ALZAMORA, G. C.; UTSCH, R. S ; ABREU, Carolina . ESPAÇOS INTERSTICIAIS EM REDE Aproximações entre Canal Motoboy e Praia da Estação. In: Regina Helena Alves da Silva e Paula Ziviani. (Org.). Cidade e Cultura: rebatimentos no espaço público. 1ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2016, v. 1, p. 28-42.

May 26, 2017 | Autor: Geane Alzamora | Categoria: Social Networks, Social Media, Social Mobilization
Share Embed


Descrição do Produto

Espaços intersticiais em rede: aproximações entre Canal Motoboy e Praia da Estação Geane Alzamora1, Raquel Utsch2 e Carolina Abreu Albuquerque3 1. Introdução A apropriação midiatizada do espaço urbano por coletivos em rede, tônica deste estudo, é reveladora de certa configuração sociocomunicacional das cidades contemporâneas. A noção de apropriação4 remete aqui não à ideia de tomar posse daquilo que a princípio não lhe pertence, mas de tornar próprio, no sentido de peculiar, percursos midiatizados no espaço urbano, sejam eles individuais ou coletivos, porém agenciados em rede. Parte-se, portanto, de uma abordagem reticular e midiatizada do espaço urbano, sendo este compreendido como um território híbrido, que se expande entre a territorialidade física e sua reterritorialização em conexões de mídias digitais (WEISSBERG, 2004). Com base nessas premissas, indaga-se: de que modo as noções de rede e de midiatização interferem na configuração de certos aspectos do espaço urbano na contemporaneidade? Essa questão é empiricamente observada em duas formas de agenciamento coletivo (DELEUZE, GUATTARRI, 1995)5 em rede relacionadas à apropriação do espaço público urbano no Brasil, seja predominantemente por meio do olhar (Canal Motoboy/São Paulo), seja predominantemente por meio do agir (Praia da Estação/Belo Horizonte). Em ambos, interessa-nos investigar como modos 1

Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica (PUC SP), pesquisadora do Centro de Convergência de Novas Mídias (CNPq/UFMG). Agradeço ao CNPq e Fapemig por apoio a pesquisas que dialogam com este artigo – [email protected].

2

Pesquisadora bolsista do Centro de Convergência de Novas Mídias (CNPq/UFMG), graduada em Jornalismo e mestre em Comunicação Social (PUC Minas) - [email protected].

3

Mestre em Comunicação Social (UFMG), graduada em Jornalismo pela mesma instituição [email protected].

4

Conforme definição do Dicionário Aurélio, apropriação se refere a: 1. ato ou efeito de apropriar (se). 2. Acomodação. 3. Adaptação. O Dicionário Online de Português define o termo do mesmo modo e apresenta como sinônimos os termos adequação e ocupação. http://www.dicio.com.br/apropriacao/. Acesso: 11.Jul.2012.

5

Para Deleuze e Guattarri (1995) os agenciamentos são processos de articulação entre agentes coletivos de enunciação ou multiplicidades que interligam estratos diversos, atuando em várias direções. Agenciamentos, nessa acepção, organizam relações entre estados de força e regimes de signos, em permanente conexão com outros agenciamentos de forças. 1

de olhar e modos de agir são agenciados em rede e configuram, em conexões de mídias digitais, experiências urbanas individuais ou coletivas. Entendemos que o compartilhamento em rede configura o espaço urbano como um dispositivo que agencia, em curvas de visibilidade e de enunciação, instâncias de saber, poder e subjetividade (DELEUZE, 1990). Nossa perspectiva de análise funda-se na lógica das conexões (KASTRUPP, 2004), nas espacialidades intersticiais (SANTAELLA, 2007) e nas apropriações como táticas midiáticas no cenário urbano (CERTEAU, 2004). Com base nesses pressupostos, analisamos duas formas de percursos naquilo que aqui denominamos cidade-dispositivo. Trata-se de percursos circunstanciais e efêmeros nas ruas, eventualmente perenizáveis na rede midiático-urbana que as agencia. Estabelecemos aproximações entre modos de olhar e modos de agir na cidade-dispositivo por meio da noção de experiência urbana (RODRIGUES, 1999), a qual estaria, cada vez mais, permeada por formas de apropriações, sempre circunstanciais, fragmentadas e efêmeras, que dilatariam a espacialidade urbana em anamorfoses entre público, privado e íntimo. 2. Lógica das conexões: cidade expandida Tomar a lógica das conexões como parâmetro conceitual para se compreender os imbricamentos entre territorialidade física e reterritorialização midiatizada da experiência urbana nos espaços urbanos contemporâneos implica assumir as noções de midiatização6 e de rede como fundantes de um cenário urbano composto por fluxos informacionais midiatizados e reticularmente dispersos. Isso nos leva à configuração de uma cidade expandida em conexões de mídias digitais, uma cidade-dispositivo, como se propõe aqui. Segundo Kastrup (2004), a lógica das conexões rege a conformação das redes, as quais podem ser entendidas como figuras topológicas, compostas por linhas e não por formas espaciais. As redes se expandem ou se contraem por meio de suas conexões (KASTRUP, 2004), caracterizando-se não por limites físicos, mas pelos movimentos reticulares de suas conexões. O espaço urbano, nessa perspectiva, expande-se a cada nova conexão gerada, independente de seus limites físicos. 6

Sobre a noção de midiatização, ver neste livro o artigo “Tipologia do espaço virtual”.

2

Com base no conceito de rizoma de Deleuze e Guattari (2004), Kastrup sugere que a lógica das conexões delineia a forma operacional das redes, que funcionam como um todo aberto, com capacidade de crescimento através de seus nós, para todos os lados e direções. Esta ideia está diretamente relacionada ao princípio da conexão, um dos seis princípios do rizoma7. “Qualquer ponto do rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 15). As redes são, portanto, fluidas arquiteturas de informação interconectadas, ilimitadas, multidirecionais e interativas. A rede não é dada a priori, mas se configura no percurso, que é sempre heterogêneo e circunstancial. Pensar o espaço urbano nessa perspectiva é deslocá-lo de sua dimensão territorial predominante para compreendê-lo, prioritariamente, em dimensão sociocomunicacional dinâmica, midiatizada e agenciada em rede. A materialidade dessa rede que evocamos em torno de experiências no espaço urbano é simultaneamente territorial, tecnológica e midiática, não podendo ser reduzida a qualquer dessas dimensões, pois opera como um dispositivo. “Mediante as redes, há uma criação paralela e eficaz da ordem e da desordem no território, já que as redes integram e desintregram, destroem velhos recortes espaciais e criam outros” (SANTOS, 2009, p.279). Os processos de midiatização da experiência urbana, aqui acionados, fundam-se naquilo que Sodré (2002) chama de bios midiático, ambiente tecnocultural no qual as normas da vida são predominantemente configuradas pela mídia8. De acordo com Fausto Neto (2008), a midiatização amplia a capacidade de produção e difusão de informações nos diversos contextos sociais. As mídias perdem este lugar de auxiliaridade e passam a se constituir uma referência engendradora no modo de ser da própria sociedade, e nos processos de interação entre as instituições e os atores sociais. A expansão da midiatização como um ambiente, com tecnologias elegendo novas formas de vida, com as interações sendo afetadas e/ou configuradas por novas estratégias e modos de organização, colocaria todos - produtores e consumidores - em uma mesma realidade, aquela de fluxos [...] (FAUSTO NETO, 2008, p. 93).

7

Os outros princípios são: heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia e decalcomania.

8

A noção de bios midiático de Sodré (2002) funda-se nos gêneros de existência formulados por Aristóteles para classificar as formas de vida na Polis: theoretikos (vida contemplativa), politikos (vida política) e apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo). Sobre a noção de mídia, ver neste livro o artigo Tipologia do espaço virtual.

3

Sob forte influência dos processos sociocomunicacionais contemporâneos, engendrados em relações de poder que conformam práticas sociais e culturais no mundo globalizado, as cidades caracterizam-se, progressivamente, pelo excesso informacional e pela aceleração dos processos interativos. O contexto comunicativo contemporâneo é assim observado no espaço físico-virtual constituído por fluxos informacionais (CASTELLS, 2007), permanentemente redimensionado pela lógica das conexões. Ressalta-se que o uso das mídias locativas9 pelas pessoas comuns nesse cenário. O espaço urbano passa a se configurar, cada vez mais, como uma rede que se expande no plano físico-virtual por meio de anotações, espécies de testemunhos midiatizados que a ele se acoplam. Essa perspectiva encontra ressonância na noção de espaço como testemunho, defendida por Milton Santos. “O espaço é portanto um testemunho; ele testemunha um momento de um modo de produção pela memória do espaço construído, das coisas fixadas na paisagem criada” (SANTOS, 2008 p. 173). Observadas como elementos de conexão entre os espaços territoriais da cidade e seu entorno virtual, as redes contemporâneas constituem, assim, uma espécie de “híbrido território/rede comunicacional” (WEISSBERG, 2004, p. 121). Recorre-se, neste ponto, a Certeau (2004) no intuito de compreender o espaço de mobilidade resultante dos percursos, usos e apropriações sociais dos habitantes das cidades contemporâneas. “O ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação”, ou ainda, como “modos de usar o sistema” (CERTEAU, 2004 p. 177). Certeau (2004) relaciona os modos de usar a cidade a “um relato bricolado com elementos tirados de lugares comuns, uma história alusiva e fragmentária cujos buracos se encaixam nas práticas sociais que simboliza” (CERTEAU, 2004, p. 182). Permeado por situações sociocomunicacionais como essas, o espaço urbano contemporâneo passa se configurar nos interstícios entre relatos midiatizados e experiências urbanas, sendo uma a contra face da outra. A ideia de apropriação como tática urbana acionada com emprego de recursos sociocomunicacionais, em especial mídias locativas, pode ser relacionada à noção de “não lugar” que, conforme Certeau (2004), refere-se ao espaço resultante de táticas criadas pelo indivíduo ou 9 Mídias locativas referem-se a tecnologias e processos infocomunicacionais cujo conteúdo informacional vincula-se a um lugar específico, por meio de dispositivos digitais. Esses processos de emissão e recepção de informações relacionam lugares e dispositivos móveis de comunicação. Sobre o assunto ver Lemos, 2008.

4

coletivo, mediante o poder estratégico das instituições modernas. Para o autor, as táticas de sobrevivência associam-se a não lugares, na medida em que só podem acontecer no lugar do outro; ocupam o território da estratégia, afirmando-se no território alheio (CERTEAU, 2004). As camadas de experiências resultantes das experimentações cotidianas (RODRIGUES, 1999) podem tensionar, através das práticas sociocomunicacionais e dos fluxos informacionais a elas vinculados, o planejamento e o funcionamento da cidade como conjunto ordenável, mas permanentemente reconfigurável, de elementos simbólicos10. O redimensionamento em rede do espaço urbano advém, por exemplo, das dinâmicas interacionais que revelam formas de resistência expressas na profusão dos conteúdos simbólicos difundidos e compartilhados no espaço físicovirtual. Ao criar linhas de fuga momentâneas e contingentes, as dinâmicas sociocomunicacionais em rede provocam reconfigurações importantes no contexto midiatizado das relações sociais que ressignificam, constantemente, o espaço urbano. Essa perspectiva evoca a noção de dispositivo (DELEUZE, 1996), relacionada a um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente que não delimitam sistemas homogêneos, mas que traçam processos sempre em desequilíbrio. Na perspectiva de Deleuze, as grandes instâncias que configuram o dispositivo em Foucault (1975) – saber, poder, subjetividade – não possuem contornos definidos, são antes cadeias variáveis que destacam, circunstancialmente, linhas de força, ou de sedimentação, e linhas de fuga, ou de fissura. Assim, linhas de força e linhas de fuga atuam em processos de agenciamento coletivo em rede, aqui discutidos na perspectiva da apropriação do espaço urbano por meio de ações coletivas majoritariamente desencadeadas pelo uso de mídias locativas. Partimos dessa noção para pensarmos o espaço urbano na perspectiva de uma cidadedispositivo, permanentemente tensionada por linhas de fissura e de sedimentação expressas em dinâmicas sociocomunicacionais multilineares, compostas por linhas de naturezas diferentes que articulam regimes de poder, saber, subjetividade. Conforme Agamben (2005), a dinâmica reticular caracteriza o dispositivo como: um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança,

10

O símbolo é um signo arbitrário que opera por convenção social.

5

proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. (AGAMBEN, 2005, p. 09)

Na cidade-dispositivo, proliferam-se fluxos informacionais ligados às práticas cotidianas que se comportam, muitas vezes, como espécies de linhas de fuga que delineiam processos de apropriação, compartilhamento e expansão de experiências urbanas em rede. Lembramos, neste ponto, Haesbaert (2007) para distinguir as relações de apropriação – linhas de fuga – e de dominação – linhas de sedimentação – do espaço público urbano que se materializa em práticas sociocomunicativas. Com base em Lefebvre, o autor esclarece que o processo de apropriação, de dimensão predominantemente simbólica, é carregado das marcas do "vivido", do valor de uso; já as práticas de dominação referem-se, fundamentalmente, à funcionalidade e ao valor de troca que conferem sentido a esses processos. As duas instâncias, aqui relacionadas às linhas de sedimentação e de fuga na cidade-dispositivo, configuram eixos transversais que configuram regimes de saber, poder e subjetividade nos interstícios da rede urbano/midiática. 3. Espacialidades intersticiais na cidade-dispositivo Se a cidade que reivindicamos em nossa análise tem a forma do dispositivo e a topologia da rede, o espaço que a constitui não poderia ter natureza distinta. Com base em Foucault (2005, online), para quem o espaço contemporâneo refere-se às “relações de proximidade entre pontos e elementos tecnicamente definidos”, sugerimos que o espaço urbano é heterogêneo e dependente das relações sociocomunicacionais que o atravessam e o matizam. O espaço no qual vivemos, que nos leva para fora de nós mesmos, no qual a erosão das nossas vidas, do nosso tempo e da nossa história se processa num contínuo, o espaço que nos mói, é também, em si próprio, um espaço heterogéneo. Por outras palavras, não vivemos numa espécie de vácuo, no qual se colocam indivíduos e coisas, num vácuo que pode ser preenchido por vários tons de luz. Vivemos, sim, numa série de relações que delineiam sítios decididamente irredutíveis uns aos outros e que não se podem sobre-impôr (FOUCAULT, 2005, online).

Segundo Foucault (2005, online), “a nossa época é tal que os sítios se tornam, para nós, uma forma de relação entre vários sítios”. Ele enfatiza a vigência dos espaços simultâneos, da justaposição e da conexão dinâmica entre o próximo e o longínquo, para conceituar as 6

heterotopias11, que materializam as utopias e singularizam, em sua opinião, os espaços contemporâneos. Há também, provavelmente em todas as culturas, em todas as civilizações, espaços reais espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade - que são algo como contra-sítios, espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. (FOUCAULT, 2005, online).

As heterotopias foucautianas parecem apropriadas para pensarmos as espacialidades intersticiais na cidade-dispositivo, na medida em que permitem considerar a justaposição de espacialidades agenciadas em rede como espaços reais, embora sobrepostos, simultâneos, distorcidos. Essa perspectiva dialoga, em alguma medida, com a ideia de espacialidades moventes defendida por Ferrara (2007). A autora descreve as espacialidades moventes como espécies de sínteses entre os mais diversos pontos, em princípio díspares, e enfatiza a ubiqüidade como elemento fundante de tais espacialidades. As conexões que conformam as espacialidades moventes detêm, para ela, implicações de ordem estética e comunicante. Trata-se de processos sociocomunicacionais nos quais características técnicas fundem-se à apropriação social do espaço, resultando em espacialidades multimidiáticas que articulam elementos urbanos na rede (FERRARA, 2007). Mas, enquanto Ferrara (2007) defende sua noção de espaço movente com base na ideia de ciberespaço, Santaella (2007) discute a pertinência de usarmos ainda o termo ciberespaço para designar o espaço virtual, uma vez que trafegamos por “espaços mutáveis e líquidos” que são antes de tudo, segundo ela, “espaços intersticiais”. Ela baseia sua crítica na noção de espaços de fluxos de Castells (2000), relacionados à organização material de práticas sociais temporalmente compartilhadas que operam através de fluxos. “Desse ponto de vista, portanto, não há oposição, mas sim intensificação das ligações entre o espaço dos fluxos e o espaço do lugar” (SANTAELLA, 2007, p. 185). Partilhamos desse ponto de vista. Em nossa perspectiva, permeada por heterotopias

11

Foucault (2005) fala de espaços que se encadeiam uns nos outros, como as utopias, sítios sem lugar real, e as heterotopias, espaços invertidos, embora reais. As heterotopias são, segundo Foucault (2005), espaços desviantes, que sobrepõem em um mesmo espaço real vários espaços a princípio incompatíveis.

7

relacionadas à ideia de espacialidades intersticiais, a cidade-dispostivo se expande em conexões de mídias digitais. A noção de espaço urbano, em seu viés público, é aqui relacionada às práticas de apropriação e intervenção das pessoas comuns no espaço intersticial da cidade-dispositivo. A ideia de “público”, nesse sentido, não constitui uma propriedade estática ou inerente a determinados espaços físicos, mas emerge, fundamentalmente, das relações sociocomunicacionais incidentes sobre o imbricamento entre território físico e virtual. Tais práticas sociocomunicacionais ressignificam experiência urbana, seja ela coletiva ou individual. Os espaços intersticiais que entrelaçam a cidade-dispositivo podem assim ser considerados públicos na medida em que ganham valor coletivo de uso, ainda que de forma efêmera e contingencial. Compreendida dessa maneira, a noção de público que permeia o espaço urbano, tal como aqui esboçado, é essencialmente política e diz dos conflitos e embates de poder nos espaços intersticiais da cidade-dispositivo. Referimos a ações sociocomunicacionais que se desenvolvem no corpo-a-corpo da “cidade-habitada”, atravessada por redes que compõem uma história múltipla, formada em fragmentos de trajetórias e alterações de espaços (CERTEAU, 2004). Do cruzamento das diversas mediações12 (territorial, midiática, tecnológica) que se sobrepõem nas espacialidades intersticiais da cidade-dispositivo, emerge, portanto, a dimensão “pública” do espaço urbano contemporâneo como uma propriedade elástica, cujos limites se expandem ou se contraem na medida do uso social. Nesse contexto, considera-se a constituição do espaço urbano contemporâneo, em seu viés público, como ambiência marcada pela mobilidade informacional, sob forte influência de uma visibilidade midiática que orienta, assim, os modos de vida, ou as ações cotidianas em direção ao reconhecimento social na cidade-dispositivo. Saber, poder e subjetividade são, desse modo, instâncias articuladas à experiência urbana expandida em rede. 4. Entre o efêmero e o perene: apropriações

12

Mediações são entendidas aqui de acordo com a concepção de Orozco-Gómez (2006), como processos estruturantes que provêm de diversas fontes e incidem nos processos de comunicação, conformando as interações entre os atores.

8

Na cidade-dispositivo, modos de olhar e modos de agir são agenciados em rede e apresentam configurações simultaneamente efêmeras, em territórios físicos, e perenes, em conexões de mídias digitais. As noções de público, privado e íntimo, aqui relacionadas aos modos de olhar e agir na cidade-dispositivo, mesclam-se nos espaços intersticiais. Segundo Santaella (2007), o espaço público é tradicionalmente definido como espaço do Estado e das instituições comunitárias, pertencentes à sociedade civil. Em contraposição, o espaço privado estaria ligado à inviolabilidade do espaço pessoal, relacionado fisicamente ao lar. “Com as tecnologias móveis, a situação se inverte: o privado começa a invadir o público. Borram-se, então, todas as fronteiras” (SANTAELLA, 2007, p. 246). Na

perspectiva

de

Sibila

(2008),

as

reconfigurações

sociocomunicacionais

da

contemporaneidade se relacionam à passagem de certo regime de poder para outro projeto político, sociocultural e econômico, o que altera significativamente as formas de ser e estar no mundo. Ela destaca as tendências de exibição da intimidade, que se proliferam largamente. Em termos foucaultianos: um anseio de exercer a técnica da confissão, a fim de saciar os vorazes dispositivos que têm “vontade de saber”: Em vez do medo diante de uma eventual invasão, fortes ânsias de forçar voluntariamente os limites do espaço privado para mostrar a própria intimidade, para torna-la pública e visível (SIBILA, 2008, p. 77).

As formas de imbricamento entre público, privado e íntimo nos espaços intersticiais da cidade-dispositivo, assim como suas implicações políticas, estéticas e culturais, articulam modulações sociocomunicacionais variadas, conforme as redes que agenciam. Com base, portanto, na ideia de cidade-dispositivo, atravessada por fluxos informacionais que instauram processos sociocomunicacionais em rede, relacionamos aqui duas formas de apropriação do espaço urbano contemporâneo, que é também público: o Canal Motoboy, coletivo multimidiático criado em 2007 que articula motoboys da cidade de São Paulo na produção de imagens cotidianas; e a Praia da Estação, onda de protestos articulada em Belo Horizonte a partir do verão de 2010, a qual aglutina discussões acerca dos espaços públicos da cidade. O primeiro é aqui relacionado a modos de ver na cidade-dispositivo e o segundo a modos de agir. Buscamos perceber como esses processos sociocomunicacionais conjugam as dimensões do perene e do efêmero relacionadas à experiência urbana contemporânea, por meio do agenciamento de modos de olhar e modos de agir que configuram operações de apropriação na cidade-dispositivo. 9

Tais processos operam sob a égide da mediação tecnológica, a qual atravessa o dispositivo-cidade como um linha de fuga que permite o compartilhamento de um modo particular de experiência urbana, de natureza pública e reticular. 4.1 O Canal Motoboy O coletivo brasileiro Canal Motoboy13 é o mais duradouro da rede Megafone.net, integrando, desde 2007, o projeto lançado pelo artista catalão Antoni Abad. A convite do artista, os grupos produzem relatos multimidiáticos sobre suas vivências cotidianas na cidade de São Paulo, gerando espacialidades nas quais predomina a dimensão sensível da experiência e a formação de significados estéticos relacionados à atuação do profissional. O processo comunicativo privilegia a experiência estética, apontando a centralidade da imagem na composição das cenas midiáticas que expressam aspectos relacionados à dimensão da vida ordinária. O projeto dura, em média, de dois a quatro meses14 com a presença do artista e, depois desse período, o coletivo pode dar continuidade às atividades de forma independente. A rede articula a atuação de grupos sociais de vários países que registram suas experiências urbanas no site do projeto, através de recursos multimidiáticos e do uso das mídias locativas. Os coletivos são criados a partir do interesse do artista pelas condições sociais dos grupos, problematizadas no contexto de mobilidade física e informacional em rede. O objetivo de auto-representação em rede é destacado na home page do website: Desde 2003, megafone.net convida grupos de pessoas em risco de exclusão social à expressar suas experiências e opiniões em reuniões presenciais e através do uso de celulares. Ao permitir que os participantes façam registros de sons e imagens, publicando-os imediatamente na Web, estes telefones móveis se convertem em megafones digitais, que amplificam a voz de pessoas e minorias ignoradas ou desfiguradas pelos meios de comunicação predominantes.

13

http://megafone.net/saopaulo.

14 Os integrantes recebem do artista os dispositivos móveis integrados por aparelho celular - equipado com câmeras fotográfica e de vídeo, com conexão à internet.

10

Imigrantes que vivem em Nova Iorque integram, desde 2011, o coletivo mais recente da rede, iniciada em 2004 com a participação de taxistas da cidade do México. Além desses grupos e do Canal Motoboy, fazem parte do projeto: ciganos (Léon e Lleida - Espanha, 2005); prostitutas (Madri, 2005); imigrantes nicaraguenses (Costa Rica, 2006); pessoas com mobilidade reduzida (Barcelona, 2006; Genebra, 2008); migrantes e ex-guerrilheiros (Colômbia, 2009); jovens refugiados Sarahauis (Argélia, 2009) e pessoas cegas e com visão reduzida (Barcelona, 2010). A mediação dos participantes do Canal Motoboy conforma modos particulares de apropriação do espaço urbano, uma vez que o projeto constitui-se do planejamento coletivo e das práticas comunicacionais cotidianas. As situações comunicativas relacionam-se a percursos estéticos que favorecem, lembrando Sodré (2006), a abertura dos sentidos, mediante a afetação do elemento imprevisível; do fator contingencial que agencia as associações fluidas e temporárias no espaço físico/informacional. Os fragmentos multimidiáticos traduzem as experiências urbanas dos motoboys, permitindo a produção dos sentidos e a construção da memória do grupo social, com base em suas aspirações coletivas. Segundo o coordenador do projeto, o motoboy Ronaldo Simão da Costa, a prática coletiva ajudou na modificação da imagem do motoboy, ao relacioná-la à preocupação com o meio ambiente e valorização da vida familiar, mostrando “que embaixo do capacete tem um pai de família”. Ele ressalta que a mudança foi intermediada pela mídia que, paradoxalmente, “ao mesmo tempo que te destrói, te ajuda”15. O motoboy Eliezer Muniz avalia o efeito da visibilidade midiática junto aos jornalistas: O caminho tava truncado, o meio jornalístico não tinha abertura. Eu posso dizer que o Canal Motoboy provocou essa modificação [...], através da construção de uma certa identidade [...] Não importa se a gente não conseguiu, do ponto de vista econômico, se a gente não tá conseguindo gestar. Nossos críticos falam justamente isso: que a gente é ineficiente, não consegue vencer as barreiras da tecnologia, do patrocínio. Mas a gente não consegue porque, no começo, havia o preconceito contra o motoboy, o próprio artista demorou quatro anos para conseguir patrocínio (MUNIZ, 2009, In: CARVALHO, 2009, p. 192).

15 SIMÃO, 2009, In: CARVALHO, 2009, p. 192. As declarações dos motoboys Ronaldo da Costa e Eliezer Muniz constam de entrevista realizada em 03/10/09, em São Paulo, que integra a dissertação de mestrado “Relatos de experiências urbanas no Canal Motoboy: Um estudo sobre as mediações sociotécnicas do coletivo brasileiro da rede Megafone.net”.

11

O detalhamento das situações ligadas à convivência diária mostra a tentativa de dar visibilidade aos obstáculos encontrados nas ruas; o que, como ressaltado pelo coordenador do projeto, normalmente não prevalece na cobertura midiática corporativa associada a acidentes envolvendo motoboys. Ele enfatiza que a programação noticiosa enquadra o profissional de forma a caracterizá-lo como infrator das regras de trânsito, em oposição às referências da boa convivência urbana. A avaliação é de que os relatos produzidos pelo coletivo influenciaram o agendamento midiático: “Eu sou um pai de família, não sei se exemplar, o motoboy é um cidadão como todos, que tem os seus direitos e deveres. Mas só tava aparecendo a parte negra dos motoboys. E hoje ele tem a oportunidade de mostrar que a gente é cidadão, não é uma máquina como é uma moto” (COSTA, 2009, In: CARVALHO, 2009, p. 192). Em busca de reforçar a função social do motoboy, ele critica não apenas a atuação midiática corporativa, mas também responsabiliza os profissionais quanto à produção dos sentidos referentes ao grupo social: “O próprio motoboy acha que em cima da moto ele pode tudo. Sua família depende de você, a profissão é aquilo que dá sentido pra vida e quem dá o significado é o próprio cara” (COSTA, 2009, In: CARVALHO, 2009, p. 192). Os relatos dos motoboys acompanham e redefinem o arranjo espacial das interações sociais de que participa o grupo; perpassam, assim, o espaço público do qual emergem questões de interesse coletivo, problematizadas em rede. Podemos dizer que, uma vez acionadas pelas práticas urbanas, com o uso das mídias locativas, as questões coletivas ativam um dispositivo de visibilidade que estende essas experiências no tempo e no espaço, atualizando as relações com a cidade, por meio das conexões em rede. A cidade-dispositivo é, assim, modelada por práticas sociocomunicacionais que interferem na produção de sentido sobre o espaço, por meio de registros multimidiáticos que compartilham experiências urbanas em rede. Tendo em vista que o espaço urbano, em seu viés público, está aqui relacionado aos modos de uso e às práticas sociais, podemos relacionar a mobilidade compulsória que singulariza a atuação dos motoboys neste projeto com a geração de espacialidades intersticiais que dilatam o espaço público, ao traduzirem experiências relacionadas aos problemas enfrentados pela categoria no âmbito da vida em comum. Na medida em que essas espacialidades incidem sobre a dimensão territorial do espaço urbano, modificam seus contornos, redimensionando-o simbolicamente em conexões de mídias digitais. 12

O motoboy Eliezer Muniz aponta, como principal atrativo do programa, a peculiaridade da condição em trânsito: O motorista não tem autonomia sobre a mobilidade dele, ele está preso ao trânsito. Motoboy não é pedestre, não é motorista de carro e de ônibus. Essa perspectiva, esse olhar sobre a cidade, que é só dele, capta muito mais coisas, tem a capacidade de contemplar muito mais coisas [...] Chega uma hora que dá vontade de registrar. (MUNIZ, 2009, In: CARVALHO, 2009, p. 165).

As práticas comunicativas coordenadas por motoboys da cidade de São Paulo da rede Megafone.net são abordadas aqui a partir dos registros multimidiáticos produzidos e compartilhados pelos integrantes do projeto, que dizem respeito às condições de vida, especificamente, de trabalho na capital paulista. Consideramos que os registros multimidáticos produzidos pelo grupo funcionam como linhas de fuga resultantes de processos coletivos de enunciação e agenciamento coletivo que redimensionam o espaço público, ao potencializar a ocorrência do conflito entre os significados desses relatos e aqueles produzidos sobre a categoria profissional, pelos processos de representação midiática convencional. A exposição do motoboy ao risco de acidente é comentada pelo motoboy na figura 1.

Figura 1: Buraco Ronaldo 2009-09-18 17:11:07

Áudio: É meu amigo, vocês não estão entendendo nada né? Essa pedra aqui, ó,mais ou menos do tamanho de um paralelepípedo, estava no meio da Castelo Branco, na saída 23 B. Se alguém passou, furou o pneu, e poderia causar um grande acidente na hora que o cara vai desviar de uma pedra dessas; pode resultar num acidente, que vem vários motoqueiros ao lado, pode pegar do motoqueiro cair debaixo de uma carreta como a gente vê sempre, então a gente vê que morre muito motoqueiro, só que muita

13

gente não sabe o que a gente sofre, pra trabalhar na cidade de São Paulo e em outros municípios também. Valeu. Minha parte eu fiz, na Castelo - saída 23, trânsito muito bom.

As experiências registradas abarcam declarações de motoboys convidados a tratar de problemas relacionados às situações cotidianas, como na Figura 2. A construção da imagem do motoboy é mediada pela caracterização do profissional preocupado com a qualidade de vida no espaço urbano, inserido, dessa forma, na dinâmica das relações cotidianas, o que configura uma ação tática articuladora das instâncias de saber, poder e subjetividade que particularizam essas práticas urbanas.

Figura 2: Ronaldo 2009-09-08 18:37:14 Ronaldo Fala

Ronaldo: Beleza, tô com mais um motoqueiro aqui, como você chama? Entrevistado: Afonso. Ronaldo: Afonso, quanto tempo você trabalha na rua? Entrevistado: Três anos. Ronaldo: Ô Afonso, qual a maior dificuldade, sem ser a chuva, que você encontra pra trabalhar na cidade de São Paulo? Entrevistado: As dificuldades são variadas né, tem o carro, os motoristas não ajudam o nosso trabalho, não veem a gente com uma boa visão, não respeita, não dá seta pra trocar de faixa, tem pedestre que atravessa fora da faixa, a gente tem que se virar pra desviar...

As espacialidades interligam-se por meio das palavras-chaves ou tags. A tag “Fala” reúne declarações de personagens da cidade entrevistados pelos motoboys e está associada ao testemunho do profissional, a fim de sensibilizar para as condições de trabalho da categoria (Figura 3). 14

Figura 3: Ronaldo Fala 2009-10-01 20:13:26 Ronaldo: Tô com mais uma motoqueira, aqui, como que cê chama? Entrevistada: Edna. Ronaldo: Edna, quantos anos a senhora tá trabalhando na rua? Entrevistada: Dois anos e pouco. Ronaldo: A senhora encontra muita dificuldade pra trafegar na cidade de São Paulo? Entrevistada: Demais. Ronaldo: Qual a maior dificuldade que a senhora encontra pra trabalhar aqui na cidade de São Paulo? Entrevistada: Buraco e sinalização. Ronaldo: Estacionamento é fácil, estacionar, quando a senhora pega um serviço no centro lá na Paulista? Entrevistada: Muito difícil. Ronaldo: Eu também sou motoqueiro e encontro esse tipo de problema. Outra coisa que eu queria falar, a senhora já pensou se todo motoqueiro fosse cadastrado, isso seria bom ou seria ruim? Entrevistada: Seria ótimo. Ronaldo: Eu acho que se todo motoqueiro fosse cadastrado, a gente sairia das barbas do patrão, é mais ou menos isso? Entrevistada: Com certeza.

Nesse contexto, que é também político além de sociocomunicacional, as dimensões de público, privado e íntimo conjugam-se em relatos que dão visibilidade aos modos de olhar agenciados pelo projeto, redimensionando o viés público do espaço urbano por meio de conexões midiáticas efêmeras e circunstanciais. Os registros são perenizados na rede em função da lógica do banco de dados que articula essas espacialidades, gerando novas associações constitutivas da memória coletiva. Se a lógica do banco de dados do projeto é uma espécie de estratégia que traça uma linha de fuga no dispositivo-cidade, é por meio dela que os motoboys agem taticamente no 15

cenário urbano-midiático. Nota-se, por exemplo, no registro seguinte, publicado pela única mulher integrante do coletivo, como a vida familiar adquire dimensão coletiva na rede.

Figura 4: Andrea Hospital 2009-09-23 20:41:49

O Carlinhos teve Pneumonia agravada pela asma e influenza normal.Ficamos internados no hospital das clínicas 6 dias, recebendo medicamentos via venoza,via oral e inalação. Graças a Deus e os esforços de todos, ele reagiu bem ao tratamento e está bem e fora de perigo de vida. Já faz uma semana que estamos em casa,dia 5 voltamos no Cotoxó para Rx e avaliação médica e aparentemente está tudo bem.Tomara a Deus, ele sempre continue bem.Muito Obrigado a todos que nos ajudaram.Que Deus os abençõe.

O percurso do coletivo privilegia a dimensão estética da experiência urbana como uma espécie de tática norteada pelos modos de olhar dos motoboys de São Paulo. Os limites entre público, privado e íntimo se tornam borrados nesse cenário.

4.2 A Praia da Estação A Praia da Estação foi criada como uma série de protestos bem-humorados, realizados em Belo Horizonte a partir do verão de 2010 como resposta popular a um decreto16 da prefeitura que 16

O decreto nº 13.798, de dezembro de 2009, está disponível em (Acesso: 22/08/12)

16

proibia a realização de eventos na Praça da Estação – um dos cartões postais da cidade, recémreformado para abrigar grandes aglomerações de pessoas. Como forma de resistir e protestar contra a decisão do então prefeito, a manifestação consistia na ocupação da Praça aos sábados por centenas de pessoas, de forma irônica e festiva, transformando o espaço em uma praia. Com biquínis, instrumentos musicais, guarda-sol e banhos coletivos de fonte ou caminhão pipa, as Praias aconteceram durante o verão de 2010, retomadas na “alta-estação” de 2011 e 2012, em articulação com uma série de processos de resistência e contestação relacionados ao uso dos espaços públicos em Belo Horizonte.

Figura 5: Banho de fonte no terceiro “Eventão de qualquer natureza”, organizado pelos manifestantes da Praia da Estação em 22 de janeiro de 2011 (Imagem: Támas Bodolay).

O convite para as Praias era enviado por e-mail, de um endereço criado especialmente para o evento, e rapidamente compartilhado por centenas de pessoas. Ninguém reivindicava para si a iniciativa, nenhum coletivo ou entidade assinava os manifestos. As Praias eram debatidas, organizadas e registradas em um blog hospedado no servidor Wordpress17, uma lista de e-mails18 no 17

http://pracalivrebh.wordpress.com, acessado em 11/07/12.

18

https://groups.google.com/group/pracalivre_bh?hl=pt-BR, acessado em 11/07/12.

17

Google Grupos e um perfil no Twitter19, criados para contestar o decreto. O blog, que acabou por tornar-se um centralizador da multiplicidade de discussões em torno do protesto, tem uma particularidade: o acesso é aberto e a senha, pública, constando na página inicial as instruções para que qualquer pessoa possa utilizá-lo. Em meio às discussões virtuais (e também por meio delas), eram articuladas rodas de debate presenciais semanais, realizadas no espaço da Praça e frequentadas por banhistas, interessados e curiosos vindos de diferentes locais da cidade. Sem nunca obter um consenso sobre a definição da Praia da Estação como um “coletivo”, um “movimento social” ou uma “rede de ativismo”, é possível perceber uma tensão permanente no que diz respeito à natureza sócio-política do protesto. Duas questões se destacam nesse debate. Em primeiro lugar, o ideal de horizontalidade que – retomado a todo o tempo – se mistura à recusa do sistema tradicional de representação. Frases como “Essa Praia não tem líderes” e “This revolution is faceless”, acompanhadas pelo uso de nomes coletivos, como Luther Blisset20 e Ommar Mota, ainda que não fossem um consenso entre os banhistas, marcam fortemente a manifestação. Identifica-se uma forte dimensão ideológica associada à noção de rede, uma espécie de ideal reticular. A segunda questão refere-se ao sentido de ocupação associado ao protesto: a reivindicação pelo direito ao uso dos espaços urbanos se dá na ocupação desses mesmos espaços, em operações que buscam deslocar as linhas de força da praça proibida por meio da apropriação festiva e irreverente. Mais do que aproximar as ideias de “festa” e “protesto”, trata-se de assumir a dimensão política da festa, legitimando um modo tático de agir que foge às estratégias normalmente associadas às organizações políticas. Em uma chave que articula as ideias de rede e ocupação, em recorrentes discussões virtuais e presenciais acerca do assunto, alguns manifestantes passaram a caracterizar suas práticas como uma onda. De fato, é possível perceber como a Praia é caracterizada por um movimento constante de oscilação: desde 2010, houve grandes picos de atuação dos banhistas, com a organização de “Eventões de qualquer natureza” (eventos festivos que desafiavam a proibição com uma 19

http://www.twitter.com/pracalivrebh, acessado em 11/07/12.

20

Segundo André Mesquita (2008), o nome Luther Blissett “tornou-se sinônimo de guerrilha midiática nos anos 90, unindo pessoas de diversos países que espalhavam reportagens falsas pela mídia e pela internet, testando os limites de uma notícia e ridicularizando a credibilidade da grande imprensa. O projeto Luther Blissett transformou-se em um sujeito político coletivo da classe virtual, comum às comunidades de artistas, hackers e ativistas” (MESQUITA, 2011, p. 57).

18

programação de shows e oficinas no espaço da Praça), audiências públicas e outras ações, seguidos por períodos de inverno em que mesmo as discussões entre os manifestantes eram bastante reduzidas. A própria configuração dos atores que se envolveram com o protesto é bastante disforme: ainda que possa ser identificado um grupo que permanece em alguma medida à frente da organização, a cada verão é possível identificar novos banhistas e perceber como outros já não aparecem tanto assim. Nas Praias organizadas em 2012, por exemplo, o Movimento Fora Lacerda21, criado em agosto de 2011, passa a ter um papel crucial na mobilização e organização dos protestos. Os temas articulados com a Praia também oscilam bastante, caracterizando uma rede de sentidos que se forma em torno da manifestação. Se o decreto da proibição, revogado em maio de 2010, foi o estopim para o protesto, outros temas envolvendo a gestão da cidade e o uso dos espaços públicos urbanos vão sendo abordados pelos banhistas ao longo dos anos, como o cancelamento do Festival Internacional de Teatro pela Prefeitura de Belo Horizonte; os impactos sociais em virtude da preparação da cidade para a Copa do Mundo; a prisão do grupo de pixadores Piores de Belô22; o assassinato de duas pessoas por policiais no aglomerado da Serra23; entre outros. Pode-se observar como a Praia da Estação torna-se uma espécie de mediação simbólica para processos de resistência e contestação em Belo Horizonte, absorvendo uma série de outros protestos. A reverberação é, nesse sentido, outra característica importante da manifestação. A metáfora da onda, acionada pelos banhistas, parece assim caracterizar bem essa forma particular com que a Praia da Estação se desenvolve, em um movimento de oscilação e reverberação que traz à tona, em diferentes momentos, questões relacionadas aos espaços públicos, propagando-se tanto em ambientes digitais, como nos espaços físicos da cidade.

21

O Fora Lacerda é um movimento apartidário criado em julho de 2011 pela Internet para fazer frente ao projeto político do então prefeito da cidade. A Praia da Estação é apontada por diversos banhistas e apoiadores como um dos catalisadores centrais para o desenvolvimento do movimento.

22

Os Piores de Belô são um grupo de pixadores de Belo Horizonte, que foram presos sob a acusação de formação de quadrilha – enquanto a pixação é enquadrada na legislação do município como crime ambiental. A prisão gerou uma série de discussões na cidade. Adotamos aqui a grafia pixação (e não pichação), como é utilizada na literatura que se propõe a compreendê-la como expressão cultural.

23

Em março de 2011, os banhistas se fizeram presentes na série de manifestações em decorrência do assassinato de dois moradores do Aglomerado da Serra por policiais militares. O episódio foi amplamente noticiado e gerou grande discussão em Belo Horizonte sobre a atuação da polícia e a vulnerabilidade dos moradores de vilas e favelas.

19

Figura 6: Convite para a retomada das Praias, publicado no blog Praça Livre em dezembro de 201024.

Interessante destacar como é difícil dissociar as dimensões online e offline do processo. Ao mesmo tempo em que grande parte da organização, discussão e registro das manifestações e reuniões é realizada virtualmente, o vínculo territorial é inerente à mobilização: sem a praça, não há Praia. Embora a todo o tempo os banhistas ressaltem a necessidade de não se ater “à virtualidade”, chamando para os processos presenciais, boa parte das discussões são realizadas no âmbito do blog e da lista de e-mails. As Praias parecem ser construídas justamente na sobreposição entre essas dimensões, como um processo que é virtual e físico, e que revela como essas dimensões tornam-se híbridas em uma espacialidade intersticial: a Praia da Estação. Ao revestir a Praça da Estação de mediações tecnológicas e midiáticas (caracterizadas não apenas pelos registros no blog, na lista de e-mails e no perfil do Twitter, mas também por suas reverberações em diversos outros ambientes midiáticos e virtuais), a Praia da Estação expande sua duração no tempo. A ocupação presencial da Praça tem data e horário determinados, mas a internet dilata essa temporalidade em um regime temporal que sugere um caráter de perenidade e permanência às ações dos banhistas. Da mesma forma, a Praia expande o espaço da Praça em uma espécie de espacialidade ampliada. Se o gesto de apropriação dos banhistas consiste na ocupação da Praça física, ele não se resume a ela, na medida em que a própria Praça passa a se constituir nos 24 Retirado da postagem “Traz a farofa e vem dar um caldo pra discussão!”, de 07/12/10, disponível em: http://pracalivrebh.wordpress.com/2010/12/07/1593/

20

interstícios entre o físico e o virtual, ou, mais especificamente, na sobreposição entre essas duas dimensões. Ademais, em seu movimento de reverberação, a Praia se expande reticularmente em outros movimentos ao redor da cidade. Como mediação simbólica, reverbera em outros modos de agir, que sobrepõem ideal reticular (na dimensão da recusa às formas hierárquicas de agregação e organização) e ocupação festiva (em uma relação de apropriação que desloca o sentido tradicional do protesto) na reivindicação pelo direito ao uso dos espaços urbanos. Modos de agir que, nessa medida, articulam uma sobreposição entre espacialidades físicas e virtuais, temporalidades efêmeras e perenes, organização e horizontalidade, protesto e festa, em um gesto de apropriação que tensiona as relações de poder na cidade-dispositivo. É nas modulações ondulares que conformam o agir político da Praia da Estação, por meio da apropriação que conjuga todas essas relações, que a dimensão pública do espaço urbano emerge. Se a experiência urbana se organiza como dispositivo de visibilidade, a Praia da Estação age no traçado de linhas de fuga que se expandem reticularmente, tensionando a medida do “público” que reveste o espaço da cidade. 5. Considerações finais Entre um coletivo de motoboys que produz e compartilha imagens cotidianas mediadas pela mobilidade de sua condição profissional e um grupo de manifestantes que se apropria de uma Praça como Praia em uma lógica de ocupação que articula as dimensões online e offline da experiência coletiva, o que se revela são apropriações de natureza simultaneamente estética e política que atuam na conformação de um espaço urbano, em seu viés público, dilatado em rede. Seja por meio dos modos de olhar dos integrantes do Canal Motoboy ou dos modos de agir dos banhistas da Praia da Estação, percebemos que a configuração reticular de ambos os processos atua, por meio do compartilhamento, na conformação de uma experiência urbana atravessada pela lógica das conexões. Entre os motoboys, revela-se uma prática que articula subjetividade e visibilidade, sobrepondo ao emaranhado de imagens que constitui a cidade-dispositivo uma dimensão de autorepresentação, cuja particularidade é provocar – ainda que de maneira provisória e contingencial – deslocamentos e reconfigurações simbólicas. Ao privilegiar a dimensão sensível da experiência, o 21

Canal Motoboy dá visibilidade às preocupações e pontos de vista do grupo. As especificidades dessas ações em rede, desenvolvidas por meio dos recursos de comunicação móvel, associados à internet, revelam-se em modos de olhar na cidade-dispositivo modelada pelas práticas cotidianas de seus habitantes. Já os banhistas do concreto jogam com a imprevisibilidade de suas táticas, criando linhas de fuga que desafiam, ironizam e subvertem relações de poder na cidade-dispositivo. Em constante movimento, a onda de protestos agencia um modo de agir caracterizado pela recusa às formas de organização política tradicional, em nome de um ideal de horizontalidade relacionado a táticas festivas e irreverentes de ocupação dos espaços urbanos. Aqui, a noção de “público” emerge nos embates simbólicos desenvolvidos na medida da apropriação – simultaneamente online e offline – da Praça da Estação como Praia da Estação, os quais evocam o político como parte integrante da experiência urbana. Nesses contextos de atuação coletiva, destacam-se formas contemporâneas de contestação das condições de vida nas cidades, por meio de dispositivos sociocomunicacionais de visibilidade midiática que interferem na produção de sentidos sobre o espaço urbano contemporâneo. Esses grupos atuam na dimensão intersticial dos espaços públicos urbanos, sendo constituídos por formas de agenciamento coletivo em rede que buscam, fundamentalmente, tensionar e modificar relações de poder que configuram linhas de força na cidade-dispositivo. Em ambos os processos, evidenciam-se relações de embate que confluem para a percepção do espaço público urbano como uma construção simbólica permanentemente em jogo – permeada por dispositivos tecnológicos e espraiada em uma espacialidade intersticial que ultrapassa as fronteiras entre o físico e o virtual. A atuação política construída por essas articulações em rede é, dessa forma, indissociável das experiências ordinárias de seus integrantes, o que percebemos pela visibilidade dada a manifestações bem humoradas e despojadas na Praia da Estação, ou às expressões de predominante significado estético dos motoboys da cidade de São Paulo. Atuações coletivas articuladas nas brechas e interstícios da cidade-dispositivo, que conjugam conexões de caráter efêmero, perenizadas no espaço público expandido por essas práticas reticulares. Nesse contexto de análise, modos de olhar e modos de agir imbricam-se na cidadedispositivo ao privilegiarem processos de agenciamento em rede que articulam modalidades próprias de experiências urbanas, as quais se orientam pelas dimensões da visibilidade e do 22

compartilhamento como espécies de linhas de fuga que tensionam as linhas de força sedimentadas socialmente. Tratam-se, em nosso entendimento, de processos sociocomunicacionais típicos da cidade-dispositivo, na qual a noção de espaço urbano é permeada, cada vez mais, pela lógica das conexões e por suas implicações políticas, estéticas e culturais. 6. Referências AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Outra travessia, Florianópolis, n. 5, p. 9-16, 2005. CARVALHO, Raquel S.U. Relatos de experiências urbanas no Canal Motoboy: um estudo sobre as mediações sociotécnicas do coletivo brasileiro da rede Megafone.net. Belo Horizonte, 2009. Disponível em: . Acesso: 22/08/2012. CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007. DE CERTEAU, M. D. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994. DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: BALBIER, E. et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. FAUSTO NETO, A. Fragmentos de uma analítica da midiatização. Revista Matrizes, v.1. p. 89105, 2008. FERRARA, L. D. Espacializar e organizar. In: FERRARA, Lucrécia D'Aléssio (Org.). Espaços comunicantes. São Paulo: Annablumme; Grupo ESPACC, 2007. FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FOCAULT, M. De outros espaços. Trad.: Pedro Moura. In http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html, 1998. Acesso: 11.07.2012. HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia - Ano IX - No 17 – 2007. p. 19-45. KASTRUP, V. A rede: uma figura empírica da ontologia do presente. In PARENTE, André (org). Tramas da rede . Porto Alegre: Sulina, 2004. 23

LEMOS, A. Mídia locativa e territórios informacionais. 2008. Disponível em: Acesso em: MESQUITA, A. Insurgências poéticas – Arte ativista e ação coletiva. São Paulo: Annablume, 2011. OROZCO-GÓMEZ, G. “Comunicação social e mudança tecnológica: um cenário de múltiplos desordenamentos”. In MORAES, Dênis de (org). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. RODRIGUES, A. D. Experiência, modernidade e campo dos media. 1999. Disponível em: < http://www.bocc.ubi.pt/pag/rodrigues-adriano-expcampmedia.pdf > Acesso em: 11/07/12. SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. SANTOS, Milton. A natureza do espaço – técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. _______________. Por uma geografia nova – da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. SIBILA, Paula. O show do eu – a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. SODRÉ, M. Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis. RJ: Vozes, 2002. SODRÉ, M.. As estratégias sensíveis. Petrópolis. RJ: Vozes, 2006. WEISSBERG, J-L. Paradoxos da teleinformática. In: PARENTE, André (org). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004.

24

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.