American Photographs: Entre a tradição documental e a denúncia da fotografia como propaganda

June 1, 2017 | Autor: Miguel Rodrigues | Categoria: Photography Theory, Documentary Photography, History and Theory of Photography
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Miguel Rodrigues American Photographs entre a tradição documental e a denúncia da fotografia como propaganda

Índice Resumo I

3

A Caverna de Platão e um olhar sobre a ideia de verdade e objetividade da

imagem na história da fotografia

3

II

A Fotografia Documental até Evans

7

III

Walker Evans e American Photographs

13

IV

O Observador e o Espetador

17

Bibliografia

21

Resumo

Este trabalho olha American Photographs à luz, simultaneamente, de uma visão da fotografia como instrumento de verdade e objetividade e como denúncia dessa ideia. Explora a forma como Evans consegue, ao mesmo tempo, trabalhar dentro dessa linguagem de verdade e objetividade, e quebrá-la e denunciá-la pela sua própria prática, assumindo o caráter subjetivo das suas escolhas e da sua edição.

I A Caverna de Platão e um olhar sobre a ideia de verdade e objetividade da imagem na história da fotografia «A Humanidade permanece irremediavelmente presa na Caverna de Platão, continuando a deleitar-se, como é seu velho hábito, com meras imagens da verdade.» Susan Sontag abre assim os seus Ensaios Sobre Fotografia. Coloca-nos numa posição de dúvida em relação a uma noção de realidade que a fotografia tem carregado consigo ao longo do tempo. Ao associar a fotografia às imagens na alegoria da caverna, Sontag abre uma brecha sobre a ideia de que a fotografia permite à natureza que se desenhe a si mesma sem intervenção humana. William Henri Fox Talbot, no seu livro The Pencil of Nature, avança a ideia de um instrumento quer permitiria à natureza que se expressasse diretamente sem a mão humana. Olha para a fotografia, não como um intermediário tecnológico entre a intenção do homem de fixar as imagens que vê da forma mais fidedigna possível em relação à sua visão, mas como algo que retira o homem da sua função de intermediário da natureza na construção da sua imagem. Aos olhos de Talbot, a fotografia seria um instrumento capaz de captar a realidade da expressão do natural por si só. Talbot refere que a ideia de gravar as imagens da natureza lhe surgiu pela primeira vez ao tentar fixar uma imagem obtida na câmara escura. Questionou-se sobre a possibilidade de conceber um processo que lhe permitisse registar diretamente a imagem apresentada pela lente da câmara escura, sem os inconvenientes de ter de a desenhar. A ideia que se desenvolveu daqui foi a de que a fotografia viria substituir o homem na

forma de documentar a natureza. Seria uma conquista extraordinária, bem ao estilo da época moderna que atravessavam, se o homem conseguisse desenvolver um aparelho capaz de captar a natureza por si mesma, colocando os seus segredos visuais ao alcance deste, e não apenas a sua representação por meio do desenho, ainda que auxiliado pela câmara escura. A imagem de superioridade do homem sobre a natureza ficaria ainda mais claramente vincada. Depois de uma indústria que permitia a exploração da natureza por parte de máquinas que fariam o trabalho pelo homem, vinha agora um aparelho capaz de fazer que a natureza nos revelasse os seus mais

íntimos segredos.

Figura 1Louis Daguèrre, Boulevard du Temple, 1938

Mais ou menos ao mesmo tempo, Louis Daguèrre patenteia a sua forma de fixar imagens, o Daguerreotipo, limitando a ambição de Talbot de fixar como sua a invenção da fotografia. Louis Daguèrre, inventor do processo fotográfico do Daguerreotipo, que permitia a fixação da imagem numa chapa de cobre através iodeto de prata e mercúrio, foi autor da primeira fotografia que se conhece de pessoas, no Boulevard du Temple, em 1838. A imagem apresenta dois homens, um homem que estava a engraxar os sapatos e o engraxador. Foi fixada de manhã, numa artéria movimentada da cidade e, no entanto, apenas apresenta estes dois homens de forma clara. Estaria a rua vazia? Olhando para a imagem à luz da capacidade que as câmaras fotográficas têm hoje em dia de registar imagens de forma instantânea, não nos ocorre lembrar que, nesta altura não fora ainda inventado um processo que permitisse esse registo instantâneo. Esta imagem

em particular tem um tempo de exposição calculado em mais de dez minutos. Ficou registada, historicamente, como a primeira imagem fotográfica com registo de pessoas. Daguèrre ficou conhecido, também, pelos seus retratos. A fotografia ganhou relevo para a arte do retrato pois permitia um grande grau de verosimilhança com o retratado. Ninguém vê um retrato pintado como mais do que a representação idealizada de uma pessoa. Com a fotografia, no entanto, surgiu a imagem da pessoa sem interferência humana, uma vez mais. Não se vê o retrato fotográfico como o resultado de um aperfeiçoamento tecnológico do homem desde as formas mais rudimentares de reprodução da realidade visual até à capacidade mecânica cujo início Bazin coloca na câmara escura criada por Leonardo da Vinci. Há um corte na relação evolutiva da nossa capacidade de representação visual entre a tela pintada ou desenhada, ainda que com o auxílio da câmara escura, e a fotografia. A fotografia surge como a única forma capaz, entendia-se na altura, de nos mostrar as pessoas como elas são. Em muito pouco tempo, esta substitui o retrato pintado no imaginário da população e na sua vontade de se ver representada. Aqui estava, finalmente, um instrumento capaz de reproduzir a realidade, não deixando espaço para a intervenção humana.

William Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature

Bazin1 começa a sua ontologia da imagem fotográfica colocando a origem da representação num desejo de imortalidade. Inicialmente associada ao corpo físico, este desejo de imortalidade, diz-nos, está presente nas múmias e em todo o esforço de conservação e proteção destas, desde as pirâmides egípcias com os seus labirintos, aos soldados em terracota do imperador chinês. Prossegue o seu raciocínio histórico dizendo-nos que Louis XIV já não viu necessidade de se ver mumificado, bastando-lhe preservar o seu retrato por Charles Le Brun. Para além de se poder fazer representar pela reprodução da sua imagem ainda vivo, o retrato tem ainda a grande vantagem de ser de bem mais fácil acesso, se compararmos o museu com a pirâmide e o mausoléu que, construídas para preservar a múmia, também a mantinham fora do alcance da visão. O mesmo se passa com as imagens iniciais de Talbot. Foi ultrapassado por Daguèrre e Nièpce na divulgação pública da tecnologia da fotografia. As suas imagens, apesar de transporem, já, mecanicamente, a realidade para o suporte através da câmara escura, não encontravam forma de se manter. A luz que nos permitiria vê-las também as fazia desvanecer. Ao não conseguir fixá-las, vê-se ultrapassado, temporariamente, pelo processo desenvolvido por Daguèrre e Nièpce – Nicephore e Isidore – e posteriormente apresentado como processo pioneiro pela Academia Francesa. Estranhamente, poder-se-á pensar que aquilo que mais aproximava as criações de Talbot no seu lápis da natureza da própria natureza em criação constante, era a sua impermanência. Como as imagens da natureza, permanentemente transientes, as imagens de Talbot não perduravam no suporte em que eram registadas. este desejo de imortalidade, diz-nos, está presente nas múmias e em todo o esforço de conservação e proteção destas, desde as pirâmides egípcias com os seus labirintos, aos soldados em terracota do imperador chinês. este desejo de imortalidade, diz-nos, está presente nas múmias e em todo o esforço de conservação e proteção destas, desde as pirâmides egípcias com os seus labirintos, aos soldados em terracota do imperador chinês. Prossegue o seu raciocínio histórico dizendo-nos que Louis XIV já não viu necessidade de se ver mumificado, bastando-lhe preservar o seu retrato por Charles Le Brun. Para

1

BAZIN, André, The Ontology of the Photographic Image, consultado em http://faculty.georgetown.edu/irvinem/theory/Bazin-Ontology-Photographic-Image.pdf Entre 23/01/2015 e 02/02/2016

além de se poder fazer representar pela reprodução da sua imagem ainda vivo, o retrato tem ainda a grande vantagem de ser de bem mais fácil acesso, se compararmos o museu com a pirâmide e o mausoléu que, construídas para preservar a múmia, também a mantinham fora do alcance da visão. O mesmo se passa com as imagens iniciais de Talbot. Foi ultrapassado por Daguèrre e Nièpce na divulgação pública da tecnologia da fotografia. As suas imagens, apesar de transporem, já, mecanicamente, a realidade para o suporte através da câmara escura, não encontravam forma de se manter. A luz que nos permitiria vê-las também as fazia desvanecer. Ao não conseguir fixá-las, vê-se ultrapassado, temporariamente, pelo processo desenvolvido por Daguèrre e Nièpce – Nicephore e Isidore – e posteriormente apresentado como processo pioneiro pela Academia Francesa. Estranhamente, poder-se-á pensar que aquilo que mais aproximava as criações de Talbot no seu lápis da natureza da própria natureza em criação constante, era a sua impermanência. Como as imagens da natureza, permanentemente transientes, as imagens de Talbot não perduravam no suporte em que eram registadas. Ao conseguir fixar a imagem no seu suporte escolhido, Daguèrre ganhou a corrida a Talbot e conseguiu, não só registar, mas também fixar, por meio de processos mecânicos e químicos, a imagem fotográfica. Consegue, assim, ao mesmo tempo, afastar a sua imagem da impermanência da aparência visual da natureza e registar uma ideia de imagem da natureza abstraída desse caráter de mutabilidade. A natureza via-se, assim, apanhada nas teias do artifício humano. II A Fotografia Documental até Evans A imagem de um aparelho capaz de reproduzir a “verdade” foi acompanhando a fotografia ao longo do tempo. A atualização de processos químicos e mecânicos foi permitindo à fotografia mostrar cada vez mais em cada vez menos tempo. Caíram os suportes para os modelos no daguerreotipo, caíram os tempos de exposição que não permitiam o aparecimento de pessoas em movimento nas imagens, e aumentou a facilidade com que a fotografia podia ser vista e divulgada. O caráter de verdade e de autenticidade vai-se estendendo com a capacidade da fotografia de registar cada vez mais. As poses dos Daguerreotipos caem com as estruturas e os longos tempos de exposição. Liz Wells fala no ar descontraído das

celebridades nas imagens dos paparazzi como reveladores de uma autenticidade que lhes confere ainda mais valor do que as imagens em pose dos retratos anteriores. Algures pelo meio, surge a ideia da fotografia como capaz de denunciar situações de injustiça social e contribuir para que estas mudem.

RIIS, Jacob A. How the Other Half Lives. New York: Charles Scribner’s Sons, 1901.

Pioneiro no uso da fotografia como instrumento de denúncia de situações de precaridade e de demanda de reformas sociais, Jacob Riis percorre as ruas de Nova Iorque numa altura em que o seu crescimento desmesurado abre espaço para que um número cada vez maior de pessoas viva em condições de extrema dificuldade, na sombra das luzes da ribalta. “A crença em que a experiência de cada homem deve ter algum valor para a comunidade da qual este a retirou,

não interessa que experiência for, desde que tenha sido desenvolvida numa linha de trabalho decente e honesto, levou-me a começar este livro.”

Com esta frase, Jacob Riis abre o prefácio para o seu livro How the ohter half lives, e dá o mote para aquilo que foi, e é, ainda, em muitos casos, o propósito do trabalho documental em fotografia, mostrar a “experiencia real, não imaginária, de indivíduos pertencentes, de um modo geral, a um grupo de fraco nível económico e social (inferior ao do público a quem os testemunhos se destinam) e trata esta experiência de modo a tentar torná-la viva, “humana” e – o mais frequente – pungente para esse público. 2 Ansel Adams diz-nos: “Para mim, são marcos magníficos no campo da fotografia humanista… não conheço outro trabalho contemporâneo neste caráter geral que dê tal impressão de competência, integridade e intensidade… estas pessoas voltam a viver para nós na fotografia. Tão intensamente como quando as suas imagens foram capturadas nas velhas chapas sujas… os seus camaradas na pobreza e supressão vivem aqui, hoje, nesta cidade. Em todas as cidades do mundo… dou por mim a identificarme com as pessoas fotografadas.”3

Um homem está sentado num espaço onde apenas se percebe pobreza e sujidade. Sentase de lado para a câmara e olha-nos de lado através dela. Terá vergonha de nos encarar a partir da sua situação? Não há grande qualidade técnica nesta imagem, o tema não é

nítido. No entanto, há um acordo tremendo entre a falta de condições da fotografia e do sujeito fotografado. A sujidade, a inadequação em relação a uma realidade que se espera cuidada, limpa, no caso do retrato fotográfico, vem por ainda mais em evidência a própria inadequação do sujeito à realidade mais limpa e mais cuidada, mais digna, que se espera do retrato de uma vida humana. Estamos na viragem do século, em Nova Iorque. As imagens de Jacob Riis documentam a pobreza. How the other half lives mostra o lado sombra do brilho que a grande 2

W. Stott, Documentary Expression and Thirties’ America (1973), citado por Olivier Lugon em Le Style Documentaire. D’August Sander à Walker Evans 1920-1945, Editions Macula, Paris, 2001 3

Ansel Adams, no prefácio a Jacob A. Riis, Photographer and citizen by Alexander Alland, Sr., Aperture Foundation, 1973

cidade projeta. Por ter passado por condições semelhantes, talvez Riis, ele próprio um imigrante dinamarquês, tenha especial sensibilidade e motivação para mostrar este lado da vida. Por ter lutado para sair destas condições, mostra-nos, também, o que estas imagens podem construir no público a que se destinam: uma força e uma resolução ainda maiores para lutar contra a adversidade, assim como uma ancoragem da noção de bem-estar e de felicidade a uma noção de consumo material.

Riis aproveita a descoberta recente do clorato de potássio no uso da luz de flash para iluminar e mostrar cenas antes escondidas na penumbra de zonas que não tinham acesso a luz. Consegue, desta forma, mostrar às classes médias e alta nova iorquinas algo que estes, até então, não tiveram possibilidade de ver, permitindo que se gerassem ações de combate a essas condições de pobreza. O seu trabalho começa como colaborador na polícia de Nova Iorque e o comissário de polícia, na altura, Theodore Roosevelt, viria a mostrar-se decisivo, chegando a presidente dos Estados Unidos da América e levando consigo a preocupações que Riis trouxera à luz da sua câmara.

Gilles Mora, traçando a história da fotografia documental, fala-nos dos fotógrafos norte americanos entre 1860 e 1885, entre os quais, William Henry Jackson, Timothy

H. O’Sullivan e Carleton E. Watkins, essenciais nas expedições que o governo daquele país patrocinou, que exploravam o grande oeste americano. Fala-nos também de Lewis Hine, do seu trabalho para a Child Labour Committee. Aqui, começa a perceber-se o lado de propaganda ideológica desta nova fotografia documental americana. Apoiada pelos governos, acaba por mostrar o que estes querem mostrar, de servir como relato visual das intenções políticas dos mesmos. Do orgulho no território do Great American West ao desejo reformista e transformista, à identificação de desigualdades e injustiças sociais, levando à crença no seu minoramento, através da produção e do consumo materiais; de Jackson, O’Sullivan e Watkins a Riis, Hine ou, mais tarde, Evans, Lange ou Abbott. A fotografia documental, diz-se, propunha-se mudar o mundo. Toda a atitude discriminatória servia para chamar a atenção e a consciência das pessoas no sentido de uma intervenção que acabasse com a pobreza e as dificuldades da vida em pobreza. Alguns nomes ganharam relevo neste movimento, em particular, pelo trabalho desenvolvido para a Farm Security Administration por uma equipa de fotógrafos contratados para documentar o impacto dos programas federais para melhorar as condições do trabalho rural e da vida no campo. Sob alçada administrativa de Roy Stryker, o grupo de fotógrafos a que perteciam, por exemplo, Walker Evans e Dorothea Lange, lançou-se num levantamento das condições de vida no campo dos Estados Unidos, munidos do argumento ético e moral de que a denúncia da pobreza em que as pessoas viviam abriria caminho para que se criassem condições de mudança para essas mesmas pessoas. A Farm Security Administration foi um projeto desenvolvido por Franklin Roosevelt, na altura, presidente dos Estados Unidos, para mudar a opinião pública norte americana e instigar o consumo, por forma a dirimir a crise que se levantara com o crash da bolsa de Nova

Iorque

em

1929

Dorothea Lange, migrant mother 1936

Em Março de 1936, Dorothea Lange, um dos elementos de maior destaque dessa equipa de fotógrafos, criou um dos retratos mais emblemáticos dessa época: uma mulher, Florence Owens Thompson perscruta o horizonte em busca de algo melhor. O seu rosto diz-nos das dificuldades de uma mãe viúva em manter os seus sete filhos. Tem vinte e sete anos, mas parece ter bastante mais. O olhar é firme, no entanto. Mais tarde, numa entrevista, dirá que nunca perdeu a esperança. “Se tivesse perdido a esperança, este país não se tinha safo.”4 Dirá, também, de forma algo caustica, que aquela foto poderá ter corrido o mundo e mudado a vida de muita gente mas que ela nunca saiu dali. Continua a viver no mesmo atrelado de sempre e que nunca viu um tostão pela foto que lhe foi tirada e correu mundo. Apesar do tom amargo deste último comentário, a associação da sua ação, da sua fortitude com o facto de o país se ter safo, mostra bem o poder propagandístico destas campanhas.

4

Entrevista a Florence Thompson, a migrant mother do retrato de Dorothea Lange, consultada em http://www.dailymail.co.uk/news/article-2290879/I-lost-hope-Startling-interview-unearthed-womaniconicGreat-Depression-image-talking-just-years-death-1983.html a 02/02/2015

III Walker Evans e American Photographs Walker Evans estava bem ciente da pressão governamental no sentido de fazer das fotografias um veículo das ideias do estado e não dos fotógrafos contratados. É conhecida a sua relação difícil com Stryker. Sabe-se que fazia uma separação de negativos, entre os que entregava a Stryker e aqueles que, à revelia do seu contrato, guardava para o seu arquivo pessoal. A sua exposição no MoMA, em 1938, a primeira grande exposição individual concedida a um fotógrafo num museu, é também a primeira em que a câmara fotográfica é revelada como instrumento das escolhas do artista. Através de repetições temáticas, por exemplo, em que explora a dimensão de repetibilidade da imagem através da fotografia ou, talvez principalmente, através das duas imagens com que inicia o seu catálogo para a exposição, tido, hoje em dia, como um dos primeiros photobooks.

Walker Evans, American Photographs, 1938

American Photographs abre com a imagem de um estúdio de fotografias. Parece dizernos a forma como devemos olhar para ele e, desta forma, aparentemente, denunciar todo o empreendimento enquanto documento objetivo de verdade. É uma montagem, e Evans sabe-o. É até pioneiro ao olhar para o livro como uma forma de contar uma história, organizando os factos, ao editar a ordem e a dimensão das fotos em função do resultado que pretende ter sobre o seu público. Lincoln Kirstein diz-nos: "This is neither a baroque nor a decorative, but a purely protestant attitude: meager, stripped, cold,

and, on occasion, humorous. It is also the naked, difficult, solitary attitude of a member revolting from his own class, who knows best what in it must be uncovered, cauterized and why. The view is clinical. Evans is a visual doctor, diagnostician rather than specialist. But he is also the family physician, quiet and dispassionate, before whom even very old or very sick people are no longer ashamed to reveal themselves.”5 Kirstein glorifica a visão distante, clínica. Diz-nos, inclusive, que Evans é um Visual Doctor, assumindo essa ideia de que a crueza, a distância, uma certa frieza emocional na forma como as imagens são construídas e alinhadas, terão como consequência uma cura; o fim daquele estado de coisas que as fotografias parecem denunciar. Apesar de, ao olharmos as fotografias, nos surgir uma simpatia para com as condições pouco humanas que algumas daquelas imagens mostram, apesar de percebermos as ligações com um certo tédio escondido no glamour das roupas caras e dos hábitos de velocidade das classes altas, apesar de percebermos a ironia dos cartazes que, originalmente destinados a glorificar tudo isto, acabam por ser mais um detalhe da sua falência, temos de olhar para aquelas primeiras fotografias que denunciam o livro como sendo apenas fotografia e questionar-nos sobre o porquê da sua presença ali.

Walker Evans, Penny picture display, Savannah, 1936

5

Walker Evans, License Photo Studio, Nova Iorque, 1934

Kirstein, Lincoln, in EVANS, Walker, American Photographs, Fiftieth Anniversary Edition, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 1988

Até então, a fotografia fora vista como algo que permitia à natureza que se expressasse sem intervenção humana. Evans, com a intenção de fixar a sua posição como artista fotógrafo, sentiu necessidade de afirmar o meio com que trabalhava; de o mostrar como instrumento para uma escolha cuidadosamente produzida. No tema, também, mas, sobretudo, na forma como esta permitia explorá-lo. Denuncia a fotografia, não como instrumento neutro que coloca a natureza ao serviço do homem, mas como instrumento de uma escolha desse mesmo homem. Ao invés de seguir um padrão que desapossa a fotografia da sua natureza de instrumento de expressão, Evans enfatiza-o. Jessica May6 defende que Evans o fez, maioritariamente, por questões de afirmação pessoal e profissional. Com este gesto, abre portas para um futuro de trabalho não comissariado, podendo assim desenvolver os seus projetos com liberdade editorial sem perder a independência financeira. Conta-nos que a constante tensão existente entre a sua demanda de liberdade de expressão e as necessidades de propaganda de Stryker e do seu programa de governo levaram a que este escrevesse uma crítica negativa, levando à rejeição da proposta daquele para uma bolsa da Gugenheim Foundation, após a saída de Evans da FSA. As duas fotografias que denunciam o propósito da fotografia de se manter discreta na sombra da intenção humana. Apesar de poder não ser esse o propósito, Evans abre a porta ao início de um questionamento da fotografia dentro do estilo que, possivelmente, mais lhe garantia essa discrição: o estilo documental. Assim, um dos fotógrafos mais associados a uma ideia de objetividade na fotografia, e um dos porta estandartes da fotografia dita documental e humanista, acaba por abrir duas brechas tremendas nessa relação direta entre fotografia e verdade, cimentadas na ocultação do facto de a câmara ser um instrumento de registo – e, consequentemente, de escolha – do homem.

6

Jessica May, “The work of an artist” : Walker Evans’ American Photographs In American Modern: Documentary photography by Abbot, Evans and Bourke-White. Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 2010

Estas imagens indiciam o facto de as fotografias serem a obra de um fotógrafo, um profissional que é pago para produzir imagens de pessoas ou situações, mas também o facto óbvio que daí decorre, de que os retratos e as imagens da natureza ou de pessoas não correspondem “à verdadeira imagem sem intervenção do homem” como Talbot sugerira, mas à deliberação do olho treinado do fotógrafo.

IV O Observador e o Espetador A ideia de que a fotografia de tradição documental se coloca num limbo entre a intenção do fotógrafo, a espectativa de quem a promove e uma certa ideia, no espetador, de que a fotografia conta a verdade sobre qualquer coisa, ideia que vem já dos tempos de Talbot e Nièpce, é questionada com estas duas imagens com que Evans abre o seu American Photographs. Jacques Rancière7 rebate a crítica de obsolescência votada à atitude crítica perante a realidade, apresentando a evidência de esta ser, ainda e logo, uma crítica e, por conseguinte, usar os mesmos mecanismos que critica. As duas imagens que escolhe para enunciar a retoma desse espírito crítico, de Josephine Mecksaper e de Martha Rosler, demonstram, não a constatação do fim de uma crítica, no caso, do consumo, mas a crítica da crítica já como consumo.

7

RANCIÈRE, Jacques, O espectador Emancipado, Lisboa, Orfeu Negro, 2010

Josephine Meckseper, sem título, 2005

No caso da imagem de Josephine Mecksaper, diz-nos que o caixote do lixo cheio de embalagens vazias, cheias do rasto de um consumismo oco, colocam o próprio movimento crítico daquela manifestação sob a alçada desse mesmo consumismo: estes manifestantes consumiram imagens que os trouxeram aqui, da mesma forma como consumiram todos aqueles produtos corporativos cujas embalagens agora deitaram fora. Coloca-nos perante uma dúvida, quiçá de ordem moral, sobre o que fazer, sobre qual o alcance daquelas imagens na forma como podem permitir, ou não, uma ação concreta sobre a realidade percebida que permita alterá-la. Rancière põe em causa o movimento crítico de uma certa esquerda como tendo sido absorvido pelo capitalismo e pela propaganda massificada e apresenta esta imagem como prova. Evoca Débord, dizendo que «o espetáculo não é o mostruário das imagens que escondem a realidade. É antes a existência da atividade social e da riqueza social como realidade separada.»8 Coloca assim aqueles que vivem na sociedade do espetáculo em linha com os prisioneiros da caverna, na alegoria de Platão9 e nota a inversão da perceção: as imagens são tomadas por realidade, a ignorância é tomada por saber e a 8 9

RANCIÈRE, Jacques, O espectador emanciapado. Lisboa, Orfeu Negro, 2010 PLATÃO, República, Edições Europa-América, 1998

pobreza por riqueza. Diz-nos, também, que qualquer esforço ali encetado pelos mesmos servirá apenas para os embrenhar ainda e cada vez mais, na teia da qual tentam sair.10 De certo modo, apresenta-nos o espetáculo que apenas se consegue criticar através de mais espetáculo. «Conhecer a lei do espetáculo acaba por significar conhecer a maneira segundo a qual o espetáculo reproduz indefinidamente a falsificação que é idêntica à sua realidade.»11 E cita Débord: «No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.»12. Denunciando o mecanismo de criação de imagens que alimentam o espetáculo, não estaria Evans a romper com essa ideia do falso, ainda que quisesse entrar nele? Aquelas duas imagens das photos não serão uma forma de inverter o falso? Sendo certas as razões apresentadas por Jessica May para a denúncia do meio – não tanto por uma questão de crítica, e Evans era um crítico, mas por uma questão de ambição pessoal, colocando a evidência do artefacto para mostrar a necessidade do operador e da sua visão e consequente interpretação da realidade - não estará Evans, até por causa disso, a inverter a inversão e, assim, a abrir uma ambivalência essencial na legibilidade da imagem crítica como relação com uma realidade? Estas photos, estes atos de denúncia que Evans coloca logo no início do seu livro, serão um código de leitura para o que se lhes segue? Serão, de algum modo, o Studium Barthesiano? Estará ele a dizer-nos que, mais do que janelas por onde ver o mundo, as fotografias podem agir como muros pintados, à imagem dos cartazes que fotografa – e então, não serão esses muros o Punctum? Será aquele muro que o cartaz já deteriorado deixa entrever, na verdade, o verdadeiro motivo do cartaz? Talvez a questão clínica em Evans não seja tanto a forma como nos mostra a realidade nas imagens, mas a forma como nos tenta mostrar, como o virão a evidenciar, mais tarde, Baudrillard, Rancière, Barthes ou Débord, que as imagens constroem essa realidade. Toda a questão da visão como o órgão da distância, que nos permite avaliar e ditar e controlar, ganha aqui uma dupla interpretação na relação do observador com a coisa observada.

10

RANCIÈRE, Jacques, O espectador emanciapado. Lisboa, Orfeu Negro, 2010 Idem 12 DÉBORD, Guy, A sociedade do espectáculo, Lisboa Afrodite,,1972 11

Rancière coloca o início desta questão da manipulação do espetador através da imagem, não em Baudrillard, Barthes ou Débord, mas no século XIX. Jonathan Crary (2010), estudando a forma como o século XIX contribuiu para a criação de uma primazia da visualidade na construção do real, coloca a enfase numa outra palavra: o observador. Pretende, com isto, não assumir as conotações que o termo espetador já trazia daqueles autores e chamar a atenção para o duplo sentido contido no termo observador: é observador, não só aquele que vê, mas também aquele que observa as condições ou regras que lhe permitem ver. Chama a atenção, assim, para as condicionantes comportamentais que a ideia da visão implica; para a ideia então surgida a partir da imagem retiniana, de um sujeito que observa o mundo a partir da sua subjetividade; de uma imagem construída, sendo que o enfoque se coloca, cada vez mais, nessa construção a partir da visão. Eu e mundo tornam-se, assim, duas entidades separadas, confirmando a ideia alimentada pela modernidade de uma superioridade e distanciamento do homem em relação ao meio que era assim apropriável pela imagem fotográfica, voltando a Sontag.

Walker Evans, Torn movie poster, 1930

Estas duas imagens, surgindo dentro da tradição em que surgiram, e apontadas desta forma, parecem apontar para uma ideia de coisificação do mundo e não de

apropriação, trazendo à luz a ideia de que a visão, afinal, poderia afastar mais do que aproximava ou, pelo menos, tornar menos orgânica a nossa presença no mundo. Como se aquilo que nos dava o mundo acabasse por nos afastar dele pela impossibilidade de uma presença imersiva. Apesar, uma vez mais, de esta poder não ter sido inteiramente a intenção de Evans, estas duas imagens lembram uma terceira que se apresenta, a meu ver, como a imagem perfeita da limitação que este empreendimento da fotografia como paradigma de observação da verdade encontra.

Lewis Hine, rapaz tentando pesar-se

Um rapaz está suspenso no ar sobre uma balança de rua, a meio de um salto onde tenta descobrir o seu peso. É demasiado baixo para conseguir pesar-se e conferir o seu peso no mostrador ao mesmo tempo, pelo que, para conferir o resultado da sua ação, tem de afastar-se dela. A legenda do livro diz-nos apenas que é um rapaz que tenta pesar-se. Rimo-nos com a inocência do miúdo que tenta, não mantendo o seu peso na balança, conferi-lo no mostrador. No entanto, não será esta a posição em que a imagem nos deixa, sujeitos à observação de uma distância que nos impede de estar presentes na ação apresentada?

Bibliografia ALLAND, Alexander, Sr., Jacob A. Riis, Photographer and citizen, Aperture Foundation, 1973 BARTHES, Roland, A Câmara Clara, Lisboa, Edições 70, 1998 BAZIN, André, The ontology of the photographic image, consultado em http://faculty.georgetown.edu/irvinem/theory/Bazin-Ontology-PhotographicImage.pdf entre 23/01/2015 e 02/02/2016 CRARY, Jonathan, Techniques of The Observer – on vision and modernity in the nineteenth century, Cambridge, Ma, MIT Press, 1992 DÉBORD, Guy, A Sociedade do Espetáculo, Lisboa, Antígona, 2012 EVANS, Walker, American Photographs Fiftieth Anniversary Edition, Nova Iorque, The Museum of Modern Art, 1988

EVANS, Walker, La Soif Du Regard, Paris, Editions du Seuil, 1993 HINE, Lewis H. Lewis Hine, Collection Photo Poche, Paris, Centre National de la Photographie, 1992

LUGON, Olivier, Le Style Documentaire. D’August Sander à Walker Evans 1920-1945. Paris, Editions Macula, 2001 MAY, Jessica, “The work of an artist” : Walker Evans’ American Photographs In American Modern: Documentary photography by Abbot, Evans and Bourke-White. Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 2010 PLATÃO, A República, Lisboa, Edições Europa-América, 1998 RANCIÈRE, Jacques, O espectador Emancipado, Lisboa, Orfeu Negro, 2010 SONTAG, Susan, Ensaios sobre a Fotografia, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986 WELLS, Liz, ed., Photography, a Critical Introduction, Nova Iorque, Routledge, 2015 (5ª edição)

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