Alteridades em fricção: Discursos e identidades na prevenção de dst/aids entre travestis

July 21, 2017 | Autor: Rodrigo Borba | Categoria: Language and Gender, HIV and AIDS education, Applied Linguistics
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Rodrigo Borba

ALTERIDADES EM FRICÇÃO: Discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.

Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes

Rio de Janeiro 2008

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Rodrigo Borba

ALTERIDADES EM FRICÇÃO: Discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Lingüística Aplicada.

Orientador: Professor Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes

Rio de Janeiro 2008

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B726a

Borba, Rodrigo Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis / Rodrigo Borba. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. 170 f.; il.

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2008. Bibliografia: f.152-166

1. Lingüística aplicada. 2. Análise do discurso. 3. Travestis. 4. AIDS (Doença) -Prevenção. 5. Identidade Sexual. 6. Sexualidade I. Lopes, Luiz Paulo da Moita. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título. CDD 418

Esta dissertação foi financiada com recursos do Governo Federal, via Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Alteridades em Fricção: Discurso e Identidades na Prevenção De DST/AIDS entre Travestis

Rodrigo Borba

Orientador: Luiz Paulo da Moita Lopes

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada.

CONCEITO:

Aprovada por:

_______________________________________________________________ Presidente, Profº Doutor Luiz Paulo da Moita Lopes, UFRJ

_______________________________________________________________ Profa Doutora Maria das Graças Dias Pereira - PUC-Rio

_______________________________________________________________ Profa Doutora Branca Falabella Fabrício – UFRJ

______________________________________________________________ Profa Doutora Ana Cristina Ostermann – UNISINOS

______________________________________________________________ Profa Doutora Myriam Brito Correa Nunes – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

Nenhuma pesquisa é feita em um vácuo social. Como tal, múltiplas redes de apoio intelectual, emocional e financeiro possibilitaram a elaboração da presente dissertação. Gostaria de aqui expressar meus agradecimentos às pessoas e instituições que, em maior ou menor grau, serviram de suporte à realização da pesquisa aqui apresentada. Agradeço, primeiramente, à equipe da ONG Liberdade e às travestis que nela trabalham, procurando, arduamente, a melhoria da vida das transgêneros profissionais do sexo na cidade onde realizei trabalho de campo. Com elas aprendi que toda e qualquer diferença é valiosa. Ao meu orientador, Luiz Paulo da Moita Lopes, pelo apoio e pela confiança depositada em mim. Entre “broncas carinhosas”, discussões, orientações, trocas de emails e muitas risadas construímos, conjuntamente, um trabalho do qual muito me orgulho (e espero que ele também). Ao corpo docente do Programa Interdisciplinar de Lingüística Aplicada, em especial às professoras Branca Falabella Fabrício e Myriam Nunes que, com sábios conselhos e palavras afáveis em momentos muito difíceis, me serviram de exemplo e inspiração pessoal e acadêmica. Agradeço às professoras Branca e Myriam por terem aceitado participar de minha banca examinadora.

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À Simone Rolim de Moura, que mesmo à distância, sempre foi um porto seguro no qual pude desabafar as angústias e compartilhar aprendizados. Uma amiga sempre disposta a ajudar, apoiar e aconselhar em momentos muito importantes. Não poderia deixar de mencionar as outras mulheres da família Rolim de Moura, Adelaide (in memoriam), Neila e Neusa, que, como uma segunda família, sempre se puseram dispostas a apoiar meus passos acadêmicos e pessoais. A Otávio Rios Portela, com quem compartilhei uma das épocas mais significativas da minha vida. Entre passeios pelo Flamengo, jantas no Largo do Machado e turismo pela Cidade Maravilhosa, aprendemos a lidar com nossas diferenças regionais e cientificas e nos tornamos, de facto, grandes amigos. Agradeço também aos alunos e alunas da turma de mestrado de 2006/1, em especial à Ana Paula Loureiro, Milena Ximenes, Leda Boaventura e Petrilson Pinheiro. Não posso deixar de mencionar os/as outros/as participantes do projeto Salinguas, Paula, Natalia, Tatiana. Agradeço especialmente a Thiago Simões e a Ana Paula Loureiro pela ajuda indispensável com as questões burocráticas da UFRJ. Aos “guris” da república 404, Bucker, Macaé e Sagüi, que foram parte importante na realização desta dissertação, pela amizade e pela paciência para agüentar os maushumores sulfúricos de um gaúcho perdido no Rio de janeiro. À Cândida Rosa, corajosa e determinada, que me acolheu, de modo inusitado, em sua casa e se tornou uma grande amiga. A Nélio Giorgini agradeço pelo emprego e pelas muitas risadas entre uma aula e outra, sem as quais minha estada no Rio teria sido muito mais difícil, quiçá impossível.

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Ao professor Pedro Garcez (UFRGS) por me acolher em sua disciplina Lingüística e Ensino, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde realizei minha capacitação docente. À professora Guacira Lopes Louro (UFRGS) pela acolhida calorosa e pelas discussões sempre muito enriquecedoras nas frias tardes de quarta-feira na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do sul. À professora Maria das Graças Dias Pereira (PUC-Rio) por ter aceito fazer parte de minha banca examinadora. À professora Ana Cristina Ostermann (UNISINOS) por acreditar, desde o princípio, na pesquisa e por ter aceitado o convite para ser uma das avaliadoras desta dissertação. Sou grato pelo apoio e por todo aprendizado sobre como fazer pesquisa em Linguagem e Gênero, sem o qual, minha entrada na UFRJ não teria sido possível. Acima de tudo, agradeço as minhas mães, Rosalina e Duda, e meu pai, Laerte que com simplicidade, trabalho e determinação souberam superar a saudade e as dificuldades que minha mudança para o Rio de Janeiro motivaram. Minhas mães e meu pai me serviram de apoio incondicional para superar as dificuldades durante a elaboração da pesquisa e do mestrado. A elas e a ele dedico esta dissertação.

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Provavelmente, quanto maior é a diferença, maior será a igualdade, e quanto maior é a igualdade maior a diferença será [...] (Saramago, 1997, p. 97)

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RESUMO BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.

Nesta dissertação, investigam-se as dinâmicas discursivo-identitárias emergentes de eventos de fala co-construídos entre travestis que se prostituem em uma cidade do sul do Brasil e mulheres ativistas na prevenção de DST/AIDS. Através de uma perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003), o estudo investiga os processos de construção, re-construção, negociação, renegociação e administração de diferenças (percebidas ou construídas) entre as interagentes.As interações sob escrutínio ocorreram durante intervenções que visam à prevenção de DST/AIDS nas áreas de prostituição travesti. Foram gravadas 5 intervenções com uma média de 12 abordagens por intervenção – um total de 60 interações com aproximadamente 8 horas de gravação. Mais especificamente, com base no modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), analisam-se as táticas de intersubjetividade construídas entre as participantes no processo interacional que coloca suas identidades em fricção. As interventoras, indivíduos que têm se construído em categorias identitárias tradicionais, ao se depararem com as posições de sujeito socialmente marginalizadas das travestis (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), engajam-se em processos locais e seqüenciais de composição e re-composição de relações identitárias com suas interlocutoras. Esses processos são co-construídos entre travestis e interventoras durante as interações. As participantes desses eventos discursivos empregam táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ E HALL, 2004) para (i) autenticar a identidade e (ii) autorizar social e institucionalmente a produção de gênero das travestis, e para (iii) minimizar as barreiras sociais, i.e. gênero e poder institucional, que as diferenciam. Por meio de posicionamentos (DAVIES & HARRÉ, 1990), alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974), as interlocutoras parecem assumir discursivamente identidades que não fazem parte de seu repertório (KROSKRITY, 2000) cotidiano. Assim, as interagentes parecem engendrar um processo de empoderamento das performances de identidades das travestis. As análises apontam para o caráter fluido, multifacetado, fragmentado e sempre movente das identidades sociais que, em interações nas quais identidades díspares se tencionam, recompõem-se constantemente na administração das diferenças entre interlocutores/as. Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada, aproximando essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS.

Palavras-chave: identidades em fricção; gênero; intersubjetividade; travestis; prevenção de DST/AIDS

sexualidade;

táticas

de

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ABSTRACT BORBA, Rodrigo. Alteridades em fricção: discurso e identidades na prevenção de DST/AIDS entre travestis. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação de Mestrado (Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.

This thesis investigates the discursive and identity dynamics that emerge from speech events co-constructed between travestis who work as sex professionals and two female safer-sex outreach workers in a Southern Brazilian City. Guided by a socioconstructionist perspective on the relations between discourse and social identities (MOITA LOPES, 2003), the study analyses the processes of construction, reconstruction, negotiation, re-negociation, and management of (perceived or constructed) differences among the interlocutors. The interactions under scrutiny are drawn from safer sex outreach work in the prostitution areas of travestis in the city. Five outreach visits to these areas were audio-recorded with an average of 12 approaches in each – totalizing 60 interactions and approximately 8 hours of recordings. More specifically, following Bucholtz and Hall (2003, 2004, 2005), I analyse the tactics of intersubjectivity produced by the interlocutors in the interactional process that put their differing identities in friction. The female outreach workers, individuals who have positioned themselves in traditional identity categories, when faced with travestis’ marginalised subject positions (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007) engage in local and sequential processes of (re)construction of identity relations with their transgendered interlocutors. These processes are co-constructed by travestis and the safer-sex outreach workers. The participants of the discursive events under scrutiny make use of tactics of intersubjectivity (BUCHOLTZ & HALL, 2004) (i) to authenticate the travestis’ identity and (ii) to authorize socially and institutionally the production of their gender performances, and (iii) to minimize the socio-cultural barriers that make them different. Through discursive positionings (DAVIES & HARRÉ, 1990), code switching (BLOM & GUMPERZ, 2002) and frame (GOFFMAN, 1974) the interactants seem to discursively take over identities that are not part of their daily identity repertoire (KROSKRITY, 2000). With this plethora of discursively produced identities, the interlocutors seem to engender a process of travestis’ identity performance empowerment. The analysis indicates that identities are always fluid, multilayered, fragmented and changeable. This flexibility of social identities is highly visible in interactions that put differing identities in tension, bringing about the necessity of constant re-makings of subject positions to administrate the differences among interlocutors. The study also advances a theoretical and methodological suggestion to widen the analytic lenses of Applied Linguistics, trying to bring this area of research closer to a relatively under-studied context in Brazil: SDT/Aids prevention.

Key-words: identities in friction; gender; sexuality; tactics of intersubjectivity, travestis; STD/AIDS prevention

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Michelly ensinando Sandra a utilizar seu corpo na batalha

p. 121

Figura 2 - Sandra (à esquerda) tentando imitar a travesti Michelly (à direita) exibindo suas formas corporais

p. 121

Figura 3 – Sandra e Adriana exibindo seus novos seios

p. 170

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CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO

As convenções para as transcrições foram adaptadas de Du Bois, Schuetze-Coburn, Paolino & Cumming (1992) e são as seguintes:

MAIÚSCULAS

volume maior

,

entonação continuada

.

entonação decrescente

?

entonação crescente

[ ]

sobreposição de fala

-

palavra truncada

--

sentença truncada

=

falas engatadas

::::

som prolongado

>fala<

fala mais rápida



fala mais lenta

(0.0)

tempo em segundos durante o qual não há fala

(( ))

informações fáticas sobre a interação

XXXX

parte de fala inaudível; cada X representa mais ou menos uma sílaba

Falante:

no início de um turno de fala identifica a falante

@@@

risos

*

entrega de preservativos

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... p. 15 1. A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA ......... p. 28 1.1. Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados........................ p. 32 1.2. A construção do ativismo político das travestis................................................... p. 38 1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política de travestis no Brasil .......................................................................................... p. 39 1.2.2. As intervenções: alteridades em fricção na batalha................................................................................................................. p. 44 1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo seguro: uma relação necessária ........................................................................................... p. 49 2. DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................................................. p. 54 3. (RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO: AS TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE ........................................................ p. 63 3.1. As táticas de intersubjetividade ........................................................................ p. 65 3.1.1. Adequação e distinção............................................................................ p. 68 3.1.2. Autenticação e desnaturalização............................................................ p. 71 3.1.3. Autorização e deslegitimação................................................................. p. 75 3.2. As ferramentas para a interpretação das táticas.............................................. p. 78 3.2.1. Enquadre................................................................................................ p. 79 3.2.2. Posicionamentos discursivos................................................................. p. 82 3.2.4. Alternância de códigos........................................................................... p. 84

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4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS, TRAVESTIS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA PREVENÇÃO DE DST/AIDS ............. p. 89 4.1. O enquadre ‘intervenção’: institucionalidade das interações......................................................................................................... p. 90 4.2. Quando o tradicional defronta-se com o não tradicional: a construção discursiva de identidades de interventoras e travestis.................... p. 93 4.2.1. Semelhança suficiente: adequação às travestis.................................. p. 95 4.2.1.1. As flutuações identitárias das travestis: desestabilizando as construções de identidades das interventoras.............. p. 111 4.2.2. Autenticação da identidade travesti..................................................... p. 116 4.2.3. Distinção, desnaturalização e deslegitimação..................................... p. 133 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ p. 136 5.1. Implicações para a Lingüística Aplicada....................................................p. 140 5.2 Implicações para o estudo de identidades sociais......................................p. 143 5.3 Implicações para o estudo de transgêneros...............................................p. 148

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................... p. 152 ANEXO 1............................................................................................................. p. 167 ANEXO 2............................................................................................................. p. 170

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INTRODUÇÃO

A inserção das travestis no cotidiano: alteridades em fricção

Cena 1

Copacabana, inverno carioca (35 graus!), ansioso a esperava para nosso primeiro encontro. Conhecia sua voz, já havíamos conversado por telefone para discutir os detalhes: hora (17:00) e local (Quiosque Rainbow, em frente ao luxuoso Copacabana Palace) sugeridos por ela. Um dia avermelhado, morno, corpos pavoneavam nas areais da praia. Quando a vi, algum tipo de senha absolutamente indecifrável, me indicou: Valquíria.1 Caminhava resoluta em minha direção (talvez tivesse me identificado através do mesmo tipo de senha que, misteriosa, me ajudou a reconhecê-la): sorriso largo e fácil, seios voluptuosos, fartas ancas, andar lânguido, pleno de leveza, tudo isso displicentemente decorado por um vestido preto (bá-si-co!) com amplo decote. Cumprimentamo-nos e sentamos em uma das mesas dispostas irregularmente por volta do quiosque. Rodeados por clientes do bar, transeuntes e banhistas, Valquíria me contava sobre sua vida. Descobrira-se travesti muito cedo (13 anos!), já não mais se prostituía depois de uma rentável temporada na Europa. De volta ao Rio de Janeiro, trocara o subúrbio, por Copacabana – bairro que diz amar por sua concentração de todos os tipos de pessoas. Mantinha dupla jornada de trabalho: como 1

Por motivos de natureza ética, os nomes dos indivíduos envolvidos na pesquisa assim como os nomes de lugares, pessoas e instituições mencionados durante a gravação dos eventos de fala sob análise foram substituídos por pseudônimos.

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ativista de uma ONG e como funcionária da prefeitura do Rio. Olhava freqüentemente para o relógio: não podia se atrasar para o curso pré-vestibular; almejava cursar Comunicação em alguma universidade pública. Enquanto com ela conversava, Valquíria, com seus gestos displicentes, lascivos meneios com a cabeça para exibir os negros e lisos cabelos, seu olhar profundo e inquiridor, chamava a atenção dos que por ali, inadvertidamente, passavam. A passos lentos, ofuscados pela figura opulenta da travesti, homens, mulheres, crianças nos observavam, passavam, olhavam para trás e comentavam. Risinhos de chacota, olhares escarninhos de respeitáveis senhoras, olhares curiosos dos homens (alguns claramente surpresos, outros, porém, deslumbrantemente desejosos) foram habitués de nosso encontro. Valquíria (cansada de guerra!) continuava fluente, cheia de si. Entre uma história e outra, não deixava de verificar o conteúdo das sungas expostas na praia. Conta de seus projetos na ONG onde trabalha; das brigas internas do movimento político das travestis e transexuais, afirma que não gosta do termo transgênero – importado, segundo ela, por Camille Cabral, travesti brasileira vereadora em Paris – prefere utilizar, em documentos oficiais, a dobradinha travestis/transexuais, mais clara e menos exclusiva. Mais olhares inquietantes, desestabilizados, curiosos. Mais risinhos – confesso que estava me sentindo incomodado. Valquíria, alheia ao frenesi que sua presença ali causava, afirmava, perspicaz: “Rodrigo, depois que se anda de saia e se coloca peito, pra quê seguir protocolo?”. [Diários de campo, 29/07/2006]

Cena 2

Era domingo e chovia; um dia viscoso com cheiro de terra: clima típico da Feira do Livro de Porto Alegre. No entanto, o charme século-dezenove da Praça da Alfândega estava mais cintilante com os roxos, brancos e amarelos dos ipês floridos. Na tentativa de comprar um livro, lá estava eu no meio da multidão de leitores e leitoras, visitando cada stand, sem sucesso. O tédio já me dominava. Com um mau-humor sulfúrico, causado pela decepção de não ter encontrado o desejado livro, aviso meus

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amigos que não suportava mais toda aquela efervescência: ia embora. Porém, algo inesperado me fez mudar de idéia. Entre as centenas de ávidos/as leitores/as, avisto uma que me chama atenção, uma leitora-travesti. À época, meu trabalho de campo já havia terminado, mas a curiosidade pelo universo trans se mantinha. Caminhando entre o público, abrindo caminhos, com uma nonchalance adquirida com muito treinamento, essa leitora explorava os stands, sedenta por literatura. Surpreso, decido investigar que livro ela procurava. A quantidade de pessoas não me permitiu alcançá-la, mas, subreptício, a segui. Sobre altíssimos saltos, elegantemente vestida em uma calça jeans justíssima e uma blusa negra de cetim, sua figura chamava a atenção de todos/as que, como ela, tentavam encontrar algum texto para seu deleite. Olhares curiosos, duvidosos. Comentários incrédulos. A travesti (dias mais tarde fui a ela apresentado, chama-se Clarissa) mantinha-se intacta, com passos fortes e sensuais. Quando me aproximei, ela, finalmente, encontrara seu livro. Pensei em puxar assunto, mas sua excitação diante da obra era tão bela que não tive coragem de interromper aquele momento epifânico. Tinha em suas mãos um livro de Clarice Lispector – musa inspiradora de seu nome. Claro, constatei, uma diva só poderia ler outra diva! Recebendo o troco do vendedor que, irônico, perguntava: Mais alguma coisa, senhor? Clarissa, balançando seus loiros cabelos e, displicentemente, ajeitando o decote da blusa, assevera: senhorita! Virando-se, num movimento típico entre as travestis, jogou primeiramente seus cabelos para, logo a seguir, virar seu corpo, marchando delicadamente como sobre uma passarela – a rua dos Andradas. O vendedor, atrás do balcão, confuso, em voz baixa, ecoava as palavras de sua cliente, para, segundos depois, reclamar com seus colegas que “esse mundo está realmente perdido”. Clarissa, decidida, ruma a sua casa, ansiosa para entregar-se à leitura de A Legião Estrangeira. [Diários de campo, 06/11/2005]

As travestis há tempos deixaram de ser obscuras; míticos seres pouco visíveis que habitavam somente os inóspitos territórios de prostituição dos grandes centros urbanos brasileiros. Elas já possuem “inscrição popular e social” (SILVA, 1996:22), já

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estão incorporadas às nossas paisagens urbanas (SILVA, 1993:53). Deixaram o “universo existencial restrito ao gueto” (PERES, 2004:121) e assim inauguram um processo de mudança político-social: impõem sua presença e, perseverantes em meio a preconceitos e limitações, mostram à sociedade a permeabilidade das fronteiras entre os gêneros e a possibilidade de viver nessas fronteiras, de cruzá-las. As cenas descritas no inicio desta dissertação, observadas por um pesquisador do que Benedetti (2005) denomina de universo trans, poderiam ter sido presenciadas por qualquer morador/a de qualquer grande cidade brasileira. Somos constantemente defrontados/as com a travestilidade:2 em Copacabana, na tradicional Feira do Livro de Porto Alegre, no metrô em São Paulo, nos shopping centres, na televisão, nos ônibus, nas áreas de prostituição, no aterro do Flamengo, na Redenção, nos aeroportos, em nossa vizinhança. A circulação desses personagens em intensa relação com a sociedade abrangente (SILVA & FLORENTINO, 1996:107) nos apresenta, concretamente, a fragmentação e fluidez das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002), a possibilidade do trânsito entre discursos de identidades nos quais podemos circular. Talvez os risos e olhares incrédulos dirigidos à Valquíria, em Copacabana, e à Clarissa, no centro de Porto Alegre, sejam pura e simplesmente frutos do preconceito que relega as travestis à margem de nossa sociedade. Talvez sejam provocados pela demonstração corporificada da possibilidade de uma mutação radical, acessível, em princípio, a qualquer pessoa, que desmantela a estabilidade dos significados disponíveis: podemos

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Peres (2004) cunha o termo travestilidade, em oposição a travestismo, pois, segundo o autor, esse termo contempla “a imensa complexidade das formas de expressão travesti existentes, considerando a heterogeneidade dos modos de ser no mundo que é configurado pela sub-cultura travesti” (p.120). Esse termo é adotado no decorrer desta dissertação.

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nos tornar quem quisermos, uma vez que tenhamos acesso3 a discursos que nos possibilitem tal mudança. Essa é uma das desestabilizações causadas pelas travestis: um homem e uma mulher podem se transformar, corporal, discursiva e simbolicamente, em mulher e homem. A intensa presença de travestis em nosso cotidiano nos impinge um processo de fricção de alteridades que, em grande escala, pode motivar questionamentos sobre nossas identidades. As travestis caminham entre nós e corporificam, concretamente, a flexibilidade das identidades sociais. É à descrição desse processo que me dedico nesta pesquisa. A dissertação foi possibilitada pela minha relação com a ONG Liberdade, iniciada em 2003 por ocasião da elaboração de outra pesquisa sobre travestis, requisito para minha graduação no curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (BORBA & OSTERMANN, 2007). Os dados aqui analisados foram gerados em um período de 12 meses durante o qual acompanhei a rotina de trabalho da ONG Liberdade. Essa ONG, idealizada e fundada por um grupo de travestis politicamente engajadas na luta LGBTTT4, visa à melhoria das perspectivas sociais das travestis na Cidade do Sul. A ONG Liberdade planeja, organiza e implementa projetos com os mais diferentes propósitos. É sobre um desses projetos que esta dissertação se debruça. Mais especificamente, ponho sob escrutínio intervenções para entrega de preservativos às travestis enquanto essas se prostituem nas ruas da Cidade do Sul. Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que se constroem como mulheres em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em práticas 3

O acesso a determinados discursos que nos possibilitam transitar por identidades múltiplas, fluidas e fragmentadas é limitado financeira, geográfica, política e culturalmente de acordo com a posição social dos sujeitos em suas comunidades. 4 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Ver Facchini (2005) e Kulick (2000) para uma revisão crítica das variações constantes dos termos utilizados pelas políticas de identidade referentes a esses grupos.

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discursivas que configuram milieux onde indivíduos que têm se construído em discursos de identidades díspares se encontram, o que pode gerar complexos processos de negociação e administração das diferenças percebidas e/ou construídas das interlocutoras. O corpus, para esta investigação, constitui-se de interações entre essas mulheres e as travestis que recebem os preservativos. Tais interações foram gravadas em áudio e transcritas segundo as convenções aqui já mencionadas Guiado por uma visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002, 2003, 2006b) e por um aporte teórico-analítico intitulado táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo), analiso os micro-detalhes das interações entre travestis e as duas interventoras na tentativa de criar inteligibilidades sobre performances identitárias (BUTLER, 2003) que deslocam posições discursivas convencionalmente ligadas às mulheres e aos homens. Tal trânsito por uma miríade de discursos de identidades parece ser motivado pelo embate interacional entre as identidades tradicionais das interventoras e as identidades nãotradicionais das travestis, o que parece impelir as interventoras e as travestis a elaborar flutuações identitárias, engajando-se, assim, em projetos identitários específicos, maleáveis e moventes, durante as intervenções. Argumento que as ativistas da ONG Liberdade, duas mulheres que têm se construído como heterossexuais de classe média, posicionam-se em uma diversidade de discursos de gênero que as permite construir identidades que não fazem parte do seu repertório cotidiano e produzem, dessa forma, um processo interacional de empoderamento das performances de identidades de suas interlocutoras transgênero.5 É importante sublinhar que as

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O termo transgênero engloba uma ampla gama de possibilidades de transformação de gênero elaboradas por indivíduos nos mais diferentes lugares do planeta. Para uma discussão interessante

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dinâmicas discursivo-identitárias emergentes do contexto investigado são coconstruídas entre as participantes dos eventos de fala sob análise. Assim, tanto as travestis quanto as interventoras têm participação importante no desenvolvimento das coreografias identitárias e interacionais elaboradas durante as intervenções. Descrições sobre as dinâmicas interacionais em conversas espontâneas entre pessoas tradicionalmente generificadas e indivíduos transgêneros são inexistentes na literatura especializada disponível. Essa é uma das lacunas que este trabalho visa a preencher. Os estudos sobre indivíduos transgêneros (ver, por exemplo, BARRET, 1998, 1999; BENEDETTI, 2005; BENTO, 2006; BESNIER, 1997, 2003; BOLIN, 1988; EPPLE, 1998; HALL & O’DONOVAN, 1996; KULICK, 1998; WIKAN, 1978) têm analisado as flutuações identitárias em sua fala e sua construção como seres sociais através da manipulação de uma pletora de recursos discursivos como o sistema gramatical de gênero (HALL, 2002; HALL & O’DONOVAN, 1996; LIVIA, 1997; BORBA & OSTERMANN, 2007), as ideologias locais de gênero (BARRET, 1999; BESNIER, 1997; HALL, 1997, 2005), posições locais e globais através da alternância de códigos (BESNIER, 2003), entre outros. No entanto, é inexistente a documentação sobre como pessoas

que

participam

(cotidiana

ou

esporadicamente)

do

universo

social

compartilhado por transgêneros conversam com tais atores sociais. Kulick (1999:615) indica que “precisamos saber mais sobre como os indivíduos transgêneros falam com outras pessoas em seus milieux, e precisamos saber como essas pessoas avaliam e respondem a essa fala”. Tento encaminhar possíveis respostas a esse desafio lançado

sobre a construção de identidades transgênero nos E.U.A ver Valentine (2003). Para instigantes caracterizações das diferentes formas dos processos de transformações de gênero em outros contextos sócio-históricos ver Levy (1971), Wikan (1978), Bolin (1988), Clastres (1990), King (1993), Besnier (1997), Epple (1998), Benedetti (2002).

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por Kulick (1999) ao investigar os processos de fricção de identidades produzidos durante as intervenções. Ademais, vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais seguras e a prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio temático no encontro internacional da American Association of Applied Linguistics de 2007, na Califórnia (http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm) o que evidencia um interesse crescente da comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora investigue somente uma pequena fatia de tal contexto (prevenção de DST/AIDS entre travestis que se prostituem), a utilização da categoria táticas de intersubjetividade, como se verá, pode nos servir de aporte para que analisemos os processos discursivo-identitários que emergem de tais eventos de fala, nos quais as negociações entre as identidades dos/as interventores/as e dos/as profissionais do sexo é fator crucial. Descrevo aqui as implicações interacionais de somente um pequeno extrato do amplo processo de fricção de alteridades encontrado no mundo contemporâneo: mulheres e travestis nas zonas de prostituição. Essa fatia, embora muito particular, pode ser considerada um bom exemplo dos atritos identitários encontrados em maior escala em nossa sociedade. Investigar a construção de identidades em tal evento discursivo pode ser um importante passo para poder compreender outros possíveis jogos de identidades (S. HALL, 2001) que nos circundam cotidianamente; jogos que marcam nossa vida social com instabilidade, fragmentação e fluidez. Os embates entre as construções identitárias habituais das ativistas da ONG Liberdade e das travestis

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emergentes das intervenções são representativos do universo trans (BENEDETTI, 2005). Isso não quer dizer que somente em tal contexto sócio-cultural tais embates identitários aconteçam. Muito pelo contrário. Defrontamo-nos, constantemente, com múltiplas alteridades em nosso dia-a-dia, e outras fricções emergem com dinâmicas discursivo-identitárias específicas. Com as mudanças tecnológicas, econômicas, científicas e culturais que acompanham os processos de globalização (BAUMAN, 2005; FRIDMAN, 2000), há uma proliferação de novos costumes, de novos estilos de vida, e de novas formas de vivenciar práticas identitárias que nos levam a “experimentar a heterogeneidade da vida humana de frente” (MOITA LOPES, 2003:17), o que, por conseguinte, nos intima a repensar nossas identidades sociais, a colocá-las em xeque. Em uma sociedade que, continuamente, produz discursos sobre si mesma (GIDDENS, BECK & LASH, 1997), “somos diariamente confrontados com um mundo de reflexividade intensa na qual o questionamento de formas sociais, assim como suas redescrições, são práticas diárias” (MOITA LOPES, 2006c:31,32). Esse é o desafio apresentado pelos processos de fricção alteritárias salientes nas sociedades contemporâneas: o re-pensar constante sobre quem somos – e sobre quem podemos ser (ver FOUCAULT, 1995; MOITA LOPES, 2003; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004). Diariamente, em nossa vida social, nos deparamos com discursos de identidades que nos fazem questionar a estabilidade de significados, anteriormente tidos como portos seguros. Dessa forma, somos levados a experienciar os aspectos mutáveis de nossas identidades, instaurando processos de negociação e re-negociação de nossas posições de sujeito. As negociações, re-negociações e transformações de nossas identidades são mediadas no/pelo discurso. Tendo isso em perspectiva, Chouliaraki e Fairclough (1999) salientam que vivemos em sociedades altamente

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semiotizadas, nas quais nada pode ser feito sem discurso (SANTOS, 2000), o que indica que as mudanças nos modos de viver socialmente são cada vez mais possibilitadas pela linguagem. Como observa Giddens (2000), novos significados sociais têm desafiado/desestabilizado discursos tradicionais sobre nossas identidades de gênero, classe social, sexualidade, nacionalidade e tal desestabilização é, em parte, causada pela proliferação de possibilidades de arranjos identitários do mundo contemporâneo. Faz-se crucial criar inteligibilidades sobre como as identidades são discursivamente produzidas e re-negociadas em meio ao turbilhão de outras possíveis identidades a nós apresentadas cotidianamente. Ao investigar como as interventoras e as travestis da Cidade do Sul constroem múltiplas possibilidades identitárias em embates interacionais, a pesquisa apresentada aqui lança luz sobre processos de fricção de alteridades mais abrangentes ao descrever as táticas de construção e reconstrução de identidades que a defrontação de arranjos identitários multifacetados e transitórios parece motivar. Para tanto, a pergunta focal que orienta a pesquisa é: quais são as táticas discursivas de construção identitária emergentes das interações construídas durante as intervenções para prevenção de DST/AIDS nos territórios de prostituição travesti da Cidade do Sul? Faz-se necessário, neste momento, esclarecer os motivos pelos quais me refiro às travestis no feminino. Gramaticalmente a palavra travesti é descrita como um substantivo masculino. Porém, o uso feito dessa palavra e de pronomes, adjetivos e substantivos para se referir a travestis, na comunidade estudada, indica que formas femininas são a escolha preferida, não-marcada entre as participantes dessa pesquisa. Essa é uma estratégia lingüística utilizada por diferentes comunidades de transgêneros no mundo a qual Kira Hall (2002:140) rotula de supercompensação de gênero, ou seja,

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uma subversão das determinações gramaticais que visa à construção de uma identidade de gênero discursivo coerente com as performances generificadas dos indivíduos em tais comunidades. Ademais, como vimos no comentário sarcástico do vendedor de livros à Clarissa (cf. cena 2, acima), a utilização da desinência masculina é uma forma comumente utilizada para negar o gênero construído pelas travestis, subestimando, assim, a produção cultural e corporal de suas identidades e as relegando a um não-lugar social. Como observa o antropólogo Don Kulick, utilizar o masculino ao falar sobre travestis “é uma forma de colocá-las de volta em seu lugar social (decentemente generificado), uma maneira de negar e se defender das possibilidades que existem no sistema de gênero” (KULICK, 1997:582), possibilidades de transitar de uma categoria a outra; ou de se posicionar na intersecção das categorias de gênero (BORBA & OSTERMANN, 2007). Além disso, a feminilização da palavra travesti é um dos objetivos políticos do movimento nacional de transgêneros.6 Portanto, ao me referir às travestis no decorrer do texto, utilizo o feminino gramatical que, além de ser uma categoria êmica, é também uma forma de (1) assegurar-lhes a construção consistente do gênero feminino e (2) manter-me alinhado aos ideais da ONG Liberdade.7 Esta dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, “A zona de batalha: contexto e metodologia de pesquisa”, caracterizo os procedimentos metodológicos que guiaram na construção da pesquisa. Nesse capítulo, descrevo o apoio dado pela ONG Liberdade à realização deste estudo, os instrumentos geradores 6

Para discussões sobre as relações entre gênero gramatical e indivíduos transgêneros ver Borba e Ostermann (2007), K. Hall (2002), Hall e O’Donovan (1996) e Lívia (1997). 7 A ONG Liberdade faz parte de um grupo nacional de instituições organizadas por travestis. Para conhecer alguns dos projetos e ideais do movimento nacional das travestis e transexuais, organizados pela ANTRA – Articulação Nacional das Trans, acesse http://www.abglt.org.br/port/index.php.

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de dados e os dados analisados aqui. Também teço algumas considerações sobre a etnografia realizada entre travestis da Cidade do Sul e sobre as relações (necessárias) entre prevenção de DST/AIDS e lingüística aplicada. O segundo capítulo, “Discursos e identidades: construindo o referencial teórico”, apresenta o aporte teórico que guia o estudo. Nesse capítulo, discuto a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, caracterizando como as identidades são neste estudo consideradas: com base em uma perspectiva nãoessencialista/não representacional das relações entre linguagem e identidades enfatizo os processos discursivos de sua construção interacional e contextual (MOITA LOPES, 2002, 2003, 2006b). No terceiro capítulo, “(Re)construindo identidades na interação: as táticas de intersubjetividade”, apresento o referencial analítico sobre o qual a interpretação das negociações de identidades entre interventoras e travestis é estruturado. Aqui, descrevo,

também,

os

mecanismos

lingüísticos

utilizados

na

construção

de

inteligibilidade sobre as táticas de intersubjetividade e sobre as relações identitárias produzidas entre as interagentes. “Alteridades em fricção: interventoras, travestis e a construção de identidades na prevenção de DST/AIDS” é o quarto capítulo. Aqui, analiso os dados gerados durante o período de trabalho de campo em conjunto com a ONG Liberdade. Foco minha atenção nas táticas de intersubjetividade utilizadas por interventoras e travestis ao construírem relações identitárias especificas com base nas flutuações de identidades efetuadas pelas participantes dos eventos. Ver-se-á um amplo spectrum de identidades sendo encenado pelas participantes das intervenções. As interventoras e as travestis valemse de uma grande gama de discursos e constroem identidades que, como as análises

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tentam descrever, podem ser creditadas ao processo de alteridades em fricção que emerge durante as intervenções.

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1.

A ZONA DE BATALHA: CONTEXTO E METODOLOGIA DE PESQUISA8

Cena 3

Estávamos em agosto e o frio era tórrido. Cheguei à sede da Liberdade, numa terçafeira à tardinha, mergulhado em um turbilhão de sentimentos que me usurpavam o sossego: ansiedade, curiosidade, excitação, medo, insegurança; minha primeira incursão efetiva no mundo da noite travesti era iminente. Cassiana, a coordenadora da ONG, permitira minha participação nas intervenções para prevenção de DST/AIDS organizadas pela instituição. À época, todos os procedimentos para a realização das observações e gravações desses eventos, de modo a garantir um comportamento ético em todos os estágios da pesquisa, haviam sido tomados: durante o mês anterior a essa fria terça-feira de agosto, Cassiana e eu explicamos às travestis participantes das reuniões semanais da Liberdade as idiossincrasias da investigação e distribuímos os termos de consentimento livre para serem assinados por quem quisesse participar.

8

Batalha é o termo êmico utilizado pelas travestis na comunidade investigada para se referir ao seu trabalho na prostituição.

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Quando entrei na sala da ONG, num tradicional prédio comercial no centro da Cidade do Sul, Sandra e Márcia, respectivamente advogada e secretária da ONG, depois de cumprimentos efusivos e reclamações sobre o clima, voltam ao trabalho que minha aproximação interrompera: organizavam as dezenas de caixas de preservativos e saches de gel lubrificante recém recebidos da Secretaria de Saúde. Segundo suas previsões, naquela noite, devido ao frio, poucas travestis deveriam estar nas ruas, “mas nunca se sabe né Rodrigo, essas monas9 são corajosas!” Rodeadas por camisinhas e lubrificantes, a advogada e a secretária da Liberdade aproveitam esse momento de descontração para desabafar algumas angústias de suas vidas pessoais. Márcia começara um processo de divórcio: “não agüento mais aquele traste”, dizia. Sandra dá alguns conselhos jurídicos a sua colega, mas se mostra mais preocupada com as filhas do casal: “no começo é muito difícil, elas vão sentir falta dele, tu tem que ser forte”. Descolada nesse assunto, Sandra já havia dado fim a dois casamentos. Tudo isso era comentado num clima muito descontraído. No entanto, apesar dos risos e do savoir vivre do momento, Sandra me parecia tensa. Pergunto o que estava acontecendo. A advogada dizia-se muito preocupada, pois dois de seus filhos haviam decidido prestar serviço militar ao exército de Israel: “ai, Rodrigo, não quero ficar longe dos meus filhos”.Tento acalmá-la dizendo que isso é temporário, “logo logo eles mudam de idéia.”10 Depois das fofocas, conselhos e desabafos, o negro da noite já dominava as ruas da cidade. Márcia, preparada para batalha, leva consigo mais de 300 preservativos a serem distribuídos. Sandra, num rompante, levanta-se, procura pelas chaves do carro e, sorridente, anuncia: “Zona, aqui vamos nós!”. [Diários de campo, 07/10/2003]

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Mona é um termo êmico utilizado por travestis (e também pelas interventoras) para se referir às travestis. A utilização desse termo é, juntamente com bicha, uma forma de manter o uso de desinências gramaticais femininas consistente, em oposição à palavra travesti (ver, KULICK, 1998; BENEDETTI 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007). 10 Em fevereiro de 2007, em uma visita à nova sede da ONG, fico sabendo que Sandra se preparava para uma viagem a Israel. O Governo israelense havia lhe enviado passagens para que ela pudesse visitar os filhos. À época, o filho mais novo de Sandra fora designado a trabalhar na Faixa de Gaza o que motivara o Governo daquele país a proporcionar a advogada uma estada de quinze dias junto a seus filhos. Sandra mostrava-se muito preocupada, pois, sabendo do constante estado de guerra naquela parte do mundo, não queria que seu filho fosse para lá enviado.

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Há aproximadamente três décadas, testemunhamos o surgimento da epidemia causada pelo vírus HIV que, desde então, tem intensificado o interesse coletivo acerca de como exercemos nossa sexualidade e dos problemas de saúde que o vírus pode acarretar. O sexo nunca foi tão visado por discursos públicos e privados que, para o bem ou para o mal11, têm construído regimes de verdade (FOUCAULT, 1996) sobre como indivíduos podem, ou não, ter um comportamento sexual considerado em risco de infecção. Dentro desse afã discursivo, governos têm tentado conscientizar a população sobre os riscos de contaminação pelo vírus e sobre como se distanciar da possibilidade de ser por ele atingido. No contexto brasileiro, as três esferas governamentais têm se ocupado, desde o final da década de 1980, da conscientização da população por meio de grandes investimentos em projetos publicitários e sociais que visam a espalhar a idéia da necessidade e da importância da prática de sexo seguro (PARKER, 2002; UZIEL, RIOS & PARKER, 2004). Quem não lembra do mote carnavalesco bota a camisinha, bota, meu amor? Ou do emocionante depoimento da atriz Sandra Bréa que, atingida pelo HIV, falou publicamente, no início dos anos 1990, sobre como se proteger da contaminação? Ou de Cazuza, um dos ícones da cultura jovem brasileira dos anos 1980? Desde então, o governo brasileiro tem patrocinado e orientado projetos de ONGs-AIDS que, das mais variadas formas, vêm tentando minimizar os riscos de contaminação através de políticas de enfrentamento a comportamentos de risco.

11

Para o bem, esses discursos têm disponibilizado informações a camadas muito distintas da sociedade e espalhado a necessidade do sexo seguro com relativo sucesso. Para o mal, esses mesmos discursos, desde o inicio da epidemia, têm construído certos grupos de indivíduos como portadores em potencial do vírus. Essas construções (lembre-se que na década de 1980 a AIDS era conhecida como o “câncer gay”) têm estigmatizado grupos que, como veremos mais adiante, vêm tentando se livrar dos rótulos criados pelos discursos da AIDS a partir de ações afirmativas como, por exemplo, o ativismo político de ONGs como o Grupo Gay da Bahia e o Nuances em Porto Alegre.

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Um dos projetos apoiados pelo Governo brasileiro constitui-se de intervenções durantes as quais ativistas de ONGs visitam as zonas de prostituição das cidades para distribuir preservativos aos indivíduos ali presentes.

É nesse contexto que esta

pesquisa se insere. Com base em dados gerados durante 12 meses de trabalho de campo nos anos de 2003 e 2004, trago à baila uma discussão sobre intervenções para prevenção de DST/AIDS elaboradas pela ONG Liberdade entre travestis profissionais do sexo12 de uma região urbana do sul do Brasil. Durante as intervenções, duas mulheres empregadas pela ONG, Márcia, a secretária, e Sandra, a advogada, entregam preservativos às travestis e se engajam em interações que, a meu ver, são estruturadas com base na negociação das identidades de gênero e de sexualidade das interlocutoras participantes desses eventos. Em tal negociação, as participantes dos eventos discursivos aqui investigados transitam por uma miríade de discursos de identidades construindo-se, dessa forma, em múltiplas, moventes e multifacetadas posições de sujeito. Neste capítulo, desenho os cenários sócio-culturais nos quais a presente pesquisa foi realizada. Primeiramente, descrevo os dados gerados durante minha incursão etnográfica no universo da ONG Liberdade e caracterizo minha posição no processo da investigação. A seguir, situo sócio-historicamente o surgimento da ONG Liberdade, cujo apoio foi fundamental para a realização desta pesquisa, para, logo após, fazer uma descrição das intervenções para prevenção de DST/AIDS organizadas pela equipe dessa organização não-governamental. 12

Segundo Denis Altman (1995:102-103) o termo [profissional do sexo] tem conotações muito diferentes do mais comum ‘prostituta’. [Esse termo] implica uma definição particular[...]: se alguém pratica sexo principalmente para fazer dinheiro essa pessoa é, ipso facto, um/a profissional do sexo. ‘Prostituta’ é um termo mais ambivalente, reconhecido em seu uso comum para descrever aqueles/as que praticam todo tipo de atividades não-sexuais; jornalistas, políticos/as e advogados/as são comumente acusados/as de ‘prostituirem-se’, mesmo quando não há referência à transação financeira envolvendo sexo.

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1.1 Etnografia no universo trans: instrumentos geradores de dados

Na tentativa de criar inteligibilidades sobre os processos discursivos produzidos por fricções de alteridades, no caso em tela entre travestis e interventoras, mas, de forma mais ampla, sobre fricções de identidades fabricadas pela proliferação de diferentes e multifacetados modos contemporâneos de viver socialmente, apresento uma descrição etnográfica do universo da ONG Liberdade. Essa descrição contextualiza as práticas discursivas aqui em análise. A caracterização etnográfica das práticas da ONG Liberdade situa sócio-historicamente as intervenções cujas análises constituem o cerne desta pesquisa. A ONG Liberdade é dirigida por travestis, contudo, duas mulheres que se constroem como heterossexuais de classe média trabalham na ONG com funções burocráticas essenciais para o desenvolvimento eficiente de seus projetos. Procuro fazer uma descrição densa (GEERTZ, 1989) da estrutura social das intervenções da qual a análise dos micro-detalhes das interações que as constituem é parte crucial. Geertz (1989) indica que

Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (p.20)

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Seguindo Geertz, através de observações não-participantes, descrevo as práticas sociais que constituem essa instituição. Mais precisamente, ao observar as práticas da ONG Liberdade e ao participar das entregas de preservativos às travestis em seus territórios de batalha, caracterizo sua construção discursiva e investigo a lógica social sob a qual as intervenções são construídas. Para tanto, além de prestar atenção aos exemplos transitórios de comportamento modelado, investigo os usos feitos da linguagem na estruturação dessas práticas e das pessoas que nelas se envolvem. Essa interpretação é elaborada por meio das seguintes ferramentas de pesquisa:



Incursão de cunho etnográfico no universo social da ONG Liberdade nos anos de 2003 e 2004.



Gravações em áudio de conversas espontâneas entre travestis e interventoras da Liberdade durante intervenções para entrega de preservativos nas áreas de prostituição da Cidade do Sul.



Gravações em áudio de conversas espontâneas na sede da Liberdade.



Transcrições desses eventos de fala.



Notas de campo sobre as práticas travestis dentro e fora das zonas de prostituição.



Fotos de cunho etnográfico feitas durante as intervenções



Entrevistas semi-estruturadas com travestis e com a equipe da ONG elaboradas na sede da Liberdade gravadas em áudio.

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É importante enfatizar, porém, que as análises a serem apresentadas aqui são principalmente baseadas nas gravações das intervenções. O corpus, portanto, constituise de interações entre as interventoras e as travestis que recebem os preservativos. Contudo, utilizo as entrevistas semi-estruturadas, as conversas espontâneas e as fotos como ferramentas de apoio e de triangulação para a construção de inteligibilidade sobre as práticas que constituem o universo social que circunda a ONG Liberdade e suas participantes. As gravações das intervenções, especificamente, ocorreram no período de agosto a dezembro de 2003. Durante esses meses, acompanhei a equipe em cinco intervenções que foram gravadas e transcritas. Aproximadamente doze abordagens13 ocorriam por intervenção14 o que constitui um total de sessenta interações e aproximadamente oito horas de gravação. Ademais, utilizo, no decorrer da dissertação, textos extraídos dos meus diários de campo. Durante minha inserção no universo da ONG Liberdade, observei o cotidiano de sua equipe e de aproximadamente 40 travestis ativistas da instituição, em vários lugares de sociabilidade ocupados por elas na Cidade do Sul. Os diários de campo são fruto do árduo trabalho de observar, participar, conversar (e por vezes silenciar) e escrever sobre o campo, constituindo parte importante dos dados gerados. No entanto, minhas observações não cessaram com o fim do trabalho de campo, em meados de 2004. Com a sólida inserção de travestis no cotidiano dos grandes centros urbanos brasileiros, não é raro encontrá-las nas esferas públicas de nossa vida 13

Abordagem é o termo utilizado pelas interventoras para se referir ao ato de parar o carro da ONG Liberdade para entregar preservativos a uma travesti (ou a um grupo de travestis) encontrada(o) em sua área de prostituição. 14 Intervenção refere-se ao projeto da ONG como um todo. Cada intervenção para distribuição de preservativos é composta por várias abordagens.

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social: mercados, praias, parques etc. Tendo isso em mente, também elaborei observações não sistematizadas de encontros esporádicos com travestis em diversos eventos sociais, exemplos dessas descrições são as cenas que iniciam a introdução desta dissertação (cf. cena 1 e 2). Tais descrições são aqui indicadas igualmente por “diários de campo”, porém constituem um tipo específico de diário, elaborado em tempo e espaços que extrapolam o perídio inicial de trabalho de campo. No decorrer da dissertação, utilizo excertos dos dois tipos de diário de campo. Esses excertos têm por objetivos: (1) ambientar o/a leitor/a com o universo da pesquisa através de descrições minuciosas de eventos sociais relevantes para que se possa vislumbrar, mesmo que parcialmente, os significados construídos no dia-a-dia da ONG Liberdade; (2) ilustrar o processo de inserção de travestis na paisagem urbana de cidades por onde passei; e (3) enquadrar capítulos e seções da dissertação, ligando-as, dessa forma, com meu objeto de pesquisa. É de crucial importância observar que a utilização de todos os dados supradescritos foi consentida pelas travestis participantes dos projetos da ONG Liberdade e pelas interventoras. Um termo de consentimento dando-me autorização para fazer uso das informações geradas, das gravações, das fotos e dos diários de campo foi assinado por todos os indivíduos que colaboraram com a realização desta pesquisa (para uma discussão detalhada dos procedimentos éticos da pesquisa, ver BORBA, 2005:27; 113). Como mencionado acima, os dados foram gerados por meio de observações não-participantes durante as quais acompanhei a equipe da Liberdade quando essa entregava preservativos às travestis. Acredito que seja fundamental, neste ponto, discutir meu envolvimento com os eventos sob escrutínio. No ano de 2003, durante a

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realização de outra pesquisa sobre travestis elaborada como pré-requisito para minha graduação no curso de Letras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) (ver BORBA, 2005; BORBA & OSTERMANN, 2007), em uma entrevista com a travesti coordenadora da ONG Liberdade fui alertado sobre a realização dessas intervenções. Logo me interessei. Perguntei a ela se eu poderia participar do projeto e recebi, com entusiasmo, uma resposta afirmativa. Tendo adquirido a permissão da ONG e o consentimento das travestis que recebem os preservativos para gravar em áudio as interações, comecei a acompanhar a equipe da Liberdade em suas inserções no “mundo da noite” da Cidade do Sul. É importante notar, contudo, que eu não entregava as camisinhas. Portanto, eu não era um participante ativo dos eventos. Minha participação nessas práticas era de observador. No entanto, minha presença (e a presença do gravador) era sempre explicitada às travestis abordadas pela equipe. O que acabo de descrever é relevante, pois, como sugere Freitas (2002),

O pesquisador [sic] é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. (p.28)

Isso quer dizer que a compreensão que construí durante o trabalho de campo no universo de pesquisa é uma interpretação feita por um mestrando, que tem se construído como gay, militante das causas LGBTTT, de classe média, branco, gaúcho, feminista. Minha carga identitária é determinante da leitura que apresento das identidades confeccionadas pelas travestis nas interações com as interventoras e viceversa.

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Está claro, portanto, que as relações intersubjetivas que estabeleci com os sujeitos da minha pesquisa também são relevantes para essa interpretação. Durante os mais de 3 anos de relacionamento com a equipe da Liberdade, construí laços bastante fortes de amizade, cumplicidade, respeito e admiração. Assim, não sou considerado na comunidade simplesmente como um pesquisador, estranho aos seus valores e práticas. Tanto a equipe da ONG como as travestis me vêem como um sujeito muito próximo delas e de seu mundo. Freitas (2002) indica que “o pesquisador [sic] ao participar do evento estudado constitui-se parte dele, mas ao mesmo tempo mantém uma posição exotópica que lhe possibilita o encontro com o outro” (p.32). Essa posição paradoxal do/a pesquisador/a, i.e. ao mesmo tempo dentro e fora dos eventos pesquisados, me parece essencial para que possamos entender as práticas com uma visão êmica e para descrevê-las de um modo que possa captar suas nuances em diversos níveis, o que pode passar despercebido por aqueles e aquelas que vivem essas práticas diretamente em seu cotidiano.

1.2. A construção do ativismo político das travestis

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Grosso modo, travestis são indivíduos biologicamente masculinos que, através da utilização de um complexo sistema de techniques du corps (MAUSS, 1996), moldam seus corpos com características ideologicamente ligadas ao feminino15. Essa construção de uma identidade feminina sobre um corpo masculino ilustra o caráter inventado, multifacetado, maleável e instável das identidades sociais. Por subverter e, assim, desestabilizar práticas semióticas disponíveis para a construção do gênero social e sentidos históricos associados a práticas corporais, sexuais e de gênero valorados positivamente, as travestis têm sido sumariamente estigmatizadas na sociedade brasileira. Não são raras as histórias sobre violência (real e simbólica) infligida contra as travestis colaboradoras desta pesquisa. Casos de travestis assassinadas e feridas por clientes e/ou transeuntes foram freqüentes em minhas conversas com as travestis que se prostituem na Cidade do Sul, participantes dos projetos da Liberdade. Por viver nos limiares discursivos dos gêneros, as travestis têm sido marginalizadas e impedidas de levar suas vidas fora da prostituição. Preconceito, violência, estigmatização e a impossibilidade de viver “durante o dia” levaram um grupo de travestis, politicamente engajadas, a estruturarem uma organização nãogovernamental que visa à melhoria das perspectivas sociais das travestis na Cidade do Sul.16 No entanto, o surgimento do ativismo político travesti só pode ser entendido com

15

Ver Benedetti (2000, 2005); Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, 2005b) para discussões instigantes sobre a construção da corporalidade travesti e seus significados em diferentes comunidades de travestis no Brasil. 16 A ONG Liberdade faz parte de uma rede nacional de instituições, coordenada por travestis, que direciona seus trabalhos à prevenção de DST/AIDS entre travestis e à luta pelos direitos humanos desse grupo. Há uma estrutura hierárquica no movimento nacional de travestis e transexuais. A instância mais alta e mais próxima do Governo Federal é a ANTRA (Associação Nacional de Travestis) que, sob a liderança da presidente Keyla Simpson, organiza e agenda política das ONGs estaduais. A rede de ONGs ligadas à ANTRA espraia-se por todo território nacional, tendo representantes na grande maioria

39

referência a um contexto mais amplo de ativismo político homossexual e seu engajamento com temas relacionados à AIDS. Acredito que a historicização do surgimento desses movimentos faz-se necessária, pois como observam Daniel e Parker (1990), embora as travestis não tenham sido sempre bem-vindas dentro do ativismo gay e/ou contra AIDS, esses movimentos sociais influenciaram grandemente o conteúdo e a organização estrutural do ativismo travesti. É à descrição desse contexto que me dedico a seguir.

1.2.1. Os caminhos para a Liberdade: a organização política de travestis no Brasil

Depois de anos sob um regime ditatorial rígido, no final da década de 1970, o Governo brasileiro iniciou um lento processo de redemocratização que terminaria somente em 1989. Esse processo foi chamado de abertura. Essa abertura gerou uma intensa mobilização social e política. A partir do final dos anos 1970, houve um boom de ativismos sociais com movimentos como organizações de trabalhadores, organizações feministas, grupos ambientalistas e grupos Afro-brasileiros. Baseados em ideais democráticos, esses movimentos sociais representaram uma mudança na política social brasileira e sua tradição clientelista e populista (TREVISAN, 1986; PAKER, 2002).

dos estados brasileiros. A criação dessa grande rede de ONGs como a Liberdade emergiu no final dos anos 1990, por motivos discutidos ao longo deste capítulo.

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Esses movimentos serviram como força motriz para outros setores políticos e sociais que se opunham à ditadura (ver, por exemplo, MCRAE, 1985; TREVISAN, 1986; KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004). É nesse contexto que nasce a política de identidade17 homossexual no Brasil. Guiados/as pela premissa de que a sexualidade é, fundamentalmente, um terreno de luta política e de emancipação individual (GIDDENS, 1993), os primeiros movimentos políticos de gays e lésbicas visavam à luta contra a estigmatização; tentavam com suas manifestações, nesse momento relativamente tímidas, minar o tripé opressão-privaçãodiscriminação (MELLO, 2005) que limitava (e ainda limita) suas vidas sociais a espaços de socialização muito restritos. Facchini (2004:153) indica que, em seus primórdios, o movimento homossexual brasileiro “definia seu projeto de politização da questão da homossexualidade em contraste às alternativas presentes no ‘gueto’ [...], possuíam uma atuação qualificada pelos militantes como ‘não-politizada’ por estar exclusivamente voltada para a ‘sociabilidade’”. Dessa forma, os gays e as lésbicas engajados/as no movimento almejavam a desguetização da homossexualidade, tentando ocupar loci sociais além dos restritos lugares de socialização que encontravam à época. Em 1979, o primeiro jornal brasileiro que era endereçado explicitamente à população gay foi lançado: O Lampião. Nesse mesmo ano, em São Paulo, o grupo SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual foi criado (MCRAE, 1985; KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2005). Durante esse período, alguns outros grupos de liberação homossexual foram organizados em várias cidades do país. McRae (1985)

17

O termo “política de identidade” é utilizado em referência ao “movimento cultural em que grupos tradicionalmente secundarizados (tais como as mulheres, os sujeitos negros, as chamadas minorias sexuais, os vários grupos étnicos) levantam sua voz, reclamando o direito de se auto-representar, de falar por si e de si” (LOURO, 2002:231).

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observa a existência de aproximadamente 20 grupos de ativismo homossexual em meados dos anos 1980. Nesse primeiro momento de organização política homossexual, os grupos ativistas enfatizavam, em suas agendas, as dimensões subversivas da sexualidade, incluindo liberdade sexual e androginia (TREVISAN, 1986). Um ponto importante a ser notado sobre esse primeiro momento de ativismo homossexual brasileiro é o fato de que em vez de contestar a marginalidade dos homossexuais, os lideres desses grupos afirmavam que o lado “vergonhoso” da homossexualidade (como comportamentos efeminados e promiscuidade) não deveria ser somente experienciado no nível pessoal, mas sim, constituir um fenômeno criativo contra a força autoritária de uma sociedade patriarcal (KULICK & KLEIN, 2001; FACCHINI, 2004, 2005). A partir da segunda metade da década de 1980, os grupos de afirmação homossexual, que nessa época agregavam intelectuais, ativistas políticos e feministas engajados/as na luta para a total democratização da sociedade brasileira, mudam seu foco de atuação (TREVISAN, 1986; PARKER, 2002). Seguindo ideais do ativismo gay norte-americano,

Os pervertidos assumidos, aos quais de início foi concedido um espaço público cuidadosamente obscurecido, tornaram-se altamente expressivos em prol da causa própria. [...] Falavam por si mesmos em manifestações de rua e nos corredores, através de panfletos, jornais e livros, e pela semiótica de ambientes altamente sexualizados, com seus elaborados códigos e padrões, cores e roupas, nos meios de comunicação popular e nos detalhes mais materiais da vida doméstica (WEEKS, 1985:213).

Almejavam o reconhecimento das possíveis e múltiplas formas de existência sexual com o intuito de dar visibilidade social aos que eram considerados/as

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aberrações da natureza; ameaças à vida social normal e bem regulada. A partir do final dos anos 1980, um período de transformações profundas do movimento LGBTTT brasileiro (FACCHINI, 2004), diferenças de orientação sexual, política, racial, de classe social e de gênero estabeleceram uma profunda ruptura no ativismo homossexual no país. Nessa época, O Lampião fechou suas portas e o grupo SOMOS, por causa de conflitos internos, fragmentou-se em outros grupos com diferentes agendas políticas (TREVISAN, 1986; FACCHINI, 2005). Foi aproximadamente nesse momento da história do movimento que a epidemia da AIDS começou a se espraiar. Como sugere Altman (1995:99),

a AIDS apareceu em uma época histórica que tinha vivenciado o desenvolvimento do gênero e da sexualidade como bases para mobilização política e muitas das mais efetivas respostas à nova epidemia foram moldadas por discursos e experiências de certos movimentos sociais.

Podemos afirmar, sem dúvida, que o movimento homossexual teve (e ainda tem hoje) grande influência na estruturação de ações contra a epidemia. Instauravam, assim, um projeto político de despatologização da homossexualidade, tentando, através de investimentos publicitários, panfletos, manifestações de rua, afastar as idéias de que a homossexualidade é uma doença e, acima de tudo, que a AIDS seria um “câncer gay”, idéia corrente na época. Com o engajamento de grupos homossexuais na luta contra a AIDS e com a criação das ONGs-AIDS, no início da década de 1990, o Governo brasileiro viu-se forçado a patrocinar projetos de enfrentamento e prevenção da doença. Em meados da década de 1990, o país recebeu um empréstimo de 160

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milhões de dólares do Banco Mundial (KULICK & KLEIN, 2001). Com parte desse montante, o Ministério da Saúde apoiou as ONGs-AIDS e ONGs de ativismo LGBTTT na luta contra a epidemia. A partir de então, as instituições não-governamentais que estavam na luta de conscientização e prevenção à epidemia causada pelo vírus HIV tiveram autonomia para elaborar projetos para grupos específicos. Observe que na breve historicização do surgimento, no Brasil, dos movimentos homossexuais e de prevenção à AIDS acima oferecida, a participação das travestis não é mencionada. Isso tem uma surpreendente razão. As travestis, na história da organização do movimento político homossexual brasileiro, eram quase que sumariamente excluídas desses grupos, sendo relegadas a uma fatia inexpressiva dos movimentos e de seus projetos político-sociais. Talvez essa exclusão esteja relacionada ao fato de que os/as militantes preferiram não trazer à tona a figura das travestis, por essas subverterem as regras hegemônicas de como lidar com o corpo e a sexualidade. Isso impeliu as travestis a uma dupla exclusão: dos grupos ativistas pelos quais deveriam ter sido acolhidas e da sociedade em geral. A figura das travestis só veio fortemente à tona, nesse cenário, quando da criação de algumas ONGs-AIDS que, em seus projetos de prevenção e conscientização sobre a doença, incluíram-nas no seu escopo de atuação (ver, por exemplo, KLEIN, 1998). Foi nesse contexto que a ONG Liberdade nasceu. Idealizada por algumas travestis que participavam dos grupos sistemáticos de discussão sobre prostituição de uma das sedes do Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA), a Liberdade foi inaugurada em 1999 a partir dos esforços de travestis que se viam desprivilegiadas nos projetos implementados pelo GAPA que, segundo as travestis participantes da Liberdade, não eram especificamente voltados aos problemas sociais sofridos pelas

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travestis. Esses projetos tinham como principal foco de sua atenção a prevenção de DST/AIDS entre profissionais do sexo da Cidade do Sul. Porém, a infecção pelo vírus HIV não é o único problema enfrentado pelas travestis, especialmente aquelas que se prostituem. Violência, discriminação, falta de acesso à escolarização e ao mercado de trabalho, segregação, problemas de saúde causados pela utilização de silicone e hormônios femininos dão às travestis uma vida com muitos obstáculos. Insatisfeitas com esse cenário, Cassiana, Marcela, Claudia e Cynthya engajaram-se na organização da ONG Liberdade. Essa ONG idealiza, organiza e implementa projetos com os mais diferentes propósitos: da diminuição dos danos causados pela injeção de silicone industrial nos corpos das travestis à distribuição de preservativos nas áreas de prostituição da cidade. Em outras palavras, esse é o cenário sócio-cultural onde o presente estudo se insere, ou seja, o âmbito institucional dessa ONG e seus projetos com as travestis da cidade.

1.2.2. As intervenções

Cena 4

Saímos do posto de gasolina onde distribuíamos preservativos para caminhoneiros, costumeiros clientes das travestis, às 19:00. A noite já tinha caído e, embora a primavera já começara, fazia bastante frio. As intervenções foram criadas pela equipe da Liberdade e são patrocinadas pelo Ministério Público que fornece as camisinhas. O combustível é pago com dinheiro particular, da advogada e da secretária, pois o ministério não disponibiliza verba para esse tipo de serviço.

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Sandra, Márcia e eu percorremos a cidade de norte a sul à procura de pontos de prostituição de travestis. Segundo depoimentos, as zonas de batalha, como são popularmente chamadas, eram em maior número há alguns anos. No entanto, problemas com a polícia, governo, drogas, clientes e dinheiro provocaram uma queda no número de travestis que trabalham nos territórios de prostituição da Cidade do Sul. As intervenções são executadas todas as terças, caso não chova e/ou o carro da ONG não esteja estragado. A equipe começa o trabalho aproximadamente às 17 horas, com os caminhoneiros, e termina na zona sul da capital, não antes do inicio da madrugada. Somente travestis são beneficiadas com o serviço. Segundo Márcia, mesmo que sobrem preservativos, ela não os distribui entre as prostitutas mulheres por dois motivos: “elas têm a ONG delas que ganhou o carro pra fazer a intervenção, mas não faz. Eu não dou camisinhas pra putas porque eu prefiro as mona.” [Diários de campo, 30/09/2003]

Durante as intervenções, Sandra e Márcia, pessoas que têm se construído como mulheres em gênero e sexo, entregam preservativos às travestis e engajam-se em práticas discursivas que, como tento argumentar neste trabalho, configuram ricos milieux para a subversão das construções discursivas normativas de identidades de gênero. Essas intervenções acontecem às terças-feiras à noite. Normalmente, Sandra e Márcia deixam a sede da Liberdade aproximadamente às 19 horas e percorrem cerca de quatro pontos de prostituição rueira nos quais a travestis vendem seus serviços, de norte a sul da cidade. O projeto das intervenções tem apoio dos Governos Federal e Estadual que concedem à ONG os preservativos a serem distribuídos. Tais intervenções são efetuadas em um carro, doado à Liberdade pelo Ministério Público, que é dirigido por Sandra. Márcia, durante as intervenções, encarrega-se de entregar os preservativos às

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travestis abordadas e de anotar em um relatório o número de preservativos entregue em suas incursões semanais no mundo da noite. Durante minha observação das intervenções, eu ficava no banco de trás do carro, com meu gravador em mãos, atento às interações produzidas entre interventoras e entre interventoras e travestis. Segundo o estatuto da ONG Liberdade, essas intervenções visam (1) à distribuição de preservativos e saches de gel lubrificante às travestis nos seus territórios de prostituição e (2) ao anuncio dos diversos serviços prestados pela instituição, como por exemplo, as reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde, workshops, aconselhamento sobre questões legais elaborados por Sandra e outra advogada associada à ONG. Segundo a travesti presidente da Liberdade, a incursão de representantes oficiais da ONG nos territórios de prostituição travesti da Cidade do Sul tem aumentado a popularidade da organização, pois ao inserir-se em ambientes nos quais um grande número de travestis se encontram, Sandra e Márcia têm a possibilidade de atingir uma gama maior de profissionais do sexo e tentar convencê-las a participar dos grupos de ativistas ligados à Liberdade. Faz-se mister observar que, durante as intervenções, Sandra e Márcia, além de exercer as funções institucionais que motivam suas visitas às áreas de prostituição de travestis, engajam-se em interações sobre os mais diversos assuntos relacionados às travestis: suas relações com clientes e namorados, violências sofridas, fofocas sobre outras travestis, dicas de moda etc. É interessante observar que nada é dito sobre a prática de sexo seguro e/ou sobre a utilização dos preservativos distribuídos. Nem mesmo a entrega dos preservativos é comumente verbalizada. Esses fatos podem ser indicativos dos significados dados às intervenções pelas interventoras e travestis: a educação sobre sexo seguro fica em segundo plano, pois, o que há de mais importante é consolidar

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relações sociais, emocionais e identitárias entre as interventoras e suas interlocutoras travestis e entre as travestis profissionais do sexo e a ONG Liberdade. Ademais, esse projeto da ONG Liberdade também tem como função anunciar entre as travestis os diferentes serviços prestados pela ONG e a importância de sua participação efetiva nos grupos de discussão organizados pela equipe. Esses grupos de discussão acontecem às quartas-feiras à tarde e, em geral, reúnem em torno de 30 travestis. Durante essas reuniões, oficinas são ministradas por convidados/as da ONG. Essas oficinas têm objetivos variados, como por exemplo, a conscientização sobre direitos humanos, explicação de questões legais referentes a problemas enfrentados pelas travestis da cidade, cursos de profissionalização como corte e costura e produção de velas artesanais.18 Durante as intervenções, Sandra e Márcia aproveitam seus encontros com um grande número de travestis para convidá-las a participar das reuniões que acontecem na tarde do dia seguinte. É importante enfatizar que as intervenções acontecem enquanto as travestis estão vendendo seus serviços no “mundo da noite”. Isso tem implicações cruciais para o serviço das interventoras. Muitas vezes ouvi, das interventoras, reclamações sobre os perigos enfrentados enquanto Sandra e Márcia efetuavam seu trabalho de prevenção de DST/AIDS nos territórios de prostituição travesti. Benedetti (2005:44) sugere que o “mundo da noite” é “uma dimensão espaço-temporal em que práticas sociais específicas são experimentadas, outros códigos e valores estão em jogo e têm lugar emoções e sentimentos específicos”. Trabalhar no “mundo da noite” significa entrar em

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No ano de 2003, por ocasião de um grande evento internacional que ocorreria na cidade, eu ministrei algumas aulas de inglês a um pequeno grupo de travestis. Segundo a ONG Liberdade, esse evento traria muitos turistas estrangeiros à cidade, o que poderia render bons lucros às profissionais do sexo que soubessem um pouco da língua inglesa para negociar com seus potenciais clientes “gringos”.

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contato com um universo de práticas sociais particulares que estruturam esse universo. A violência é ali uma habituée. Durante o período de trabalho com a ONG Liberdade, conheci histórias terríveis de travestis violentadas e/ou assassinadas enquanto trabalhavam. Sandra e Márcia me pareciam sempre muito tensas enquanto executavam a entrega de preservativos na batalha. Outra questão relevante a ser mencionada é que as áreas de prostituição travesti são importantes milieux para o aprendizado de gênero das travestis. “Os territórios de prostituição constituem um importantíssimo espaço de sociabilização, aprendizado e troca” (BENEDETTI, 2005:115), é na batalha que elas encontram ricas experiências de construção de sua identidade como travestis (KULICK, 1998). As intervenções inseremse nesse contexto. Sandra e Márcia, por construírem-se em categorias identitárias tidas como tradicionais, podem ser consideras estranhas às práticas generificadoras experienciadas pelas travestis em seus espaços de prostituição, o que pode ser um fator importante na estruturação dos processos discursivo-identitários confeccionados durante as intervenções. É na batalha que a fricção de identidade entre interventoras e travestis toma corpo. Essa fricção, a meu ver, funciona como força motriz para as flutuações identitárias elaboradas pelas interlocutoras, transformando as intervenções em palcos sobre os quais múltiplas e fragmentadas performances identitárias vêm à baila. Por um lado, as interventoras constroem-se, cotidianamente, como participantes de categorias identitárias hegemônicas em relação às travestis, como gênero, classe social, sexualidade e profissão. Por seu turno, as travestis, como tem sido descrito em várias etnografias sobre esse grupo (ver, por exemplo, KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005), se constroem na contramão de discursos normativos, sobrepondo insígnias do feminino e

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do masculino na produção de suas posições de sujeito e, assim, se alocando em categorias tidas como não-tradicionais relacionadas ao gênero, à sexualidade e à profissão. Portanto, as intervenções aqui analisadas constituem um rico lócus para que possamos entender alguns dos processos discursivo-identitários trazidos à tona pelo turbilhão de novas formas de construção identitárias encontradas no mundo contemporâneo.

1.3. Lingüística Aplicada e educação para sexo seguro: uma relação necessária

À primeira vista, pode-se crer que uma investigação das práticas descritas acima seja primordialmente guiada por eixos antropológicos. Porém, meu objetivo não é somente examinar as práticas sócio-culturais presentes nas intervenções. Meu propósito é investigar como a linguagem é utilizada nessas práticas discursivas e sua relação com a negociação (e contestação) de identidades entre travestis e as interventoras no seu trabalho de prevenção de DST/AIDS. Levando em consideração que nossas identidades sociais são fenômenos, em grande medida, discursivos (CAMERON, 2001, MOITA LOPES, 2002, 2003; ECKERT & MCCONNELL-GINET, 2003; BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) tento entender qual a relação mantida entre linguagem e identidades de gênero nas intervenções da ONG Liberdade.

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Meu interesse, portanto, é na linguagem. A lingüística aplicada (LA) mostra-se uma área de conhecimento apropriada para abrigar minha investigação. Tal área pode me fornecer ferramentas para descrever as conexões entre o uso de língua nas intervenções e as identidades das participantes de tal prática. Moita Lopes (2006a) entende que o objetivo da LA “é criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” (p. 14), ou seja, a LA é “uma ciência social, já que seu foco é em problemas de uso da linguagem enfrentados pelos participantes do discurso no contexto social” (MOITA LOPES, 1996:20). Como ciência social, então, cabe à LA lançar seus interesses de pesquisa sobre todo e qualquer uso da linguagem socialmente situado. É essa posição que justifica meu interesse em trazer um estudo sobre travestis e prevenção de DST/AIDS para o âmbito da LA. Como grupo cultural, social e politicamente estruturado, as travestis (e as teias de significados que as rodeiam) configuram um estrato de nossa cultura que precisa ser investigado não somente por um viés antropológico, mas também discursivo para que possamos compreender os processos de produção lingüística/semiótica de suas posições em nossa sociedade. Como indica Moita Lopes (2006d), “os limites da LA estão se alargando”, o que traz implicações para o projeto epistemológico dessa área do conhecimento. Segundo esse autor, a LA, como ciência social, deve ter algo a dizer sobre a vida social contemporânea para que, dessa forma “se abram alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem: os pobres, os favelados, os negros, os indígenas, homens e mulheres homoeróticos, mulheres e homens em situação de dificuldades sociais [...]” (MOITA LOPES, 2006d:86). É com isso em mente que, aqui, consoante Moita Lopes (2006a), tento apresentar uma sugestão temática e teórico-metodológica de alargamento do escopo analítico da LA,

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tentando aproximar esse campo de investigação a um contexto sócio-cultural relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS, no caso em tela, entre travestis que se prostituem. Por mais de 30 anos, as modificações corporais elaboradas pelas travestis que transcendem as fronteiras que distinguem o feminino do masculino têm intrigado cientistas sociais e o público em geral (MOTT & ASSUNÇÃO, 1987; SILVA, 1993, 1996; OLIVEIRA, 1997; SILVA & FORENTINO, 1996; KULICK, 1997, 1998; BENEDETTI, 2000, 2005). Vê-se então que “há farta literatura a interpretar, explicar e diagnosticar o travestitismo [sic], fenômeno de ocorrência universal. Mas, social e culturalmente, só podemos entendê-lo circunscrevendo-o a um contexto específico” (SILVA, 1996:97). Seguindo Silva (1996), os/as pesquisadores/as que se aventuraram no universo trans (BENEDETTI, 2005) para entender o fenômeno da travestilidade tentaram fazê-lo ao contextualizar as práticas travestis em seus contextos específicos (a Lapa no Rio de Janeiro (SILVA, 1996), as ruas e as moradas conjuntas de travestis em Salvador (KULICK, 1998), bares gays de Florianópolis (OLIVEIRA, 1997) e o fundão, a zona de prostituição de travestis, em Porto Alegre (BENEDETTI, 2005) são exemplos dessa literatura). Porém, os estudos citados, com exceção de Kulick (1997, 1998), analisam a visão que as travestis têm de si mesmas e como elas se constroem como indivíduos generificados desconsiderando um aspecto altamente relevante ao processo de construção das identidades sociais: a linguagem e seus usos dentro de comunidades específicas. Assim, a maioria dos estudos sobre as travestis brasileiras deixa para trás o fato de que “a linguagem tem um papel crucial na estruturação de nossa experiência” (COATES, 1998:301). Mais especificamente, como Eckert e McConnell-Ginet (2003) explicam, “a linguagem entra nas práticas sociais que generificam os indivíduos, suas

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atividades e idéias de muitas maneiras diferentes; o desenvolvimento de categorias como ‘mulher’ e ‘homem’ sendo somente uma pequena parte da história” (p. 464). Destarte, recorrendo a Eckert e McConnell-Ginet (1992) novamente, a linguagem é aqui tomada “como um recurso simbólico e comunicativo chave, central para o desenvolvimento das maneiras de pensar e agir que dão às comunidades de práticas suas características” (p. 483). Pode-se, então, identificar uma lacuna a ser preenchida: o estudo das práticas discursivas nas quais as travestis se engajam e sua relevância na fabricação da identidade desses indivíduos e dos indivíduos com quem interagem. Faz-se, neste momento, necessário observar que “a relação entre [travestis] e a linguagem é uma relação de différance mútua, de fluidez mútua que excede significados fixos, que se mantém sempre plural e continuamente rompe a marcação de fronteiras” (KULICK, 1999:616). Dessa maneira, cabe a nós, estudiosos/as da linguagem, tentar explicar como se dá a construção discursiva das identidades de indivíduos transgêneros. Tendo também em perspectiva que “a linguagem é, ao mesmo tempo, a determinante central do fato social [...] e o meio de se ter acesso a sua compreensão” (MOITA LOPES, 1994:332), tenta-se aqui entender os significados construídos durante as intervenções e a lógica que os estrutura para, no final do percurso, chegar a uma possível compreensão. Uma pesquisa no universo acima descrito e baseada nesse posicionamento em relação à LA deve ser necessariamente interpretativista. Com isso quero dizer que a captação das camadas de significados construídos no trottoir entre travestis e interventoras depende de uma posição não generalizadora e universalizante. Tal posição não seria capaz de entender a fluidez e a ambigüidade das práticas que configuram o habitus (BOURDIEU, 1977; 1985) travesti. Acredito que o interpretativismo

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através de “uma generalização construída intersubjetivamente, que privilegia a especificidade, o contingente e o particular” (MOITA LOPES, 1994:332) seja um paradigma epistemológico apropriado para entender os significados polissêmicos confeccionados nas intervenções, pois esses significados, em contextos diferentes e com interlocutores/as diferentes, transmutam-se. Destarte, generalizar sobre os embates discursivo-identitários estabelecidos entre travestis e interventoras nunca captaria a forma cambiante e fragmentada de sua participação desses eventos. Portanto, os dados gerados são de natureza qualitativa. Como indica Holmes (1992), “o interpretativismo foca em dados qualitativos, desse modo o objetivo não é tanto ser capaz de mensurar os fenômenos, mas ser capaz de descrevê-los, entendê-los e interpretá-los” (p.41). Segue-se, então, que minha pesquisa não visa a uma generalização acerca das práticas realizadas durante as intervenções. Quero, pelo contrário, centrar meus esforços para entender uma instância bem particular do universo trans: a entrega de preservativos a travestis em uma metrópole da região sul do Brasil feita por ativistas da ONG Liberdade. Desse modo, me preocupo com as idiossincrasias desse contexto e, seguindo uma perspectiva interpretativista, objetivo entendê-lo em suas especificidades e não chegar a conclusões sobre todas as possíveis intervenções feitas com travestis em outras regiões do território brasileiro.

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2.

DISCURSOS E IDENTIDADES: CONSTRUINDO O REFERENCIAL TEÓRICO

Cena 5

Conversávamos em tom deliciosamente informal na sede da Liberdade em uma quente tarde de quarta-feira. Cassiana, sempre muito bem informada, contava as novidades sobre as ‘monas’ da Cidade do Sul: Cynthya estava ‘batendo porta’19 como prostituta em Paris; chegara à cidade uma travesti be-lís-si-ma nascida em Manaus; Suzi andava ‘sumida’ pois estava envolvida em rituais do candomblé; Thalia fora impedida de entrar no banheiro feminino de um shopping e fez um escândalo... Todas essas informações eram comentadas em diferentes tonalidades: ironia, sarcasmo, risos e muitos conselhos. Bárbara, em certo momento, fala sobre sua nova estratégia de inserção no mercado sexual da cidade: anunciaria seus serviços em classificados de jornais! Cassiana e Marcela, respectivamente coordenadora e tesoureira da ONG, já haviam utilizado tal recurso e aproveitam a oportunidade para aconselhar a iniciante. Bárbara deveria escolher o jornal de acordo com seu público alvo. Além disso, a compra de um celular exclusivo para o serviço deveria ser agilizada e, o mais importante, o texto do anúncio teria que ser muito bem pensado. Todas presentes sugeriram um possível texto. Até mesmo eu tentei ajudar. Minutos depois, Bárbara, entusiasmada, tem uma idéia que, segundo ela, atrairia muitos clientes. Porém, manteve segredo (afinal, alguma presente poderia roubá-la). Dias depois, recebo uma ligação, Bárbara pedia minha opinião sobre seu anúncio. Abro o jornal e procuro a página por ela indicada. Lá

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Termo êmico que se refere à freqüência dos programas feitos. Bater porta faz alusão ao ato de entrar e sair dos carros dos clientes.

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encontro seu texto: “Bruna20, corpo de Eva com o melhor de Adão”. [Diários de campo, 21/01/2004]

Na cena acima ilustrada, Bárbara, ao anunciar seus serviços sexuais em um jornal, faz uso de discursos que a constroem na intersecção da feminilidade e da masculinidade (BORBA & OSTERMANN, 2007), ilustrando, assim, o poder que o discurso tem de prover identidades às pessoas através de práticas discursivas que colocam suas vidas em sociedade. Com o intuito de “atrair muitos clientes”, a anunciante faz uso de discursos que, ao serem sobrepostos, produzem o efeito de uma identidade específica: a identidade travesti. Bárbara, dona de um “corpo de Eva” que mantém “o melhor de Adão”, sublinha os atributos corporais que a constroem nos limiares de discursos sobre o gênero social disponíveis em uma sociedade fortemente católica. A feminilidade, a candura e a pureza associadas à imagem bíblica de Eva são entrelaçadas à virilidade representada pelo corpo de Adão. Ao valer-se de discursos e imagens que, segundo ela, podem garantir-lhe uma boa clientela, Bárbara discursivamente apropria-se de atributos identitários que visam enfatizar a construção de sua própria identidade baseada na manipulação de uma biologia masculina na tentativa de moldar seu corpo com formas e atributos simbólicos convencionalmente ligados às mulheres. Dessa forma, o anúncio utilizado por Bárbara pode ser relacionado

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É comum entre as travestis a utilização de vários nomes que são contextualmente específicos. Assim, uma travesti tem um nome feminino para o círculo de seu convívio social, outro para a prática de prostituição rueira, mais um para a prostituição via Internet e, como no caso ilustrado, um nome específico para os anúncios em jornais. Esse padrão de uso de pseudônimos foi também descrito por Benedetti (2005:49).

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ao aporte teórico que guia esta investigação: a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais (MOITA LOPES, 2002, 2003). Segundo essa perspectiva, nossas identidades são construídas através do discurso, não havendo, assim, uma identidade única alocada na psiché dos indivíduos. Pelo contrário, as identidades são fabricadas no momento do engajamento em algum embate discursivo (MOITA LOPES, 2003; CAMERON, 2001; DAVIES & HARRÉ, 1990), sendo, assim, o resultado/efeito dos processos sócio-culturais e interacionais nos quais nos envolvemos cotidianamente (MOITA LOPES, 2001, 2005; K. HALL, 2005; BUCHOTLZ & HALL, 2004; BUCHOLTZ, 1999; ECKERT & MCCONNELL-GINET, 1992). Moita Lopes (2002) afirma que “as identidades sociais não estão nos indivíduos, mas emergem na interação entre os indivíduos agindo em práticas discursivas particulares nas quais estão posicionados” (p.37). Desse modo, as identidades não estão prontas nem fixas, mas situadas em processos discursivos que as constroem a partir de propósitos localmente negociados. A visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais é baseada na premissa de que “cada um de nós é membro de muitos Discursos, e cada Discurso representa uma de nossas múltiplas identidades” (GEE, 1990: xix). Gee (1990) e Gee & Lankshear (1997) utilizam o termo Discurso, com D maiúsculo, para se referir a modos de ser no mundo social, a diferentes formas de vida e a diferentes práticas que sinalizam diferentes identidades. Consoante Gee & Lankshear (1997), recorremos a determinados Discursos “em momentos e lugares apropriados [...] para sinalizar participação em [...] um grupo social particular” (p.97). Assim, ao nos engajarmos em algum embate discursivo, temos a oportunidade de fazer usos de determinados

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Discursos

para

nos

(re)construir

e,

simultaneamente,

(re)construir

nossos/as

interlocutores/as como determinados tipos de pessoas.21 Com isso não se afirma que acordamos a cada dia como outra pessoa completamente diferente. Muito pelo contrário. Como observa Fabrício (2006:46), “existir seria existir sempre em movimento, em meio a oscilações entre continuidades e rupturas”; é a partir dessas oscilações entre discursos de identidades que podemos perceber um certo grau de estabilidade que nos ajuda a manter uma certa coerência identitária em nossas interações. Fabrício e Moita Lopes (2004), recorrendo à filosofia da linguagem de Wittgenstein, sugerem que

a utilização do critério de identidade (em relação às coisas ou às pessoas), supondo a existência de identidades iguais a si mesmas, diz respeito a uma operação lógica, instauradora de algum grau de estabilidade para os sentidos, a qual exerce sobre nós uma força coercitiva, pois constitui uma estratégia para lidar com o caráter cambiante do significado. O efeito de estabilidade não seria intrínseco às idéias em jogo, mas sim atributo do uso, único responsável por certa constância na significação. Assim sendo, o conceito de identidade funciona como um conceito operacional que, subordinando-se a regras de uso que aprendemos a reificar, possibilitaria a criação de sentido entre as pessoas. (p.15)

Segundo autora e autor, a estabilidade deve ser considerada como um efeito do uso repetido de padrões identitários; não um aspecto intrínseco às identidades. Essa estabilidade só pode se percebida através de um escrutínio público que decide “o que conta como ‘o mesmo’” (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004:16). Assim, ao nos movimentarmos em diversos discursos que constituem nossas identidades sociais, produzimos o efeito de estabilidade ao nos colocarmos no palco interacional sobre o 21

Para evitar uma inflação conceitual, utilizo, no decorrer do texto, “discurso”, com d minúsculo, para me referir ao mesmo conceito.

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qual a audiência decide o que conta como sendo nós mesmos. Outro fator importante na construção da estabilidade (operacional) das identidades é a questão da repetição de discursos que, ao serem proferidos, produzem um efeito de substância, como bem observa Butler (1990/2003). Segundo os argumentos dessa autora, as identidades parecem ser naturais e estáticas, pois os indivíduos reproduzem discursos já sedimentados na cultura, o que produz um efeito de continuidade e essência. Porém, como argumenta Butler (1990/2003), os indivíduos têm a potencialidade da repetição subversiva. Isso quer dizer que podem reificar discursos a eles disponíveis, porém, sobrepondo-os a outros significados e produzindo arranjos identitários inauditos. Ao utilizar enunciados de discursos particulares, os indivíduos neles se alocam e passam a ser percebidos como membros de determinados grupos. Não se afirma com isso que utilizamos os discursos necessariamente para reclamar participação em grupos específicos.

Ao viver socialmente, circulamos por uma multiplicidade de

discursos que podem nos alocar em diferentes lugares sociais sem substancialmente participarmos dos grupos a eles associados. O engajamento com um (ou vários) discurso(s) é elaborado com base nos propósitos interacionais locais. Dessa forma, os indivíduos não estão presos a posições de sujeito fixas que os privam de agência sobre a escolha dos significados nos quais circulam (K. HALL, 1995; CAMERON, 1997; MATOESIAN, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003; MOITA LOPES, 2006b). À medida que vivemos socialmente, circulamos por discursos dos quais podemos nos valer em momentos e lugares apropriados. A escolha de discursos específicos depende (1) do acesso a esses discursos e (2) dos/as interlocutores/as aos/às quais nosso discurso é dirigido (volto a essa questão mais detalhadamente abaixo).

59

Como indica Moita Lopes (2003:27), “aprendemos a ser quem somos nos encontros interacionais de todo dia”. Por conseguinte, vemos que, em oposição à visão tradicional da sociolingüística variacionista, segundo o socioconstrucionismo, não falamos A, B ou C porque somos X, Y ou Z. Muito pelo contrário. Nos constituímos como X, Y ou Z ao falarmos A, B ou C. Assim, o discurso tem uma natureza constitutiva, pois ao nos engajarmos em práticas discursivas não só representamos o mundo, mas também o construímos (FAIRCLOUGH, 2001; MOITA LOPES, 2001, 2002, 2003, 2006b). Vê-se, portanto, que, a partir dessa perspectiva, adota-se uma posição anti-essencilista no sentido de que as identidades não são dadas a priori, não são prédiscursivas, mas emergem de nosso engajamento em vários discursos na vida social. Ao considerar as identidades como construídas no/pelo/através do discurso, nos deparamos com seu caráter contraditório, fragmentado e processual, pois em cada prática discursiva os indivíduos podem se constituir diferentemente vis-à-vis o contexto sócio-histórico-cultural específico e vis-à-vis os/as outros/as participantes da interação. Dessa maneira, por exemplo, uma mulher que habitualmente se descreve como negra, de classe trabalhadora, lésbica e mãe pode enfatizar determinados traços de seu feixe identitário (MOITA LOPES, 2003) e amenizar outros por razões determinadas localmente na interação. Aqui, seguindo Moita Lopes (2002, 2003), aludo a dois aspectos importantes da visão socioconstrucionista adotada nesta investigação: a alteridade (BAKHTIN, 1979/2003; 1929/1997) e a situacionalidade (LINDSTROM, 1992). Em outras palavras, todo e qualquer discurso é produzido por alguém que tem marcas sócio-históricas particulares e é direcionado a alguém, com suas marcas identitárias, em um contexto de produção específico. O anúncio de Bárbara, descrito acima, exemplifica tal processo. A travesti, enfatizando seus atributos corporais,

60

anuncia seus serviços sexuais tendo em mente um leitor projetado22, i.e. um que se interesse sexualmente por um corpo que sobreponha índices de feminilidade e de masculinidade.23 Esses dois aspectos sublinham o papel social do discurso, nessa perspectiva entendido como ação sobre o mundo. Alteridade e situacionalidade indicam que “as pessoas usam a linguagem a partir de suas marcas sócio-históricas como homens, mulheres, homoeróticos, heterossexuais, etc., ao mesmo tempo que [...] se reconstroem ao agirem uns em relação aos outros via linguagem” (MOITA LOPES, 2003:25). Isso quer dizer que não usamos a linguagem com um/a falante simplesmente, mas, com, por exemplo, uma mulher, heterossexual, de classe média, feminista, branca, advogada, procedente de uma família judia24, ou, pelo menos, de acordo com nossa construção/interpretação de tal mulher. Em outras palavras, os atributos do feixe identitário de nossos/as interlocutores/as influenciam a nossa escolha de significados para a participação em um embate discursivo. Destarte, “o tipo de pessoa por meio do qual se é reconhecido, em um dado momento e lugar, pode mudar de momento em momento da interação, pode mudar de contexto para contexto, e, claro, pode ser ambíguo e instável” (GEE, 2001:99 apud MOITA LOPES, 2003:20). Os

processos

de

construção

discursiva

de

identidades

sociais

são

intersubjetivos, dialógicos e relacionais (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004) no sentido

22

Propositalmente, faço uso da generalização no masculino para me referir aos clientes das travestis, pois, como já observado por Kulick (1997, 1998), Benedetti (2005) e Pelúcio (2005), esses indivíduos têm, inexoravelmente, performances corporal, social e sexual associadas à masculinidade hegemônica. 23 Ao serem perguntadas por que são tão procuradas no mercado sexual, todas as minhas colaboradoras travestis deram respostas similares nas quais indicavam que os homens as procuram, pois desejam “uma mulher com algo a mais”. É isso, me parece, que Bárbara leva em consideração ao elaborar o texto para seu anúncio. Para discussões sobre os clientes das travestis ver Kulick (1998) e Pelúcio (2005a, c). 24 Utilizo propositalmente, como exemplo, as marcas identitárias construídas por Sandra, umas das interventoras funcionárias da ONG Liberdade que participou do presente estudo.

61

de que os efeitos de identidades produzidos pelo discurso são sempre postos sob o escrutínio do outro e são influenciados pelo contexto no qual os/as participantes discursivos estão inseridos/as. No que se refere especificamente ao estudo dos processos discursivos instaurados pela fricção de alteridades nas interações entre mulheres e travestis, a visão socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais nos fornece um aparato teórico-analítico que possibilita criar inteligibilidade sobre as flutuações identitárias elaboradas pelas participantes dos eventos aqui investigados. Segundo Fabrício & Moita Lopes (2004:16)

O socioconstrucionismo aponta para o nosso contínuo envolvimento no processo de autoconstrução e na construção dos outros, o que implica dizer que, nas práticas discursivas em que estamos situados, tornando o significado compreensível (ou não) para o outro, construímos a outridade ao mesmo tempo em que ela nos constrói. Como seres sociais, estamos sempre em movimento no processo de vir a ser socialmente [...].

As características do discurso acima descritas (i.e, alteridade, situacionalidade, dialogicidade

e

intersubjetividade)

são

pressupostos

teóricos

cruciais

para

compreendermos as interações entre travestis e mulheres ativistas de prevenção de DST/AIDS aqui investigadas. Grosso modo, no que tange o aspecto situacional, tais interações são inseridas nos territórios de prostituição das travestis na Cidade do Sul – importantes locais para sua socialização e aprendizado de gênero (KULICK, 1998; BENEDETTI, 2005). No que se refere à alteridade, essas interações são estruturadas a partir do que aqui chamo fricção de alteridades no sentido de que as interventoras (indivíduos que se constroem e são construídos como representantes de identidades tradicionais) engajam-se no discurso com travestis cuja construção de identidades

62

extrapola discursos tradicionais de gênero e sexualidade. Portanto, a alteridade de ambas as partes é uma categoria fundamental para investigarmos tais eventos discursivos. A intersubjetividade é abordada aqui sob o prisma do modelo teórico-analítico proposto por Bucholtz & Hall (2003, 2004, 2005, no prelo) intitulado táticas de intersubjetividade no qual considera-se a construção identitária via linguagem como um produto das relações entre participantes discursivos engajados/as na construção de suas identidades vis-à-vis as identidades (percebidas ou construídas) de seus/suas interlocutores/as (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; BUCHOLTZ, 2003; K. HALL, 2005). Essas relações são descritas no próximo capítulo à medida que caracterizo o aporte analítico sobre o qual a análise das intervenções será efetuada.

63

3.

(RE)CONSTRUINDO IDENTIDADES NA INTERAÇÃO: AS TÁTICAS DE INTERSUBJETIVIDADE

As dinâmicas (políticas, econômicas, sociais, culturais, históricas e geográficas) que têm produzido uma multiplicidade de marcas identitárias que há 30 ou 40 anos eram impensáveis não são recentes.25 No mundo contemporâneo, convivemos com uma grande variedade de arranjos identitários o que produz, em nosso dia-a-dia, múltiplos choques entre as características de nosso feixe de identidades (MOITA LOPES, 2003) e aquele de nossos/as interlocutores/as. Nas ciências sociais, mais especificamente, na antropologia, as fricções de alteridades têm gerado uma profícua reflexão por parte dos/as pesquisadores/as. A clássica imagem de Malinowski assistindo seu navio partir, deixando-o abandonado e perplexo entre os trombiandeses, com suas roupas e decoração corporal exóticas (MALINOWSKI, 1976), foi seminal para que antropólogos/as produzissem detalhadas descrições dos atritos causados pelas diferenças geográficas, culturais, lingüísticas e de gênero trazidas à tona por sua inserção em lugares sociais nos quais são, pelo menos no início do trabalho de campo, 25

Ver Bauman (2005), Chouliaraki & Fairclough (1999), Giddens, Beck & Lash (1997) e Giddens (2000) para instigantes discussões sobre esses processos.

64

estrangeiros/as. Tais choques entre as identidades percebidas de pesquisadores/as e nativos/as podem ser debitados às diferentes formas por meio das quais esses indivíduos se constroem socialmente. Quando, por exemplo, uma travesti que se prostitui em São Paulo aconselha a antropóloga Larissa Pelúcio a “deixar a buceta em casa” antes de sair para fazer sua etnografia (PELÚCIO, 2007), ela se vê perplexa e engendra um complexo processo de relativização de sua posição como pesquisadora e como ser social: afinal, Pelúcio tem um status social e um corpo que a distinguem de suas informantes. Em sua pesquisa sobre as configurações conjugais entre lésbicas de camadas médias do Porto Alegre, Nádia Meinerz (2007), uma jovem antropóloga heterossexual, descreve o constante estado de ansiedade de suas informantes em relação ao momento em que a pesquisadora “sairia do armário”, afirmando-se lésbica.26 Dessa forma, fricções emergem da relativa ou total discordância entre as construções sociais dos/as interagentes e incitam processos de (re)negociação de posições sociais entre os e as participantes de práticas culturais. Gênero, sexualidade, classe social, corporalidade, religião, linguagem e origem geográfica podem ser fontes para sofisticados processos de administração das diferenças percebidas ou construídas entre interlocutores e interlocutoras. Com o intuito de investigar como essa administração é elaborada discursivamente, utilizo o conceito de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) na tentativa de compreender as fricções produzidas pela dissonância entre as marcas identitárias das interventoras da ONG Liberdade e suas interlocutoras travestis. A seguir, descrevo as

26

Ver Bonetti & Fleischer (2007) para discussões sobre as “saias justas” e os “jogos de cintura” produzidos pelos choques identitários, culturais e simbólicos entre pesquisadoras e informantes durante trabalho de campo.

65

ferramentas analíticas utilizadas neste trabalho para entender as construções, reconstruções e administração das identidades das participantes dos eventos estudados.

3.1. As táticas de intersubjetividade

Basilar para a perspectiva das táticas de intersubjetividade proposta por Bucholtz e Hall (2005) é a premissa de que a “identidade é o posicionamento social do eu e do outro” (p.586). Deliberadamente abrangente, tal conceito indica que a identidade é um construto

fundamentalmente

discursivo

(visto

que

os

posicionamentos

são

discursivamente construídos) que emerge e circula em contextos locais de interação, como, de fato, já indicado anteriormente. A partir dessa premissa, as autoras sugerem que as pesquisas sobre identidade devem centrar seus esforços sobre relações entre linguagem, cultura e sociedade para que possamos descrever os processos através dos quais as identidades sociais são produzidas. Destarte, as identidades são vistas como produtos de ação social situada (BUCHOLTZ & HALL, 2003; BUCHOLTZ & HALL, no prelo). Bucholtz e Hall (2005:585-586) consideram a identidade “como um fenômeno relacional e sociocultural que emerge e circula em contextos discursivos locais”. Para as autoras, as identidades são produtos/efeitos de práticas socioculturais que somente podem ser verificadas através de estudos etnográficos que analisem, com atenção, as performances locais dos indivíduos. Essas performances incluem tanto categorias de

66

nível macro como posições culturais que emergem etnograficamente. É na intersecção entre o micro e o macro que as identidades são construídas através de performances que expressam em sua encenação as ideologias que informam essa construção (ver, por exemplo, CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999; BARRET, 1999; BESNIER, 2003; HALL, 2005; MOITA LOPES, 2006b). Com base nessa perspectiva, os indivíduos coconstroem suas identidades na interação fazendo uso de táticas de intersubjetividade e, dessa forma, têm a oportunidade de aliarem-se a (ou distanciarem-se de) grupos culturais específicos. O termo táticas de intersubjetividade refere-se às maneiras pelas quais os/as falantes (des)alinham-se vis-à-vis seus/suas interlocutores/as (e vis-à-vis o contexto cultural onde estão inseridos/as) através do estabelecimento de uma plêiade de relações identitárias (ver, por exemplo, BUCHOLTZ & HALL, 2004; MOITA LOPES, 2006b; HIGGINS, 2007). Essas relações intersubjetivas sublinham o caráter situacional do discurso e sua inter-relação com a alteridade (a identidade do/a outro/a) na interação face-a-face, trazendo à tona negociações e re-negociações das posições de sujeito construídas por interagentes na medida em que um embate discursivo se desenrola. As identidades

sociais

estão,

dessa

forma,

compondo-se

e

recompondo-se

constantemente. O arcabouço analítico elaborado por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005, no prelo) inclui três pares de táticas que constroem relações intersubjetivas com base em três dimensões identitárias, a saber: semelhança versus diferença, autenticidade versus paródia e reconhecimento institucional versus marginalização estrutural (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494).

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Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) destacam os seguintes pares: adequação / distinção, autenticação / desnaturalização e autorização / deslegitimização.27 Segundo as autoras (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494), a primeira parte de cada par constitui o pólo positivo do processo discursivo de construção de identidades. Isso quer dizer que através das táticas de adequação, autenticação e autorização, os indivíduos enfatizam características ideologicamente reconhecidas como representantes de um grupo identitário específico. Por outro lado, a segunda parte de cada par forma o pólo negativo desse processo, no qual interagentes sublinham qualidades percebidas como remotas e/ou dissonantes na performance de identidade do/a falante e dos/as outros/as envolvidos/as na interação, orientando-se para aspectos incoerentes da performance desejada. Faz-se, contudo, necessário notar que as táticas de intersubjetividade

não são qualidades inerentes às pessoas ou a práticas sociais e ideologias, mas sim ferramentas analíticas utilizadas para chamar a atenção para aspectos salientes da situação discursiva. No que se refere às relações criadas na produção de identidades, as táticas de intersubjetividade nos oferecem um vocabulário mais preciso para discutir as relações entre identidade e linguagem (Bucholtz e Hall, 2004:493).

Essas táticas enfatizam o caráter múltiplo e complexo das relações entre identidade e linguagem que são contextualmente específicas (HALL & O’DONOVAN, 1996; CAMERON, 1997; BUCHOLTZ, 1999, 2003; MOITA LOPES, 2002, 2003, OSTERMANN, 2003; HEBERLE, OSTERMANN & FIGUEIREDO, 2006; BORBA & OSTERMANN, 2007). O termo intersubjetividade sublinha o aspecto relacional das 27

Em inglês, adequation, distinction, authentication, denaturalization, authorization e illegitimation.

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identidades e a sua negociação interacional, ou seja, elas não existem num vácuo social; as identidades não são “propriedades de indivíduos isolados” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494; ver também MOITA LOPES, 2002). Com esse aparato teórico, afirmase que compreender por que as identidades são construídas interacionalmente é tão importante quanto entender como tal construção se dá (BUCHOLTZ & HALL, 2003). É a essa tarefa que aqui me dedico. Tento compreender como e por que as flutuações identitárias efetuadas pelas interventoras e travestis são construídas. Ao adotar certos posicionamentos, discursos e estruturas lingüísticas, as participantes das intervenções constroem identidades através da encenação de performances temporárias construídas sequencialmente na interação. Essas performances identitárias são produzidas com base no uso de discursos e formas lingüísticas convencionalmente associadas a categorias identitárias locais. Dessa forma, veremos que tanto as interventoras quanto as travestis apropriam-se discursivamente de características identitárias de grupos sociais nos quais elas, de facto, não participam. Passemos, então, neste momento, para a discussão das táticas de intersubjetividade per se.

3.1.1 Adequação e distinção

O primeiro par de táticas, adequação e distinção, constrói, respectivamente, relações de semelhança e diferença entre participantes de um embate discursivo. Adequação refere-se às maneiras pelas quais um indivíduo (ou grupo de indivíduos)

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enfatiza semelhanças e, dessa forma, alinha-se com um grupo social do qual ele/a efetivamente não participa. Essa tática é utilizada na fabricação de semelhança suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004:495) entre interlocutores/as a partir do apagamento de características socialmente discordantes. Na interação, diferenças irrelevantes ou prejudiciais aos projetos identitários correntes são minimizadas e semelhanças percebidas como importantes para a construção de uma relação igualitária entre interagentes são sublinhadas (BUCHOLTZ & HALL, 2005:599). Assim, esse processo envolve o apagamento de características consideradas como potencialmente discordantes entre interagentes em favor de semelhanças percebidas ou construídas que são tomadas como mais relevantes para os propósitos indentitários localmente

negociados

(BUCHOLTZ

&

HALL,

2003).

Em

outras

palavras,

discursivamente inventa-se a semelhança ao minimizar as diferenças. Consoante Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a tática de adequação é utilizada por um/a falante quando o ajuste de sua posição de sujeito a seus/suas interlocutores/as faz-se necessário. A adequação é alcançada através de usos de formas lingüísticas que sinalizam participação em determinados grupos sociais. Neste trabalho, tento expandir o conceito, afirmando que tal adequação é influenciada não somente pela natureza dialógica do discurso, mas também por seu caráter situacional. Como veremos, a supressão de diferenças identitárias pode ser motivada (1) pelas marcas identitárias de nosso/as interlocutores/as e (2) pelo contexto onde estamos inseridos enquanto interagimos. A tática de adequação, a título de exemplo, pode ser encontrada na pesquisa de Cynthia D. Nelson (2006) sobre como professores/as de inglês como segunda língua em salas de aula globalizadas nos Estados Unidos negociam suas identidades sexuais

70

com seus/suas alunos/as. Nelson investiga a questão do “sair do armário” nessas salas de aula com base na perspectiva dos/as professores/as e nas interpretações dos/as alunos/as. Um professor entrevistado, que se identificava como gay, afirma que se apresenta para suas turmas como uma pessoa heterossexual, pois não achava conveniente “sair do armário” para seus/suas alunos/as, já que por serem imigrantes os/as estudantes “já têm que enfrentar bastantes choques culturais... [Então] eu vou ser o americano normal” (p.218). Ao fazer uso de formas lingüísticas como “namorada”, “fui ao cinema com uma mulher” e ao rir com seus/suas alunos/as enquanto esses/as degradavam a cultura gay/lésbica norte-americana, esse professor posiciona-se em discursos que o constroem como “o americano normal”, minimizando, assim, suas diferenças identitárias com os/as alunos/as e produzindo o que Bucholtz & Hall chamam de semelhança suficiente. Essa tática era utilizada pelo professor como meio de evitar mais choques culturais para seus/suas alunos/as e para salva-guardar a construção de sua identidade sexual de interpretações preconceituosas de seus/suas estudantes.28 Distinção é o processo de produção de diferenças sociais entre interagentes. Em vez de apagar diferenças para construir semelhança, essa tática é executada a partir da ênfase dada a diferenças percebidas ou construídas entre falantes. Segundo Bucholtz e Hall (2003:384), “distinção é o mecanismo através do qual diferenças são produzidas”. Vê-se, portanto, que essa tática é diametralmente oposta à tática de adequação no sentido de que em vez de minimizar ou apagar diferenças, através dela os/as participantes parecem produzir diferenças suficientes (BUCHOLTZ & HALL, 2003:384), ao fazer uso de discursos e formas lingüísticas que extrapolam sua 28

No entanto, ao verificar como os/as alunos/as entendiam a identidade sexual de seu professor, Nelson (2006) conclui que os/as estudantes, todos/as asiáticos/as, eram capazes de identificar o posicionamento identitário de seu professor.

71

performance identitária. Dessa forma, os processos de distinção funcionam com base na supressão de semelhanças construindo discursivamente os/as interagentes como participantes remotos dos grupos aos quais eles/as, por ventura, clamem por participação. Para dar um exemplo recorro novamente ao estudo de Nelson (2006) aludido acima. Outra participante da pesquisa, uma professora lésbica que ensinava uma turma altamente multicultural, afirma que “todo semestre saio do armário como lésbica” enfatizando, assim, diferenças entre suas identidades e as identidades percebidas de seus/suas alunos/as. Pode-se dizer que essa professora, seguindo as observações de Nelson (2006:222-223), utiliza a tática de distinção como meio de ensinar seus/suas estudantes a lidar com a heterogeneidade da vida cultural nos Estados Unidos. Tal tática é elaborada com base na ênfase dada pela professora ao seu posicionamento sexual que é usado em sala de aula como uma estratégia para a educação lingüística e cultural.

3.1.2. Autenticação e desnaturalização

O segundo par de táticas, autenticação e desnaturalização, produz relações de autenticidade e falsidade com base em uma performance identitária que pode ser considerada como satisfatória ou não em comparação às posições de sujeito disponíveis localmente. Autenticação se refere às ferramentas discursivas utilizadas por

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falantes para construírem-se como membros autênticos de categorias particulares. Essa tática baseia-se na construção de uma performance de identidade verídica, ou de uma performance identitária satisfatória para os padrões culturais disponíveis aos/às falantes. Com o processo de autenticação, chama-se a atenção para a produção de sentidos identitários que são somente alcançados com relação a outras identidades disponíveis nos contextos culturais locais. Bucholtz e Hall (2004:498) indicam que “o termo autenticação enfatiza os processos através dos quais a autenticidade é construída, imposta ou percebida”. Nessa perspectiva, não se considera a autenticidade como uma característica inerente aos membros de determinados grupos identitários. A autenticidade é construída com base na apropriação de recursos lingüísticos e práticas simbólicas disponíveis em contextos socioculturais que são ideologicamente associados a grupos sociais, o que, por conseguinte, serve como forma de validação da performance de identidade de um indivíduo. De acordo com Bucholtz (2003), em vez de entender a autenticidade como um objeto a ser descoberto, devemos considerá-la como o resultado das práticas lingüísticas dos atores sociais. Através dessa tática, os/as interagentes “enfatiza[m] as maneiras pelas quais as identidades são discursivamente verificadas” (BUCHOLTZ & HALL, 2005:601), i.e. como as identidades são validadas, consideradas como performances satisfatórias com base em discursos já sedimentados sobre determinadas categorias sociais. As relações intersubjetivas produzidas por essa tática consistem em validar uma performance identitária através de posicionamentos, índices e orientações avaliativas a sua encenação. Tais estratégias lingüísticas sublinham a produção de determinada identidade com relação a outras posições de sujeito disponíveis em determinado lócus

73

sociocultural. Interagentes, com essa tática, valem-se de discursos que constroem identidades como naturais, utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK, 1995; BUCHOLTZ, 2003) que, ao enfatizar a veracidade de uma performance, chama a atenção para sua produção sócio-cultural. Tal essencialismo estratégico funciona como uma baliza para a autenticação de performances identitárias ao valer-se de significados disponíveis no senso comum sobre as identidades sociais. Com efeito, essa naturalização das identidades é local e serve propósitos negociados no momento-amomento da interação. Com a tática de autenticação, os/as participantes discursivos constroem a autenticidade de uma identidade com base em sua performance lingüística. Desnaturalização, pelo contrário, refere-se ao processo pelo qual uma identidade é desestabilizada a partir de rupturas em sua performance, produzindo-a (1) como insatisfatória para os padrões locais ou (2) como descontinua e fragmentada. Dessa forma, a tática de desnaturalização chama a atenção dos/as interagentes para aspectos considerados problemáticos e/ou falsos da performance encenada (BUCHOLTZ & HALL, 2005:602). Em outras palavras, com a tática de desnaturalização transforma-se um indivíduo em um mero impostor que, ao falhar em sua performance lingüística, desestabiliza a autenticidade de sua encenação. Ambas essas táticas, autenticação e desnaturalização, podem ser encontradas em um estudo elaborado por mim e por Ana Cristina Ostermann (BORBA & OSTERMANN, 2007) no qual investigamos a manipulação do sistema gramatical de

74

gênero do português brasileiro em uma comunidade29 de travestis na Cidade do Sul. Vejamos o excerto que segue.

Excerto 1 (BORBA & OSTERMANN, 2007:136) Rod:

e tu Thalia como é que tu definiria o travesti?=

Sandra:

=OLHA AQUI Ó (.) vamo entrá no nível- num nível assim (.) pra tu se enquadrá com a gente não é O tra[ves]ti. A travesti.

Rod:

[ok]

Essa interação ocorreu logo no início do trabalho de campo com a ONG Liberdade e envolvia um dos pesquisadores, Thalia e Fabíola (travestis ativistas da ONG). Nesse momento da entrevista, Sandra (a advogada da Liberdade participante das intervenções aqui investigadas) nos interrompe ao perceber que eu me referia às travestis no masculino. Utilizando o tipo menos preferido de reparo (SCHEGLOFF, JEFFERSON & SACKS, 1977), a correção iniciada e executada pelo outro, Sandra corrige tal forma de endereçamento dizendo que eu deveria utilizar a forma “a travesti”, por elas preferida. A advogada faz essa correção afirmando que se eu quisesse “me enquadrar com elas”, i.e., fazer parte do grupo, eu deveria utilizar a forma êmica de referência que sublinha a aquisição de um corpo e atributos simbólicos femininos. Essa pode ser considerada como uma tática de autenticação da identidade travesti na qual

29

Utilizo o termo “comunidade” não como uma forma essencialista de enfatizar traços identitários comuns a todas as travestis presentes no estudo. Tal termo é utilizado pelas travestis por questões relativas ao seu engajamento político na causa LGBTTT da Cidade do Sul. Ecôo esse uso neste texto.

75

Sandra, ao utilizar o feminino gramatical, enfatiza a produção do gênero das travestis ao subverter as determinações gramaticais do substantivo que se refere ao grupo. No entanto, a utilização do feminino gramatical não é consistente nas performances lingüísticas das travestis da Cidade do Sul. Como Borba e Ostermann (2007) argumentam, o masculino gramatical também é utilizado de forma marcada em contextos discursivos específicos, o que desestabiliza (desnaturaliza) a performance feminina das travestis. Num desses contextos, a título de exemplo, as falantes travestis referem-se a outras travestis no masculino como forma de negar sua participação na esfera da feminilidade quando tais travestis são descritas em atividades escusas e/ou violentas (BORBA & OSTERMANN, 2007:139-140). Destarte, a referência no masculino configura uma ruptura na percepção da performance de feminilidade de determinadas travestis das quais as falantes se distanciam através do sistema de gênero gramatical.

3.1.3. Autorização e deslegitimação

O último par de táticas, autorização e deslegitimação, considera os aspectos institucionais e ideológicos dos processos de produção de identidade e suas relações com estruturas de poder. Tais táticas constroem relações intersubjetivas de autoridade e ilegitimidade na tentativa de legitimar uma performance através de poder institucional ou de negar sua legitimidade através de resistência a autenticidade de sua performance. Em outras palavras, “autorização refere-se ao uso do poder [institucional]

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para legitimar certas identidades sociais como culturalmente inteligíveis ao passo que deslegitimação refere-se à negação de tal validação” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:503). Bucholtz e Hall (2005) sugerem que

a primeira parte do par, autorização, envolve a afirmação ou imposição de uma identidade através de estruturas de poder institucionalizado e ideologias [...]. Em contra partida, deslegitimação refere-se às maneiras nas quais as identidades são negadas, censuradas ou simplesmente ignoradas por essas estruturas. (p.603)

Essas táticas funcionam em relação muito próxima às táticas de autenticação e desnaturalização, pois questões de legitimidade são freqüentemente ligadas a questões de autenticidade. Ou seja, uma performance de identidade que pretende passar por autêntica deve, inevitavelmente, adotar práticas que legitimem sua encenação. Um bom exemplo dessas táticas pode ser encontrado na discussão do excerto 1 acima. Após ter me referido a Thalia utilizando o masculino gramatical, Sandra me interpela e diz, em tom não muito amigável, que para eu ser aceito no grupo, como pesquisador, eu deveria utilizar as formas lingüísticas preferidas entre as travestis. Note que Sandra, nesse contexto, é a representante legal da ONG Liberdade, por ser sua advogada, e assim, possui poder institucional para legitimar a participação de indivíduos nesse grupo. Eu, como pesquisador iniciante no universo trans, me encontrava em uma posição bastante frágil: não conhecia suficientemente as práticas da ONG para ser ali incluído e não possuía poder institucional em relação à Sandra. Porém, a advogada faz uso de sua posição na hierarquia da ONG para deixar claro como a identidade travesti deve ser lingüisticamente construída: através do feminino gramatical. Com isso, Sandra

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autoriza institucionalmente a performance de uma identidade feminina elaborada pelas travestis presentes nesse evento e, ao mesmo tempo, deslegitima minha participação no grupo, enfatizando minha posição (naquele momento ainda) periférica. No que se refere às intervenções, Sandra e Márcia têm, nos territórios de prostituição travesti da Cidade do Sul, capital institucional, por serem representantes de uma ONG, e capital de gênero (BENTO, 2006), por serem, segundo as colaboradoras deste estudo, portadoras “naturais” da feminilidade que as travestis tanto ambicionam. Assim, nesse contexto, as interventoras são vistas como representantes do poder (institucional e de gênero) o que pode influenciar o design das interações, no que se refere à assimetria em seu status interacional, e os processos de construção de relações intersubjetivas entre as interlocutoras desses eventos. Faz-se

necessário

afirmar

que

as

táticas

são

acima

apresentadas

separadamente como uma estratégia retórica para exemplificar as relações intersubjetivas por elas construídas. No entanto, em situações reais de fala, elas podem ocorrer isoladamente ou em conjunto no desenvolvimento de projetos identitários emergentes de uma determinada interação. Funcionando em conjunto, combinando-se, interpenetrando-se e modificando-se no decorrer de um evento de fala, as relações produzidas pelas táticas de intersubjetividade indicam que as identidades estão constantemente em devir; sempre dinâmicas e flexíveis – maleáveis às necessidades interacionais construídas em interações nas quais diferentes alteridades são postas em fricção.

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3.2 Ferramentas para interpretação das táticas

As táticas de intersubjetividade, assim como as identidades sociais, não são propriedades das interações ou dos indivíduos nelas envolvidos. São, sim, resultantes do olhar lançado pelo/a analista sobre as interações. Dessa forma, as táticas configuram uma possível interpretação das construções e reconstruções das posições sociais adotadas por interagentes em seu engajamento em um determinado evento discursivo. Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) sugerem que a interpretação das táticas deve ser calcada em mecanismos propriamente lingüísticos utilizados no momento-amomento de uma dada interação. Em outras palavras, as táticas podem ser produzidas através de uma multiplicidade de recursos lingüísticos disponíveis culturalmente aos quais o/a analista recorre na tentativa de construir uma possível compreensão das relações confeccionadas entre interagentes. Para os propósitos deste estudo, ponho sob o foco de minha atenção os seguintes dispositivos analíticos: enquadre (GOFFMANN, 1974, 2002), posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e alternância de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002). Portanto, é com base na análise das dinâmicas interacionais produzidas pelos recursos lingüísticos recém listados que minha interpretação das fricções de identidades construídas entre travestis e ativistas da ONG Liberdade se dará. Essas fricções, a meu ver, trazem à tona uma pluralidade de negociações, construções e reconstruções de posições de sujeito que podem ser debitadas às táticas de intersubjetividade co-produzidas entre interventoras e travestis.

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A seguir, trago um detalhamento das ferramentas que me auxiliarão a interpretar a construção das táticas entre as participantes dos eventos aqui estudados.

3.2.1. Enquadre

Segundo Goffman (1974/2002), o enquadre refere-se à construção da metamensagem de um determinado enunciado a partir da qual inferimos o sentido de um enunciado e/ou de uma interação. Em outras palavras, o conceito de enquadre diz respeito ao tipo de conversa que está se desenvolvendo em um determinado momento com interlocutores/as específicos/as: é essa interação uma palestra, uma consulta médica, uma aula, uma entrevista de emprego, uma venda por telemarketing, uma fofoca, uma descontraída conversa entre amigos/as íntimos/as ou uma intervenção de prevenção de DST/AIDS? Ou, como colocam Tannen e Wallat (1987/2002), “a noção [...] de enquadre se refere à definição do que está acontecendo na interação, sem a qual nenhuma elocução (ou movimento ou gesto) poderia ser interpretada” (p.188). Dessa forma, sempre recorremos à nossa interpretação do enquadre de determinada interação para que possamos dela participar efetivamente. Os enquadres de uma determinada interação são constantemente negociados durante seu desenvolvimento. Assim, em uma única interação podemos encontrar uma diversidade de diferentes enquadres. É importante observar que as mudanças de enquadre não acontecem de súbito, mas são sinalizadas por uma multiplicidade de pistas que possibilitam que os/as

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interlocutores/as reconheçam e possam orientar-se à pergunta “o que está acontecendo aqui e agora? Para responder a essa pergunta, os/as interagentes valem-se de pistas de contextualização (GUMPERZ, 2002) que sinalizam como determinado embate discursivo deve ser interpretado por aqueles/as nele envolvidos/as. Tais pistas podem ser lingüísticas (como por exemplo, a entonação, os termos de endereçamento, trocas de códigos, organização de turnos de fala, etc) ou para-lingüísticas (como as alterações proxêmicas e de postura (ERICKSON & SHULTZ, 2002), um olhar, um movimento com a cabeça, etc). Muitas vezes essas pistas acontecem em conjunto e auxiliam os/as participantes de uma interação a entender a interação com a qual estão engajados. Goffman (2002) indica que as mudanças de enquadre engendram um minucioso processo de mudança de posicionamento entre interlocutores/as. Podemos recorrer ao excerto 1 anteriormente analisado para ilustrar esse ponto. Até a interrupção de Sandra, Thalia e eu havíamos negociado um enquadre de entrevista no qual eu, como pesquisador fazia perguntas e ela as respondia (ou não) com o intuito de elaborar uma pesquisa sobre as travestis da ONG Liberdade. Tal enquadre desenrolava-se facilmente até o momento em que eu utilizo o masculino gramatical ao me referir às travestis. Nesse momento, Sandra levanta-se de sua mesa e se aproxima dos sofás onde a entrevista era realizada (alterações proxêmicas). Ao realizar esses movimentos, a advogada da ONG Liberdade fala, em volume elevado e tom nada amigável (pistas lingüísticas), e indica como eu deveria me referir às travestis. Tal enquadre foi interpretado por mim como uma ameaça (ou chantagem) e eu, ainda estranho às práticas da instituição, indico que entendi a mensagem, enquanto Sandra de pé na minha frente, colocava as mãos na cintura. Minha interpretação de tal mensagem como ameaça está relacionada aos movimentos corporais de Sandra e ao modo que ela

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enquadra sua mensagem, indicando meu status de estrangeiro no universo social da ONG. As mudanças de enquadre engendram mudanças na interpretação das mensagens de uma interação e de posicionamentos entre os/as interagentes. Como podemos inferir, em uma interação podem haver múltiplos enquadres embutidos (GOFFMAN, 1974) o que está relacionado à negociação de uma miríade de relacionamentos identitários entre interlocutores/as. No que se refere às análises das intervenções, o conceito de enquadre é utilizado para entender a produção dos sentidos negociados entre interventoras e travestis e, de forma mais operacional, entender a estrutura seqüencial dessas. Ale´m disso, tal conceito nos auxiliará a entender a estrutura organizacional dos turnos de fala das participantes do evento e sua relação, importante, na produção de táticas de intersubjetividade. Sendo um projeto ligado a uma instituição, as intervenções são estruturadas com base na tarefa de entrega de preservativos às travestis. No entanto, os enquadres dessas interações são dinâmicos e as mudanças de enquadre (de conversa institucional à conversa informal cotidiana) possibilitam a construção discursiva de uma plêiade de identidades e relações identitárias entre as interagentes. Essas mudanças de enquadre são elaboradas, durante as intervenções, por meio de posicionamentos discursivos e alternância de códigos que alocam as falantes a grupos identitários específicos.

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3.2.2. Posicionamentos discursivos

Outro importante conceito para o desenvolvimento de minha interpretação das táticas de intersubjetividade é o de posicionamento discursivo (DAVIES & HARRÉ, 1990). Segundo autora e autor, “o posicionamento é o processo discursivo através do qual as identidades são alocadas nas conversas” (DAVIES & HARRÉ, 1990:48) com base no engajamento com um ou vários discursos. Desse modo, os discursos (de gênero, de classe, de religião, de sexualidade, por exemplo) nos fornecem posições para que delas nos apropriemos. Ao interagir, temos a nossa disposição uma plêiade de posições-de-sujeito a serem utilizadas na negociação de objetivos identitários dentro de determinadas interações. É por meio dos discursos que utilizamos em nossas interações

cotidianas

que

nos

(re)constituímos

e

(re)constituímos

nossas/os

interlocutoras/es como determinados tipos de pessoas. Assim, ao interagir os/as falantes podem “modificar quem são” (WORTHAM, 2001:.xi), pois, com os discursos que utilizam, têm oportunidade de “reforçar e às vezes recriar o tipo de pessoas que são” (ibid.). Com o acesso a variados discursos, os/as interagentes podem construir ou transformar sua identidade porque ao interagir negociam certas posições que os/as auxiliam a “tornar-se certos tipos de pessoas” (WORTHAM, 2001:9). Portanto, investigar os posicionamentos assumidos por falantes nos dá acesso aos microdetalhes da dinâmica identidade/alteridade, ou seja, a como as identidades são construídas no momento-a-momento da interação quando transitamos por diferentes discursos de identidades.

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Para entender como os posicionamentos discursivos adotados possibilitam que nossas identidades estejam constantemente em devir – continuamente cambiantes e temporárias – acredito que seja necessário considerar os enunciados utilizados para ocupar certos lugares na interação como performativos. Idealizada pelo filósofo da linguagem J. L. Austin (1976), a teoria dos atos de fala indica que ao falar não só descrevemos o mundo, mas sobre ele agimos. Enunciados como “Eu vos declaro marido e mulher”, quando proferidos por indivíduos autorizados, não caracterizam a realidade, mas a instauram. Dessa forma, enunciados não são meramente descritivos; eles são atos que inauguram novas configurações da realidade. Utilizando insights dessa teoria para descrever como os gêneros sociais (e, de modo geral, as identidades) são produtos das performances locais dos indivíduos, a filósofa Judith Butler, em sua obra Problemas de Gênero: Feminismo e a subversão da identidade (1990/2003), afirma que “o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (p.59). É, assim, com base na repetição de certos atos (o discurso aí incluído) que criamos nossas identidades. Esses atos são, para Butler, performativos, “pois a essência ou a identidade que pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos” (BUTLER, 1990/2003:194). Em que pese à ocupação de lugares específicos em discursos (posicionamento), a teoria da performatividade nos possibilita entender o caráter processual das identidades sociais. Como mencionado acima, ao interagir nos apresentamos como certos tipos de indivíduos por meio dos posicionamentos que assumimos dentro dos discursos aos quais temos acesso. Os posicionamentos são performances. A ocupação

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de certos lugares nos força a fazer uso de determinados enunciados que possam produzir o efeito de uma identidade particular, trazida à tona localmente em relação às necessidades interacionais construídas pelos/as interlocutores/as.

3.2.3 Alternância de códigos

Com o propósito de enriquecer a análise das táticas de intersubjetividade construídas entre travestis e interventoras, lanço mão da interpretação das trocas de códigos efetuadas durante os embates discursivos aqui sob análise. Em 1972, JanPetter Blom e John J. Gumperz publicaram o artigo “O significado social da estrutura lingüística: alternância de códigos na Noruega”, reeditado, no Brasil, por Branca Ribeiro e Pedro Garcez no seu livro “Sociolingüística Interacional” (RIBEIRO & GARCEZ, 2002). Nesse clássico dos estudos sociolingüísticos, Blom e Gumperz investigam a troca de códigos efetuada por moradores/as de uma pequena cidade no extremo norte da Noruega. Os/as habitantes desse lugar têm em seu repertório lingüístico dois códigos cujo status sociolingüístico difere grandemente: o ranamal, referente da vida local considerada, pelos/as falantes, como parte integral de sua história e identidade regional; e o bokmal, a língua considerada oficial pela lei norueguesa. Segundo os autores, todos/as os/as habitantes dessa cidade são falantes competentes das duas variedades lingüísticas e, dessa forma, “em suas interações diárias, eles [sic] optam entre as duas de acordo com a situação” (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002:49). Assim, é

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no dia-a-dia que surgem várias alternâncias entre esses códigos (i.e., da língua padrão ao dialeto e vice-versa) que são impingidas por significados sociais específicos à cada um dos códigos. Por exemplo, Blom e Gumperz observam que, em sala de aula, quando dirigindo uma palestra ou expondo um assunto, os professores e as professoras fazem uso do bokmal, quando, no entanto, propõem que seus alunos e suas alunas engajem-se em atividades mais íntimas, como trabalhos em grupos ou discussões sobre algum assunto que lhes é familiar, o dialeto local é a escolha feita. Blom e Gumperz (1972/2002) sugerem, então, que as alternâncias entre um código e outro são socialmente condicionadas e dependem (1) dos significados que os/as falantes pretendem construir e (2) das identidades que objetivam assumir em determinadas situações sociais. Em outras palavras, as alternativas lingüísticas de um repertório simbolizam identidades ligadas a essas variedades que podem ser assumidas pelos/as falantes no decorrer de suas interações diárias. Esse fato é importante para que possamos entender as trocas de códigos elaboradas por travestis e interventoras. O repertório lingüístico das interventoras e das travestis é relativamente complexo. Sandra e Márcia são membras de camadas econômicas médias e tiveram amplo acesso à escolarização, o que nos permite dizer que as interventoras são falantes nativas da variedade prestigiosa do português brasileiro. As travestis, por outro lado, são, em sua grande maioria, provenientes de camadas populares, com acesso à escola relativamente escasso, o que nos leva a inferir que elas são falantes de alguma variedade de português não-padrão. No entanto, o que é crucial para este estudo é o fato de que as travestis possuem, em seu repertório lingüístico, um tipo de linguagem cifrada bastante peculiar. Tal linguagem é chamada, entre as informantes, de bajubá ou de bate-bate, esse último sendo o termo mais comum entre as travestis participantes

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desta investigação, moradoras de uma cidade do sul do país. O bate-bate (ou simplesmente bate) é composto por termos de algumas línguas africanas, principalmente o ioruba-nagô, sobre a base fonológica e gramatical do português.30 Ademais, há grande freqüência de termos metonímicos e palavras estrangeiras foneticamente adaptadas ao português (ver, SILVA 1993; ASTRAL,1996; KULICK 1998; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO 2005a, 2007).31 Durante os primeiros meses de trabalho de campo, tive algumas dificuldades de comunicação com minhas informantes, pois não era um falante proficiente do bate. Pude também notar que, nesse período inicial do trabalho, algumas travestis, quando queriam conversar entre si algo que, na opinião delas, eu, o pesquisador, não poderia saber, faziam uso radical do bate e, como uma tática de distinção (BUCHOLTZ & HALL, 2004), enfatizavam suas diferenças culturais, lingüísticas e sexuais impelindo-me a assumir meu lugar de estrangeiro em sua comunidade. Porém, com o tempo, fui aprendendo com minhas informantes e já posso ser considerado, na comunidade, um falante hábil dessa linguagem cifrada. O que é importante observar é que as variedades lingüísticas presentes nas interações entre travestis e interventoras têm significados sociais bastante específicos. Mais precisamente, o português falado pelas representantes da ONG Liberdade é a língua da instituição, através da qual as informações sobre as reuniões da ONG e sobre 30

Alguns enunciados comuns utilizados entre minhas informantes são: aqüenda os alibãn, mona! (olha os policias!), aqüenda o oxozinho na neca odara (coloca o preservativo no pênis ereto). Vê-se que a estrutura gramatical dos enunciados segue a do português, porém os componentes lexicais são em sua maioria derivações de línguas africanas ligadas aos rituais de religiões afro-brasileiras. 31 São exemplos os termos bafão, proveniente do francês bas-fond, que se refere, no bate, a eventos extraordinários, fora da rotina.; e buceta, metonímia utilizada, com referência ao corpo feminino, a mulheres. É importante notar que o bate é compartilhado por todas as travestis colaboradoras desta pesquisa. Ademais, tal linguagem cifrada parece ser falada em quase todas as comunidades de travestis no território brasileiro, marcada, obviamente, por variações regionais. Alguns grupos de homossexuais masculinos também fazem uso dessa linguagem cifrada que é freqüentemente creditada às travestis. Para conhecer um pouco do bate, ver Aurélia: a dicionária da língua afiada (VIP & LIBI, 2006), que, embora não sendo um documento elaborado com preocupações científicas, oferece uma bem-humorada descrição de alguns termos que compõem o bate.

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a provisão de preservativos e saches de gel lubrificante são comumente dadas. A variedade de português não padrão falada tanto por travestis quanto por interventoras é utilizada quando da troca de enquadre nas intervenções. Em outras palavras, quando o enquadre de conversa institucional é substituído por um enquadre de conversa cotidiana e informal o bate parece ser a variedade preferida pelas interagentes. Tal variedade simboliza a identidade travesti, por ser indicialmente ligada a essa comunidade, e seu lugar social. É importante enfatizar que Sandra e Márcia são falantes muito proficientes dessa linguagem. Essas são as variedades lingüísticas que as participantes dos eventos discursivos aqui estudados têm a sua disposição e que são utilizadas na construção de relações intersubjetivas durante as intervenções. Mais algumas palavras sobre alternância de códigos se fazem necessárias. Em seu artigo, Blom e Gumperz (1972/2002) fazem a distinção entre dois tipos de alternância de código: a situacional e a metafórica. Na primeira, a troca de códigos redefine a situação social em curso e tal redefinição impele os/as participantes a uma mudança em seu status de participação interacional, por exemplo, quando em uma reunião de negócios cessa o evento exposição de fatos e começa o evento discussão sobre o curso de ação. É esse tipo de alternância de código que subjaz às mudanças de enquadre durante as intervenções (de enquadre de intervenção para enquadre de conversa informal cotidiana). Na segunda, a alternância enriquece a situação social permitindo alusões a uma plêiade de relações sociais entre falantes dentro de um mesmo evento discursivo. Observe que a troca situacional de códigos modifica a situação social em curso. Já a metafórica “está relacionada a determinados tópicos e assuntos, e não a mudanças na situação social. As situações em questão permitem que sejam postas em prática duas ou mais relações entre o mesmo conjunto de indivíduos”

88

(BLOM & GUMPERZ, 1972/2002: 70). Dessa forma, os diferentes tipos de alternância de código podem ser importantes ferramentas para a construção das táticas de intersubjetividade, que constituem o eixo analítico principal deste trabalho. Num primeiro plano, a alternância situacional, ao redefinir a situação social, permite que outros enquadres, além do típico enquadre de intervenção, venham á tona, o que possibilita, num segundo plano, a redefinição do status interacional e das identidades das participantes dos eventos. O eixo principal das análises que apresento no capítulo que segue é constituído pelo modelo proposto por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005) intitulado táticas de intersubjetividade.

As

relações

intersubjetivas

motivadas

pelas

táticas

de

intersubjetividade são produto da minha interpretação particular das interações. Essa interpretação é elaborada com base na análise dos micro-detalhes das intervenções por meio dos quais as táticas são alcançadas. As ferramentas de análise discutidas acima possibilitam tal interpretação.

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4. ALTERIDADES EM FRICÇÃO: INTERVENTORAS, TRAVESTIS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NA PREVENÇÃO DE DST/AIDS

Dedico-me, neste capítulo, às análises das intervenções gravadas durante o trabalho em parceria com a ONG Liberdade. Primeiramente, descrevo, em linhas gerais, a estrutura seqüencial das interações entre travestis e interventoras durante seu trabalho de prevenção de DST/AIDS para, a seguir, debruçar-me sobre a negociação de identidades das participantes dos eventos discursivos aqui analisados. Como veremos, as intervenções são comumente estruturadas com base na identidade institucional de Sandra e Márcia. No entanto, com a dinamicidade dos enquadres interacionais

(GOFFMAN,

1994/2002;

TANNEN

&

WALLAT,

1987/2002)

das

intervenções, as interlocutoras (re)criam identidades múltiplas com base na construção e consolidação de relações intersubjetivas que enfatizam o caráter processual e multifacetado das identidades sociais (MOITA LOPES, 2003).

90

4.1. O enquadre “intervenção”: institucionalidade das interações

Vejamos o excerto que segue.

Excerto 2 [INT 230903] 1 Sandra:

((aproxima-se e pára o carro))

2 Márcia:

tudo bom?

3 Sandra:

e aí? Tudo bom?=

4 Profana:

=tu::do::=

5 Sandra:

tem reunião amanhã na Liberdade=

6 Profana:

=sim=

7 Márcia:

=tem reunião e tem gel [tam]bém amanhã ta::?

8 Profana:

[ta]

9 Márcia:

uma sacolinha*

10Profana:

brigada amor

11Sandra:

>beijo beijo<

12Márcia:

tchau

13Profana:

obrigada

14Sandra:

((acelera o carro))

Tipicamente as interações estruturadas durante a entrega de preservativos são dinâmicas, envolvendo poucas e rápidas trocas de turnos de fala. Segundo Sandra, as abordagens não podem demorar muito, pois “não podemos chegar muito tarde em casa. Temos filhos, casa, família pra cuidar”. Faz-se necessário retomar o fato de que as intervenções acontecem à noite. A rigor, a equipe da Liberdade inicia suas atividades aproximadamente às 19 horas e, depois de percorrerem todas as áreas de

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prostituição travesti da Cidade do Sul, termina a distribuição de preservativos não antes do inicio da madrugada. Durante as abordagens, Sandra e Márcia tentam convencer suas interlocutoras a participar das reuniões da Liberdade que ocorrem às quartasfeiras à tarde (linha 7 do excerto acima). Como podemos verificar, logo após Sandra aproximar-se de uma travesti, iniciase a troca de turnos com informações fáticas sobre seu bem-estar o que é seguido por informações sobre a reunião que acontecerá no dia seguinte. Vê-se que essa interação organiza-se com base em pares adjacentes (SACKS, SCHEGLOFF & JEFFERSON, 1974) dos tipos cumprimento-cumprimento (L.2, 3 e 4) , convite para a reuniãoaceite/recusa (L. 5 e 6), informação sobre a reunião-indicação sobre a compreensão dessa informação (L. 7 e 8), despedida-despedida (L. 11, 12 e 13). Os turnos são engatados o que impinge à interação um ritmo rápido e dinâmico. A entrega dos preservativos não é comumente verbalizada. Márcia, quando a travesti aproxima-se da janela do carro, somente estende a mão e entrega as camisinhas (ação indicada por * na transcrição) para, logo após, tomar notas no relatório que será enviado às agências que financiam as intervenções. Há um alto grau de assimetria nessas interações. Como o exemplo acima ilustra, Sandra e Márcia parecem ser responsáveis pela introdução dos tópicos da conversa, direcionando, assim, seu desenvolvimento. Isso pode ser creditado a seu status nesses eventos. Como representantes de uma ONG, as interventoras são, nos territórios de prostituição travesti, institucionalmente empoderadas. Além disso, há as variantes de classe social, profissão e gênero que as constroem como diametralmente diferentes das travestis com quem interagem. Tanto Sandra quanto Márcia têm se construído como representantes de categorias sociais que possuem prestígio na sociedade brasileira

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contemporânea: ambas têm filhos/as, têm nível de ensino superior, heterossexuais, brancas etc. Esses fatos podem ilustrar as relações de poder construídas entre as interventoras e suas interlocutoras transgênero, que não desfrutam de status na sociedade abrangente. O excerto 2 exemplifica o enquadre (GOFFMAN, 1974, 2002) típico das interações produzidas durante as intervenções.32 Esse enquadre é sinalizado por uma redundância de pistas de contextualização (ERICKSON & SHULTZ,2002) que envolve a seqüencialidade dos turnos de fala, a organização dos pares adjacentes e a orientação a uma tarefa institucional que indicam a posição institucional das interventoras que, como vimos, interagem com as travestis para entregar preservativos e para divulgar os projetos da ONG Liberdade, tarefas que motivam e estruturam a seqüencialidade das ações nessas interações (DREW & HERITAGE, 1992). No entanto, nem todas as interações são exclusivamente enquadradas dessa forma. Há interações durante as quais outros enquadres são negociados (GAVRUSEVA, 1995) e, assim, outras relações intersubjetivas construídas. Acredito que as interações enquadradas com base na entrega dos preservativos acontecem somente com as travestis que não são participantes ativas dos grupos da Liberdade, com quem as interventoras não têm muita intimidade. Com travestis mais ativas nos projetos da ONG, Sandra e Márcia costumam engajar-se em interações mais longas nas quais têm a oportunidade de desempenhar performances de outras identidades, deixando sua identidade institucional em segundo plano.

32

Outros exemplos desse tipo de enquadramento são oferecidos no Anexo 1.

93

4.2 Quando o tradicional defronta-se com o não-tradicional: a construção discursiva de identidades entre interventoras e travestis

A seguir trago as análises de intervenções nas quais outras identidades, além da identidade institucional das interventoras, são co-construídas. Como veremos, essas identidades são produzidas com base na negociação de enquadres diferentes do enquadre de intervenção no qual somente a entrega dos preservativos e as informações sobre as reuniões da Liberdade são produzidas (cf. excerto 2). Argumento que a identidade institucional das interventoras33, ao se defrontar com as identidades multifacetadas das travestis (BORBA & OSTERMANN, 2007; BENEDETTI, 2005; PELÚCIO, 2005a, 2005b; JAYME, 2001; KULICK, 1998; PIRANI, 1997; OLIVEIRA, 1997; SILVA, 1996, 1993), é temporariamente deixada em suspenso e outras possibilidades identitárias são encenadas, produzidas por meio das táticas de intersubjetividade descritas por Bucholtz e Hall (2004; 2005). As interventoras e as travestis

assumem

posicionamentos

que

produzem

o

efeito

de

identidades

fragmentadas, fluidas e contraditórias ao sobrepor enunciados ligados à identidade travesti, à identidade de profissional do sexo e à identidade masculina. Esse processo de fricção de identidades/alteridades é relacional e vale tanto para interventoras como 33

O que chamo de identidade institucional das interventoras faz parte do leque de identidades que compõe o repertório de identidades habitualizadas de Sandra e Márcia. Tal identidade não é nem uma nem coerente embora tenda a ser mais estável que aquelas encenadas temporariamente durante as intervenções.

94

para travestis. As interventoras, ao se defrontarem com a outridade travesti, parecem ser forçadas a suspender suas identidades tradicionais e acionam discursivamente outras

identidades

através

dos

posicionamentos

co-construídos

com

suas

interlocutoras. As travestis, por sua vez, em contato com as construções de identidades tradicionais de Sandra e Márcia, posicionam-se em discursos que as constroem (1) como travestis e (2) como participantes de categorias identitárias convencionalmente consideradas tradicionais, i.e., integrantes de discursos hegemônicos e positivamente valorados com relação à classe social, sexualidade, profissão e gênero. Assim, ao engajarem-se nesse embate discursivo, as interlocutoras constroem seu repertório de identidades tendo como ponto de referência a outridade das interagentes (FABRICIO & MOITA LOPES, 2004). A partir deste momento, veremos uma grande multiplicidade de performances identitárias (BUTLER, 2003) sendo encenadas por interventoras e travestis e exacerbam os processos de negociação, re-negociação e administração das diferenças (percebidas ou construídas) entre as características de seus feixes identitários (MOITA LOPES, 2003). Nas seções que seguem, apresento minha interpretação das dinâmicas discursivo-identitárias confeccionadas no momento-a-momento das intervenções cuja força motriz é a tensão entre as alteridades das participantes dos eventos de fala estudados. O atrito entre as identidades das interventoras e aquelas das travestis com quem interagem parece motivar uma interligação das fronteiras que demarcam diferentes grupos identitários; fronteiras essas que, como veremos, “a fala frivolamente encaixa, insere e mistura” (GOFFMAN, 1974/2002:146).

95

4.2.1 Semelhança suficiente: adequação às travestis

O processo de adequação produzido por táticas de intersubjetividade envolve o apagamento de características potencialmente discordantes entre interagentes em favor de semelhanças percebidas ou construídas que são tomadas como mais relevantes para os propósitos identitários localmente construídos (BUCHOLTZ & HALL, 2003). No caso em tela, essas semelhanças são discursivamente construídas através de

índices

lingüísticos

(OCHS,

1992;

SILVERSTEIN,

1985)

que

mobilizam

posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) e alocam as interlocutoras em categorias pertencentes ao universo da prostituição travesti. Esses índices são mecanismos sociolingüísticos que produzem ligações entre formas lingüísticas e grupos sociais específicos. Tais ligações são produzidas através da repetição de determinadas formas lingüísticas que passam a ser percebidas como “naturalmente” relacionadas a esses grupos. No excerto 3, vemos Sandra construir duas identidades diferentes: a de travesti e a de cliente de travesti.34 A interventora desempenha performances de identidades díspares em poucos turnos da interação.

34

Os recortes dos excertos utilizados no decorrer do texto foram feitos com base nas táticas produzidas em diferentes interações. Como as táticas podem ocorrer em conjunto, ou seja, várias durante a mesma interação, com o intuito de facilitar a leitura e a interpretação dos dados, apresento no texto recortes das transcrições.

96

Excerto 3 [INT071003] 18 Daniela:

ai guria peguei um gripão que Deus o livre. e esse

19

vento maldito ainda pra [ajudá::

20 Sandra:

[vai dá chuva=

21 Daniela:

=não vai nada

22 Sandra:

oi princesa

23 Karla:

vai tê reunião [amanhã?

24 Márcia:

[tudo bom?*

25 Sandra:

tem reunião amanhã.

26 Márcia:

amanhã tem.

27

(0,7)

28 Sandra:

vamo se aqüendá tudo lá.

29

(0,8)

30 Daniela:

vamo aqüendá o baco lá também?=

31 Sandra:

=também.

32 Daniela:

@@@@@

33 Márcia:

ó uma sacolinha pra colocá o lixo.

34 Karla:

ai arrasô!=

35 Sandra:

=isso ai se chama:: profissional educada. jogue o

36

lixo no [lixo.

Após o típico enquadre de intervenção ter sido estabelecido, na linha 18, Daniela introduz outro enquadre, o de conversa cotidiana, o que possibilita a negociação discursiva de identidades que extrapolam a institucionalidade das interventoras nesse contexto. Esse novo enquadre é contextualizado (GUMPERZ, 1982/2002) pelo termo de referência “guria”, que, na região sul do país, é associado à intimidade e à igualdade do status interacional. O termo de endereçamento “guria” configura uma troca situacional de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002) no sentido de que ao ser

97

proferido instaura (1) um novo enquadre e (2) uma nova relação social entre interventoras e travesti. Na linha 22, Sandra, ao notar a aproximação de Karla, a cumprimenta utilizando um enunciado que, segundo minhas informantes, é típico de seus clientes, “oi princesa”, configurando, assim, um índice dessa identidade e posicionando a interventora nesse discurso de identidade. Dessa forma, Sandra desencadeia uma performance de cliente de travesti ao utilizar um posicionamento que as travestis reconhecem como pertencente a essa categoria.35 Karla re-introduz, ao perguntar se “vai ter reunião amanhã” (L.23), o enquadre de intervenção. Contudo, essa intervenção já havia sido re-enquadrada (L.18) o que possibilita a negociação de variadas relações intersubjetivas, além da relação institucional típica das intervenções. Isso pode ser verificado na linha 28 quando Sandra efetua uma alternância metafórica de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002) utilizando a linguagem cifrada das travestis, o bajubá36, construindo o que Bucholtz e Hall (2004:495) denominam semelhança suficiente. Ao fazer uso do bajubá, Sandra parece diminuir suas diferenças identitárias ao construir-se como semelhante às travestis com quem interage.

Esse processo de apagamento de características

ideologicamente discordantes pode ser considerado como uma tática utilizada pela interventora na tentativa de produzir discursivamente uma performance identitária que não destoe do contexto onde está inserida durante as intervenções. Dessa forma, Sandra posiciona-se, ao falar “vamo se aqüendá tudo lá”, como travesti. 35

Não é minha intenção afirmar que há uma identidade de cliente de travesti estável e coerente. Pelo contrário, tal categoria é múltipla e fluida. As travestis desenvolveram um leque de termos para se referir aos seus clientes que são categorizados de acordo com sua classe social, performance de masculinidade, atuação no intercurso sexual e aparência física. Esse leque inclui termos como ocó, bofe, maricona, vício, varejão, penoso, truque e fino (para uma discussão perspicaz sobre tais categorias ver Pelúcio, 2005b). 36 Ver capítulo anterior para uma descrição densa do repertório lingüístico que constitui o contexto sóciocultural aqui investigado.

98

É interessante observar que aqüendar-se é um verbo com significados polivalentes. Esse termo pode ter vários sentidos, por exemplo, encontrar-se, prestar atenção, olhar e fazer sexo. O enunciado de Sandra (L. 28) pode ser traduzido por vamos nos encontrar todas lá. Porém, Daniela, aproveitando-se do fato de Sandra temporariamente suspender sua identidade institucional (construindo adequação a sua identidade), pergunta se durante a reunião “vamo aqüendá o baco lá também?” (L. 30) o que significa “vamos fazer sexo lá também?”. Sandra, jocosamente, afirma que sim. Tal informalidade nesse momento da interação pode ser creditada à performance de Sandra como travesti (L. 28), o que possibilita a re-significação das reuniões da Liberdade como lugar erotizado. O processo de adequação engendrado na administração das diferenças entre interventoras e travestis, através do qual as performances identitárias habitualizadas das mulheres que entregam preservativos às travestis são temporariamente suspensas pelo contexto, é local e seqüencialmente construído. O vocativo “princesa” (L. 22), utilizado por Sandra, posiciona a interventora em discursos que, segundo as travestis colaboradoras desta pesquisa, são associados aos homens que procuram seus serviços sexuais. Assim, uma identidade de cliente de travesti emerge de tal enunciado. Sandra, na interação acima, igualmente produz, em poucos turnos da interação, uma performance de travesti ao efetuar uma mudança de códigos (BLOM & GUMPERZ, 1972/2002) entre o português e a linguagem cifrada das travestis, o bajubá. Tais recursos lingüísticos são recorrentes durante as intervenções. No excerto abaixo, vemos Sandra e Márcia fazendo uso de vocativos e de enunciados típicos entre travestis em uma interação com Adriana, uma travesti que, à época desta interação, havia recentemente colocados silicone nos seios.

99

Excerto 4 [INT281003] 1

((pára o carro))

2

Adriana:

e aí Sandra?

3

Sandra:

querida::[:

4

Márcia:

5

Adriana:

6

Sandra:

[oi mona LUxo! Tu[do bom? [tudo bom meu anjo?/ ah não que é isso? ((seis linhas omitidas))

12 Sandra:

e esses óculos de intelectual?

13 Adriana:

ah agora eu to intelectual. @@@

14 Sandra:

olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ

15 Márcia:

ai meu deus. ((treze linhas omitidas))

16 Adriana:

sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às

17

quatro.

18 Sandra:

ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))

19 Márcia:

ta né meu bem!

20 Adriana:

ah ta @@@@

21 Sandra:

daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.

22 Márcia:

@@[@@@@@

23 Adriana:

[ah ta. obrigada Sandra.

24 Márcia:

tchau. até amanhã.

25 Adriana:

até amanhã.

26 Sandra:

((dá partida no carro))

Nessa interação, os trânsitos por discursos de identidades acontecem com base em posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) que constroem as interventoras como travestis através do uso de enunciados comuns entre as travestis

100

participantes deste estudo. Márcia, na linha 4, cumprimenta sua interlocutora com “oi mona luxo”. Tal forma de endereçamento é comum entre as travestis da Cidade do Sul, que, ao se encontrarem, se referem umas às outras por “mona luxo”, forma que enfatiza o glamour de sua construção corporal e suas vestimentas. Alguns turnos mais adiante é a vez de Sandra engajar-se na encenação de uma identidade travesti. Nessa noite, Adriana usava somente sapatos de saltos altos e uma calcinha branca. A parte superior de seu corpo estava parcialmente descoberta e a travesti exibia seus enormes seios à procura de clientes. Na linha 14, a advogada da ONG Liberdade orienta-se para os seios, recém adquiridos por Adriana, surpresa com a quantidade de silicone utilizado. Ao afirmar “olha só os apeti da mona”, Sandra faz uso da palavra apeti que significa seio em bajubá e pode-se dizer que, dessa forma, constrói-se como uma travesti conhecedora dessa linguagem cifrada. O excerto 4 nos apresenta a suspensão temporária das identidades tradicionais das interventoras que, ao posicionarem-se em discursos ligados ao universo travesti, encenam performances de identidades que povoam esse lócus sócio-cultural. Tal suspensão materializa-se por meio da utilização de posicionamentos discursivos que ao serem proferidos produzem as interventoras como participantes de grupos identitários específicos, i.e, como travestis, como cliente de travesti e como profissional do sexo. O uso do bajubá é talvez a ferramenta lingüística mais freqüentemente utilizada pelas interventoras na negociação de suas posições-de-sujeito na batalha. Ao fazerem uso desse código, as interventoras convergem no uso de linguagem (BORTONIRICARDO, 1984) com as travestis, construindo-se, assim, no mesmo universo social que suas interlocutoras transgênero.

101

Vejamos mais um exemplo de interação, no qual Sandra faz uso fluente do bajubá em sua construção identitária, posicionando-se, como veremos, no mesmo universo lingüístico das travestis com quem interage.

Excerto 5 [INT251103] 1

((pára o carro próximo à Mayka))

2

Sandra:

VEM CÁ BELÍSSIMA

3

Mayka:

oi

4

Márcia:

tudo bom?

5

Sandra:

escuta, amanhã tem reunião. (0,7) última reunião

6

do mês

7

Márcia:

do ano*

8

Sandra:

do ano. e depois não tem camisinha. só no outro

9

ano.

10 Márcia:

amanhã então tem CEM camisinha e gel.

11 Sandra:

amanhã vai lá e pega cem camisinha e gel e dia

12

dezessete tem a-

13 Mayka:

a festa=

14 Márcia:

=isso. só que vai sê às dezoito e trinta. [vai sê cedo

15 Sandra:

[diz que vai

16

tê um sorteio de um BOFE belíssimo de neca [odara.

17 Mayka: 18 Márica:

[de neca odara @@@@@@@@@@@[@@@@

19 Sandra:

[ta bom?=

20 Mayka:

=ta. brigada.

21 Márcia:

tchau.

102

Essa intervenção foi gravada em novembro de 2003 quando a equipe da ONG Liberdade se preparava para encerrar os projetos financiados pelos governos Federal e Estadual, limitando-se, a partir de então, a questões burocráticas e administrativas a serem resolvidas na sede da instituição. Aproveitando sua incursão nos territórios de prostituição, Sandra e Márcia durante essa noite, avisavam as travestis sobre a última reunião do ano e sobre a festa de lançamento de um livro que a ONG estava organizando. No dia posterior a essa intervenção, haveria a distribuição de um grande número de preservativos e as interventoras tentavam convencer suas interlocutoras a participar desse encontro para abastecer seu estoque de camisinhas e gel lubrificante. Dessa forma, a identidade institucional de Sandra e Márcia é uma constante construção no excerto acima (L. 4-14) e emerge de sua orientação ao anúncio de questões relativas ao funcionamento da ONG. No entanto, nas linhas 15 e 16 Sandra, provavelmente com o intuito de convencer Mayka a participar da “última reunião do ano”, alterna códigos, posiciona-se em discursos do bajubá e, assim, engendra a encenação de uma identidade travesti, deixando temporariamente de lado sua identidade institucional anteriormente construída. Afirmando que, segundo boatos, haveria o sorteio de “um bofe belíssimo de neca odara”, Sandra parece tentar motivar sua interlocutora travesti a participar da reunião. Esse enunciado indica que um belo homem com grande órgão sexual estaria à disposição das travestis presentes na reunião. Mayka orienta-se a esse fato e co-constrói o turno de Sandra através de uma sobreposição de falas (L.17). No dia seguinte, eu participei da “ultima reunião do ano” e pude perceber que, além de mim, mais nenhum “bofe” (belíssimo ou não) se encontrava na sala, o que corrobora minha suspeita de que Sandra pode ter utilizado essa informação como uma estratégia de convencimento para que Mayka participasse do

103

encontro. Na quarta-feira à tarde, Mayka entra na sala, vestindo preto e óculos escuros (“chi-quér-ri-ma!”), quiçá, a aguardar o sorteio. Em linhas gerais, os excertos acima ilustram a fluidez das posições de sujeito coconstruídas por interventoras e travestis possibilitada pelo re-enquadramento conjunto da interação. Ao deixar de lado o enquadre intervenção, as ativistas da ONG Liberdade engendram um processo de suspensão de sua identidade institucional e constroem-se (1) como cliente de travesti e (2) como travesti, o que pode ser considerado, segundo Bucholtz e Hall (2004; 2005), como uma tática de adequação à identidade de suas interlocutoras. Como vimos, com base na análise de alguns micro-detalhes das interações acima, ao fazer uso de enunciados convencionalmente ligados às travestis e seus clientes, as interventoras re-ajustam, transformam, manipulam e recompõem suas construções tradicionais de identidades como interventoras e mulheres de classe média ao contexto onde a interação está inserida e às suas interlocutoras. Outro exemplo dessas re-contextualizações identitárias que acompanham os re-enquadramentos das intervenções é ilustrado no excerto que segue.

Excerto 6 [INT071003]

53 Sandra:

como é que ta a coisa aí?

54 Daniela:

quem tem cliente tem quem não tem.

55 Sandra:

é né. (tem que) tê um corpitcho!=

56 Daniela:

=tem que tê um um padrão né. tem que tê de tudo um

57

pouco!

58 Sandra:

de tudo um pouco!=

59 Daniela:

=CLARO. e eles enlouQUECE já guria.

60 Sandra:

é verdade. qualqué dia desse eu vô te fazê um:[:

104

61 Daniela:

[a Sheyla

62

me ligô semana passada=

63 Sandra:

=a Sheyla::?=

64 Daniela:

=ahã. ela e a Cláudia.

65 Sandra:

ah/ manda um beijo pra ela. escuta:: a Júlia

66

vem vindo::?=

67 Daniela:

=vem. fa:[:la o que tu ia falá!=

68 Sandra:

[a passo bem (lento) =não. qualqué dia

69

desses vô ficá na tua esquina. tem lugar pra mim?=

70 Daniela:

pode ficá. com certeza. Claro. tu sabe que sempre tem pra ti=

71 Sandra:

=ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?

72 Márcia:

@@[@@@

73 Daniela:

[que que é?=

74 Sandra:

=MEU ESPARtilho né

75 Daniela:

lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=

76 Sandra: 77 78 79 Daniela:

=ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e joga os cabelos para os lados)) =ensino.

80 Márcia:

@@[@@@@@@@

81 Sandra:

[ah bom

82

(0,8)

83 Daniela:

um jogo pra balançá TUDO que tem direito=

84 Sandra:

=bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.

85 Daniela:

[A:::I:[:: não pode balançá

86 Márcia:

[@@@@@@@

87 Daniela:

a loca!

88 Sandra:

ta meu amor

89 Daniela:

ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90

um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla:

vai! Tchau, beijo.

92 Sandra:

tchau (0,5) até amanhã::

93 Daniela:

((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha

94

à vontade

105

Da linha 53 à linha 60 do excerto acima, Sandra e Daniela comentam sobre a quantidade de clientes que circulavam na área naquela noite. À pergunta de Sandra, na linha 54, Daniela afirma que o número de clientes é considerável para aquelas travestis que já tem uma cartela de clientes bem consolidada. Na linha 55, a interventora sugere que para se ter clientes, “tem que ter corpitcho”, ou seja, deve-se ser jovem e estar em boa forma para que clientes em potencial se interessem pelas profissionais do sexo. Nesse momento, Daniela, sublinhando a ambigüidade do corpo travesti, enfatiza que “tem que ter de tudo um pouco”. Podemos inferir com base nesse enunciado que, segundo a falante, para se ter clientes, no universo trans, deve-se construir um corpo no qual a feminilidade enfatizada (CONNEL & MESSERSCHIMIDT, 2005) das travestis é combinada com o órgão masculino (no bajubá, ‘neca’), que, segundo minhas colaboradoras, é uma importante ferramenta para se angariar clientes na batalha.37 Em outras palavras, recorrendo à fala de Bárbara na cena 5 (cf. capítulo 2), deve-se construir um “corpo de Eva” mas não se livrar “da melhor parte de Adão”. Assim, de acordo com Daniela, quando se tem “de tudo um pouco” em um só corpo, os clientes “enlouquecem” (L.59). Após mais alguns turnos sobre uma travesti que Sandra e Daniela conhecem (L.61-65), Daniela pede para que a interventora retome o tópico iniciado na linha 60, mas abortado pelo assunto da ligação de Sheila. Diante da informação de que o número de clientes no território onde Daniela batalha pode ser bom, Sandra afirma que vai dividir com sua interlocutora seu ponto (L. 68-69)38 o que configura uma mudança de enquadre no qual a interventora indica seu

37

Ver Kulick 1997; 1998 e Benedetti, 2005 para reflexões enriquecedoras sobre o capital simbólico e sexual que circunda o ‘ter uma neca’ no mercado sexual das travestis que se prostituem. 38 Travestis como Daniela, jovens, bonitas e que investem muitos esforços econômicos e simbólicos na construção de um corpo feminino, segundo minhas informantes, conseguem fazer aproximadamente (ou

106

interesse em prostituir-se com Daniela. A travesti, reconhecendo tal mudança, alinha-se positivamente ao novo posicionamento de Sandra e indica que a interventora tem passagem livre nesse contexto e que, se quiser, pode prostituir-se ali. Nesse momento, Sandra embute (GOFFMAN, 1974), na linha 71, um outro enquadre, um pedido de sugestão, e pergunta à sua interlocutora sobre um item de vestimenta muito utilizado entre as profissionais do sexo da Cidade do Sul. É nesse enquadre que a interventora, sublinhando o poder da travesti nesse contexto, pede a Daniela conselhos sobre sua possível vestimenta: “que cor o meu espartilho?” (L. 71). Daniela parece não ter entendido o que Sandra afirmara (afinal, como uma advogada poderia pedir tal informação?) e, na linha 73, pede à interventora que repita a pergunta. Sandra imediatamente reitera, em volume elevado, a informação que precisa (L. 74). É aí que Daniela ratifica a identidade recém produzida por Sandra orientando-se a essa performance e dizendo que para ser prostituta (e ter muitos clientes) ela deve usar um espartilho “bem vermelho, bem puta, bem tudo”. Tendo em perspectiva a experiência de Daniela como profissional do sexo, na linha 76, há um outro re-enquadramento na interação que, juntamente com o enquadre de pedido de sugestão negociado nas linhas 71-75, configura uma inversão da assimetria das intervenções. Sandra, nesse momento, sublinha o poder simbólico de sua interlocutora e pede que ela a ensine um movimento corporal bastante utilizado pelas travestis da cidade do sul para atrair seus clientes. Entre as linhas 76-85, Sandra e Daniela co-constroem e consolidam a negociação de uma identidade de prostituta para a interventora, negociação inicialmente sugerida pelo alinhamento de Sandra ao

mais de) R$ 5 mil em um bom mês na prostituição (nas zonas de batalha, nas agências, pela Internet, por telefone etc.).

107

contexto de prostituição da Daniela e aos ganhos financeiros da travesti. No Excerto 6, Sandra e Daniela constroem conjuntamente a identidade de prostituta vislumbrada no posicionamento de Sandra nas linhas 68 e 69. Esse é outro exemplo de semelhança suficiente co-produzida por interventora e travestis no processo de negociação / fricção de identidades inerente a esse contexto interacional específico. Anteriormente, vimos Sandra construir uma performance de prostituta através da utilização de enunciados e símbolos associados a esse grupo social. Daniela, sua interlocutora, no excerto 6, corrobora a encenação dessa identidade ao dar conselhos de como Sandra poderia tornar-se, corporal e simbolicamente, uma profissional do sexo eficiente. Contudo, nem sempre os trânsitos identitários efetuados pelas interventoras são ratificados pelas travestis com quem interagem. Vejamos o excerto 7.

Excerto 7 [INT230903] 1

Sandra:

oi:::

2

Tabata:

((de longe, aproximando-se do carro)) oi=

3

Sandra:

=qué uma chupadinha?

4

Tabata:

não::::::=

5

Sandra:

=não? ((supresa))

6

Tabata:

não. NÃO quero.

7

Sandra:

viu? ((olhando para Márcia))

8

Márcia:

tudo bom?

9

Tabata:

tudo sim.

10

Sandra:

amanhã tem reunião viu, vê se aparece por lá*

11

Tabata:

faz tempo que eu não vou, mas vou tentar ir amanhã sim.

12

to precisando de camisinha.

13

Sandra:

então aparece por lá e abastece o estoque meu bem. tá?=

14

Tabata:

=ta bom.

108

15

Sandra:

beijo [beijo.

16

Márcia:

[beijinho

17

Tabata:

beijo. Tchau:::

Quando Tabata se aproxima do carro da Liberdade, Sandra, logo após cumprimentá-la (L.1) lhe oferece um serviço sexual comumente prestado pelas profissionais do sexo nas ruas da Cidade do Sul (L.3), i.e., sexo oral e, dessa forma, essa interação, já de inicio, tem outro enquadre que não o típico enquadre institucional, comum, pelo menos nos primeiros momentos de uma interação durante o projeto da ONG Liberdade. Pode-se indicar que, ao abordar Tabata com um enunciado utilizado pelas travestis ao iniciarem uma negociação de serviço sexual com seus clientes, Sandra instaura um enquadre do que as profissionais do sexo chamam de programa, i.e., um encontro sexual com propósitos financeiros. Assim, com base no uso do enunciado “quer uma chupadinha”, Sandra, que em outros contextos constrói-se como uma mãe de classe média procedente de família judia, posiciona-se em um discurso associado a uma prática corporal característica dos grupos sociais que povoam o universo trans (BENEDETTI, 2005), encenando, assim, uma identidade de profissional do sexo. No entanto, diferentemente dos exemplos anteriores, essa performance não é co-sustentada por sua interlocutora travesti. Na linha 4, Tabata, categoricamente, nega a oferta feita por Sandra. A interventora, um tanto surpresa, ainda tenta, na linha 5, envolver sua interlocutora em sua performance, engatando sua fala à fala da travesti. Tal tentativa é novamente podada por Tabata que, na linha 6, afirma, em volume mais alto, que não gostaria de ser “chupada” por Sandra. A interventora, nesse momento,

109

vira-se para sua colega e orienta-se para o fato de não ter sua performance corroborada por sua interlocutora. Tendo sua performance negada por sua interlocutora travesti, na linha 10, introduz o enquadre de interação institucional orientando-se a sua tarefa de anunciar as reuniões que acontecem às quartas-feiras à tarde. Vemos aqui um exemplo no qual as flutuações identitárias das interventoras são limitadas pelo não-engajamento da interlocutora nessa performance. Isso indica que as travestis têm papel importante nas (re)negociações alteritárias efetuadas durante as intervenções. Em outras palavras, o olhar do outro pode possibilitar ou restringir nossos trânsitos por discursos de identidades. O eu e o outro se interpenetram e retro-alimentam-se e isso é crucial nos embates discursivos nos quais indivíduos que se constroem em grupos identitários tidos como dissonantes encontram-se. Pode-se indicar que o confronto de identidades tradicionais e não-tradicionais encontrado nas zonas de prostituição de travesti da Cidade do Sul parece um rico lócus para a negociação de identidades de gênero e sexualidade. Mais significativamente, a construção de semelhança suficiente entre interventoras e travestis parece indicar que, nesse contexto, a identidade com mais poder, aquela que molda o enquadre da interação e as relações intersubjetivas de construção de identidades, é a identidade travesti. Esse fenômeno é bem exemplificado nos exemplos acima nos quais vemos a suspensão temporária das construções identitárias tradicionais das interventoras por identidades não-tradicionais (travesti, cliente, prostituta), tática que parece sublinhar as posições das travestis durante as intervenções. Até esse momento, analisei como Sandra (uma mulher branca, de classe média, feminista, heterossexual, divorciada, mãe, procedente de uma família judia) e, em

110

menor grau, Márcia (uma mulher branca, mãe natural de duas filhas e adotiva de outra, divorciada, heterossexual) engendram um processo de suspensão temporária de suas performances cotidianas de identidades tradicionais e, a partir daí, desempenham performances ligadas ao universo da prostituição travesti da Cidade do Sul. Como descrito acima, essas identidades são, em parte, trazidas à interação por meio da alternância de enquadres e re-enquadramentos embutidos (GOFFMAN, 1974) múltiplos que possibilitam a elaboração de táticas que produzem o efeito de reajuste das identidades tradicionais das interventoras às suas interlocutoras travestis e ao contexto onde se encontram. Note que os posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990) adotados pelas interventoras são ligados ao universo trans (BENEDETTI, 2005), isto é, são posições que não seguem as regras tradicionais impostas por discursos hegemônicos. As identidades não-tradicionais encenadas pelas travestis com quem interagem, parecem levar as interventoras a construírem-se como participantes desse universo. As performances de identidades habitualizadas das interventoras são, durante as intervenções, deixadas em suspensão, o que desencadeia um processo local e seqüencial de adequação às travestis e ao território de prostituição.

111

4.2.1.1 As flutuações identitárias das travestis: desestabilizando as construções de identidades das interventoras

No que segue, analiso os posicionamentos assumidos por travestis que desestabilizam a fluidez identitária das interventoras, forçando-as a assumir uma identidade associada convencionalmente à feminilidade hegemônica. Consideremos a seguinte interação.

Excerto 8 [071003] 117 Júlia:

To atrás de um home. HOME não [boiola.

118 Sandra: 119 120 Júlia:

[ PRA CHAMÁ DE SEU antes que seja EU ((canta)) mandei meu bofe. mandei meu bofe embora

121

no dia que:: que tava fazendo aniversário do XXX. digo

122

“vai lixo!”

123 Sandra:

é? e depois chora ai nos canto “volta querido, vem meu

124

amor”=

125 Júlia:

=querida home é o que mais tem gatinha. meu negócio é

126

gozá e mandá embora. dá um cafezinho ou uma janta se

127

tivé com fome e ó tchau. que home não dá nada pra

128

gente, a gente tem se fudê no salto aí pelada NUA pegando

129

uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida

130

então querida agora que- sabe qual é o meu marido? é o

131

cartão do unibanco. todo dia oito eu passo assim sai o

132

aqüé e digo “ai amor como é que [tu ta? tudo bem?”

133 Márcia:

[@@@@@@@@

134 Sandra:

[@@@@@@@@@

135 Júlia:

primeira coisa pago meu aluguel e e faço minhas coisa entendeu?

112

136

esse é meu marido. eu to aprendendo as coisa, cada vez

137

que to ficando MAIS velha mais experiência eu to tendo

138

da vida entendeu? por tudo que eu [passei/

O excerto acima inicia com a afirmação categórica de Júlia: “to atrás de um homem, não boiola” (L. 117). Com esse enunciado, Júlia indica seu novo status: está solteira. É relevante observar que o posicionamento de Júlia com relação ao seu exparceiro é resumido pelo discurso reportado direto: “vai lixo” (L. 122). Ao trazer para a interação sua voz no momento da separação, Júlia demonstra como se referia a seu excompanheiro. O vocativo “lixo” pode ser o primeiro índice da relação da falante com seus parceiros sexuais: depois de usados, não servem mais. Nesse momento da interação, Sandra tenta contra-posicionar (WORTHAM, 2001) sua interlocutora travesti dizendo que ao mandar seu bofe embora ela vai “chorar nos cantos” dizendo “volta, meu amor” (L. 123-124). Com isso, Sandra desempenha uma performance convencionalmente ligada à feminilidade hegemônica e tenta impor a Júlia tal posicionamento frágil e submisso. Porém, Júlia recusa o novo posicionamento e reafirma sua força e independência em relação aos homens. Esse tipo de posicionamento é igualmente produzido por outros enunciados: “não boiola”, “home é o que mais tem, gatinha” e “o meu negócio é gozar mandar embora”. Os termos boiola e gatinha aqui utilizados pela narradora na construção de sua narrativa são convencionalmente associados a um grupo específico de homens hegemônicos, i.e homofóbicos e machistas. Performativamente falando, esses enunciados são repetições de normas que precedem e limitam (BUTLER, 2003b) os/as falantes, pois ao constituir o campo

113

discursivo da masculinidade hegemônica tornam disponíveis tais posições para que sejam adotadas, acriticamente, pelos indivíduos na vida social. Assim, ao utilizá-los, Júlia posiciona-se nesse discurso e produz um tipo específico de masculinidade. Observe, no entanto, que essa masculinidade é muito característica das travestis que participaram deste estudo. Nas linhas 126 e 127, Júlia parece posicionar-se de maneira diferente através da suas escolhas lexicais: “dá um cafezinho”, “uma janta”, “se tiver com fome”. A escolha de palavras e ações convencionalmente tidas como femininas posiciona a falante como uma pessoa preocupada com o bem-estar de seus parceiros, o que é antagônico se levarmos em consideração seus posicionamentos anteriores. Contudo, acredito que esses posicionamentos se complementam na construção da identidade travesti. Uma identidade que se caracteriza pela rápida circulação e fluidez por discursos generificados aos quais as travestis têm acesso. Como indivíduos que foram criados como meninos e que, em certo momento de sua vida, constroem uma nova identidade, adotando características corporais, simbólicas e discursivas relacionadas ao feminino, as travestis têm acesso a variados discursos de gênero, o que é exemplificado nos posicionamentos ocupados na construção dessa (trans)masculinidade. No excerto acima, Júlia ainda oferece às suas interlocutoras um enquadre avaliativo de sua história, justificando as razões que a levaram a ter um posicionamento de desapego (mas ao mesmo tempo solidário) aos seus parceiros sexuais. Nas linhas 128 – 130, Júlia afirma que “a gente tem que se fudê no salto aí pelada nua pegando uma pontada alguma coisa aí entendeu? arriscando a vida”. Aí encontramos uma possível justificativa aos comportamentos adotados por Júlia recentemente. Note que nessa avaliação a feminilidade travesti é novamente trazida à tona por meio das

114

escolhas lexicais da narradora: “no salto”, “nua”. Mas, de forma similar aos posicionamentos anteriormente descritos, essa feminilidade é desestabilizada por um posicionamento convencionalmente masculino no senso comum: o apego financeiro.39 Ao afirmar que seu novo marido é o cartão do Unibanco, Júlia se constrói como indiferente

aos

homens

que

“não

dão nada pra

gente”. Dessa forma,

a

transmasculinidade (e de modo geral a travestilidade) é confeccionada através do encaixe, da mistura e da inserção de posicionamentos associados à masculinidade e à feminilidade no discurso das travestis colaboradoras deste estudo. Como podemos ver, nas linhas 123 e 124, Sandra, a interventora que anteriormente posicionara-se ora como travesti, ora como profissional do sexo, ora como cliente de travesti adota uma performance de feminilidade frágil e dependente dos homens. Ao tentar posicionar Júlia nessa performance, afirmando que sua interlocutora ficaria “chorando nos cantos [dizendo] volta querido, volta meu amor”, a travesti recusa tal performance e reitera seu posicionamento anterior, asseverando, como podemos inferir, que ela não precisa de homens, que eles servem apenas “pra gozar e mandar embora”. Como referido acima, aqui, vemos Júlia adotando uma performance ligada à um tipo de masculinidade hegemônica que, heteronormativamente, é reconhecida por sua contingência sexual e por seu desprezo com os parceiros (BADINTER, 1992). Ao introduzir uma performance de identidade normativa/tradicional, Júlia parece impelir sua interlocutora a assumir um discurso igualmente hegemônico e a deixar de lado a plasticidade identitária descrita acima. Mais uma vez, Sandra engendra um processo de adequação de seu repertório de identidades (KROSKRITY, 2000) às identidades das 39

Na quero indicar que mulheres não sejam também apegadas aos benefícios financeiros. Lanço mão, aqui, de um posicionamento construído no senso comum que indica a maior influência do dinheiro na produção da vida social de homens.

115

travestis com quem interage. Essa adequação pode ser resultante do contexto das interações. As interventoras são, na zona de prostituição, corpos abjetos (BUTLER, 1999), pois não participam diretamente das práticas simbólicas e corporais desse contexto. Portanto, ao executar seu trabalho de distribuir preservativos nas áreas de prostituição da Cidade do Sul, as interventoras (inter)agem modulando suas identidades tradicionais às identidades não-tradicionais das travestis. É importante observar, no entanto, que não parece haver controle das interlocutoras sobre essas flutuações. Elas emergem temporariamente durante as intervenções, mas os dados gerados não possibilitam que se possa fazer qualquer afirmação sobre a intenção (ou falta de) das interventoras para realizar tais movimentos por identidades ligadas ao universo trans (BENEDETTI, 2005). O que é, contudo, saliente nos dados sob escrutínio é o fato de que tais trânsitos por discursos de identidades serem co-construídos tanto por interventoras quanto por travestis. Pode-se indicar, com efeito, que os posicionamentos discursivos utilizados pelas interventoras são responsivos às performances de gênero de suas interlocutoras e vice-versa. Destarte, quando as travestis desempenham identidades ligadas a seu universo particular, as interventoras, ipso facto, constroem-se como participantes desse universo. Por outro lado, quando as travestis engajam-se em performances identitárias que nos remetem a posições identitárias tradicionais, Sandra e Márcia, ipsis verbis, engajam-se em posicionamentos situados em discursos semelhantes.

116

4.2.2 Autenticação da identidade travesti

Cena 6

Na sede da Liberdade, distribuídas ao redor da grande mesa de mogno sobre a qual encontravam-se centenas de documentos burocráticos da instituição e cartazes multicoloridos com a mensagem “Travesti e respeito”, estavam Thalia, Fabiola e Cassiana. Sandra e Márcia pareciam bastante ocupadas na frente do computador da secretária. Eu, iniciando o trabalho de campo, bombardeava as travestis com perguntas, sempre acompanhado de minha caderneta de anotações. Thalia e Fabiola, muito atenciosas, respondiam a todas, com riqueza de detalhes, datas, nomes e comentários irônicos sobre suas experiências na batalha. Pergunto a Thalia como ela definiria o travesti. À época eu tentava incansavelmente encontrar uma definição êmica para a identidade, mas, como percebi ao final do campo, tal definição não era possível. Todas as travestis as quais eu pedia uma explicação sobre o que significa ser travesti me davam respostas desconexas e de difícil padronização. Da minha ânsia por definições, aprendi que ser travesti é uma experiência vivida individualmente, com fases de transformação, métodos de modelagem do corpo e práticas sexuais bastante distintas. Há muitos tons no espectro da travestilidade. Ao perceber que havia utilizado consistentemente em minhas perguntas a palavra travesti precedida do artigo masculino, Sandra desvencilha-se de suas obrigações burocráticas, levanta-se e vai em direção à mesa onde eu conversava com Thalia e Fabíola. Com seu jeito expansivo, voz alta, cigarro na mão e olhar sempre inquisidor, Sandra me interpela: ‘não é o travesti, é a travesti”. Eu, sem saber como lidar com a gafe lingüística que cometera, ainda estranho às praticas sociais da ONG Liberdade, só pude pedir desculpas. A

117

advogada, insistente continua: “Eu trabalho na Liberdade por 3 anos, conheço quase todas as monas da cidade. Sempre digo que elas são mais mulheres que eu, olha o corpo dessas bichas, olha o cuidado que elas têm com o cabelo, com a pele! E tu vem aqui me dizer o travesti?”. Depois dessa experiência, nunca mais me atrevi a utilizar o masculino para falar sobre as monas que conheci. [Diários de campo, 15 de maio, 2003].

Outra tática de intersubjetividade que compõe as dinâmicas identitárias emergentes das intervenções configura um processo de autenticação da identidade travesti. Segundo Bucholtz e Hall (2005:601), tal tática “enfatiza as maneiras pelas quais as identidades são discursivamente verificadas”, i.e., validadas, consideradas como performances satisfatórias com base em discursos já sedimentados sobre determinadas identidades. As relações intersubjetivas produzidas por essa tática consistem em validar uma performance identitária através de posicionamentos, índices e orientações avaliativas à performance encenada. Tais estratégias lingüísticas sublinham a produção de uma performance identitária com relação a outras posições de sujeito disponíveis localmente em determinado lócus social. Através dessa tática, interagentes valem-se de discursos que constroem identidades como naturais, utilizando um tipo de essencialismo estratégico (SPIVAK, 1995) que, ao enfatizar a veracidade de uma performance, chama a atenção para sua produção sócio-cultural. Tal essencialismo estratégico funciona como uma baliza para a autenticação de performances identitárias ao fazer uso de significados disponíveis no senso comum sobre as identidades de gênero e sexualidade.

118

Um exemplo desse processo de validação da identidade travesti pode ser encontrado no excerto 3 acima. Sandra e Daniela (que trabalha como profissional do sexo) conjuntamente constroem uma identidade de prostituta para a interventora através de índices que a alocam em tal categoria – permissão para prostituir-se num ponto específico, conselhos sobre a possível vestimenta de Sandra, itens que compõem a identidade de prostituta como um “espartilho bem vermelho, bem puta, bem tudo” etc. A negociação de tal identidade continua nas linhas 76, 77 e 78 nas quais Sandra pede a Daniela que a ensine um movimento corporal tipicamente utilizado pelas travestis da Cidade do Sul para exibir seus atributos físicos (colocando as mãos nos quadris, balançando os seios e mexendo lentamente a cabeça para jogar os cabelos de um lado para o outro). Retomemos a interação:

Excerto 9 [071003] 71 Sandra:

=ta::: e me diz uma coisa, que cor o meu espartilho?

72 Márcia:

@@[@@@

73 Daniela:

[que que é?=

74 Sandra:

=MEU ESPARtilho né

75 Daniela:

lógico. bem vermelho, bem puta bem tudo!=

76 Sandra: 77 78 79 Daniela:

=ta. e e tu vai me ensiná aquele jogo assim?= ((coloca as mãos nos quadris, balança a parte superior do tronco e joga os cabelos para os lados)) =ensino.

80 Márcia:

@@[@@@@@@@

81 Sandra:

[ah bom

82

(0,8)

83 Daniela:

um jogo pra balançá TUDO que tem direito=

84 Sandra:

=bom. se eu começá a balançá muito [PLAFT cai tudo!.

85 Daniela:

[A:::I:[:: não pode balançá

119

86 Márcia:

[@@@@@@@

87 Daniela:

a loca!

88 Sandra:

ta meu amor

89 Daniela:

ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90

um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla:

vai! Tchau, beijo.

92 Sandra:

tchau (0,5) até amanhã::

93 Daniela:

((grita para Júlia)) Liberdade querida. camisinha

94

à vontade

A referência a essa prática corporal nos mostra Sandra sublinhando o capital simbólico de Daniela nesse contexto e, dessa forma, validando a construção cultural de sua posição de sujeito. A validação da identidade de Daniela como prostituta eficiente, que conhece as práticas simbólicas e corporais valiosas em seu ponto de prostituição, é enfatizada na linha 84 na qual Sandra menospreza sua própria capacidade para elaborar tal prática corporal (“se eu começá a balançá PLAFT cai tudo”) orientando-se desfavoravelmente a sua performance e deixando implícita, em comparação com Daniela, sua inabilidade para tal tarefa. A travesti, defrontada com a ineficiência da performance de Sandra, consolida sua superioridade de gênero indicando que Sandra “não pode balançar” (L. 85) o corpo do jeito que ela o faz. Essa negociação é interrompida no momento que um possível cliente passa de carro pelas interlocutoras. Daniela, sem titubear, o chama e, exibindo seu corpo, engaja-se no movimento que impossibilita Sandra de ser uma eficiente profissional do sexo.Vejamos:

120

Excerto 10 [071003] 87 Daniela:

a loca!

88 Sandra:

ta meu amor

89 Daniela:

ta meu amor. (0,7) oi barbudinho vem cá amor. ((chama

90

um motorista de um carro e mostra seus seios, balançando o tronco))

91 Karla:

vai! Tchau, beijo.

92 Sandra:

tchau (0,5) até amanhã::

Podemos indicar, seguindo Bucholtz e Hall (2004), que a referência e a ênfase dada por Daniela à prática corporal que, nessa interação, lhe confere capital simbólico (BOURDIEU, 1985) do qual a interventora não compartilha configura uma tática de distinção, através da qual a travesti parece sublinhar sua autenticidade como profissional do sexo e como travesti em comparação à Sandra. Essa distinção fora iniciada pelo posicionamento de Sandra com relação a sua incapacidade de efetuar os movimentos corporais que atraíram um cliente (barbudinho) para Daniela e, assim, a travesti ao mostrar seus seios e balançar o tronco (prática que impossibilita Sandra de efetuar uma performance de travesti profissional do sexo convincente) desnaturaliza e deslegitima a performance identitária de Sandra que, anteriormente, havia sido ratificada por Daniela (L.75.). No entanto, Sandra em outra intervenção não se satisfez em somente pedir conselhos sobre como construir práticas corporais que a produzissem como uma profissional do sexo eficiente; ela as executa de facto, tentando imitar Michelly. Vejamos as imagens.40 40

Embora tenha recebido permissão das participantes da pesquisa para a utilização dessas imagens (por meio do documento de consentimento assinado em 2003 já mencionado no capítulo 1), as fotos foram manipuladas por motivos éticos com o intuito de evitar o reconhecimento das pessoas retratadas.

121

Fig. 1 Michelly ensinando Sandra a Utilizar o corpo na batalha

Fig. 2 Sandra tentado imitar a travesti MIchelly exibindo suas formas corporais

Essas fotos foram tiradas pelo pesquisador em uma das raras vezes que as interventoras saíram do carro da ONG Liberdade durante o período de geração de dados. Infelizmente não pude gravar as falas que acompanham essas cenas, pois havia sido requisitado a administrar a máquina fotográfica. Porém, minhas notas de campo indicam que, antes de sair do carro, Sandra havia feito uso das ferramentas discursivas acima descritas para pedir a Michelly que a ensinasse a usar o corpo de forma que a interventora pudesse “fazer um aqüé” (i.e. fazer dinheiro) enquanto entregava preservativos naquela noite. Michelly prontamente convida Sandra a sair do carro e

122

engaja-se em práticas que, segundo ela, atrairiam um bom número de clientes. Sandra tenta imitá-la (fig.1), ameaça abrir a blusa para mostrar os seios e pega o cigarro das mãos da travesti. Na figura 2, posando para minha máquina fotográfica, Michelly fica de costas e mostra a parte traseira de seu corpo, levantando uma de suas pernas. Sandra, sem titubear, tenta fazer a mesma pose afirmando que “meu edi não é como o dela” (i.e. minha bunda não é como a da Michelly). As imagens acima são significativas, pois indicam que o processo de negociação das identidades das interventoras e das travestis pode extrapolar o nível lingüístico e chegar ao nível das práticas corporais. O que me parece ser mais relevante aqui é que Sandra, segundo algumas informantes, é naturalmente mulher, dona da feminilidade que as travestis tanto ambicionam. Portanto, ao tentar imitar gestos e trejeitos típicos entre as travestis da Cidade do Sul, Sandra parece engendrar um processo de autenticação dessa identidade, indicando, através de sua tentativa de imitar Michelly, que sua feminilidade não é suficiente para que ela possa se tornar uma boa profissional do sexo. Aí vemos interpenetradas três das táticas de intersubjetividade descritas por Bucholtz e Hall (2003, 2004, 2005), a autenticação da performance de Michelly, a adequação à identidade travesti por meio da imitação de suas práticas corporais e a legitimação institucional de sua posição de sujeito. Tal legitimação é fruto da posição de Sandra na ONG Liberdade e na sociedade. A interventora, advogada da ONG, divorciada, mãe de três filhos, ao imitar Michelly enfatiza o poder que a posição de sujeito da travesti tem no contexto onde estão inseridas e, assim, valida sua identidade e legitima institucionalmente a performance da feminilidade da travesti. Vê-se, portanto, que o corpo, como discurso, tem papel fundamental na fabricação de identidades (SHILLING, 1997; MOITA LOPES 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007) e, no caso em

123

tela, na consolidação de relações intersubjetivas entre as interventoras dos eventos de fala investigados. Em outra intervenção, Sandra e Márcia encontram Amanda e Lya que se prostituem em um dos locais mais perigosos da batalha. Amanda é muito feminina. Tendo construído seu corpo travesti com base no que é, no senso comum, compreendido como o estereótipo da negra brasileira, parece muito com uma dançarina de um dos grupos de axé da Bahia. Aparentava, à época do trabalho de campo, ter não mais do que 20 anos. Lya aparenta ter mais de 40 anos e, no momento em que as abordamos, não mostrava partes do seu corpo, usava roupas mais compridas para abrandar o frio daquela noite. Sandra, ao ver Amanda, não dá as informações sobre as reuniões que acontecem no dia seguinte e, orientando-se para as formas do corpo de Amanda, pede para que ela dê uma “viradinha” (L. 24) para exibi-lo.

Excerto 11 [251103] 22 Sandra:

e aí? como é que ta guria?=

23 Amanda:

=tudo bem?=

24 Sandra:

=tudo bem. vira aqui. vira ((pede pra Amanda dar uma

25

voltinha))

26 Amanda:

((da uma voltinha pra mostrar seu corpo))

27 Sandra:

olha só::::: olha só!

28 Márcia:

olha só.

29 Sandra:

olha aqui. Eu quero apresentá o Ro, o nosso teacher de inglês.

30 Rodrigo:

tudo bem?=

31 Amanda:

oi. Tudo [bem?

32 Lya:

[ prazer, Lya.

33 Márcia:

((entrega os preservativos))

34 Amanda:

brigada=

124

35 Márcia:

e uma sacolinha pra [vocês botá o lixo.

36 Lya:

[então ta. brigada.

37 Márcia:

ta::: não tenho certeza se tem gel amanhã.

38 Sandra:

alguma novidade?=

39 Lya:

=não. tudo no mesmo.

40 Sandra:

então ta. tu vai amanhã? ((pergunta para Amanda))

Amanda tinha recentemente bombado, i.e., injetado silicone industrial (utilizado como lubrificante de máquinas) em seu corpo, e Sandra, validando as novas formas de sua interlocutora, engaja-se em uma performance que nos remete à masculinidade hegemônica

(MOITA

LOPES,

2002;

BADINTER,

1992),

objetificando,

condescendentemente, o corpo feminino da travesti e sua beleza. Nas linhas 27 e 28, Sandra e Márcia, enquanto Amanda faz um giro de 360 graus, comentam sobre sua beleza, entoando “olha só” repetidamente. Esse processo de autenticação da performance corporal satisfatória (i.e uma que se apropria de símbolos ideologicamente associados à feminilidade) de Amanda pode ter sido motivada por minha presença na interação. Logo após Amanda exibir seus atributos físicos, Sandra me apresenta como o “teacher de inglês” da Liberdade. A presença de um indivíduo com performance masculina durante essa interação pode ter sido a força motriz para que Sandra orientasse a interação à feminilidade de sua interlocutora.41 Tanto o pedido para que a travesti exibisse seu corpo para seus interlocutores, quanto as interjeições de Sandra e 41

Constantemente, durante meu trabalho de campo, Sandra tentava motivar algum tipo de interesse afetivo-sexual de minha parte em relação às travestis. Enfrentei situações bastante embaraçosas por esse motivo. Com o tempo, aprendi a administrar as investidas e insinuações sexuais das travestis a mim, tentando, na medida do possível tratar seus discursos como brincadeiras feitas entre amigos. Quando tal estratégia não funcionava, eu costumava ser franco e direto, podando o possível interesse de minhas informantes por mim já no seu início. Faz-se necessário observar que, tanto as interventoras quanto as travestis conheciam meu posicionamento sexual à época do trabalho de campo, o que, em alguns casos foi usado a meu favor na administração de algumas situações em campo.

125

Márcia com relação ao corpo de Amanda são orientações avaliativas (BUCHOLTZ & HALL, 2005) de sua performance de gênero feminino. Tal avaliação positiva, feita por duas mulheres detentoras de capital de gênero (BENTO, 2006) nesse contexto, consolida a relação intersubjetiva de autenticação da identidade de Amanda que, como toda travesti, passa grande parte de sua vida tentando apropriar-se de formas corporais e simbólicas tradicionalmente associadas às mulheres. Elogios tão enfáticos elaborados por mulheres (donas “naturais” da feminilidade que as travestis tanto almejam) parecem servir como estratégias para enfatizar a produção satisfatória de uma performance de gênero que reproduz e reitera discursos sobre a corporalidade feminina construída sobre um corpo biologicamente masculino. O projeto das intervenções elaborado pela ONG Liberdade, apoiado por instituições governamentais, tem como propósito entregar preservativos às travestis espalhando a necessidade do exercício de práticas sexuais seguras. Porém, a entrega dos preservativos parece servir como pano de fundo para processos identitários que dominam as interações. As intervenções parecem ser estruturadas, através das ralações intersubjetivas construídas entre interventoras e travestis, com base na reafirmação discursiva da performance de gênero das travestis nos seus territórios de prostituição. Sandra e Márcia fazem muito mais do que simplesmente seu trabalho de prevenção de DST/AIDS. Esse fato pode ser verificado nos excertos acima nos quais vemos as interventoras e as travestis envolvidas em projetos conjuntos de (1) adequação de suas posições de sujeito às diferentes alteridades inseridas nas intervenções e (2) validação a performance de gênero das transgêneros profissionais do sexo. No excerto que segue, Sandra, Márcia, Amanda e Lya engajam-se em uma

126

relação intersubjetiva de autenticação do gênero de Amanda. A interação abaixo acontece quando as travestis já receberam os preservativos. Nesse momento, há a troca do enquadre intervenção para o enquadre de conversa cotidiana, o que, como vimos, facilita o processo local de (re)negociação de identidades co-construído entre interventoras e travestis.

Excerto 12 [251103] 58 Sandra:

e tu melhorô legal?

59

(0,7)

60 Amanda:

melhorei bastante=

61 Sandra:

XX tu nos deixo preocupada guria!

62 Amanda:

por quê?

63 Sandra:

porque:: apesar da gente assim não:: não convivê (0,5)

64

é uma preocupação. então uma guria BONITA, não modifica

65

nada o que tu tem de bonito.

66 Márcia:

já tem muito.

67 Lya:

já tem demais @@[@@

68 Sandra:

[já. Já. Olha, por exemplo assim- eu vô te

69

dá um exemplo, a Fafá de Belém botô os peito no no

70

seguro eu acho que tu tem que botá o teu corpo porque

71

tu não precisa mais- porque olha aqui ó tu da de dez a

72

zero em muita bicha não é ver[dade?

73 Lya:

[é verdade. É, [é

74 Márcia:

[claro que dá.

75 Sandra:

então. e tu qué fazê o quê? botá mais o quê?

76 Lya:

é:: não precisa.

77 Sandra:

olha. eu acho que até a globeleza tu põe no chão.

78 Márcia:

@[@@@@@@@@@

79 Lya:

[@@@@@@ dezenove aninho né?/

127

80 Márcia:

é::

81 Sandra:

ai que saudade eu tenho da aurora da [minha vida

82 Lya:

[@@@@@

83 Sandra:

ó. cuidado ó. Ui!

84

((passa um caminhão))

85 Sandra:

ta gurias?

86 Amanda:

então ta

87 Lya:

ta=

88 Márcia:

=tem gel amanhã viu [gurias.

89 Lya:

[ta. eu vô i amanhã com a Júlia.

90 Sandra:

então ta

91 Lya:

eu vo lá. Tchau.

92 Sandra:

tchau.

93 Márcia:

tchau.

Como mencionado anteriormente, Amanda havia há pouco tempo se submetido a mais uma sessão para injetar silicone industrial em seu corpo. Porém, a injeção dessa substância não ocorreu como planejado: Amanda enfrentou alguns problemas de saúde após a sessão. As aplicações de silicone industrial não são comumente realizadas por um/a profissional da saúde. Elas são feitas por outras travestis, chamadas de bombadeiras, que aumentam sua renda mensal prestando esse tipo de serviço. Durante uma sessão, a travesti a ser bombada fica deitada com meias de nylon amarradas a sua cintura e às pernas para evitar que o silicone escorra para lugares não desejados. O silicone é aplicado com agulhas de uso veterinário (mais grossas, o que permite que o silicone seja mais facilmente injetado). Após uma área ter sido bombada, coloca-se uma espécie de super-cola ou esmalte de unha no furo feito pela agulha para evitar que o silicone saia do corpo. Tais aplicações de silicone podem causar sérios

128

problemas ao bem-estar da travesti. Aconselha-se, como observado por Benedetti (2005), que a travesti recém-bombada tome algum tipo de anti-inflamatório para evitar complicações causadas pela aplicação de silicone. Não são raros os casos de travestis cujo silicone se moveu dentro de seus corpos, causando deformações pela sua acumulação em lugares como os calcanhares e as pernas (KULICK, 1998).42 Sandra, apesar de não conviver muito com Amanda (L.63-64), soube dos problemas enfrentados por sua interlocutora causados pela injeção de silicone. Preocupada, pergunta se ela havia se recuperado da infecção que a deixou alguns dias acamada. Amanda diz que está melhor. Nesse ponto da interação, a modificação do corpo da travesti (já arredondado e protuberante) torna-se o tópico sobre o qual o processo de validação da performance feminina de Amanda será reforçado. A interventora constrói uma relação intersubjetiva de autenticação do gênero de sua interlocutora através de duas ferramentas lingüísticas. A primeira delas é o uso repetido de vocativos e adjetivos femininos (L.63, 64, 68, 70, 71, 73) que constituem índices que categorizam seus referentes como participantes de determinados grupos sociais (OCHS, 1992; BUCHOLTZ & HALL, 2004, 2005). Por meio do uso freqüente desses índices, Sandra enfatiza a performance de gênero feminino elaborada por Amanda. Outra estratégia discursiva utilizada pelas funcionárias da Liberdade na tentativa de validar a performance de gênero de Amanda é o ato de re-afirmar a beleza da travesti em contraste com outras travestis (L. 71, 72) e com artistas brasileiras tidas como ícones de feminilidade (L.68-71, 77). A cantora Fafá de Belém, que “botou os peito no seguro” (L.69-70), é utilizada como exemplo para enfatizar o belo corpo de 42

Para descrições detalhadas do processo de bombação, ver Kulick (1998, 1997) e Benedetti (2000, 2005).

129

Amanda que deveria, segundo Sandra, “botar o corpo” no seguro, pois, fica implícito, esse é também um ícone de beleza e feminilidade. Ao ter estabelecido a relação intersubjetiva de autenticação da performance identitária de Amanda, com base na comparação entre a travesti e um ícone da sensualidade e da feminilidade da mulher brasileira, Sandra afirma que sua interlocutora “dá de dez a zero em muita bicha aí” (L.71, 72), enfatizando que Amanda não precisa colocar mais silicone para ser feminina. Nesse ponto da interação, a interventora convida as outras participantes para validar as comparações que está fazendo (L.72, 73, 74) perguntando se não é verdade o que diz. Lya e Márcia, em coro, concordam com a validação da identidade da travesti em questão (L. 73 e 74). Valendo-se do fato de Amanda ser mulata, Sandra, na linha 83, afirma que sua interlocutora tem um corpo mais bonito que o da Globeleza, símbolo da sensualidade do carnaval brasileiro (“até a Globeleza tu põe no chão”). Tal comparação parece ter como intuito a autenticação da feminilidade da travesti. Lya, companheira de Amanda na batalha, na linha 85, dando continuidade ao processo de validação da beleza de sua parceira, enfatiza sua juventude (“dezenove aninho né”) que, no universo trans (BENEDETTI, 2005) é muito valorizada por que, nessa época, o corpo masculino é mais flexível para ser moldado com formas arredondas e sutis associadas ao corpo feminino (LOPES, 1995; KULICK, 1998; BENEDETTI, 2000, 2005). Os excertos 11 e 12 são bons exemplos dos processos intersubjetivos de validação da performance de uma identidade feminina encenada pelas travestis com quem as ativistas da ONG Liberdade trabalham. Ao posicionar-se em discursos da masculinidade hegemônica (cf. excerto 12), Sandra aloca sua interlocutora travesti,

130

concomitantemente, a posições de sujeito associadas às mulheres, valorizando seus corpos e sua beleza no processo interacional de autenticação de sua produção de uma nova identidade, uma identidade travesti. A utilização de estratégias discursivas (cf. excerto 11) como o uso de vocativos e adjetivos femininos para se referir às travestis e as comparações do corpo de Amanda com ícones da feminilidade na cultura popular brasileira constituem táticas intersubjetivas de validação (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005) da performance de feminilidade efetuada pelas travestis da Cidade do Sul. Com a utilização de tais táticas, as interventoras parecem ser levadas a suspender suas identidades tradicionais de mulheres brancas, heterossexuais de classe média e, através de uma pletora de ferramentas lingüísticas, sublinham os esforços que as travestis investem na produção de formas corporais convencionalmente associadas às mulheres. O processo de autenticação da identidade travesti, como vimos, é principalmente baseado nas performances corporais das travestis com quem Sandra e Márcia interagem. Através de orientações avaliativas e comentários sobre a beleza das formas corporais de suas interlocutoras, as ativistas da ONG Liberdade sublinham a construção corporal e simbólica da travestilidade. No excerto abaixo, Sandra e Márcia, defrontadas com as novas formas de Adriana orientam-se à corporalidade da travesti.

Excerto 13 [281003] 1

((pára o carro))

2

Adriana:

e aí Sandra?

3

Sandra:

querida::[:

131

4

Márcia:

5

Adriana:

6

Sandra:

[oi mona LUxo! Tu[do bom? [tudo bom meu anjo?/ ah não que é isso? ((seis linhas omitidas))

12 Sandra:

e esses óculos de intelectual?

13 Adriana:

ah agora eu to intelectual. @@@

14 Sandra:

olha só os apeti da:: da mona! arraSÔ

15 Márcia:

ai meu deus. ((treze linhas omitidas))

16 Adriana:

sim. daí amanhã eu faço auto-escola e eu solto às

17

quatro.

18 Sandra:

ta querida! ((aponta para os seios de Marcinha))

19 Márcia:

ta né meu bem!

20 Adriana:

ah ta @@@@

21 Sandra:

daqui um pouco sou EU que também vai fazê um assim.

Anteriormente, analisei essa interação ao descrever os trânsitos por discursos de identidades efetuados por Sandra e Márcia no processo de adequação de suas identidades tradicionais às identidades das travestis. Neste momento, gostaria de enfatizar a tática de autenticação da identidade de Adriana, estruturada sobre comentários relativos a seu corpo. Ao nos aproximarmos da travesti, Sandra, na linha 6 já se orienta aos novos seios de sua interlocutora (“ah não o que é isso?). Márcia, surpresa com as novas formas corporais de Adriana enfatiza que a travesti “ta muito linda, meu deus”. O ápice desse processo de autenticação das formas corporais de Adriana está na linha 15

132

quando Sandra utiliza o bajubá e diz que a mona arrasou com seus novos seios.43 É, no entanto, importante observar que ao serem perguntadas sobre as formas corporais de Adriana, algumas das travestis colaboradoras da pesquisa se mostraram preocupadas com a quantidade de silicone por ela adquirido. Segundo essas travestis, Adriana era a nova “Pamela Anderson” da Cidade do Sul.44 Os comentários irônicos sobre os novos seios de Adriana eram permeados por preocupações com o bem-estar da travesti. Com seios tão grandes, segundo algumas de minhas informantes, Adriana poderia desenvolver sérios problemas de coluna, teria incômodos para dormir e, eventualmente, teria dificuldades em se livrar de clientes incômodos durante seu trabalho na batalha. É importante observar aqui que nem todas as travestis com quem conversei sobre o novo corpo de Adriana se mostravam preocupadas. Algumas severamente criticavam as novas formas adquiridas por Adriana, dizendo que ela parecia “um travecão”. Segundo Pelúcio (2005a:227), “o travecão está ligado ao exagero, ao masculino e, portanto, ao insucesso ou ao ultrapassado”, pois o corpo que constitui um travecão é marcado pelo excesso (ancas fartas, grandes seios, coxas grossas e boca carnuda) o que sublinha claramente a artificialidade de sua feminilidade. A antropóloga Larissa Pelúcio indica que “o estilo valorizado atualmente é a ‘ninfetinha’, mais natural – curvas mais enxutas, seios menos exagerados” (2005a:227). As críticas dirigidas ao novo corpo de Adriana indicam que além de parecer artificial, ela estava “fora da moda”, i.e., não seguia os padrões corporais desejados na comunidade à época do trabalho de campo. Contudo, Sandra e Márcia parecem não levar esses fatos em 43 44

Ver Anexo 2. Atriz norte-americana conhecida por seus enormes seios.

133

consideração. Na linha 21, Sandra afirma ainda que ela seria a próxima a fazer seios como os de Adriana. Não posso afirmar que os comentários de algumas travestis sobre os problemas que os novos seios de Adriana trariam sejam verdadeiros, não posso igualmente sugerir que Sandra também faria uma aplicação de silicone para ter seios iguais aos de sua interlocutora; posso, contudo, sugerir, baseado nos excertos acima expostos, que o que parece importar nas intervenções é a validação das posições de sujeito das travestis que se prostituem na Cidade do Sul.

4.2.3 Distinção, desnaturalização e deslegitimação

No corpus aqui analisado, processos que constroem relações intersubjetivas de distinção, desnaturalização e deslegitimação são virtualmente inexistentes. Nas quase dez horas de gravação das interações entre interventoras e travestis, há, como vimos, um grande envolvimento das interlocutoras em relações identitárias que sublinham a autenticidade e o capital simbólico que as performances identitárias das travestis têm nesse lócus sócio-cultural. Essa constatação pode ser bastante significativa. Segundo Bucholtz e Hall (2004), as relações intersubjetivas trazidas à tona pelas táticas de distinção, desnaturalização e deslegitimação constituem o pólo negativo dos processos discursivos de construção de identidades na interação. As autoras asseveram que tais táticas envolvem “a ênfase dada a qualidades percebidas como distantes do eu e do

134

outro” (BUCHOLTZ & HALL, 2004:494). Como se pode inferir da discussão acima, as interventoras consistentemente validam a performance de identidade das travestis com quem interagem, legitimando, assim, suas performances de feminilidade. Parece-me que os processos do pólo negativo acima mencionados não serviriam aos propósitos identitários localmente negociados entre interventoras e travestis. As intervenções parecem servir como palcos sobre os quais a travestilidade é produzida e consolidada, tanto por travestis quanto por interventoras. Ademais, um dos propósitos políticos da ONG Liberdade é o empoderamento das posições de sujeito das travestis na Cidade do Sul. Propósito esse que é, discursivamente, levado às intervenções para educação de sexo seguro descritas acima. Vemos, portanto, que as intervenções são fortemente estruturadas com base na identidade das travestis; as identidades tradicionais às quais Sandra e Márcia têm se engajado são temporariamente deixadas em suspensão durante suas interações com as monas da Cidade do Sul e, dessa forma, uma plêiade de identidades que constituem o universo trans (BENEDETTI, 2005) é confeccionada em conjunto por travestis e interventoras. É, então, o empoderamento da performance da identidade travesti (um dos objetivos discursivos das intervenções) que parece impossibilitar o engajamento das interventoras em processos que desestabilizariam as performances identitárias de suas interlocutoras transgênero. No entanto, é interessante observar que no excerto 11 acima apresentado, a travesti Daniela produz uma relação intersubjetiva de distinção com relação à Sandra, desnaturalizando e deslegitimando a performance corporal de profissional do sexo que Sandra tentava, naquele momento, engendrar. Talvez esse seja o único exemplo de processos através dos quais as identidades produzidas

135

durante as intervenções são vetadas. Mas, esse veto foi construído por uma travesti que, com base em sua performance corporal, chama a atenção para a incapacidade da interventora de construir-se como eficiente profissional do sexo. Assim, podemos inferir que o empoderamento da performance da travestilidade durante as intervenções fornece possibilidades discursivas às travestis de construção de performances de gênero que as posicionam interacional e generificadamente superiores às mulheres ativistas da ONG Liberdade.

As alteridades das interventoras, nos territórios de

prostituição travesti da Cidade do Sul, servem como trampolim para que as identidades das travestis sejam empoderadas, validadas e intersubjetivamente consolidadas.

136

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base em uma perspectiva sócio-cultural das relações entre linguagem e identidade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005; MOITA LOPES, 2003, 2006b), neste trabalho descrevi os processos discursivos de adequação à identidade travesti e de validação dessa identidade em interações co-produzidas por ativistas da ONG Liberdade em seu trabalho de prevenção de DST/AIDS e travestis que se prostituem em uma cidade do sul do Brasil. As interventoras, indivíduos que têm se construído como representantes de identidades tradicionais de gênero, classe social e sexualidade, ao interagirem com as travestis, parecem ser levadas a suspender as performances habitualizadas dessas identidades e adotar posições de sujeito ligadas ao universo trans (BENEDETTI, 2005). A encenação dessas performances identitárias (BUTLER, 2003) é produzida por meio da construção de posicionamentos discursivos (DAVIES & HARRÉ, 1990), índices lingüísticos (OCHS,1992), troca de códigos (BLOM & GUMPERZ, 2002) e de enquadre (GOFFMAN, 1974/2002) e narrativas orais (LINDE, 1993) que parecem alocar as interventoras e as travestis em discursos associados à masculinidade hegemônica, à feminilidade, à travestilidade e à prática da prostituição, produzindo, assim, identidades fluidas e, por vezes, contraditórias (MOITA LOPES, 2003). Esses trânsitos identitários elaborados entre travestis e interventoras parecem

137

advir do fato de suas identidades estarem, nas intervenções, em fricção, i.e. interventoras e travestis, como seres sociais, constroem-se, cotidianamente, em grupos que não estão comumente em contato entre si, produzindo, assim, atritos sócioculturais entre os significados de suas posições de sujeito. Entretanto, tais identidades são postas em contato durante o trabalho de educação para sexo seguro efetuado pela equipe da Liberdade, o que incita a (re)negociação de relações identitárias específicas para o contexto onde essas interações estão inseridas. Como as análises tentam descrever, as interventoras são levadas a suspender temporariamente as performances habitualizadas de suas identidades na medida em que interagem com as travestis. Esse trânsito por discursos de identidades é aqui investigado com base no conceito de táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005). Essas táticas produzem relações identitárias entre as interlocutoras, o que pode nos oferecer um aparato teórico-analítico apropriado à construção de inteligibilidade sobre o processo de fricção de alteridades construído durante as intervenções e, por que não, na sociedade em geral. Através da produção de determinadas

relações

identitárias

entre

as

interlocutoras

dos

eventos

aqui

investigados, as interventoras discursivamente constroem a outridade das travestis que, por sua vez, dá às interventoras a possibilidade de se construírem como outras (em outros discursos), pois, como indicam Fabrício e Moita Lopes (2004:16), “nas práticas discursivas em que estamos situados [...] construímos a outridade ao mesmo tempo que ela nos constrói.” Dessa forma, Sandra e Márcia constroem relações intersubjetivas locais e temporárias de adequação à identidade de suas interlocutoras, produzindo semelhança suficiente (BUCHOLTZ & HALL, 2004) entre elas e as travestis. Essa semelhança é fabricada pelo apagamento, temporário, de traços das performances

138

cotidianas de identidades das interventoras em processos interacionais nos quais flutuações discursivas causam o efeito de ajuste de suas identidades tradicionais ao contexto onde as intervenções ocorrem. No processo de validação e empoderamento das performances de identidades das travestis, as interventoras fazem uso de orientações avaliativas, comparações entre travestis e símbolos populares de feminilidade, vocativos e adjetivos femininos para se referir repetidamente às suas interlocutoras transgêneros. Com essas ferramentas, Sandra e Márcia parecem, discursivamente, construir o efeito de autenticação das performances de feminilidades produzidas pelas travestis. Essa legitimação do feminino travesti (BENEDETTI, 2005) é seqüencialmente manufaturada com base nos discursos localmente disponíveis sobre o que é compreendido como feminino no contexto investigado. É importante ressaltar que essas dinâmicas identitárias que produzem o efeito de adequação às identidades das travestis e de validação dessas identidades são coconstruídas entre interventoras e travestis. As travestis permitem (e, por vezes, parecem motivar) a produção das táticas de intersubjetividade que emergem das intervenções sendo, assim, tão responsáveis pelas flutuações identitárias efetuadas por Sandra e Márcia quanto as próprias interventoras. Podemos inferir, pelas análises acima elaboradas, que essas intervenções são primordialmente estruturadas sobre táticas discursivas que sublinham o capital simbólico (BOURDIEU, 1985) das travestis nos seus territórios de prostituição. As interventoras fazem muito mais do que simplesmente entregar preservativos às suas interlocutoras. Notadamente, essa entrega é raramente verbalizada. Destarte, as intervenções parecem servir como pano de fundo para o empoderamento e legitimação

139

das construções de identidades elaboradas pelas travestis: um dos objetivos políticoideológicos da ONG Liberdade que visa à melhoria da qualidade de vida das travestis. Comentando sobre o tema do trânsito, termo que ilustra bem a posição de sujeito das travestis em nossa cultura e, como vimos, os processos discursivo-identitários produzidos entre travestis e interventoras, Fabrício (2006:62) indica que “aprendemos na cultura a olhar com desconfiança para as misturas, os cruzamentos, as metamorfoses e a diversidade”. É tentando driblar a desconfiança e o desprezo que muitos/as profissionais do sexo tentam estruturar suas vidas sociais. No entanto, como as análises acima ilustram, as interventoras da ONG Liberdade, por meio dos movimentos discursivos descritos, parecem direcionar esforços interacionais à diminuição de suas diferenças sociais e identitárias em relação às travestis com quem trabalham. Tais movimentos indicam que as negociações de identidades, na prevenção de DST/AIDS, têm um papel crucial para que a tarefa institucional das interventoras possa ser executada. Mais significativamente, esses movimentos discursivos ilustram a importância da adaptação, do trânsito, da flutuação e das revisões identitárias (MOITA LOPES, 2006d) em interações institucionais nas quais identidades díspares entram em contato. Os movimentos discursivo-identitários que emergem das intervenções radicalizam a idéia de ‘identidades multifacetadas’ (MOITA LOPES, 2003, 2006; K. HALL, 2005; S. HALL, 2001; BORBA & OSTERMANN, 2007; BUCHOLTZ & HALL, 2004; FABRICIO, 2006; BARRET, 1998; BAUMAN, 2005; HEBERLE, OSTERMANN & FIGUEIREDO, 2006; entre outros) que é um dos postulados teóricos que moldam muitas das ciências sociais hoje em dia. O contato com identidades díspares, as (re)negociações identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das

140

interações

e

dos

processos

identitários

em

geral,

processos

que,

na

contemporaneidade, encontram-se exacerbados. A seguir, discuto algumas implicações que o presente estudo traz para a Lingüística Aplicada, para a prevenção de DST/AIDS, para os estudos sobre as identidades sociais e para os estudos sobre indivíduos transgênero. Ademais, aponto também algumas lacunas a serem preenchidas por estudos futuros sobre as fricções de alteridades produzidas na sociedade brasileira contemporânea.

5.1. Implicações para a lingüística aplicada

Vislumbra-se, neste estudo, uma sugestão teórico-metodológica de alargamento do escopo temático da Lingüística Aplicada. Tenta-se, aqui, aproximar essa área do conhecimento a um contexto relativamente pouco investigado nos estudos lingüísticos brasileiros: a prevenção de DST/AIDS. A educação para práticas sexuais seguras e a prevenção de DST/AIDS foi tema de um simpósio no encontro internacional da American

Association

of

Applied

Linguistics

de

2007,

na

Califórnia

(http://www.aaal.org/aaal2007/index.htm). Isso evidencia um interesse crescente da comunidade científica por tal contexto de pesquisa. Embora aqui investigue somente uma

pequena

fatia

de

tal

contexto,

a

utilização

da

categoria

táticas

de

intersubjetividade, como tentei argumentar, pode nos servir de aporte para que analisemos os processos discursivo-identitários que emergem de tais eventos de fala,

141

nos quais as negociações entre as identidades dos/as interventores/as e dos/as profissionais do sexo parecem ser um fator crucial. Paradoxalmente, como Silverman e Peräkylä (1990:293) observam, embora a epidemia causada pelo vírus HIV tenha gerado um grande número de pesquisas nas ciências sociais, o foco de atenção dessas investigações tem sido guiado por questões epidemiológicas e por preocupações com a informação sobre a epidemia e os comportamentos de risco de alguns grupos sociais. Os autores também indicam que a epidemia da AIDS não será combatida apenas com a provisão de informações às pessoas. Segundo Silverman e Peräkylä (1990), muitas outras condições devem ser satisfeitas até que essas informações transformem o comportamento sexual dos indivíduos (p. 294). Alguns autores e autoras ainda indicam que a pesquisa e a prevenção de DST/AIDS têm sido reducionistas, pois seu foco tem sido sobre fatores individuais estáticos e não sobre fatores estruturais, contextuais e situacionais (ver MARTIN, 2006; DÍAZ, AYALA & BEIN, 2002; MAYS, COCHRAN & ZAMUDIO, 2004). Tendo isso em perspectiva, tentou-se, nessa pesquisa, preencher essas lacunas ao trazer um estudo sobre prevenção de DST/AIDS para o campo da Lingüística Aplicada. A pesquisa aqui relatada indica que o estudo das lógicas e dos significados coproduzidos local e seqüencialmente em interações entre interventores/as e profissionais do sexo é um importante milieux para a (re)negociação e (re)construção de identidades entre interlocutores/as. Como vimos, a administração das diferenças identitárias entre travestis e interventoras é o eixo ao redor do qual a prevenção de DST/AIDS, nos territórios de prostituição travesti, parece movimentar-se. Dessa forma, ao construir-se no mesmo universo lingüístico-identitário de suas interlocutoras transgênero, Sandra e Márcia engendram processos interacionais que causam o efeito de aproximação de

142

suas posições de sujeito ao contexto social no qual se inserem durante seu trabalho nas intervenções. Essa aproximação pode ter efeitos sobre o comportamento sexual das travestis, pois, afinal, quem dá informações sobre DST/AIDS parece conhecer a fundo os significados culturais relevantes entre as travestis da Cidade do Sul e, mais significativamente, parece realmente importar-se com a melhoria de sua qualidade de vida. As análises acima elaboradas parecem estar em consonância com Moita Lopes (2006d) que sugere que a pesquisa em LA deve “colaborar para que se abram alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem” (p.86). Ao por sob escrutínio as dinâmicas discursivas emergentes das interações entre interventoras e travestis da ONG Liberdade, no presente estudo, vislumbra-se uma sugestão para o desenvolvimento futuro de projetos de prevenção de DST/AIDS entre grupos considerados marginalizados. Com base nas e com as vozes das interventoras e das travestis da ONG Liberdade, vimos que diferenças potencialmente prejudiciais para os propósitos das intervenções são deixadas em suspensão temporária e outras configurações identitárias, potencialmente mais apropriadas para a obtenção dos objetivos das interventoras, venham à tona. A categoria teórico-analítica das táticas de intersubjetividade mostra-se, portanto, uma ferramenta útil para o estudo de interações no contexto da prevenção de DST/AIDS; interações essas que produzem o confronto das identidades de interventores/as com a identidade do outro, os/as profissionais do sexo e vise-versa.45

45

Recentemente, muitas ONGs-AIDS têm utilizado a técnica da “educação por pares”, ou seja, ativistas dessas instituições capacitam indivíduos participantes dos grupos para os quais trabalham para que esses façam o trabalho de intervenção. Tal estratégia passou a ser utilizada para evitar mal entendidos entre os interlocutores e para otimizar os serviços.

143

Talvez a mensagem implícita das interações aqui analisadas seja a de “não resistir ao contato com o outro, não impor de antemão conceitos pré-estruturados [o que] não significa tornar-se o outro, mas permitir ser atingido por ele” (DIAS 2007:89). Dessa forma, com base nos argumentos construídos nesta dissertação, pode-se afirmar que tanto a pesquisa quanto a prevenção de DST/AIDS, ao invés de direcionar os esforços de resistência à epidemia da AIDS somente à disseminação de informações sobre como evitar o contágio, devem, como as intervenções da ONG Liberdade ilustram, construir estratégias de enfrentamento à epidemia com base nas experiências particulares dos indivíduos envolvidos nas práticas discursivas construídas durante os projetos de prevenção. Experiências essas que podem estar relacionadas a muitos fatores, sendo a construção das identidades de gênero e sexualidade dos/as profissionais do sexo um dos mais salientes (particularmente no caso das travestis). As táticas de intersubjetividade que emergem das intervenções nas áreas de prostituição de travestis na Cidade do Sul indicam que, para restringir a disseminação do vírus HIV nesse grupo, a esperança é construir estratégias de intervenção centradas nas experiências das pessoas envolvidas, já que somente a provisão de informação pode não ser suficiente.

5.2 Implicações para o estudo das identidades sociais

O que a natureza divide, a fala frivolamente encaixa, insere e mistura. (Erving Goffman, [1974]2002, p. 146)

144

As fricções de alteridades construídas nas zonas de prostituição da Cidade do Sul são apenas um exemplo de fricções identitárias produzidas pelos processos de mudança social encontrados no mundo contemporâneo (cf. introdução). Com a proliferação de novos estilos de vida (BAUMAN, 2005), novas configurações afetivosexuais (VAITSMAN, 1994), novas conjugalidades (MELLO, 2005), novas formas de lidar com o corpo e apresentação de si (SHILLING,1997), encontramos diariamente construções identitárias que, ao desafiarem discursos tradicionais, nos fazem repensar a vida social. A heterogeneidade da vida contemporânea pode nos impor questionamentos sobre quem somos e sobre quem podemos ser (ver FOUCAULT, 1995; FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004). O socioconstrucionismo (MOITA LOPES, 2002; 2003) e o modelo teórico-analítico das táticas de intersubjetividade (BUCHOLTZ & HALL, 2003, 2004, 2005, no prelo) nos fornecem um aparato para investigarmos as flutuações identitárias efetuadas cotidianamente por indivíduos ao se tornarem seres sociais. Acredito que esse seja um movimento importante para os estudos sobre as identidades sociais no mundo contemporâneo, pois, como indica Moita Lopes (2006d:102), “algumas pessoas são cada vez mais expostas a uma multiplicidade de projetos identitários, como também à percepção da heterogeneidade identitária existindo em um mesmo ser social”. Essa exposição a múltiplos projetos identitários é, em grande parte, mediada em e constituída por nossas práticas discursivas diárias. Cotidianamente, nos defrontamos com uma pluridiversidade de projetos identitários que, como sugere Fabrício (2006), causa desconcertos e vertigens pós-modernas (FABRÍCIO & MOITA LOPES, 2004; FRIDMAN, 2000). Fica claro, então, que o estudo

145

dos atritos identitários emergentes da exposição aludida por Moita Lopes (2006d) pode ser um movimento de pesquisa crucial para que possamos entender os múltiplos e maleáveis

processos

discursivo-identitários

que

constituem

a

sociedade

contemporânea. Faz-se mister, então, trazer para o foco das pesquisas na LA e nas humanidades em geral, a pergunta: como lidamos, em nossas práticas discursivas, com os deslocamentos de significados identitários antes entendidos como estáticos? Encaminhei, nas análises acima, de modo parcial, algumas respostas potenciais a tal questionamento. Contudo, as fricções de alteridades são produzidas em uma miríade de contextos sócio-culturais que, acredito, merecem nossa atenção em estudos futuros. Investigar as dinâmicas discursivas emergentes de tais contextos pode nos ajudar a compreender alguns dos trânsitos identitários constituintes de nossa vida social. Seguindo essa linha de pesquisa, devemos questionar, e olhar com desconfiança, a perspectiva histórica na sociolingüística variacionista que considera as relações entre linguagem e identidade como monolíticas. Com isso quero afirmar que a investigação

sobre

os

processos

interacionais

de

construção,

re-construção,

negociação, re-negociação e administração de diferenças percebidas ou produzidas em embates discursivos específicos problematiza a “distinção confortável [baseada naquela perspectiva] de mulheres fazendo feminilidades e homens fazendo masculinidades” (GEORGAKOPOULOU, 2005:182). Tal perspectiva parece improdutiva para entender as práticas discursivo-identitárias estruturadas no trottoir, e de modo mais abrangente, na sociedade contemporânea. Os jogos de identidades (S. HALL, 2001) com os quais nos engajamos cotidianamente trazem à tona construções identitárias múltiplas e moventes. Essa maleabilidade identitária ilustra como as fronteiras entre as identidades são porosas,

146

abertas para mudanças e transformações (locais e temporárias). Como vimos, o repertório de identidades das interventoras é afetado pelas travestis, e vice-versa. Em outras palavras, em nossas práticas discursivas, o eu e o outro interpenetram-se, retroalimentam-se e, dessa forma, produzem dinâmicas interacionais por meio das quais as fronteiras entre as identidades (de gênero, sexualidade, classe social e raça) podem ser ultrapassadas, sobrepostas, borradas ou até mesmo apagadas. As dinâmicas entre o eu e o outro indicam que não controlamos quem somos, o olhar do outro é crucial para que possamos nos movimentar em nossa vida social, o que engendra, como vimos, múltiplos

e

complexos

processos

de

administração

de

diferenças

entre

interlocutores/as. Essa administração, no caso das intervenções, é marcada pelo trânsito por discursos de identidades, por ambigüidades, oscilações, pela mudança, pela adaptação, pelas mesclas de significados identitários múltiplos e, por vezes, contraditórios. No caso em tela, vimos as interventoras e as travestis encenando feminilidades, masculinidades e travestilidades, encaixando, inserindo e misturando (frivolamente!) discursos de identidades que as alocam em múltiplas posições sociais e possibilitam a consolidação de suas relações identitárias e institucionais. Com a combinação

de

recursos

discursivos,

ao

explorar

possibilidades

identitárias,

interventoras e travestis fabricam múltiplas identidades, o que indica sua participação em universos lingüísticos variados. Resta investigar outras possíveis fricções e os processos discursivos que delas emergem para que, assim, possamos construir inteligibilidades sobre as dinâmicas identitárias que constituem um mundo que parece estar em descontrole (GIDDENS, 2000). Ademais, o estudo sobre identidades em fricção pode nos fornecer subsídios para que entendamos os processos discursivos que produzem misturas e cruzamentos;

147

entre-espaços que nos causam desconfiança e insegurança por trazer à baila significados identitários inauditos. Afinal, como essa proliferação de identidades do mundo contemporâneo afeta a construção cotidiana de nosso feixe identitário (MOITA LOPES, 2003)? Como indivíduos que se alocam em discursos de identidades considerados não-tradicionais negociam suas posições de sujeito em face das forças hegemônicas referentes a gênero, sexualidade, classe social, raça e profissão? E qual a conseqüência que esse espectro multifacetado composto por identidades ditas nãotradicionais traz para aqueles e aquelas que ainda se vêem atrelados a discursos de identidades normativos? Possíveis respostas a essas perguntas são ilustradas neste trabalho. Embora tenha investigado somente um pequeno sub-estrato dos amplos processos identitários contemporâneos, pode-se aqui vislumbrar possibilidades de construções identitárias múltiplas, causadas, como se argumentou, pelas fricções entre as identidades das interventoras e das travestis. Dito de outra forma, como indica a epígrafe desta dissertação, “quanto maior a diferença, maior será a igualdade” e de forma similar, “quanto maior a igualdade, maior será a diferença” (SARAMAGO, 1997:97). Com isso afirma-se que, nos embates discursivos com os quais nos engajamos diariamente, a outridade de nossos/as interlocutores/as afeta a construção de nossas identidades, e, na via contrária, nossa outridade influencia as identidades das pessoas com quem interagimos (ver MOITA LOPES, 2002; FABRICIO & MOITA LOPES, 2004; HALL, 2005; BUCHOLTZ, 2003; BUCHOLTZ & HALL, 2004, no prelo). A análise das intervenções da ONG Liberdade indica, ainda, que as interlocutoras orientam-se a uma forma diferenciada de organização para a diferença. Vê-se, nos movimentos interacionais coconstruídos pelas interlocutoras dos eventos investigados, que as fronteiras entre as

148

performances habitualizadas das identidades tradicionais das interventoras e das posições de sujeito periféricas das travestis estão abertas para a interpenetração e para intercâmbios. Assim, os limites entre a igualdade e a diferença são tornados tênues, o que indica que a diferença pode ser uma fonte de engrandecimento de nossas experiências

discursivo-identitárias.

As

práticas

discursivas

emergentes

das

intervenções da ONG Liberdade ilustram a possibilidade de contato positivo e enriquecedor com a diferença e, assim, indicam um porvir otimista para aqueles/as à margem de nossa sociedade. Oxalá esses processos de apagamento da diferença coconstruídos por interventoras e travestis pudessem inspirar outros atores sociais a organizar suas práticas discursivas para a minimização da discriminação e do preconceito. Utopias à parte, devemos ter em perspectiva que as re-negociações das diferenças identitárias, as flutuações e os trânsitos são parte constitutiva das interações produzidas em contextos contemporâneos. Para entendê-los, faz-se, então, necessário lançar o foco das pesquisas sobre as dinâmicas que produzem tais deslocamentos e sobre seus efeitos na vida dos indivíduos que participam as práticas sociais que investigamos.

5.3. Implicações para os estudos de transgêneros

Nas últimas décadas, pesquisadores/as têm tentado descrever as configurações culturais e as posições sociais de indivíduos transgêneros nos mais diversos contextos

149

sócio-históricos. Estudos etnográficos sobre tal fenômeno46 têm investigado como as/os transgêneros cruzam as fronteiras de gênero (LOURO, 2001) nas práticas sócioculturais, corporais e simbólicas de que participam. A literatura disponível parece indicar que os/as transgêneros usam a linguagem fluidamente e, dessa forma, marcam afiliações com diferentes posições culturais locais de seus milieux específicos, i.e. identidades globais vs. identidades locais (BESNIER, 2003), masculinidade vs. feminilidade (LIVIA, 1997; BORBA & OSTERMANN, 2007), poder vs. solidariedade (HALL & O’DONOVAN, 1996). Com a onda de interesse pelo fenômeno da transformação de gênero, iniciada na antropologia, importantes documentações sobre o uso da linguagem entre indivíduos transgêneros foram elaboradas. Esses estudos têm enfatizado que uma das dinâmicas que o fenômeno transgênero promove na vida social é mostrar, através de corpos e discursos, a permeabilidade das fronteiras entre os gêneros (KULICK, 1998, 1999; BENEDETTI, 2005; LIVIA, 1997; HALL, 2002, entre outros/as). Contudo, essas pesquisas têm, em sua grande maioria, investigado dados de entrevistas entre transgêneros ou entre transgênero e pesquisadores/as, deixando de lado a importância de conversas espontâneas entre esses indivíduos e as pessoas que fazem parte de seu contexto cultural. Em uma extensa e minuciosa revisão da literatura dos estudos sobre as relações entre transgênero e a linguagem, o antropólogo Don Kulick (1999) observa a infeliz ausência de pesquisas, com dados naturalísticos de conversas espontâneas, sobre como os/as transgêneros conversam com as pessoas que constituem seu 46

Veja, por exemplo, os estudos sobre as mahu taitianas (Levy, 1971); sobre as xanith de Omã (Wikan, 1978); sobre as panemas paraguaias (Clastres, 1990); sobre as berdache norte-americanas (Epple, 1998); e outras ocorrências múltiplas de transformações de gênero em várias sociedades (Bolin, 1988; King, 1993; Mckenzie, 1994; Shapiro, 1991).

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universo social. Kulick (1999:615) sugere que “precisamos saber mais sobre como os indivíduos transgêneros falam com outras pessoas em seus milieux, e precisamos saber como essas pessoas avaliam e respondem a essa fala” (p. 615). Seguindo a sugestão de Kulick, neste estudo, investigaram-se as dinâmicas discursivo-identitárias emergentes de embates discursivos entre duas mulheres ativistas de uma ONG criada por e para travestis e as travestis profissionais do sexo de uma cidade do sul do Brasil. Com base no modelo das táticas de intersubjetividade, descrevi como as interlocutoras empregam essas táticas e produzem dinâmicas interacionais que parecem produzir os efeitos de (i) autenticação da identidade e (ii) autorização social e institucional da produção de gênero das travestis, e de (iii) minimização das barreiras sociais que diferenciam as interventoras de suas interlocutoras transgênero. Por meio de uma grande variedade de ferramentas lingüísticas e corporais, essas mulheres parecem co-construir discursivamente identidades que não fazem parte de seu repertório cotidiano. Com essa plêiade de identidades discursivamente construídas, as interlocutoras parecem engendrar um processo discursivo de empoderamento das posições de sujeito das travestis. Sandra e Márcia parecem fazer uso do discurso como uma ferramenta para se aproximarem das travestis. O discurso, durante as intervenções aqui investigadas, funciona como uma ponte que minimiza as distâncias identitárias entre as interlocutoras. No entanto, os processos discursivos de produção de identidades entre travestis e interventoras aqui investigados só podem ilustrar uma fatia das dinâmicas identitárias que emergem de interações entre travestis e as pessoas que fazem parte de seus contextos sociais. O uso das táticas de adequação e autenticação pelas interventoras pode ser fruto de seu engajamento político com uma ONG que visa à melhoria das

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perspectivas das perspectivas sociais das travestis da cidade investigada. Infelizmente, essa filiação político-ideológica não é compartilhada por muitos dos transeuntes e dos clientes das travestis que as encontram em seus lugares de batalha. E mais significativamente, com a inserção das travestis no cotidiano de nossos grandes centros urbanos (cf. introdução), múltiplos processos discursivos devem vir à tona quando, por exemplo, as travestis pegam um táxi, vão às compras, passeiam pelos seus bairros. Assim como o discurso tem o poder de amenizar as distâncias entre as pessoas, ele também tem o poder de separá-las. Vimos, nesta dissertação, que as táticas de distinção, desnaturalização e deslegitimação não parecem ser utilizadas pelas interventoras durante o embate discursivo que coloca suas identidades em atrito com as posições de sujeito das travestis. Mas, como se dá a administração das diferenças identitárias no dia-a-dia das travestis ao inserirem-se em outras configurações sociais e outros discursos de identidades que as alocam à margem de nossa sociedade? Faz-se necessário, ainda, investigar como indivíduos tradicionalmente generificados são influenciados pela outridade das travestis com quem potencialmente podem interagir em sua vida social. Ademais, precisamos descrever as dinâmicas sociais e discursivas que relegam os indivíduos transgêneros e, de forma mais abrangente, os indivíduos que não se filiam a discursos de identidades hegemônicos, à margem de nossas sociedades. Investigar as fricções de alteridade pode nos servir como instrumento para entendermos os processos que transformam o diferente em exótico, o relegando a espaços sociais periféricos, enclausurado em não-lugares. Entretanto, as fricções alteritárias co-construídas entre interventoras e travestis felizmente indicam que o contato com o diferente pode ser uma valiosa e inspiradora fonte de experiências identitárias.

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TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso. São Paulo: Max Limonad, 1986.

UZIEL, Ana Paula; RIOS, Luis Felipe & PARKER, Richard Guy (orgs.). Construções da sexualidade: gênero, identidade e comportamento em tempos de aids. Rio de Janeiro, Pallas, 2004.

VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e Plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de janeiro: Rocco, 1994.

VALENTINE, David. “We’re not about gender”: The uses of transgender. In: LEWIN, Ellen & LEAP, William (eds.), Out in theory: The emergence of lesbian and gay Anthropology. Champaign: University of Illinois Press, 2003. p. 222-245.

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WEEKS, Jeffrey. Sexuality and its discontents. London: Routledge, 1985.

166

WIKAN, Unni. The Omani xanith: A third gender role? Man 13(3):473-475, 1978. WORTHAM, Stanton. Narratives in action. New York: Teacher’s College Press, 2001.

167

ANEXO 1

Exemplos do enquadre típico das intervenções

(1) [INT230903] 1

((pára o carro))

2

Sandra:

como é que ta? tudo bom?

3

Alexandra:

tudo.

4

Márcia:

((entrega as camisinhas))

5

Sandra:

amanhã tem reunião na Liberdade. cresça e [apareça.

6

Márcia:

7

Sandra:

=tem gel também.

8

Alexandra:

ta.

9

Sandra:

sabe onde é?.=

[tem gel também.=

10 Alexandra:

sei. nun- vocês não me viro lá quarta?/

11 Sandra:

então ta.

12 Alexandra:

ta bom. obrigada viu.

13 Márcia:

tchau.

14 Sandra:

tchau, até amanhã.

15 Alexandra:

tchau.

(2) [INT071003]

1 Aline:

tudo bom?

2 Márcia:

tudo bom e aí?*

3 Aline:

como é que tão?

4 Márcia:

tudo bem.

5 Sandra:

amanhã tu vai na reunião?

168

6 Márcia:

amanhã tem gel.

7 Aline:

amanhã? amanhã?

8 Márcia:

amanhã tem reunião e tem gel.=

9 Aline:

ahã, ta.

10 Sandra:

[ta?

11 Márcia:

[ta?

12 Aline:

ta.

13 Márcia:

tchau.

14 Sandra:

beijo. ((arranca o carro))

(3) [INT111103]

1

((buzina))

2

Sandra:

3

Fernanda:

4

Sandra:

=tudo bom?=

5

Fernanda:

=tudo.

6

Márcia:

((entrega as camisinhas))

7

Fernanda:

brigada. [Brigada.

8

Márcia:

9

Fernanda:

o:::i::[:: [oi.=

[amanhã tem reunião.= é:: eu vô i.

10 Sandra:

então ta. beijo beijo.

11 Fernanda:

tchau.

12 Márcia:

tchau.

13 Sandra:

((dá a partida no carro))

14 Fernanda:

((aborda um cliente que a esperava))

169

(4) [INT 281003] 1

((pára o carro bem próximo de Jéssica))

2

Sandra:

3

Jéssica:

4

Márcia:

tudo bom?= *

5

Jéssica:

=tudo [bom.

6

Sandra:

7

Jéssica:

=ta::,amanhã eu vô.

8

Sandra:

então [ta.

9

Jéssica:

OI:::::[::: [olá/

[amanhã tem reunião=

[eu já to SEM camisinha.

10 Márcia:

então ta bom.

11 Sandra:

((continua a dirigir))

12 Jéssica:

((volta ao seu ponto))

170

ANEXO 2

Fig. 3 Sandra e Adriana exibindo seus novos seios

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