e a tradição hermética, que será utilizada em um capítulo posterior.

16 uma forma de representação de mundo, um imaginário específico dentre aqueles que compuseram o imaginário medieval como um todo. Quando Foucault diz que no contexto de sua pesquisa “há somente um jogo, o do signo e do similar, e é por isso que a natureza e o verbo podem se entrecruzar ao infinito, formando, para quem sabe ler, como que um grande texto único” (ibid., p. 47), compreendemos que essa concepção não se restringe ao campo do saber, mas estende-se ao campo do imaginário. Segundo Evelyne Patlagean, O domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam. Isto é, cada cultura, portanto cada sociedade, e até mesmo cada nível de uma sociedade complexa [grifo nosso], tem seu imaginário (PATLAGEAN, 1990, p. 291).

Expressamos, finalmente, que em nossa interpretação a alquimia surge como um desses níveis de uma sociedade complexa, dotada de um imaginário próprio e vívido, que se relacionou com diversos outros imaginários de sua época. E as semelhanças, como concebidas por Foucault, atuaram como pilares de sustentação não só da visão de mundo medieval, mas especificamente das concepções internas à alquimia. 1.3. A douta ignorância Chegamos à parte final de nosso primeiro capítulo. Após retrocedermos ao século XIV e averiguar os pensamentos de Johan Eckhart e procedermos à interpretação foucaultiana das formas de representação do mundo e da construção do saber, chegamos ao período de nossa pesquisa, o século XV. Nossa análise, neste trecho, seguirá a construção do conceito de douta ignorância por Nicolau de Cusa. Nicolau de Cusa foi um estudioso de Eckhart. Ernst Cassirer, em sua obra de magnífica erudição, demonstra que não apenas Eckhart chamou a atenção do intelecto do pensador alemão. Além do dominicano, fizeram parte dos escritos estudados por Nicolau de Cusa aqueles de autoria atribuída ao Pseudo-Areopagita (CASSIRER, 2001, p. 15). Segundo o autor, esse pensador estava no cerne da doutrina Escolástica, à qual de Cusa procurava superar. Sigamos, no entanto, as orientações de Cassirer: para melhor compreender de que forma Nicolau de Cusa superou a forma de pensamento da Escolástica, deve-se olhar primeiro para o ensinamento daquele que a doutrina tinha em alta estima.

17 Os escritos do Areopagita que mais influenciaram a posteridade teriam sido aqueles que tratavam principalmente da hierarquia celeste e da hierarquia da igreja. Segundo Cassirer, a força desses escritos estaria na conjunção de dois temas de cunho espiritual sobre os quais estariam baseadas a fé e a ciência medievais, a saber: a doutrina cristã da salvação e a especulação helenística (ibid., p. 16). Cassirer considera que esta forma de especulação, em particular aquela desenvolvida pelo neoplatonismo, resultou na visão cristã de um universo escalonado. O mundo se divide em mundo inferior e mundo superior, em mundo sensível e mundo inteligível, que não apenas se opõem, mas cuja essência consiste justamente de sua negação mútua, de sua oposição polar. Por sobre esse abismo de negação que se abre entre ambos, porém, estende-se um vínculo espiritual. De um pólo a outro, das alturas do supra-ser e do supra-uno, do reino da forma absoluta até a matéria, entendida como o grau absoluto do informe, estende-se uma via contínua de mediação. Por meio dela, o infinito passa a finito; e é também por meio dela que o finito volta a ser infinito [grifo nosso] (CASSIRER, 2001, p. 16).

Cassirer prossegue em sua análise, indicando como esta concepção de mundo retorna ao conceito de redenção do cristianismo. Não nos alongaremos sobre essa questão aqui, mas compete notar que esse conceito remete à construção teológica de Eckhart, na qual Deus é a origem de todas as coisas e a Ele elas retornam (ibid., p. 17). O fator principal que o autor nos aponta é que a cosmologia e fé medievais convergem em uma única noção fundamental de organização e representação do mundo. O que leva Nicolau de Cusa ao desenvolvimento do conceito de douta ignorância é sua insatisfação com as respostas até então obtidas pela teologia e filosofia no que dizia respeito à possibilidade de se conhecer Deus. Por isso, o pensador retrocede da especulação propriamente teológica, a um ponto mais filosófico: as relações que constroem o conhecimento. Em função disso, coloca-se o problema: se Deus é infinito, não é possível ao homem, finito, conhecê-lo. Pois que: Se todo conhecimento e medição empíricos se caracterizam pelo fato de uma grandeza ser relacionada a outra, de um elemento ser relacionado a outro através de uma determinada série de operações, de uma seqüência finita de passos intelectuais, o infinito justamente escapa a uma tal redução (ibid., p. 19).

O problema acima surge porque as formas de conhecimento até então elaboradas apoiavam-se nas bases estabelecidas pelo aristotelismo. Como explica Cassirer, a lógica aristotélica repousa sobre conceitos obtidos por meio de métodos comparativos, nos quais “todo o ser empírico se decompõe para nós em gênero e espécies determinados, que guardam entre si uma

18 relação rigorosa de subordinação e de sobreordenação” (Ibid., p. 21). Ora, não é este o fundamento das relações de semelhança, como vimos em Foucault? Desta forma, as necessidades teóricas de Nicolau de Cusa excedem as bases oferecidas pelo pensamento escolástico. Foi necessário ao pensador, por isso, extrapolar os conceitos tradicionais de lógica e de mística – fundamentando, assim, sua ruptura com os conceitos aristotélicos que permearam o pensamento medieval. De acordo com Cassirer, o século XV vê a oposição entre duas vertentes da teologia mística: a primeira, que privilegia o intelecto – conceito já privilegiado em Eckhart; e uma segunda, que privilegia a vontade (interpretada como o motor da alma e instrumento da união com Deus). Nicolau de Cusa, segundo Cassirer, privilegia o intelecto como conceito guia de sua busca pelo conhecimento de Deus. Se retomarmos o que foi visto anteriormente em Eckhart, que o Intelecto precede o Ser, portanto, as formas materiais, é deveras lógica a escolha do pensador alemão. Cassirer expõe que essa escolha reflete a oposição entre a visão de mundo do Areopagita e a nova visão que se forma com Nicolau de Cusa: o primeiro concebe a “divinização” através de um processo de etapas, que seguem a hierarquia celeste por ele determinada; por outro lado, Nicolau de Cusa percebe essa divinização como um ato único, no qual o homem se põe em relação direta com Deus (ibid., p. 22-24). A escolha de Nicolau de Cusa pelo conceito do intelecto como orientador de seu estudo sobre o conhecimento é acompanhada por outra escolha, igualmente ampla realizada entre os pensadores e autores do Quattrocento: entre Aristóteles e Platão. Como já visto acima, de Cusa escolheu por romper com o Aristóteles, e a explicação que Cassirer fornece sobre a doutrina platônica justifica plenamente sua opção. A visão platônica de mundo caracterizava-se pela divisão rígida entre um mundo sensível e um mundo inteligível. Eles se encontram em planos diferentes, o que não permite sua comparação; na verdade, do ponto de vista metodológico de Nicolau de Cusa, sua comparação imediata é impossível porque um consiste no oposto do outro. Nesse sentido, as características de um só podem ser definidas por antítese em relação às características do outro. Essa relação rompe com a primazia da epistémê do mundo regido pelas semelhanças na medida em que ela interrompe as relações do signo e do significado.

19 Se a aparência é caracterizada por um fluir incessante, a permanência perene é própria da idéia; se aquela, por sua própria natureza, nunca é uma, mas se revela ao olhar que tenta fixa-la como realidade multifacetada, que se transforma a cada instante, a idéia persiste numa pura identidade consigo mesma. Se a idéia é caracterizada e totalmente determinada pelo postulado da constância do sentido, o mundo dos fenômenos sensíveis se subtrai a todo e qualquer tipo de determinação, ou mesmo à sua mera possibilidade: nele, nada é verdadeiro, nada é uma unidade verdadeira, nada é alguma coisa ou algo acabado (ibid., p. 29).

Cassirer conclui que a única forma de relacionar os planos do sensível e do inteligível é através do pensamento. Eles podem e devem funcionar como parâmetros um do outro, mas jamais podem se confundir. Suas naturezas são distintas e não possuem convertibilidade para que se “misturem”. Essa relação restrita entre ambos é melhor desenvolvida no pensamento de Plotino e no neoplatonismo, que segundo o autor, foi capaz de realizar uma sistematização eclética dos pensamentos platônico e aristotélico. O resultado do esforço plotiniano e neoplatônico foi o surgimento de um conceito novo, a “emanação”. Suas origens estão na rigidez da separação e oposição absoluta entre sensível e inteligível – que compunham o conceito de “transcendência” – e integração do conceito aristotélico de “transformação” é aceito no cerne do neoplatonismo. Dessa forma, as relações entre o finito e o infinito se flexibilizam. O absoluto, entendido como aquele que está além e cima de tudo o que é finito, de tudo o que é uno, de toda a existência, permanece puro em si mesmo; não obstante, porém, sua superabundância provoca um transbordamento e, neste transbordar, o absoluto gera toda a diversidade dos mundos até chegar ao nível da matéria informe, entendida como fronteira derradeira do não-ser (ibid., p. 31).

Outra ruptura de Nicolau de Cusa com o aristotelismo e a escolástica é sua interpretação do conceito de cosmos. Enquanto a doutrina clássica dos aristotélicos possuía um caráter de organização espacial e qualitativo que punha o elemento celeste acima dos quatro elementos terrestres – quanto mais elevado o ponto em que estivesse o elemento na escala cósmica, mais próximo estaria da perfeição –, Nicolau de Cusa abole essa escala. Para ele, se a distância entre elementos é infinita, deixam de existir as diferenças finitas relativas. Somem, em seu pensamento, as noções de “em cima” e “embaixo”, passando a existir apenas um cosmos homogêneo. Portanto, quebra-se a noção de um universo escalonado e hierárquico (ibid., p. 43). Nicolau de Cusa concebe, assim, uma cosmologia que igualmente àquela de Eckhart põe Deus no centro do mundo e o estabelece como sua circunferência infinita. No entanto, enquanto

20 neste último o papel do homem é pautado por sua alma, que deve renunciar das características que a particularizam, naquele ocorre justamente o contrário. Se o universo se resolve numa diversidade infinita de movimentos infinitamente diferentes, cada um deles girando em torno de seu próprio centro e, não obstante, mantidos unidos pela sua relação a uma causa comum e pela sua subordinação a uma mesma lei universal, o mesmo vale para o ser espiritual (ibid., p. 47).

Existe, por isso, em cada ser uma individualidade que lhe assegura participação no esquema divino. Ao contrário do visto em Eckhart4, a individualidade não constitui uma limitação às coisas, mas um valor singular que possibilita a compreensão dessa noção de unidade, que “está além do ser”. Nesse sentido, cada indivíduo ou ser individual do cosmos encontrar-se-ia numa relação direta com Deus. Todavia, a verdadeira divindade só se revela mediante um conceito cunhado por Nicolau de Cusa chamado visio intellectualis, em que o espírito consegue associar a relação do indivíduo com Deus e do indivíduo com o absoluto (ibid., p. 47-54). Por essa razão, Cassirer indica que seria impossível conceber o absoluto, sem que este parta de um “ponto de vista” individual; porém, nenhum desses “pontos de vista” é superior ao outro de alguma forma, já que só a totalidade deles é que permite uma visão do absoluto. “Cada um só é capaz de ver-se em Deus, assim como Deus só é capaz de ver-se em si mesmo” (ibid., p. 54). A progressão do pensamento de Nicolau de Cusa o faz chegar a um novo conceito, que determinará um ponto de mudança fundamental em sua dialética: a coincidentia oppositorum, a coincidência dos opostos. Cassirer indica que o desenvolvimento deste conceito esteve ligado à elaboração da ideia de humanidade pelo autor. Seu objetivo, no terceiro livro de sua De docta ignorantia era estabelecer a divisão entre o humano e o divino, entre o finito e o infinito. Conforme seus preceitos metodológicos, um não poderia ser definido pela essência do outro. Por isso, o conhecimento humano jamais seria capaz de atingir o objetivo primitivo do pensador: conhecer Deus. No entanto, a consciência de que não se pode conhecer Deus dá ao ser humano a capacidade de reconhecer a si mesmo através do outro. Essa alteridade, contudo, não significa que o infinito, que Deus consiga estabelecer uma relação com o finito, o agora autoconsciente homem. A elaboração do conceito de humanidade, sua justificação, Nicolau de Cusa encontra na ideia de Cristo. Como diz o autor:

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Cf. GILSON, 1995, p. 870.

21 O ser empírico cede lugar ao ser universal; o homem, como existência singular, individual, tem de ceder lugar ao conteúdo espiritual da humanidade. E este conteúdo universal e espiritual da humanidade, Nicolau de Cusa o enxerga em Cristo. Somente o Cristo encarna, portanto, a verdade natura media, que reúne numa unidade finito e infinito (ibid., p. 66).

Cassirer nos demonstra que, apesar da roupagem religiosa, a abordagem teórica e metodológica de Nicolau de Cusa na construção de uma concepção de mundo origina de uma tradição filosófica escolástica, que evolui à medida que as necessidades teóricas do autor se fazem maiores que às bases oferecidas pelas correntes filosóficas e teológicas até então estabelecidas. O Cristo surge, na filosofia-teológica (ou teologia-filosófica) de Nicolau de Cusa como a forma de justificar uma unidade para todos os homens individuais. E o homem, por sua vez, corresponde à totalidade das coisas – mantendo vivo, ainda, o conceito do homem-microcosmo. O pensamento de Nicolau de Cusa não é uma ruptura completa com o de Mestre Eckhart, como apresentado por Étienne Gilson, mas podemos interpretá-lo como uma progressão – pudemos ver a mudança de interpretação sobre um mesmo aspecto da teologia, como nos casos do intelecto e da alma – das ideias de uma corrente de pensamento. O ponto de inflexão é a substituição da forma de organização e representação do mundo: passa-se das semelhanças, conceito eminentemente aristotélico, às coincidências dos opostos, conceito fundamentalmente platônico. O homem-microcosmo continua existindo, mas não é o mesmo.

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Capítulo 2

Alquimia: história, historiografia e novas perspectivas

23 2.1. Origens da alquimia e tradição hermética Cabe-nos, agora, dedicar as próximas páginas a respeito das origens da alquimia e da tradição que, em grande parte, cedeu a ela seu fio condutor. Importa-nos discutir esta questão pois a ela deve ser dado um tratamento propriamente histórico, em face das interpretações que deram à alquimia uma origem mitológica. Compreender os mitos é fundamental na interpretação de um objeto histórico como a alquimia; todavia, não podemos deixar que o mito se aposse da historicidade desse objeto. É senso comum na historiografia – não apenas a especializada, mas de forma geral – que a alquimia penetrou no ocidente através da expansão muçulmana. Em sua obra sobre esta expansão, Robert Mantran já demonstrava (mesmo que breve e timidamente) alguns aspectos da vida muçulmana que estariam associados aos estudos alquímicos. Dentre estes estariam o estudo da medicina, herdeira de uma tradição grega, e também o desenvolvimento do sufismo – uma forma esotérica de pensamento, que utilizava o êxtase como uma forma de chegar a Deus.5 Como já mencionado anterior, Pierre Lory vê na alquimia muçulmana uma estreita relação com a teologia desta religião. Interessa notar que a alquimia árabe bebeu em fontes diversas para sua formação. Segundo o autor, ela se vale “de um passado grego e heleno-egípcio, alexandrino”, em que pesam as referências aos antigos. Lory interpreta que esta recorrência de citações a supostos alquimistas do passado fundamenta, para os próprios praticantes, uma noção de historicidade de sua prática (LORY, 2007, p. 86-87). O mito é o método de legitimação mais comum quando não há uma história “oficial” para um determinado fato. Ernst Cassirer, ao considerar as relações entre a linguagem e o mito, entende que a interpretação de um não pode ser feita sem que o outro também seja interpretado. Existe entre ambos uma confluência, de forma que O homem só vive com as coisas na medida em que vive nestas configurações, ele abre a realidade para si mesmo e por sua vez se abre para ela, quando introduz a si próprio e o mundo neste medium dútil, no qual os dois mundos não só se tocam, mas também se interpenetram (CASSIRER, 1984, p. 24).

No que se refere à alquimia ocidental, em grande parte os alquimistas traçam a historicidade de sua prática até a figura de Hermes Trismegisto. Em sua obra “Compound of Alchimie”, George

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MANTRAN, Robert. Expansão muçulmana (séculos VII-XI). São Paulo, 1977, pp. 135-40.

24 Ripley cita o antigo alquimista não menos do que cinco vezes (2010, pp. 114, 134, 141 [2 vezes], 182). Além disso, Pierre Lory (op. cit., p. 88) afirma que nos casos de alquimistas árabes as constantes referências a autores antigos constituíam uma ideia de “evolução e progressão no ensino da alquimia”. Contudo, esta não é particularidade oriental se considerarmos que Ripley faz referências a diversos alquimistas medievais, como Raimundo Lúlio (c.1235-c.1316)6 (op. cit., 124) e Geber (c.722/23-c.815)7 (op. cit., 125). Frances Yates fornece um bom panorama do hermetismo e da recepção das obras herméticas pelo ocidente. A figura de Hermes, o “Três Vezes Grande”, origina na conversão das culturas grega e egípcia. Na mitologia egípcia existia o deus Tot, escriba dos deuses, que na mitologia grega era identificado com Hermes. Surgiu, então, uma grande literatura grega, inspirada neste mito, dedicada à astrologia, à magia natural e simpática, etc. Desta forma, atribuía-se à obra hermética grande antiguidade – o que, no contexto dos mitos, dava-lhe estatuto de autoridade –, quando, na verdade, esses escritos provavelmente surgiram entre os séculos II e IV (YATES, 1995, p. 14). Desta forma, os escritos herméticos circularam pelo ocidente em sua versão grega até que foram traduzidos para o latim, sendo esta tradução atribuída a Apuleio de Madaura. Segundo Yates, teria sido essa a tradução utilizada por Santo Agostinho, quando de suas críticas a Hermes em “A cidade de Deus” (ibid., p. 21). A despeito de Agostinho, ao longo da Idade Média os escritos herméticos gozaram de valorização com traduções do árabe para o latim, e diversas citações por autores medievais como Roger Bacon, Alberto Magno, William de Auvergne (bispo de Paris) (THORNDIKE, 1923, p. 215, 219). Com a valorização dos antigos pelo Renascimento italiano, a obra hermética entrou definitivamente em evidência. Segundo Yates (ibid., p. 25), Cosimo de Médici enviou a Macedônia um monge, que ficou encarregado de trazer-lhe os manuscritos gregos do “Corpus hermeticum”. O patriarca, então, ordenou a Marsílio Ficino que lhe desse atenção especial e traduzisse a obra hermética, antes mesmo de realizar a tradução de Platão.

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Pensador espanhol que influenciou diversos alquimistas, dentre eles George Ripley. Cf. Guiley, R.E. The encyclopedia of magic and alchemy, 2006, p. 173. 7 Jabir ibn Hayyan foi um pensador árabe, considerado um dos principais alquimistas de origem muçulmana. Ficou conhecido no ocidente como Geber. Cf. Guiley, R.E. The encyclopedia of magic and alchemy, 2006, pp. 149-50.

25 Em suma, podemos admitir que a alquimia possuía sua raiz no oriente, num passado que mistura elementos das culturas egípcia e grega, principalmente. Sua “ocidentalização” começa no que se convencionou chamar de Renascimento do século XII, com a recuperação de diversos autores gregos e latinos e o empreendimento de grandes traduções. Portanto, apesar da mística que a própria alquimia criou em torno de si, ela está inscrita nas grandes conjunturas da história. 2.2. Problemáticas da historiografia da alquimia Feitas as considerações acima, dedicaremos algumas páginas a uma sucinta discussão da historiografia da alquimia e problemas relativos às suas vertentes, passadas e atuais. Como objeto de estudo, a alquimia sempre teve uma grande gama de pesquisadores. Para a nossa discussão, optamos por dividir esta historiografia em dois momentos: o primeiro, da década de 1930 à de 1960; o segundo, da década de 1990 para os dias atuais.8 O autor que inicia o primeiro momento da historiografia da alquimia é Julius Evola. Filósofo italiano, Evola dedicou-se ao estudo de questões esotéricas por volta dos anos 1920. Sua obra dedicada a alquimia veio em 1931, sob o título “A tradição hermética”. Dispondo de um rico corpus documental e apoiado em suas próprias convicções filosóficas, o autor prepara uma obra que visa não apenas esmiuçar a alquimia, mas também desvelar alguns de seus simbolismos. Julius Evola abre seu trabalho fazendo uma consideração teórica: em face de uma nova concepção de história que estava se afirmando, em que estava sendo colocada uma “ideia de pluralidade e relativa incomunicabilidade das formas de civilização” (1979, p. 31), ele levara em consideração o conceito de dualidade das civilizações. É interessante a premissa do autor, pois afirma que é necessário “despertar em si uma nova sensibilidade que o ponha em contacto com o tronco espiritual geral que deu vida a tal tradição [referindo-se à tradição hermética]” (ibid., p. 32). O autor trabalha, fundamentalmente, o que viria a ser sistematizado alguns anos mais tarde por Mikhail Bakhtin9 como a oposição dinâmica entre baixo e alto material/corporal. Além disso,

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Existe uma óbvia disparidade de 30 anos entre os momentos elencados. Isto se deve, em grande parte, à dificuldade de acesso à historiografia dos anos 1970 e 1980. Produzida em grande parte por autores franceses, até hoje algumas das principais obras não receberam traduções para outros idiomas. Desta forma, impõe-se não apenas a dificuldade de acesso ao texto, mas também a barreira linguística. Cf. por exemplo “Les débuts de l’imagerie alchimique, XIVe-XVe siécles”, de Barbara Obrist (1982). 9 Cf. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, São Paulo, 1987.

26 é central em seu texto o papel do mito na alquimia. No que o autor considera como a civilização tradicional (grosso modo, os períodos históricos anteriores à virada científica do século XVI), O mito não era então uma ideação arbitrária e fantástica: procedia de um processo necessário, que as forças que constituem as coisas actuavam sobre a faculdade plástica da imaginação, parcialmente difundida pelos sentidos corpóreos, até se dramatizarem em imagens e figuras que se insinuavam na trama da experiência sensorial e a completavam com um toque de “significado” (EVOLA, 1979, p. 33).

Evola defende, pois, que na chamada civilização tradicional o homem possuía uma formação psíquica e espiritual diferente daquela que o homem moderno terá. O autor chega mesmo a afirmar que diante do esfacelamento desta condição psíquico-espiritual, os alquimistas passam a utilizar uma linguagem que diferencia sua visão de mundo daquela que está se formando, uma visão relativamente teleológica da alquimia (ibid., p. 34-35). Podemos aqui considerar que Evola defende o que se convencionou chamar, na historiografia mais recente, de uma interpretação espiritual da alquimia. A premissa do autor, que se deve levar em conta o contexto histórico, é de extrema importância. No entanto, Evola arma para si próprio uma armadilha ao recorrer ao mito como elemento organizador da alquimia: para os alquimistas, a herança dos alquimistas antigos não era vista como um mito, mas sim como a história da alquimia. O mito, como categoria de análise, acaba por falsear a noção de historicidade desenvolvida pelos próprios alquimistas. Nos anos 1940 surgiria a obra de Carl Gustav Jung, “Psicologia e alquimia”. Assim como Evola, Jung dispõe de um corpus documental vultuoso; no entanto, seus propósitos psicanalíticos trazem à discussão também a iconografia alquímica – que não será por nós analisada – a fim de equipará-la às imagens mentais formadas nos sonhos de seus pacientes. O título do primeiro capítulo da obra do psicanalista suíço é revelador de suas intenções ao estudar a alquimia: “introdução à problemática da psicologia religiosa da alquimia” (grifo nosso). A interpretação de Jung, embora criticada pela historiografia recente10, foi um dos marcos nos estudos da alquimia e uma das obras que ainda hoje possuem grande força nesse campo de estudo. Como mencionado acima, o corpus documental utilizado foi vultuoso e complementado por diversas imagens associadas à alquimia e textos alquímicos – todavia, interessa-nos aqui discutir menos seus materiais de referência e sim a interpretação feita sobre eles.

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Essa crítica será elucidada quando abordarmos a interpretação de William R. Newman nas próximas páginas.

27 Em primeiro lugar, deve-se afirmar que a interpretação jungiana da alquimia possui bases históricas vulneráveis: ao mesmo tempo que o autor se refere constantemente à Idade Média, seus exemplos referem-se a alquimistas que viveram e atuarem em contextos posteriores, como Paracelso. Suas referências ao período medieval devem-se, em grande parte, à sua concentração na questão da religião, pois segundo o autor “somente as religiões ultrapassam os sistemas racionalistas, referindo-se tanto ao homem exterior quanto ao homem interior” (JUNG, 1991, p. 20). É importante lembrar que esse estudo de Jung não se encontra destacado do conjunto de suas obras. O autor já havia publicado um estudo das relações entre a psicologia e a religião, e na obra que analisamos as relações estendem-se à alquimia. Lidando com elementos fundamentalmente ligados à cultura europeia, a religião privilegiada pelo autor é o cristianismo. Encarando a religião cristã e a alquimia como formas de expressão espiritual, o ponto de sua análise se constrói em cima das ações e reflexões dos indivíduos dentro de cada uma destas formas. Jung acredita que a reflexão espiritual do cristão possui uma falha: A exigência da “imitatio Christi”, isto é, a exigência de seguir seu modelo, tornando-nos semelhantes a ele, deveria conduzir o homem interior ao seu pleno desenvolvimento e a exaltação. Mas o fiel, de mentalidade superficial e formalística, transforma esse modelo num objeto externo de culto; a veneração desse objeto o impede de atingir as profundezas da alma, a fim de transformá-la naquela totalidade que corresponde ao modelo (JUNG, 1991, p. 21).

A interpretação jungiana segue a de Evola (que é referenciado no texto de Jung), no que diz respeito à questão da formação psíquico-espiritual dos homens nos contextos em que a alquimia estava em alta. Jung (ibid., p. 47) chega a mencionar que havia “um clima psíquico favorável” quando os alquimistas atuavam em laboratório. A diferença entre ambos, contudo, é que em Evola o elemento organizador da alquimia é o mito hermético; em Jung, a alquimia funciona como uma religião – ou, como o autor coloca, “uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que reina na superfície”. Para o autor, a alquimia era a resposta da psique humana aos conflitos não resolvidos pelo cristianismo (ibid., p. 34). Dentro dos limites de nosso trabalho, podemos desconstruir a interpretação jungiana partindo de alguns pontos: em primeiro lugar, Jung repete o mesmo problema de Evola ao abordar a alquimia em diversas temporalidades e autores de variados contextos de produção sem devidamente contextualizá-los; desta forma, por ocasião das condições mentais de um possível

28 inconsciente coletivo, um Geber estaria na mesma esteira de pensamento de um Paracelso. Em segundo lugar, e mais grave, é extremamente problemático atribuir à alquimia o estatuto de uma religião. Embora concordemos que houvesse um componente espiritual envolvido, ela carecia de uma sistematização e institucionalização análogas às do cristianismo. Essa questão fica mais patente na abordagem de Bruce Moran, que veremos mais adiante. O terceiro autor do primeiro momento historiográfico por nós escolhido apresenta uma interpretação diferenciada em relação às de seus dois predecessores. Mircea Eliade, famoso por seus estudos sobre as religiões orientais, apresenta uma análise antropológica que vai aos mais longínquos ritos e mitos das sociedades orientais (e, em menor medida, das ocidentais) buscar o fundamento da alquimia. Seu livro “Ferreiros e alquimistas” (1979) trata de examinar os ritos metalúrgicos de sociedades primitivas, construindo uma interpretação vitalista da alquimia a partir da figura primitiva do ferreiro. De acordo com o autor, diversas sociedades compreendiam que os metais possuíam um caráter sagrado. Por isso, aqueles que os trabalhavam, os ferreiros, possuíam preeminência social e espiritual. O caráter vitalista advém da crença de que os metais se originavam no “útero” da Terra; eles estariam intrinsicamente ligados ao desenvolvimento do cosmo (ELIADE, 1979, p. 36). Tal qual o ser humano que se desenvolve por 9 meses na barriga de sua progenitora, os metais tinham uma tendência à perfeição no interior da Terra: sua finalidade, o ouro. A “nobreza” do ouro é portanto fruto da sua “maturidade”: os outros metais são “comuns” por estarem “crus”, “não-maduros”. Ora, a finalidade da Natureza é levar a um termo o reino mineral, é a sua “maturação” última. A conversão “natural” dos metais em ouro está inscrita em seu próprio destino. (...) Mas como o ouro contém um simbolismo altamente espiritual... é evidente que, que preparada por certas especulações alquímico-soteriológicas, uma nova idéia vem à tona: a do papel assumido pelo alquimista como Salvador fraterno da Natureza: ele ajuda a Natureza a cumprir sua finalidade, a alcançar seu “ideal”, que é o remate da sua progenitura – mineral, animal ou humana –, até chegar à “maturidade” suprema, isto é, à imortalidade e à liberdade absolutas (sendo o ouro o símbolo da Soberania e da autonomia) (ELIADE, 1979, p. 43).

O ouro fazia parte de todo o arcabouço simbólico da alquimia e, inclusive, era sua finalidade – espiritual ou material. Por essa razão, Eliade compreendia que alquimia derivava dessas mitologias. O alquimista seria como o ferreiro das sociedades primitivas, transformando os metais comuns em ouro.

29 Positivamente, Eliade levanta um aspecto fundamental à compreensão da alquimia no fim da Idade Média: a crença em magia. Os ritos metalúrgicos estudados pelo autor – por ele classificados como “mágico-religiosos” – todos envolvem um caráter mágico; em outras palavras, fundamentalmente as sociedades lidavam com a capacidade de alterar e transcender a natureza. Anteriormente ignorada por Evola e Jung, a magia era um dos elementos da vida cotidiana medieval. Como já indicamos, os escritos de Hermes Trismegisto foram influências fundamentais à constituição da alquimia, mas não apenas dela, como demonstra brevemente Jean Delumeau: Num universo onde a terra e o céu convergem um para o outro, o optimismo dos neoplatónicos representa o homem como um dominador, que age e prevê para agir. Grão de poeira, pode, se quiser, tornar-se mestre e senhor de um mundo que se lhe assemelha e que ele sintetiza. Nisto consiste a revelação de Hermes “três vezes grande”. No Pimandro, o mais conhecido dos livros herméticos, tal como no Livro da vida, a mais estranha e complexa obra de Ficino, surge esta representação do homem como criatura de excepção, imagem viva de Deus no mundo, capaz de fazer convergir para si e de utilizar em seu proveito todas as forças da natureza. O homem mago pode dominar os elementos, as forças do Céu e até as do Inferno (DELUMEAU, 2004, p. 324).

Desta forma, poderíamos inferir que, muito mais do que nos ritos metalúrgicos das sociedades primitivas estudadas por Eliade, a característica mágica transformadora da natureza patente na alquimia ocidental derivava dos escritos herméticos, nos quais grande parte dos autores alquímicos se inspiraram. O autor que encerra o primeiro momento historiográfico da alquimia é Titus Burckhardt. Historiador da arte de origem alemã, Burckhardt era sobrinho-neto do historiador Jacob Burckhardt, e partilhava com seu ancestral o profundo conhecimento das artes e da arquitetura. Seus estudos focaram na cultural oriental, sobretudo islâmica, e em dado momento passaram pela alquimia, no que resultou a obra que escolhemos, “Alchemy”, publicada originalmente em 1960.11 Esta obra de Burckhardt possui um caráter introdutório, com uma linguagem acessível e poucos aprofundamentos de fontes. Todavia, o que nos interessa é o quadro geral que o autor traça para a alquimia: uma doutrina eminentemente associada à tradição hermética. Nesse sentido, já em sua introdução Burckhardt rejeita a interpretação psicológica da alquimia: A hipótese dos psicólogos evapora assim que se percebe que os verdadeiros alquimistas jamais estiveram preocupados em realizar o sonho de fazer ouro, e 11

É interessante notar que tanto Julius Evola quanto Titus Burckhardt foram autores comumente associados ao que ficou conhecido, em meados do século XX, como “tradicionalismo”: uma filosofia que rejeitava a modernidade, visando o resgate de valores antigos, muitas vezes associados ao sufismo, platonismo, etc.

30 que eles não perseguiam seus objetivos como sonâmbulos ou por meio de “projeções” passivas do conteúdo inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um método deliberado, do qual a expressão metalúrgica – a arte de transmutar metais comuns em prata ou ouro – tem admitidamente enganado vários pesquisadores não-iniciados, apesar de ser nele mesmo lógico e, ademais, verdadeiramente profundo (BURCKHARDT, 1986, p. 9) (nossa tradução).12

A posição de Burckhardt é de que a alquimia era uma forma de conhecimento intrinsicamente ligada à concepção cósmica de mundo, na qual existiam contrapartidas entre os elementos terrenos e os elementos superiores ou espirituais (como já demonstramos no primeiro capítulo, através das análises de Michel Foucault). Para o autor essa noção está diretamente ligada às concepções contidas na chamada “Tábula Esmeralda”, um manuscrito atribuído a Hermes Trismegisto, no qual constaria a seguinte “fórmula”: “Em verdade e sem sombra de dúvida, aquilo que está embaixo é como aquilo que está acima, e aquilo que está acima é como aquilo que está abaixo, para alcançar os milagres da unidade” (ibid., p. 196) (nossa tradução).13 Partindo desse ponto, o autor indica que a alquimia possui uma relação estreita com a astrologia, considerando a simbologia correntemente utilizada pelos alquimistas. Em geral, era comum que os metais utilizados possuíssem correspondência com os planetas e astros do sistema solar: Sol significava ouro, Lua significava prata, Vênus significava cobre, e assim por diante (ibid., p. 76). A esse respeito, vale salientar que, dos autores citados, Burckhardt e Evola são os que atribuem maior importância à questão da simbologia, embora com focos diferentes: o primeiro atém-se sobretudo às representações astrológicas, enquanto o segundo expande sua análise para vários tipos de elementos presentes na alquimia.14 Evidentemente isso se dá por ocasião de sua interpretação fundamentada nos princípios da tradição hermética. Eliade não deixa de explorar a simbologia em sua obra; contudo, atribui a base dela aos mitos e ritos metalúrgicos de sociedades primitivas.

“The hypothesis of the psychologists evaporates as soon as one realizes that the true alchemists were never ensnared in any wish-fulfilling dream of making gold, and that they did not pursue their goal like sleepwalkers or by means of passive ‘projections’ of the unconscious contents of their souls! On the contrary, they followed a deliberate method, of which the metallurgical expression – the art of transmuting base metals into silver or gold – has admittedly misled many uninitiated enquirers, although in itself it is logical and, what is more, truly profound”. 13 “In truth certainly and without doubt, whatever is below is like that which is above, and whatever is above is like that which is below, to accomplish the miracles of one thing”. Burckhardt utiliza a tradução do latim, publicada por J.F. Ruska, em 1926. 14 Evola analisa em praticamente toda a extensão de seu livro as simbologias da alquimia, constando também as representações da vida e da morte, do sexo, etc. 12

31 Embora de forma resumida, são esses os aspectos gerais desse primeiro momento de análise da alquimia. Interpretações que lidaram com a documentação histórica, mas sem o tato e o trato peculiares do historiador. Evola e Burckhardt, embora tenham contribuído bastante à significação da simbologia, tentaram mostrar a alquimia sem desmistificá-la e sem a contextualização histórica das fontes. Jung, que também sofre com a falta de contextualização das fontes, oferece uma interpretação que nos remete ao interessante e complexo campo das mentalidades e do imaginário na história, porém aprofundando-se e até mesmo ultrapassando-o, à medida que vai em busca do inconsciente (dos alquimistas), assunto que aos historiadores constitui-se num verdadeiro tabu. Eliade, embora sóbrio e pontual nos seus propósitos, não obtém resultados que condizem exatamente à formação da alquimia no ocidente – que, de fato, está em grande parte ligada à tradição hermética – quando inclui em sua análise a questão vitalista. Passaremos agora ao fim do século XX, iniciando o segundo momento da historiografia da alquimia. Em 1998, uma dupla de historiadores publicou um artigo que deu início a uma série de produções que colocaram a alquimia dentro da grande narrativa da História das Ciências. William R. Newman e Lawrence M. Principe, respectivamente, professores da Universidade de Indiana e da Universidade Johns Hopkins. É interessante apontar que a formação de ambos é toda voltada à área da história das ciências, tendo Newman um doutorado em História da Ciência (pela Universidade de Harvard), enquanto Principe possui um doutorado em Química Orgânica (Universidade de Indiana) e outro em História da Ciência (Johns Hopkins). O artigo a que nos referimos trata-se de texto publicado no periódico Early Science and Medicine, com o título “Alchemy vs. Chemistry: the etymological origins of a historiographic mistake”. A premissa deste artigo é que não havia distinção clara entre alquimia e química (e seus respectivos praticantes) até o século XVIII. Para isso, os autores demonstram que havia um uso indistinto das palavras “alquimia” e “química” até o fim do século XVII, com a restrição da alquimia à produção de ouro sendo um desenvolvimento tardio (NEWMAN; PRINCIPE, 1998, p. 38). No plano linguístico, os autores seguem a interpretação dada por Robert Halleux15, segundo qual o termo “alquimia” teria uma ascendência grega, nos termos chemeia ou chymeia, que teriam

15

Cf. Halleux, R. Les textes alchimiques, Turnhout, 1979.

32 uma gama de significados metalúrgicos à época que foram absorvidos pelos árabes na Idade Média. Naturalmente, os árabes teriam inserido o artigo definido al- à forma transliterada kimiya, resultando em al-kymiya (ibid. loc. cit.). Os autores indicam que, por volta da década de 1730, o termo “alquimia” teria adquirido o sentido quase exclusivo de produção de ouro, enquanto “química”, designaria análise e síntese. Como exemplo, é indicado o caso em que Bernard Le Bovier de Fontenelle, em 1722, acusa a alquimia de ser uma completa farsa, que jamais produziu sequer um grão de ouro. A despeito disso, um contemporâneo de Fontenelle, Georg Ernst Stahl (1660-1734), em uma obra publicada em 1723 faz uma clara distinção entre chymie e alchymie. Ainda outro autor, Hermann Boerhaave (1668-1738), afirmaria que a química poderia ser aplicada à alquimia como se esta última fosse um subconjunto ou algo completamente externo à química (ibid., p. 40). Assim, a história da química nos apresenta um caso peculiar. Esse desenvolvimento linguístico não é um mero exemplo da impermanência ou incomensurabilidade de termos reconhecida por historiadores e filósofos, a saber, que palavras mudam seus significados e referenciais com o tempo e particularmente com mudanças em sistemas teóricos – e.g., a física do fim da Idade Média não é a física do final dos anos 1990. Neste caso, existia um conjunto de referências que por um longo período era bem denominado por dois termos sinônimos – “alquimia” e “química”; num determinado período do tempo, o conjunto de referências foi dividido, segregando uma classe de indivíduos à qual foi atribuído o termo “alquimia”, e seu antigo sinônimo “química” atribuído aos restantes. Sinônimos tornaram-se não-sinônimos (ibid., p. 41) (nossa tradução).16

Essa posição dos autores, de que alquimia e química constituíam sinônimos, abre espaço para outro artigo de sua autoria. Publicado em 2001, como capítulo da obra coletiva “Secrets of nature: astrology and alchemy in early modern Europe”, organizada por William R. Newman e Anthony Grafton, o texto se trata de uma revisão e crítica à historiografia da alquimia. A abordagem dos autores destaca algumas vertentes, a saber: a interpretação do século XVIII; a interpretação “espiritual”, na qual estariam incluídos autores do século XIX, cuja

“Thus the history of chemistry presents us with a rather peculiar case. This linguistic development is not merely an example of the impermanence or incommensurability of terms well-recognized by historians and philosophers, namely, that words change their meanings and referents over time and particularly over changes in theoretical systems – e.g., the physics of the late Middle Ages is not the physics of the late 1990s. Here instead, there existed a set of referents which was for a long time equally well denominated by two synonymous terms – “alchemy” and “chemistry”; at a given point in time that set of referents was divided, segregating out a certain class of members to which the term “alchemy” was then assigned, and its former synonym “chemistry” applied to the remainder. Synonyms became nonsynonyms”. 16

33 abordagem Julius Evola e Titus Burckhardt teriam estendido até o século XX; a interpretação jungiana; a interpretação panpsíquica, na qual estaria inserida a obra de Mircea Eliade, ao lado de Hélène Metzger; e, finalmente, as interpretações positivistas e presentistas.17 Em vista de já termos tecido nossas próprias críticas a alguns dos trabalhos abordados por Newman e Principe, visamos aqui uma crítica da crítica: a posição tomada pelos autores em seu artigo de 1998 faz com que eles busquem uma invalidação do que denominaram uma “alquimia espiritual”. Como vimos acima, Evola, Jung, Eliade e Burckhardt tiveram aproximações em suas interpretações – cada um à sua maneira – com questões da religião e da espiritualidade na alquimia. Nossa posição é de que, embora os autores pecassem no método e reflexão teórica da história, sua abordagem de uma alquimia intrinsicamente ligada ao espírito, à visão cósmica de mundo, à religião, etc. está completamente dentro da temporalidade da alquimia, sobretudo no que se refere à Idade Média. Na opinião de Newman e Principe (2001, p. 388), o problema concentra-se na interpretação que surgiu no século XIX, marcadamente influenciada pelo interesse no ocultismo e questões místicas. Para estes estudiosos, os propósitos da alquimia eram supramundanos, utilizando-se de uma linguagem e terminologia químicas apenas para acomodar processos espirituais, morais ou místicos. Segundo os autores, os principais “culpados” disto teriam sido Mary Anne Atwood, na Inglaterra, e Ethan Allen Hitchcock, nos Estados Unidos. Por volta dos anos 1850, ambos publicaram obras com explicações espirituais da alquimia e que rapidamente teriam sido adotadas por outras pessoas “tomadas pela fascinação vitoriana pelo oculto” (NEWMAN; PRINCIPE, 2001, p. 389). Posteriormente, os autores acusam C.G. Jung de se basear largamente nestes autores e influências “esotéricas” para compor seus estudos sobre a alquimia (ibid., p. 401-2). Em grande parte, a preocupação dos autores é o preterimento das operações de laboratório – considerando sua posição como historiadores da ciência, a prática científica é de suma importância para eles – em função das questões do espírito. Os autores reconhecem que Jung não ignora as operações de laboratório, mas as coloca em segundo plano (ibid., p. 402): como vimos acima, isso não deveria

17

Como visto acima, nossa análise elencou alguns dos trabalhos mencionados por Newman e Principe. Os demais trabalhos não foram encontrados e, dados os propósitos desta monografia, estenderiam por demais o texto e pesquisa, podendo acarretar em um desvio desnecessário.

34 surpreender, dado que o principal objetivo da interpretação jungiana é estabelecer uma relação entre a alquimia e a religião católica, de tal maneira criticando a falta de reflexão que se estabeleceu na crença cristã, tornando-a uma fé “externa” em vez de “interna”. Outra acusação dos autores é de que Evola e Burckhardt também teriam sido “vítimas” desta interpretação esotérica, perpetuando sua influência (ibid., p. 396). Essa acusação é facilmente dispensada se examinarmos as referências utilizadas por Evola: em momento algum de sua obra o autor refere-se a Atwood ou Hitchcock, mas sim a ele mesmo, às suas numerosas fontes e a um de seus predecessores da filosofia tradicionalista, René Guenon.18 No caso de Burckhardt já mostramos que o autor dispensa a interpretação dos “psicólogos”, numa citação acima (cf. página 9). Feitas as suas críticas, os autores apenas apontam que os futuros estudos sobre alquimia devem levar em consideração pontos como a evolução da alquimia nos diferentes contextos históricos, sugerindo estudos de caso focados em alquimistas específicos (ibid., p. 419). E embora não mencionado neste texto, os autores propuseram em seu artigo de 1998 a utilização do termo arcaico chymistry como uma forma de resumir o uso indiferenciado entre alquimia e química até o século XVIII (NEWMAN; PRINCIPE, 1998, p. 41). A despeito dos apontamentos destes autores, e de certa forma visando superar a questão das confusões semânticas e etimológicas, parece-nos apropriado dar atenção às palavras de outro estudioso, Bruce T. Moran. Bruce T. Moran publicou, em 2005, a obra “Distilling knowledge: alchemy, chemistry, and the Scientific Revolution”. Seu texto concentra-se sobretudo no período entre os séculos XVI e XVIII, tentando estabelecer a relação entre a alquimia e a química no contexto do que se costuma denominar a revolução científica que ocorreu na Europa nesse período. Embora esteja fora no período que nós abordamos, Moran fornece alguns apontamentos interessantes. A obra de Moran parte de dois pressupostos, um dependente do outro. O primeiro pressuposto é que a alquimia não era algo em que as pessoas acreditavam, mas sim algo que as pessoas praticavam (MORAN, 2005, p. 10). Para o autor, existia uma grande curiosidade pelos segredos da natureza e, sobretudo, a alquimia se sustentava porque, em seus variados contextos, ela fazia sentido:

18

Cf. as seções de notas de “A tradição hermética”, pp. 93-115, 223-254.

35 Alguns leitores, eu suspeito, estão agora coçando suas cabeças. Como, vocês devem estar pensando, as pessoas conseguiam acreditar em tudo isso? Como era possível concluir que as promessas e procedimentos da alquimia, especialmente a de produzir ouro, eram qualquer coisa menos devaneios? Eu preciso apontar algo bem importante. Como várias coisas muito importantes, é também muito óbvio. Alquimia veio a existir e se sustentou por um longo período de tempo não porque era uma grande ilusão, mas porque fazia sentido. Ela partiu naturalmente de um contexto intelectual que era seguramente ancorado em suposições filosóficas singulares, crenças religiosas, e instituições sociais. Por conta da coerência deste grupo de relações, alquimia, incluindo a variação metalúrgica [grifo nosso], podia ser pensada como um objetivo racional (MORAN, 2005, p. 25) (nossa tradução).19

Na passagem acima, Moran sustenta seu primeiro pressuposto de que as pessoas simplesmente praticavam alquimia, pelo simples fato de que ela fazia sentido. Mas não apenas isso. Na passagem que grifamos, ele revela seu segundo pressuposto: para ele, existiam várias alquimias. A definição do que era ou não alquimia passava a depender não de um corpo teórico definido, mas sim do entendimento e identificação de seu praticante com o termo, na medida que seus afazeres se relacionavam com a manipulação da natureza e seus elementos. Diluída em todo o texto está a hipótese de que alquimia e química se relacionaram, assim como seus praticantes trocaram experiências e teorias ao longo dos anos. Esta questão teria, ulteriormente, influenciado na ascensão da química como uma disciplina acadêmica nas universidades da Europa durante esse período de revolução científica.20 A tese de Bruce T. Moran torna-se interessante para nosso trabalho pela flexibilização da definição de alquimia. Seu ponto de que a alquimia era praticada, mas não acreditada, porém não nos satisfaz. Por isso, na seção seguinte esboçaremos uma abordagem da alquimia fundamentada nos princípios de uma história do imaginário, tentando aproximá-la da realidade histórica medieval e, sobretudo, de seu conjunto de crenças. 2.3. Alquimia e imaginário

“Some readers, I suspect, are by now scratching their heads. How, you may be wondering, could people believe all this? How was it possible to conclude that alchemical promises and procedures, especially the sort that promised gold, were anything but sincerely held daydreams? I need to point out something very important. Like so many things that are very important, it is also very obvious. Alchemy came into existence and sustained itself for a long time not because it was a grand delusion but because it did make sense. It followed naturally from an intellectual context that was securely anchored to particular philosophical suppositions, religious beliefs, and social institutions. Because of the coherence of this entire set of relationships, alchemy, including the metallurgical sort, could be thought of as a rational pursuit.” 20 Cf. cap. 4, “Sites of learning and the language of chemistry”, pp. 99-131. 19

36 Nesta última seção de nosso segundo capítulo, encerramos com uma proposta de abordagem da alquimia alternativa àquelas analisadas anteriormente. Sem deixar de levar em consideração os apontamentos, desde Evola a Moran, é nossa intenção interpretar a alquimia dentro do contexto sociocultural do final da Idade Média, privilegiando a noção de uma cultura popular que formava o imaginário medieval. Em primeiro lugar, gostaríamos de tecer algumas considerações em relação à cultura popular. Pode-se dizer que esse conceito faz parte de um conjunto tradicional de conceitos utilizados nos estudos históricos e, sobretudo, sempre esteve associado à sua contrapartida, a cultura erudita. Essa posição, no entanto, vem sendo cada vez mais revisada dentro da historiografia dedicada ao estudo da cultura. A começar, lembraremos das considerações de Mikhail Bakhtin. Segundo Bakhtin (1987, p. 11-27), a cultura popular medieval era imbuída de um senso de libertação da ordem vigente, através da universalização. As festividades, principalmente o carnaval, abriam a possibilidade de igualar socialmente as pessoas à medida que eram abandonadas as “formalidades”, principalmente aquelas advindas da Igreja Católica. Dentre as formas de expressão dessa cultura popular, o autor aponta a existência de um “alto” e um “baixo”, dicotomia comum a diversos aspectos da cultura e da vida na Idade Média. O conceito de “baixo” representa todas as coisas terrenas e menos “nobres” (tal característica se torna mais evidente quando o autor discorre sobre o baixo material). Desta forma, a cultura popular seria propriamente uma manifestação das camadas mais baixas da sociedade medieval. A alquimia, em teoria, faria parte da chamada cultura erudita: era produzida por pessoas letradas, em muitos casos homens associados à Igreja Católica, e definitivamente possuía um conteúdo intelectual que remetia a uma gama de conhecimentos antigos acessíveis apenas às parcelas mais favorecidas da população. No entanto, se lembrarmos os apontamos de Bruce Moran, a alquimia seria definida muito menos por sua “teoria” e mais por sua prática, ou melhor, por quem a praticava. E isso incluiria dos mais proeminentes intelectuais aos simples artesãos, às mulheres ocupadas em suas tarefas domésticas 21, etc. É nesta situação de Segundo Moran (2005, p. 62), os trabalhos de Hugh Plat, “The jewell house of art and nature” e “Delightes for ladies”, recomendavam cozinhar e destilar como tarefas domésticas para as mulheres, enquanto agricultura e jardinagem eram tarefas de fora da casa, destinadas aos homens. No caso feminino, a destilação significava uma melhoria de vida e, além disso, uma emulação das partes práticas de filosofias místicas discutidas por eruditos. 21

37 confluência da cultura entre camadas sociais que lembramos das reflexões de Hilário Franco Júnior, nas quais devemos pensar em cultura popular como aquela praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma dada sociedade, independentemente de sua condição social. Isto é, nessa hipótese, cultura popular seria o denominador cultural comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 34).

Desta forma, cria-se uma interseção entre as manifestações culturais. Além do caráter prático da alquimia apontado por Moran, existia outra questão relevante e que remete à obra de Bakhtin. A dicotomia de “alto” e “baixo” indicada pelo autor russo permeia grande parte dos trabalhos alquímicos, reproduzindo assim a possibilidade de que que determinados pontos podem migrar num sentido ou noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, religiosa, linguística, artística, etc.) e de intermediação cultural (a partir da qual ocorrem eventualmente mudanças sociais). Diante disso, talvez melhor que a consagrada e ambígua expressão ‘cultura popular’ seja chamarmos aquele denominador cultural comum de cultura intermediária (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 35).

Diante desses apontamentos, opinamos que seja mais adequado ao estudo da alquimia uma abordagem através do estudo da cultura (ou das culturas) da Idade Média. Atentamos, porém, para um nicho específico da cultura medieval, no qual a iconografia, metáforas e, de modo geral, “imagens mentais” criadas pela alquimia melhor se adequem: o imaginário. Desde meados dos anos 1980, Jacques Le Goff dedicou-se à pesquisa do imaginário da Idade Média. Podemos, grosso modo, dizer que o imaginário compunha o conjunto de crenças que pairava na mente das pessoas medievais, daí a expressão “imagens mentais” referida no parágrafo anterior. Evelyne Patlagean define assim o conceito: O domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autorizam (PATLAGEAN, 1990, p. 291).

No decorrer de suas pesquisas, Le Goff chegou a um subconceito (se podemos assim dizer), que pertence à ordem do imaginário: o maravilhoso. Para o autor, o interesse por tudo que era fantástico e sobrenatural era típico da sociedade medieval, mais especificamente “pelos limites do sobrenatural, interesse que suscitava reações de ordem religiosa, estética e mesmo científica”. O maravilhoso dava conta das fronteiras entre o natural e o sobrenatural. Na sociedade medieval, a

38 criação de Deus – homem e natureza – eram os elementos primordiais do maravilhoso (LE GOFF, 2006, p. 105). Do que vimos até agora, em meio a todas as interpretações historiográficas e suas discordâncias, um ponto permaneceu intacto em relação à alquimia: a interação do homem com a natureza. Le Goff subdivide o maravilhoso em algumas categorias, sendo uma delas o maravilhoso científico: “a tendência para fazer dos mirabilia22 umas raridades, e não fenómenos sobrenaturais, e do inexplicável o explicável” (LE GOFF, 1994, p. 60). Mas será que podemos incluir a alquimia nessa categoria de maravilhoso científico? A resposta mais exata seria: depende. Se lembrarmos de Bruce Moran, a inclusão da alquimia em uma determinada categoria do maravilhoso dependeria de como o alquimista em questão interpretava sua prática! Tentemos ilustrar. Por volta de 1471, foi publicado o “Compound of Alchimie”, extensa obra alquímica, em verso, atribuída ao cônego e alquimista inglês, George Ripley. No início da obra, o autor faz uma dedicatória ao Rei Eduardo IV (RAMPLING, 2010, p. 151). Diz Ripley a seu monarca: Pois confie você que realmente encontrei O caminho perfeito da mais secreta Alquimia, Que eu jamais, por moeda ou por ouro Revelarei a não ser para você, e isto com a condição, De que mantenhas para si mesmo em segredo, E apenas utilize para o prazer de Deus, Ou, no futuro, terei que a Ele pagar o preço, Por ter descoberto seu tesouro secreto (RIPLEY, 2010, p. 110) (nossa tradução).23

Não podemos dizer que, nas palavras de Ripley, a alquimia passasse longe da definição de maravilhoso: descobrir o “tesouro secreto” de Deus definitivamente não era algo comum e que acontece todos os dias na vida dos homens na Idade Média. Fica evidente que Ripley é temente a Deus. Le Goff (2006, p. 115) comenta que o cristianismo no lugar de destruir o maravilhoso, o domina, “o racionaliza ao conferir-lhe um lugar e uma função na Criação, além de um estatuto de excepcionalidade contido, no entanto, nos próprios limites da natureza”. Neste sentido, a alquimia – para Ripley – seria uma verdadeira extrapolação do maravilhoso, na medida em que através dela 22

Os mirabilia são os fenômenos incomuns. “For like it you to trust that trewlie I have found / The perfect waye of most secrete Alchimy, / Which I wyll never trewly for Merke ne for Pounde / Make commom but to you, and that conditionally / That to your selfe ye shall keep it full secretly, / And onely it use as may be to Gods pleasure, / El, in tyme coming, of God I should abye / For my discovering of his secrete treasure”. 23

39 poder-se-ia dominar a natureza e transformá-la – atividade, ao que seu medo indica, reservada até então para Deus. Embora, ao que indica a passagem acima, a alquimia ripleyana fosse um meio de extrapolar os domínios de Deus, a influência do cristianismo nela era bastante presente. Deve-se compreender que a alquimia comumente estudada envolve uma série de símbolos das mais variadas procedências, o que nos indica um certo caráter sincrético na doutrina. No caso de Ripley, podemos exemplificar da seguinte forma: ao longo de seu texto, o autor faz cinco menções diretas ou relacionadas a Hermes Trismegisto (2010, p. 114, 134, 141 [2 vezes], 182), figura mítica considerada como “pai da alquimia”. A importância dessa figura, que teve seus escritos e ensinamentos configurados no que ficou conhecido como hermetismo, é revelada pelo intuito contido em suas obras de descobrir forças secretas e maravilhosas dos seres da natureza, isto é, suas physeis, suas propriedades e virtudes ocultas, assim como as relações de simpatia e antipatia [grifo nosso] derivadas dessas physeis nos três reinos. Homem, animais, plantas e pedras (aí compreendidos os metais) são considerados portadores de forças misteriosas, encarregados, a esse título de curar todas as dores e doenças e de assegurar ao homem riquezas, felicidades e poderes mágicos (FESTUGIÈRE apud HADOT, 2006, p. 55).

Ainda que Hermes Trismegisto e seus escritos constituíssem como que um fio condutor para os alquimistas, outras influências eram absorvidas e, no caso de Ripley, o cristianismo (católico) teve seu papel, como na passagem abaixo: Então faça o Mercúrio quatro [partes] para o Sol, Duas para a Lua como deve ser, E então seu trabalho deverá ser começado, Na figura da Trindade [grifo nosso]; Três do Corpo e três do Espírito: E para a unidade da substância espiritual, Uma a mais do que a substância corporal (RIPLEY, 2010, p. 131) (nossa tradução).24

E assim segue a obra de Ripley, com passagens referentes a figurações do cristianismo católico, referências a Hermes Trismegisto e até mesmo reverência a alquimistas anteriores, como Raimundo Lúlio e Geber (citados, por exemplo, no prefácio da obra).

24

“Then make the Mercury foure to the Sonne, / Two to the Mone as hyt should be, / And thus thy worke must be begon, / In figure of the Trynyte; / Three of the Body and of the Spryt three: / And for the unytye of the substance spirituall, / One more than of the substance corporall”.

40 As duas passagens do “Compound of Alchimie” iluminam algumas questões, a saber: o maravilhoso torna-se um conceito limitado para a alquimia, na medida em que ela busca uma gama de referências e as funde, formando um corpo “teórico” completamente sincrético. Não tentaremos extrapolar o conceito e fazê-lo atender a nossas necessidades teóricas; acreditamos que, mais fácil, é compreender que a alquimia possuía uma tênue ligação com o maravilhoso na medida em que ambos tocavam nas questões do sobrenatural. Por isso, acreditamos que seja mais apropriado à alquimia o domínio amplo do imaginário, que muito mais do que uma história da imaginação, “trata-se de uma história da criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam” (LE GOFF, 2011, p. 13). É nesse âmbito que as variadas crenças dos homens e mulheres medievais se entrecruzavam e, como apontado por Hilário Franco Júnior, formavam uma espécie de cultura intermediária.

41

Capítulo 3

Conselhos ao monarca: a alquimia de George Ripley

42 3.1. George Ripley: a problematização da figura social do alquimista Iniciaremos o capítulo final com algumas considerações sobre a figura social do alquimista no fim da Idade Média. Para essa análise, empreenderemos um estudo de caso sobre o alquimista inglês George Ripley, usando como parâmetro a figura do intelectual da Idade Média (como estabelecida por Jacques Le Goff e Mariateresa Brocchieri) e comparando-a com os estudos feitos sobre o alquimista e o próprio conteúdo de sua produção. Devemos recuar, novamente, de nosso recorte temporal em alguns séculos. Segundo Le Goff (1988, p. 20), o intelectual medieval aparece por volta do século XII, em meio à reformulação urbana que a Europa passava. A primeira definição que é oferecida pelo autor passa por um desempenho acadêmico, uma profissão que inclua as atividades de escrever ou ensinar – ou as duas ao mesmo tempo. Esse homem acadêmico, intelectual, só aparece em contextos urbanos (ibid., p. 21). Mariateresa Brocchieri oferece definições mais precisas sobre essa figura social do intelectual, a começar pela própria compreensão medieval de intelectual: segundo a autor, ninguém que vivesse entre o ano 1000 e o ano 1400 teria noção do sentido da palavra “intelectual”, quando aplicada como adjetivo ao homem (BROCCHIERI, 1989, p. 125). A palavra “intelectual” normalmente acompanhava outros termos, variando de significado: A “substância intelectual” (que se opunha à “substância material”) era o espírito ou a alma [grifo nosso], o “conhecimento intelectual” (que se opunha ao “conhecimento sensível”) era o tipo de conhecimento que ultrapassa os sentidos e se aventurava a captar as formas (loc. cit.).

O termo “intelectual” só aparece designando uma classe de pessoas tardiamente, na França do século XIX (loc. cit.). Por isso, torna-se extremamente difícil definir o que era o intelectual da Idade Média, já que os próprios homens medievais não se atribuíam essa designação. Entre algumas categorias citadas pela autora, havia os mestres e professores, aqueles que haviam estudado e ensinavam); eruditos e doutos, termos mais neutros que designavam aqueles que estudaram e acumularam conhecimentos pelos livros; havia também os letrados, termo que designava praticamente todos que dominavam a leitura e a escrita, o que significa um grupo amplo de pessoas que nem sempre estavam ligadas a atividades propriamente intelectuais (ibid., p. 1256).

43 Mais interessante no texto de Brocchieri é sua separação entre intelectuais num sentido forte e num sentido fraco. O intelectual forte seria aquele envolvido em várias atividades intelectuais, “empenhado em transmitir essa sua capacidade de investigação, dotada de instrumentos próprios, de um percurso de desenvolvimento próprio e de objetivos bem definidos”; seria, naturalmente, um docente, um mestre. Por outro lado, os intelectuais fracos seriam aqueles que “se serviram da inteligência e da palavra, mas que também alteraram muitas vezes o papel e o contexto de sua actividade”, dando pouca importância à finalidade de seu trabalho. Neste grupo, estariam efetivamente profissionais como advogados, diplomatas, bispos, etc. (ibid., p. 126). A evolução deste quadro histórico dos intelectuais medievais nos leva à fundação das universidades e constituição dos corpos docentes. Para Le Goff (ibid., p. 59), a universidade europeia se conforma solidamente no século XIII pela evolução dos quadros sociais europeus no sentido da formação das corporações. À medida que são formados seus corpos docente e discente, a universidade vai agrupando o que Brocchieri definiu como intelectuais fortes. Mais próximo de nosso período, Le Goff aponta que a universidade foi cada vez mais se fechando e o intelectual medieval vai tendo seu locus social deslocado: à medida que os séculos XIV e a XV testemunham a interrupção do desenvolvimento demográfico, seguida de um refluxo agravado pelas fomes e pelas pestes, entre as quais foi catastrófica a de 1348; as perturbações no suprimento de metais preciosos na economia ocidental, produzindo uma fome de prata e depois de ouro, tornada mais aguda pelas guerras – Guerra dos Cem Anos, Guerra das Duas Rosas, guerras ibéricas, guerras italianas (LE GOFF, 1988, p. 95)

o intelectual medieval vai saindo das universidades e adentrando um novo local que, segundo o autor, dá espaço à criação de uma nova figura: o humanista (ibid., p. 95-6). Conforme as relações sociais, econômicas, culturais e mesmo de trabalho, vão se alterando, o deslocamento dos intelectuais vão as acompanhando. A partir do século XIV vai se destacando o papel do Príncipe: as relações sociais vão se tornando cada vez mais políticas, e é apenas “servindo-o, tornando-se seu funcionário ou cortesão, que se ganha riqueza, poder e prestígio” (ibid., p. 96). Levando-se em consideração este preâmbulo, como podemos relacioná-lo à alquimia? Em primeiro lugar, devemos nos atentar para o fato de que a alquimia jamais foi institucionalizada. Como já discutimos no capítulo anterior, era uma forma de conhecimento essencialmente ligada à

44 transformação da natureza. Não há evidências de formação de corporações ou guildas 25 ao longo da Idade Média: em grande parte, ao que indicam os variados estudos consultados, a alquimia era um empreendimento individual (isto não significa que não houvesse comunicação entre seus praticantes), havendo no máximo uma relação de patronato entre alquimistas e outros indivíduos.26 Considerando-se a falta de um regimento que organizasse a alquimia como uma profissão ou ofício que seguisse um determinado conjunto de regras sociais, a doutrina ficava aberta às mais variadas apropriações (utilizaremos este termo, na falta de um melhor). Isso é denunciado já nos séculos XIII e XIV por dois autores de grande vulto da literatura europeia: Dante Alighieri e Geoffrey Chaucer. No caso de Dante, disporemos apenas das palavras do professor Hilário Franco Júnior. Segundo o autor (1996, p. 231), Dante designaria em sua obra uma rigorosa punição aos alquimistas, em comparação aos mágicos e adivinhos. Isto se explica pela idealização dantesca da Idade de Ouro, o reino de terreno de Cristo, no qual a alquimia desempenharia um papel fundamental. Em função disso, na verdade Dante não pune na décima fossa do Oitavo Círculo do Inferno os alquimistas, e sim aqueles que se faziam passar por eles. Castiga os falsos alquimistas por serem elementos perigosos, ao enganosamente pretenderem elaborar a Ars Magna, o aperfeiçoamento do homem e da natureza (FRANCO JÚNIOR, 1996, p. 231).

Hilário aponta, ainda, que esta preocupação não era exclusiva de Dante, mas aparecia também em outras obras como Le roman de la rose27 e na Suma Teológica de Tomás de Aquino. No universo inglês, Chaucer também denunciava os falsos alquimistas cerca de um século antes de Ripley. Em um dos “Contos da Cantuária”, Chaucer conta a história do servo de um cônego que sofreu inúmeras desventuras nas mãos de um suposto alquimista. O servo do cônego, que serve de narrador à história, pragueja contra o causador de seus infortúnios: Esse Cônego raiz de todo mal Que se delicia e compraz-se Dos pensamentos maldosos de seu coração E às pessoas de Cristo ele levará desastres 25

Levamos em consideração a definição de Otto Oexle, dada no Dicionário temático do ocidente medieval, na qual as guildas ou corporações constituem um grupo de indivíduos associados por um juramento comum (OEXLE, 2005, p. 489 ss.). 26 Cf. por exemplo: Tara Nummedal, Alchemy and authority in the Holy Roman Empire, University of Chicago Press, 2007. 27 Poema do século XIII.

45 Que Deus nos proteja de tal dissimulação (nossa tradução) (CHAUCER, 2010, p. 243).2829

A desgraça do servo do cônego30 se dá porque seu mestre forneceu ao falso alquimista por diversos dias os seus rendimentos, em moedas de ouro, com a promessa de multiplicá-las (CHAUCER, 2010, p. 242-3). Essa desvirtuação da prática alquímica fica evidente na seguinte passagem: Um homem pode facilmente aprender A Multiplicar e não levar seu bem a ninguém Pois há tal Lucro neste ganancioso jogo Que a riqueza de um homem pobreza se tornará E esvaziando grandes e pesadas bolsas Fará o povo lhe amaldiçoar (nossa tradução) (ibid., p. 253-4).31

De acordo com Samuel Foster Damon (1994, p. 782-3), a intenção de Chaucer era atacar falsos alquimistas, já que eles estavam se tornando uma ameaça ao público. Durante todo o conto, o servo do cônego faz ataques à alquimia; porém, as os 54 versos finais possuem um tom completamente diferente: são citações de trabalhos do alquimista Arnaldo de Villanova (ibid., p. 785). Com isso, retornamos à nossa questão de que se não havia uma alquimia, poderiam existir várias. Nos casos denunciados por Dante e Chaucer, se ainda escolhermos denominar como alquimia a prática por eles atacada, devemos associá-la exclusivamente a um tipo de alquimia metalúrgica. Em todo caso, passemos à figura de George Ripley para tentar sanar esta questão. Biograficamente, o que se sabe sobre George Ripley ainda é muito pouco. De acordo com Rosemary Ellen Guiley (2006, p. 272), Ripley nasceu em cerca de 1415, na vila de Ripley, próximo a Harrogate, na Inglaterra. Diz-se que viajou a Roma, Lovaina e Rodes, sendo nesta última hóspede da Ordem dos Cavaleiros de São João de Jerusalém. Ainda de acordo com a autora, ele teria

“In this Chanon rote of all trechery / That evermore delyte hath and gladness: / Such fendly thoughts in his herte empresse, / Now Christs people he may to mischiefe bring, / God kepe us from his dissymuling”. 29 Nossas traduções de Chaucer usam como referência a edição publicada pelas editoras Penguin Books e Companhia das Letras, visando preservar a integridade do sentido apesar das divergências na escolha das palavras. 30 Na história, havia dois cônegos: um que era o mestre do narrador, e outro que era o falso alquimista. Chaucer não diferencia os substantivos de referência a cada um, assim, devemos sempre diferenciá-los pelo contexto da fala do servo. 31 “A man may lightly lerne if he have ought, / To Multiply and bring his good to nought: / Lo such a Lucre is in this lusty game, / A mans myrthe it wol turn all to grame: / And emptien also greate and hevy purses, / And make folke to purchase curses”. 28

46 retornado à Inglaterra em 1471, quando se tornaria cônego no Mosteiro de Santo Agostinho (ou Santa Maria, de acordo com Jennifer Rampling32), na freguesia de Bridlington, em Yorkshire. Já vimos, brevemente, alguns trechos introdutórios do trabalho que utilizamos de Ripley, “Compound of Alchimie”. A dedicatória que citamos no capítulo anterior já nos remete à uma questão desta seção: embora não houvesse uma associação de alquimistas, existiam relações de patrocínio entre alguns indivíduos e alquimistas. O preâmbulo do “Compound”, denominado comumente “Epistle to King Edward IV”, já oferece pistas desta relação entre monarca e alquimista: Uma vez prometi à Vossa Majestade tais coisas, Quando você comandou que me convocassem; E desde então eu escrevi em completo segredo, Para Sua Graça da Universidade De Lovaina, quando Deus me deu a graça de ver Grandes segredos e muito mais lucro, Que apenas para você revelarei: Ou seja, os grandes Elixires Vermelho e Branco (nossa tradução) (RIPLEY, 2010, p. 110).33

Retornado à questão do intelectual medieval, a situação dos alquimistas face a esta categoria social é bastante ambígua. Como o caso de Ripley ilustra, alquimistas eram obviamente pessoas letradas, eruditas, podendo ter ou não frequentado universidades. Alquimia não era um ramo profissional, mas sim um interesse: neste ponto, Bruce Moran tem razão ao dizer que a alquimia era algo que as pessoas simplesmente praticavam. Porém, a alquimia requeria ainda um certo grau de erudição, como podemos ver na seguinte passagem de Ripley (ibid., p. 111), indicando sua leitura de outros autores: “Como o Filósofo no livro dos Meteoros escreve”34, sendo aqui o filósofo referido Avicena, cujo texto foi incluído como o quarto livro de uma tradução latina da “Meteorologia”, de Aristóteles (LINDEN, 2003, p. 143). Podemos concluir que os alquimistas possuíam traços típicos dos intelectuais medievais. Dentro de uma qualificação flexível, todo alquimista era um intelectual por suas características mais gerais, como saber ler e escrever e ter erudição sobre sua área. Não eram socialmente

32

RAMPLING, Jennifer. Establishing the canon: George Ripley and his alchemical sources. In: AMBIX, 2010, p. 190. “Once to your Lordship such thyngs I did promise, / What tyme ye did command to send unto me; / And since that I wrote in full secret wise, / Unto your Grace from the Universitie / Of Lovayne, when God fortuned me by Grace to see / Greater secrets and moch more profyte, / Which onely to you I wyll disclosed to be: / That is to say the Great Elixirs both Red and White.” 34 “As the Philosopher in the boke of Meteors doth wryte”. 33

47 excluídos; pelo contrário, eram valorizados por sua conduta regrada e espiritual, em oposição aos que eram considerados como charlatães e farsantes. Por essas evidências e em consonância aos nossos apontamentos historiográficos anteriores, admitimos que o alquimista era socialmente aceito porque sua prática estava pautada numa base espiritual, e não material. Dedicaremos as duas próximas seções à exploração dessa base através da obra de George Ripley. 3.2. O cosmo expresso na simbologia No primeiro capítulo discutimos a evolução das ideias relativas à concepção do mundo na Idade Média, desde o século XIV, com os pensamentos de Johan Eckhart, até o século XV, com as novas ideias de Nicolau de Cusa fundamentadas no neoplatonismo. Entre elas, subsistia a noção de um mundo visto através de semelhanças, como elaborado por Michel Foucault. Concluímos com Ernst Cassirer que, apesar dos avanços do pensamento de Nicolau de Cusa, ainda persistia uma noção cósmica do mundo, que dava lugar às suas categorias de macrocosmo e microcosmo. Nesta seção, exploraremos estes conceitos a partir dos apontamentos do historiador russo Aron Gurevich. De acordo com nossos apontamentos anteriores, sobretudo do capítulo 2, nossa interpretação da alquimia segue uma linha diversa daquela estabelecida pela História da Ciência desde o fim dos anos 1990, em que a alquimia não possuiria elementos diferenciadores em relação à química. Buscamos, através de um contexto social e cultural, provar que existia uma determinada imagem medieval sobre a alquimia, que correspondia em grande parte às interpretações dadas por pesquisadores não-historiadores. Quando destrinchamos o texto de Michel Foucault no primeiro capítulo, já indicamos ali algumas das questões que sobressaem na alquimia: a relação entre o homem e a natureza, entre o homem e o mundo propriamente sensível. De um ponto de vista menos filosófico, Gurevich explica que a cultura era uma espécie de “segunda natureza” no processo de sua prática social. Na Idade Média, a criação dessa segunda natureza foi (assim como na antiguidade) profundamente influenciada pela relação do homem com a natureza. As ligações do homem com seu entorno natural eram particularmente fortes na era do barbarismo. A dependência das tribos bárbaras da natureza era tão enraizada que sua visão de mundo possuía diversas características claramente indicativas de sua inabilidade de distinguir o que eram eles mesmos e a natureza. (...) A cabeça é o ‘céu’, os dedos são os ‘galhos’, a água é o ‘sangue da terra’, pedras e córregos são seus ‘ossos’, mato e árvores são ‘o cabelo da terra’. Estas

48 se tornariam metáforas comuns, mas nesse estágio refletiam uma visão de mundo que não diferencia claramente o corpo humano do mundo que ele habita; e a transição de um ao outro era feita através de fronteiras fluidas e indefinidas (nossa tradução) (GUREVICH, 1985, p. 45).35

Como aponta Gurevich e Foucault reforça, essas relações analógicas entre homem e natureza serviriam de metáforas comuns por muito tempo. Porém, o exemplo dado por Gurevich trata dos primeiros séculos da Idade Média, “a era do barbarismo”, período no qual o cosmo ainda não havia sido quebrado em macro e micro. Esse momento chegaria, segundo o autor, quando o cristianismo expande sua influência. O mundo antigo era harmonioso e completo; o mundo medieval era dualista. “O mundo do cristianismo não era mais de ‘beleza’, pois era um mundo pecador e sujeito ao julgamento de Deus”36. Reflexo desta mudança é a publicação de “A cidade de Deus”, por Santo Agostinho, em que o cosmos seria quebrado em dois conceitos diametralmente opostos: civitas Dei e civitas terrena (GUREVICH, 1985, p. 58). Neste sentido, é possível compreender a cisão entre alto e baixo material e corporal que Mikhail Bakhtin identifica através do grotesco medieval. Através das exagerações das funções corporais, ênfase nas figuras de vida e morte (e ressureição), envelhecimento e rejuvenescimento, etc. Tudo isto significava a abolição do status idealizado das coisas; ou, como o próprio autor coloca, o rebaixamento das coisas ao terreno e material. O grotesco opunha-se efetivamente ao que Bakhtin denomina como “cultura oficial”, ou seja, os ritos idealistas e, sobretudo, aqueles impostos pela Igreja Católica. O grotesco abolia as barreiras entre corpo e mundo, estabelecendo uma fluidez entre ambos. Para Gurevich (ibid., p. 53-4), o lugar do grotesco era a cultura popular medieval e, ademais, o próprio imaginário popular. Curiosamente, se considerarmos os escritos herméticos como fonte de inspiração de boa parte da alquimia ocidental (como o fazem Evola e Burckhardt), e levarmos em consideração às próprias referências de alquimistas a Hermes37, a divisão entre um alto e baixo já estaria inserida “In the Middle Ages the creation of this second nature was (as it had been in antiquity) profoundly influenced by man’s relationship with nature. Man’s links with his natural surroundings were particularly strong in the age of barbarism. The dependence of the barbarian tribes on nature was still so deep-seated that their world-view had many features clearly indicative of their inability to make any sharp distinction between themselves and their natural environment. (…) The head is the ‘sky’, the fingers are ‘branches’, water is ‘earth’s blood’, rocks and streams are its ‘bones’, grass and trees ‘earth’s hair’. These were to become conventional metaphors, but at this stage they reflect a world-view which makes no clear distinction between the human body and the world it inhabits; and transition from one to the other was across frontiers which were fluid and indefinite”. 36 “The world of Christianity was no longer one of ‘beauty’, for the world was sinful and subject to the judgement of God, (…)”. 37 Cf. acima, p. 40. 35

49 nela. Deve-se lembrar que os escritos herméticos, de acordo com Frances Yates, teriam sido escritos em torno de 100 a 300 d.C., “por vários autores desconhecidos, todos possivelmente gregos, e o que contêm é a filosofia grega popular de seu tempo, mescla de platonismo e estoicismo, combinada com influências hebraicas e talvez persas” (YATES, 1995, p. 14-5). Como vimos nos apontamentos de Julius Evola, existia na alquimia esta mesma noção de alto e baixo. Todavia, ela não reproduzia o mesmo sentido que Bakhtin identifica na cultura do grotesco medieval. A imagem popular da alquimia, como já estabelecemos, era de uma doutrina espiritual, que visava o enobrecimento da alma. Esse processo se dava através da transmutação dos metais comuns em metais nobres que emulava transformações espirituais. De acordo com os princípios da semelhança, tal emulação poderia ocorrer em função da natureza cósmica do mundo e da correspondência entre homem e natureza. Façamos uma análise da obra de Ripley para tentar esboçar esta questão. O “Compound of Alchimie” de Ripley é composto por o que o autor denomina os dozes “portões” (“gates”, no original). Podemos explicar essa denominação pela passagem do autor no fim do primeiro capítulo, que segue: “No primeiro Portão, é onde estás agora / Do Castelo dos Filósofos, onde eles habitam” (nossa tradução) (RIPLEY, 2010, p. 134).38 Os dozes portões (que, doravante, designaremos capítulos), em ordem, são: calcinação, solução, separação, conjunção, putrefação, congelação, corporificação, sublimação, fermentação, exaltação, multiplicação, projeção.39 No primeiro capítulo, Ripley nos dá uma mostra da importância da semelhança nos processos alquímicos por ele descritos. Segundo o autor, “para um bom fundamento da nossa verdadeira Calcinação / Trabalhe com sagacidade apenas uma coisa com sua semelhante / Pois os semelhantes possuem afinidade” (ibid., p. 130).40 Adiante, o alquimista nos proporciona também com uma passagem a respeito da importância dos elementos primordiais nos processos alquímicos: Se a Água for igual em Proporção À Terra que se esquentou em devida medida, “At the fyrst Gate, now art thou in, / Of the Philosophers Castle where they dwell”. Respectivamente, nos originais: calcination, solution, separation, conjunction, putrefaction, congelation, cibation, sublimation, fermentation, exaltation, multiplication, projection. Tradução feita com auxílio do “Lexicon of alchemy”, de Martinus Rolandus. 40 “And for a sure ground of our trew Calcynacyon, / Woorch wyttyly kynde only wyth kynde; / For kynde to kynde hath appetyble inclynacyon”. 38 39

50 Dela nascerá uma nova semente; Tanto Branca quanto Vermelha in pura tintura, Que ao Fogo deve sempre resistir (nossa tradução) (ibid., p. 131).41

Jennifer Rampling, professora da Universidade de Princeton e assídua pesquisadora da obra de George Ripley, aponta um fato interessante sobre o “Compound of Alchimie”. A despeito de o autor introduzir em seu texto o motivo de um castelo, como referimos acima, essa referência é pouco utilizada e, efetivamente, pouco significativa na composição do trabalho. Segundo a autora, isto se daria por essa estrutura ter sido retirada de uma outra obra, a “Scala philosophorum”, que Ripley atribuiria a Guido de Montanor. Seja como for, Rampling indica que mais essencial à obra é o elemento da “roda” (“wheel”, no original). A autora explica: Rodas e círculos são tropos familiares da alquimia medieval, normalmente denotando o “enquadramento do círculo” – a transformação dos quatro elementos aristotélicos. Um elemento muda quando sua forma anterior é destruída e assume outra, através da substituição de suas qualidades elementares. Assim, terra (fria e seca) torna-se água (fria e úmida) perdendo sua secura, enquanto a água torna-se ar (quente e úmido) quando o frio cede lugar ao calor (nossa tradução) (RAMPLING, 2013, p. 50).42

Esse elemento é melhor explorado através do conjunto de imagens que acompanha o manuscrito original do “Compound”. Ainda assim, é possível ver algumas passagens no texto que indicam a transformação dos elementos aristotélicos, como por exemplo: Mas primeiro com estes Elementos faça sua Rotação, E, primeiro de tudo, em Água transforme sua Terra; Então sua Água transforme em Ar através de Pulverização; E o Ar transforme em Fogo; então MESTRE irei lhe chamar De todos os segredos, grandes e pequenos: A Roda dos Elementos podes girar, Verdadeiramente concebendo nossos escritos, sem dúvida (nossa tradução) (RIPLEY, op. cit., p. 133).43

A passagem acima fica em completa concordância à estrutura aristotélica do mundo natural, já apontada por Rampling, e a seguir melhor explicitada por R.G. Collingwood: O mundo da natureza é, assim, para Aristóteles, um mundo de coisas que se movem por si próprias, (...) a natureza manifesta-se como processo, crescimento, mudança. Esse processo é um desenvolvimento, isto é, a mudança toma formas sucessivas – a, b, c... – em que cada uma é a potencialidade da que lhe sucede; “If the Water be equall in Proporcyon / To the Erthe whych hete in dew mesure, / Of hym shall spryng a new burgyon; / Both Whyte and Red in pure tincture, / Whych in the Fyre shall ever endure”. 42 “Wheels and circles are familiar tropes of medieval alchemy, often denoting the “squaring of the circle” – the transformation of the four Aristotelian elements. An element changes when its previous form is destroyed and it assumes another, through substitution of its primary elementary qualities. Thus earth (cold and dry) becomes water (cold and moist) by losing its dryness, while water in turn becomes air (hot and moist) as coldness yields to heat.” 43 “But fyrst of these Elements make thou Rotacyon, / And into Water the Erth turne fyrst of all; / Then of thy Water make Ayre by Levygacyion; / And Ayre make Fyre; then MASTER I wyll thee call / Of all our secrets greate and small: / The Wheele of Elements thou canst turne about, / Trewly consevyng our Wrytyngs wythowt dowte”. 41

51 mas não é a isto que chamamos “evolução”, pois para Aristóteles as espécies de mudança e de estrutura manifestadas no mundo da natureza formam um reportório eterno, e os tipos característicos desse reportório estão relacionados lógicamente, não temporáriamente entre si. Daqui se segue que a mudança é, em última análise, cíclica; o movimento circular é para Aristóteles característico do perfeitamente orgânico e não, como para nós, do inorgânico (COLLINGWOOD, s.d., p. 119).

Vimos o uso dos elementos primordiais aristotélicos. Onde estão, na obra de Ripley, os elementos minerais e suas contrapartes astrológicas (ou astronômicas)? Ao longo das quase 90 páginas de texto, percebemos que Ripley utiliza um sistema apenas quaternário a esse respeito: Sol, Lua, Mercúrio e Vênus, significando, respectivamente, ouro, prata, cobre e mercúrio (RAMPLING, op. cit., p. 56-57). O uso dos motivos minerais-astrológicos em Ripley é reduzido em comparação ao que atribui a outras obras alquímicas. Rampling (ibid., p. 53) nos indica que em algumas partes do texto de Ripley há remissões a uma contraparte visual do texto (embora não haja evidências de uma versão original do século XV, existem reproduções dos séculos XVI e XVII) em que as relações entre os metais e planetas e os elementos aristotélicos são melhore exploradas. Embora não trabalhemos com a parte visual do “Compound”, que nos daria sem dúvida uma margem maior de exploração do aspecto cósmico da obra, podemos retirar alguns outros motivos e relações. Por exemplo, no quinto capítulo, “Putrefação”, temos remissões à dicotomia da vida-morte. Em Evola (1979, p. 129-30), a imagem da morte na alquimia refere-se a um processo de suspensão da consciência do alquimista, emulado por uma morte simbólica do elemento trabalhado. Esse motivo é o mesmo que Bakhtin (1987, p. 287-89) enxerga no grotesco rabelaisiano: uma morte renovadora, que acontece apenas para dar lugar a uma nova vida, repetindo o ciclo cósmico do mundo. Em Ripley, essa dicotomia da vida-morte fica evidente nesta passagem do quinto capítulo: Como as Almas que depois de dolorosa transição São levadas ao paraíso onde a vida é sempre bela; Também será nossa Pedra após seu período obscuro no Purgatório Purificada e reunida com os Elementos sem esforço, Desfrutar a brancura e beleza de sua esposa: E passar da escuridão do Purgatório para a luz Do paraíso, na Brancura do Elixir de grande poder (nossa tradução) (RIPLEY, op. cit., p. 151).44 “For lyke as Sowles after paynys transytory / Be brought into paradyce where ever ys yoyfull lyfe; / So shall our Stone after hys darknes in Purgatory / Be purged and joynyd in Elements wythoute stryfe, / Rejoyse the whytenes abd bewty of hys wife: / And passe fro darknes of Purgatory to light / Of paradyce, in Whytnes Elyxer of gret myght”. 44

52 O ciclo cósmico se fecha quando lembramos das referências que Ripley faz à Trindade. Como examinamos no primeiro capítulo, através dos estudos de Étienne Gilson e Ernst Cassirer, a teologia de Johan Eckhart e a filosofia de Nicolau de Cusa organizam o mundo de acordo com a preeminência de Deus sobre todas as coisas. Nesse esquema, o homem assume o papel privilegiado do microcosmo, capaz de vislumbrar uma pequena centelha da divindade. Esse aspecto já foi devidamente explorado no primeiro capítulo, mas faremos aqui uma referência à obra de Titus Burckhardt. No terceiro capítulo de seu livro, Burckhardt reflete sobre a condição do saber hermético. Para fins didáticos, o autor estabelece que a relação entre macrocosmo e microcosmo pode ser traduzida na relação entre o sujeito e o objeto. Em primeiro lugar, estabelece que se a visão de mundo do homem (como espécie) é “subjetiva”, não estamos nos limitando a dizer que são as visões de mundo particulares condicionadas pelas experiências pessoais, mas sim que não existe algo como um conhecimento puramente objetivo fora do sujeito humano (BURCKHARDT, 1986, p. 34). (...) em todo conhecimento, a despeito do quão influenciado possa estar pelos indivíduos ou pela espécie, há algo incondicional. Caso contrário não haveria ligação entre sujeito e objeto, de “Eu” para “tu”, nenhuma verdade ou unidade por trás dos incontáveis “mundos” como percebidos por tantos e tão diferenciados indivíduos. Esse elemento incondicional e imutável, que é a fonte do mais ou menos escondido “conteúdo-verdade” em cada partícula de conhecimento – e sem o qual não seria conhecimento de fato – é o puro Espírito ou Intelecto [grifo nosso], que como conhecedor e conhecido está absolutamente e indivisivelmente presente em todos os seres (ibid., p. 35).45

Como poderíamos não lembrar exatamente das palavras de Étienne Gilson acerca da doutrina de Johan Eckhart?46 Como sabemos, os escritos herméticos são anteriores aos de Eckhart, mas isso não nos permite afirmar com veemência que o teólogo tenha lhes utilizado como fontes diretas para composição de seus tratados; porém, não podemos descartar a possibilidade de uma influência, dado que mesmo outros grandes teólogos como Agostinho e Alberto Magno tiveram sua parcela de contato com os escritos de Hermes.

“(...) in every knowledge, however much of it may be coloured by the individual or the species, there is something unconditional. Otherwise there would be no bridge from subject to object, from ‘I’ to ‘thou’, no truth and no unity behind the countless ‘worlds’ as seen by so many and so widely varying individuals. This unconditioned and immutable element, which is the source of the more or less hidden ‘truth-content’ in every piece of knowledge – and without which it would not be knowledge at all – is the pure Spirit of Intellect, which as knower and known is absolutely and indivisibly present in every being”. 46 Cf. acima, p. 10. 45

53 Em todo caso, não incorreremos em repetição citando mais uma passagem de Ripley com o motivo da Trindade em sua obra. Ao longo do trabalho já notamos diversas referências à clara influência do cristianismo na obra do alquimista inglês, com referências à ira de Deus, à Trindade, ao Purgatório, etc. Acreditamos que, conciliando as influências do hermetismo, eminentemente pagã, e do cristianismo, George Ripley concebeu uma alquimia fundamentalmente cósmica.

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Conclusão

Ao longo destas páginas tentamos estabelecer uma visão diferenciada da alquimia, buscando na cultura medieval as razões de sua longa existência e variedade de sua prática. Evidentemente, gostaríamos de ter explorado muito mais a fundo os aspectos da alquimia, estabelecer comparações entre alquimistas, destrinchar as narrativas fundamentalmente científicas desta doutrina tão variada e ainda inexplorada pelos historiadores. Todavia, nossas vontades devem ser limitadas para manter a coerência deste trabalho. Dentro do que pudemos ver, a alquimia ocidental se assentou em grande parte na influência de uma série de manuscritos de origem oriental e apócrifa. E, ao longo da Idade Média, as influências do cristianismo foram penetrando cada vez mais na doutrina e formando novas práticas alquímicas, com novas representações do mundo, como vimos pelos trabalhos de George Ripley. Nossa maior preocupação atual, que cresceu ao longo da redação do trabalho e das leituras feitas para ele, é mostrar como a alquimia – de forma geral – possuía um caráter essencialmente sincrético. Recebendo influências tanto orientais quanto ocidentais, de variadas culturas (não iremos hierarquizá-las), a doutrina alquímica conformou uma visão de mundo que estava intrinsicamente ligada à Idade Média e sua concepção cósmica de mundo. Por isso nossa oposição à historiografia que qualifica a alquimia como uma vertente ou uma fase pré-moderna da química. Embora discordemos dessa historiografia das ciências, acreditamos que seus trabalhos são fundamentais e devem continuar. A historiografia se constrói, sempre, em função das discordâncias teórico-metodológicas e mesmo pessoais entre os pesquisadores. Por muito tempo, a alquimia ficou relegada aos estudos fora da História e agora que ela está ganhando seu lugar, devemos fomentar o debate fornecendo sempre novas interpretações e mantendo-a viva na historiografia.

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