Alunos e Professores da EJA

July 31, 2017 | Autor: Sonia Carbonell | Categoria: Educação de Jovens e Adultos
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ALUNOS E PROFESSORES DA EJA Sonia Carbonell

Quem são os alunos da Educação de Jovens e Adultos? Na Educação de Jovens e Adultos encontramos indivíduos das mais diversas origens. Mesmo apresentando uma certa homogeneidade do ponto de vista sócioeconômico, eles configuram um grupo culturalmente heterogêneo, pessoas em que se estampam as mais ricas matizes da nossa brasilidade. Dentro de uma mesma sala convivem alunos de diferentes idades e etnias, em múltiplas combinações fisionômicas, homens e mulheres com belezas peculiares, não só nas aparências, mas também nos costumes, nos modos de ser, nas experiências de vida, nos traços culturais, nas preferências culinárias ou musicais; enfim, na EJA é onde se avizinha gente do centro com gente da periferia, gente do litoral com gente do sertão, compondo belos quadros da pluralidade cultural do nosso país. A heterogeneidade presente no conjunto de alunos, no entanto, aponta para a singularidade de cada um. A cada experiência vivida corresponde um indivíduo absolutamente único, a cada enfrentamento de problemas na vida familiar ou no trabalho decorre um saber idiossincrático, um modo de ver e de se relacionar com o mundo inteiramente pessoal. Para efeitos de classificação, separamos os estudantes da EJA em dois grupos: os adultos maduros e os jovens adultos. Cada agrupamento, apesar de ser totalmente heterogêneo em seu interior, apresenta características próprias que o diferenciam do outro. 1. OS ADULTOS MADUROS

Esse conjunto é constituído por pessoas mais experientes, em média acima dos trinta anos. A maioria já tem filhos, muitos têm netos. Os adultos maduros transitam pelo mercado de trabalho e, apesar das crises econômicas brasileiras, muitos deles hoje desempenham profissões consolidadas. Os adultos maduros permaneceram afastados da sala de aula há mais tempo que os jovens. Grande parte deles viveu sua infância em zonas rurais empobrecidas, onde

2 não eram raros os prédios escolares improvisados, onde o trabalho na roça se impunha precocemente como necessidade vital e a vida impingia uma série de dificuldades a quem estudasse. Os depoimentos a seguir, elucidam alguns desses reveses: A minha primeira escola foi o Mobral, pois, na minha infância, trabalhava na roça com meu pai e meus dois irmãos. Longe da nossa casa morava Dona Severina, professora do Mobral, que lecionava na sua própria casa através do rádio. Ela, mais outros voluntários, imploravam aos pais que deixassem os filhos serem alfabetizados. O caminho até a casa dela era longo e escuro de meter medo. (...) Mesmo assim eu gostava de ir à escola, porque a professora nos oferecia coalhada. A luz da casa da professora era com lamparina de querosene. Francinete

A escola tinha duas salas, e uma sala era usada para aula e a outra como cozinha, ou seja, onde se fazia a merenda. O momento que eu adorava era a hora da merenda porque, no verão, nem sempre tinha o que comer em casa. Então, ia para a escola pensando na merenda. (...) Fiquei por muito tempo estudando nessa escola e não saía da segunda série porque, quando chegava o inverno, parava de estudar e ia trabalhar na roça. Edileide

Uma boa parte desses alunos ainda carrega uma imagem da escola construída e referenciada em sua passagem anterior por ela. Geralmente, essas representações correspondem a um modelo tradicional de sala de aula, ou seja, um lugar onde predominam aulas expositivas, com pontos copiados da lousa, em que o professor é o único detentor do saber e transmite conteúdos que são recebidos passivamente pelos estudantes. Às vezes, os mais velhos se mostram resistentes a uma concepção educativa que os coloca como protagonistas do processo pedagógico, que espera deles práticas ativas de aprendizagem. Os alunos maduros geralmente demonstram um grande interesse pelo conhecimento escolar e reservam um afeto reverencial ao professor. Nas aulas, cultivam um clima de solidariedade, de ajuda mútua e apreço pelas situações de aprendizagem,

3 refletindo os esforços que fazem para se manterem aprumados depois de longas jornadas de trabalho. 2. OS JOVENS ADULTOS

Os jovens adultos que estudam na EJA, por sua vez, têm idades acima dos dezesseis anos. A grande maioria deles trabalha, ou já executou algum tipo de labor, e não são raros os que já constituíram família. Com um ritmo de aprendizagem geralmente mais rápido do que o aluno maduro, o jovem revela também maior traquejo com os procedimentos escolares. Muitos sofreram exclusão recente da escola regular. Grande parte revela uma baixa auto-estima, alguns apresentam atitudes de indisciplina. Suas representações da escola são fruto dessas passagens pelos cursos regulares, muitas vezes traduzidas por lembranças de salas de aula lotadas e ruidosas. Mauro, dezenove anos, motoboy, expõe como descobriu a importância da escolarização:

Quando eu era criança, não suportava a escola e achava que ali eu não aprenderia nada; estava perdendo tempo... Mas, vejo, hoje, que estava muito enganado e aprendi que se tivesse freqüentado a escola não teria que sofrer tanto agora: trabalhar e estudar não é fácil. O meu professor da primeira série era muito legal e sempre nos advertia dizendo: “Estude, pois um dia vocês vão precisar!” Mas aqueles avisos não passavam pelas nossas cabeças. Num lugar onde só tinha roça, no meio do mato?! Então, eu me perguntava: “Pra quê estudo neste lugar se a única vez que usamos a escrita é pra assinar o nome, na época de eleição?” (...) Estou na EJA há algum tempo, não aprendi tudo o que gostaria, principalmente o Português correto, mas, se tudo der certo, um dia, meus filhos terão orgulho de seu pai que, com todas as dificuldades, conseguiu completar os estudos, embora tendo que interrompê-los várias vezes.

Atualmente, os jovens, e mesmo os adolescentes, constituem presença marcante nos cursos de EJA. Expulsos do sistema regular, eles migram para a Educação de

4 Jovens e Adultos compondo grupos sociais que valorizam sobremaneira o convívio no espaço escolar, tornando a sociabilidade uma questão central em sua escolarização. Muitas vezes, privados de outros espaços de convivência social, esses moços e moças esperam encontrar na escola não só um lugar para encontros entre os seus pares, como também um território para práticas e manifestações culturais, das quais as diversas juventudes brasileiras são representantes. 3. OS SIGNIFICADOS DA ESCOLARIZAÇÃO Tanto para o jovem, quanto para o mais experiente, uma forte razão para a procura pela educação formal é a busca por um reconhecimento social. Para esses sujeitos, o letramento constitui um valor e dominar o conhecimento veiculado pela escola torna-se uma forma de sentir-se incluído socialmente. Com bastante freqüência, esses estudantes manifestam uma consideração elevada pela instituição escola. As palavras de Maria Lima, estudante da EJA, confirmam isto:

As atividades oferecidas pela escola são objetivas e servem para nos mostrar o mundo que existe e que às vezes nem nos damos conta de que ele existe. Como por exemplo, o mundo da arte, da música, da escrita, da natureza, da felicidade e muitos outros que passamos a conhecer por meio da escola. (...) A escola é como uma mãe, que ensina o filho o caminho por onde ele deve andar para obter bons resultados, conquistas, realizações e ser feliz.

A volta à escola não representa um processo fácil para o sujeito. Consiste, quase sempre, em uma decisão que demora em ser tomada, pois exige grande abertura interna, uma transformação radical nas relações familiares e profissionais, demanda na reestruturação do dia-a-dia, enfim, trata-se de um projeto de vida. Segundo a Proposta Curricular para Jovens e Adultos (MEC 2002, p. 95): “o que está em questão é a ampliação das possibilidades de participação social de um grupo de cidadãos cuja cidadania encontra-se comprometida. O trabalhador adulto, não sendo uma criança, não volta para a escola para ‘retomar uma trajetória escolar interrompida’, mas para reconstruir uma trajetória escolar em busca de conhecimentos significativos

5 nessa sua etapa da vida, em condições diferentes das existentes no momento em que ele interrompeu seus estudos.” É preciso reconhecer que esses estudantes despendem um esforço grande para retomar e manter os estudos, para conseguir concentrar-se em uma sala de aula após longas jornadas de trabalho. Muitos desistem e retornam várias vezes ao longo desse processo. Edmilson, baiano, de origem rural, relata porque retomou os estudos depois de adulto:

Depois de alguns anos, mudei para São Paulo à procura de melhores condições de vida, pois na minha cidade a situação era precária. Assim que cheguei comecei a trabalhar e só depois de passados dez anos fora da escola foi que resolvi voltar a estudar, pois percebi que a tecnologia a cada dia que passa atualiza-se muito mais e com muita rapidez, e o mercado de trabalho exige cada vez mais melhor qualificação. Foi difícil voltar para a escola, pois tive que ‘brigar’ com meus patrões para reduzirem uma hora de trabalho. No entanto, consegui com muita luta e garra.

Outro fator que contribui significativamente para a volta aos estudos é, inegavelmente, aquele relacionado à obtenção de uma melhor inserção no mercado de trabalho. No Brasil globalizado a escolarização tem aumentada a sua importância ao exigir um trabalhador que disponha de conhecimentos tecnológicos e científicos, que seja criativo, que saiba comunicar-se, enfim, que tenha competências para sobreviver à complexidade dos processos de produção e à vulnerabilidade do mercado de trabalho. Adriano e Hercílio voltaram a estudar porque sentiram necessidade de atualização:

Parei de estudar para trabalhar e sustentar-me, mas senti muita dificuldade de entendimento do mundo no dia-a-dia. E por isso retornei aos estudos. Adriano

(...) Fiquei quase trinta anos sem sentar-me em um banco escolar. O que praticamente obrigou-me a retomar os estudos foram as

6 dificuldades que o homem atual enfrenta para conseguir uma melhor colocação no mercado de trabalho. Hercílio

A presença de jovens, adultos e idosos numa mesma sala de aula conforma um cenário fértil para as situações de ensino e aprendizagem. A diversidade de gerações, de experiências de vida, de valores, de tradições culturais, de maneiras de falar, de visões de mundo, são aspectos que se somam e podem gerar estratégias fecundas, se forem trabalhados positivamente, se as diferenças não forem transformadas em desigualdades, pelo professor de EJA.

Quem é o Professor de Jovens e Adultos? Pintor nenhum jamais conseguiu pintar o brilho do olhar de quem gosta de ensinar a quem deseja aprender. Hamilton (aluno de EJA)

Os educadores de jovens e adultos, assim como os educandos, conformam múltiplas maneiras de ser e reúnem uma grande diversidade de histórias de vida. Para muitos, trabalhar na EJA faz parte de um compromisso ideológico com as camadas excluídas da população, concebem a educação como um caminho para a inclusão social e afirmação da dignidade dessas pessoas. Para outros, dar aulas na EJA é uma maneira de completar seu salário, geralmente cumprem nessa modalidade um terceiro turno de trabalho. O que é importante destacar é que esses professores guardam semelhanças com os seus alunos no que tange às origens sócio-culturais. Nas inúmeras escolas públicas espalhadas pelo Brasil, grande parte dos educadores e educadoras tem sua procedência nas classes populares, alguns são migrantes de zonas rurais, transportam raízes sertanejas e tradições rurais em suas biografias, assim como os alunos e as alunas. A professora Diva, por exemplo, identifica-se bastante com as histórias de vida de seus alunos jovens e adultos:

7 Quando eles falam da vida deles, tem coisas que lembram o que eu já passei na minha vida, só que de jeito ou de outro eu consegui, eu tive ajuda, eu tive oportunidade e eles não.

A fala da professora reforça que, embora a sua origem se assemelhe com a de seus alunos, as oportunidades de vida, de educação e, principalmente, de trabalho os tenha conduzido a posições sociais diferenciadas. Desse modo, uma particularidade da Educação de Jovens e Adultos é o fato de que ambos os seus sujeitos encontram-se inseridos no mundo do trabalho, muito embora os seus ofícios apresentem distinções. Os estudantes geralmente exercem trabalhos manuais, atuando majoritariamente no campo da informalidade. Já a atividade dos professores, tradicionalmente, recebe mais prestígio, porque exercem o chamado trabalho intelectual. No Brasil, tradicionalmente, as classes dominantes cultivam desprezo pelo trabalho manual. Ao longo da história, com a divisão social do trabalho entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais emergiram das elites os pensadores e intelectuais; em conseqüência, os outros homens, que “não pensavam e só sabiam fazer”, passaram a se relacionar de maneira passiva e receptiva com as idéias criadas pelos primeiros. As raízes dessa dualidade estrutural estão vinculadas à diferença entre os valores atribuídos ao trabalho intelectual e ao trabalho manual, que se faz presente desde os primórdios do nosso colonialismo e correspondem às formas de dominação vigente. A depreciação do trabalho manual e a supremacia do trabalho intelectual é o que garantem a acumulação do capital, na medida em que desvalorizam a força de trabalho. Até o advento da Globalização, a produção manual não requeria escolarização, por isso o ingresso à escola pelo povo era considerado irrelevante. Essa concepção garantiu historicamente a exclusividade do acesso à educação para a camada mais rica da população brasileira.

8 A ESPECIFICIDADE DO TRABALHO DO PROFESSOR DE JOVENS E ADULTOS Quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. Paulo Freire

A evidência de que tanto o educador quanto o aluno sejam trabalhadores, imprime uma sólida unidade entre trabalho e educação à EJA, mais forte do que em qualquer outro segmento educativo. Pois bem, se os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos são ambos trabalhadores, existe uma paridade de condições entre aluno e professor. Esta constatação reafirma um importante paradigma da EJA: ela trata de uma educação entre iguais e o diálogo é elemento central no processo educativo. A relação trabalhador educa trabalhador aponta para o diálogo como opção ontológica e antropológica e não apenas como estratégia didática. A partir do diálogo é que educador e educando se constituem como pessoas que ensinam e aprendem juntas. Isto significa que ao invés do educador perguntar-se: “o que é que vou ensinar?”, ele se pergunta: “o que é que vamos aprender juntos?” (Hurtado, 2007, p. 43). Na perspectiva dialógica, segundo Paulo Freire (1996), todos os sujeitos são portadores de uma inteligência cultural, que o autor associa ao “saber de experiência feito”, ou seja, todos os homens e mulheres desenvolvem habilidades, capacidades e conhecimentos para fazer coisas em determinados contextos culturais. Uma pessoa pode ser capaz de escrever muito bem textos acadêmicos, mas ser incapaz de escrever poesias. Um pedreiro pode ser perfeitamente capaz de fazer operações matemáticas para calcular a construção de uma parede e ser incapaz de realizar estes mesmos cálculos em contextos escolares nos quais não se sinta competente. A noção de inteligência cultural supera as ideias de inteligência acadêmica e prática. A educação dialógica, portanto, legitima a inteligência cultural. Ou seja, por meio do diálogo os sujeitos podem transferir seus conhecimentos e destrezas de um âmbito a outro, desde que haja confiança mútua na capacidade de fazê-lo e estejam asseguradas as condições que permitam esta transferência. Assim é que, por exemplo, uma pessoa não alfabetizada, mas com habilidades de comunicação oral desenvolvidas em suas práticas sociais, pode transferir estas habilidades para os contextos de

9 aprendizagem formais, na escola, desde que o ambiente escolar permita com que ela se sinta capaz e não desvalorizada por ser analfabeta. Uma relação igualitária e dialógica entre educador e educando implica também na revisão do conceito de autoridade. Sabemos que o processo educativo organiza-se sobre o auspício da autoridade, pois ele pressupõe que existam no grupo pessoas que possam ajudar outras a crescer. Esta ideia está na origem latina da palavra autoridade: auctoritas é derivada do verbo romano augere, que significa aumentar, fazer crescer. Este é o verdadeiro sentido da autoridade do professor: a sua tarefa é a de aumentar para fazer ver as nuanças, para revelar o oculto, é a de apontar um caminho de crescimento. Nesse sentido, ser professor é ser um “aumentador”, é gostar de mostrar o mundo, de desvelar o humano. Faz parte do exercício da autoridade docente tomar decisões, propor atividades, organizar tarefas, cobrar a produção individual e coletiva dos estudantes. Porém a autoridade, quando se deteriora, passa a representar autoritarismo, passa a ser exercício do poder que, automaticamente, impõe obediência cega. Infelizmente, numa sociedade autoritária como a nossa, as diferenças, ao invés de enriquecerem o processo educativo, acabam por reforçar uma posição de superioridade no educador e de inferioridade no aluno, numa relação de comando e obediência. Por tudo isto é que a posição de autoridade do educador de EJA não lhe outorga qualquer tipo de conduta autoritária. Em um depoimento de Marco, professor de Matemática para jovens e adultos, verificamos, na forma como conduz as suas aulas, que o ensino e a aprendizagem são gestados por meio do diálogo, o que possibilita ao aluno assumir um papel de protagonista no processo educativo:

Um exemplo é quando vamos resolver uma equação: temos vários caminhos, não há um procedimento único, determinado previamente. Aí, na aula, a gente começa a discutir essa variabilidade: fulano resolveu desse jeito, mas outro aluno acha que aquele caminho é muito complicado: “eu penso desse outro jeito”. Nós vamos analisando os caminhos, mas dentro das regras estabelecidas pela linguagem. O importante é o aluno perceber que mesmo dentro de um contexto, onde as coisas já estão dadas, ele consegue fazer o percurso dele. Se você for pensar, num certo sentido, as coisas na vida dele já estão meio dadas: o cara vive dentro de uma estrutura onde tem lá um patrão (...), onde ele não tem autonomia nenhuma de

10 fazer um caminho próprio. Ha muitos alunos que nem conseguem falar, porque têm medo de se expor, de dizer alguma bobagem (...). Para eles não existe a possibilidade do diálogo: mandam fazer e eles executam (Alvares, 2010, p. 52).

O professor Marco enfatiza que a sua ação pedagógica ocorre no sentido de facilitar a transferência dos saberes da vida para a ciência, que o seu ofício é realmente o de “aumentador”:

Ensinar Matemática não é passar do que o aluno sabe para o que ele não sabe: é ampliar o que ele já sabe. Por exemplo: apresentar os números negativos, o conjunto dos números negativos. Esse é um campo de exploração muito novo para o aluno, porque ele nunca representou, enfim, nunca operou dentro desse conjunto. Mas o cara faz a compra na venda, deixa a conta pra pagar no mês que vem, pede emprestado... Ele já conhece algumas relações. A idéia é partir dessas coisas e problematizar (Alvares, 2010, p. 51).

Marco elucida também as razões que levam um professor a acolher os conhecimentos prévios dos seus alunos jovens e adultos: A aprendizagem só ocorre quando você abre espaço para o aluno se apresentar e expressar o que ele conhece. Esse encontro com o aluno só é feliz, saudável quando você consegue deixar os alunos à vontade para poderem se colocar e não tentar elevar o nível da conversa, no sentido: “vamos ver o próximo capítulo do livro”. (...) Na verdade, o que interessa é como você insere o aluno na discussão. (...) A gente já trabalha com um cara que é excluído de “n” situações, se você excluir ele da aula também, não sobra nada (grifos nossos) (Alvares, 2010, p. 51).

Situações de confronto entre os conhecimentos do educador e os do educando são típicas nas salas de aula de EJA, territórios onde cotidianamente saberes populares se encontram e desencontram com saberes eruditos. Mas os conhecimentos prévios de um aluno jovem ou adulto remetem a inúmeras espécies de saber, a uma travessia longa

11 de percepções e indagações adquiridas ao longo de sua história de vida. A diversidade cultural brasileira espraia uma multiplicidade de saberes com características regionais, muitos deles ligados à arte ou ao artesanato, conhecimentos oriundos de usos e costumes dos diversos grupos sociais que se espalham pelo país. Promover a interface e valorizar esses conhecimentos prévios, dentro das salas de aula da EJA, por meio do diálogo igualitário, é uma maneira de subsidiar favoravelmente a construção do saber escolar. Outro exemplo é Fernando, professor de Ciências da EJA, na cidade de São Paulo. Durante sua pesquisa de doutorado, ele foi a campo, no interior do nordeste brasileiro, conhecer de perto cidades e vilarejos onde seus alunos viveram a infância. Em uma passagem de sua tese, esse professor se encanta com a extraordinária riqueza do conhecimento que o sertanejo detém sobre o meio em que vive, ao mesmo tempo em que reconhece o seu próprio desconhecimento com relação à atividade que observara:

Houve uma noite em que acompanhei Vanúzio, mais o irmão e o cunhado desse aluno, à coleta do mel de abelhas silvestres. Minha participação em nada contribuiu com os termos práticos da tarefa. Apenas observei os detalhes de um fazer até então inédito para mim: a observação das colméias, o toque com uma vara para aferir aquela que pudesse ser mais profícua, o fogo para espantar os insetos dos favos e, finalmente sua tomada em mãos. Caso tivesse me sido dada aquela tarefa, eu deixaria de entregar feita a lição. Por outro lado, sei o que dizer quando alunos que muito mel já retiraram em suas vidas, perguntam sobre a organização social das colméias. (Frochtengarten, 2009, p.115)

Fernando conclui o episódio revelando o quanto aprendeu com conhecimentos populares tradicionais:

O doce do mel extraído revelou que o conceito de animal social não fizera falta a meus companheiros. Aquele seu labor estava fundado em saberes transmitidos por outros membros de sua família e fortemente apoiados sobre dados sensíveis. Quanto a mim, retirado a um canto, era um conhecedor das funções da abelha rainha, dos zangões e das

12 operárias. Enfim, daquilo que não víamos e tampouco contribuía para o específico afazer (Frochtengarten, 2009, p.115).

O educador precisa assumir que os conhecimentos prévios dos alunos, construídos no contexto da experiência, não representam apenas um trampolim para o atingimento de conhecimentos letrados. Esses conhecimentos são em si mesmos conhecimentos válidos. Sua legitimidade não ocorre apenas por meio da identificação das atividades do dia-a-dia mas, fundamentalmente, pela compreensão da sua historicidade, pelo entendimento de como esses saberes balizam e articulam as práticas sociais dos sujeitos. A estrutura vertical que tradicionalmente rege o processo de escolarização não pode encontrar lugar para se perpetuar na EJA. O fato de o professor ser mais letrado do que o aluno não deveria, de forma alguma, cunhar uma hierarquia de valores aos diferentes conhecimentos que insurgem da relação pedagógica, reforçando a desigualdade cultural e a exclusão social que esses alunos sofrem diariamente. É fundamental mencionar, ainda. uma última particularidade do trabalho do professor de EJA: a sua ação pedagógica destina-se a indivíduos maduros e ensinar adultos é bastante distinto de ensinar crianças. O tempo de vida do educando faz a diferença, pois, fundada na experiência, a fonte da aprendizagem é a extensão do próprio viver. O educador tece a sua prática levando em conta as experiências de seus alunos, seus modos de pensamento, seus costumes, seus valores, seus desejos, aspectos vivos e presentes nas salas de aulas. Marcelo, por exemplo, é professor de Arte para jovens e adultos, e também para crianças. Ele descreve bem qual é o território de atuação do educador de adultos: O adulto vem para a sala de aula com o caráter já formado, com a personalidade e uma concepção de mundo prontas, o que lhe dá instrumentos para compor, para tecer a teia da experiência artística, em sua complexidade. Em uma sala de aula da EJA, a heterogeneidade é tanta que não há como generalizar, é necessário ler cada aluno dentro de sua singularidade: idade, condição sócio-econômica, profissão, origem, suas práticas culturais. A ação do professor é apontar, reforçar para o aluno que ele é capaz de desenvolver um trabalho artístico e de crescer com isso. Com o adulto, o professor trabalha numa área de bloqueio, para soltar a ação do fazer arte, para que ele expresse sua

13 formação, sua experiência de vida. O adulto tem muito mais dificuldade com as técnicas, mas maior facilidade de compreensão.

Marcelo distingue claramente a via por onde caminha a atuação do educador de crianças:

Para a criança, o sentido é o contrário: tirá-la do egocentrismo e ajudála a exteriorizar seu conteúdo interno, a socializar sua expressão. A criança sabe que possui um universo. Ela esgota muito facilmente seu conteúdo expressivo. (...) Com crianças, pode-se explorar infinitas técnicas, que todas elas serão férteis.

A ação pedagógica de um professor, portanto, se diferencia substancialmente quando dirigida a crianças e quando dirigida a adultos. No entanto, sabemos que a grande maioria dos educadores de EJA trabalha em dois períodos, ou seja, leciona tanto para crianças quanto para adultos. Observa-se, com freqüência o uso equivocado da mesma abordagem metodológica para os dois públicos. A especificidade do ofício do professor de jovens e adultos é ajudar o aluno a acessar um conhecimento que se revela como um eco da própria experiência, que o sujeito vê desdobrar-se para testemunhar a experiência humana universal. Dessa forma, o educador respeita e valoriza a vida vivida do educando, resgatando a importância de sua biografia, afirmando sua identidade, assegurando, enfim, o acolhimento necessário à sua volta e permanência na escola (Alvares, 2010, p. 40). Ser educador de jovens e adultos é saborear simultaneamente o crescimento de seus alunos e o seu próprio crescimento, é ser transmissor de uma herança universal, é ajudar mulheres e homens a se apropriarem de um legado que lhes pertence por direito.

Bibliografia ALVARES, Sonia Carbonell. Educação Estética para Jovens e Adultos: a beleza no ensinar e no aprender. São Paulo: Editora Cortez, 2010. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17º ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. 245 p.

14 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa/ Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. – (Coleção leitura). FROCHTENGARTEN, Fernando. Caminhando sobre fronteiras: o papel da educação na vida de adultos migrantes. São Paulo: Summus, 2009. HURTADO, Carlos Nuñez (org.). Diálogos Freire-Morin. México: CREFAL, 2007. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Educação de jovens e adultos: proposta curricular para o segundo segmento do Ensino Fundamental. Brasília: MEC, 2002.

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