AMAZONAS DO SÉCULO DO AÇO: VISÕES SOBRE A PRESENÇA FEMININA NA FORÇA AÉREA BRASILEIRA

May 29, 2017 | Autor: Adriana Sena Orsini | Categoria: Feminism, Civil-military relations, Acesso à Justiça, mulheres na carreira militar
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AMAZONAS DO SÉCULO DO AÇO: VISÕES SOBRE A PRESENÇA FEMININA NA FORÇA AÉREA BRASILEIRA Adriana Goulart de Sena ORSINI1 Marcus Vinícius Melo VIEIRA2 GT 11 – Género, Feminismos y sus Aportes a las Ciencias Sociales RESUMO O ambiente militar é permeado por uma cultura voltada à exaltação de valores tidos como masculinos. Em contraste, porém, verifica-se uma tendência crescente na participação das mulheres nos diversos setores das Forças Armadas (FFAA) brasileiras. Nesse artigo busca-se entender como é a visão do corpo discente da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, internato militar masculino, acerca da participação feminina na Força Aérea Brasileira. Mesclada à exposição dos dados obtidos na pesquisa, há breve discussão dos dados levantados, tendo como referencial teórico as ideias de Pierre Bordieu, Michel Foucault e Axel Honnet. PALAVRAS CHAVES Cultura militar. Mulheres. Reconhecimento. Relações de gênero.

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  Professora

Doutora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Corpo Permanente do Programa de Pós-graduação da FDUFMG. Coordenadora do. Juíza Titular da 47a. Vara do Trabalho de Belo Horizonte do Tribunal Regional do Trabalho - 3a. Região. Autora de diversos livros e artigos. Pesquisadora e extensionista. E-mail: [email protected] 2 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Voluntário no PROGRAMA RECAJ UFMG - ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO em Acesso a Justiça e Solução de Conflitos; Integrante do Projeto RECAJ nas Escolas. Ex-aluno 2009/038 VIEIRA da Escola Preparatória de Cadetes do Ar. E-mail: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO O quartel é permeado por uma cultura de exaltação à virilidade. O teatro bélico, espaço do monopólio da força bruta, é, majoritariamente, palco de atuação masculina. Necessidade de deslocamentos constantes, sob situações adversas e em presença esporádica da morte são culturalmente vistos como desafios, ou até mesmo como impedimentos, ao corpo feminino. O envolvimento dos soldados com mulheres era visto como motivo de deterioração moral e indisciplina desde o Império Romano. Assim, além das mulheres serem excluídas das castras, campos militares gregos, aos soldados era proibido o matrimônio (Souza, 2004). Contrário a tal visão de fragilidade feminina, o mito romano das Amazonas, que atravessou os mares e chegou às Américas, as apresenta como mulheres guerreiras, extremamente violentas. Visitando o hinário pátrio, nota-se a coroação dos aviadores como “cavaleiros do século do aço”3. Neste sentido, a formação das primeiras mulheres oficiais-aviadoras na Academia da Força Aérea (AFA), no ano de 2006, as colocaria como amazonas do século do aço. Porém, a distância temporal entre as castras gregas e os quarteis de hoje, ainda que aliada ao crescente avanço da participação feminina nas Forças Armadas (FFAA), não é suficiente para extinguir percepções restritas da mulher no meio militar, como será demonstrado no decorrer deste artigo. 2 CONQUISTAS SEM GUERRA, CONQUISTAS DA ERA É cabível breve digressão para esclarecer a posição feminina na ditadura militar, regime no qual ocorreu a integração de quadros femininos nas FFAA. Cita-se a notória valorização da instituição da família, em seu sentido patriarcal, no meio militar. O papel da mulher nesse ambiente era de submissão ao homem, com sua importância restrita ao espaço privado. Há uma “invisibilidade da mulher como sujeito político” (Colling, 2004, p.06). As tarefas femininas, também no período ditadura, estavam diretamente ligadas às funções de administração do lar. A lei no 6.807, de 07 de julho de 1980, que criou o Corpo Auxiliar Feminino de Reserva da Marinha (CAFRM), reflete o papel feminino no lar, pois as integrantes daquele quadro exerceriam tarefas destinadas “a atender encargos do interesse da Marinha, relacionados com atividades técnicas e administrativas. ”

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Trecho do Hino dos Aviadores. O título do artigo, bem como o de seus blocos e seções, são trechos de diversas canções militares.  

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A substituição dos especialistas em terra, para que pudessem atuar nos navios, e “a “grande conveniência” do ato devido à sua “abrangência social”, contribuindo para o alcance pelas mulheres da invocada igualdade assegurada pela Constituição Federal (art. 153, da CF/67)”, são os dois motivos apontados como determinantes da inclusão feminina nas forças armadas (Tedeschi, 2008, P. 07). Assim a inclusão da mulher no meio militar vem atrelada aos interesses de um governo em queda de popularidade e repete a divisão machista de papeis no mercado de trabalho por gênero. Posteriormente, com a entrada das mulheres na Força Aérea Brasileira (FAB), o então Ministro de Estado da Aeronáutica, Tenente Brigadeiro Délio Jardim de Mattos, publicou a Portaria no1.114/GM6, de 04 de outubro de 1982, cujo escopo era regulamentar as condições, ditas à época, como peculiares, cuja criação do CFRA traria para a FAB. Daí, além de seguir as recomendações ético-militares pertinentes a todo o efetivo, a conduta feminina deveria também atender “ao respeito à sua condição de mulher” e “à dignidade de seu papel em família”. Seguindo a leitura, encontram-se recomendações como “evitar gestos e atitudes consagradas como manifestações de gentileza e apreço no relacionamento social” e “evitar relacionamento de amizade ou de intimidade com pessoas de reputação duvidosa”, bem como era feito o controle do uso de esmaltes, adornos, apresentação em atividades sociais e diversos outros aspectos da vida e da intimidade da mulher militar. Se por um lado, tem-se a repetição da visão da figura feminina como frágil, que deve ser protegida, incluindo aí a proteção de sua dignidade; por outro, intenta-se a internalização dos valores militares e masculinos. Vê-se uma tentativa de ocultação do feminino: a mulher, dentro da caserna, seria uma militar, inclusive na expressão real da uniformização que exclui ou rejeita as diferenças de gênero. Todavia, sem a farda ela poderia ser “mulher” expressando a sua “condição de mulher”, ainda que cercada de todos os preconceitos e discriminações a que também eram submetidas outras “mulheres”, como também possivelmente agravada pelo fato de ser uma “diferente” no meio de iguais masculinos. 3 ENTRE MONTANHAS E O CÉU DE ANIL Situada na cidade mineira de Barbacena, a Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR) é responsável por formar os futuros cadetes aviadores da FAB. A admissão se dá por meio de concurso público, com exames intelectuais, psicológicos, inspeção de saúde e teste físico. Admitido, a educação do aluno epcariano compreende a formação intelectual, através do

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ensino médio; a militar, com o escopo de preparar os futuros oficiais aviadores; a moral e cívica, visando forjar seus caracteres nos moldes da doutrina militar e a prática desportiva. Concluindo o curso com aproveitamento, o aluno tem sua vaga no Academia da Força Aérea (AFA), condicionada apenas a nova inspeção de saúde interna e aprovação no teste de aptidão à pilotagem militar, sendo dispensado de novo concurso. Considerando que um dos autores deste paper conclui o Curso Preparatório de Cadetes do Ar, aponta-se alguns motivos para a relevância da análise das visões daqueles alunos sobre a presença feminina na FAB. Primeiro, o fato da EPCAR ser uma escola de formação, onde os alunos têm o contato inicial com a doutrina e os valores militares. Segundo, a alta possibilidade de eles virem a ocupar um cargo de poder dentro da FAB, uma vez que os oficiais aviadores assumem a maioria dos cargos de comando na Força Aérea. Terceiro, a faixa etária desses alunos, entre 14 e 20 anos, correspondente ao período da adolescência, portanto, importante período de formação social. Por fim, a ausência de meninas em seu meio possibilita aos alunos total liberdade para compartilharem com os colegas qualquer tipo de assunto e/ou opinião, sem as restrições que possivelmente ocorreriam caso houvesse mulheres entre os colegas. Como ex-aluno, um dos autores pode perceber que o confinamento de uma única visão, a masculina, em um período de descobertas sexuais, propiciava um ambiente de eco aos estereótipos sobre sexo, gênero e sexualidade. Instigados a compreender os aspectos mencionados e pesquisar o fenômeno, foi obtida autorização junto ao Comando da EPCAR, para realização de uma pesquisa com os alunos. A ideia era aplicar um questionário a 50 alunos bem como entrevistar, com gravação simultânea, três alunos, todos maiores de idade e indicados de forma randômica por aquele Comando. Devido contratempos da rotina da escola, porém, apenas 46 alunos responderam ao questionário, bem como dois tiveram entrevista gravada. Todos os pesquisados assinaram termo de autorização para uso dos dados levantados, de maneira anônima, em artigo acadêmico. Destaca-se que a pesquisa teve como objetivo levantar as visões pessoais dos alunos da EPCAR, sendo que os dados foram obtidos a partir da fala de cada um dos alunos, portanto uma percepção individual. A pesquisa feita não buscou perceber a visão do Corpo de Alunos daquela Instituição, mas sim o levantamento de dados e percepções dos alunos naquele dado momento histórico.

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As duas tabelas sintetizam o perfil geral dos alunos pesquisados: Tabela 1 Idade dos entrevistados Idade Quant. Porcent. 18 25 54,3% 19 17 37% 20 4 8,7% Total 46 100% Fonte: 46 questionários aplicados

Tabela 2 Ano cursado pelos entrevistados Ano Quant. Porcent. o 1 10 21,8% o 2 18 39,1% o 3 18 39,1% Total 46 100% Fonte: 46 questionários aplicados

A metodologia da pesquisa deu-se através de pesquisa bibliográfica (parte histórica) e de pesquisa de campo (aplicação de questionários para atingir o objetivo visado). Foi levantada a visão de 48 alunos (de um total de 308 alunos maiores de idade), sendo 46 por meio de questionário e dois através de entrevista. Os questionários foram aplicados em setembro 2013, sendo o artigo fruto de uma investigação concluída. 4 ENTRE AS NUVENS, NOS CÉUS, VENDO A TERRA Após os dados gerais, a primeira pergunta feita alunos buscava entender como eles viam a ausência de colegas do sexo feminino e qual a avaliação faziam disso. Dez alunos apontaram um estranhamento no início do curso. “Ahh... acredito eu que com o tempo você começa a encarar como um fato normal porque... no começo é meio estranho. Você chega e só tem homens, você dorme com seus colegas... só que depois você já passa a acostumar.” (Aluno D.). A afirmação desse aluno foi ratificada pelos outros: ou seja, com o decorrer do curso o estranhamento inicial foi afastado. Vê-se o afastamento desse estranhamento diretamente ligado à uniformização promovida pelo meio militar. Aqui, aponta-se a notória presença do poder disciplinar foucaultiano, uma vez que, após a adaptação dos indivíduos ao sistema, eles são tomados “ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos do seu exercício” (FOUCAULT, 2000, p.143). Em outras palavras, além de usarem o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, e exercerem juntos as mesmas atividades, os alunos passam a compartilhar da mesma visão de mundo, agindo segundo a educação e a formação militar que lhes foi proporcionada. Neste sentido, dez alunos veem o convívio entre iguais como positivo, ao gerar uma maior liberdade. “A convivência com certeza é melhor, o ambiente é mais descontraído e a liberdade de falar sobre diversos assuntos também é maior.” (Aluno E.). Sete alunos, assimilaram a ausência como característica do militarismo, por conseguinte, atingindo a EPCAR. “Totalmente normal.

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Representa que o serviço militar é direcionado mais aos homens, pelo fato de ser um serviço mais pesado e que exige mais do condicionamento físico” (Aluno C.). Seis alunos mostraram-se indiferentes e quatro colocaram-na como necessária. Ora, não resta dúvidas acerca da internalização de um fato estranho (ausência de meninas), seguida por uma aceitação diretamente proporcional à assimilação do novo sistema imposto a eles. Na contramão dos demais, 12 alunos ainda se incomodam com a ausência feminina. “Por vezes, eu sinto falta de conversar com uma mulher pelo fato de sua cabeça ser mais emotiva e atenciosa que as dos homens” (Aluno B.). As outras visões divergentes das apresentadas acima deram-se de forma isolada, diminuindo sua relevância. Tendo em vista que após a conclusão do CPCAR os alunos optantes pela carreira militar passarão a conviver, na academia, com cadetes do sexo oposto, foram indagados se esperavam alguma alteração na sua rotina a partir de então. Percebe-se uma relação entre as mudanças e o modo como assimilam a ausência de colegas: a presença delas sanaria os problemas apontados na sua falta, bem como traria complicações aos pontos nos quais os alunos viam a ausência de forma positiva. Houve uma notória indicação, por 31 alunos, que a inclusão de cadetes mulheres levará a mudanças no comportamento dos alunos, envolvendo cuidados com a linguagem e hábitos “menos brutos”, desta forma tal inclusão acabaria por favorecer o “amadurecimento” da turma. “Creio que a inclusão de cadetes do sexo feminino na turma trará maior amadurecimento coletivo, diminuição do machismo presente” (Aluno H.). Com base nos dados acima, não se vê os alunos como contrários à iminente entrada de mulheres em seu convívio diário. Apesar disso, eles possuem uma preocupação em mantê-las afastadas de hábitos praticados por eles, tais como “palavrões” e alguns tipos de “brincadeiras”. Ou seja, consideram tais hábitos como masculinos, uma vez que em seu imaginário, que se baseia em pré-compreensões de “funções e lugares” e também em certo estereótipo, não pertenceriam ao gênero feminino. Obtida a visão sobre a provável presença direta de mulheres entre os alunos, procurou-se perceber como viam o avanço da presença feminina nas diversas áreas da FAB. Assim, foi-lhes solicitado que opinassem acerca da formação da primeira piloto de caça, em 2012 e sobre o destaque - 21 medalhas, quebrando cinco recordes – atingido, em 2013, pela Cadete Mayara na INTERAFA, competição desportiva interna entre as turmas da AFA.

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Metade dos alunos relacionou o destaque atingido pela cadete com a “capacidade feminina”. “Realmente impressionante, isso mostra que a mulher é mais capaz do que pensamos. Talvez tenhamos um preconceito muito forte quanto a mulheres militares que superam seus limites.” (Aluno J.). Dez condicionaram o desempenho à dedicação da atleta, no sentido que atletas empenhados conseguem bons resultados, independente do sexo. Seis se limitaram a elogiar a cadete. Quatro perceberam, na atuação da atleta, um indício de igualdade entre os gêneros. “Esse trecho mostra que não há embasamento na ideia de que as mulheres são mais frágeis e mais fracas que os homens e por isso incapazes para fins militares.” (Aluno H.). Por fim, três viram como um fato isolado. “Com certeza a cadete demonstrou grande capacidade na disputa com os outros e as outras cadetes. Porém ela é uma exceção à regra, já que a fisiologia feminina tende a ser fisicamente inferior.” (Aluno K.). Em relação à formação da primeira caçadora, vinte e dois a associaram à “capacidade feminina”, sete relacionando-a com a qualificação exigida dos pilotos de caça. “Se ela passou por todos os treinamentos previstos com aproveitamento é porque ela tem condições de exercer essa função” (Aluno L.). Dez alunos classificaram o fato como um avanço para a FAB. Dez relacionaram com o avanço da presença feminina nos diversos setores da sociedade e/ou da Aeronáutica. “Uma conquista e me mostra que talvez um dia servirei em alguma organização militar comandada por um oficial mulher pelo espaço que elas vem conquistando dentro da FAB” (Aluno M.). Quatro possuem algum receio quanto à formação da tenente. “Não acho favorável para a FAB. Na minha opinião as mulheres têm maior desempenho na área da administração e saúde.” (Aluno N.). O Curso de Formação de Oficiais da Infantaria, ministrado na AFA, é o único não aberto para as mulheres. As atividades de um infante estão diretamente ligadas à área operacional e de combate/defesa em terra. Assim, os alunos foram questionados se concordavam com o fato do quadro ser privativo aos homens. Vinte e seis alunos são a favor, justificando seu posicionamento com as pesadas exigências do curso, que seriam dificuldades ao corpo feminino. Dezoito são contra, afirmando que as mulheres são sim capazes de terminar o curso e desenvolverem satisfatoriamente a profissão. Dois não opinaram. Finalizando as questões subjetivas, foi pedido aos alunos para citarem, o que viam como benefícios e como dificuldades para as mulheres que decidissem pela carreira das armas. Por não

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ter feito delimitações, reproduz-se abaixo apenas os itens citados por mais de 10% dos entrevistados (ou seja, por pelo menos cinco alunos). Como benefícios, em ordem decrescente, surgiram: status da profissão, igualdade atingida pela mulher, aprimoramento moral, realização pessoal e determinação. Destaca-se o fato de nove alunos não terem apontado nenhum benefício, sendo que dois afirmaram não haver nenhum; como também a falta de repetição, surgindo inúmeros benefícios isolados, citados uma ou duas vezes. O mais repetido, status, apareceu em nove questionários. Em relação às dificuldades, as opiniões aproximaram-se: 32 alunos apontaram os aspectos fisiológicos da mulher, o preconceito e a rotina militar foram citados 11 vezes cada, os aspectos emocionais, 10. Diante de tais dados, percebe-se que os aspectos fisiológicos são vistos, pelos alunos, como o principal obstáculo às mulheres que decidem ser militares. Daí derivam outras dificuldades, uma vez que, por serem “fracas”, elas tem um tratamento diferenciado, com “menos cobrança”. Uma menor cobrança aumenta o preconceito que os militares tem em relação às mulheres, pois elas teriam “facilidades”, não estendidas a eles. Também sofrem preconceito pelo fato de serem minoria, e, por serem minoria, não há uma boa infraestrutura nos quartéis voltada a elas, como por exemplo o reduzido número de banheiros ou a falta de alojamentos a elas destinados. Fica clara a relação cíclica entre os complicadores à presença feminina no quartel. E a não alteração destas condições gera obstáculos à presença ou melhor adaptação da mulher nas forças armadas. Após análise dos dados acima, percebe-se que os alunos, apesar das ressalvas expostas, reconhecem socialmente a mulher como uma militar. Parte-se do pressuposto do pressuposto que o meio militar é uma “sociedade” específica. E sobre o tema, importante trazer a teoria do reconhecimento de Axel Honnet. Para o autor, o reconhecimento social atua como pano de fundo de todos os conflitos e relações de poder, podendo advir do amor, do direito ou da solidariedade. Os benefícios citados para as militares, bem como o elevado uso da expressão “capacidade feminina”, podem ser usados para entender como se dá o reconhecimento das mulheres militares pelos alunos. Assim, percebe-se o reconhecimento das mulheres militares pelos alunos a partir do momento em que elas incorporam os valores militares, ou seja, quando tornam-se iguais a eles no “mundo militar”, nesta sociedade específica, como já acima mencionado. Assim, neste momento, podem então dividir as conquistas do meio em que se

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inserem, o meio militar. Nas palavras dos alunos, quando forem capazes de compartilhar os objetivos militares, objetivos que paradoxalmente eram masculinos (ser infante, ser piloto, ser militar, dentre outros). Tais critérios de autocompreensão cultural, onde as “capacidades e realizações são julgadas intersubjetivamente, conforme a medida em que cooperaram na implementação de valores culturalmente definidos” (Honneth, 2003, p. 200) permitem concluir que o reconhecimento intersubjetivo delas é o da esfera relativa à solidariedade. 4.1 Mas se explode o corisco no espaço Para uma análise mais extensa da visão dos alunos, trata-se agora da noção que os alunos possuem sobre gênero, bem como aponta-se alguns aspectos sobre as relações de gênero nos quarteis. Adotando a visão de gênero como construção social do masculino e feminino, oposta à visão biológica de sexo, foi perguntando aos alunos se concordavam que as percepções de masculino e/ou feminino advém das relações entre os sujeitos, tendo-se obtido resposta positiva de 35 alunos (76,09%). Mesma quantidade de alunos afirmou que a construção da identidade masculina e/ou feminina dentro dos quartéis repetia a dicotomização dos papeis sexuais fora do quartel. Partindo desses dados, a percepção dos alunos de que não há o mesmo tratamento entre homens e mulheres nas FFAA (31 alunos; 67,39%), com ocorrência de certo “paternalismo” em relação às mulheres (32 alunos; 69,57%) pode ser vista como a afirmação da existência de uma construção social do sujeito feminino dentro do quartel. Tal construção pode ser diretamente relacionada aos papeis inicialmente dado às mulheres no quartel (apenas administrativos), esses, por sua vez, tratam-se de repetição de uma dicotomia externa, como os alunos também afirmaram. Porém, embora vejam um tratamento diferenciado à mulher, aliado ao fato delas e dos homens não exercerem, de acordo com eles, as mesmas tarefas, 27 alunos (58,7%) percebem a sobreposição da condição “militar” em relação à condição de “mulher”. Aqui há uma reafirmação de que o fato de todos serem militares é, mesmo com as diferenças, a condição que os iguala. Finalmente, foi apresentada aos alunos uma lista de dez características diversas, dentre habilidades cognitivas, físicas e atributos psicológicos, pedindo-lhes que as colocasse em ordem de importância na formação de um militar. Para obter uma classificação da ordem geral de relevância, foram atribuídos 10 pontos à característica mais importante para cada aluno. Retirouse um ponto à medida que aluno fosse diminuindo a relevância. Assim, a característica menos

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relevante equivalia a um ponto. Dessa forma, um total de 55 pontos foi distribuído por cada aluno. A tabela abaixo mostra os resultados obtidos. Tabela 3 Característica Estabilidade emocional Inteligência geral Rápida percepção de informações gerais Realizar várias tarefas simultaneamente Habilidade verbais Força física Boa memória de curto prazo Habilidades viso-espaciais Raciocínio mecânico Raciocínio matemático Não souberam/não responderam Total Fonte: 46 questionários aplicados

Pontos 379 342 324 279 218 205 164 163 159 132 165 2530

Porcent. 14,97% 13,51% 12,8% 11,08% 8,61% 8,1% 6,48% 6,44% 6,28% 5,21% 6,52% 100%

O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato da força física ter sido colocada em sexto lugar no grau de importância para a formação militar. Ora, como conciliar tal informação com o fato dos aspectos fisiológicos terem sido apontados como maior empecilho para a mulher dentro da carreira militar? Tal questão deixa de ser contraditória quando é analisada diante de todo o contexto que está subjacente a expressão do ponto de vista dos alunos. Tendo por base a já afirmada construção social do sujeito feminino dentro do quartel, pode se ver, no fato dos alunos entenderem os aspectos fisiológicos como um empecilho, a reprodução do discurso de dominação masculina. Tal dominação apresenta-se na forma de uma “violência doce e quase sempre invisível” (Bordieu, 2003, p. 56). Assim, a dominação masculina no meio militar pode ser colocada como uma dominação simbólica, sem necessidade de violência. Pelo contrário, da “fraqueza física e emocional” surgiria a proteção dada pelos militares à mulher. Essa proteção materializa-se no “paternalismo”, no “tratamento brando”, na “menor cobrança” e diversas outras expressões análogas que foram usadas pelos alunos. A ordem apontada entre as características reflete quais características os alunos veem como importante em um “militar padrão”. Daí, aponta-se a repetição do discurso de dominação masculina como uma simples repetição, nem sempre precedida de um questionamento pelos alunos se se aquela condição é mesmo válida em seu meio.

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Ademais, se a força física não é tão importante, todo o ciclo de dificuldades baseadas no aspecto fisiológico da mulher não se justificaria, vindo abaixo os maiores argumentos contrários à presença delas no meio militar. Não se nega a existência de dificuldades nos quartéis, algumas enumeradas neste artigo, apenas é de se indicar que, com base nos dados levantados no decorrer desse estudo, percebe-se que a origem delas é mais uma característica do sistema militar que uma característica própria das militares. 5 CONCLUSÃO As respostas dos alunos da EPCAR, os militares mais jovens do país, fazem perceber que ainda há uma reprodução do discurso de dominação masculina nesse meio. Porém, esses alunos não pareceram contrários ao aumento da presença feminina na FAB. Vê-se nas respostas e opiniões externadas nos questionários da pesquisa que existem indicativos de que as mulheres, talvez com algumas ressalvas, serão bem recebidas entre eles. Uma vez aceitas, serão vistas como iguais, ou seja, também as reconhecerão como militares. Sendo militares, serão possuídas pelo “espírito de corpo”, aquele que incorpora os militares ao dividirem particularidades de uma vida diferenciada, tendo a chance de vivenciar a visão feminina e com ela se construir um espaço novo, dialógico de gêneros. Como expectadores de relações de gênero, os alunos apontam relações marcadas pelo “paternalismo” em relação às mulheres. Ao afirmarem que a entrada delas trará mudanças no comportamento da turma, como “menos palavrões”, vê-se uma possibilidade deles também se auto-protegerem, o que pode gerar um meio ambiente mais saudável e sustentável para a convivência plural. Em uma carreira surgida no Brasil junto à Independência, com o Exército Nacional, a participação feminina conta com apenas 33 anos. A presença de mulheres nas FFAA é quase tão jovem quanto os alunos entrevistados, e, em ambos os casos se percebe nos ares da juventude perspectivas de mudanças positivas. A curto prazo, quando esses alunos estiverem em posição de mando, se de fato aceitarem bem as militares ao seu lado. A longo prazo, quando a presença das mulheres for numericamente maior e elas já tiverem assentado alguns tijolos a mais na construção da “cultura militar” mais plural.

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6 BIBLIOGRAFIA BOURDIEU, P. (2003) A Dominação Masculina, Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil BRASIL. Lei no 6.807, de 07 de julho de 1980. Cria o Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha (CAFRM), e dá outras providências. Disponível em: Acesso em 16 de agosto de 2013. ______. Lei no 6.924, de 29 de junho de 1981. Cria, no Ministério da Aeronáutica, o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica e dá outras providências. Disponível em: Acesso em 16 de agosto de 2013. ______. Ministério da Aeronáutica. Portaria no1.114/GM6, de 04 de outubro de 1982. Aprova normas complementares de conduta ético-militar, de apresentação pessoal em atividades sociais, e de uso de adornos por parte das militares do CFRA. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 de out. 1928c. Seção 1. COLLING, A. M. (2004) As mulheres e a ditadura militar no Brasil. In: História em Revista. Pelotas, RS, n. 10, 2004. FOUCAULT, M. (2000) Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad. de Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes HONNETH, A. (2003) Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, SP: Editora 34 SOUZA, R. A. (2004) Miles et paganus: apontamentos acerca dos efeitos do Exército Romano sobre as populações locais. In: MNEME Revista de Humanidades. Caicó, RN, v. 05, n.11. TEDESCHI, L. (2008) O discurso filosófico: definindo o corpo. Revista Filosofazer, vol. 17, n. 32. Passo Fundo, RS, Disponível em:  

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