\"Amar a Cerveja sobre Todas as Coisas\" - uma Análise da Subcultura de Consumo de Cerveja Artesanal e o Sentimento de Devoção no Consumo

May 27, 2017 | Autor: Eduardo Koch | Categoria: Feelings, Subcultures of Consumption, marketplace sentiments
Share Embed


Descrição do Produto

“Amar a Cerveja sobre Todas as Coisas” – Uma Análise da Subcultura de Consumo de Cerveja Artesanal e o Sentimento de Devoção no Consumo Autoria: Eduardo Salgueiro Koch, João Felipe Rammelt Sauerbronn Agradecimentos à FAPERJ e ao CNPq pelo apoio para a realização desta pesquisa.

Resumo – No presente estudo nos dedicamos a compreender a subcultura de consumo de cerveja artesanal e as expressões emocionais associadas a esse consumo. Para tanto, partimos para uma pesquisa de orientação indutiva e caráter etnográfico e promovemos o diálogo entre os dados observados no campo e a teoria sobre subcultura de consumo proposta por Schouten e McAlexander (1995), a abordagem sociocultural de compreensão dos sentimentos proposta por Gopaldas (2014) e a compreensão do sentimento de devoção no consumo desenvolvida por Pimentel e Reynolds (2004). Como resultado de nove meses de observações e quarenta entrevistas com membros da subcultura de consumo, as aproximações entre dados e teorias nos permitiram identificar e posicionar cinco tipos de consumidores dentro da estrutura hierárquica da subcultura de consumo de cerveja artesanal e observar as interações e trocas de significados. Também foi possível acessar as manifestações de comprometimentos afetivos e sentimentos de cada tipo de consumidor e explorar a importância do sentimento de devoção para os membros hard-core da subcultura de consumo. Palavras-Chave: Subcultura de Consumo, Sentimentos, Devoção, Consumo de Cerveja Introdução Segundo dados do setor de bebidas no Brasil (CERVIERI, 2014), o país é o terceiro maior mercado consumidor de cerveja do mundo. Esse mercado vem apresentando não só crescimento como também uma mudança em sua configuração a partir do aumento da quantidade de produtores e consumidores de cervejas artesanais. Atualmente, cerca de duzentas micro cervejarias respondem pela produção de 188 mil litros do produto e abastecem um segmento de mercado que ganha relevância cada vez maior no país (SEBRAE, 2015). Segundo a Associação Brasileira de Cerveja Artesanal, o crescimento do número de cervejarias artesanais no país é da ordem de 50% ao ano e segue tendência de mercado já observada na Europa e nos Estados Unidos, onde 20% do volume total de cervejas consumidas é produzido por micro e pequenas cervejarias. Essa mudança no consumo de cervejas chamou a atenção de nosso grupo de pesquisa e nos levou a uma investigação mais atenta a respeito desse fenômeno. Mais do que a importância econômica do consumo de cerveja artesanal, nos pareceu relevante o aparente surgimento de um novo tipo de consumidor. Fomos ao campo tentar compreender mais profundamente esse consumidor de cervejas artesanais com uma orientação de pesquisa eminentemente indutiva. Tal opção nos deu liberdade para observar os dados no campo, mas também nos levou a caminhos diversos de entendimento desses dados, que precisaram de ajustes e orientação teórica. O diálogo entre dados e teoria nos auxiliou a desenvolver a problematização e a definir os objetivos da pesquisa: compreender a subcultura de consumo de cerveja artesanal e as expressões emocionais associadas a esse consumo. Nosso trajeto, então, alternou idas ao campo e debates com as teorias do campo da Teoria da Cultura do Consumidor (CCT) que nos levaram a discussões acerca da subcultura de consumo e sentimentos envolvidos no consumo. Como ponto de partida da pesquisa, nosso primeiro objetivo foi entender os consumidores de cervejas artesanais como uma subcultura de consumo. Já a partir desse ponto foi adequado que os dados coletados dialogassem com teorias que tratassem desse tema. Dessa forma, recorremos aos trabalhos de Hebdige (1979) e Fox (1987), além do trabalho 1

Schouten e McAlexander (1995), referência básica para o campo da CCT. A análise mais profunda e teoricamente suportada dessa subcultura permitiu a observação de sua estrutura hierárquica, o que tornou possível a categorização dos consumidores de cerveja artesanal em cinco diferentes categorias de acordo com sua centralidade na subcultura de consumo: entrantes, exploradores, entusiastas, especialistas e paneleiros. Essa estrutura mostra como os significados e sentidos do consumo fluem dentro da subcultura de cerveja artesanal (dos paneleiros e especialistas para fora) e os processos de transferência que ocorrem a partir dos encontros entre os componentes da subcultura, e de redes sociais na internet. A perspectiva indutiva adotada, permitiu que percebêssemos a importância do componente emocional dentro da subcultura de consumo de cerveja artesanal. Os sentimentos são elementos importantes para a compreensão a respeito do consumo e Holbrook e Hirschman (1982) já apontavam para a importância de se compreender os sentimentos e os aspectos experienciais do consumo. Mais recentemente, Gopaldas (2014) promoveu uma revisão dessa discussão alinhada ao campo do CCT e lançou nova luz sobre a importância de se entender os sentimentos associados ao consumo. Seguindo o caminho indutivo da pesquisa, os dados do campo nos permitiram entender que o sentimento de devoção cumpre um importante papel dentro da subcultura de consumo de cervejas artesanais. Do ponto de vista metodológico, nossa pesquisa teve caráter etnográfico se iniciou com observação participante de eventos que congregam os consumidores de cerveja artesanal e culminou com o convívio e a imersão de um dos pesquisadores no cotidiano dos participantes mais centrais da subcultura de consumo. Como forma de complementar as observações, foram conduzidas quarenta entrevistas com diferentes tipos de consumidores. Além dos contatos pessoais diretos, também foram estabelecidos contatos através de redes sociais, que têm papel muito importante para essa subcultura. A seguir será apresentado o suporte teórico para compreensão das subculturas de consumo e dos sentimentos no consumo, com ênfase na devoção do consumidor. Logo após serão apresentados os procedimentos metodológicos, bem como a análise dos dados coletados e as considerações finais desse estudo. Subculturas de Consumo No campo da antropologia, os trabalhos de Hebdige (1979) e Fox (1987) construíram as bases para o entendimento das subculturas. Hebdige (1979) estudou as formas expressivas e ritualizadas de interações entre jovens britânicos e percebeu que, frente à instabilidade social do pós-guerra, as subculturas punk e skinhead ofereciam significados e sentidos comuns aos seus componentes. Nesse contexto, as subculturas eram compostas por grupos de pessoas que desafiavam os significados dominantes associados aos produtos culturais (HEBDIGE, 1979). Mesmo sofrendo atualização constante e absorvendo novos elementos, as subculturas estabelecem redes de significados compartilhados estáveis e historicamente fundados. Do ponto de vista da estrutura interna, uma subcultura é caracterizada pela forma de ordenação na qual cada parte é organicamente relacionada a outras partes. Assim, é através da adequação entre as partes que os membros de uma subcultura entendem sentido no mundo (HEBDIGE, 1979). Fox (1987) apresentou seu conceito de subcultura a partir de uma estrutura em forma de círculos concêntricos. O círculo menor, localizado no centro da estrutura, é chamado de core ou hard-core e é habitado pelo grupo de membros intensamente imersos na subcultura e que demonstram seu estilo de vida e ideologias em tempo integral. O segundo círculo, mais abrangente que o interno, representa os membros com menor comprometimento com os valores da subcultura e é chamado soft core. Este segundo grupo estaria subordinado aos papéis definidos pelos membros do círculo interno. Já o espaço exterior aos círculos é chamado de periferia e nele se encontram aqueles que possuem alguma forma de identificação 2

com a subcultura, sua ideologia e seu estilo de vida, mas não possuem alguns dos requisitos básicos para entrar nos círculos internos (FOX, 1987). No campo da CCT, o trabalho de Schouten e McAlexander (1995) ofereceu bases para a compreensão a respeito das subculturas de consumo enquanto estruturas sociais constituídas por indivíduos que compartilham significados e valores mútuos a partir de um objeto ou atividade de consumo em comum. Segundo os autores, as mais poderosas forças organizadoras na vida contemporânea são as atividades e relacionamentos interpessoais, nos quais as pessoas empreendem seus esforços para assim dar significados às suas vidas. No processo de escolha de como gastar seu dinheiro e tempo, os indivíduos tomam parte na criação de suas próprias categorias de consumo, dando origem às subculturas de consumo (SCHOUTEN; MCALEXANDER, 1995). Dessa forma, os autores definem subcultura de consumo como um subgrupo distinto da sociedade, que se diferencia com base em um compromisso comum para com um determinado produto, marca ou atividade de consumo (SCHOUTEN; MCALEXANDER, 1995). Schouten e McAlexander (1995) abriram caminho para que outros pesquisadores de consumo examinassem questões relacionadas às subculturas de consumo. Celsi, Rose e Leigh (1993) examinaram o consumo de alto risco associado à subcultura dos paraquedistas; Kozinets (1997) analisou a formação de subculturas de consumo associadas a programas de televisão de ficção científica; e Barboza e Silva (2013) estudaram a subcultura de consumo Cosplay. Questões associadas ao gênero também passaram a ser tratadas nos estudos de consumo, depois que Kates (2004) examinou a legitimação das marcas na subcultura gay e Pereira, Ayrosa e Ojima (2006) estudaram a subcultura de consumo gay e a construção da identidade homossexual. Schouten e McAlexander (1995) entendem que a união de indivíduos em grupos ocorre em virtude desses buscarem conviver com outros que tenham traços de identidade parecidos ou compatíveis. Assim, a partir de objetos e bens de consumo, acima de tudo, os indivíduos fundamentam o seu lugar no mundo social e, através de objetos, se referem a outras pessoas e fazem julgamentos sobre valores e interesses. As atividades de consumo fazem com que indivíduos formem relacionamentos que permitem compartilhar significados e apoio mútuo. Sentimentos e Consumo Como já apontado por Sauerbronn, Ayrosa e Barros (2009), a psicologia se constituiu como campo hegemônico do entendimento das emoções e dos sentimentos. Dessa forma, a pesquisa a respeito dos sentimentos relacionados ao consumo é majoritariamente focada na compreensão de estados internos do indivíduo. No entanto, pesquisas desenvolvidas dentro do campo do CCT apontam interesse no desenvolvimento de conhecimento a respeito de aspectos sociais das emoções no consumo. O levantamento feito por Gopaldas (2014) apresenta a distinção entre as pesquisas sobre emoção dentro do campo do CCT e aponta quatro tratamentos distintos para o estudo dos sentimentos no mercado: i) os tratamentos holísticos (originados de estudos etnográficos que tratam de aspectos emocionais gerais); ii) os tratamentos fenomenológicos (aproximam as emoções do consumidor a seus processos cognitivos); iii) os tratamentos fenomenológicos-psicológicos híbridos (ainda despreocupados com aspectos socioculturais do consumo); e iv) os tratamentos socioculturais (entendem emoções como como modos de comunicação culturais incorporados que surgem de relações de poder e interdependência). A proposta de compreensão das manifestações emocionais no mercado desenvolvida por Gopaldas (2014) se baseia na ideia que culturas são sistemas de discursos, sentimentos e práticas. O autor relaciona esses três componentes de forma que os sentimentos, uma vez internalizados pelos indivíduos, amplificam e sustentam o engajamento do consumidor nos

3

discursos e práticas; os discursos legitimam os sentimentos e as práticas; e as práticas materializam os discursos e sentimentos (vide Figura 1). Figura1 - Relações entre Sentimentos, Discursos e Práticas

Fonte: adaptado de Gopaldas (2014)

Segundo a proposta de Gopaldas (2014) os sentimentos não são mediadores de práticas ou comportamentos, mas interagem com discursos e práticas de forma a auxiliarem na construção de um sentido para o mundo. Tal entendimento vai ao encontro da sugestão de Bagozzi, Gürhan-Canli e Priester (2002), que aponta para a necessidade de se compreender fenômenos emocionais no consumo a partir de suas bases sociais. Sentimento de Devoção no Consumo Para O’Guinn e Belk (1989), o consumo passa a ocupar o espaço de outras atividades sociais humanas, como a religião, na medida em que oferece possibilidades de codificação, simbolismo e sacralização aos indivíduos, trazendo significado para as pessoas e moldando suas identidades. Marcas e consumo tornam-se as tradições da cultura moderna (HOLT, 2002) e a devoção ajuda os consumidores com a auto-realização e auto-identificação por meio de experiências e crenças compartilhadas (ATKIN, 2004). O sentimento de devoção depende de ícones e lugares míticos e já que o consumo torna-se semelhante à religião, passa também a oferecer ao indivíduo um significado maior que moraliza o comportamento (KOZINETS, 2002). Pimentel e Reynolds (2004) definem o sentimento de devoção como um vínculo emocional de intensa lealdade que sobrevive a um mal desempenho do produto, má publicidade, preços altos, e até mesmo a ausência de esforços promocionais. O sentimento de devoção envolve crença extrema (TUMBAT; BELK, 2005), o que implica em uma espécie de fervor religioso com elementos do sagrado (PIMENTEL; REYNOLDS, 2004). Comunidades de consumidores devotos têm se transformado em cultos de reverência a produtos e atividades de consumo que são muito semelhantes com as estruturas da religião, e contam com seus próprios mitos, salvadores heroicos e opositores satânicos (TUMBAT; BELK, 2005). A devoção é expressada no consumo através de diferentes tipos de rituais, coleções, ou mesmo santuários. Objetos de devoção, assim, têm significados muito especiais e começam a representar status e até mesmo identidade (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989; PICHLER; HEMETSBERGER, 2007). Os objetos de devoção se tornam sagrados e os consumidores assumem o papel de missionários, espalhando a palavra e tentando influenciar outros (SCHOUTEN; MCALEXANDER, 1995; TUMBAT; BELK, 2005; PICHLER; HEMETSBERGER, 2008). Nesse ponto, os vínculos emocionais são extremamente

4

importantes, pois trazem sentido à vida dos consumidores e ajudam a construir a sua identidade. O objeto deixa de ser visto como uma posse e torna-se um parceiro em uma relação de igualdade (PICHLER; HEMETSBERGER, 2007). Pichler e Hemetsberger (2007) trataram do sentimento de devoção enfocando o intenso relacionamento entre consumidores, o objeto de devoção e o fervor religioso resultante. Pimentel e Reynolds (2004) apontam que o sentimento de devoção está relacionado ao sagrado ou à adoração e propõem um modelo conceitual no qual apresentam as etapas de transformação do consumidor em um consumidor devoto (vide figura 3). Figura 2 - Modelo Conceitual de Devoção do Consumidor

fonte: adaptado de Pimentel e Reynolds (2004)

Segundo o modelo proposto por Pimentel e Reynolds (2004), um conjunto de antecedentes podem levar o indivíduo a comprometimentos calculativos e/ou normativos. Os autores identificaram cinco tipos de antecedentes: i) normas sociais, relacionadas à história do indivíduo ou aos grupos sociais em que convive; ii) a busca pelo preenchimento de vazios e lacunas na vida do indivíduo; iii) a necessidade de pertencimento e reconhecimento de um grupo que surge no momento que se interage com outros indivíduos; iv) a necessidade de distinção, que está relacionada à metáfora de Holt (1995) de consumo como classificação; e v) a necessidade de identificação, de definição e compreensão de sua própria identidade, já

5

que os indivíduos podem desenvolver, através da integração um forte relacionamento com a organização. Estes antecedentes podem levar o indivíduo a um comprometimento calculativo, baseado na relação custo-beneficio; ou a um comprometimento normativo, relacionado ao senso de obrigação. Esses tipos de comprometimento não são excludentes e estão relacionados a dimensões diferentes. O primeiro é um relacionamento mais superficial do ponto de vista de lealdade porque está sustentado pela necessidade e, assim, enquanto a relação for proveitosa para o indivíduo, ela existe. O segundo é relacionado a o que é moralmente esperado e certo fazer, mas ambas as formas são temporárias ou transitórias. O comprometimento calculativo só persiste enquanto a relação entre benefícios e custos for positiva para o consumidor, enquanto que o comprometimento normativo, embora um pouco mais duradouro, também só persistirá enquanto as normas vigentes se sobrepuserem ao indivíduo. Em qualquer dos casos, cessados os estímulos, a consequência é a atrofia do comprometimento. Em caso de comprometimentos consistentes, tem início o processo de sacralização, que progride para um comprometimento afetivo, este uma forma mais pessoal e intensa. Belk, Wallendorf e Sherry (1989) apontam que o comportamento do consumidor pode exibir certos aspectos do sagrado, quando o consumo é tratado com respeito, veneração, temor e o máximo de deferência. Embora mais duradouro do que os outros dois tipos de comprometimento, o afetivo não é necessariamente permanente e precisa de ações adicionais no sentido de não ocorrer a dessacralização do objeto. Através do hábito, do abuso, ou de limites ultrapassados, o objeto pode ser profanado (BELK; WALLENDORF; SHERRY, 1989) e o comprometimento pode se atrofiar. O consumidor devoto é aquele que, a partir de um processo de sacralização do objeto desejado, desenvolve um comprometimento afetivo com o produto e se engaja em procedimentos de sustentação desta sacralização, que representam investimentos do consumidor na manutenção do comprometimento com a atividade de consumo (PIMENTEL; REYNOLDS, 2004). No modelo de Pimentel e Reynolds (2004), a devoção ocorre a partir do comprometimento afetivo e se manifesta no comportamento proativo de sustentação da condição de sagrado do objeto. Os devotos sustentam a sacralidade a partir de atos como a participação regular em rituais, a exposição de símbolos através de vestuário e coleções, construção de altares em suas casas e a separação dos itens da sua coleção (o sagrado) dos objetos comuns (o profano). Alguns consumidores assumem papel de missionários e tentam ativamente arregimentar novos devotos. Assim, o consumidor devoto pode ser definido como aquele que apresenta comprometimento afetivo acompanhado de comportamentos proativos de sustentação do objeto adorado. Procedimentos Metodológicos Como mencionado na seção de introdução, o presente trabalho teve uma orientação indutiva, de forma que os pesquisadores foram ao campo ao mesmo tempo em que as teorias que deram suporte à analise dos dados eram levantadas. Essa opção faz sentido quando os pesquisadores não têm uma ideia a priori a respeito de como determinado fenômeno se configura. Assim, as idas ao campo serviram também como forma de definir o problema de pesquisa. O objeto da pesquisa estava claro, os consumidores de cervejas artesanais, mas a problematização ainda não tinha sido plenamente desenvolvida quando do início da coleta dos dados. Na medida em que os dados foram coletados e analisados, foi ficando mais clara a preocupação com a compreensão da subcultura de consumo de cerveja artesanal e as expressões emocionais associadas. Cada ida ao campo era seguida de discussões que apontavam caminhos e teorias a serem exploradas.

6

A coleta de dados teve início com observações participantes em estabelecimentos comerciais que vendem cervejas artesanais e se expandiu para confrarias, eventos e encontros de associações de cervejeiros. A observação participante foi fundamental para a promoção de aproximações entre um dos pesquisadores e membros da subcultura de consumo de cervejas artesanais. A imersão do pesquisador no cotidiano do grupo teve como objetivo possibilitar a compreensão do universo sociocultural dos consumidores de cervejas artesanais, e gerou aproximação entre pesquisador e subcultura de consumo. As redes sociais também cumpriram um importante papel na aproximação entre pesquisador e as subculturas de consumo, uma vez que possibilitaram maior rapidez na disseminação de informações a respeito de encontros, eventos e festivais. Os registros das observações de campo foram feitos a partir de diários de campo que serviram posteriormente como base para os roteiros das entrevistas com membros dessa subcultura. Foram acompanhados os cotidianos de grupos de consumidores nas cidades do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, com mais destaque para a primeira, e ao fim do terceiro mês de observação tiveram início as entrevistas com membros da subcultura. Ao todo foram nove meses de observação e quarenta entrevistas conduzidas com diferentes tipos de consumidores, além de mestres cervejeiros, blogueiros e outros profissionais da área. Essas entrevistas aconteceram nos locais de consumo de cervejas artesanais, tiveram durações variando entre poucos minutos e duas horas (eventualmente divididas em duas ou três partes) e foram gravadas com o auxílio de equipamento digital portátil. Também foram utilizadas, mesmo que em pequena escala, filmagens e fotografias, que procuraram registrar momentos de consumo e seus rituais, como forma de auxiliar o registro do simbolismo e dos comportamentos observados no campo. Para analisar os dados coletados na observação e nas entrevistas, recorremos à análise de conteúdo, como proposto por Bardin (1977). O viés interpretativista da pesquisa se consolidou a partir da busca pela compreensão da realidade do fenômeno pela perspectiva dos sujeitos estudados em um contexto simbólico (HOPKINSON; HOGG, 2006). A interpretação dos dados foi elaborada sobre dois eixos de leituras: as observações e relatos biográficos dos entrevistados e as teorias do campo do CCT que deram suporte à problematização. O que procuramos fazer foi buscar pontos de convergência ou divergência entre estes dois eixos e os dados levantados de forma a compreender os processos de formação da identidade e das formas de manifestação dos sentimentos dos consumidores de cerveja artesanal. Desta forma, buscamos compreender e interpretar os dados subjetivos inseridos no modo de vida dos informantes e os seus pontos de vista sobre o mundo. Na próxima seção apresentamos a análise dos dados de forma a deixar mais claro ao leitor nossas interpretações a respeito da subcultura de consumo de cervejas artesanais. Para tanto é promovido um diálogo entre dados observados no campo e teorias do campo da CCT. Trechos de entrevistas são apresentados como forma de ilustrar a análise, sendo os informantes identificadas apenas por números que indicam a ordem de entrevista e por sua posição na subcultura de consumo de consumo de cerveja artesanal. Estrutura da Subcultura de Consumo de Cervejas Artesanais As observações no campo permitiram a identificação das distinções entre os frequentadores de eventos relacionados ao consumo de cervejas artesanais. O processo de interação dos consumidores segue uma hierarquia, que se apresentou de forma consideravelmente estável ao longo das observações. Dessa forma, pudemos identificar que o compartilhamento de significados e valores relacionados às cervejas artesanais acontece e responde a uma estrutura que se aproxima às propostas de Fox (1987) e de Schouten e McAlexander (1995).

7

Conforme apresentado por Schouten e McAlexander (1995), a caracterização de qualquer atividade de consumo como uma subcultura, envolve (i) estrutura social hierárquica; (ii) um ethos original, ou um conjunto de crenças e valores identificáveis; e (iii) o uso de jargões e vocabulário exclusivo. Entre os três componentes apresentados, a estrutura social hierárquica é o componente principal da caracterização de um subcultura de consumo, pois é através dela que podemos descrever, classificar e diferenciar os papéis de cada membro dentro do grupo. Foi possível distinguir cinco diferentes tipos que atuam de forma distinta na subcultura de consumo de cerveja artesanal. A partir desta distinção foi feita uma análise mais atenta dos elementos diferenciadores de cada subgrupo com o objetivo de desvelar a estrutura hierárquica dessa subcultura. Nesse ponto, além das observações, as entrevistas em profundidade com consumidores nos trouxeram mais clareza e nos permitiram diferenciar os tipos de consumidores: os entrantes; os exploradores; os entusiastas; os especialistas; e os paneleiros. O consumidor entrante é o novato, que na maior parte das vezes bebe a cerveja produzida em larga escala e está começando a descobrir novos sabores na cerveja artesanal. Geralmente, as portas de entrada no universo de estilos das cervejas artesanais são as Weiss ou as Witbier que têm gosto suave e adocicado e são consideradas como estilos transitórios por outros membros da subcultura. É através da participação em eventos ou da frequência em bares especializados que começam a descobrir a diferença entre a cerveja industrializada e a artesanal. O entrante busca informações em eventos que comercializam o produto ou através de redes sociais, o que mostra o importante papel da tecnologia no suporte ao conhecimento a respeito do produto. A possibilidade de fazer parte de um grupo é um dos motivos que levam o entrante a começar a experimentar. Suas considerações a respeito da cerveja artesanal ainda estão focadas no preço do produto e pouco se referem a características da cerveja (sabor, consistência, coloração). Eu vim pelas redes sociais, estou começando agora, nem sei muito bem o que estou tomando. Mas vejo que tem muitos amigos que participam, que já bebem, que já conhecem. (...) eu comecei a curtir a fanpage de algumas cervejarias no Facebook e outros amigos compartilharam o convite do evento, aí acabei vindo porque eu já estava aqui perto também. E12-Entrante O cara me ofereceu uma outra mais forte (Imperial IPA) e eu estou vendo a fila que faz para tomar essa. Pedi para experimentar, mas gostei mesmo foi dessa aqui – (Weiss) – que não é tão forte. E39Entrante, depois de aguardar na fila de um fabricante de cerveja artesanal em festival de cerveja para beber sua Weiss. Os entrantes são consumidores que ainda têm pouco contato com os significados associados à cerveja artesanal e se localizam na posição mais periférica da estrutura hierárquica dessa subcultura. Esses consumidores estão em busca de aprovação social e não têm capacidade de interferir nas formas de interação entre consumidores de cerveja artesanal. Bebem cervejas artesanais para sentirem-se parte de um grupo, principalmente porque bebem acompanhados de amigos em locais de confraternização e são aceito pelos membros mais centrais da subcultura. (...) pouca gente explora esse consumidor pra dar o primeiro empurrão. Que é o cara que toma Heineken e vira e mexe toma uma 8

artesanal. (...) A gente acredita que é importante proporcionar experiência não só para quem já conhece cerveja e já tem um paladar mais apurado, mas também pra quem está querendo conhecer. E27Especialista O segundo tipo de consumidor identificado dentro da subcultura de consumo de cervejas artesanais é o explorador. Esse subgrupo consome cerveja artesanal, mas não sabe ou não tem a preocupação de distinguir os diferentes estilos, nem as nomenclaturas usadas para classificar o teor alcóolico (Alcohol by Volume, ou ABV), o amargor da cerveja (International Bitter Units, ou IBU), ou o sua coloração (Standard Reference Method, ou SRM). Durante as entrevistas, valores como a “sensação de realização” e “reconhecimento social” também foram mencionados. Isto sugere que os exploradores têm o desejo de se aproximarem e serem identificados com a subcultura de consumo de cerveja artesanal. Há claramente o interesse de compartilhar significados e valores mútuos a partir do consumo de cervejas artesanais e eles percebem o sentido de comunidade dentro da subcultura de consumo da cerveja artesanal. Por conta disso, os exploradores ocupam uma posição menos periférica na estrutura hierárquica da subcultura. Você tá na praia (...), você vai beber a cerveja que tá lá. Se você tá com os amigos, num lugar mais reservado, você pode pedir uma cerveja de melhor qualidade. E14-Explorador O explorador está interessado em degustar uma grande variedade de diferentes estilos e sabores da cerveja artesanal e está menos interessado na ciência por trás de cerveja. Esse grupo de consumidores é considerado pelos membros hard-core da subcultura como os mais promíscuos dos bebedores de cerveja artesanal, já que eles estão mais motivados a experimentar uma variedade ao invés de permanecer fiel a um estilo. Os exploradores encontram prazer no consumo do produto sem um envolvimento emocional maior e reconhecem o compromisso e a devoção dos membros hard-core, mas não se aprofundam em processos mais detalhados de consumo da cerveja artesanal. Tem dias que você quer uma cerveja mais amarga, uma cerveja mais leve, uma cerveja escura, talvez eu não tenha um estilo preferido. Sou meio que um desbravador. E4-Explorador O entusiasta é o terceiro tipo de consumidor da subcultura de consumo de cervejas artesanais. Ele se identifica mais profundamente com a subcultura e usa a cerveja para se auto definir, na medida em que geralmente se apega a um estilo específico de cerveja e torna-se representante desse estilo. O entusiasta experimenta diversos estilos de cervejas até encontrar um que mais goste e se apegar a ele e consegue identificar e diferenciar os atributos importantes quanto ao estilo, sabor e amargor, apreciando a atenção dedicada pelos cervejeiros à qualidade. O entusiasta do estilo India Pale Ale (IPA), por exemplo, consome cervejas produzidas por fabricantes distintos, mas sempre IPA. No começo eu rejeitava. Assim, achava bizarro pagar assim R$30,00 por uma longneck. Aí, os caras começaram a me doutrinar, toma essa, prova essa. E eu me viciei em IPA. Mas antes fiz o tour completo desde a Wit até a Smoked Porter. Gosto da IPA por causa do aroma lupulado. E28-Entusiasta

9

Quando você começa a beber a cerveja artesanal, você vê que tem diferentes tipos e diferentes sabores. Vai ter uma IPA um pouco mais forte, vai ter aquela Weiss mais puxada pro trigo, uma Wit que é um pouco mais puxada pro coentro, e tem um diferencial que a industrial não tem. E29-Entusiasta Além disso, o entusiasta já demonstra interesse pelo processo de fabricação da cerveja, sua história e a diferenciação entre os estilos. O consumidor entusiasta busca estudar e aprender sobre produção de cerveja e também demonstra orgulho por contribuir para a economia local. Poder garantir a “segurança da economia local” e “incentivar novas políticas públicas” são aspectos importantes para este consumidor. Ele entende que o seu apoio às cervejarias locais é sua maneira de contribuir para a permanência dos significados da subcultura. Recentemente eu vi no Facebook uma imagem rolando para que os consumidores apoiassem a causa das microcervejarias que estavam tentando diminuir a tributação injusta que sofrem. (...) Acho que nós, consumidores, temos que levantar essa bandeira também. Novas políticas tributárias pode acabar barateando o produto e aumentando ainda mais o consumo no país. E36-Entusiasta Outro aspecto importante para o entusiasta envolve o ritual de consumo, que se inicia com o armazenamento correto da cerveja e chega à escolha de um copo ideal para o estilo da cerveja. O entusiasta tem interesse em influenciar outros consumidores e frequentemente é o responsável pela orientação e a educação de consumidores entrantes e exploradores. Seu papel social na subcultura é importante, uma vez que aprecia o convívio social dentro do grupo e influencia membros periféricos, mas ainda não é um papel central porque os significados que propaga através de rituais de consumo e do uso jargões não são definidos por ele. Eu me preocupo com tudo na hora de consumir. Lá em casa tem copo de Weiss, de Ale, de Porter. A mesma coisa pra armazenar (...) boto pra gelar tudo de uma vez. Deixo de pé, guardada na despensa e vou gelando de acordo com minha necessidade. E16-Entusiasta Os consumidores especialistas têm com profundo conhecimento a respeito de cerveja artesanal e suas distinções. Seu consumo de cerveja envolve um ritual mais complexo de armazenamento correto da bebida, escolha do copo, observação da textura e percepção de aromas e sabores, que são sucedidos por uma análise da bebida repleta de jargões próprios e vocabulário técnico. Por causa disso, são conhecidos por membros mais periféricos da subcultura como “beermeliers”, numa alusão à denominação dada aos sommeliers. Dessa forma, eles são percebidos como líderes de opinião, especialmente se a cerveja for do estilo preferido. Ao desenvolver fidelidade a uma marca ou estilo de cerveja em particular, o consumidor especialista evita novos estilos ou sabores e tende a apreciar as cervejas artesanais com sabores mais amargos (“lupulados”) e maior teor alcoólico. Servida no IPA glass apresentou coloração dourada com espuma branca de boa formação e média persistência. No aroma temos tangerina, mel, doce de casca de laranja, limão e maracujá. O sabor segue o aroma, complementado por elegante amargor herbal de média duração que harmoniza muito bem com as notas cítricas mencionadas. 10

Carbonatação média, retrogosto amargo e cítrico. E40-Especialista – Trecho de avaliação publicada em seu site. Saber diferenciar uma cerveja de outra requer muito estudo, mas também tem que provar de tudo. Você vai lá e prova, e aí já sabe que aquele gosto, é gosto de coentro. Aí aprende sobre percentual alcoólico, tempo de fervura pra gerar coloração tal, vê vídeos, estuda. Não é simples assim, tem que suar muito pra saber sobre cerveja artesanal. E beber também. (risos). E12-Especialista O envolvimento dos especialistas com a cerveja é profundo e inclui o estudo dos processos de produção de cerveja e a criação de blogs com comentários sobre festivais de cerveja e suas opiniões sobre as cervejas vencedoras. Os especialistas também costumam postar vídeos no Youtube em que experimentam novas cervejas e fazem comentários sobre aroma, sabor e harmonizações. O processo de sacralização fica explícito através do uso de termos que fazem referencia à religião como forma de tratar o produto e os membros da subcultura, como “beer evangelizado”. Criei um blog e posto vídeos no Youtube onde compartilho informações para aqueles que ainda não sabem diferenciar e perceber os aromas de cada cerveja. Nos vídeos, procuro fazer comparações e já tenho muitos seguidores, que vivem pedindo para eu fazer uma avaliação de cervejas que eles estão encontrando. Acho que minha opinião vale muito na hora de eles decidirem se vão tomar ou não. E21-Especialista De tão apaixonados pelo estilo que adotaram como preferido, alguns consumidores especialistas passam a ter interesse na produção de cerveja caseira. Compram equipamentos e insumos necessários, estudam métodos de produção usando fogão residencial e fazem cursos com mestres cervejeiros para que possam testar e aprender a fazer sua própria cerveja. Quando produzem a própria bebida os especialistas passam a ser conhecidos como “paneleiros” dentro da subcultura de consumo e esse é o grupo de consumidores mais central da subcultura de consumo de cerveja artesanal. Uma vez que manipulam diretamente o produto, passam a ter capacidade de definição de sabores, colorações, jargões e comportamentos a serem praticados pelos demais. De tanto que eu gosto de Porter, fiz um curso com o Botto aqui no Rio e outro em Denver pra saber como produzir cervejas escuras com textura e aroma, sem ficar aquela coisa que é uma porrada mas sem sabor. Fiz umas levas junto com um amigo pra bebermos nos churrascos, mas ainda não saiu como esperávamos. E32-Paneleiro Sou apaixonado por IPA e APA. A ponto de fazer cursos e estudar sobre como fazer a minha própria cerveja em casa, na panela. Comprei equipamentos e insumos e já estou pensando em aumentar minhas produções. E31-Paneleiro O processo de produção da cerveja conta com uma etapa chamada de mostura ou brassagem que é crucial para a definição do estilo da cerveja. Os especialistas e paneleiros utilizam essa etapa da produção para denominar genericamente a preparação da bebida 11

artesanal. Assim, a brassagem passa a significar também uma oportunidade de encontro e compartilhamento de conhecimento e significação frequentada por paneleiros e especialistas: as brassagens coletivas. Mesmo atuando como produtores, os paneleiros são consumidores que demonstram um alto nível de comprometimento afetivo, tratando de forma paternal a cerveja que criam, defendendo-a de possíveis críticas e mostrando seu orgulho com a criação. A cerveja artesanal pra mim, especialmente a que eu faço é como um filho pra mim. (...) Já te falaram do nosso lema aqui? A melhor cerveja do mundo é a minha, eu que fiz. Eu que dei vida a ela. E21Paneleiro O produto das brassagens, a cerveja, é levado a encontros com outros membros da subcultura, como encontro de cervejeiros ou festivais de cerveja. Nesses eventos acontece o contato com outros componentes da subcultura de consumo de cerveja artesanal que geram trocas de significados, práticas, conhecimentos e sentimentos. Tais eventos tornam-se a quintessência dessa subcultura de consumo. Foi vindo aqui que deixei de ser orgulhoso, e aprendi a compartilhar minhas receitas, antes era um pouco ressabiado com isso. Todos somos bebedores, apreciadores apaixonados. (...) Venho todos os meses e cada vez trago um amigo novo. A gente traz eles e mostra que tem essa parte de troca e eles se sentem animados em fazer, em começar a criar suas receitas. E22-Paneleiro É algo que eu não tinha enquanto não vinha aqui. Só hoje tive uns dez feedbacks que vão revolucionar minha próxima leva. Já sei que a qualidade do meu ingrediente, afeta o resultado da cerveja. E32Paneleiro A imersão na subcultura de consumo de cerveja artesanal permitiu a identificação dos tipos de consumidores e a compreensão a respeito da dinâmica cultural dessa manifestação de consumo, visível a partir das formas de relacionamento entre os membros da subcultura de consumo. Na posição central, ou hard-core, como propõe Fox (1987), temos os paneleiros e os especialistas. Estes dois tipos são responsáveis dar sentido e significados à subcultura e representam os grupos de membros intensamente imersos na subcultura e que demonstram seu estilo de vida e ideologias em tempo integral. Eles criam e difundem originalmente os rituais de preparação e consumo e os jargões que serão compartilhados pelos demais componentes da subcultura e, dessa forma, orientam a forma com que os consumidores devem se comportar para pertencerem à subcultura de consumo de cerveja artesanal. O processo de elaboração de produtos, rituais e jargões acontece a partir dos encontros entre especialistas e paneleiros que acontece nas brassagens (vide figura 4).

12

Figura 3 – Paneleiros e o Compartilhamento do Produto de suas Brassagens (RJ)

Fonte: elaborado pelos autores

Mais próximos ao hard-core da subcultura estão os consumidores entusiastas, que atuam de forma a confirmar significados a partir da reprodução dos rituais de consumo e jargões definidos por especialistas e paneleiros. Os entusiasta desejam conhecer mais a respeito da cerveja, têm o desejo de produzir sua própria bebida e participam de encontros de cervejeiros, onde interagem com os especialistas e paneleiros que admiram. Esses consumidores, mais numeroso que os centrais atuam sobre exploradores e entrantes disseminando significados e sentidos de consumo de cerveja artesanal e educando o consumo desses. Figura 4 - Encontros de todos os membros da subcultura RJ e POA

Fonte: elaborado pelos autores Os exploradores e entrantes, que povoam a periferia dessa subcultura, experienciam o último estágio da propagação de significados e sentidos da subcultura de consumo de cerveja artesanal, mas tem um papel muito importante para sua estabilidade. O suporte social que os membros centrais precisam para continuar operando advém das camadas mais externas. Sem o compartilhamento de rituais, jargões e práticas, a subcultura seria extinta e os especialistas e paneleiros teriam sua existência impossibilitada. A reverência dos membros periféricos para com os membros do hard-core suporta a estrutura concêntrica da subcultura (FOX, 1987). Os 13

membros centrais de subculturas de consumo dependem de outros membros para terem sentido de existência. Na subcultura de consumo de cerveja artesanal essa dependência está clara e é fundada na admiração dos grupos mais periféricos pelo ethos da subcultura e pelo interesse desses em fazer parte do grupo. A figura 4 apresenta a estrutura hierárquica da subcultura de consumo de cerveja artesanal, com o posicionamento de cada tipo de consumidor, os fluxos e os eventos de interação entre os tipos de consumidores. Como vemos, significados, possibilidade de pertencimento, rituais e jargões transitam do centro para a margem, enquanto admiração e suporte social fazem o trajeto contrário. Figura 5 – Estrutura Hierárquica da Subcultura de Consumo de Cerveja Artesanal e suas Interações Entrantes Admiração

Exploradores

Suporte Social

Entusiastas

Significados Pertencimento

Especialistas

Rituais Jargões

Paneleiros Brassagem Encontro de Hard Core Cervejeiros Festivais de Cerveja

Soft Core

Periferia

Fonte: elaborado pelos autores a partir de Fox (1987)

Sentimentos Associados ao Consumo de Cervejas Artesanais e a Devoção A exploração da estrutura hierárquica da subcultura de consumo de cerveja artesanal e das formas de interações entre membros dessa subcultura de consumo nos possibilitou a observação das emoções associadas. Os sentimentos manifestados pelos consumidores de cerveja artesanal foram entendidos como componentes do processo de interação entre os membros, mas ganharam destaque em função de nosso interesse em entender melhor manifestações emocionais no campo da CCT. O consumidor entrante ainda não detém conhecimento a respeito de cerveja, mas se sente atraído pela possibilidade de fazer parte de um grupo. Ser aceito lhe traz satisfação, mas como ainda está sendo introduzido na subcultura de consumo, receia ser rejeitado. Entende que ainda não compartilha de todos significados presentes na subcultura de consumo, não é tão comprometido quanto os demais e que seus julgamentos podem ser equivocados, o que não lhe dá autonomia para consumo e gera ansiedade.

14

Me sinto inquieto (...) Uma mistura de ansiedade com receio. Mas uma ansiedade boa. Tenho receio de que eu não vá conseguir experimentar muito porque é tudo muito caro. E9-Entrante O sentimento de ansiedade do entrante que ainda precisa ser aceito pelo grupo contrasta com os sentimentos de felicidade e alegria de exploradores e entusiastas, que já se consideram aceitos pelos membros centrais da subcultura. O consumidor explorador já superou a ansiedade inicial e tem mais liberdade de ação. Na verdade, da mesma forma que é esperado que o entrante não se comporte de maneira inadequada porque busca aceitação, é esperado que o explorador exerça a sua capacidade de explorar as possibilidades de consumo presentes na subcultura. Esse consumidor, portanto, utiliza a liberdade que lhe é dada para buscar o prazer no consumo de cervejas artesanais. Não fico em apenas um estilo, vou provando todos estilos, todas as cores, de todas graduações, sem definir uma marca preferida. Um sentimento de prazer. É como se eu estivesse entrando num parque de diversões. Prazer, euforia, sei lá. E10-Explorador Como eu me sinto? Ah, eu me sinto realizada em poder ter essa experiência de experimentar diversos estilos numa tacada. Tem muita gente que tá aqui que é como eu, está começando a beber, já começa a gostar. Mas nem me pergunta o nome desse tipo aqui. Bebo porque é boa, é diferente, e dá até um certo status né? E7-Exploradora O entusiasta demonstra alegria por poder acessar a subcultura e por poder compartilhar conhecimento e significados a respeito de cerveja com outros membros da subcultura, tanto centrais quanto periféricos. A alegria que sente dá suporte a seu discurso suas práticas, como encontrar outros membros e reafirmar sua posição no grupo. Essa alegria se manifesta em sua animação e entusiasmo pelo consumo de cerveja e daí vem a denominação para o grupo de consumidores. Alegria, só alegrias. Me sinto assim desde que comprei o ingresso pro Mondial (Festival de cervejas). Tem muita coisa nova pra experimentar e tem uns caras feras que vão palestrar. A Bodebrown está lançando seis estilos novos aqui na feira, como não estar animado com tudo isso? E36-Entusiasta Os sentimentos manifestados por especialistas e por paneleiros são diferentes dos demais e a intensidade desses sentimentos explica porque esses consumidores ocupam posição central na subcultura em função. Seus discursos e práticas são energizados pelos sentimentos pela cerveja. Eu não poderia dizer outra coisa senão apaixonado. Cerveja artesanal é minha vida. Só a paixão que faz a gente sair de Campos e vir pra cá. Sou apaixonado e fiel. E14-Especialista Nesses eventos, sempre procuro trazer algumas amostras engarrafadas e antes de servir o colega, conto sempre uma história de como foi feita, não somente de questões técnicas, mas de toda a paixão que

15

depositei nela, desde a escolha dos ingredientes, até os testes, os erros, as novas produções. E21-Paneleiro Dentre os membros do hard-core da subcultura de consumo se manifesta a devoção. Esses consumidores desenvolvem um afeto associado ao produto e à atividade de consumo que lhes dão condições de formar e manter suas identidades e essa integração e conexão com a cerveja artesanal é manifestada através de rituais, sacrifícios, santuários, esforços criativos e recrutamento. Em algumas residências visitadas, os livros sobre cerveja artesanal e os copos específicos estavam guardados em prateleiras e estantes separadas dos outros copos de cerveja comum e livros, como em santuários, da mesma forma que observado por Pimentel e Reynolds (2004). Alguns consumidores hard-core até assumem papel de missionários, ao ativamente tentar arregimentar novos consumidores e são capazes de realizar os mais diferentes tipos de sacrifícios. Estes copos são especiais pra cervejas mais escuras, que é mais difícil de perceber o aroma e o sabor. Ele foi feito especial pra isso. E só vendem nos festivais (…) os livros de cervejas ficam aqui nessa estante, tem até luz dicroica direcionada para iluminar, olha que legal. E18-Especialista A peregrinação também ocorre entre especialistas e paneleiros. Alguns pedem empréstimos bancários e adiantamento de férias para poderem frequentar festivais e participarem de brassagens coletivas. A peregrinação atrás do objeto adorado, assim como os sacrifícios estão em sintonia com a teoria de devoção do consumidor de Pimentel e Reynolds (2004) e definem comportamentos que sustentam a condição de objeto sagrado da cerveja artesanal. Olha, eu já fiz tantos sacrifícios pra poder participar de eventos como esse. (...) Deixei de ir numa final de campeonato no estádio pra vir aqui. E eu sou Botafoguense fanático. Conheço gente que saiu do emprego, outros que pediram empréstimo pra ir nos festivais que tem em Curitiba e São Paulo. E20-Especialista Outras atividades de consumo de cerveja que são suportadas pelo sentimento de devoção envolvem a disseminação dos significados da subcultura de consumo e a conversão de consumidores comuns. As ligações com a religião incluem referências aos mandamentos e a dogma e confecção de peças especiais, como copos para consumo de cerveja, que são incorporados a seus santuários (vide figura 5). (...) não é só uma cerveja artesanal, é um dogma que temos e seguimos. Somos todos seguidores e disseminadores da cultura cervejeira, principalmente dando mais ênfase e apoio para os paneleiros que estão começando agora. E33-Paneleiro A gente usa esses eventos aqui entendem que o espírito de fazer quanto ele se envolve com ela. mandamentos. Em vez de ‘amar slogan é: ‘amar cerveja sobre

pra converter as pessoas. (...) Eles cerveja artesanal depende muito do (...) Fizemos uma paródia com os Deus sobre todas as coisas’, nosso todas as coisas’. Mais que uma 16

produção de cerveja artesanal, essa é nossa vida, nossa religião. E35 Paneleiro Figura 6 - Copo de Cerveja Exibindo Referências Religiosas em um Santuário

Fonte: elaborado pelos autores

Essas características dos consumidores hard-core coincidem com as observadas por Pimentel e Reynolds (2004) e Pichler e Hemetsberger (2007) em seus estudos acerca do sentimento de devoção no consumo. Os membros hard-core de uma subcultura orientada para o consumo demonstram um alto nível de devoção com a atividade de consumo, sendo esta responsável pela aspecto dominante de seu estilo de vida, como já visto por Fox (1987), Schouten e McAlexander (1995). Como guardiões da fé, os membros hard-core servem de modelo e inspiração para a cultura periférica aspirante e para os membros soft-core, que orbitam sob a sua liderança, como tratado por Schouten e McAlexander (1995). O quadro 1 resume as manifestações emocionais presentes da subcultura de consumo de cerveja artesanal. Quadro 1 – Manifestações Emocionais na Subcultura de Consumo de Cerveja Artesanal Tipo Entrante Explorador

Sentimento Relacionado Ansiedade Prazer

Entusiasta

Alegria

Especialista

Amor

Paneleiro

Devoção

Manifestação do Sentimento Inquietude – Desejo de ser aceito pelo grupo Busca por ocasiões para consumir Diversão em encontrar novos sabores e compartilhar o que sabe Paixão por cerveja, pela história e processo de fabricação Formação de valores e significados. Sacrifícios, rituais, santuários, peregrinação, conexão e integração

Fonte: elaborado pelos autores

Considerações Finais O presente estudo lançou luz sobre a subcultura de consumo de cerveja artesanal e trouxe algumas contribuições para o campo. Em primeiro lugar, trouxe uma análise dos componentes dessa subcultura, identificando-os, posicionando-os na estrutura hierárquica da subcultura e explicitando fluxos de significados que transitam na subcultura, especialmente em eventos da subcultura. Assim como proposto por Schouten e McAlexander (1995), verificamos que os membros hard-core da subcultura oferecem os conjuntos de significados específicos que são 17

compartilhados com os demais membros. A admiração dos membros em posições soft-core e periferia serve como forma de confirmação desses significados e permite que esses sintam-se pertencentes à subcultura de consumo. Ao mesmo tempo, a formação e manutenção da estrutura hierárquica da subcultura resultam das interações entre os membros e permitem que haja uma organização de significados dessas interações. Assim como proposto por Gopaldas (2014), o sentimento suporta a prática do consumidor, que continua a consumir cerveja artesanal e busca confirmar sua participação nessa subcultura de consumo. No caso dos especialistas e paneleiros, o sentimento de devoção legitima seus posicionamentos centrais na estrutura hierárquica da subcultura de consumo e suas capacidades de produzir sentidos e significados. A relação entre consumo e produção de cerveja artesanal e seus significados simbólicos e práticos não são explicados pelas teorias de prosumption e precisam ser aprofundados em futuras pesquisas. A perspectiva indutiva e o caráter etnográfico do trabalho nos permitiram diferenciar os diferentes compromissos afetivos de membros da subcultura e identificar o sentimento de devoção vivido pelos membros hard-core da subcultura de consumo de cerveja artesanal. Isso faz com que não só se conheça mais a respeito da subcultura de consumo, como a respeito de propostas de compreensão dos sentimentos associados ao consumo. Pretendemos com esse estudo incentivar novos estudos sobre as emoções no consumo que tenham base em perspectivas socioculturais dentro do campo da CCT. Referências Bibliográficas ATKIN, D. O Culto das Marcas: Quando os consumidores se tornam verdadeiros crentes. Lisboa: Tinta da China, 2008. BARBOZA, R.A.; SILVA, R.R. Subcultura Cosplay: a extensão do self em um grupo de consumo. REMark, v.12, n.2, p.180-202, 2013.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições70, 2011. BELK, R.W., WALLENDORF, M., SHERRY, J.F. The Sacred and the Profane in Consumer Behavior: Theodicy on the Odyssey. Journal of Consumer Research, 1989. CELSI, R.L.; RANDALL, R.; THOMAS, L. An exploration of high-risk leisure consumption through skydiving. Journal of Consumer Research, 1993. CERVIERI, O. O setor de bebidas no Brasil. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n.40, p.93129, 2014. FOX, K.J. Real Punks and Pretenders. Journal of Contemporary Ethnography, v.16, n.3, p.344-370, 1987. GOPALDAS, A. Marketplace sentiments. Journal of Consumer Research. v. 41, n. 4, p. 995-1014, 2014. HEBDIGE, D. Subculture: The Meaning of Style. London: Methuen, 1979. HOLBROOK, M.B.; HIRSCHMAN, E. The experiential aspects of consumption: consumer fantasies feelings and fun. Journal of Consumer Research, v.9, n.2, p.132-140, 1982. HOLT, D. Why do brands cause trouble? Journal of Consumer Research, v. 29, p. 70-90, 2002. HOPKINSON, G.C.; HOGG, M.K., Stories: how they are used and produced in market(ing) research. In: BELK, R. (ed.) Handbook of Qualitative Research Methods in Marketing. Cheltencham: Edward Elgar, 2006.

18

KATES, S. The Dynamics of Brand Legitimacy: an interpretive study in the gay men’s community. Journal of Consumer Research, n.31, p.455-464, 2004. KOZINETS, R.V. ‘I want to believe’: a netnography of the X-Philes' subculture of consumption. Advances in Consumer Research, v.24, p.470-475, 1997. KOZINETS, R.V. Can consumers escape the market? emancipatory illuminations from burning man. Journal of Consumer Research, v.29, n.1, p.20-38, 2002. O’GUINN, T.; BELK, R.W. Heaven on Earth: Consumption at Heritage Village. Journal of Consumer Research, v.16, 1989. PEREIRA, B.; AYROSA, E.A.T.; OJIMA, S. Consumo entre gays: compreendendo a construção da identidade homossexual através do consumo. Cadernos EBAPE.BR, v.4, n.2, p.1-16, 2006. PICHLER, E.A.; HEMETSBERGER, A., Hopelessly devoted to you – towards an extended conceptualization of consumer devotion. Advances in Consumer Research v. 34, 2007. PIMENTEL, R.W., REYNOLDS, K.E. A model for consumer devotion: affective commitment with proactive sustaining behaviors. Academy of Marketing Science Review, v.12 , n. 5, p. 1, 2004. SAUERBRONN, J.F.R.; AYROSA, E.A.T.; BARROS, D.F. Bases sociais das emoções do consumidor: uma abordagem complementar sobre emoções e consumo. Cadernos EBAPE.BR, v.7, n.1, p.169-82, 2009. SCHOUTEN, J.W.; MCALEXANDER, J.H. Subcultures of consumption: an ethnography of the new bikers. Journal of Consumer Research, v.22, n.1, p.43-61, 1995. SEBRAE. Inteligência Setorial – Cervejas Artesanais. Boletim de Tendências, v.2., 2015. TUMBAT, G.; BELK, R.W. Marketplace tensions in extraordinary experiences. Journal of Consumer Research, v.38, n.1, p.42-61, 2011.

19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.