Alteridade e humanismo em Vieira

June 13, 2017 | Autor: Porfírio Pinto | Categoria: Padre Antonio Vieira
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Alteridade e humanismo em Vieira Porfírio José S. Pinto

Resumo: As «descobertas» e «conquistas» ibéricas dos séculos XV e XVI obrigaram a Europa a repensar a sua relação com o «outro», com uma «nova humanidade», nomeadamente com o «negro» e com o ameríndio. E se o negro-africano foi objeto de tráfico esclavagista,entre a aceitação geral e a inevitabilidade «para o bem das colónias», o «índio» americano esteve no âmago de um debate acerca de «direitos», que certamente conduziria às modernas declarações de «direitos humanos». O presente ensaio parte deste contexto geral, para se centrar na abordagem vieirina desta «nova humanidade». Palavras-chave: alteridade, direitos, humanismo, índios, negros, selvagem, Vieira.

Os descobrimentos construíram a humanidade. Vitorino Magalhães Godinho O chamado «selvagem» foi sempre um brinquedo para o homem civilizado... fonte de emoções fortes na teoria. Bronislaw Malinowski

O presente ensaio quer ser uma primeira abordagem – sem pretensão de exaustividade – à ideia de alteridade no padre António Vieira, situando esta no contexto do seu tempo, ou se quisermos num quadro evolutivo desse mesmo conceito. Na sua elaboração fomos estimulados por algumas leituras feitas no quadro do Seminário «Teorias e Metodologias da Cultura e da Comunicação» (FLUL), que brevemente mencionamos. Em primeiro lugar, pelo olhar antropológico de Marc Augé, na sua reflexão sobre o próximo e o alhures1, sobretudo nesse «alhures» pensado pelo «aqui» ocidental (europeu) que, em certo momento, o considerava «selvagem» e «primitivo», e, hoje, o olha ainda como «subdesenvolvido». Embora Augé pense todos os «outros», nós quisemos restringir-nos ao outro «exótico» (oposto ao idêntico, ao «nós») e étnico ou cultural (o outro dos outros, o «eles»). E esta reflexão poderia ainda ser aprofundada com aqueloutra de Slavoj Žižek acerca da tolerância multicultural2, que não é senão a ideologia de uma nova «colonização»: a colonização da multinacional. Aqui lidamos com uma nova forma de racismo, porque a tolerância do outro

1 Marc AUGÉ, Não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, Lisboa, 90º Editora, 2007, pp. 11-38. 2 Slavoj ŽIŽEK, Elogio da Intolerância, Lisboa, Relógio d'Água, 2006, pp. 71-79.

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«multicultural» se baseia ainda na consciência de superioridade (ainda eurocentrista) em relação ao outro: este é tolerado enquanto corresponde à idealização que fazemos dele (mas que, então, não é um verdadeiro «outro»); é objeto de intolerância quando se revela como verdadeiro outro (que pratica a clitoridectomia, usa a burca e pratica a tortura); e, por vezes, chega-se a tolerar o intolerável, quando se submete a dignidade humana a outros interesses egoístas. O segundo estímulo veio da leitura apaixonante de Luc Ferry acerca do «humanismo», e mais concretamente daquilo que ele chama o «primeiro humanismo», e que distingue do novo humanismo: o «humanismo do homem deus»3. De alguma modo, aquele «primeiro humanismo» é o contexto de elaboração da obra vieirina, e por isso era importante abordá-lo e compreendê-lo. Precisamente para tentar responder à questão que coloca Luc Ferry: tendo o primeiro humanismo descoberto que aquilo que caracteriza o homem é a sua liberdade, teria sido possível evitar a deriva colonialista? O primeiro ponto deste ensaio inscreve-se, portanto, neste enquadramento teórico: a compreensão do outro «exótico» e «étnico(-cultural)», no início da modernidade, e a sua possível relação com a reflexão acerca do homem, no humanismo nascente. Depois, abordaremos dois outros pontos, para considerar a questão do negro e do índio no padre António Vieira, não sem antes descrever brevemente o contexto da sua reflexão.

3 Luc FERRY, A Revolução do amor. Para uma espiritualidade laica, Lisboa, Circulo de Leitores, 2011, parte II (Moral), pp. 161-297.

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O «outro» e o «humano» no início da Modernidade

As «descobertas» e «conquistas» ibéricas dos séculos XV e XVI obrigaram a Europa a repensar a sua relação com o «outro», com uma «nova humanidade», nomeadamente com o «negro» – não só o africano, mas também o asiático – e com o ameríndio. E se o «negro» – sobretudo o africano – foi objeto de tráfico esclavagista, entre a aceitação geral e a inevitabilidade «para o bem das colónias», o «índio» americano esteve no âmago de um debate acerca de «direitos», que certamente conduziria às modernas declarações de «direitos humanos»4. Antes de entrar no tema propriamente dito, permita-se-nos esboçar um enquadramento teórico que nos ajude a compreender o que está/estava em jogo, para podermos avaliar em toda a sua dimensão a originalidade de Vieira.

A questão do «selvagem» O «extravasamento» europeu implicou a superação do estreito conceito de «orbis christianus» medieval, através do qual havia sido definida, anteriormente, a alteridade de dois «únicos grupos»: os «romanos» cristãos5 e os «infiéis» (Meihy 2000: 12). Os «infiéis» são, evidentemente, o gentio maometano, que era necessário vencer ou destruir, enquanto ameaça ao corpo universal (Pécora 2009: 52), mas também o gentio «selvagem», tido frequentemente como anticristão, e que, por isso, também deveria ser vencido (Woortmann 2005: 260s). É claro que o conceito de «infiel» é bem mais complicado, como mostra a triple distinção proposta pelo cardeal Cayetano, o mais notável comentador de S. Tomás de Aquino, e que teve grande impacto nos autores neotomistas do século XVI: 1) o grupo dos sujeitos, de direito e de facto, aos príncipes cristãos, que podem decretar contra eles leis benéficas à Igreja – como é o caso dos judeus, mouros e hereges; 2) grupos inimigos, de direito e de facto, que, estando fora da «orbe cristã», poderiam ser apresados por guerra – e seria o caso dos «negros» africanos e asiáticos; 4 Talvez seja errado falar de uma «única» declaração de direitos humanos. Com efeito, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (França) foi claramente precedida da Bill of Rights – também chamada «Ata de Declaração dos Direitos e Liberdades do Sujeito...» – de 1689 (Inglaterra) e da Virgina Declaration of Rights de 1776, seguida da United States Bill of Rights de 1789 (Estados Unidos). 5 Entenda-se «romanos» como uma referência ao Sacro Império Romano.

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3) grupos novos que, por não estarem, de direito e de facto, incluídos na «orbe cristã», não podiam estar sujeitos às mesmas regras – e onde se vão incluir os ameríndios (Meihy 2000: 14).

Como afirma Klaas Woortmann, na Idade Média existem «relatos etnográficos», «mas a leitura relativa a outros lugares, que não a Europa, tendia a girar em torno de monstros e maravilhas herdados da Antiguidade, e a certas categorias, como deserto e nomadismo, definidores de um estado/estádio selvagem» (2005: 260)6.

Este estado «selvagem» antigo tem duas expressões: a helénica e a hebraica. Para os gregos (e romanos), o «silvaticus» podia ser equiparado a um animal, a um ser da natureza, naturalmente «servo/escravo». Para os hebreus, o selvagem é, pelo contrário, o homem a quem Deus retirou a bênção – note-se a igualdade original –, e que degenerou a um estado inferior, ou seja, um ser «amaldiçoado». O Cristianismo teria combinado as duas formas, construindo a diferença entre os homens como expressão da corrupção da espécie (cf. Ibid., 261). Uma coisa é certa, a dificuldade em lidar com a alteridade fazia com que o não-cristão se torna-se, simplesmente, o «inimigo» a combater (o segundo grupo de Cayetano). Só com a descoberta do Novo Mundo, habitado e habitável, e o descentramento consequente (de um nós/outro para um nós/outros), se tornou possível o distanciamento necessário para uma etnografia e uma historiografia capaz de lidar com o outro (Ibid., 304). Este outro deixou de ser apenas o que Marc Augé chama de «outro exótico» (oposto ao idêntico, ao «nós»), abrindo-se ainda ao «outro étnico» (o outro dos outros, o «eles») (Augé 2005: 20).

Os direitos do «outro» O outro aspeto a ter em conta é o surgimento do que Luc Ferry chama de «primeiro humanismo», sob influência cristã (Ferry 2011: 185-196), mas que rapidamente se «seculariza» (Ibid., 197-249). Este «primeiro humanismo» – ou, simplesmente, na terminologia de outros autores, o «humanismo» – caracteriza-se pelo aparecimento de uma ética «republicana» (não no sentido de regime político, mas de res publica), que supera as duas anteriores: a aristocrática do mundo helénico (fundada sobre a «ordem» cósmica) e a teológica, judaico-cristã (fundada sobre a «lei» divina). Esta nova ética assenta sobre a humanitas, o homem colocado no centro da reflexão 6 Este aspecto era graficamente utilizado na cartografia das regiões limítrofes com a expressão latina «hic sunt leones».

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moral, e cujo principal debate diz respeito à distinção entre homem e animal7 (Ibid., 197). Na verdade, esta nova ética havia sido já preparada pelo Cristianismo, que situa a dignidade do homem mais na liberdade do que na natureza, e coube a Pico della Mirandola «descobrir» nesta liberdade a fórmula da singularidade humana, que vai fundar os conceitos essenciais da moral sobre a liberdade e a razão, os direitos humanos e a preocupação pelo interesse geral (Ibid., 200). Mas é precisamente aí que surge o problema «colonialista»: se a especificidade humana reside na liberdade, como lidar com as «sociedades sem história» (que antes eram chamadas sociedades «primitivas» ou «selvagens»), que são sociedades organizadas em torno de um objetivo central e específico (preservar as tradições), que se recusam a toda a forma de inovação e rechaçam voluntariamente entrar naquilo que as sociedades modernas têm por essencial (o processo histórico)? Para o «moderno» parecia haver unicamente duas hipóteses: estas sociedades recusam a evolução ou por «acidente» ou por «natureza». Se é por acidente, então, há que educá-las, «levar-lhes do exterior as Luzes da civilização»; mas se é «selvagem» por um «atraso da natureza», então, há que limitar-se a «criá-lo... no sentido agrícola [do termo], como se “cria” o gado, para fazermos dele escravo» (Ibid., 240s). A ética republicana (e iluminista), evidentemente, escolheu a primeira, e rejeita a segunda como «racista»: o homem não é um animal e, na sua situação de «atraso» cultural, é preciso educá-lo – como se educa um aluno –, «para que, sabendo ler e escrever, possa entrar na historicidade, fora da qual não há comunidade humana» (Ibid., 242). Esta perspetiva pode ajudar-nos a compreender os debates dos séculos XVI a XVIII, onde, não tenhamos ilusões, havia sempre o risco de «deslizar de uma lógica educadora do género humano para uma lógica pura e simplesmente racista» (Ibidem).

7 É curioso notar que, no quadro da ética aristocrática, o outro exótico ou étnico, em confronto com o nós, é tido de imediato como inferior e equiparado a um animal: pode ser «besta», «cão», «cachorro», «percevejo», «mula», «cabrito», etc.

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Vieira e os negros8

O selvagem «maldito» Segundo David Goldenberg (2003), o sentimento racista das sociedades ocidentais em relação ao negro tem a sua raiz no antigo Judaísmo. Segundo uma antiga lenda rabínica (Sanhedrin 108b), a cor negra da pele tem a ver com uma maldição divina a Cam, filho de Noé, por este não ter respeitado a ordem divina de abstinência sexual durante a estada na arca do dilúvio9. Entre os gregos, a cor escura da pele tinha uma explicação ambiental: era produzida, entre as populações do sul, por uma maior exposição aos raios solares. A lenda foi adotada, nos séculos VIII e IX, pelos escritores árabes e recebeu, posteriormente, no Cristianismo, uma conotação espiritual, pois os Padres da Igreja – e em particular Orígenes – associam, com frequência, a cor negra a pecado. Progressivamente, também, o sujeito da maldição deixou de ser Cam, para passar a ser Cuche (o antepassado dos negro-africanos, os «etíopes» bíblicos; os sūdān da literatura árabe), concentrando nele quer a maldição divina (ser negro), quer a maldição de Noé (ser escravo). Esta transformação progressiva, como defende Goldenberg, constitui uma «etnologização» do outro. No século III, a lenda fala de Cam – antepassado dos Cuchitas, Egípcios, Líbios –, porque se fundava na explicação etimológica popular, que fazia com que ham significasse «escuro», sendo, portanto, o antepassado de todos os de pele escura (castanha, negra, etc.). A designação de «cor escura» não deixa de ter um carácter etnocêntrico: de separação entre um «nós» (os de cor clara) e os «outros» (de cor escura). Durante a Idade Média, esse marcador étnico será alargado ao conjunto dos povos da «lista das nações» de Génesis 10, com um claro sentido gradativo: os descendentes de Jafé (europeus) são os de cor branca; os de Sem (semitas), de cor morena; os de Cam (africanos e asiáticos), de 8 Para uma maior precisão, deveria dizer-se Vieira e os «pretos», pois era assim que Vieira chamava os negro-africanos, reservando o termo «negro» para um grupo mais alargado de pessoas, em que incluía os ameríndios ou as populações asiáticas. 9 Embora Génesis 9,20-27 não diga que Cam seja negro, o facto é que, posteriormente, ele é apresentado como o antepassado de Cuche (Etiópia), Misraim (Egito), Put (Líbia) e Canaã (10,6), todos eles povos de tez escura. Todavia, no contexto do Médio Oriente antigo, convém ter presente que a «maldição» é uma maneira literária de explicar particularidades fisiológicas ou ambientais.

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cor negra. (Uma divisão semelhante encontra-se também no autor cristão árabe do século XIII Ibn al-Ibri, que dividia o mundo em «terra dos negros» [sūdān], «terra dos castanhos» [sumra] e «terra dos vermelhos» [šuqra].) O certo é que, entre os séculos IX e XI, a mudança de cor de Cuche, filho de Cam, passou a constituir uma espécie de «degeneração», sendo considerada uma «maldição» perpétua – doravante associada aos negro-africanos10. A esta perceção associou-se, como dissemos, a carga simbólica da cor negra, sobretudo em Orígenes. Na sua leitura alegórica da Bíblia, todos os etíopes vêm conotados com o pecado, e a Etiópia simbolizaria o não evangelizado e, espiritualmente, não redimido (ou seja, o mundo do pecado).

Vieira e o sofrimento do homem escravo A posição de Vieira em relação à escravatura dos negros – e contrariamente ao que acontece com os índios – toma contornos de assunto delicado. Mais do que delicado, é uma daquelas situações em que se torna difícil «afirmar princípios que pudessem ser aplicados», como observa judiciosamente Bruno C. Reis (1999: 142). António Vieira ter-se-á apercebido que «não seria possível manter a empresa colonial sem trabalho servil», sendo esta uma condição da atividade missionária nas novas terras e, portanto, a preparação da «Segunda Vinda de Cristo e o estabelecimento do Reino de Deus na Terra», um projeto grandioso, para que estava vocacionado Portugal. Porém, cada vez que se dirige aos negros – na série dos Sermões de Nossa Senhora do Rosário –, ele põe sempre de manifesto o seu horror face às condições de vida e de trabalho dos escravos negros. Na época não havia, evidentemente, um «movimento» abolicionista11 e a escravatura assentava sobre uma legitimidade aceite por todos, na base da célebre definição das Siete Partidas de Afonso X de Castela: embora considerada «a coisa mais perversa e desprezível» da humanidade, era admitida quando originada pela guerra justa, por venda própria ou por nascimento escravo (Souza 2006: 39). Poderíamos, talvez, inserir – ingenuamente – a atitude de Vieira na «ética jesuíta». Em 1552, numa carta enviada ao padre Simão Rodrigues, Manuel da Nóbrega «assumia o sucesso da empresa colonial brasileira baseada na educação das crianças indígenas», mesmo se para isso 10 São sintomáticos os escritos do autor árabe Ibn Hisham e do bispo cristão Ishodad de Merv. 11 No entanto, ao pronunciar-se acerca da completa «iniquidade» da escravatura, Vieira poderia ser tido como um dos precursores de dito movimento (Reis 1999: 151), como aliás o defende Ivan Lins (apud Meihy 2000: 21).

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fosse necessário «ter escravos negros que mantivessem o sustento dos colégios» (apud Meihy 2000: 19). E, em 1611, Luís Brandão, reitor do colégio jesuíta de Luanda, escrevia a Alonso de Sandoval, dizendo que «os jesuítas, ali e no Brasil, compram escravos para seu serviço sem nenhum escrúpulo» (apud Souza 2006: 42). Mas, não. Pensamos que haveria que inscrever Vieira na linha de Las Casas e Molina. Las Casas, que durante muito tempo sustentou que seria melhor para todos (colonos e Coroa espanhola) substituir os índios por escravos negros no trabalho das minas, mudou completamente de opinião no final da vida, afirmando ter tomado consciência de que «[os negros] foram injusta e tiranicamente feitos escravos, porque a mesma razão é deles que dos índios» (História, lib. III, c. 102; cit. in Cerdán 2005: 121). E na Brevíssima relação refere-se à «cegueira que recaiu sobre os cristãos mundanos e que os leva a crer que, “por serem infiéis os não batizados”, lhes era lícito assaltá-los, roubá-los, cativá-los e matá-los» (cit. in Souza 2006: 33). Também Molina se insurge, claramente, contra a escravatura negra: «É claramente para mim muitíssimo verdadeiro que este negócio de comprar escravos naqueles lugares de infiéis e de os exportar de lá é injusto e iníquo e que todos os que o praticam pecam mortalmente e ficam em estado de condenação eterna, a menos que escusados por ignorância invencível, na qual nunca ouvi afirmar que estivessem...» (cit. in Hespanha 2001: 956s).

Não podemos esquecer-nos – como observa Meihy – que Vieira tem sangue negro nas veias e é tocado pela condição de sofrimento dos escravos. E, diríamos ainda, é um espírito «moderno», humanista, que se insurge contra a antiga ética aristocrático-legalista. Para ilustrálos, basta evocar três passagens de três sermões diferentes, da série de Nossa Senhora do Rosário (cf. Berardinelli 2008; Meihy 2000). No primeiro sermão que fez aos negros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (o XIV), não sendo ainda ordenado, é curioso como não alinha com a conceção que faz dos negros descendentes de Cam (como, por exemplo, Sandoval) – e, portanto, «malditos» –, mas prefere uma leitura espiritual que o leva a afirmar o seu nascimento de Maria, «De maneira que vós, pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo, e na estimação dos homens, por vosso próprio nome, e por vossa própria nação, estais escritos e matriculados nos livros de Deus, e nas Sagradas Escrituras: e não com menos título, nem com menos foro, que de Filhos da Mãe do mesmo Deus» (cit. in Berardinelli 2008: 4).

Vieira quer sublinhar a «fraternidade» de todos, em Cristo, do qual, na sua miserável condição, eles são imitadores: «Imitadores de Cristo crucificado, porque padeceis num modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa num engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte

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foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoutes, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio» (Ibid., 5).

Num outro sermão (o XX), comentando a divisão entre «irmandades», reforça a ideia de fraternidade – desta vez recorrendo ao texto bíblico dos filhos de Jacob (uns filhos da mulher livre e outros da escrava) – com aqueloutra de «igualdade» original: todos os homens são filhos de Adão, tendo sido criados por Deus, e são eles que se «desigualuam»: «Quem negará que são filhos daquele primeiro soberbo [Adão], o qual, não reconhecendo o que era, e querendo ser o que não podia, por uma presunção vã se perdeu a si e a eles? Fê-los Deus a todos de uma mesma massa, para que vivessem unidos, e eles se desunem; fê-los iguais, e eles se desigualam: fê-los irmãos, e eles se desprezam do parentesco; e, para maior exageração deste esquecimento da própria natureza, baste o exemplo que temos presente» (Ibid., 6).

Vieira tem certamente em mente a antiga lenda que faz dos negros filhos de Cuche (o etíope), inferior e maldito! Por isso não se cansa de sublinhar a «igualdade» original, e vai ao ponto de fazer dos etíopes descendentes de David, evocando aqueloutra lenda que diz que a rainha de Saba teve um filho de Salomão, posteriormente coroado como rei dos etíopes. Partilhando estes o mesmo destino de Cristo, que também é filho de David. Por último, num terceiro sermão (o XXVII), Vieira compara o comércio negreiro ao êxodo israelita: enquanto os israelitas cruzaram o Mar Vermelho em busca de liberdade, os negros atravessaram o Atlântico para serem cativos. Ao mostrar incansavelmente os maus tratos de que são vítimas, Vieira quase chega a sugerir que concorda com a sua libertação... passando nesse momento para o patamar da espiritualidade: o corpo do negro é escravo do senhor do engenho, mas não a sua alma; a sua alma é livre, e serva unicamente de Deus (Meihy 2000: 24-25). Apesar desta abertura humanista, Vieira é um homem do seu tempo e comunga daquela conceção generalizada que vê, nos negro-africanos, o gentio «selvagem» inimigo da orbe cristã, vivendo num estado de perdição (cf. Woortmann 2005: 260). Por isso, Vieira, no Sermão XIV da série de Nossa Senhora do Rosário, diz que uma das principais obrigações do negro é agradecer a Deus, por ter sido tirado da terra onde seus pais viviam (e morriam) como gentios, e ser trazidos à colónia portuguesa, onde são instruídos na fé cristã, e salvos: «Oh! Se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada no Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, é não é senão milagre, e grande milagre? Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem conhecimento de Deus, aonde cão depois da morte? [...] vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade» (cit. in Berardinelli 2008).

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Enfim, já quase no final da sua vida, em 1691, com mais de oitenta anos, é dele um parecer arrasador defendendo a destruição do Quilombo de Palmares. Um outro sacerdote era de opinião que se concedesse a liberdade aos palmarinos (que resistiam há quase cem anos). Vieira pondera a possibilidade de aldeamentos negros, sob concessão real, para que neles pudessem viver em liberdade, à semelhança dos índios, mas acrescenta sarcástico: «Porém, esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque, conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros Palmares, fugindo e passando aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo» (cit. in Lara 2010: 20).

Vieira continua «realista»: não é possível manter a colónia sem trabalho servil, e quem diz a colónia diz o projeto de Portugal, a saber, o estabelecimento do Reino de Deus na Terra.

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Vieira e os índios americanos

O «bom selvagem» Se o negro já era conhecido na Europa, o índio americano foi uma completa «novidade», como eram novidade as terras recém-descobertas. Ao chegar ao «Novo Mundo», Colombo e seus companheiros ficaram impressionados com os habitantes destas paragens: andavam nus, dormiam no chão, não conheciam a religião nem as armas, e eram bondosos por natureza. Causava admiração a sua nudez inocente e a vida simples que levavam. Esta primeira imagem, algo idílica, está na base da posterior idealização do índio como «bom selvagem». Por outro lado, a descoberta destas terras foi acompanhada pela ambição do lucro. Colombo, particularmente, era muito ambicioso e pouco escrupuloso. Apesar da admiração inicial frente ao índio, depressa buscou proveito do seu atraso cultural. Começou a enviar os indígenas para Sevilha, onde seriam vendidos como escravos, o que provocou estranheza na rainha Isabel, a Católica, que procurou saber da liceidade desse procedimento. Mandou suspender dito comércio e, em 1500, ordenou a libertação de todos os índios vendidos como escravos em Espanha, decretando o seu regresso à América na frota de Bobadilla, encarregado de averiguar o comportamento de Colombo, trazendo-o preso para Espanha, para ser julgado (Santillana 2009: 6-12). O atraso técnico e cultural dos ameríndios levou mais de um a julgar que eram como «bestas», não totalmente humanos, e que poderiam servir de mão de obra na exploração das riquezas americanas. Os reis, por seu turno, estavam plenamente conscientes da sua obrigação (que constava da Bula papal que reconhecia o seu domínio sobre as novas terras) de evangelizar os novos povos. Por isso, para responder aos interesses lucrativo dos colonizadores e evangelizador dos reis, criou-se a instituição da encomienda, que também se tornou bastante lucrativa para a Coroa: tratava-se de um arranjo contratual, que consistia na submissão de um número variável de indígenas «pagadores de impostos» a um encomendero, responsável por viabilizar a sua incorporação ao sistema cultural, económico e social europeu; ou seja, o encomendero obrigava o indígena a um trabalho ou «tributo» que, inicialmente, era remunerado, mas, depois, passou a ser simples «corveia», provendo-lhe, em contrapartida, instrução religiosa, 11

alimentação e proteção. Este sistema rapidamente degenerou, dando origem a múltiplos abusos da parte dos encomenderos, que tratavam os indígenas como escravos (Ibid., 13s).

As Leis de Burgos (1512) e os direitos dos índios No Advento de 1511, os Dominicanos, recém-chegados a La Española, insurgiram-se contra a exploração dos índios pelos encomenderos (no célebre sermão de Montesinos, a que assistiu Las Casas, ele próprio um encomendero). A polémica entre Dominicanos e encomenderos instalou-se durante mais de um ano, altura em que o rei D. Fernando convocou a Junta de Burgos, onde teve papel determinante Matias de Paz, catedrático da Universidade de Salamanca, para quem o índio é um ser humano titular de direitos, um conceito que se tornou fundamental para a «escola de Salamanca». A Junta de Burgos chegou às seguintes conclusões (Ibid., 18-19): 1) Os índios são livres e devem ser tratados como tais, segundo o que ordenam os Reis [de Espanha]. 2) Os índios hão de ser instruídos na fé, como mandam as Bulas pontifícias. 3) Os índios têm a obrigação de trabalhar, sem que isso estorve a sua educação na fé, e de modo que seja proveitoso para eles e para a república. 4) O trabalho realizado pelos índios deve ser conforme à sua constituição, de maneira que o possam suportar, e será acompanhado de horas de distração e de descanso. 5) Os índios terão casas e fazendas próprias, e devem ter tempo para cultivá-las e mantê-las. 6) Os índios hão de ter contacto e comunicação com os cristãos. 7) Os índios hão de receber um salário justo pelo seu trabalho.

Uma autêntica declaração de direitos, onde não faltam o direito de propriedade, o direito ao descanso e ao divertimento, bem como o direito a um salário12! A partir de 1514, os índios vão ganhar um grande defensor, Bartolomeu de las Casas, que renunciou à sua encomienda e que, três anos mais tarde, seria nomeado «Procurador dos Índios», batendo-se por eles até ao final sua vida (Souza 2006). Por outro lado, a «escola de Salamanca» desenvolveria uma fecunda reflexão sobre o «direito das gentes», na base do moderno direito dos povos e dos próprios direitos humanos (Santillana 2009).

Na tradição de Las Casas 12 As Leis de Burgos são completadas pelas Leis de Valladolid (1513), acerca das condições laborais das mulheres e crianças indígenas.

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O padre António Vieira, não tenhamos dúvidas, insere-se perfeitamente na tradição de Las Casas (ver Teglia 2009) na sua denúncia dos esclavagistas e defesa ardente dos índios. Além do conhecimento que tinha da reflexão filosófico-antropológica da segunda escolástica, que ele usa por exemplo no Voto sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo, de 1694 (ver Calafate 2009; cf. infra), ele terá contribuído enormemente para a promulgação das Leis de 1655, através dos seus sermões em que a defesa dos índios é mais manifesta, e que são precisamente daqueles anos, mas também pela correspondência com o rei D. João IV, nesse mesmo ano (Sousa 2002: 3s). Muito brevemente, vamos evocar apenas algumas passagens da recolha feita por Cleonice Berardinelli. No Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (1653), comentando as tentações de Cristo, Vieira denuncia a avidez dos colonos, a quem não é preciso tentar com grande coisa, pois apenas estão fixos na exploração dos índios. Depois, passando ao livro de Isaías, o orador/profeta faz eco do profeta bíblico para denunciar os crimes dos «cristãos» colonos, que fazem injustamente cativos os índios: «Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos» (Berardinelli 2008: 11). E fazendo, praticamente, eco do célebre sermão de Montesinos, acrescenta: «Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos ides direitos ao inferno. (…) Um povo inteiro em pecado? Um povo inteiro ao inferno? Quem se admira disto, não sabe que coisas são cativeiros injustos. (…) Ide à Turquia, ide ao inferno, porque não pode haver turco tão turco na Turquia, nem demónio tão endemoninhado no inferno, que diga que um homem livre pode ser cativo» (Ibidem).

E, no Sermão de Santo António aos Peixes (1654), permanece a mesma preocupação de denúncia, apresentando argumentos contrários às grandes propriedades senhoriais, ao comparálas aos grandes peixes que necessitam de muitos peixinhos para se alimentarem. Enfim, na capital do Reino, prega, entre outros, o Sermão da Epifania (1655), onde demonstra a necessidade da Coroa em reconhecer a condição humana do índio e do escravo, através da analogia com os três reis magos, que representam a união dos continentes e dos povos: o africano, o asiático e o europeu. Apesar disso, nalguns sermões, o índio parece ser «inferiorizado», e afastar-se daquela visão idílica de Las Casas ou do «bom selvagem» dos missionários Capuchinhos. Este aspeto merece uma análise específica. O índio «boçal» de Vieira O mito do «bom selvagem», que surgiu na segunda metade do século XVI, é uma espécie 13

de «nostalgia das origens» – da condição edênica, posteriormente perdida devido ao pecado. E enquanto os Capuchinhos (na esteira de André Thévet) idealizavam o topos da inocência indígena, sublinhando a sua predisposição para receber o Evangelho (o «sauvage convertible»), os calvinistas, seguindo a posição de Jean de Léry, que aderira à teoria camita13, pelo contrário, são mais avessos à convertibilidade dos nativos. António Vieira – e os Jesuítas portugueses – não parecem partilhar estes conceitos, aderindo ao temário e posição dos tratadistas espanhóis da segunda escolástica (Pécora 2009: 50s), para quem: 1) está fora de qualquer questionamento o conceito de dignidade e liberdade dos índios; contra a posição de Quevedo e Sepúlveda, que aplicavam ao índio a categoria aristotélica do «servo por natureza», incapaz de governar-se; 2) o índio está apto a pertencer ao grémio da Igreja, e deve ser feito um esforço pela sua conversão (finalidade principal das Descobertas e da Conquista); 3) cabe ao rei cristão integrar o indígena no corpo político, enquanto súbdito naturalmente livre, e uma segunda vez liberto graças à sua conversão. E tal como aqueles tratadistas espanhóis, Vieira não adere à idealização do índio como «bom selvagem». O «índio jesuíta», como lhe chama Pécora, vai permanecer «boçal», «bárbaro» (= selvagem), «vil», «preguiça» e «negro» (a não confundir com «preto»)! Porém, esta descrição do índio é mais retórica do que «real». Não é intenção de Vieira atribuir pouco crédito à aptidão e natureza do índio – o que, segundo Sepúlveda, aconselharia e legitimaria uma política de «guerra justa», que os reduza a uma situação de cativeiro, e os separe de um meio de costumes viciosos –, mas, sim, «acusar uma ausência de constância na fé entre os próprios cristãos da província [do Brasil]», que tinham a obrigação de velar pela conversão dos nativos, e também «fazer a apologia da provação experimentada pela Companhia [de Jesus], cujos soldados apenas são capazes, por indústria e graça, de abrandar aqueles brutos...» (Ibid., 57). A «boçalidade» do índio é, portanto, uma argumentação que condena a política dos colonos, que descura a catequese indígena, e exalta a persistência e valor da Companhia de Jesus. Esta «boçalidade» é evocada em relação a três aspetos. Em primeiro lugar, a «escuridade da língua», que se refere tanto ao facto de serem desconhecidas, como «desorganizadas» e «sem articulação». Este aspeto sublinha a dificuldade 13 Como vimos em relação ao negro-africanos, também os índios seriam «objeto de uma maldição particular que se adicionou à do pecado original, comum a todos os homens» (Histoire d'un voyage, p. 120; cit. in Daher 2010: 13).

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encontrada pelos jesuítas na aprendizagem das línguas nativas, mas também à necessidade de lançar os alicerces para uma boa educação: «A língua geral de toda aquela costa carece de três letras: F, L, R; de F, porque não tem fé, de L, porque não tem lei, de R, porque não tem rei: e esta é a polícia da gente com que tratamos» (Sermão da Epifania, cit. in Ibid., 54). Em segundo lugar, o «excesso de docilidade», uma característica bem conhecida na argumentação dos defensores dos índios, contra aqueles que os acusavam de crimes contranatura (canibalismo e sacrifícios humanos). Porém, em Vieira, recebe uma conotação negativa e é relacionado com a resistência à conversão. Apesar da aparente facilidade com que tomam a lição de doutrina, esta não é senão uma maneira de se esquivar a ela. Por isso a necessidade da permanência do jesuíta junto a ele, porque a sua adesão à fé requer contínua e assídua correção. Por último, o aspeto da «má qualidade da gente» – «a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconsistente, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo» (Sermão do Espírito Santo, cit. in Ibid., 57). Esta caracterização, que parece bem negativa em relação ao índio, é uma artimanha retórica de Vieira, que prega à Corte portuguesa: «quanto mais disforme for a boçalidade dos gentios […], tanto mais presta um testemunho casto da pura fé, paciente amor e virtuosa arte dos missionários que os reduzem, sem escravizá-los, à cordura da grei de Cristo» (Ibid., 58). O exagero das dificuldades encontradas com os índios redunda a favor dos Jesuítas que cuidam deles.

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Conclusão

A descoberta do Novo Mundo e o contacto permanente com «outros povos», depois de um longo período de «fechamento» da orbe cristã, cercada pelo gentio maometano, estão certamente na base da evolução do conceito de alteridade na Idade Moderna, do «outro exótico» e «selvagem» para o «outro étnico» (e cultural), para usar as expressões de Marc Augé. E este processo acontece, precisamente, no mesmo momento em que se desenvolve o pensamento humanista, centrado cada vez mais, a partir de Pico della Mirandola, no específico humano: a liberdade, a que será associado o outro conceito «irmão» – a igualdade. Desta dinâmica brotarão os «direitos humanos» e a preocupação pelo «interesse geral» (a res publica). Foi neste horizonte que abordámos a questão da alteridade – e humanismo – no padre António Vieira, mormente em relação ao negro-africano e ao índio americano. Embora seja consciente de que a escravatura dos «pretos» é injusta, e que a sua situação sociopolítica devia ser idêntica à dos índios (cf. Parecer sobre o Quilombo de Palmares) – ou seja, a possibilidade de também eles poderem viver em aldeamentos –, Vieira não se atreve a exigir a sua «libertação», pois a empresa colonial – unida ao grande projeto de Portugal de instauração do Reino de Deus na Terra – não subsistiria. Deste modo, Vieira mais não faz do que manifestar «compaixão» pelo sofrimento dos escravos negros, sublinhando sempre a sua dignidade fundamental: eles são, antes de mais, filhos de Deus, e por isso iguais a todos os outros homens; depois, são imitadores de Cristo, que também se fez «servo» e sofreu por todos nós. Por último, ainda que privados da liberdade corporal, faz deles homens livres espiritualmente (a alma não é escrava). Vieira, ao contrário de muitos de seu tempo, jamais evoca a lenda camita, que fazia dos negros gente «degererada» e duplamente «maldita» (pela cor da pele e pela servidão perpétua). Em relação aos índios, Vieira situa-se na tradição da denúncia dominicana da injusta exploração indígena, de Montesinos a Las Casas, sendo também perfeitamente consciente do desenvolvimento do «direito das gentes» pela escola de Salamanca. Não deixa, porém, de ser curiosa a caracterização da «boçalidade» indígena (que poderíamos julgar contrária à tradição lascasista). Esta postura, que Alcir Pécora chama de «o índio jesuíta», pretende tão-só realçar o 16

valor dos soldados da Companhia fundada por Inácio de Loiola, que «deixaram as universidades europeias» para cuidar pacientemente dos «preguiças do Brasil» (cf. Sermão da Epifania). Em nosso entender, ela manifesta também um certo «paternalismo» dos Jesuítas, que está na origem das famosas «reduções» indígenas, instauradas para um contínuo cuidado – e educação – dos nativos. Neste sentido, foi revelador o enquadramento teórico que emprestámos a Luc Ferry. Enquanto, para o colono, o índio era um «selvagem» sub-humano, culturalmente «atrasado», que era necessário «criar», e escravizar, legitimamente; para o «humanista» moderno, o «atraso» é meramente acidental, e haveria que cuidar dele e educá-lo, para que incorpore a Igreja e o Reino cristão.

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