Ambientes de Apredizagem & Liberdade em Construção

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Descrição do Produto

Agradecimentos Esta é uma seção muito difícil de redigir porque meu receio de ser ingrato com alguma pessoa é muito grande. Mesmo correndo este risco, não poderia deixar de agradecer a meu amigo e mestre Norberto C. Ferreira, o Tex, cujo dedicado trabalho de orientação e incentivo, mais a sua criativa obra no ensino de Física foram fundamentais para a execução deste trabalho. Quero especialmente agradecer, também, ao professor Rolando Axt, pelas correções e sugestões que gentilmente aceitou fazer nos originais. Não poderia deixar de incluir aqui, meus amigos e colegas que direta ou indiretamente colaboraram para este trabalho através de discussões e interesses mútuos na área do ensino de ciências; são eles: Amauri, Aníbal, Arnaldo, Beth Barolli, Bia, Cláudio, Cosme, Denise, Edison, Eugênio, Ivanilda, Isabela, Jonas, Luís Paulo, Marly, Miriam, Olival Freire, Otávio, Panchito, Serginho, Sergio Scala, Toninho, Victor, Zé Roberto, ... Finalmente, devo agradecer ao CNPq pela bolsa de estudos que me foi oferecida.

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Em memória do seu Sylvio, meu pai; à minha mãe Isabel, meus tantos irmãos, minha companheira Adelina e meu filho Akira: as minhas “coisas mais queridas”.

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Resumo Este trabalho analisa alguns ambientes de aprendizagem que podem contribuir para o aprimoramento de professores de Ciência, em particular aos de Física. Partimos de uma contextualização do projeto LOGO que serviu como paradigma para o desenvolvimento de nossa análise. Dessa forma, são discutidas, além das idéias de Papert com relação ao programa LOGO, outras formas de atuação que podem ser enquadradas como ambientes de aprendizagem, bem como as maneiras como tais ambientes podem ser utilizados pelos professores. Incluimos assim, ambientes para os quais existe uma fundamentação teórica bem definida como os “Cantinhos” de Freinet, além de outros, que podem ser enquadrados em outras bases cuja fundamentação é explicitada em cada caso. Apresentamos, dessa forma, A Física no “playground”, as exposições didáticas e o pequeno museu de Ciências. Aqui usamos, para efeito de análise, o Laboratório de Demonstrações do IFUSP. Terminamos o nosso trabalho com uma descrição do Projeto Experiementoteca-Ludoteca, onde todas as idéias discutidas anteriormente são retomadas.

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Abstract This work analyses some Environments that may contribute to improve the task of Science teachers, mainly those concerned with Physics teaching. We begin with a description of the LOGO project and we will use it as a paradigm for the devellopment of our analysis. This way, besides the ideas of Papert concerning the LOGO program, other ways that could be included as Learning Environments and also the manners of their utilization are discussed. So, we included environments for whom there exists a well defined theoretical fundamentation such as “The little corners” of Freinet, as well others that could be reported to others basis. Therefore we analyse the Playground Physics the didactical exhibitions and the little Science Museum. Here we utilize, for our analysis, the “Laboratório de Demonstrações” of the IFUSP. Our work ends with a description of the ExperimentotecaLudoteca project where all previous ideas are discussed.

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Abstract

Sumário Resumo

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Abstract

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Introdução

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1 LOGO e a Idéia Original

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2 Os “Cantinhos” de Freinet

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3 A Física no “Playground”

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4 As Exposições Didáticas & O Pequeno-Museu de Ciências

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5 A “Prateleira” de Demonstrações

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6 A Experimentoteca-Ludoteca: Conclusões

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Bibliografia

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SUMÁRIO

“Dirijo minha escola na crença de que ambiente é a necessidade primordial, mas preciso admitir que mesmo isso pode falhar se uma criança não teve amor quando bebê. No entanto, ambiente é a única coisa com que posso lidar; é concreto e não abstrato.” A.S. Neill

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SUMÁRIO

Introdução O presente trabalho esta dividido em seis capítulos, organizados de modo a permitir uma visão geral do que se chamará ambientes de aprendizagem. É destinado a professores de ciências e pesquisadores do ensino destas áreas do conhecimento. Apesar deste alvo principal, foi escrito com a preocupação de permitir uma leitura agradável a outros leitores leigos e estudantes, interessados no assunto. O primeiro capítulo trata do projeto LOGO. A compreensão de suas implicações educacionais são fundamentais para o entendimento dos capítulos seguintes. Na verdade, ele serve de referência para uma transformação dos outros ambientes educacionais na perspectiva de aproximá-los do que há de fundamental naquele projeto. Não é trivial justificar a inclusão do LOGO nos cursos de ciências, já que ele é mal compreendido como um programa voltado para o ensino de linguagem de programação para crianças. No entanto o ambiente criado pelo programa no computador tem implicações muito superiores do que esta visão deformada pode fazer transparecer. LOGO é uma poderosa ferramenta educacional que visa o amadurecimento dos processos cognitivos do estudante, sedimentando uma base importante para a aquisição dos conceitos científicos, alvo do ensino de ciências. Mas, também, da mesma forma como foi a preocupação dos construtores do LOGO, o ensino de ciências deve ter uma mão dupla: de um lado a compreensão de conceitos que são do domínio da ciência profissional, do outro, o próprio aprendizado destes conceitos científicos deve favorecer ao desenvolvimento dos esquemas superiores da inteligência, na direção 17

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Introdução

de um encontro com as funções maduras do pensamento do homem adulto de ciências. Então, o projeto LOGO, serve como modelo, é um dos ambientes de aprendizagem e representa um dos referenciais teóricos principais deste trabalho. O professor de ciências, na medida das possibilidades da sua escola, deve se sentir incentivado a conhecer e utilizar o LOGO com seus alunos, com as perspectivas aqui assinaladas. O segundo capítulo trata da importante obra de Celestin Freinet. O interesse imediato é resgatar o trabalho deste educador quanto a concepção de construção do espaço escolar, bastante revolucionária até para os padrões que existem hoje, e que poderá servir de base quando for possível ou necessário operar uma modificação radical que substitua toda a nossa visão atual da escola. De qualquer forma, enquanto estas condições não existem, o educador consciente e aflito com a falta de recursos de sua escola, poderia caminhar nesta direção buscando observar os recursos que poderiam ser reivindicados como sendo “anexos” do prédio escolar e que, por ventura, possam existir na área de sua comunidade (ou possam vir a existir, partindo das iniciativas desta mesma comunidade). Estes recursos seriam os playgrounds, as bibliotecas infanto-juvenis, entre outros, cuja modificação, da forma como será proposta, deverão ser muito úteis para os objetivos educacionais que se pretenda na linha dos ambientes de aprendizagem. O capítulo três faz uma análise no espaço do playground. A modificação no play-ground conta hoje com notáveis trabalhos que o reconstróem na perspectiva de servir ao ensino de ciências. Um dos melhores exemplos pode ser o trabalho do Museu de Astrononia do Rio de Janeiro e é recomendável que seja conhecido e utilizado como modelo; a referência a esta obra pode ser encontrada no capítulo 3. O Museu de Astronomia do RJ, em si, já se enquadra em vários pontos defendidos aqui e poderia ser utilizado pelas escolas de sua circunscrição na busca de construção dos seus próprios ambientes de aprendizagem. As exposições didáticas são preocupação do capítulo 4. Este ambiente já é bastante explorado e a discussão conduz às

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maneiras de se passar de um ambiente onde a interação do usuário é pequena, ou nenhuma, para uma situação onde a interação seja grande de modo a permitir que todas as possibilidades educacionais pretendidas sejam atingidas. Em particular, aponta para a necessidade de direcionar estes ambientes para a construção do pequeno-museu de ciências, onde duas componentes de aprendizagem se encontrariam, permitindo uma reconstrução do conhecimento científico e uma reconstrução da história da ciência através da reprodução dos objetos históricos que contribuiram para o desenvolvimento destas áreas. Isso levaria, necessariamente, a uma pesquisa que visasse reunir imagens e descrições que possibilitassem a reprodução destes objetos. Essa pesquisa, além de resultar em uma atividade prática é, também, uma leitura, no sentido estrito, de obras no original ou do trabalho dos pesquisadores em história da ciência, cujo bom resultado pedagógico seria incontestável para os estudantes e professores. No penúltimo capítulo é apresentada uma descrição dos laboratórios de demonstrações, representado pelo que ficou conhecido como Prateleira de Demonstrações do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Este laboratório paulista vem sofrendo modificações no seu espaço físico e gerencial que o aproximam do que é defendido neste trabalho. Da mesma maneira que nas exposições didáticas, os laboratórios de demonstrações devem permitir uma maior interação dos usuários com o seu acervo. Neste caso particular, um destaque para a possibilidade da montagem dos experimentos deve ser oferecida aos visitantes, como uma aproximação do que é melhor vivenciado quando, para além da montagem, todo o trabalho de construção do experimento é executado pelo aluno. Na nova Prateleira, alunos e professores receberão atenções diferenciadas. Enquanto os estudantes são recebidos no laboratório de demonstrações, os professores são convidados a conhecer a Experimentoteca-Ludoteca e desenvolver atividades que poderão ser reproduzidas pelos seus aluno, numa interessante ação multiplicadora dos alcances da Ludoteca.

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Introdução

No último capítulo, veremos uma breve descrição das possibilidades de atuação do projeto Experimentoteca-Ludoteca, coordenado pelo professor Norberto, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Para o professor interessado na implantação dos ambientes de aprendizagem, este seria o ponto de partida. Em essência, da maneira como esta proposta é colocada, todos os vários ambientes são parte integrante da Experimentoteca-Ludoteca e estão sob sua responsabilidade de gerenciamento. A razão disso não é clara e é provável que sua compreensão transcenda a leitura deste trabalho; no entanto, é possível adiantar que sob as asas da Ludoteca, os vários ambientes de aprendizagem caminham com um objetivo claro quanto a métodos e fundamentos educacionais. O grande trunfo da Ludoteca é a ênfase à possibilidade da pesquisa espontânea do estudante, permitindo uma redescoberta ou, como mínimo, uma reconstrução do conhecimento, apoiada na montagem ou construção dos experimentos, com materiais de fácil acesso, possibilitando uma aproximação destes vários ambientes das técnicas existentes no ambiente do LOGO. É difícil falar em método, mas é preciso, uma vez que existe, por uma grande parte dos professores, um certo clamor pela existência dele. É difícil porque nem sempre é possível a sua existência ou quando, como agora, ele é combatível enquanto for entendido como uma receita de procedimentos que isentaria o professor de responsabilidades por sua utilização. O método deve existir, se possível; no entanto, é preciso advertir que a refência ao método é uma questão mais retórica que verdadeira; ou quando muito, o método das construções tem alcance bem restrito e sua aplicação não tem maiores efeitos se não se entender a proposta com um todo, que é mais confundível como pautas para uma discussão mais profunda que se espera haver nos destinos da educação. Nós podemos ensinar e aprender diversas técnicas mas, até hoje ninguém conseguiu ensinar alguém a ser criativo, e é essa a maior bagagem que o professor precisa carregar. Finalmente, deve ser relevado o excesso de referências aos projetos desenvolvidos na Universidade de São Paulo, uma vez

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que foi ali que o autor desenvolveu seus estudos de graduação e pós-graduação. Mas, é claro também que, isso confessa uma certa ignorância sobre outros projetos afim, relizados em outras localidades, o que o autor lamenta muito. Posto assim, fica a esperança de que este trabalho de alguma maneira contribua para o ensino de ciências em nosso pais e sirva ao professor em exercício, de imediato, como algum apoio às suas atividades profissionais quotidianas.

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Introdução

Capítulo 1 LOGO e a Idéia Original Meu interesse por computadores em educação surgiu de uma feliz coincidência no início do meu curso de mestrado. Por uma questão fortuita, indicaram-me para um trabalho como professor de computação em uma pequena escola do Pacaembu. Não era nada excepcional, mas eu podia contar com uma salinha com quatro computadores PC-8088 (numa das primeiras configurações deste micro-processador: velocidade de 8 MHz, sem disco-rígido). O que tornava esta oportunidade vantajosa, era o fato de a direção da escola ter aceitado meu pedido para trabalhar com, no máximo, um aluno por máquina. Antes, até três alunos por computador assistiam as aulas de duas horas. As aulas que viria a dar foram, então, reduzidas para 50 minutos. O número de turmas de alunos flutuava conforme a clientela da escola. Chegou a sete, com duas aulas semanais. Tínhamos turmas com alunos da sexta e sétima séries e outras, com alunos menores da primeira à quarta séries. O critério de divisão das turmas era tentar agrupar os alunos segundo suas idades. Das turmas que permaneceram razoavelmente fixas durante o ano. Houve duas de primeira série (7 anos), duas de segunda e terceira séries (alunos entre 8 e 9 anos), uma de quarta série (perto de 10 anos de idade), uma de sexta série (perto de 12 anos) e uma de sétima série (em torno de 13 anos). Durante o primeiro semestre, passamos tentando aprender a 23

24 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca usar o teclado do PC. O teclado era a interface usual de comunicação com o computador. Era minha idéia que, mesmo que fosse chato aprender isto, que pode ser chamado de datilografia, mais tarde poderíamos colher melhores frutos, que viriam da facilidade em digitar mais “fluentemente” os comandos para a máquina. Quando, inicialmente, examinei a sala de micros para ver do que poderia dispor, encontrei numa caixa alguns disquetes com processadores de texto (uma das primeiras versões do WordStar, em particular) e outros tantos com gravações de video-games. Soube então, que o professor anterior permitia aos alunos o uso de jogos-eletrônicos durante as aulas. Esta não era uma idéia que me parecesse desagradável, pensei em continuar a fazer isto. O que reparei era que não podia dispor de muita coisa com aquelas cópias de programas que estavam ali. Fui, com um colega, que tinha a função de coordenador da escola, até uma loja de share-ware existente num prédio da Av. Paulista. Não é muito o que se pode fazer com os catálogos deste tipo de loja. Não é possível ver em funcionamento nenhum dos títulos e, tudo que você pode contar é com alguma boa dose de intuição. Estes programas de share-ware estão disponíveis, hoje, às centenas de milhares para quem dispõe de um acesso à rede Internet; não era o meu caso, na época. Apesar da dificuldade, levamos seis disquetes com cópias de mais de uma dezena de programas. De todos estes, consegui usar apenas um e nada mais . . . Exatamente um programa que serviria para treinamento do uso do teclado do PC; tinha o nome indicativo de PC fast type. Os alunos, principalmente os pequenos das primeiras séries, chegavam ansiosos para as aulas de computação. Geralmente fazendo muita arruaça, coisas que se observam naqueles instantes depois do sinal para a saída do recreio. Eu tentava corresponder a estas expectativas distribuindo o horário de aulas com um período para o exercício do teclado e outro para os video-games. É claro que é um pouco desconfortável ver como estes jogos eletrônicos são, à primeira vista, imbatíveis quando se quer despertar o interesse de crianças e adolescentes. É possível imaginar-se o

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que seria dos materiais pedagógicos se a educação fosse capaz de oferecer atrativos aos homens responsáveis por estes jogos eletrônicos e colocar as suas habilidades, talento e criatividade à seu serviço. Ouvi muitas críticas a respeito da ação dos video-games sobre as crianças. Uma que pode estar mais perto de apontar um aprimoramento, isento de algum medo conservador sobre a invasão do computador na vida das pessoas, foi a que apontava que os jogos eletrônicos eram limitados por estarem obrigados ao uso da lógica muito restrita das linguagens de programação. Observando os jogos-eletrônicos e como as crianças rapidamente adquirem um domínio sobre os seus desafios, vê-se que algumas sequências de sim/não, se-então-senão, etc, são insuficientes e perigosamente simplificadoras num ambiente onde se quer fazer valer a criatividade. Porém, estas limitações correspondem ao tipo de computador que está disponível hoje, a preços acessíveis. O quadro poderá ser diferente num futuro próximo, com o barateamento dos computadores capazes de processar diferentes tarefas ao mesmo tempo, os chamados computadores paralelos, ou com os recursos das modernas work-stations no computador pessoal. Esta última condição já começa a acontecer. Existem configurações do Macintosh que se aproximam muito dos recursos das modernas work-stations (possibilidades multi-media, grande capacidade de armazenamento de dados e rapidez no processamento de imagens); porém, estas máquinas não custam menos que US$ 12.000. Um PC, com processador pentium ("velocidade” de 100 MHz) com placas que permitem processar som e imagens, mais um drive para CD-ROM, custa hoje algo perto de US$ 4.000; no entando, ainda está muito longe do desejado, principalmente pela lentidão no processamento de imagens e por um preço, ainda elevado. Com o aumento da capacidade e, principalmente, da velocidade de processamento dos computadores pessoais, será possível o uso de recursos de inteligência artificial, comuns nas modernas work-stations. Isso ainda não é possível a baixo custo, como vimos. Mas, o que já acontece em larga escala é o uso do que é

26 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca conhecido como programação voltada para o objeto. Ela permite programas que não precisam seguir sempre o mesmo fluxo de instruções, podendo saltar de um bloco a outro segundo a ação do usuário. Na outra forma mais usual de programação (Programação seqüencial), os passos criados no programa são fáceis de memorizar e a lógica formal mais banal fica exposta, levando a criança que usa o jogo a ser induzida a desenvolver modos de raciocínio tão pobres como estes a que se está obrigado a colocar nestas máquinas computadoras. Esta vantagem da programação voltada para o objeto, por si só, já garante ferramentas de programação com ganhos fundamentais que permitem a criação de uma lógica mais elaborada para ser usada em programas mais criativos. E é aqui que quero tentar resgatar uma das experiências mais fascinantes já realizadas para o relacionamento entre computadores e a educação: o projeto LOGO. Meu primeiro contato com o LOGO não foi direto. Eu ouvira falar dele como sendo uma linguagem de computador para crianças. Durante as férias escolares de julho de 1991 eu comecei a me preparar para usar o LOGO com os meus alunos, no reinício das aulas, nos primeiros dias de agôsto. Consegui, inicialmente uma versão em inglês do que se parecia com as descrições do Apple Logo que vi em algum livro 1 , muito parecida com a versão do MIT, que era o que procurava. Recebi uma cópia de uma versão do MLogo, em português, mas perdi-a, acidentalmente. Com a perda, tive que usar a versão em inglês e acabei me convencendo de que é desnecessário trabalhar com estas versões em outros idiomas que não o inglês, já que as crianças, para quem, em geral, se destinam estas versões, rapidamente assimilam a tradução mental dos comandos e passam a utilizá-los com total transparência. Por outro lado, é preciso levar-se em conta que todas as principais linguagens de alto nível para programação de computadores, aparecem com comandos em língua inglesa. Já que, como vimos, é perfeitamente possível ensinar-se às cri1

LOGO II, Palavras e Listas; Fernanda de V. S. Mendonça e Frederico A. M. Eingenher, McGraw-Hill, 1989

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anças a utilizar uma linguagem de computador com palavras de comando em inglês (ou qualquer outra língua), não há maiores justificativas para se colocar uma etapa inicial onde a linguagem de programação aparecesse em português. Isto, ao invés de auxiliar, poderá dificultar o aprendizado de outra linguagem em inglês. Não é nada fácil falar-se sobre LOGO, de uma maneira breve. Ainda mais quando a idéia contida dentro dele acabou por influenciar incisivamente o meu trabalho posterior. Existem inúmeras referências escritas a respeito de LOGO. Este capítulo irá recorrer a apenas duas delas. A primeira, e principal, é o livro que Seymour Papert escreveu sobre o tema 2 . Ninguém melhor que o criador do projeto LOGO, para falar sobre o assunto. As suas idéias me impressionaram muito positivamente. A outra referência é o livro de José A. Valente e Ann B. Valente 3 . Este último, ajudou-me a compreender diversar aplicações em LOGO e, em particular, mostrou-me uma implantação da Dina-turtle que foi muito útil na interpretação de alguns capítulos decisivos do livro de Papert para aplicações de LOGO em Física. É preciso recorrer a um primeiro experimento pessoal do menino Seymour, para se entender as idéias do pesquisador adulto. Também porque este caso, que vou transcrever logo abaixo, foi como uma pedra de toque de tudo que aprendi com suas idéias. Antes dos meus dois anos de idade eu já me interessava bastante por automóveis. Os nome das peças dos carros eram parte substancial do meu vocabulário, sentia-me muito orgulhoso por conhecer os componentes do sistema de transmissão, a caixa de câmbio e especialmente o diferencial. Isso aconteceu, é claro, muito antes de eu entender como as engrenagens funcionavam; mas assim que passei a conhecê-las, brincar com elas passou a ser meu passatempo favorito. Adorava girar objetos uns contra 2 3

LOGO: Computadores e Educação. 2.a edição. Ed. Brasiliense. 1986. Logo: Conceitos, Aplicações e Projetos. MacGraw-Hill. 1988.

28 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca os outros em movimentos circulares e, naturalmente, meu primeiro “projeto de construção” foi um sistema rudimentar de engrenagens. E, Papert continua, mais à frente: Acredito que trabalhar com diferenciais fez mais por meu desenvolvimento do que qualquer outra coisa ensinada na escola primária. (...). Eu via as tabuadas como engrenagens, e meu primeiro contato com equações de duas variáveis (por exemplo, 3xX4y = 10) evocaram imediatamente o diferencial...4 Papert destaca em seguida a importância de se ver a aprendizagem com uma estrutura genética: como a aprendizagem está condicionada às experiências pessoais, ao conhecimento prévio que cada pessoa carrega. Isso dito à maneira particular com que Piaget desenvolveu suas idéias sobre aprendizagem; destacando a importância de Piaget como epistemólogo: do homem adulto buscando entender o pensamento de outros homens adultos envolvidos na produção da ciência, a partir de sua gênese. É assim que se pode entender Piaget envolvido com testes em crianças. O que é determinante no seu trabalho é a busca da gênese do pensamento do homem adulto de ciências. Se, por uma questão de método, ele preferisse usar, num certo número de ciêntistas de destaque, a hipnóse regressiva, comum no início da psicanálise 5 e buscar extrair as suas conclusões a partir da memória de infância destes cientistas; provavelmente, neste caso, não veríamos Piaget envolvido com as crianças. Pode-se dizer, por analogia, que Piaget nos testes de infância é, também, um acaso da escolha do método de análise. E aí, pode-se entender que o Piaget educador é muito mais um sub-produto do epistemólogo. Aqui parece estar uma confusão muito comum 4

Ops. cit., pgs. 12 e 13. E, é verdade, esta técnica foi logo abandonada por Freud, por não apresentar resultados duradouros no processo de cura de seus pacientes 5

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na área de educação. Muitos educadores tentam vender a idéia de um método Piaget 6 , quando ele nunca existiu, nem como preocupação. O que esta contido no caso das “engrenagens” de Papert é algo tão poderoso que foi capaz de incitar a criação do projeto LOGO. Uma incrível proposta para o que poderá ser a educação do futuro. É deste modo que se pode dizer que as “engrenagens” se transformaram em LOGO, foram a sua gênese; bastaria ao LOGO ser um jogo de engrenagens, como um diferencial de carro, para que ele se definisse completamente. O que há de não semelhante entre um diferencial e um programa LOGO nas mãos de uma criança, é precisamente este último objeto: as mãos da criança. O fato que torna o diferencial em algo cujo interesse pode não atrair a atenção de diversas crianças, transforma-o de um fascinante objeto de aprendizagem em um frio conjunto de peças de automóvel. Desta forma, não serve mais como algo capaz de poder provocar a gênese de algum conhecimento futuro; já que, não serve à criança como uma fonte de experimentação por esta falta de algum interesse, ou prazer. LOGO nasceu com esta preocupação de ser flexível o suficiente para atrair o interesse de um número, o maior possível, de crianças, com a intenção de serví-las como serviram as engrenagens a Papert. Uma das idéias principais, em LOGO, é a oportunidade de se poder construir soluções para um certo micro-mundo particular que poderão servir de ponto de partida para um solução de problemas do mundo real onde haja semelhança com o problema original no micro-mundo. Esta é uma das engrenagens de muita importância nas idéias pedagógicas de Seymour Papert. Para justificar esta “engrenagem”, Papert apóia-se nas idéias de George Polya 7 , que dá um especial valor aos métodos genéricos na solução de problemas. Devem ser destacados a heurística da mesma maneira que o conteúdo. De posse disso, é quase sempre possível, quando estamos diante de um problema 6

Ou o método Paulo Freire, como um outro exemplo. Ver A Arte de Resolver Problemas, G. Polya, Ed. Interciência, 1986. 7

30 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca novo, encontrar um caso semelhante do qual possamos partir em busca de uma nova solução. O grau de vezes em que estas coisas acontecem, depende da experiência pessoal de cada um. Uma ação pedagógica atraente seria aquela que pudesse fazer com que as coincidências ocorressem o mais freqüêntemente possível. A esta idéia, Papert acrescentou o que ele chama de princípio de Polya com o enunciado: Para resolver um problema procure algo semelhante que você já conheça e compreenda. Há três espaços nítidos em LOGO, dois serão tratados aqui. Um deles refere-se a Tartaruga geométrica. Com ele é possível orientar o deslocamento de um ponto luminoso 8 na tela do computador através de comandos que fazem parte da linguagem da tartaruga. À tartaruga esta acoplada uma caneta que tem vários estados. Com a caneta “abaixada”, a tartaruga deixa um traço na tela, marcando o seu deslocamento. Imprimindo vários comandos de deslocamento à tartaruga, vão aparecendo na tela desenhos com os mais variados motivos. Inicialmente, as crianças fazem uma exploração livre para uma familiaridade com a tartaruga e sua linguagem. Um dos meus alunos de 7 anos, o Marcos, divertia-se muito mandando a tartaruga dar uma quantidade fantástica de passos para a frente, depois de fazer uma pequena rotação para um dos lados. A tartaruga ia em direção à parte alta da tela deixando um traço oblíquo, desaparecia em cima e reaparecia na parte baixa para refazer o mesmo caminho, numa linha paralela, alguns milímetros separada da anterior. O número de passos que o Marcos imprimia à tartaruga era sufi8

No início do projeto, à tartaruga era um objeto cibernético, semelhante a um robô com a forma de um hemisfério. A profa. Maria Denise S. Ferreira, que trabalhou em escolas de Paris, contou-me que teve a oportunidade de observar crianças nas escolas francesas interagindo com este tipo de tartaruga. Na busca de redução dos custos, este objeto foi substituído pelo ponto de luz na tela de vídeo. Aqui no Brasil, pude observar algumas montagens com o que ficou conhecido como Lego-Logo, que permite interligar, através de uma interface de computador, o programa LOGO a construções realizadas com blocos de montar; mas isso dá um resultado desajeitado, com pouco grau de liberdade, que não traduz os movimentos da tartaruga do LOGO.

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ciente para ela estar nesta atividade por alguns minutos 9 e no final via-se a tela preenchida por várias linhas paralelas. Neste processo, Marcos foi experimentando aumentar cada vez mais o número de passos que a tartaruga deveria dar. Começou com algo perto de 100 até chegar ao limite de 9.999, 10 isto o fascinou! Papert, no seu livro, mostra alguns casos de recursão infinita e destaca o fascínio que exerce sobre as crianças a idéia de procedimentos que nunca terminam. Tenho certeza de que, não fosse o seu limite pessoal sobre o conhecimento da linguagem da tartaruga, Marcos teria preferido fazer a tartaruga dar infinitos passos para a frente. Gostaria de saber quanto tempo ele prenderia a sua atenção sobre a árdua tarefa da tartaruga em ter que terminar de dar infinitos passos. O micro-mundo, onde está mergulhada a tarturuga geométrica, vai ganhando todo o seu contorno à medida que novos comandos são aprendidos e a construção de procedimentos vai sendo possível. À medida em que a criança constrói seus próprios procedimentos o micro-mundo da tartaruga incorpora outras sintaxes particulares, que não fazem parte da linguagem standard. É a mesma função que têm as bibliotecas de sub-rotinas em outras linguagens. A diferença aqui fica por conta de um componente afetivo forte. Ao criar um procedimento em LOGO, o programador esta buscando “ensinar” à tartaruga a fazer algo novo. A tartaruga pode ser tratada como um aprendiz interessado. 11 Por exemplo, a tartatuga inicial não tem nenhum 9

A pequena velocidade da tartaruga é que lhe valeu o seu nome. Se fosse só pela tartaruga luminosa, da tela dos computadores pessoais de hoje, muito mais velozes, ela seria chamada de outra forma. Vi algumas versões de LOGO onde é possível trocar por um foguetinho, o sinal que indica a posição da tartaruga. Mas, existe um certo atrativo em se poder trabalhar com as velhas versões de LOGO em computadores que permitem a escolha da freqüência original de 8Mhz para o relógio do processador e acompanhar o vagar da tartaruga e seu rastro lento deixado na tela. 10 Na realidade, o limite de passos com a tartaruga é maior, mas este é o limite com a primeira casa da dezena de milhar. 11 Em LOGO, quando um comando estranho à linguagem é utilizado, o usuário recebe uma mensagem do tipo “Você não me ensinou a fazer ’tal coisa’...”. Em outras linguagens, estes casos são tratados, friamente, como

32 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca comando simples capaz de realizar um quadrado. A criança sabe como, através de uma lista de comandos primitivos, fazer a tartaruga se mover nas bordas de um quadrado, imaginado previamente. Mas, ainda aqui, é uma lista de comandos mais ou menos extensa. Depois que ela aprende a lidar com os procedimentos, pode, com uma só palavra (quadrado, p. ex.) realizar o que só era possível com a lista de antes. E é neste ponto que todo o poder educacional do LOGO aparece. Enquanto o trabalho em LOGO se desenrola, a tartaruga passa a ter características dadas pelas novas listas de comandos, gerada pelos procedimentos. A tartaruga passa a apresentar habilidades particulares dadas por cada usuário e diferentes entre si. As crianças podem trocar procedimentos, da mesma maneira com que se trocavam figurinhas, há bem pouco tempo. A construção dos procedimentos traz, no seu processo, uma riqueza muito grande de situações. Aqui há realmente uma heurística, capaz de servir de modelo para outras situações futuras. Antes de começar a escrever a lista de comandos para compor o novo procedimento, já existe previamente um objetivo a ser atingido ("ensinar” à tartaruga a desenhar o quadrado, p. ex.). Isso é decisivo para o que é conhecido como processo de debugging, que tem uma importância grande para Papert. Se, terminada a lista de comandos, a criança vê que a tartaruga não realiza o que foi imaginado, diz-se que ocorreu um bug. Isto é essencialmente diferente de dizer que ocorreu um erro. Com a idéia de erro, a criança tende a descartar completamente o que já foi feito, sem nenhum proveito. O debugging estimula na criança à procura, dentro do que já foi feito, dos pontos que estão alterando a realização da idéia original. Muitas vezes o bug cria formas inusitadamente agradáveis, originando um outro procedimento aproveitável, diferente, significativamente, daquele inicial. É aqui, no debugging, que a criança é transportada para uma situação, muito rara em nossa sociedade, que é a oportunidade de agir como epistemólogo; trabalhando, neste caso, com o seu próprio pensamento. Na procura do bug, ela se encontra Erro de sintáxe.

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com o que foi o seu pensamento original, no objetivo que iniciou todo o trabalho (ensinar à tartaruga a construir um quadrado, neste nosso exemplo). Pensa se não está na origem o surgimento do que impede o procedimento de se realizar; e quando não, o que o originou; e assim por diante. Na busca do bug, a criança se depara com a sua maneira especial de pensar e está diante da descoberta sobre os modos como ocorre o seu próprio aprendizado. Em poucas palavras, ela aprende a aprender. Este clima, tão favorável ao aprendizado, é possível, num ambiente LOGO, graças à uma disposição coletiva de abertura para o aprendizado. Não só os alunos ocupam a posição de aprendizes, mas, também o professor está, francamente, na maior parte do tempo, aprendendo com as várias atividades. É muito diferente daqueles ambientes educacionais, tão comuns nas escolas tradicionais, que estimulam o mito do professor sabe-tudo. Um outro exemplo desta riqueza do LOGO está naquele caso em que o bug gerou um procedimento aproveitável. Aqui há uma boa oportunidade para se aprender novas idéias, a partir de um ’acidente’. Esta é uma situação muito próxima daquelas enfrentadas pelos homens adultos de ciência. Agora, uma vez que a idéia de poder trabalhar com procedimentos foi analisada, é possível entrar num outro campo, comum nas linguagens de computador, que é a programação estruturada. Em geral, diante de um problema complicado, é possível considerar resolvê-lo em um único bloco. No entanto, é sempre melhor poder dividir a solução em partes menores, mais ou menos independentes entre si, que, se bem organizadas, de tal forma que possam entrar em ação cada uma no seu devido tempo, constróem a solução esperada. Num procedimento corriqueiro, como é o subir uma escada, não é difícil ver uma boa ilustração de como se fazer uma programação estruturada. A idéia aqui é ver que uma linguagem para computadores é, também, boa para as ações corporais. Para um bípede subir uma escadaria típica, poderíamos agir assim: • SUBIR-ESCADA:

34 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca 1. APROXIME-SE DA ESCADA. 2. APÓIE UM DOS PÉS SOBRE O 1o DEGRAU. 3. ERGA-SE SOBRE O PÉ APOIADO. 4. APÓIE O OUTRO PÉ SOBRE O PRÓXIMO DEGRAU. 5. VOLTE PARA O CASO 3 Temos, no exemplo anterior, um procedimento para subir uma escada de infinitos degraus. Nesta situação, é preciso considerar cada uma das quatro primeiras linhas como um subprocedimento independente e que precisa de vários comandos internos para realizar a tarefa imaginada. Cada um destes subprocedimentos fazem parte do procedimento principal SUBIRESCADA e são por ele controlados. Nós podemos melhorar a estrutura deste procedimento, nomeando cada uma das linhas com uma forma mneumônica e incorporando as últimas três linhas num único sub-procedimento de nome SUBA, que ficaria assim: • SUBIR-ESCADA: 1. APROXIME 2. PRIMEIRO-DEGRAU 3. SUBA O procedimento SUBA seria: • SUBA: 1. ERGA-SE 2. PRÓXIMO-DEGRAU 3. SUBA

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Aqui o SUBIR-ESCADA “chama” o sub-procedimento APROXIME, que é o que garante que haverá uma escada imediatamente à frente para ser subida. Quando APROXIME encontra esta condição, ele se encerra, e a execução continua a partir da próxima linha que aciona PRIMEIRO-DEGRAU. Este sub-procedimento garante que um dos pés estará apoiado no 1o degrau. Na próxima linha, do procedimento principal, o subprocedimento SUBA é “disparado”. Agora ocorre algo interessante. O sub-procedimento SUBA é, como o procedimento principal SUBIR-ESCADA, composto de outros dois sub-procedimentos: ERGA-SE e PRÓXIMO-DEGRAU que irão garantir que o outro pé estará apoiado no próximo degrau e o bípede irá erguer-se sobre este pé de apoio, aguardando a próxima instrução. A próxima instrução é SUBA que representa um caso típico de recursão onde um procedimento é “chamado” dentro dele mesmo. Neste caso, é um exemplo curioso de recursão infinita, que faz com que o ato de subir os degraus contíguos de uma escada não termine, como resultado da repetição infinita dos procedimentos ERGA-SE e PRÓXIMO-DEGRAU. Não é difícil ver que a repetição infinita pode ser retirada colocando-se uma condição antes do último comando recursivo SUBA (última linha do procedimento SUBA). Esta condição fará com que a linha recursiva só seja acionada enquanto o final da escada não for atingido. A elaboração de um procedimento para subir uma escada é um caso que ilustra um exemplo de como ocorre a aprendizagem sintônica. Este termo é emprestado por Papert da frase “ego-sintônica” 12 , usada por Freud. Ela se diferencia da aprendizagem dissociada, mais comum nas escolas tradicionais. Num ambiente concebido para ser espaço de uma aprendizagem sintônica, as ações esperadas têm a ver com as expectativas que as pessoas carregam em si mesmas quanto aos seus gostos, metas, intenções, desgostos, etc. Isso visto pelo lado do seu eu pessoal; 12

Segundo nota do livro de Papert, este é “um termo usado para descrever instintos ou idéias que sejam aceitáveis ao ego, isto é, compatíveis com a integridade do ego e suas necessidades”. Ops. cit. pg. 87

36 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca mas também pode ser visto pelo lado corporal. Se fosse o caso de criar o procedimento SUBIR-ESCADA para, por exemplo, um robô bípede, a atitude mais esperada na etapa de elaboração dos procedimentos, sub-procedimentos e comandos necessários para realizar a ação pretendida, seria “brincar” de robô, mover o corpo como um robô; fazer-se passar por robô bípede e desse “faz-de-conta” extrair as lições necessárias para ensinar o nosso “aprendiz” a atingir a meta proposta. Nesse exemplo, encontraríamos uma sintonicidade corporal, que tornaria bastante agradável a criação do procedimento. Há também um outro aspecto no procedimento SUBIR-ESCADA que poderia ser destacado. Havia dito antes que era possível ver como a linguagem para computadores pode ser boa, também, para se aprender ações corporais. Subir escadas pareceria um bom exemplo mas, neste caso, é difícil de se imaginar alguém com qualquer dificuldade aqui, exceto o nosso imaginado “robô” bípede. A maior parte dos seres humanos assimila este esquema corporal, tão logo pára de engatinhar e se coloca em pé. Vejamos, de passagem, um outro exemplo mais abrangente: existe o caso de se querer aprender malabarismo. Ele é proposto por Papert no seu livro 13 , e nele podemos ver onde uma linguagem de sub-procedimento pode abreviar sensivelmente o tempo de aprendizagem. Mais do que o próprio procedimento, o que está em jogo é este tipo de estratégia no aprendizado; qual seja: o uso de conceitos de programação como uma linguagem descritiva 14 pode auxiliar muito o processo de aprendizagem e a razão disso está em que ele facilita enormemente o processo de debugging. O mundo da tartaruga geométrica do LOGO é muito rico e procurei, nas páginas anteriores, dar uma pequena idéia do que ele vem a ser. Existem alguns aspectos a mais que queria salientar. A tartaruga do LOGO guarda muitas semelhanças com o ponto euclidiano e uma semelhança geral com a sua geometria. Há algumas diferenças que podem ser notadas na forma com 13 14

Ops. cit. pgs. 138 e 139 Ops. cit. pg. 140

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que aparecem as circunferências em cada uma das geometrias. A circunferência em LOGO tem aquele aspecto da sintonicidade que foi comentado anteriormente. Para descrever essa circunferência é preciso realizar os movimentos corporais que qualquer um faria para andar sobre as bordas de um círculo: andar um “pouquinho” para a frente, virar um “pouquinho” para o lado, andar um “pouquinho” para a frente; e ir repetindo estes passos até voltar à posição inicial. Isso é bem diferente da circunferência na Geometria Euclidiana, que pode ser resumida como o lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um outro ponto. Para se descrever a circunferência basta um compasso ou uma equação do tipo (y − yo )2 + (x − xo )2 = R2 , já bem conhecida. Esta mudança com relação à Geometria de Euclides vem do fato de que, diferentemente do ponto euclidiano, a tartaruga tem uma orientação, um estado, além da posição. Essa característica permite os atributos de sintonicidade da tartaruga do LOGO. Não quer dizer que a tartaruga seja superior à Geometria Euclidiana, não é essa a discussão. Apenas, as particularidades da tartaruga do LOGO, servem para torná-la mais apropriada ao ensino de partes do conhecimento tão importantes como a Geometria Euclidiana. Tive o privilégio de ver o prof. Mário Schenberg, poucos anos antes de sua morte, em uma de suas palestras, logo depois de sua reintegração ao cargo de professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. O prof. Schenberg disse algo sobre o desenvolvimento da ciência que é muito intrigante. Para ele, a razão que fez com que a civilização chinesa não tivesse desenvolvido as ciências naturais é resultado do fato de que os chineses não tiveram uma geometria, como a de Euclides, desenvolvida. Ele sustentava que até uma certa época (provavelmente, até bem depois das viagens de Marco Polo), o nível de conhecimento do ocidente e do oriente eram equivalentes. O Renascimento tratou de alterar fortemente isso, em grande medida pelo desenvolvimento das ciências naturais no ocidente. Não é difícil de se verificar o quão importante foi a Geometria Euclidiana para Descartes e sua contribuição do pensamento analítico para a ciência em

38 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca geral; ou, para Newton e o cálculo diferencial, e este para a sua Mecânica. E outros tantos exemplos que poderíamos chegar à exaustão e não ter conseguido citar todos. A idéia aqui é mostrar que a tartaruga geométrica, que é tão boa para o estudo da geometria e da matemática, é, por esta análise da relação de dependência existente entre o surgimento da geometria e as ciências naturais, boa para o estudo da Física. Mas isso não é tudo acerca de LOGO. Falta-nos analisar uma outra área mais específica para esta tarefa: a dina-turtle. Vimos, anteriormente, como a tartaruga geométrica pode ajudar a compreensão do mundo euclidiano e o quanto ele é importante para a compreensão de um outro universo maior onde estão as ciências naturais. No nosso mundo cotidiano, deveríamos poder estar “vendo”, todo o tempo, as manifestações de umas outras entidades que formam o mundo newtoniano com sua Mecânica. Mas não é assim, tão evidente. A Mecânica de Newton pressupõe o conceito de pontos materiais, à semelhança dos pontos de Euclides mas com a diferença de que tais pontos além de uma posição no espaço devem ter variáveis de estado como massa e velocidade, ou, de maneira única, uma quantidade de movimento. A taxa de variação da velocidade no tempo leva-nos a uma outra grandeza importante que é a aceleração. De maneira geral, essa Mecânica é apresentada nos cursos de Física através de três princípios, conhecidos como as Leis de Newton: 1. Princípio da Inércia. 2. Princípio Fundamental da Dinâmica. e 3. Princípio da Ação e Reação. A primeira lei de Newton, ou o Princípio da Inércia, é também atribuída a Galileo, que foi o primeiro a enunciá-la claramente. Este princípio, em si, traz uma interessante discussão

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sobre o conflito entre os conhecidos pensamentos aristotélicos e copernicanos, fascinantemente sintetizado nos Diálogos de Galileo 15 . A grande contribuição de Newton, a este princípio, foi a introdução da idéia de força. Segundo o Princípio da Inércia, um corpo material só poderá mudar o seu estado de movimento (posição e velocidade) se estiver sendo exercida sobre ele a ação de alguma força externa. Isso tem como resultado, o fato de que se um corpo não estiver sob a ação de nenhuma força externa, só poderá estar em um de dois estados de movimento: repouso ou movimento retilíneo e uniforme (MRU). A segunda lei, determina uma relação matemática entre força, massa e aceleração. Comumente, aparece com a forma →



F= m a

Alguns autores salientam que a maneira correta de se apresentar esse princípio deveria seguir a forma →

dp F= dt →

que é como ele foi apresentado por Newton. 16 Entretanto, toda a questão aqui é ver que este mundo de Newton permite poucas oportunidade de se encontrar alguma experiência pessoal que possa ter alguma semelhança com um problema que esteja em foco, e servir de ponto de partida auxiliar na compreenção de tais leis. A presença do atrito, em qualquer tipo de movimento, independente do grau em que aconteça, elimina a possibilidade de se observar plenamente o princípio da inércia. Quanto à Segunda Lei, o que se deriva dela, nos trabalhos escolares, é algo que se confunde com mera matemática e que esconde toda a série de conhecimento físico, de grande importância, quer para a ciência e tecnologia, quer para o pro15

Ver Duas novas Ciências — Discorsi e Dimostrazioni Matematiche... — Galileo Galilei. Ched Editorial e Nova Stella - pg.173. 16 Veja o livro do mecânica do GREF.

40 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca cesso de construção das habilidades intelectuais, como destacam Piaget e outros colaboradores. 17 O que pode ser feito, para esse caso, é introduzir modificações na tartaruga geométrica de modo a aproximá-la de uma tartaruga newtoniana. Assim surgiu a dina-turtle. Para esta finalidade, além das variáveis de posição e direção, a tartaruga deveria ter uma variável para a velocidade e outra para a aceleração; desse modo, ela poderia se deslocar como certos pontos materiais da dinâmica newtoniana, seja em MRU ou com aceleração constante, como se estivesse sob a ação de uma força externa. Isso se consegue criando operadores do tipo MARQUEVELOCIDADE ou MARQUE-ACELERAÇÃO, através do uso dos procedimentos, já discutidos antes. Os resultados são muito interessantes, seja pelo aspecto lúdico dos desenhos que resultam do movimento da tartaruga, seja pelo aspecto de se poder simular partículas mewtonianas em movimento e as conseqüências excelentes que isso tem sobre o aprendizado da Mecânica, mesmo que seja apenas pelo aspecto fenomenológico. É exatamente aqui onde o ensino tradicional deixa uma lacuna incomensurável. Os programas de Ciências 1o e 2o graus, deveriam dar mais ênfase às questões conceituais e à experimentação em cada fenômeno estudado e deixar para as aulas de matemática a tarefa de sedimetar as ferramentas de cálculo necessárias à descrição matemática das leis e da análise quantitativa dos fenômenos que aparecem no estudo da Física, por exemplo. Em relação à experimentação é preciso destacar que ela não deve se confundir com uma aula de culinária, onde os alunos devem se limitar a seguir uma série de roteiros pré-estabelecidos a fim de confirmar dados já obtidos. Tal metodologia obstrui o caminho da descoberta pessoal . . . Aqui é importantíssimo transcrever algumas palavras de Piaget: A visão otimista, bastante otimista mesmo, que nos forneceram nossas pesquisas sobre o desenvolvimento 17

Ver, p. ex., O CONHECIMENTO FÍSICO NA EDUCAÇÃO PRÉESCOLAR implicações da Teoria de Piaget. Constance Kamii e Rheta Devries. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.

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das noções qualitativas de base que constituem ou deveriam constituir a infra-estrutura de todo o ensino científico elementar leva portanto a pensar que uma reforma de grande profundidade nesse ensino haveria de multiplicar as vocações de que está a carecer a sociedade atualmente. Isso, no entanto, quer nos parecer, dentro de determinadas condições, que são indiscutivelmente aquelas de toda pedagogia da inteligência, mas que parecem sobremodo imperativas nos diversos ramos da iniciação às ciências. A primeira dessas condições é naturalmente o recurso aos métodos ativos, conferindo-se especial relevo à pesquisa espontânea da criança ou do adolescente e exigindo-se que toda verdade a ser adquirida seja reinventada pelo aluno, ou pelo menos reconstruída e não simplesmente transmitida. 18

Há aspectos na dina-turtle e em LOGO, de maneira geral, que são difíceis de serem traduzidos sem que se possa ver os seus resultados diretos, possíveis no computador, mas que estão plenamente de acordo com estes princípios de Piaget para uma reforma de grande profundidade no ensino. Lembro-me de ter feito a minha primeira implementação da dina-turtle, aproveitando as sugestões do livro de J. Valente, e lembro-me da impressão completamente favorável que causou o resultado do procedimento em mim e nos colegas para quem mostrei. É uma pena que naqueles seis meses em que trabalhei com o LOGO com aqueles meus alunos da escola do Pacaembu, não tenha podido mostrar-lhes este aspecto da tartaruga. Entretanto tenho lembranças compensadoras daquele trabalho. Para começar o segundo semestre daquele ano, havia pedido à coordenação pedagógica que fizesse algumas cópias de um trecho do livro de S. Papert, para ser distribuído aos alunos. Eram umas bonitas páginas descrevendo uma conversa hipotética entre duas crianças trabalhando com o computador 19 . As crianças, na história 18

Para Onde Vai a Educação? Jean Piaget; Livraria José Olimpo Editora, RJ, 1984, 8.a edição; pgs. 14 e 15. 19 Ver pgs. 103 a 119 do livro de Papert

42 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca de Papert, resolvem ensinar à tartaruga a desenhar uma flor. A história narra uma série de acontecimentos interessantes sobre o trabalho destas crianças imaginárias. Quando meus alunos já haviam aprendido o suficiente sobre a linguagem da tartaruga, procedimentos e programação estruturada, resolvi propor-lhes que fizéssemos o que estava sugerido naquelas cópias que havia distribuído. As crianças, no começo, não se animaram, mas assim que deram início às atividades, tiveram tamanho apego pelo que faziam que é difícil descrever. Foi fantástico ver como as coincidências com a história imaginária de Papert ocorriam: diálogos semelhantes, os mesmos bugs, etc... Mas nada foi mais fantástico do que uma outra coincidência mais geral com toda a idéia original do LOGO que ocorreu com aquelas crianças. Numa certa altura, quando elas estavam lá, preocupadas em fazer funcionar seus procedimentos, Renata, de 8 anos, virou-se para mim e disse:

— Tio, pela primeira vez na minha vida eu estou pensando!...

Não é preciso dizer da minha grata surpresa ao ouvir estas palavras. Renata não estava pensando pela primeira vez, é claro; mas aquele ambiente educacional havia permitido a ela se surpreender vendo-se a assistir os seus processos mentais internos. Ela se surpreendeu ao ver-se prestando atenção ao seu diálogo interno e à maneira particular com que ele se desenrolava. Renata teve esta oportunidade e eu outra: — Pela primeira vez na minha vida eu estava vendo, de maneira tão fantástica, uma teoria educacional ser corroborada...

Capítulo 2 Os “Cantinhos” de Freinet No capítulo anterior vimos um pouco do que é o programa LOGO e o alcance de suas aplicações educacionais. Papert sugeriu que o LOGO, mais do que ser uma idéia única implantantada no gênero, deveria servir como modelo para outros projetos e outras idéias. Minha modesta intenção, é seguir este conselho. Para além do próprio programa, o meu interesse era conseguir resgatar o fundamental do que está por trás daquele projeto: a idéia de Ambientes Educacionais. A idéia de ambientes educacionais pode ter uma interpretação ampla. Aqui, ela vem sendo tratada desde uma perspectiva construtivista. Entretanto, para dar-lhe corpo e torná-la menos genérica, é importante destacar as implicações que tem, para os ambientes de aprendizagem, a organização do próprio espaço, enquanto espaço físico; uma sugestão que vem da conotação mais imediata da palavra ambiente, que não se refere primordialmente a um lugar dentro de uma máquina como é o computador. Ouvi falar sobre o que é chamado de cantinhos de Freinet que são comuns nas pré-escolas francesas. Ouvi de pessoas conhecidas que estiveram nestas escolas, professores ou amigos; em especial, o aprendizado que me foi oferecido no curso brinquedos, jogos e brincadeira na pré-escola , ministrado pela professora Tizuko M. Kishimoto, na Faculdade de Educação da 43

44 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca USP. A imagem que formei destes relatos, mostrava uma ampla sala de aula com pequenas áreas (cerca de 4m2 ), que ficavam junto a uma das quatro paredes, com um arranjo especial do espaço onde móveis, livros, brinquedos e outros objetos estavam disponíveis segundo um tema pré-estabelecido 1 . Estas áreas recebiam o nome de cantinhos. Havia, então, o cantinho de arte, cantinho de música, de leitura, ciências, ... 2 As crianças poderiam circular por estes diversos espaços, explorando objetos e sugestões que eles pudessem ter. Esta imagem, permitiu-me encontrar um acoplamento ótimo entre a idéia do LOGO, enquanto um arranjo para um ambiente computacional, e outros tantos arranjos feitos sobre o espaço físico que possibilitassem o aparecimento de situações de aprendizagem que são fartas no LOGO: a redescoberta, a programação estruturada, a elaboração e reelaboração de projetos, os bugs, a fascinação e tantas outras coisas... É como retornar à situação das engrenagens de Papert e à garagem da sua casa de infância, tentando reunir uma profundidade de arranjos e coisas, capaz de, não no seu conjunto, mas em alguma de suas partes, encontrar, no maior número de casos possível, uma correspondência biunívoca entre objeto e criança interessada no objeto. Quando você observa crianças nas pré-escolas, por menor que seja a fartura de coisas com as quais elas possam interagir, elas sempre estabelecem, após um breve tempo de ’disputas’, um comum acordo sobre a posse dos diversos objetos, ou sobre quais são as habilidades de cada um. Assim é com um jogo de pneus velhos, ou com o lugar colorido do gira-gira 3 , ou sobre aquele que vai ser o impulsionador do gira-gira por fazer isso com mais habilidade. Este conjunto de coisas estabelecidas vem, por certo, de uma empatia 1

Nas escolas de construção mais recente, os arquitetos trabalharam de modo a criar desníveis e outras técnicas para ressaltar a idéia da divisão espacial, segundo as diversas finalidades de uso. 2 Foi numa destas escolas que fiquei sabendo existir um cantinho com o LOGO e a tartaruga cibernética, como um robô na forma de um hemisfério. 3 Aparelho de playground constituido de um anel horizontal de ferro e madeira que pode girar livremente sobre um eixo vertical.

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que cada criança tem por certas peças ou por certas atividades e é um fator de enorme ajuda na construção de ambientes de aprendizagem. Estudando algumas obras de Celestin Freinet 4 , pude saber que, na verdade, os cantinhos mereciam outra denominação. Tratavam-se de amplos espaços, que iam deste uma oficina gráfica, ou um laboratório de ciências, contíguo à sala de aula, propriamente dita; até os espaços de natureza que poderiam atingir as dimensões de uma fazenda, se as condições o permitissem. Eram, de fato, Cantões... nada parecidos com pequenos recortes feitos na sala de aula tradicional. Isso, esta visão do espaço educacional enquanto grandes áreas, máquinas e objetos à disposição da escola, é que traz o caráter de revolucionárias às idéias de Freinet sobre a educação. Freinet idealizou a nova escola do século XX, a escola do futuro na referência do seu tempo. Já estamos à cerca de cinco anos para o início do próximo século, que marca o fim de mais um milênio da era cristã e as idéias deste educador não ficaram realizadas, na proporção imaginada, nem no passado, nem hoje, quando já nos encontramos no futuro da sua perspectiva. Mas, nada disso diminui o seu mérito que, sem dúvida, contém um enorme esforço, sinceramente engajado numa luta de radical melhoria da escola. Olhando as escolas existentes, da mais modesta escola pública rural à mais suntuosa escolada privada, a escola de Freinet é, em aparência, uma escola cara, dispendiosa. Veja o que Freinet propõe sobre o Plano do edifício escolar: A Escola será uma oficina de trabalho simultaneamente comunitário e especializado. Deverá pois comportar: — uma sala comum, mais ou menos semelhante à sala de aula tradicional, onde as crianças poderão reunir-se para os trabalhos coletivos cuja função peVeja: Para uma Escola do Povo, Editorial Presença, 1.a edição, 1969; e Pedagogia do Bom Senso, Martins Fontes, 3.a edição, 1961. 4

46 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca dagógica veremos mais adiante. Mas esta sala será o mais arejada e iluminada possível. Vejamos depois o mobiliário. — Oficinas exteriores especializadas compreendendo: a) o meio natural: jardim, horta, pomar; b) o local de criação: coelhos, colméia, porcos da Índia, galinhas, cabras. — oficinas internas especializadas, em número de oito, desembocando na sala comum consoante as indicações do plano indicado (refere-se a uma planta de reestruturação da sala de aula tradicional onde aparecem várias subdivisões; o ponto de partida é um salão de 80 m2 ). 5 Freinet sustenta que os dispêndios na construção de tal espaço educacional, poderiam ser cobertos por atividades administradas pela própria escola, que viriam, por exemplo, da criação de animais nos espaços de natureza. É uma idéia, pelo menos exótica, que nos faz pensar sobre o lugar da escola pública neste caso. Entretando isso ilustra, sobremaneira, qual a visão de propriedade que está em jogo. Freinet pensava decididamente sobre uma Escola do Povo, que em certos casos, pode até ser uma oposição à escola pública existente, onde o estado concentra nas suas cúpulas toda a tarefa de gerenciamento pedagógico e controle de verbas de cada um de seus núcleos educacionais — as escolas reais, espalhadas pelos bairros das cidades. A idéia de Escola do Povo, compõe, para Freinet, uma soma de esforços da comunidade, com intersecção das atividade dos artífices locais, pais, alunos, professores... É uma maneira de preservar as conquistas conseguidas, no sentimento que a comunidade adquire para tomar posse de algo que passou a existir graças, de fato, aos seus próprios esforços. Esta busca de tentar fazer com que as atividades escolares, cada vez mais se confundam com as atividades da própria vida em geral, é uma pedra angular 5

Para uma Escola do Povo, C. Freinet, Ed. Provença, 1969, pg. 71.

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no trabalho de Freinet 6 . Para ele, deveriam ser recusadas as propostas de se receber uma escola onde tudo já estivesse em perfeita ordem, não restando mais nada a fazer. Num caso destes, é preferível separar os objetos indispensáveis e, os demais, recolher ao porão. A partir daí, chamar os alunos, os artífices locais, os pais e começar a elaborar os objetos que se quer ter segundo as adequações do programa escolar. As atividades escolares deveriam incluir os passeios de estudo, a observação do trabalho da comunidade e outras tantas atividades que poderiam incluir apenas uma visita sem objetivos maiores além de uma distração. Existe uma série de situações realmente vivas, no cotidiano desta escola, que têm sua impulsão do arranjo espacial nela incluído. As crianças e os professores podem contar com um ambiente integrado onde deve haver uma fronteira tênue, num sentido psicológico. A sala de aula se estende para uma oficina de artes gráficas ou de ciências; para o jardim, o pomar ou a horta. Para as veredas dos campos e alamedas, lojas e os negócios da cidade; em resumo: ao trabalho da comunidade. É esta visão, um tanto idealizada, que se pode ter da escola de Freinet, que vale a pena resgatar. A forma como todas estas engrenagens giram de modo a alcançar os objetivos, está apoiada em dois pilares principais. Um deles, e o principal, é a idéia de Educação pelo trabalho. O outro é a imprensa escolar que, por sua vez, se apóia no método dos complexos de interesse. A questão do trabalho é, em Freinet, um conceito quase dúbio. Ele faz uma distinção muito nítida entre o que propõe e a prática, ainda hoje usada, dos cursos profissionalizantes, que nada mais são que uma extensão das fábricas, buscando pro6

Essa citação de Freinet ilustra bem esta idéia:“Se a escola fosse perfeita, iria direita triunfalmente à vida e realizar-se-ia no seio dessa mesma vida. Ela abrir-se-ia do mesmo modo ao trabalho e à vida do pastor, do agricultor, do artífice, do operário, como às condições de mudança da natureza, reduzindo a atividade nas oficinas da Escola ao trabalho que, sob o ponto de vista prático, não pudesse ser realizado na vida.” Op. cit. pg. 106.

48 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca ver aos empresários de mão de obra especializada a baixo custo e colocando as crianças num trabalho produtivo prematuro ou onde a pré aprendizagem destrone o esforço intelectual e artístico; dito assim, com as palavras de Freinet 7 . Essa é uma distinção fundamental porque destaca a visão que ele tem da criança. À primeira vista, pode parecer que Freinet compartilha de um conceito ultrapassado que imagina a criança como um adulto em miniatura. Ao contrário, a criança para ele é um ser pleno, e suas exigência são respeitadas dentro do mundo infantil; mas onde, entretanto, ao papel do brinquedo não é dada a importância que deveria ter no seu desenvolvimento motor e intelectual. Freinet, de fato, reinterpreta as brincadeiras das crianças como uma manifestação espontânea do trabalho. Vê canteiro de obras onde as crianças apenas brincavam com montes de areia 8 . Esta não é, como pode parecer, uma lacuna fundamental no seu pensamento mas uma reinterpretação do mundo do trabalho que, certamente está influenciada pela atmosfera intelectual do tempo em que elas foram desenvolvidas. Pensar em reivindicar as idéias de Freinet e afastar as suas construções do conceito de trabalho e do brinquedo, pode parecer uma incongruência, já que estas são idéias fundamentais do seu trabalho. Não se pode remover os alicerces de uma casa sem remover toda a construção que está por cima. É verdade. Ainda que seja possível fazer o inverso, acredito que isto não será necessário; mesmo porque, o trabalho tem uma conotação particular no que se poderia ver na obra de Freinet. Mas, para deixar clara esta polêmica, vamos ver alguns temas interessantes sobre este assunto, que procuram verificar o que fez Freinet tentar fundir dois polos que deveriam, realmente, ser complementares, mas que, em nossa sociedade atual, são tidos como opostos: o trabalhar e o brincar. Mas, então, se o trabalho escolar não é nenhuma das coisas destacadas, a que se refere Freinet? Freinet foi um socialista. A sua perspectiva para uma so7 8

Veja item 4, pgs. 26 e 27 da obra citada. Veja Pedagogia do Bom Senso, pg. 84.

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ciedade futura era de uma sociedade popular e socialista e é para ela que está voltada a sua Escola do Povo. Não é de se estranhar toda a ênfase que foi dada ao mundo do trabalho. Entretanto, mesmo do ponto de vista dos socialistas do seu tempo e anteriores a ele, a questão do trabalho tem implicações precisas. É preciso destacar, sob o ponto de vista do marxismo, que o trabalho é encarado enquanto o trabalho socialmente necessário. Isso depende de cada sociedade e do grau de desenvolvimento em que se encontra. Porém, pode-se envolver a definição do trabalho em três categorias:

• Uma primeira, diz respeito à produção direta de bens vindos do campo ou das fábricas, necessários à manutenção das atividades sociais (alimentação das grandes massas humanas, produtos e serviços de sua necessidade). • Uma outra, refere-se à manutenção do conhecimento humano adqüirido e a pesquisa para desenvolvimento de novos conhecimentos. • E a terceira e última categoria, trata da reprodução do conhecimento humano e aí se inclui toda a atividade de ensino ou aprendizagem. É o momento em que a velha geração de homens transfere o seu conhecimento às novas gerações na esperança de que estas as sucedam em seu trabalho, condição sem a qual todo o ciclo de desenvolvimento se interrompe e um ciclo de barbárie se inicia.

Visto assim, numa perspectiva de desenvolvimento tecnológico crescente, é de se esperar que a massa total de trabalho social necessário diminua e, diminua, em conseqüência, o número de horas diárias disponíveis nos postos de trabalho. Dentro do modo de produção atual, não é uma conseqüência necessária que

50 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca o número de horas de trabalho exigidas de cada homem adulto diminua, também. Ao contrário, e esta é uma derivação dramática nos dias atuais e um desafio para as próximas gerações, da crescente substituição do trabalho humano pelos robôs e máquinas industriais. O resultado atual é um aumento crescente de trabalhadores desempregados, em particular aqueles com menor especialização. No entanto, dentro do quadro atual de desenvolvimento das técnicas de produção, não apenas a partir de um horizonte futuro que se delineia mas, exatamente, dentro do que já está disponível hoje, é completamente possível imaginar que a diminuição das horas necessárias para o trabalho social, possa também trazer um aumento progressivo das horas de ócio oferecidas para cada homem. Nas potencialidades já existentes, é possível esperar que, com o tempo, as horas de ócio sejam cada vez maiores, até mesmo se comparadas com as horas necessárias para a dedicação ao trabalho social. Então, grande parte da criação humana poderá surgir como um resultado do ócio. Em medidas mais precisas, esta é a condição para se aferir o grau de riqueza de uma sociedade. Somente aquelas civilizações que foram capazes de gerar um excedente econômico tiveram a possibilidade de dispensar alguns homens do trabalho imediato e permitir que estes se dedicassem exclusivamente às produções artísticas e científicas, possibilitando-nos chegar ao estágio em que estamos. Este é o prisma por onde os socialistas analisam a luz que vem das condições a que chegou a nossa civilização. Para uma idéia mais detalhada sobre este tema, é interessante ver o panfleto escrito por Paul Lafargue 9 , lançado em um momento onde as máquinas mais modernas eram as máquinas a vapor e é, exatamente por isso, completamente atual e visionário. Em razão do que foi visto, a sociedade do futuro, falando otimisticamente, não fundará o mundo do trabalho, ao contrário; e, em linha reta, a escola do futuro não será a escola do trabalho. Muitas vezes você pode ver, na beira de 9

O Direito à Preguiça, Paul Lafargue, Kairós. SP. 1983.

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um rio ou de uma represa, homens pescando. Estes pescadores aparentam estar trabalhando duro e seriamente nesta função. Conforme o caso, é difícil distingüir entre eles, quais homens estão trabalhando e quais estão em atividade de lazer. Não é na aparência das ações que se faz a distinção mas sim na exigência econômica que as impulsiona. Na beira da água, podemos estar vendo um pescador profissional que busca tirar o peixe da água para transformá-lo em mercadoria e trocá-la por outras de sua necessidade; ele está ali, como se diz, a trabalho, na ’luta’ pela sua sobrevivência e de sua família. Os demais pescadores gozam do livre exercício do ócio, com todas as suas conotações. Sobre o pescador profissional, seria difícil encontrá-lo pescando nas suas horas de folgas. Possívelmente preferiria se divertir com outra atividade. Existem certos grupos de trabalhadores que cantam enquanto realizam o seu trabalho. É possível ter esta imagem dos negros escravos no sul dos Estados Unidos, em colheita do algodão, cantando seus spirituals, souls e outros rítmos. Os pedreiros nordestinos também cantam xotes, xaxados e baiões quando têm que trabalhar, com os pés, o chão de terra batida das casas que estão construíndo. Estas são cenas comuns nos ambientes de trabalho, parece que, anteriores ao regime imposto pelo trabalho industrial. Em muitos destes casos o canto tinha a função de marcar o ritímo com que os passos do trabalho deveriam ser feitos. Quando um grupo de homens têm que puxar juntos uma corda que arrasta um grande peso, é preciso que todos ajam sincronizados, para melhorar o rendimento. Pelotões militares realizam exercícios sob o ritmo de marchas. Todas estas diferenças com o regime mudo e barulhento das fábricas, faz imaginar que “certas” maneiras de trabalhar são tão boas que poderiam até mesmo se confundir com brincaderias. Mas não são. Isto não ocorre afortunadamente ou desafortunadamente, apenas são manifestações diferentes das atividades humanas. Infelizmente até hoje não compreendemos muito bem o papel das brincadeiras no ser humano, apesar dos esforços de muitos pesquisadores 10 . O que é certo é que manifestações que podem se 10

Ver Huizingas, Homo Ludens e Vigotsky, A Formação Social da

52 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca confundir com as brincadeiras de nossas crianças são observadas em diversas outras espécies animais e, evidentemente, têm um papel assaz importante no desenvolvimento destes seres. Já que elas são espontâneas, aparecem, à maneira dos instintos, como uma manifestação clara da natureza dos seres e o melhor que temos a fazer é não interferir, permitindo que elas ocorram livremente. Não é boa coisa ficar tocando em pequenas partes aparentes do desconhecido se não podemos ver qual a profundidade das forças que estaremos despertando. Na tentativa de usarmos todo o interesse vivo que as crianças apresentam nas suas brincadeiras despreocupadas, para as nossas boas intenções educacionais, acabamos por confundir “estudar” com “brincar” e, por conseguinte, retiramos, por acharmos desnecessários, os espaços onde elas podem, de fato, espontaneamente manifestar suas necessidades inatas de brincar. É claro que, se conseguimos ter as crianças em nossas escolas com tanta satisfação como quando brincam isso é uma coisa desejável e um objetivo a perseguir. Mas não podemos esquecer que o aprender faz parte das atividades sociais do trabalho, não é brinquedo, dentro das categorias de trabalho que vimos antes; o que não quer dizer, é claro, que não possa ser divertido. Com este limite dialético é que, me parece, se envolveu Freinet. Não há muito reparo a fazer sobre o que ele diz sobre o trabalho, exceto que a vida social das crianças não deve estar encerrada nas atividades e nos limites físicos das escolas, deixando livres tempo e espaço para que elas exerçam o livre exercício da infância. Isso cabe à sociedade toda organizar, não apenas aos educadores. Depois destas observações sobre o trabalho, estamos em condições de abordar uma das outras forças com que Freinet impulsiona a sua escola. Trata-se, como já vimos, dos complexos de interesse. Para se ter uma boa idéia, para nós brasileiros, é algo muito parecido com os temas geradores da pedagogia de Paulo Freire. E, em certa medida, tem muita semelhança com o conceito de zona de desenvolvimento proximal de Vigotsky. Mente; entre outros.

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O que há de particular aqui, é o fato de que toda a técnica segue apoiada no uso da imprensa escolar. Esta imprensa permite efetivar a redação livre, um jornal escolar e o intercâmbio que pode ser feito, através dele, com outras escolas com quem os alunos se correspondem. A imprensa é usada para perceber por quais coisas as crianças têm despertado o seu interesse. Em um exemplo dado por Freinet, os alunos, após cada um ter lido os seus próprios textos, elegiam aquele que fosse de maior agrado. Deste texto eleito, caberia ao professor extrair um gama variada de assuntos que comporiam o programa escolar para um certo período. Estes variados assuntos desabrochariam em uma série complexa de atividades capaz de atingir diversos ramos do conhecimento como a literatura, geografia, ciências, artes, etc.. O melhor que temos a fazer aqui é uma citação do exemplo que aparece no texto de Freinet. É uma citação um pouco longa mas que será necessária para entendermos bem o que ele quer dizer com estes seus complexos de interesse: Os alunos leram pois os seus textos. Inscreveram os títulos no quadro. Seguiu-se a votação. Foi escolhido o seguinte texto: O PEQUENO BANHO Anteontem, Renato, Pedro e eu regávamos o jardim. Depois de o termos regado, dissemos: — E se nos divertíssemos um pouco com as mangueiras? Renato falava pelas duas mangueiras ao mesmo tempo. As mangueiras estavam cheias de água. Pedro escutava na outra extremidade. Renato sopra e Pedro fica com a cara molhada. Foi a minha vez de escutar: um jato de água inunda-me o rosto. Renato põe a mangueira na torneira. Diz-me: — Tapa a outra ponta! Eu tinha dificuldade em tapá-la com a mão. De repente a água esguicha sobre mim. Estava todo mo-

54 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca lhado e zangado. Desejava por meu lado molhar Renato. Sopro a água, mas infelizmente ela volta e molha-me uma segunda vez. Que risada! ANDRÉ A este texto, Freinet e as crianças puderam ligar duas necessidades dominantes:

1.o

Atividade de agricultor.

2.o

Dominar a natureza.

Ele continua, em seguida: Em face de cada um destes assuntos encontramos: a)

os trabalhos-jogos possíveis: vasos comunicantes, bomba, rega;

b)

os jogos-trabalhos complementares a propor, nomeadamente para os graus inferiores: bombacho 11 , rega, cantos, advinhas e provérbios;

c)

os conhecimentos: os legumes, a rega, a história da irrigação, bomba de água, bomba de incêndio;

d)

a lista dos certificados correspondentes, (...)

E, assim, é sondado o complexo resultando em sete séries de trabalhos que as crianças dividirão entre si: TRABALHOS DE OFICINA Fabrico de bombacho (trazer o sabugueiro). Bomba (procurar cilindros). 11

Bomba pequena para tirar ou elevar água.

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Telefone de cordel e experiência com velocidade do som. Experiência dos vasos comunicantes e suas aplicações. ATIVIDADES INTELECTUAIS Investigações no arquivo de documentos sobre a rega através dos tempos. A descoberta da pressão da água e do ar. O telefone e o telégrafo através dos tempos.12 Eis, então, um exemplo rico de como pode ser na prática este método dos complexos de interesse. É preciso voltar a sublinhar que todas estas coisas só podem mostrar a sua riqueza se estiverem num ambiente onde as investigações e as dúvidas das crianças, para a solução destes complexos, tiverem espaço para se realizarem. Freinet também concorda que mais que qualquer didática a experiência prática, pessoal, tem um papel determinante no aprendizado. Os manuais e livros escolares trazem tudo pronto, resolvido; talvez, (quem sabe?), porque seus autores acreditem estar abreviando o longo caminho por onde andaram as gerações passadas até chegarem à construção de tais teorias. “O caminho é longo mas sigam por este atalho... Temos já tudo mastigado”, devem dizer. Esta é uma fórmula que deveria ser evitada. Se as crianças teimam em redescobrir a roda, não há porque lhes apresentar a roda pronta. É melhor que elas persigam por esta via da experimentação, por trás dela pode estar se ramificando uma série complexa de outros interesses muito mais instrutiva. Este pensamento está em perfeito acordo com as idéias mais contemporâneas de Piaget, por exemplo; como já pudemos ver. A tudo isso gostaria de agregar o fato de que, nas atividades de experimentação, seria necessário permitir que todo o equipamento utilizado fossem construído ou montado, conforme o caso, pelas próprias crianças. Sobre este tema, nós 12

As últimas citações referem-se a Para uma Escola do Povo, ops. cit., pgs. 110 e 111.

56 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca podemos reivindicar as seguintes palavras de Kapitsa: O aluno entende bem o experimento físico, só quando ele mesmo o realiza. Mas, entende-o ainda melhor se ele mesmo constróe o equipamento para o experimento. Mas isso, a idéia de atrair os estudantes para que preparem equipamentos, temos que aplaudí-la sempre.13 É aqui onde podemos resumir o acoplamento entre a idéia dos cantinhos de Freinet e o projeto LOGO no que passarão a ser chamados de Ambientes de Aprendizagem. Tenho a convicção de que os dois projetos podem ser fundidos na idéia de montagens de equipamentos com um objetivo esperado. Este esquema pode permitir as situações encontradas no computador no ambiente LOGO: a redescoberta, a programação estruturada, a elaboração e reelaboração de projetos, os bugs, a fascinação e tantas outras coisas...como, por exemplo, as implicações do Princípio de Polya. De Papert resgatamos estas idéias, de Freinet a divisão do espaço educacional em vário ambiente integrados, como uma larga extensão da velha sala de aula e a técnica dos complexos de interesse. Hoje, esta extensão da sala de aula, vista não mais a partir da sala de aula tradicional, poderia se extender para, ademais do bosque, pomar, horta, jardim, as oficinas internas do prédio escolar... deveria se extender por uma outra malha de ambientes espalhados pela cidade, mas, em sentimento, intimamente conectados ao espaço escolar. Tais ambientes, como um exemplo, poderiam ser os play grounds nas praças públicas, onde a comunidade escolar interviria de maneira especial utilizando, construindo, modificando. Poderiam ser os Museus e exposições de Ciência, construídos com o dinheiro dos governos locais, mas totalmente gerenciado, desde o projeto, por uma cooperativa de escolas, que atuaria 13

Experimento Teoria Pratica. P. Kapitsa. Traducción espanhola. Editorial Mir. Moscou. 1985.

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de modo a garantir que este espaço possa atender aos planos educacionais. Poderiam ser as bibiotecas infanto-juvenis, reformuladas e incentivadas a desenvolver projetos interligados com a vida das escolas da região e mais tantas outras coisas no mesmo espírito. A todos estes, gostaríamos de agregar dois outros novos ambientes. Um seria a Prateleira de Demonstrações, uma espécie de laboratório de demonstrações onde a manipulação, construção e montagem dos objetos de experimentação fosse fundamental. É uma idéia que deriva da minha experiência como monitor e técnico na montagem de equipamentos para exposições no laboratório de demonstrações do Instituto de Física da USP. O outro ambiente seria a Experimentoteca-Ludoteca, sub-título deste trabalho, não por acaso, já que é para a sua fundamentação que esta este esforço dedicado — no fundo, a idéia é que todos estes ambientes nada mais seriam que diversos cômodos de um grande casarão; onde o casarão seria a Experimentoteca-Ludoteca. Por fim, é preciso alinhavar algumas idéias sobre os computadores. Já estão invadindo as escolas, aparentemente, de maneira desordenada ou com objetivos explícitos de merchandaise, apenas fachada para acrescentar curso de informática aos currículos escolares e atrair novos alunos. A idéia, para os computadores, é levar o computador para a experimentoteca, como mais um de seus ambientes... Mas, tudo isso será tema para os próximos capítulos.

58 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca

Capítulo 3 A Física no “Playground” O “playground”, que aqui é mais conhecido pelas nossas crianças como “parquinho”, é um exemplo familiar de como a intervenção sobre o espaço físico é capaz de dar as sugestões do uso que se pode fazer dele, sem ser feita diretamente. Qualquer criança, mesmo as muito pequenas, sem perguntar a ninguém para que serve tal lugar, não têm dúvidas de que se trata de um espaço para brincar. Os aparelhos clássicos dos playgrounds aparecem com fortes semelhanças em todo o mundo. Vou citar alguns deles numa linguagem não precisa e tenho certeza de que não será difícil saber a quais objetos está sendo feita referência. Assim é com, por exemplo, o escorregador, gira-gira, balanço, gangorra. Muito embora, se houvesse necessidade de ser dada uma descrição mais clara sobre tais aparelhos, algo como uma citação de dicionário, poderíamos nos deparar com o seguinte quadro:

• escorregador: Aparelho de playground constituído de um plano-inclinado polido, por onde as crianças podem escorregar, alcançando a parte mais alta fazendo uso de uma escada. • gira-gira: Aparelho de playground constituído de um anel horizontal de madeira apoiado sobre uma estrutura de tubos de aço, que pode girar livre59

60 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca mente sobre um eixo vertical, onde as crianças podem sentar-se sobre os lugares do anel e girar. O aparelho não tem movimento próprio, de modo que as crianças devem impulsioná-lo de alguma maneira. • balanço: Aparelho de playground constituído de um assento, suspenso no ar por corda ou corrente fixada a uma barra horizontal, permitindo à criança que ocupa o assento, realizar um movimento pendular do seu corpo. (Trata-se de um pêndulo físico). • gangorra: Aparelho de playground constituído de uma prancha com cerca de três metros de comprimento, articulada no centro em um eixo tranversal em relação à prancha e horizontalmente colocado em relação ao piso, permitindo que duas crianças, sentadas cada uma delas em uma das extremidades da prancha, movam-se para cima e para baixo, com o auxílio de seus pesos. O centro de equilíbrio da prancha deve estar mais alto que o nível do eixo. É interessante notar que estes aparelhos, vistos por estas descrições, guardam uma particularidade de semelhança com o ’cenário’ onde ocorrem os “problemas” que costumamos encontrar nos finais de capítulos dos livros de física básica; mais interessante ainda, é o fato de que são, em outra escala, objetos fáceis de se encontrar num laboratório didático. Os livros didáticos são pródigos em tentar fazer os estudantes imaginarem esboços de planos inclinados sem atrito, barras de equilíbrio, entidades genéricas como os móveis, objetos e pontos materiais em movimento circular e que tais. Certamente conceitos por trás de pontos materias, exigiram um grande esforço de pensamento de homens do calibre intelectual de um homem como Newton, para citar apenas um. No caso de Newton, Keynes 1 consegue nos A este propósito, conta J. M. Keynes em um de seus manuscritos(∗) que há evidências de que Newton adiou a publicação dos “Principia” por falta 1

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mostrar que, muitas vezes a intuição que nos faz “ver” a solução de um problema pode vir muito antes de podermos construir-lhe uma solução capaz de convencer a outros como em um modelo matemático. Esta implicação, entre a capacidade de intuir soluções em Newton, de saber a verdade antes de poder prová-la, e a vida das crianças no play-groud, pode parecer sem razão; afinal estamos falando de gênios e crianças: o que poderiam ter em comum? Por enquanto, vamos deixar este tema de lado para retomá-lo mais adiante e enfronharmo-nos na tentativa de centrar nossa atenção naquilo que é esperado de nossas crianças e jovens na sua vida escolar e o que eles encontram na sua vida como um todo. Na realidade, não há nenhuma coincidência no caso da semelhança entre os objetos de playground e os seus equivalentes do laboratório didático de Física. O fato é que, até mesmo num espaço comum como este do playground, boa parte do conhecimento técnico-científico está ali presente. Atrás dos loops e curvas inclinadas nos trilhos de uma montanha-russa, está uma prancheta e vários cálculos de algum engenheiro. Mais atrás ainda, estão, também, as leis da mecânica de Newton. Não há dúvida do quanto este envolvimento das crianças com brinquedos que tenham subjacentes ao seu modo de uso um reflexo do grau de desenvolvimento cultural da sociedade, pode ser importante para o aprendizado imediato ou futuro das crianças. Do ponto de vista biológico, não nos diferenciamos em nada dos nossos ancestrais de mais de 6.000 atrás como os da antiga civilização egípcia. No entanto, nossas crianças já, desde cedo, apresentam conhecimentos que superariam em muito os mais sábios daqueles tempos antigos. Mas, muito provavelmente, não seriam superiores, quanto à capacidade de resolver problemas, de prova de que poderia tratar uma esfera sólida como se toda sua massa estivesse concentrada em seu centro, somente conseguindo esta demonstração um ano antes da publicação. Era uma verdade da qual ele tinha conhecimento muito antes de prová-la.” ( (∗) Título original: “Newton, the Man”. Traduzido do “Newton Tercentenary Celebrations”, publicado pela Cambridge University Press, para a Royal Society. Traduzido para o português por João Zanetic e impresso na gráfica do IFUSP.)

62 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca aos seus pares de idade daquela época. Esta diferenciação é resultado do mergulho inevitável que cada um faz no mar de informações, o caldo-de-cultura, do presente momentâneo de cada sociedade. Mais precisamente, as descobertas do homem decorrem de uma necessidade presente em cada etapa da civilização dos homens. Hoje, ninguém se depara com o dilema de descobrir a roda. Exceto, casos raros de eremitas ou civilizações indígenas isoladas culturalmente, qualquer criança, desde cedo, encontra-se num mundo onde a roda e as suas derivações de uso já estão dominadas. Pensar sobre a existência da roda, pode não suscitar nenhum espanto. Mas, e quando pensamos acerca de inventos como o avião ou a televisão? Ou algo, aparentemente mais simples, como a fotografia colorida da Terra, feita desde o espaço? É comovente ver uma criança de pouco mais de um ano reconhecer nosso planeta numa fotografia em uma revista de variedades. A imagem da Terra é mais popular, hoje, que qualquer personalidade humana. Mas nem sempre foi assim. O que dizer de Colombo e todo o seu esforço para provar que poderia navegar desde os mares da Espanha, em direção ao leste e chegar às Índias? No entanto, estamos falando de coisas tão próximas de nós quanto algo em torno de menos de 500 anos atrás... O que esta discussão pode implicar é no fato de querer ressaltar o anacronismo de nossas escolas. Não é só a escolástica, como bem destacou Freinet. É, antes, um incompatibilidade entre a descrição do mundo na escola e o mundo como ele aparece aos nossos olhos ou pelos meios de comunicação. Freinet ainda lutou para levar para dentro da escola as sofisticações que estavam ao alcance da sociedade da sua época. Eram coisas como a música, a imprensa, o rádio e o cinema — deveríamos acrescentar, hoje, a televisão, os computadores —. Que maravilha! Alguém está me propondo ir para uma escola onde posso ’fazer’ todas estas coisas fantásticas que vejo por aí o tempo todo e que ainda me parecem misteriosas... Poderia ser assim. Em geral, pensamos na educação como uma interação corpoa-corpo entre o professor e o aluno. Mas, ela tem formas que podem se dar por vias indiretas. Podem ser como no ensino-à-

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distância, onde o estudante recebe o material de estudo e orientações que incluem um cronograma para as etapas a serem vencidas. E, também, podem estar, entre outras, na forma de programas tutorias, particularmente facilitados pela existência dos computadores pessoais. Mas, aqui, gostaria de tratar de um outra forma, uma vez que o objeto de intervenção é o playground, uma área que tradicionalmente é de brincadeiras livres e despreocupadas e que deve continuar assim. A intenção é atuar sobre o espaço e seus objetos, permitindo que o conhecimento seja assimilado como uma espécie de reconhecimento dos traços de ’sofisticação’ fruto da intervenção dos homens adultos sobre o ambiente do play ground. Mas, será que estar oscilando livre e docemente num balanço pode fazer alguma coisa por mim, agora que já estou bem mais crescido e tenho que estudar o movimento de um pêndulo? Talvez possa. Lembro-me de que quando precisei explicar a estudantes sobre fenômenos de ressonância, o exemplo que melhor efeito causou sobre o entendimento deles, era ver alguém sobre um balanço. Na realidade, queria que eles se lembrassem de como era estar sobre um balanço. Isto tem a ver com aquele uso da sintonicidade descrito por Papert e que foi esboçado no primeiro capítulo. Certos fenômenos físicos favorecem a sintonicidade, como este do movimento de um pêndulo. O playground está cheio destes exemplos. Entretanto, é preciso, desde já evitar uma confusão. Nada está sendo dito sobre estudar a Física que há — e, por certo, há! — nos aparelhos de playground. Em geral, quando um estudo, aí já quantitativo, é possível, as nossas crianças viraram adolescentes e estas coisas perderam o atrativo. No entanto, o contato com estruturas sociais, objetos e pensamentos, que tragam à criança, cada vez mais próximo, os indícios de qual é o estágio e qual a fronteira de desenvolvimento em que se encontra a sociedade, pode fazer muito pelas estruturas de pensamento quando elas já estão maduras. A este respeito, seria proveitoso utilizar algumas idéias de Vigotsky. Ele ilustra o seu trabalho com uma citação das pesquisas de Montessori:

64 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca Ela [Montessori] descobriu por exemplo que se se ensinar uma criança a escrever muito cedo, quando chega aos quatro e meio ou cinco anos, a resposta dela é “uma explosão de escrita”, uma abundante e imaginativa utilização da linguagem falada que não é nunca igualada por crianças de idade superior. 2 Esta citação é feita por Vigotsky para ilustrar a sua teoria de zona de desenvolvimento próximo. Ele critica os métodos de investigação psicológica, incluindo aí os de Piaget, que apenas submetem as crianças à uma bateria de testes em que elas deveriam apresentar sozinhas a solução de problemas padronizados; o resultado de tais testes serviriam para identificar o seu nível de desenvolvimento mental. As investigações de Vigotsky tomaram um outro rumo e ele observou que crianças de um determinado nível de desenvolvimento poderiam ser capazes de resolver uma outra série de problemas, elaborada para ser submetida à crianças em idade superior, desde que recebessem uma preparação onde seriam auxiliadas pelos adultos. Tal preparação poderia incluir simplesmente uma indicação de como se inicia a resolução do problemas. A diferença na idade mental variaria de uma criança para outra, podendo ser de meio ano, um ano, ou até mais. Esta diferença caracterizaria uma zona de desenvolvimento próximo (ou potencial), representando em qual direção a evolução da criança apontaria se recebesse ajuda dos adultos na solução de problemas. Nesta altura, diz Vigotsky: A experiência ensinou-nos que a criança com zona mais extensa de desenvolvimento próximo terá melhor aproveitamento na escola. Esta medida dános uma indicação acerca da dinâmica da evolução intelectual mais útil do que a idade mental.3 Isto quer dizer, como afirmou Vigotsky, que tais investigações trariam um norte para as ações educacionais apontando não 2

Ver Pensamento e Linguagem, L. S. Vigotsky, Ed. Antídoto, Lisboa, 1979, pg. 139. 3 Ops. cit. pg. 137.

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para o que a criança já traz de pronto e amadurecido nos seus processos mentais, mas para o que ela poderá desenvolver mais adiante com ajuda escolar. Em outras palavras: “a instrução deve estar voltada para o futuro e não para o passado” 4 . Outra questão que é pertinente a esta discussão diz respeito ao conhecimento científico. Tanto Piaget quanto Vigotsky deram especial destaque à investigação dos conceitos científicos e à particular maneira como eles aparecem nas crianças. Piaget, preocupado com a gênese destes conceitos e Vigotsky com a sua dinâmica durante as etapas de aprendizagem. Vigotsky, por exemplo, observou que, já em idade escolar, as crianças são capazes de apresentar um quadro de respostas corretas para os conceitos científicos maior que para os conceitos cotidianos. Este quadro permite inferir que os conceitos científicos podem vir antes dos conceitos quotidianos (espontâneos), se o currículo escolar o permitir. Isso remeteu-o à hipótese de que os dois conceitos — científico e espontâneo — desde cedo se desenvolvem na criança em pontos afastados para irem caminhando um em direção ao outro. Diz Vigotsky: A criança ganha consciência dos seus conceitos espontâneos relativamente tarde; a capacidade para definir por meio de palavras, para operar com eles conforme queira, aparece muito depois de ter adquirido os conceitos. Ela possui o conceito (isto é, conhece o objeto a que o conceito se refere), mas não tem consciência do seu acto de pensamento. No seu desenvolvimento, o conceito científico, em contrapartida, começa usualmente pela sua definição verbal sendo logo de início utilizado em operações não espontâneas — quer dizer, logo de início se começa a operar com o próprio conceito, que começa a sua vida no cérebro da criança a um nível que os conceitos espontâneos só atingem mais tarde. 5 4 5

Ops. cit., pg. 138. Ops. cit., pg. 143.

66 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca Estas questões remetem a uma batalha árdua por onde passam as crianças e desmonta o esquema de lógica formal que predominava nas teoria psicológicas de até então. Na realidade, os processos através dos quais são assimilidados estes vários esquemas de pensamento passam por fases onde um conceito geral caminha em direção aos objetos particulares, e em outros momentos se dá no sentido inverso. Ora são dedutivos, ora indutivos. Sob outra ótica, partem do concreto para o abstrato ou do abstrato para o concreto nas várias fases do desenvolvimento. A criança que, de início, opera com o pensamento por complexos, momento em que um mesmo símbolo é associado a diversos objetos, trava uma luta difícil para resolver problemas da vida quotidiana “porque carece da consciência destes conceitos e portanto não pode operar com eles” 6 ; entretando, já na adolescência, a luta se faz no sentido inverso, e o jovem se vê frente à dificuldade de aplicar conceitos gerais, abstratos, com os quais aprendeu a trabalhar, às situações particulares, concretas, do quotidiano quando estes apresentam ligeiras modificações no modelo original. 7 Da mesma maneira, encontra dificuldades em formar conceitos à partir de situações concretas inteiramente novas. Por aí vemos como foi dura a luta da civilização na busca da construção da ciência... Porém, uma vez atingido certo grau de desenvolvimento, exceto nos casos de declínio bárbaro dos modos de produção, as novas gerações sempre partem do ponto aonde chegou a geração anterior, não importando o quão difícil e complexa tenha sido a capacidade de resolução de problemas dos antigos. Esta é uma lei social, destacada por Marx, que deve ter origem na natureza do próprio homem, na sua natureza de ser social. Em geral (salvo, repetindo, povos bárbaros), a cultura de um povo é considerada com o mesmo status das peças de ouro ou outros bens materiais: é riqueza. Um povo conquistador, abandona a sua própria cultura pela cultura do conquistado se esta for superior porque é ganho de riqueza. Da mesma forma, e por 6 7

Ops. cit. pg. 141. Ver Ops. cit., pg 107.

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outro lado, um índio apache vê imediatamente o valor superior de um machado de aço do homem branco, quando comparado ao seu primitivo machado de pedra; apropria-se dele e passa a utilizá-lo, abandonando o antigo. Tudo isto não é diferente em nossas crianças e jovens. Tenho certeza de que sabem dar o devido valor ao legado dos pais e não regateiam em se apropriar de suas “riquezas” mesmo na estranha forma da cultura. Diante do que foi discutido até agora, seria interessante incluir, neste ponto, algumas ocorrências com crianças no playground que podem ilustrar bem as idéias discutidas até aqui, neste capítulo. Durante o curso de prática de ensino de Física, na graduação em licenciatura, estive por dois semestres na creche da universidade de São Paulo, a fim de cumprir meu período de estágio. A creche tem uma área coberta que abriga as salas de aula, banheiros, cozinha e um salão onde as crianças fazem as refeições. Numa outra área externa, encontra-se um pátio que abriga o playground. Havia conseguido autorização para passar uma tarde por semana acompanhando as atividades da creche. Estive mais tempo junto às crianças nas horas de recreação onde elas brincavam livremente no pátio. Os objetos disponíveis ali eram os tradicionais: um banco de areia, o gira-gira, pneus velhos, trepa-trepa e uma árvore 8 . Numa daquelas tardes encontrei um grupo de crianças cavando um buraco na áreia com as mãos. Aproximei-me e, tentando um contato com eles comecei a cavar também. Buscava utilizar alguma ferramenta como uma pedaço de galho de árvore ou alguma outra coisa semelhante. Indaguei a um dos meninos sobre o que iríamos encontrar se continuássemos cavando. Ele respondeu-me que era chão . Eles já haviam cavado pela manhã e encontraram chão. Chão é um destes complexos que podem estar se referindo a uma grande variedade de significados. Con8

É incrível como numa área tão arborizada como a cidade universitária, foram recortar um lugar com os muros da creche onde só havia uma árvore. De qualquer forma, apesar das crianças adorarem subir na árvore, esta atividade era proibida pelas professoras...

68 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca tinuei cavando, tentando mostrar minha curiosidade por chegar ao chão. Cheguei, o que não é nada óbvio, a um piso cimentado. Neste instante o menino disse: — Não falei que era chão! Acabara de aprender o significado particular para a palavra chão. O fato de tentar usar alguma ferramenta para cavar não atraiu muita atenção. Mesmo porque, não era mais agradável nem mais eficiente que cavar a areia com as mãos nuas. Mais tarde quiz sondar as crianças que brincavam no gira-gira. Um dos meninos era chamado a rodar o aparelho porque fazia “mais forte”, conforme dizia uma das meninas. Os lugares coloridos eram de posse de uma ou mais crianças em particular (o mesmo acontecia com os pneus velhos). Reparei que as crianças incentivavam os empurradores a aumentarem cada vez mais a velocidade de rotação do brinquedo até que começava uma gritaria pedindo para parar. Alguns deles colocavam o pé para fora e esfregavam a sola do calçado no piso, freando o movimento. Perguntado a um dos meninos porquê o gira-gira parava quando era esfregado o pé no chão, ele respondeu: — É porque é chão! Outra vez as coisas se resolviam em chão. Num outro dia, cheguei no pátio e encontrei algumas crianças brincando “fora do chão”, numa parte de terra, próxima do banco de areia. Eles estavam cavando em volta de uma pedra cravada na terra. Cavavam em volta porque acreditavam ser esta a melhor maneira de extrair a pedra. Fiquei por perto xeretando e prestava atenção à conversa que aquela pedra motivava. Uma das crianças me dizia que o fulano achava que embaixo da pedra existia uma casa de minhocas. Eles especulavam sobre a hipótese da casa de minhocas e sobre qual seria o tamanho real da pedra. Também arriscavam vários palpites sobre isso. Uns achavam que não poderia ser uma casa de minhoca, outros acreditavam que a pedra era muito grande e que levariam muito tempo, cavando, até poder retirá-la. E, assim seguiam na atividade e na conversa animada. A uma certa altura eu indaguei se poderia tentar tirar a pedra, que eles estiveram empenhados

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em desenterrar desde o período da manhã. Com a concordância deles, procurei em volta e encontrei um pedaço de tábua de uns 30 cm de comprimento. Procurei uma pequena pedra que usei como ponto de apoio para uma alavanca com a tábua. Coloquei a pedra próxima da ponta da pedra encravada, coloquei uma das pontas da tábua sob a parte aparente da pedra e usando o ponto de apoio, acionei o outro lado da alavanca, tentando mostrar que não precisava fazer muita força e arranquei a pedra que, ao final, não se mostrou tão grande. Lembro-me que esta demonstração do uso de uma alavanca causou tamanha boa impressão que os meninos ficaram comentando entre si. Um deles chamou um outro, que estivera cavando a pedra, mas que já havia se afastado, para mostrar como a pedra havia sido extraída. Usou tamanha riqueza de detalhes na descrição dos passos que dei para acionar a alavanca, que fiquei impressionado. Um outro exemplo interessante aconteceu num dos dias em que levei meu filho, então com cinco anos de idade, ao playground de um parque público perto de onde morávamos. Já estava ficando tarde e precisávamos ir embora mas ele não queria ir. Então, como entretenimento, procurei um graveto e comecei a montar um relógio de sol na areia. Espetei o “ponteiro” com um inclinação aproximada da latitude local e na direção do sul geográfico, como seria o procedimento correto para se construir um relógio de sol e marquei a posição inicial da sombra do ponteiro com um montinho de areia, fazendo um outro montinho ao lado, marcando um ângulo em torno de 10 graus. Disse-lhe, mostrando o arranjo: — Então tá bem. Quando a sombra do ponteiro chegar naquele outro montinho, é hora da gente ir embora. Tá? — Ela [a sombra] nunca vai sair daí... Disse-me e voltou a brincar. Mais tarde, veio dar uma olhada no relógio e viu que a sombra do ponteiro estava se deslocando em direção à outra marca. Não aparentou nenhum espanto. Pegou o montinho final com as duas mão e “adiantou-o”, colocando-o mais para o lado...

70 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca Estes exemplos, apesar de interessantes, pecam por permitir a intervenção direta do adulto num espaço que deve servir para as livres brincadeiras das crianças, mas servem para ilustrar as implicações educacionais da teoria de Vigotsky sobre a “zona de desenvolvimento próximo”. Porém, os adultos deveriam se esforçar é na elaboração de aparelhos para o playground, onde o destaque seja dado para levar o conhecimento científico através do seu uso ou observação, numa confiança estreita na fenomenologia 9 , sem uma intromissão corpo-a-corpo. É aqui onde podemos retornar ao tema sobre Newton. Segundo Keynes, há fortes indícios de que Newton adiou a publicação dos Principia por não poder provar todas as suas idéias. Tratava-se de que não havia a linguagem adequada para realizar as provas, neste caso era mais dramático já que Newton precisou criar esta linguagem na forma do cálculo diferencial; a partir disso, ocorreu aquela fantástica “explosão de escrita” na forma dos Principia, para parafrasear Montessori. No caso das crianças, a aparência não diferente, as crianças podem já ter visto a solução de determinado problema, desde que as possibilidades de observação lhe sejam dadas, mas é absolutamente inútil perguntar-lhe qual a resposta, já que ela é carente dos meios para poder expressá-la, situção que poderá dar os seus frutos mais à frente na sua vida escolar. Para isso, é preciso que a escola seja dotada dos meios para que toda esta prospecção do conhecimento seja realizada. Em geral, as coisas são vistas de cabeça para baixo quando se trata de educação. Nos primeiros níveis da escolaridade, quando os estudantes são as crianças, é onde deveríamos encontrar os profissionais mais bem formados: os mestres e doutores, que em realidade recebem a incumbência de educar os jovens já no início da idade adulta. As razões para se deslocar os profissionais mais bem formados para as esferas mais baixas do aprendizado são óbvias já que é aí onde encontramos as maiores dificuldades para 9

C. G. Jung, famoso psicanalista e fenomenólogo confesso, expressou numa frase muito precisa esta confiança. Diz ele: “Não devemos sugerir à natureza o que ela deve fazer se quizermos observar o seu comportamento espontâneo”.

A Física no “Playground”

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assentar uma base de conhecimento que permita a “explosão de escrita”. Estes profissionais, não precisariam ir além do trabalho de coordenadar grupos de educadores, acompanhando-os de perto na execução dos planos escolares. Por fim, gostaria de encerrar este capítulo, dando um exemplo do que poderia ser feito em relação ao playground. Há cerca de dois anos, uma estudante do quinto ano da faculdade de arquitetura da USP, procurou o laboratório de demonstrações do IFUSP para pedir auxílio para a execução do seu projeto de fim de curso. Ela estava elaborando um projeto para uma instalação em praça pública de uma escultura constituída de vários tubulões de ferro, com comprimentos acima de 1 metro, suspensos verticalmente de modo a formar, além de um arranjo estético, um instrumento musical. A ajuda que ela procurava era exatamente sobre o cálculo das dimensões dos tubulões de modo a que os tons que eles emitissem fossem os da escala cromática ocidental. Para sorte dela, o técnico que a atendeu tinha conhecimento suficiente sobre a acústica dos tubos sonoros de modo que o projeto pode ser realizado conforme o idealizado. Não tenho notícias sobre o fato do projeto ter sido executado em alguma praça de algum lugar, no entanto este é um exemplo singelo do quanto é proveitosa esta colaboração estreita entre arquitetos e físicos (matemáticos, biólogos ou etc.) na elaboração de projetos desta natureza. Uma realização, nada singela, desta atuação foi levada a efeito pelo Museu de Astronomia do Rio de Janeiro, através de uma belíssima concepção e construção de um Parque da Ciência . 10 As intervenções sobre o playground, que poderiam ser objeto desta colaboração entre os físicos e arquitetos, deveriam ter em conta os princípios até aqui indicados. Porém, o mais importante seria abrir, em cada aparelho, a possibilidade de intervenção direta da criança na modificação da sua dinâmica de uso. Peguemos a gangorra como um exemplo. Num espaço de labo10

Para maiores detalhes, veja a publicação: Parque da Ciência - O Brinquedo como Possibilidade de Aprendizado, Museu de Astronomia e Ciências Afins/CNPq/MCT, 1987.

72 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca ratório, a gangorra é uma das variantes para se chegar à balança romana. Em princípio, a transformação de uma em outra esta na localização do centro de massa em relação ao ponto de apoio. Literalmente, se a gangorra do playground for colocada de cabeça para baixo, teremos aí uma balança romana (balança de braços iguais). Isso em si já é grande coisa porque coloca à disposição da criança um aparelho cuja história representa grandes avanços das civilizações, que muitos povos ainda não dominam. No entanto, essa mudanca na gangorra não surtiria seus efeitos fenomenológicos, se não permitissem uma aproximação destes brinquedos com a gênese de uma espécie de heurística rudimentar a ser praticada pela criança. Um dos problemas com os quais pode deparar-se uma criança frente a uma gangorra de um playground é o fato de encontrar-se sozinha para brincar. A gangorra exige um mínimo de duas crianças para a sua utilização. A nossa gangorra-balança teria por perto saquinhos com um ou dois quilogramas de areia com os quais a criança poderia ’lastrear’ o outro assento e brincar. Este é um exemplo com a gangorra. Poderíamos pensar em outros, mas o que importa aqui é esboçar o que se pode esperar desta cooperação entre cientistas com preocupações educacionais e os arquitetos cujos resultados práticos poderiam ser tema de um grande livro com pranchas de desenhos arquitetônicos, a disposição de prefeituras, associações, sindicatos e escolas dispostos a investir nesta via, incorporando os playgrounds aos ambientes educacionais a disposição da escola.

Capítulo 4 As Exposições Didáticas & O Pequeno-Museu de Ciências Nos capítulos anteriores, foram destacadas as bases que suportam a idéia principal deste trabalho que reside em explorar as grandes possibilidades que advêm de construir o espaço educacional sobre o conceito geral de ambientes de aprendizagem. A idéia aqui é continuar nesta linha, descrevendo um ambiente ainda pouco explorado no Brasil, mas capaz de gerar valiosos frutos, que guarda semelhanças comas exposições didáticas. Dentro desta categoria podem ser enquadrados os museus de ciências, as bibliotecas infanto-juvenis as exposições científicas permanentes ou temporárias, e algumas outras formas menos convencionais, cujo exemplo poderiam ser as feiras-de-ciências. Toda a inspiração deste capítulo remonta aos fragmentos de história que nos chegam da antiga Biblioteca de Alexandria. Construída no período helenístico. Foi lá que homens como Euclides, Arquimedes, Herão, Eratóstenes, Ptolomeu e tantos outros, puderam lançar as bases fundamentais de toda a nossa ciência moderna. Existe uma lenda sobre o Tarô 1 segundo a qual, após a pre1

Jogo de cartas de origem antiga, usado até hoje pelos exotéricos.

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74 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca visão de que uma barbárie iminente era inevitável, os sábios antigos resolveram codificar em belas cartas todo o conhecimento acumulado por sua civilização. Diferente desta lenda, mas com o mesmo espírito, construiu-se em Alexandria um museu que esperava ser capaz de reunir dentro de si todo o conhecimento acumulado até então. Carl Segan, num dos episódios da série Cosmos, conta-nos que no porto de Alexandria, navios eram revistados em busca de livros que pudessem ser confiscados para compor o valioso acervo da biblioteca. “Quanta maravilha não pode ser recolhida e armazenada?” — Perguntava ele. Infelizmente, a maior parte da biblioteca se perdeu. Porém, o que resistiu ao tempo, dá-nos conta de uma determinação, sem precedentes, na luta do homem em busca do conhecimento naqueles tempos antigos. Segundo Colin Roman, era assim a biblioteca: Nenhum remanescente indiscutível do museu sobreviveu, mas o geógrafo grego Estrabão, que viveu no século I d.C., descreveu-o como extensão dos palácios reais (que ficavam próximo do porto), com um passeio público, uma colunata coberta, com assentos, e um grande refeitório comum. Presumivelmente, contudo, havia também outras salas onde se faziam discursos e pesquisas, assim como um museu verdadeiro e a própria biblioteca. Além do mais, devia ser equipado com alguns instrumentos astronômicos. Foi desenvolvido principalmente por seu filho Ptolomeu II Filadelfo, tendo ambos os monarcas o auxílio de dois gregos, Demétrio e Estratão, Demétrio veio de Atenas e era escritor, estadista e antigo aluno de Teofrasto, cuja coleção de livros formou, provavelmente, o núcleo da biblioteca. Estratão veio de Lâmpsaco, nos Dardanelos; uma geração mais jovem que Demétrio, também estudou com Teofrasto. Foi chamado a Alexandria, por volta de 300 a.C., como tutor de Filadelfo, e lá permaneceu por doze anos, até a morte de Teofrasto, quando regressou a

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Atenas para dirigir o Liceu. Foi Estrabão que ajudou a dar ao museu seu aspecto científico. 2 Este parece ter sido o início, que foi seguido pelos trabalhos de outros homens que conseguiram maior notoriedade no desenvolvimento da ciência, como foi o caso de Euclides, Arquimedes e Ptolomeu. Ao que parece, A Escola de Alexandria, nome com o qual se notabilizou o museu, se inscreve numa tradição grega que coloca o desenvolvimento do conhecimento numa condição pouco pragmática, sem um caráter utilitário e sem o compromisso de aplicabilidade imediata; o que se opõe nitidamente ao modo de produção asiático, como foi o caso da antiga civilização egípcia 3 , onde a produção intelectual estava voltada claramente para algum objetivo prático; isso é o que permitiu a Alexandria constituir o germe de nossa atual ciência. Já falamos, em outra parte sobre a importância crucial da geometria para o desenvolvimento da Física. O fato é que do trabalho de Euclides 4 não foi dito tudo sobre a sua importância para o desenvolvimento das ciências em geral. Não é só pela influência de sua geometria, sintetizada nos seus Elementos, cuja importância para a Física já foi mencionada através de um depoimento do prof. Schenberg num comentário sobre a civilização chinesa, pronunciado durante os simpósios de comemoração dos seus 70 anos, promovido pelo Instituto de Física da USP. Essa importância se deu, também, por outras vias; talvez de modo mais decisivo. Ronan nos informa que: 2

Ver Universidade de Cambridge - HISTÓRIA ILUSTRADA DA CIÊNCIA, Colin A. Ronan, Jorge Zahar Editor - RJ/1987, vol. I, pgs. 116-117. 3 O mesmo Ronan afirma que "“A falta de interesse dos egípcios pela reflexão filosófica e a tendência para o aspecto prático podem ser observadas mesmo na astronomia. Para eles, a astronomia era a base utilitária necessária para a marcação do tempo, pois estavam mais preocupados do que qualquer outro povo com o cálculo do tempo”. Op. cit. pg. 22. 4 Euclides trabalhou em Alexandria entre 320 e 260 a.C, isso refere-se aos momentos iniciais do Museu, o que é mais notável.

76 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca Na verdade, sua influência foi muito maior; considera-se que seu método de síntese — seus axiomas, postulados, teoremas e provas — afetou o pensamento ocidental mais do que qualquer outro livro, exceto a Bíblia. Teve, por certo, um efeito profundo no modo pelo qual os problemas são resolvidos, pois é magistral a maneira lógica com que Euclides faz cada proposição seguir-se às previamente demonstradas. Suas provas mostram o poder intelectual dessa técnica, e algumas são, até certo ponto, engenhosas. A prova do teorema de Pitágoras é um exemplo, e dizem que, quando viu pela primeira vez a proposição, Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII, exclamou: “Meu Deus, isso é possível”!... 5

Eis aqui uma lição importante que deveria estar presente na cabeça de todos aqueles que procuram ensinar ciências. Lamentavelmente o ensino de geometria não faz mais parte do curriculum dos cursos secundários. De qualquer forma, ao estudarmos qualquer ramo da Física, esta base lógica, presente nos trabalhos de Euclides, deveria ter sua ênfase no momento em que queremos destacar o formalismo matemático; não há dúvidas em afirmar que o substrato de onde derivou todo o conhecimento causal de nossa ciência esta formado por essa capacidade de raciocínio lógico-formal. Capacidade para a qual nossos estudantes podem receber auxílio para atingir; mas que, infelizmente, a maioria atinge tardiamente 6 . A matemática, muito graças a Euclides, já contava, nesta época, com uma sólida tradição de provas matemáticas formais. 5

Op. cit. pg. 117. Ou nunca atinge, se olharmos para o restante da população não escolarizada. Daí o significado dramático da frase do prof. Mário Schenberg: — “A maioria da população passa a vida inteira sem jamais ter tido uma única idéia”... (Esta frase foi pronunciada por ocasião dos 70 anos do prof. Schenberg, numa série de seminários organizados pelo IFUSP em sua homenagem). 6

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Entretanto, o mesmo não acontecia quanto aos fenômenos físicos. Na verdade, nem as ciências e, deste modo, nem a Física existiam ainda tal qual as entendemos hoje. Os sábios de Alexandria, mesmo tendo se destacado por resultados em algum ramo específico do conhecimento, tinham seus estudos espalhados por indiscriminadas áreas. Muitas vezes, o estudo de algum fenômeno resultava em algum tipo de engenho mecânico, cujo efeito prático era um pouco duvidoso. E aqui chegamos a um ponto interessante para entendermos o que poderia ter a ver com as exposições didáticas toda essa experiência em Alexandria. Vejamos, como exemplos significativos, os casos de Arquimedes e Herão. Sobre Arquimedes e sua vida, existe uma documentação mais farta e sabemos bem mais sobre sua vida pessoal que de outros que passaram por Alexandria. Arquimedes é uma destas figuras populares, conhecido mais pelo que pode ter havido de folclórico em suas vidas; é um caso que tem semelhança com a imagem difundida de Einstein como um gênio descabelado com a língua de fora, imagem que retrata pouco o que há de árduo, sério e solitário na produção científica. No entanto, Arquimedes foi um homem extremamente prático. Fez diversas invenções mecânicas, das quais, talvez, a mais conhecidada seja o parafuso de Arquimedes que é uma maneira engenhosa de se bombear água, com uma originalidade fabulosa. As outras invenções tratam da construção de máquinas simples com o uso de roldanas e alavancas. Conta-se que sua segurança em seus estudos do que chamaríamos hoje de estática era tamanha que ele chegou a afirmar: “Dêem-me um ponto de apoio e eu moverei a Terra 7 ”. — Com o auxílio de uma alavanca, por suposto —. Entretanto, onde Arquimedes mais se notabilizou, foi nos seus estudos daquilo que hoje é conhecido por hidrostática. É célebre o caso da coroa do rei Heirão. Sem dúvida, Arquimedes é o pai da hidrostática e suas descobertas são estudadas até hoje junto com os trabalhos bem posteriores de Stevin. Um outro membro desta escola de mecânica foi Herão, tido 7

Op. cit. pg. 119.

78 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca como um dos mais notáveis. Herão tem vários inventos lúdicos, sendo um deles considerado como a primeira máquina termodinâmica da história, constituído de um modelo em que as portas de um templo em miniatura se abriam pela ação do fogo acendido em um pequeno altar. 8 Toda essa estranha atividade em Alexandria, cuja falta de compromisso com qualquer utilitarismo e pragmatismo, e um visível pacto com o deleite que o conhecimento pode proporcionar, fizeram Ronan se perguntar: Por que teria uma instituição como o museu apoiado o que parece ter sido uma sucessão de fabricantes de brinquedos ou instrumentos semimágicos e misteriosos? Certamente, produziram-se algumas invenções úteis, mas a maioria dos relatos de Ctesíbio e dos manuscritos que recordam o de Herão está cheia de dispositivos destinados mais a entreter do que a edificar. Qual era o propósito de tudo isso, se é que havia algum? 9 E, sua resposta vem em seguida, de maneira elucidatória: (...) na verdade, um indício é apresentado nos livros escritos pelo próprio Herão. Ele preparou um texto sobre pneumática e outro sobre mecânica; escreveu a respeito da dioptra, de catapultas e dos princípios ópticos da reflexão. Em outras palavras, Herão escreveu uma série de trabalhos sobre, principalmente, o que chamaríamos de física, e parece que muitos dos aparelhos que ele, e outros antes dele, fizeram foram construídos ou para testar princípios da física ou para demonstrá-los a audiências maiores. Assim, quando vemos Herão aplicando seu conhecimento em espelhos, tanto curvos como planos, para provocar ilusões, não devemos surpreender-nos: tal 8 9

Op. cit. pg. 121. Ibidem

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aplicação seria, evidentemente, uma demonstração ideal de certos princípios ópticos. (...) essa foi uma época que não estava acostumada com maravilhas mecânicas, e talvez os físicos tenham sentido necessidade de adornar os princípios que demonstravam, tal como, mais tarde, nos séculos XVII e XVIII, os fabricantes de instrumentos científicos julgavam ser parte de sua obrigação fazer de seus instrumentos, ao mesmo tempo, obras de arte e aparelhos práticos. 10

Ao encerramos esta série de citações sobre o Museu de Alexandria, pudemos destacar a maneira como o conhecimento era divulgado a platéias leigas através do uso de instrumentos e aparelhos de grande efeito atrativo. Podemos, então, passar para outro ponto e tecer alguns breves comentários sobre como as iniciativas de construção de ambientes de aprendizagem, onde uma modificação de seus espaços, dando-lhe um caráter museológico, poderiam trazer aquele clima fértil que parece ter reinado naquela épocas antigas de Alexandria e em seu museu; clima que seria de extrema utilidade para o estudo das ciências básicas de nossos jovens e crianças. Um destes casos trata das bibliotecas infanto-juvenis. Remete às minhas lembranças de uma biblioteca, ainda existente na zona norte da cidade de São Paulo. Tudo ali parecia estar no lugar, não sendo necessário retirar nada senão acrescentar outro espaço onde funcionariam um pequeno-museu de ciências, anexo a uma experimentoteca-ludoteca. Para citar as qualidades existente na biblioteca, poderíamos começar pelo prédio construído no centro de um terreno grande, com cerca de 4.000m2 , com gramados e jardins. Era um sobrado amplo, de estilo inglês, com vários cômodos e pequenas torres que lembravam um singelo castelo. Na parte de baixo do sobrado, dois vastos salões abrigavam a biblioteca propriamente dita e a sala de estudos e leitura. O andar superior concentrava as atividades 10

Idem ibidem

80 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca lúdicas, com um sala de pintura, uma brinquedoteca e um salão usado para a projeção de cinema uma vez por semana. Toda essa estrutura atraía crianças de muito longe 11 . Alguns grupos de crianças vinham por razões compulsórias. Instalavam-se no andar de baixo e se ocupavam copiando páginas e mais páginas das enciclopédias para algum ineficiente trabalho escolar. Talvez não fosse tão ineficiente porque me lembro de como me impressionava a velocidade com que alguns deles eram capazes de escrever, copiando a mão do livro para o caderno. Outros grupos eram atraídos pela busca de algum lazer e se revesavam, no andar de cima, entre os jogos e a pintura, quando não havia sessão de cinema. Este ambiente despreocupado é que tem o clima ideal para ser explorado por uma experimentoteca e o pequeno museu de ciências. A questão do pequeno museu de ciências é importante para o desenvolvimento de toda a aprendizagem dos fenômenos físicos. Existe muita ênfase sobre a importância da história da ciência nos currículos escolares, o que é pouco dito é que estudar a história da física é muito mais uma questão museológica do que livresca, dito num sentido de apenas reunir fatos colhidos pela leitura nua e crua. É museológica no sentido de reunir num acervo objetos históricos reais, palpáveis e manuseáveis. A história da física, como nos mostra Alexandria, é, em grande parte, a história dos objetos que os cientistas do passado fizeram passar por sua mãos. Muitas vezes, as mãos aprendem antes que isso seja uma atividade consciente do cérebro. É evidente que não podemos querer reunir em um acervo peças originais. Seria maravilhoso, mas impossível, ter hoje em uma sala o “parafuso” original de Arquimedes... Não é disso que se trata. É claro que museus ingleses podem exibir peças originais dos laboratórios de Watt e Faraday ou um manuscrito de Newton, mas isso refere-se a peças adquiridas em leilões cujos valores chegariam às nuvens, muito longe do alcance de qualquer orçamento escolar e da possibilidade de poder colocar nas mãos de um público 11

No meu caso, caminhava, com outras crianças, por cerca de 15 Km até chegar à biblioteca.

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leigo, devido ao seu valor financeiro ou histórico. Essa é uma diferença fundamental entre os pequenos museus e o museu tradicional: a manipulação do acervo pelo usuário. O que se quer tratar aqui, leva em conta a possibilidade de se construir (essa é uma palavra chave) réplicas, o mais próximo possível do original; o que, em si, exigiria uma saudável pesquisa histórica e iconográfica, de modo a permitir que se tenha uma boa idéia dos recursos disponíveis para a produção do conhecimento científico em cada época e como os homens, dentro dessas limitações, vem se dedicando a solução dos vários problemas humanos. Essa idéia da réplica é uma coisa pouco presente até agora. A Estação Ciência de São Paulo foi concebida por museólogos mas, mesmo assim, seu acervo esta mais próximo de um laboratório de demonstrações que de um museu. Apesar disso, pode contar com um belo espaço físico, vindo da reforma de velhos armazéns ferroviários à beira da estrada de ferro, daí vem o nome atribuído ao museu. Mas de nada vale termos o museu se a ele só podemos visitar como espectadores passivos. Da mesma maneira que no Museu de Alexandria, as atividades aqui desenvolvidas devem permitir a “reinvenção do conhecimento”. Nosso mundo atual super-valoriza a atividade física, até mesmo a música popular é uma expressão da atividade corporal. Todos sabemos a emoção de se fazer um gol no futebol, um ponto do voleibol, uma cesta no basquete e por aí afora. O que está cada vez mais perdido, cada vez mais difícil de se encontrar é a emoção da descoberta científica. Sair gritando “Eureka”, semi-nu, pelas ruas de uma cidade, como dizem ter feito Arquimedes, é algo que nos aproxima do entusiasmo que sente um atleta depois de ter feito um gol. O significado da reinvenção, da “descoberta” de algo que já é sabido há muito tempo, nos aproxima mais do real significado do conhecimento. Aproxima-nos muito mais do pensamento do homem maduro de ciências que foi capaz de tais descobertas e nos coloca em condições de uma apropriação real do conhecimento que também é nosso já que chegamos a ele, por outros caminhos numa época mais adiantada. Para per-

82 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca mitir esse acoplamento entre o pequeno museu e as atividades de “redescoberta” é imprescindível que todos estes ambientes estejam acoplados a uma experimentoteca-ludoteca, lugar onde todas estas atividades são organizadas, sintetizadas e realizadas. O ensino de ciências nos níveis secundários é reduzido ao estudo de conhecimentos antigos, de séculos atrás. Via de regra, os programas escolares terminam no que já era sabido a, no mínimo, um século atrás com os estudos de eletromagnetismo de Faraday. Este caráter da “reivenção”, nos moldes em que propôs Piaget; este caráter museológico de história da ciência aliado às atividades da Experimentoteca, poderia aumentar o interesse pelo estudo das ciências básica e torná-lo mais proveitoso. O pequeno museu de ciências é antes de tudo um acervo de idéias emanadas dos fundamentos físicos presentes nos objetos expostos. Deve, quando possível, ser construído pela comunidade local, envolvendo professores, estudantes e quem mais puder, num trabalho de pesquisa histórica e de reprodução destes objetos nas oficinas da experimentoteca ou da própria comunidade, como fazia Freinet. Um pequeno museu, montado numa biblioteca infanto-juvenil, por exemplo, pode atender a diversas escolas da sua região geográfica, amenizando o eterno problema das dificuldades financeiras. Por fim, é preciso dizer que o pequeno museu não deve se confundir com a própria Experimentoteca-Ludoteca, ou com o Laboratório de Demonstrações, cujas diferenças espero ser capaz de mostrar nos próximos capítulos. A idéia central é passar de um museu, ou uma exposição didática, passiva, à um museu onde a interação seja grande. Desta maneira, nós aproximamos o museu da linha de atuação da Ludoteca, permitindo abrigá-lo sob o manto da coordenação geral da Experimentoteca-Ludoteca como mais um de seus ambientes de aprendizagem.

Capítulo 5 A “Prateleira” de Demonstrações O laboratório de demonstrações têm sido um dos ambientes de aprendizagem para o qual foi dedicado um esforço grande na produção de equipamentos e infra-estrutura. Grandes fabricantes mundiais de equipamentos para estes laboratórios, como a Phywe, Leybold , Earling, Cenco, Pasco entre outros, dispõem de um número muito grande de equipamentos voltados para atender essa forma de laboratório. Em geral, as peças dos equipamentos produzidos por esses fabricantes tradicionais, são feitas com qualidade de acabamento difícil de ser reproduzida em pequenas oficinas e, via de regra, em função da qualidade e do esforço de desenvolvimento, têm custo financeiro alto. Entretanto, é preciso reconhecer, tais custos são plenamente recompensados para aqueles que dispõem destes equipamentos. Os fabricantes brasileiros construiram, durante algum tempo, equipamentos deste tipo; via de regra, apenas fizeram réplicas dos exemplares importados, eliminando as etapas de desenvolvimento de novos protótipos. Existe, também, o caso da Funbec de São Paulo, que reproduziu produtos à partir de projetos educacionais como o PSSC, numa linha diferente dos equipamento para demonstrações, utilizando materiais mais baratos que implicou em preço de venda mais acessíveis. Algumas escolas públicas chegaram a 83

84 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca ser equipadas com estes experimentos da Funbec, que se perderam por falta, nas escolas, de espaço e pessoal qualificado. A Funbec e uma parte dos fabricantes nacionais, como a Bender, não produzem mais estes tipos de produtos. Entendido na sua forma original, o laboratório de demonstrações exclui uma etapa fundamental no aprendizado, representada pelo conhecimento que pode advir da manipulação e construção dos equipamentos com os quais irá trabalhar o estudante. No entanto, um dos dividendos secundários é servir de baliza para uma comparação saudável entre o que se pode fazer com poucos recursos e a qualidade que se poderia obter caso se dispusesse de máquinas e equipamentos adequados à construção das peças de um determinado experimento. Por exemplo, é perfeitamente possível produzirmos uma balança com materiais simples que tenha sensibilidade da ordem de centésimos de grama o que a equipararia a uma balança analítica profissional. No entanto,a balança que fossemos capaz de realizar, perderia nos quesitos de resistência e qualidade de acabamento. Uma balança profissional trás incorporada diversas competências tecnológicas, próprias das indústrias de instrumentos de precisão. Comparar o que posso fazer com ferramentas e materiais simples e o produto industrializado, permite-me conhecer parte da habilidade técnica atingida pelos fabricantes e quais soluções me seria possível adotar no modelo de baixo custo a fim de aproximá-lo mais de um produto de mercado. Sobre este aspecto do distanciamento entre o estudante e o equipamento, é útil retomarmos as observações de Norberto Cardoso Ferreira, o Tex, da Universidade de São Paulo. Diz ele, num de seus artigos: Tomando-se por base uma escala de atividade do aluno e seu poder de decisão, o laboratório de demonstrações é o que ocupa o lugar mais baixo. Nele a interação entre o estudante e o instrumental é mínima. O poder de decisão do aluno é praticamente nulo, uma vez que tudo é feito pelo professor. Existem barreiras físicas (o aluno não toca no material) e

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barreiras intelectuais, no sentido de que o estudante pode não entender o que está se passando entre o professor e o instrumental. Caberá ao professor “decodificar” o experimento para o aluno. De maneira geral, os objetivos de uma demonstração são o treino de observação, a motivação etc. Quanto à avaliação, muitas vezes é deixada de lado. Pode-se, contudo, pedir uma descrição do experimento ou dos procedimentos, ou outros detalhes observados durante a exposição.1 Como regra geral, e sob o ponto de vista dos fabricantes dos equipamentos, o laboratório de demonstrações deveria servir como suporte ao professor, permitindo-lhe a realização de demonstrações de um certo fenômeno físico, na sala de aula tradicional. A barreira física, de que fala o professor Norberto, pode, muitas vezes, ser a cátedra, ou a mesa do professor, de onde todo o desenvolvimento da experiência parte sob sua ação, de sua voz e de suas mãos. Toda a perspectiva de permitir uma reinvenção do conhecimento, da maneira como pretendeu Piaget, desaparece no mesmo instante em que o fenômeno natural é depurado dos atributos não relevantes e realçado pelo equipamento, como numa mágica, induzindo uma conclusão única, sem que as etapas de raciocínio lógico anteriores, que incluiriam as hipóteses e a tese pudessem ser vivenciadas. No fundo, não há nenhuma conclusão e nenhum raciocínio científico real, apenas uma aceitação passiva de uma interpretação já consagrada na ciência; apelando freqüêntemente apenas para a capacidade de memorização do aluno, marca registrada de nossa metodologia de ensino tradicional. É possível entender o quanto pode ser falho este processo quando estivermos demonstrando a manifestação de fenômenos que foram descobertos de maneira acidental. Tal seria o caso da 1

in A Universidade e o Aprendizado Escolar de Ciências, Projeto USP/BID, Formação do Professor de Ciências (1990-1993). São Paulo: CECAE/USP, 1993, pg. 98.

86 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca indução eletro-magnética e dos Raios X . Então, o advento da descoberta e da descoberta acidental é excluído do aprendizado de ciências, deixando a impressão de que isso nada tem a ver com a atividade científica. Da maneira como esse tipo de aprendizado tradicional se desenvolve, nossos estudantes de física (e muitos profissionais em atividade) perderam o objetivo original da ciência que estudam, ignorando que os olhos do cientista estão, primordialmente fixos na observação do comportamento espontâneo da natureza e, só depois, então, voltam-se para suas fórmulas e seus laboratórios onde a natureza é domesticada, posta a funcionar em condições ideais... Apesar de todas estas observações, o uso dos laboratórios de demonstrações, nos moldes em que ele foi concebido, pode ter boas conseqüências educacionais se for utilizado como complemento de outras atividades onde o estudante tenha podido participar das etapas que levaram à descoberta dos fenômenos que irão ser demonstrados. Entretando, o melhor que se pode fazer é buscar modificações na maneira como são criados e utilizados tais laboratórios, permitindo uma aproximação maior entre os estudantes e a aparelhagem. Tal modificação poderia ser simplesmente incluir como atividade principal no uso do equipamento uma etapa de montagem do experimento. Não se pode pretender que as construções de tais equipamento sofisticados sejam atribuições que pudessem ser implantadas nas escolas. Estes aparelhos são provenientes de fábricas, cujas atividades fogem muito dos objetivos escolares. Desta forma, substituímos a construção pela montagem com bons lucros, pelas razões de que esta atividade permite ao estudante vivenciar situações muito próximas das atividades com o LOGO, descritas no primeiro capítulo. Notadamente, a perspectiva de existência do bug que impede o experimento de atingir os objetivos esperados. Muito já foi dito sobre como aproveitar a idéia dos bugs na ação educacional, aqui temos um bom exemplo de onde eles aparecem fora do LOGO e de atividades computacionais. Em geral, os fabricantes de equipamentos para estes laboratórios criam diversos módulos que podem ser utilizados em

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várias montagens, com fins diferentes. Estes módulos e peças são numerados e catalogados. Os catálogos apresentam a relação de peças e o esquema de montagem para as várias experiências possíveis. É a manipulação destes catálogos e o fácil acesso ao arquivo de peças que devem estar ao alcance dos estudantes, permitindo um excelente aproveitamento deste laboratórios dentro da idéia geral dos vários ambientes de aprendizagem inseridos na Experimentoteca-Ludoteca. No Instituto de Física da Universidade de São Paulo, existe um Laboratório de Demonstrações sob a cordenação geral do prof. Ernest W. Hamburger e sub-coordenação dos professores Norberto C. Ferreira e Fuad Daher Saad que, por razões diversas, tomou características particulares que muito facilmente permitiriam aproximá-lo das idéias aqui defendidas. O laboratório ocupa uma das alas de edifícios do Instituto, no andar mais inferior onde estão os laboratórios didáticos do curso regular. É um salão com uma área próxima dos 400 m2 . Há alguns anos atrás, este salão era recortado em três espaços distintos por paredes feitas com armários de aço. Nestes armários, em suas gavetas e prateleiras, era armazenado o vasto acervo do laboratório, constituído de equipamentos fabricados pela Phiwe, Leybold , Bender , entre outros. No espaço delimitado pelos armários, era colocada sobre várias bancadas uma pequena parte do acervo, que ali permanecia exposta à visitação pública. Os três espaços para a exposição separaravam vários temas bem nítidos. Na sala imediatamente à esquerda da porta de entrada, encontravam-se experimentos de eletromagnetismo e coisas afim. Na sala central podia-se ver experiências de acústica e mecânica das rotações. Finalmente, na última área de visitação, uma cortina negra escurecia a sala e podíamos ver demonstrações de fenômenos de ótica ou outros que exigissem pouca iluminação. Ali também era possível a projeção de filmes nas bitolas de 16 e super-8mm, armazenados numa pequena sala ao lado, que funcionava como uma pequena filmoteca. O acervo da filmoteca era formado por filmes de média metragem em 16mm do PSSC e filmes mudos da Earling com duração de alguns poucos minutos, na bitola de

88 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca 8 e super-8mm, acondicionados em loops, cartuchos que faziam o filme rodar ininterruptamente. Os projetores dos loops eram bastante portáteis, com as dimensõs de uma caixa de sapatos, de modo a permitir o seu fácil transporte, especialmente para as salas de aula. Quanto ao acervo geral, esse laboratório do IFUSP é invejável... Provavelmente, em virtude do acervo se encontrar nos grandes armários de aço, ele ganhou o apelido de Prateleira de Demonstrações ou, simplesmente, Prateleira. Esse nome, muito particular, sugere uma metáfora que inspirou o novo tratamento a estes laboratórios defendido aqui. Apesar de todas as qualidades, a Prateleira era pouco visitada pelos estudantes do curso de graduação e, até mesmo, pouco utilizada pelos professores do Instituto. Provavelmente, quanto à baixa visitação dos alunos, isso se explicasse pela pouca divulgação promovida pela Prateleira e o relativo, para não dizer total, desinteresse pelo laboratório da parte da maioria dos professores dos cursos básicos. Naquela época, os períodos de maior freqüência de visitantes, eram resultados de uma atividade anual, onde o laboratório era aberto à visitação de alunos do 2o grau. Nestes períodos, monitores eram contratados para receberem os visitantes. Via de regra, os monitores eram alunos do curso de graduação. Não recebiam nenhum treinamento, mas tinham que dar conta das explicações de cada um dos experimentos montados na exposição, para os alunos secundaristas que chegavam com seus professores em ônibus de excursão. Esse era um momento de aprendizagem bem maior para aqueles estudantes monitores que para os visitantes. Sem conhecer muito bem os fundamentos físicos da maioria dos experimentos, eles se viam obrigados a dar explicações que sua intuição, apoiada, às vezes, nos estudos teóricos das salas de aula, podia criar. No início, diziam muitas besteiras, ou coisas que não faziam muito sentido para os visitantes. Diante do funcionamento de uma bobina de Tesla, uma monitora explicava para o seu grupo que “aquilo era devido ao gradiente do ¶hi”. Um procedimento comum decorrente do tipo de ensino que se costuma ter. Era

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preciso encontrar uma fórmula que se aplicasse ao fenômeno. É esse tipo de ensino que confunde estudantes de Física com funcionários de farmácia de manipulações. Neste ponto, seria muito oportuno, observamos as declarações do prof. Manoel R. Robilota do Instituto de Física da USP, que faz parte do chamado “Grupo de Ensino” daquele Instituto e cujas preocupações com as questões educacionais são bastante sérias. Diz o prof. Robilota: Muitas vezes, os estudantes estudam, aprendem, mas parecem não saber física. Essa sensação aparece com freqüência durante as nossas atividades relacionadas ao ensino da física. É comum que, mesmo alunos inteligentes e dedicados, terminem os cursos com a impressão de que as longas horas de trabalho e todo o esforço empregado no estudo não são recompensados com alguma forma mais sólida de conhecimento. Parece que os cursos não fornecem aos estudantes a capacidade de andarem com as próprias pernas, de terem independência. Eles podem aprender a enfrentar os problemas e as situações que foram abordadas durante as aulas, mas ficam completamente sem iniciativa quando colocados frente a problemas novos. O conhecimento discutido no quadro negro não se ajusta ao mundo em que o estudante vive, ele não se enquadra na vida real. O ensino não parece levar os estudantes a serem proprietários do conhecimento. É como se, depois de muito estudo, esses alunos fossem não mais do que portadores de um saber cujos donos seriam os professores, os livros ou a escola. 2 Mesmo tendo a declaração acima aparecido num contexto que mostra a relevância do ensino de História da Ciência; relein Caderno Catarinense de Ensino de Física. 5 (no especial): 7-22. O Cinza, o Branco e o Preto — da Relevância da História da Ciência no Ensino de Física, pg. 7, jun. 1988. 2

90 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca vância que também é apontada no capítulo anterior, dentro do pequeno-museu, acreditamos que ela tem uma validade geral e permitimo-nos transcrevê-la aqui, dirigindo suas conseqüências para a necessidade, também, de modificarmos e utilizarmos ambientes como os laboratórios de demonstrações, permitindo uma forte interação com os objetos de ensino e oferencendo aos estudantes situações que lhes possibilitem exercitar o “discurso” da ciência até o ponto em que as transformações operadas sobre ele adquiram característica particulares que o levem a uma identificação e apropriação pelo estudante. Piaget e Inhelder, em seus estudos sobre a adolescência, descatam a importância do convivívio social e do trabalho, nesta fase do crescimento, para o aparecimento de uma construção interpretativa. Os alunos, a quem se refere o prof. Robilota, em idade cronológia, já deixaram a adolescência para trás, mas muito do comportamento relatado são características desta fase de crescimento. Segundo Piaget e Inhelder: Socialmente, todos notam a tendência do adolescente para se reunir em grupos com seus semelhantes: grupos de discussão ou de ação, grupos políticos, movimentos de juventude, acampamentos de férias, etc., (...). Ora, essa vida social é origem de descentração intelectual e não apenas moral: é principalmente nas discussões com os colegas que o criador de teorias freqüêntemente descobre, pela crítica às dos outros, a fragilidade das suas. No entanto, do ponto de vista da descentração, o fato principal é o início do trabalho propriamente dito. É ao empreender uma tarefa efetiva que o adolescente se torna adulto e o reformador idealista se transforma em realizador. Em outras palavras, é o trabalho que permite que o pensamento ameaçado de formalismo se volta para o real. Ora, a observação mostra como essa reconciliação entre o pensamento e a experiência pode ser trabalhosa e lenta. Basta examinar o comportamento de estudantes que

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se iniciam numa disciplina experimental para verificar até que ponto a crença do adolescente no poder do pensamento pode durar muito tempo e até que ponto o espírito está pouco inclinado a subordinar as idéias à análise dos fatos (o que não significa que os fatos sejam acessíveis independentemente de uma outra interpretação, mas sim que a construção interpretativa só adquire valor com a verificação experimental). 3 Igualmente enriquecedor, para estas questões, trazidas pelo prof. Robilota, seriam os seguintes trechos, extraídos de Vigotsky: O adolescente defronta-se com outros obstáculos quando tenta aplicar um conceito que formou numa situação específica a um novo conjunto de objetos e circunstâncias em que os atributos sintetizados no conceito aparecem em configurações que diferem da original. (...). No entanto, o adolescente corretamente é capaz de realizar essa transferência num estágio relativamente precoce do desenvolvimento. (...) A maior de todas as dificuldades é a aplicação de um conceito que o adolescente conseguiu finalmente apreender e formular a um nível abstrato a novas situações que têm que ser encaradas nos mesmos termos abstratos — um tipo de transferência que habitualmente só é dominado pelo fim do período da adolescência. A transição do abstrato para o concreto vem a verificar-se tão árdua para o jovem, como a primitiva transição do concreto para o abstrato. As nossas experiências não deixam quaisquer dúvidas de neste ponto, de qualquer forma, a descrição da gênese dos conceitos dada pela psicologia 3

Da Lógica da Criança à Lógica do Adolescente, B. Inhelder e J. Piaget, Livraria Pioneira Editora, SP, 1976, pg. 257.

92 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca tradicional, a qual se limita a reproduzir o esquema da lógica formal, não tem qualquer relação com a realidade. 4 Com estas contribuições em mente, podemos voltar à Prateleira de Demonstrações, onde, também, estas idéias importantes podem ser aproveitadas. As várias semanas em que aquele grupo de monitores passariam juntos no espaço da Prateleira, criariam as condições para uma troca de experiências que iria, pouco a pouco, afinando o discurso até o ponto em que, não só os fundamentos físicos de cada experiência eram compreendidos, mas, também, a maneira de torná-los mais acessíveis numa explicação para os visitantes. Isso era conseguido em pequenas sessões espontâneas, que ocorriam em frente de alguma das montagens mais desconhecidas, nos intervalos quando não estavam os visitantes. Alguns monitores já haviam tentado ler algum livro ou artigo e enriqueciam a discussão com uma opinião “autorizada”; mas, em geral, o que se fazia era ouvir a idéia de explicação de cada um para o experimento e adotar, mesmo que provisoriamente, a mais consistente. Assim o discurso de todos ia se modificando a cada novo grupo de visitantes e se aproximando de uma compreensão mais correta dos fundamentos físicos em questão. Quando este período de visitação terminava, o laboratório voltava a suas atividades corriqueiras. Fiz minha primeira visita à Prateleira, lá pelo início dos anos 80. Havia um único funcionário para atender os visitantes ocasionais. Era um graduado em Física e lembro-me dele dando-me explicações para o movimento de uma roda de bicicleta, que fazia parte de uma montagem para demonstrações sobre o conceito de momento angular em sistemas isolados ou não de torques externos. Essa cena não ocorrera por acaso. Havia construído, com um grupo de colegas, um conjunto semelhante, alguns anos atrás, para apresentar em uma feira de ciências na minha época de colegial, num tempo em que essas explicações, que acabava de ouvir, eram-me ina4

Ops. cit., pg. 108.

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cessíveis. Sei que, naquela outra época, explicava aos visitantes do nosso stand na feira, que a roda de bicicleta funcionava como um giroscópio e serviria para um sistema de navegação de aviões, foguetes e torpedos. Isso era alguma explicação que nos foi dada na Escola Técnica Federal de São Paulo, que tinha um laboratório de demonstrações muito bem aparelhado também e foi onde conseguimos ver um exemplar do equipamento que tentamos reproduzir, de maneira bastante improvisada. De qualquer forma, apesar de ficar “tagarelando” estas curiosidades sobre rodas de inércia e balancins sem ter uma idéia muito clara do que estava falando, tinha para mim o domínio de observação de uma série de fenômenos de rotação que me foram muito úteis quando momento de inércia, momento angular e coisas assim já podiam fazer parte do meu repertório intelectual. O funcionário da Prateleira, pode me dar uma visão mais cotidiana sobre os efeitos da variação do momento angular, explicando qual o procedimento para se fazer uma curva com uma motocicleta. Você deveria inclinar o corpo e a moto para dentro da curva (fazer o pêndulo, como dizem no motociclismo); se o guidão for “virado” como se fosse o volante de um carro, a moto inclinaria para o outro lado, tendendo a fazer uma curva contrária, o que provocaria um desastre. O laboratório de demonstrações do IFUSP utilizava um sistema de codificação que permitia localizar rapidamente uma peça de qualquer equipamento do acervo. Diante de tantos armários, gavetas e prateleiras, era adotado um critério simples e eficiente. Cada peça recebia um código que fornecia a sua localização através de um número para o armário e outro para a gaveta ou prateleira onde se encontraria a peça. Assim, os códigos A15P07 e A15G07 , significavam que a localização da peça estaria na prateleira, ou gaveta, no 7 do armário 15, respectivamente. Isso não fornecia uma identificação única da peça, já que todas as que estivessem na mesma prateleira de um mesmo armário receberiam o mesmo número de código. No entanto, já era um bom ponto de partida para um sistema informatizado de manipulação do acervo, incluindo-se aí os catálogos e outros

94 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca documentos que contivessem sugestões de montagens ou roteiros de atividades. Houve um interesse e uma tentativa de se fazer um sistema informatizado, anos mais tarde; mas, parece que não houve sucesso nesta implantação até os dias de hoje. É evidente a importância de um tal sistema num laboratório onde se pretende o livre acesso ao acervo, a todo e qualquer visitante. Não é imprescindível, é apenas uma enorme facilidade. Às vezes a facilidade permite a possibilidade. Este sistema poderia viabilizar o verdadeiro livre-acesso num espaço restrito onde a maior parte dos equipamentos deve estar fora da área de exposição. Para os que visitaram a prateleira, talvez pouco do que se esta descrevendo aqui, era possível de se ver lá. Você poderia, é verdade, “tocar” nos experimentos, o que, em si, já é uma diferença em relação à demonstração realizada em sala de aula por um professor. Porém, isso estava longe do manuseio, propriamente dito, da experiência. Era possível tocar algum interruptor que acionava o funcionamento do instrumental e isso não era muito. Algum conjunto de equipamentos, por suas características, não possibilitava esta montagem do tipo on-off e podia ser mais atraente, como era o caso do conjunto de demonstração do momento angular. No entanto, o visitante era sempre assistido para realizar experiências padronizadas que apontavam, diretamente, para o resultado planejado. Nenhum tateamento, nenhum problema, nenhum bug era possível. Vamos pegar um exemplo para se verificar como, apenas, uma mudança de procedimento frente às ações dos visitantes sobre o experimento pode revigorar uma aparelhagem já tradicional. O anel-saltante é uma montagem realizada com uma bobina de transformador de 300 espiras e um núcleo laminado de ferro e forma de I 5 . O núcleo é introduzido na bobina. A altura do núcleo é maior que a altura da bobina, de modo que se pode colocar um anel de alumínio, passando pelo núcleo e repousando sobre a bobina. O efeito da passagem de uma corrente alternada pelo enrolamento 5

Às vezes é preciso usar dois núcleos colados um sobre o outro, para se conseguir o tamanho ideal que é o dobro da altura da bobina, pelo menos.

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da bobina é fazer com que o anel salte. Dependendo das dimensões do conjunto, o anel pode saltar até mais de 3 metros na vertical. Pois bem, essa montagem é colocada em uma mesa e a bobina é ligada à rede elétrica, acionada por um interruptor tipo campaínha. Ao visitante resta apenas colocar o anel no núcleo e acionar o interruptor. Observado-se o comportamento das crianças no uso da montagem do anel saltante, pode-se ver uma coisa completamente colateral. As crianças se divertem com a montagem, é verdade, mas elas também abstraem um componente irrelevante para o desempenho no salto do anel, que introduz um elemento do jogo, ausente na montagem original, e que faz com que sua interação com o grupo de visitantes e com o aparelho seja mais interessante, do seu ponto de vista. Elas acreditam que o maior salto do anel depende diretamente da força que aciona o interruptor. O resultado disso é que, em poucos dias, o interruptor precisa ser substituído, porque já não funciona mais. Para aqueles que se encarregam da manutenção dos equipamentos, esse é um comportamento indesejável dos pequenos visitantes. Além de ser “irrelevante”, para o salto do anel, a intensidade da força com que se aciona o interruptor, uma força exagerada pode inutilizar o componente, exigindo sua troca “prematura”. Para aqueles encarregados de elaborar as montagens, passa desapercebido o atributo importante do componente lúdico ausente na montagem e requerido pelo usuário final. O que se poderia fazer? De imediato, seria possível se tentar a substituição do interruptor simples por um transdutor capaz de relacionar a corrente elétrica na bobina com a força aplicada no botão de acionamento, buscando aproximar o funcionamento da aparelhagem às expectativas dos experimentadores. Incluíndo-se, é claro, uma explicação adicional sobre o funcionamento dos transdutores. Todas estas experiências com o material destes laboratórios são bastante motivadoras para os estudantes que vêm de ambientes escolares pobres em equipamentos educacionais de qualquer espécie. E, talvez, apenas por esta motivação despertada, já se justifique a sua utilização. No entanto, existe um outro

96 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca lado da Prateleira de Demonstrações que é invisível ao visitante comum e, no geral, desconhecido da maioria das pessoas envolvidadas com estes laboratórios. É mais fácil descrevê-lo como um daqueles efeitos colaterais benéficos não previstos na fabricação de um medicamento. O acesso a este outro lado da Prateleira não era facilitado. Até agora os poucos que se credenciaram a esse acesso, o fizeram por alguma forma indireta que viria de alguma espécie de vínculo empregatício com o laboratório; seja como funcionário direto, seja como algum bolsista ou monitor. Essa credencial poderia permitir o livre acesso ao acervo e tempo suficiente para se poder experimentar livremente com os equipamentos que se encontravam além da área de exposição; ou, até mesmo, construir novos experimentos. Além do acervo de experimentos, catálogos, filmes a Prateleira contava com uma pequena oficina mecânica com serviços de tornearia em geral e uma oficina de eletrônica, cada qual com um funcionário especializado, trabalhando em tempo integral. Não há dúvidas de que o estudante credenciado encontrava ali uma fonte inestimável para a aprendizagem de fenômenos e leis da Física. Com todas estas facilidades, dali saíram muitos experimentos construídos para algumas exposições didáticas e se poderia estabelecer alguma competência na produção destes equipamentos com este tipo de finalidade, não fosse, por questões de verbas, a grande rotatividade do pessoal ali treinado. Existe uma visão dominante sobre quais deveriam ser as atividades a serem desenvolvidas pelos estudantes no espaço do laboratório didático. Via de regra, sob este ponto de vista dominante, o laboratório se presta à realização de atividades experimentais que visam a comprovar a validade de uma certa lei da Física. Posto desta maneira, pareceria o óbvio. No entanto, o entendimento de uma comprovação de certa lei física nem sempre implica em se conseguir mostrar ao estudante que o objetivo é verificar que um certo fenômeno da natureza tem seu equivalente na teoria científica; isto se deve, na sua totalidade, ao fato do estudante estar envolvido com uma série de roteiros

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de atividades que o impedem de tomar consciência das reais intenções das ações propostas. Ao estudante não cabe nenhuma iniciativa própria, nenhuma responsabilidade além daquela mais perniciosa de apenas realizar suas tarefas em função de um bom desempenho nas avaliações escolares. De uma maneira mais incisiva, é preciso afirmar que, da forma como estas “aulas de laboratório” ocorrem, não diferem em nada de uma atividade culinária: é o monótono acompanhamento de uma receita de bolo. O mesmo ocorre nas outras atividades realizadas nas “aulas de teoria”. Aqui se pode deixar mais claro o que se pretende dizer com o ensino se confundir com uma farmácia de manipulações, uma farmácia de manipulações de fórmulas magistrais. É esta a imagem que vem das atividades escolares em Física. Muitos já puderam observar as atividades de um farmácia de manipulações. Do ponto de vista farmacêutico, elas remetem aos primeiros tempos desta atividade profissional, antes do estabelecimento do poder econômico dos grandes laboratórios. Nestas farmácias, o profissional habilitado recebe a encomenda de um certo remédio e, no seu laboratório, busca nos livros, tabelas e fórmulas o procedimento que deve aplicar a fim de entregar ao cliente o produto esperado. Ele segue, nos livros e catálogos aquilo que foram os produtos da atividade de outros profissionais pesquisadores. Não há, do ponto de vista da atividade farmacêutica, nenhuma contradição ali. Não se poderia censurar um engenheiro civil por aplicar fórmulas e tabelas de preparação de concreto, para a construção das vigas de um edifício. No entanto, o que se espera de um estudante dentro das atividades escolares em geral é muito mais do que isso. Medir a constante elástica de uma mola, como fez Hooke, não tem maiores conseqüências que uma explicação teórica razoável não pudesse resolver; esclarecendo o comportamento da elongação que certas molas têm, quando sustentam uma certa carga. Isso eliminaria a experimentação desmotivadora. Entretanto, algumas experiências com o uso de molas poderiam ser interessantes. O pêndulo de Wilberforce é construído tomandose como base um sistema massa-mola simples. No lugar do

98 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca elemento de carga (massa) é colocado um cilindro com alteres reguláveis, permitindo a variação da sua inércia de rotação ou momento de inércia. No conjunto, ele é um pêndulo de torção, como o balancim de um relógio mecânico de pulso e um sistema massa-mola simples, onde o momento de inércia da carga é constante, como a espiral de um caderno que sustenta uma pedra numa das extremidades. Um sistema deste tipo é um oscilador harmônico acoplado, de modo que ele realiza movimentos que se repetem periódicamente. Pode realizar um movimento oscilatório linear na direção vertical e uma torção num plano horizontal. Se o sistema de massa é deslocado verticalmente de sua posição de equilíbrio ele passa a oscilar nesta direção e, paulatinamente, irá combinando um movimento de torção, também periódico, da massa com a translação. Uma configuração de maior interesse ocorre quando a posição dos alteres é ajustada de modo a fazer o período das torções coincidir com o período das oscilações verticais. Ocorre um importante fenômeno de ressonância que faz com que a energia inicial do sistema, concentrada nas translações verticais, seja, passo-a-passo, a cada ciclo, transferida para as rotações, fazendo com que, num certo instante, toda a energia esteja armazenada na forma do movimento de torção, cessando o movimento periódico vertical. Neste ponto, o ciclo se inverte, no sentido de voltar à configuração original. Esta descrição do funcionamento do pêndulo de Wilberforce foi conseguida após algumas horas de observação do funcionamento do pêndulo, feitas no laboratório de demonstrações. Dois estudantes puderam ficar todo este tempo “contemplando” o movimento coordenado do pêndulo segundo um único roteiro ditado pela curiosidade mútua. Se o problema fosse atacado apenas por conhecimentos matemáticos e memorizações acerca dos fenômenos de ressonância, a questão estaria “resolvida” em poucos minutos. Mas o que se poderia ganhar com todas estas horas de observação, onde nenhum cálculo matemático foi realizado, nenhum dado foi assentado? Ocorre que este é o caminho percorrido por aqueles que, de alguma maneira construíram o conhecimento físico. É da tentativa de poder conseguir uma correspondência entre

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os fenômenos da natureza e a teoria científica que a ciência se constrói. É esta procurada completude das teorias que dá à ciência esta inigualável capacidade na descrição da natureza. Este é o caminho da descoberta (dependendo do momento histórico), contraposto ao caminho da verificação, que, muitas vezes, não leva a lugar nenhum. As leis físicas, quando desvinculadas da noção de que são uma descrição de fenômenos reais, não passam de crença mística que pode levar a pequenos, ou grandes, absurdos. Tomemos como exemplo uma brincadeira comum na Prateleira que diferencia muita claramente uma convicção de uma fé cega na descrição científica livresca. Um pêndulo simples com uma esfera de ferro com uns 10Kg era pendurado no teto do laboratório com a massa podendo ficar à altura do nariz de uma pessoa de estatura mediana, quando deslocado de cerca de 1, 5m da posição de equilíbrio. A um certo visitante, de preferência algum graduando ou graduado de física, era feita, de modo desafiador, a seguinte pergunta: Você acredita nas lei de conservação da energia?. A resposta era, invariavelmente, sim. Em seguida a pessoa era convidada a ficar em pé em frente ao pêndulo; a esfera de ferro era trazida para perto até tocar o seu nariz e abandonada para realizar o seu primeiro ciclo de oscilação. Na volta da esfera, muito antes da esfera chegar a elongação máxima o “sujeito” recuava, temendo ver seu nariz atingido pelos 10Kg de ferro fundido!... O que significa isso, uma brincadeira inconseqüênte? De maneira alguma. Isso tudo remete àquele princípio da sintonicidade, reivindicado por Papert, descrito no primeiro capítulo e ausente no nosso ensino tradicional. De nada adiante me “comunicarem” que, em certos campos de força conservativos, a energia deve permanecer constante se, pessoalmente, não tenho muita convicção de que isto possa ter uma correspondência com a realidade. Esta experiência sintônica com o pêndulo pode fazer muita mais por nosso aprendizado deste princípio da natureza, que qualquer descrição formal. Ainda resta uma observação sobre o pêndulo de Wilberforce que não foi comentada. Naquela “sessão” dos dois estudantes

100 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca com o pêndulo, uma questão, que não poderia vir das equações do oscilador harmônico, intrigou-os: Como que o movimento vertical é capaz de transferir energia ao movimento de torção. São sistemas mecânicos e deveria haver alguma mecanismo de transmissão da mesma natureza. A tentativa de conseguir tal resposta custou um bom tempo de observação até que a resposta satisfatória apareceu como uma real “descoberta”. Brevemente, significava que a mola, para se “esticar”, precisava se “desenrolar”, o que significava que ela realiza uma rotação no sentido contrário ao que ela foi enrolada 6 , provocando a torção do pêndulo, rigidamente ligado na extremidade inferior da mola que, por sua vez, está rigidamente ligada a algum suporte, pela extremidade superior. A conclusão de tudo isso não é a de que devemos colocar um pêndulo deste tipo na frente dos estudantes e pedir-lhes uma descrição do seu funcionamento. Isso seria pouco interessante e pouco produtivo. Mas também não significa que devemos depositar nossas esperanças num total espontaneísmo do aprendizado, cabendo pouca coisa a se fazer. A expectativa é de que nossos esforços devem estar concentrados no “arranjo” que queremos dar a estes vários ambientes de aprendizagem, possibilitando que a interação com eles leve ao conhecimento desejado. São certas leis da “natureza” humana que devem nos guiar. Se você observa o tipo de moradia construída pelos vários povos e pelas diversas regiões da Terra, constatará que o homem sempre lança mão do que lhe é mais abundante e de fácil acesso para construir suas moradias. No norte do planeta, os esquimós nômades constróem seus abrigos de gelo, material abundante naquele deserto gelado. Da mesma forma, perto das florestas, as casas são de madeira, se se possue ferramentas adequadas; ou de palha e bambú, como no caso dos índios. E nesta linha, podemos descrever várias outras maneiras que nos fariam fugir dos objetivos deste trabalho. O que é notável é observar que em muitos lugares as casas são construídas de barro crú, o que altera 6

Na verdade, o fio de aço, utilizado para fabricar a mola, que foi enrolado em torno de algum cilindro, produzindo a mola, é quem se desenrola, tentando voltar à configuração original de um fio retilíneo.

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substancialmente o problema, na medida em que, sendo o barro um material muito abundante ele é, ainda hoje, o material mais empregado na construção das moradias humanas. A grande diferença fica por conta do domínio de uma técnica muito antiga de se cozinhar o barro para se obter a cerâmica. Aqui vemos que um mesmo material pode mudar muito suas características pelo domínio de algum conhecimento. Com esta espectativa é que devemos organizar nossos ambientes de aprendizagem fazendo com que os elemento de construção do conhecimento estejam à mão na quantidade e qualidade certas, permitindo que um certo tema seja desenvolvido exaustivamente pelos estudantes. Este é um assunto que pode, hoje, ser melhor compreendido graças às grandes redes mundiais de computadores. Não há maiores analogias aqui, além daquela que permite mostrar que, dentro destas redes, existe uma incalculável quantidade de informações armazenadas, emaranhadas numa teia gigantesca de computadores servidores, cada qual oferecendo algum tipo de acesso a determinados dados. Num grande espaço, fracamente sinalizado, é muito difícel orientar algum tipo selecionado de informação. É tanta informação que se corre o risco de sair mais desinformado, ou ficar andar em círculos, depois de uma experiência destas. Isto não difere do conhecimento armazenado pelas ciências. São eles que no fundo permitiram redes de computadores e muito mais. O que se pode fazer é ajudar a organizar os passos iniciais do estudante, para que ele, o mais rápido possível escolha qual caminho tomar, tendo logrado chegar ao grande nó de onde derivam os caminhos que levam às atividades dos homens adultos de ciência, ou de qualquer outra atividade. E, para ajudar nestes passos, os laboratórios de demonstrações, reorientados com estas idéias que o incorporam ao ambiente da Experimentoteca-Ludoteca, têm notória utilidade.

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Capítulo 6 A Experimentoteca-Ludoteca: Conclusões A denominação “experimentoteca” pode ser atribuída a um número muito grande de espaços, com diferentes concepções. Em termos gerais, basta reunir um acervo de experimentos e colocálos à disposição de algum grupo de usuários para caracterizar uma experimentoteca. A maneira básica como estes acervos são ordenados depende das concepções de seus organizadores. A idéia da Experimentoteca-Ludoteca, teve origem nos trabalhos do prof. Norberto C. Ferreira da Universidade de São Paulo. Suas intervenções na antiga cadeira de Instrumentação para o Ensino de Física, dos cursos de licenciatura, serviram para reunir uma vasta experiência na construção de protótipos de aparelhos instrucionais e consolidar suas convicções no poder educacional destas atividades. Sua habilidade em transformar material reciclável em instrumentos de ensino valeram-lhe a impertinente referência de “rei da sucata”, dado por uma revista especializada em assuntos educacionais. Na verdade, a referência às sucatas foi imprópria, uma vez que a idéia que orientava a coleta dos materiais para uso na construção dos experimentos era mais evoluída e remetia ao conceito de material de 103

104 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca fácil-acesso e baixo-custo, muito mais abrangente. Isso é substancialmente diferente da idéia vaga da sucata que, por um certo tempo, permeou as várias atividades escolares como uma verdadeira panacéia para as dificuldades do terceiro mundo. Trabalhar com o conceito de materiais de fácil-acesso, implica em se poder dominar algo que, em certa medida, é uma arte que nos torna hábeis na realização de nossos projetos, adaptando-os para aquilo que tivermos à mão. É algo assim como a situação vivida pelos protagonistas das antigas séries de televisão O Planeta dos Macacos, O Túnel do Tempo e ’Magaiver’ , que tinham que fazer valer seus conhecimentos científicos em épocas, ou lugares, onde não existiam os materiais nas formas industrializadas que encontramos hoje no mercado. Essa é uma idéia tão atraente que foi capaz de levar os produtores das indústrias de entretenimento a gastar razoáveis fortunas incluindo-as nos roteiros de cinema. Ou, mais recentemente dentro da realidade, a dramática situação vivida pelos astronautas da Apolo 13, que obrigou os técnicos e cientistas da NASA a idealizarem artefatos que pudessem ser construídos no espaço, a partir dos poucos objetos disponíveis no interior da nave, salvando as três vidas humanas que ali estavam. Parte destas idéias, apareceram na forma do laboratório circulante. Esta modalidade foi utilizada nos cursos básicos do Instituto de Física da USP. O laboratório circulante era constituído de caixas com experimentos construídos com materiais de baixo custo, destacando aspectos de algum fenômeno físico. Estas caixas eram retiradas pelos alunos que realizavam as atividades fora dos horários de aula. Junto com os kits, um roteiro de atividades era proposto, orientando a montagem e os passos de observação do fenômeno em destaque. Ao final, o aluno deveria ser capaz de gerar um relatório sucinto, comunicando os resultados obtidos 1 . O que havia de fundamental no laborató1

Esta necessidade imposta ao aluno de gerar relatórios das experiências é algo que acaba se tornando improdutivo e massante. Sob a idéia dominante de se estar permitindo um “treino” para a produção futura dos artigos que um pesquisador deveria fazer publicar nas revistas especializadas, o

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rio circulante foi aproveitado pela Editora Abril para lançar a série Os cientistas, vendida com relativo sucesso nas bancas de jornais. O prof. Dietrich Schiel, do IFQ-SC, utiliza parte desta idéia na sua experimentoteca. A diferença fica por conta do fato de que os kits são reproduzidos em grande número e acondicionados em uma caixa que pode ser retirada pelos professores da rede de ensino secundário e serem distribuídos aos seus alunos, que realizam as experiências em sala de aula. É uma maneira de driblar a falta de salas de laboratório e equipamentos na rede de ensino. Apesar da importância dos laboratórios circulantes, neles fica ausente a intervenção dos estudantes na importante etapa de construção dos equipamentos. Esta ausência, mostra uma diferença evolutiva entre os laboratórios circulantes e a Experimentoteca-Ludoteca, onde a construção dos equipamentos tem destaque fundamental. Um outro aspecto da construção dos equipamentos, e que tem a ver com as origens da Ludoteca é destacado pelo próprio prof. Norberto num outro artigo, onde ele escreve sobre a utilização de “kits” de experimentos construídos pelos alunos e novas tendências no ensino de laboratório. Ele diz: Os “kits” não constituem uma abordagem experimental em si e não estão ligados à uma modalidade específica de laboratório, podendo ser utilizados de uma maneira tradicional, num laboratório divergente, ou de projetos, etc.... Todavia, a montagem e utilização de aparelhos simples poderá propiciar o aparecimento de novos dispositivos, também simples, e de autoria dos próprios alunos. Em várias ocasiões tivemos contribuições deste tipo por parte dos estudantes. Assim, novas utilizações do mateque se acaba criando é uma indústria da cópia. Há vários anos atrás, um grupo de estudantes, a título de protestar, montou “banquinhas” na entrada do edifício principal daquele Instituto, para vender relatórios antigos que tiveram nota dez. Durante muito anos a série de experiências que se exigia aos estudantes realizar não tinha se modificado; sendo assim, os relatórios poderiam ser sempre os mesmo a cada ano.

106 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca rial foram propostas, modificações na aparelhagem foram sugeridas além do desenvolvimento de pequenos projetos utilizando material de fácil obtenção. Estas contribuições são de grande importância pois enriquecerão o acervo da “biblioteca” e estimularão o aparecimento de projetos similares. Os próprios alunos se encarregarão da organização do material sob a forma de uma biblioteca circulante que é, em última análise, o tipo de experiência que foi descrita por Ryder 2 no seu “Take home experiments”. O conjunto experimental, com instruções de montagem e sugestões de experimentos irá servir à um aluno para que, em sua casa reviva as experências anteriores de um colega. Acreditamos que isto seja de fundamental importância pois a “biblioteca” assim constituída se apresenta como um veículo didático em si pois ela incentivará a participação do aluno nas atividades experimentais pois muitos estudantes encontrarão satisfação em ver que seus instrumentos estão contribuindo para o aprendizado de um colega. Esta é a maneira do estudante estar agindo junto à sua coletividade e o próprio educando vê isto claramente. Mais ainda, isto irá gerar outras formas de aprendizado, mas que já estão fora da influência direta do professor mas que serão oriundas de uma forte interação entre o aluno-aprendiz e o aluno-construtor. 3 Neste trabalho do prof. Norberto, como professor do colégio Alberto Levy, que resultou, com a efetiva colaboração de 2

Referência no texto à Ryder, M. — Take home experiments. Physics Teacher, pg. 533, 1973. 3 in Anais do Simpósio sobre Ensino de Biologia, Física, Matemática e Química (1o e 2o graus) no Estado de São Paulo. A “Biblioteca de Instrumentos” da EESG Prof. Alberto Levy, publicação ACIESP, Secr. da Cultura Ciência e Tecnologia e Academia de Ciências do ESP, pgs. 239-240, 1978.

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seus alunos, numa “biblioteca” de instrumentos para aquela escola, mostra-nos, em caráter embrionário, o surgimento da idéia da Experimentoteca-Ludoteca, cuja efetiva construção só pode ser iniciada anos mais tarde no IFUSP. Na perspectiva de conseguir financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), um projeto da Experimentoteca-Ludoteca foi elaborado com a coordenação do prof. Norberto e a colaboração de Arnaldo de Moura Vaz, Aníbal Figueiredo Neto, estes últimos eram, então, mestres em ensino de ciências pelo Instituto de Física (IFUSP) e Faculdade de Educação (FEUSP) da Universidade de São Paulo. Neste projeto, a Experimentoteca aparecia como um acervo de experimentos e brinquedos voltados para o ensino de Física e um outro acervo contendo roteiros de atividades e guias de montagem. Com os créditos do BID, foi possível montar numa sala do IFUSP uma exposição dos trabalhos desenvolvidos e atender pessoas interessadas. Além disso, dois funcionários e dois monitores poderiam ser contratados pela universidade para trabalhar no projeto. Uma outra grande conquista foi a perspectiva de se trabalhar diretamente com a rede de escolas públicas da cidade de São Paulo, através da atuação na, então, coordenadoria dos núcleos de ação educacional (CONAE), no governo de Luiza Erundina, quando o secretário de educação era Paulo Freire. O projeto contava com a colaboração direta de dois professores da prefeitura que trabalhavam no núcleo de multi-meios da CONAE. Assim, uma sala deste núcleo foi oferecida para instalação dos trabalhos da Ludoteca. No turno da tarde, duas vezes por semana, esta sala era usada para construção, desenvolvimento de projetos e contatos com professores da rede municipal. Era uma boa base para se poder fazer alargar os horizontes de alcance do projeto. De início, dois núcleos de ação educacional (NAE) 4 , através de alguns de seus professores, mostraram interesse em montar uma Experimentoteca-Ludoteca. Com estas bases estabelecidas, o projeto pode ser divulgado através de entrevistas à imprensa, 4

Estes núcleos correspondem às funções das tradicionais delegacias de ensino.

108 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca oficinas e acessoria educacionais, entre outras formas. Hoje ele se desdobrou em várias frentes de ação com a criação do RIPE (Rede de Instrumentação para o Ensino) com atuação em várias cidades do Brasil e outras no Perú. Sobre aquela primeira etapa, escreve o prof. Norberto : O Projeto da Experimentoteca-Ludoteca significou para nós uma oportunidade de estabelecer um trabalho sistemático de pesquisa que juntasse nossas diferentes áreas de interesse: o uso de atividades experimentais para o ensino da Física, o uso de materiais de baixo custo e as atividades de extensão universitária, principalmente as de apoio a professores em serviço. Para atingir esses propósitos criou-se, de início, um local que abrigou: (a) materiais e ferramentas para construção de aparelhos destinados ao ensino de Ciências em geral, mas com grande predominância da Física, (b) um acervo dos aparelhos construídos e das instruções para sua utilização; e (c) uma pequena biblioteca com livros didáticos e de pesquisa em ensino.5 Após a experiência de trabalho na CONAE e o relativo sucesso da propostas junto aos professores das escolas municipais paulistas, ele escreve, mais adiante: Os contatos iniciais que tivemos excederam nossas expectativas de, a partir de apenas um núcleo, no IF, atender aos interessados. O trabalho com a SME — Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo mostrou-nos a necessidade de investir numa estrutura mais ampla, que possibilitasse a médio prazo a autonomia da instituição educacional, com a constituição de uma mini-experimentoteca-ludoteca, 5

Ops. cit., pg. 103.

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voltada para os interesses e necessidades dos responsáveis pela mesma, mas que respeitasse os princípios de trabalho que propúnhamos (trabalhos com experimentos, constituídos preferencialmente de materiais de baixo custo, direcionados ao assessoramento do professor em exercício). Não se trata, porém, de produzir “clones” de nossa Experimentoteca-Ludoteca, mas de estimular o surgimento de estruturas locais e contextualizadas, dependendo essencialmente do tipo de conteúdo que será desenvolvido pela equipe pedagógica local que o coordena. A Experimentoteca-Ludoteca assim criada depende dos educadores responsáveis e dos contextos. É por isso que a definimos apenas qualitativamente.6 A não produção de “clones” é coerente com a idéia de respeitar as particularidades de cada escola. Mais do que isso, ela permite que os ambientes educacionais construídos sejam apropriados pela comunidade escolar local já que ela traz para si a maior parte da responsabilidade na construção, definição de prioridades, busca de financiamentos e desenvolvimento de novos experimentos. Com isso, pode-se minimizar os riscos de abandono à deterioração por falta de uso e manutenção, de propostas que foram implantadas com grande esforço, muitas vezes de um só professor, mas que não foram incorporadas no sentido da apropriação por serem, em alguma medida, alienígenas, não oriundas do esforço em adquirir capacidadades ou responderem às necessidades locais. A experência anterior no colégio Levy mostrou o quanto é importante a livre iniciativa permitida aos estudantes, parcela fundamental da comunidade escolar, que leva, a partir de algumas idéias iniciais, à criação de respostas positivamente inusitadas e que refletem as características muito particulares do lugar onde elas foram levadas a cabo. 6

Idem, ibidem, pg. 104.

110 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca A incorporação do atributo de ludoteca deu contornos particulares ao projeto. Não se tratava apenas de conseguir reunir ao acervo de experimentos um outro de jogos e brinquedos que pudessem ser utilizados no estudo de ciências. A questão da ludicidade, aparecia em fusão com a construção dos experimentos. Era uma tendência que já aparecia nos trabalhos isolados do prof. Norberto e que se somavam às investigações de Aníbal Figueiredo, cuja dissertação de mestrado tinha como tema, exatamente, a investigação do lúdico no ensino de ciências. A ludoteca, em fusão com a experimentoteca, abria uma via natural de produção de experimentos que poderiam servir para trabalhos junto às crianças pré-escolares, ou do 1o grau. Dentro da Experimentoteca-Ludoteca, existe uma série de pequenas montagens que visam ao estudo do equilíbio de corpos rígidos; esta série abrange desde o estudo e determinação do centro de massa de diversas figuras planas até a construção de balanças e brinquedos de equilíbrio. Os brinquedos de equilíbrio, permitem que conceitos físicos importantes como centro de gravidade, ponto de equilíbrio e ponto de suspensão possam ser levados às crianças em idade pré-escolar através de ações lúdicas. Existe uma certa pauta implícita que exige que os protótipos provenientes da Experimentoteca-Ludoteca contenham algo de ludicidade. E isso exige um exercício grande de criatividade. Por exemplo: o que se poderia fazer com uma pelotinha de isopor de 1mm (!) de diâmetro, uma agulha de costura e um canudo de refresco? O prof. Norberto criou uma pulga elétrica, fazendoa saltar ao longo do canudo de refresco, previamente eletrizado, com a aproximação da agulha que, pelo efeito pontas, comum nos pára-raios, provocava a descarga localizada do canudo levando a pelotinha a saltar para outro ponto eletrizado... O efeito agradável do lúdico nos experimentos é incontestável. Entretanto, o mesmo não se pode garantir ao valor pedagógico que se espera dar a estas construções, já que fatores intervenientes do imaginário deverão estar presentes; pois, como bem destaca Luria: As operações divergem, por assim dizer, da ação.

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Não é pois de provocar admiração o velho adágio que diz que você nunca irá longe montado em uma vara. As operações lúdicas são inadequadas para a ação orientada por um certo resultado. Você pode ir longe, é verdade, mas no brinquedo, a ação, todavia, não persegue um objetivo, pois sua motivação está na própria ação e não em seu resultado.7 Estas observações de Lúria são especialmente importantes quando nosso alvo de atuação são crianças pré-escolares. Para elas foi dedicado todo o capítulo terceiro e as orientações de atuação no “playground”, que nós queremos que seja mais um dos ambientes de aprendizagem coordenados pela Experimentoteca-Ludoteca. A ênfase dada, naquela ocasião, à não intervenção direta dos adultos, cuja participação deve retringir-se à criação de aparelhos que seriam colocados a disposição das crianças no espaço educacional, são, especialmente válidas aqui, a partir das informações extraídas do texto de Lúria. Ele destaca que a inclusão de objetivos fixados, podem transformar um objeto lúdico, cuja característica é ditada pelo imaginário da criança, num frio objeto com as característica reais: um cabo-devassoura pode não ser um cavalo, é a imaginação que o caracteriza. A inclusão do objetivo pode condenar o cabo-de-vassoura a ser sempre uma simples vara. Para Luria: (...) o significado não é simplesmente concretizado no processo lúdico. No brinquedo, as operações com a vara fazem parte de uma ação bastante diferente daquela para a qual elas são adequadas. Da mesma forma, a vara, conservando seu significado para a criança, adquire para ela, ao mesmo tempo, um sentido muito especial nesta ação, um sentido que é tão estranho a seu significado quanto a ação lúdica da criança o é para as condições objetivas nas 7

Linguagem Desenvolvimento e Aprendizado. L. S. Vigotsky, A. R. Luria e A. N. Leontiev. Ícone Editora ltda. e EDUSP. 1988, pg. 127.

112 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca quais ela ocorre; a vara adquire o sentido de um cavalo para a criança. Este é o sentido lúdico.8 No entanto, quando falarmos em jogos com regras e com objetivos, portanto, que seriam, particularmente, interessantes para crianças, até mesmo, em idade escolar, o seu papel psicológico é de muita importância e tem interesse especial para a atuação da Experimentoteca-Ludoteca. Ainda, segundo Luria: Todos esses jogos são de grande importância psicológica, porque traços extremamente importantes da personalidade da criança são desenvolvidos durante tais jogos e, sobretudo, sua habilidade em se submeter a uma regra, mesmo quando um estímulo direto a impele a fazer algo diferente.9 E ele se pergunta, mais adiante: Por que são psicologicamente importantes os jogos com objetivos? Sua significação psicológica reside ainda em outro momento importante para a modelagem da personalidade das crianças que nelas surge pela primeira vez, o momento da autoavaliação. Esta surge em sua forma ainda muito simples, a da avaliação da própria destreza, da própria habilidade e progresso. comparados com os dos outros.10 Por aí, vemos que, além da importância do conhecimento físico ser relevante para o desenvolvimento mental das crianças, como já foi destacado antes, a inclusão do lúdico tem implicações importantes para o desenvolvimento psicológico delas, que podem ser uma contribuição de valor feito através da intervenção da Ludoteca. A série de equilíbrio, a pulga elétrica e tantas outras são recursos que agem sobre estas duas vias. 8

Ops. cit., pg. 128. Ops. cit., pg. 138. 10 Ops. cit., pg. 139. 9

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Quando olhamos para um espaço como o “playground” e o queremos colocar sob nossa linha de intervenção, estes pontos são importantes. Bem importante é, também, o conceito de zona de desenvolvimento próximo de Vigotsky que nos mostra que devemos ter sempre em vista os processos embrionários da estrutura cognitiva das crianças e agir no sentido de favorecer o seu amadurecimento. O “playground” é um espaço lúdico enquanto o imaginário da criança o estiver transformando mas, a criança, como assinala Luria, não passa o dia inteiro em relações imaginárias com os objetos reais. No entanto, essa oscilação entre o imaginário e o real não obedece a uma lei dinâmica e se obedece, tem características tão aleatórias que não podem ser formuladas devido às inúmeras irregularidades. Da mesma forma como o agricultor sabe que não basta jogar as sementes no solo para garantir uma boa colheita, é necessário sabermos, também, que não basta colocar os nossos objetos educacionais à disposição dos educandos para que o aprendizado se faça. Mas, a modificação do ambiente é fundamental já que é a única coisa sobre a qual podemos agir com segurança. Nós podemos colocar um escorregador no “playground” que, sob outro ponto de vista é um relógio de sol, como fez o Museu de Astronomia do RJ; no entanto, a mudança de visão que poderia reconhecer o escorregador como um marcador de tempo não é automática. Os conhecimentos que adviriam daí seriam a descoberta do movimento aparente do sol e o uso dele para a marcação do tempo. Conhecimentos importantes cuja descoberta seria favorecida com nossos aparelhos. No capítulo três, em que o assunto era o “playground”, um exemplo aparecia com um menino de cinco anos brincando na areia. Um adulto restringe o tempo de diversão no parque ao momento em que a sombra de uma vareta atingisse um marco feito com um montinho de areia. Esse episódio acaba permitindo ao menino não só a descoberta do movimento da sombra mas, também, a modificação do seu conceito primitivo que ditava a imobilidade dela. Não é, ainda, a descoberta do movimento aparente do sol, mas está próxima. O relógio de sol, improvisado com gravetos e areia, é importante,

114 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca mas o senso de oportunidade que permite aproveitar o momento para ocorrência deste aprendizado, também é muito importante. Essa questão do “tempo certo” é um problema crônico de nossas escolas; nem professores, nem estudantes podem determinar a hora e o lugar adequado para que uma efetiva apropriação do conhecimento ocorra. O resultado dramático é que estamos, salvo raras vezes, semeando em terra seca. Posta desta maneira a questão do lúdico, podemos passar para um outro assunto pertinente. Trata-se de uma polêmica, muito comum, sobre o lugar dos laboratórios no ensino. Os laboratórios devem servir à teoria como um local de verificação da validade das leis estudadas? Ele deve preceder as aulas teóricas como um meio se chegar a modelos matemáticos, inferidos da análise dos resultados? Estas duas questões partem de um mesmo esquema de lógica formal para a construção da aprendizagem. Vigotsky já destacou a falha desta visão, no seu Pensamento e Linguagem, como pudemos observar alguns capítulos atrás; mais do que isso, mostrou o quanto são falhos os modelos de lógica formal aplicados à compreenção dos processos de aprendizagem. No entanto, esta visão, que predominou no ensino, não toma por base os processos psicológicos, mas sim, a uma análise de como evolui a ciência. Além disso, esta visão predominante, faz um transporte mecânico da clássica divisão do trabalho, praticada pelos cientistas profissionais, separandose em teóricos e experimentais. No caso da Física, a briga pelo prestígio entre Físicos-teóricos e Físicos-experimentais é um exemplo desta divisão. A transposição mecânica obriga que o ensino seja dividido em aulas-de-laboratório e aulas-de-teoria; que, na prática, não precedem nem procedem umas às outras: são dissociadas. Do ponto de vista da moderna psicologia da aprendizagem, esta polêmica não faz sentido, como não faz sentido a separação mecânica entre teoria e prática no estudo de quaisquer das áreas escolares. Do ponto de vista da evolução da ciência não é a verificação de uma certa lei teórica que importa, mas sim, a sua refutação, como bem assinalou Popper. A divisão do traba-

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lho entre os cientista é real e é um componente social que está presente em todas as atividades humanas. Entretanto, para a evolução da ciência, nenhuma destas atividades é a mais importante. Basta olhar para Ticho Brahe e Keppler para não se poder distingüir qual das estrelas tem maior brilho. Para a consolidação do modelo heliocêntrico, as anotações de Brahe e a capacidade teórica de Keppler não podem ser vistas isoladamente. Tanto uma, como a outra, refletem um momento histórico onde elas deveriam surgir e são condições interdependentes na construção do novo modelo; cujo acabamento final seria dado por Newton, “apoiado nos ombros daqueles dois gigantes”. De outra forma, poderíamos dizer que não se poderia transportar para a educação um modelo de lógica formal, apoiado numa visão limitada da evolução da ciência. Ocorre que os programas escolares são antigos e as pessoas que os elaboraram, não poderiam agir de outra maneira, já que, dentro da sua concepção, essa era a ação recomendada. Para se ter uma idéia de quão forte é essa visão no ensino tradicional, basta ver o que fizeram com todo aquele enorme trabalho de Papert na construção do LOGO: um poderoso instrumento de aprendizagem, sustentado por métodos ativos e na psicologia de Piaget, da qual foi, também, seguidor, é transformado num secundário meio de se ensinar linguagem de programação para crianças... Ao contrário de estar num lugar de destaque, não de alguma aula, mas inspirando toda a atividade da escola, ele é utilizado nas aulas de informática!... Muito se tem falado sobre os fracassos das propostas educacionais pioneiras do passado e se poderia já estar falando também sobre o fracasso do LOGO, da mesma maneira como se falou do fracasso das escolas de Freinet, Makarenko, Neill... Recentemente tem-se questionado o uso dos métodos ativos e da “reinvenção”, introduzidos nas décadas de 60 e 70 11 ; no entanto, o construtivismo ainda é a grande moda na educação, como fo11

Veja Studies em Science Education. 22, 85-142. Re-thinking old ways: towards a more critical approach to practical work in school science. D. Hodson. 1993.

116 Ambientes de Aprendizagem & Experimentoteca-Ludoteca ram, no passado, as idéias de Montessori, entre outras. Isso é impressionante porque um dos mais reconhecidos autores das teorias construtivistas, Jean Piaget, numa das raras vezes em que se dirigiu exclusivamente para propor ações para a educação pública, deixou claro que uma reforma de grande profundidade no ensino de ciências deveria obedecer a uma primeira condição: (...) recurso a métodos ativos, conferindo-se especial relevo à pesquisa espontânea da criança ou do adolescente e exigindo-se que toda a verdade a ser adquirida seja reinventada pelo aluno, ou pelo menos reconstruída e não simplesmente transmitida.12 Um grande erro que poderia advir destas propostas de Piaget, poderia ser a substituição de todo o ensino em favor das “aulas de laboratório”, exclusivamente. Porém, a conseqüência principal de todas estas idéias de autores construtivistas é que, para além do objetivo final, que seria aprender as ciências, os intrumentos de ensino devem servir para promover uma maturação das funções do pensamento do educando, pré-condição permanente para um aprendizado efetivo. De qualquer forma, muito se tem carimbado como fracasso aquilo que foi o fim natural de todas as coisas. Summerhill não fracassou: acabou; como acabaram as iniciativas de Makarenko na ex-URSS e tantas outras boas investidas que modificaram radicalmente nossa visão da pedagogia. Pode ser desnecessário isso, mas é preciso dizer que só o que nasceu pode morrer. A morte não é um fracasso; é, como deve ter dito algum poeta, “a confirmação da vida”. Em síntese, é a vitória da lei de entropia sobre o processo nada entrópico da origem da vida. Summerhill , por exemplo, morreu porque era precoce, ou nasceu dentro do meio social e econômico (modo de produção) desfavorável; de nada adianta querer fazer da escola um lugar feliz e livre quando o que se exige é 12

Para Onde Vai a Educação? Ops. cit. pg. 15 — os grifos são meus.

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apenas que ela crie cidadãos obedientes, como bem disse Neil. Se o trabalho em Summerhill acabou por estes motivos, oxalá tenhamos, no futuro próximo, possibilidades de vê-lo renascer. Tendo sempre em mente tudo o que foi visto antes, a proposta dos ambientes de aprendizagem não está voltada para o ensino experimental de ciências. Isso poderia ser um subproduto secundário útil mas não seria tudo. Em termos práticos significa incorporar à Experimentoteca-Ludoteca, e colocar sob sua coordenação, os vários ambientes modificados vindos do playground , das exposições didáticas, dos pequenos-museus de ciências e da prateleira de demonstrações. Para entender isso, seria preciso não perder de vista as fontes de inspiração, aqui presentes: enquanto fundamento pedagógico, ela é uma tentativa de adaptação do projeto LOGO a estes outros espaços educacionais; como estruturação física, ela se apoia na escola de Freinet e seus “cantinhos”. Perdendo isso de vista, o que resta são efeitos colaterais que podem, ou não, serem benéficos. Da mesma maneira como Vigotsky propõe que a educação deve estar voltada não para o que o educando trás de amadurecido dentro das suas estruturas cognitivas mas para o que está em desenvolvimento, as propostas para a atuação da escola não podem estar voltadas para a adaptação do que já esta deteriorado, numa atitude vã e reacionária de reformar o que tem que ser jogado fora; e sim, para a construção do novo, à partir das boas experiências do passado. Em outras palavras: a educação deve estar voltada para o futuro!

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