AMÉRICAS: INTERMEDIAÇÕES CULTURAIS

July 14, 2017 | Autor: Vera Hanna | Categoria: Estudos Culturais, ESTUDOS AMERICANOS
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Revista Estudios Norteamericanos Nº 16, Segundo Semestre 2007 Associación Chílena de Estudios Norteamericanos ISSN 0717-3350

AMÉRICAS: INTERMEDIAÇÕES CULTURAIS Profa. Dra. Vera Lucia Harabagi Hanna 1

É com grande satisfação que damos início à XIV Jornada de Estudos Americanos. É uma honra para nós sediar a ABEA, Associação Brasileira de Estudos Americanos, de reconhecimento internacional, que completa 23 de anos de existência. Temos o prazer de dar as boas-vindas a todos que nos honram com suas presenças, autoridades, colegas mackenzistas, colegas das demais universidades vindos de vários estados, vindos de outros países, nossos alunos e, que estarão conosco nos próximos dias participando da prática do intercâmbio acadêmico e da cooperação interinstitucional, compartilhando do debate teórico-cultural contemporâneo no âmbito dos Estudos Culturais e Estudos Americanos.

Nós, da atual diretoria da ABEA, com sede na Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, percebendo a necessidade de reforçar a definição dos Estudos Americanos como estudos transnacionais, elegemos como proposta desta jornada, o questionamento do lugar das Américas em relação ao seu continuum cultural.

Portadoras

que

são,

as

Américas,

de

componentes

contraditórios

e

dessemelhantes, advindos da modernização - como a emancipação, a renovação e a democratização – nomeamos como objetivo primeiro do Encontro discutir a multiplicidade de identidades em sua complexa articulação de tradição e modernidades, num continente heterogêneo em que coexistem lógicas múltiplas de desenvolvimento. Propusemos a criação de um espaço para um debate da sociedade contemporânea e seus paradoxos,

1 Professora adjunta do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

2 buscando desvendar essas questões com a intersecção de inúmeras disciplinas, acolhendo

a

fragmentação

e

combinações

múltiplas

entre

a

tradição,

a

destradicionalização, a modernidade e as pós-modernidades.

O campo dos Estudos Americanos tem se caracterizado, nas últimas décadas, pela ênfase no transnacional e, ao reinventar-se continuamente, vem apresentando uma abrangência crítica no que se refere aos tópicos analisados, assim como um debate revisionista dos conceitos hegemônicos. O destaque conferido ao diálogo intercultural, presente nos últimos encontros da ABEA, demonstra que os americanistas não só consolidaram seu interesse nas fronteiras do nacional (EUA), mas também direcionam um olhar crítico para além do território que abrange o mapa dos Estados Unidos – cruzando suas fronteiras em direção à América Latina, ao Canadá e ao Caribe.

O fenômeno da globalização do mundo levanta uma série de questões fundamentais sobre a atualidade, na medida em que exige que consideremos novas construções e revisões críticas da modernidade, crescentemente marcada por uma perspectiva pós-nacional, e por uma série de diálogos transnacionais. Neste tempo de pluralidade de conhecimentos em permanente construção, o individualismo, o hedonismo, o consumismo, a fragmentação do tempo e do espaço são uma constante dentro de uma nova ordem, dentro de uma realidade ambígua e multiforme. Observamos, portanto, como resultado da mundialização da cultura, a produção de diferentes resultados em termos de identidade.

A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultural local. Conformadas a partir da dispersão das pessoas ao redor do globo, e resultantes de uma nãopermanência, de uma não-constância, as identidades passam, na modernidade tardia, a não ser unificadas, não são nunca ímpares, mas múltiplas, cada vez mais fragmentadas, formadas passo a passo

ao longo de discursos, práticas e posições que podem ser

transversas, complementares ou antagônicas. Marcadas pela diferença, estão sujeitas, igualmente, a uma narrativa radical, em constante processo de mudança e transformação, assim sendo, as discrepâncias entre o nível coletivo e o nível individual e as contradições existentes em seu interior têm de ser invariavelmente negociadas.

A preocupação com tais reconstruções e revisões vêm redefinindo os rumos dos Estudos Americanos nos últimos anos.

Aqueles que o estudam têm debatido

3 constantemente a sua nomenclatura e ampliado as discussões relativas a uma abordagem plural, adotada no próprio nome América, visto presentemente como a América e suas Americanidades - em discursos que sugerem a integração americana num universo de unidade continental

que configura espaços de identidade americana

- tema da XIII

Jornada de Estudos Americanos, realizada na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Estado do Rio de Janeiro, em 2004. Os envolvidos nessa interpenetração cultural, impulsionados pelas mesmas forças globalizadoras – culturais, tecnológicas, econômicas e políticas – entrecruzam-se num mundo de fronteiras porosas em que idéias, pessoas e produtos partilham identidades e renovam a produção de novas práticas culturais.

Além disso, tem sido objeto de estudo a multiplicidade de identidades, em sua complexa articulação de tradição e modernidades num continente heterogêneo em que coexistem lógicas múltiplas de desenvolvimento. A tentativa de acomodação de ocorrências globalizadoras, com conseqüências de efeito local é uma constante entre aqueles que avaliam o binarismo tradição/modernidade - progressivamente comprometido, uma vez que, apesar das culturas tradicionais colonizadas permanecerem distintas, elas acabam se tornando pretendentes à modernidade.

Ao

discorrer sobre a idéia de modernidade em contraste com a tradição, é

necessário fazê-lo enfatizando a combinação do moderno e do tradicional em ambientes concretos, como o que vivemos na América multifacetada, razão pela qual perpetramos a discussão da integração americana procurando conformar um universo de unidade continental, afirmando os sentidos compartilhados da América, configurando espaços de identidade americana. A tradição não pode ser vista como um todo estático, mas sim como um meio de manipular o tempo e o espaço e que sobrepõe quaisquer atividades ou experiências particulares à continuidade do passado, presente e futuro, e estes, em contrapartida, são estruturados por práticas sociais recorrentes. É nesse contexto que assistimos

à

emergência

da

promoção

das

relações

interamericanas

na

contemporaneidade, em que a preferência pelo hibridismo, pela mistura, o cruzamento de fronteiras culturais e identitárias, a celebração da contingência e da não-permanência apresentam-se como perspectivas teóricas do Pós-Modernismo.

Sob essa perspectiva, a tradição tem que ser reinventada pelas novas gerações no momento em que assumem a responsabilidade do recebimento da herança cultural das mãos daqueles que as antecederam. Nessa discussão, a globalização da cultura redefine, igualmente, o significado de tradição, uma tradição moderna, que se opõe ao sentido de permanência a um passado distante e que, igualmente sugere uma memória internacional-

4 popular, cujos elementos composicionais têm de ser sempre reciclados; o passado se mistura com o presente e determina novas concepções de mundo, novos comportamentos e, ao mesmo tempo, cria novas raízes para o homem globalizado em permanente mobilidade.

A virada transnacional dos Estudos Americanos, além de refletir as interações que existem entre os Estudos Americanos e os Estudos Culturais, enfatiza intercâmbios que contribuem para a renovação dos referenciais teórico-metodológicos tradicionais da pesquisa sobre cultura, e a acepção a ela atinente. O foco no transnacional, através de estudos comparados, tendem a privilegiar as “zonas de contato” hemisféricas em todos os níveis

- desde o discursivo até o das práticas sociais - a cultura é vista não só como um

conjunto de obras, algo inativo, mas como um conjunto de práticas, um intercâmbio de sentidos entre os membros de uma sociedade ou de um grupo – uma instância simbólica da produção e reprodução da sociedade. Mais do que um conhecimento recebido ou uma experiência passiva, a cultura revela uma enormidade de intervenções que contam uma história vivida e se responsabilizam por ingerências futuras.

A expansão dos Estudos Americanos tem sido espacial e também temática, conforme constatado nos últimos encontros de Associações de Estudos Americanos em várias partes do mundo. Esta tem sido a tônica das discussões relativas à instituição de cursos universitários, à criação de núcleos de estudos, de lançamento de periódicos e de literatura correlata – etnicidade, racismo, arte, literatura, memória social, moda, arquitetura, preconceitos, sexualidades, jornalismos, geografia cultural, linguagens, políticas culturais, as cidades, etc.,

fazem parte das coletâneas de textos em revistas especializadas e

periódicos.

Novas abordagens privilegiam o estudo do hibridismo dos Estados Unidos da América e de outros hibridismos em relação à diversidade americana, que amplia o senso de identidade e admite ainda mais outros hibridismos, uma vez que as identidades são construídas através de relações das diferenças, sem uma hierarquia imposta. A própria hipótese da existência de uma vasta fronteira cultural americana pressupõe a ocorrência do hibridismo cultural que não delimita os contatos, mas o promovem, onde a identidade, a língua e o espaço estão em constante intercâmbio. O processo de hibridação cultural suscita algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação.

5 Uma visão multidimensional de cultura cria abordagens desafiadoras no âmbito dos Estudos Americanos porque exigem respostas para novas questões a respeito de quem fala, quem define, quem controla, quem está incluído ou excluído de tais processos. A América, as Américas, assim como todas as culturas, é multifacetada e está em constante transformação, portanto, deve ser questionada e examinada com os instrumentos mais apropriados, num diálogo contínuo – que se espera,

surja de histórias de diferenças

emergentes que requeiram diferentes maneiras de contá-las, que não obedeçam a um padrão exclusivo.

Sabemos que a hegemonia, o poder, o discurso, as ideologias, as representações, e a identidade são fatores constituintes na construção da América como uma comunidade multifacetada, cuja identidade se apresenta, como esclarece Stuart Hall,

como um

problema de „ser‟, assim como de „vir a ser‟ e que pertence ao futuro tanto quanto ao passado, não como algo que já existe, mas que transcende lugar, tempo, história e cultura e que se sujeita às brincadeiras da história, da cultura e do poder. Culturas híbridas constituem um dos muitos tipos de identidade distintivamente novos produzidas na era da modernidade tardia; o individuo pós-moderno é visto como deslocado e instável no mundo social e cultural e, pelo fato de ele se confrontar com uma enorme variedade de identidades possíveis, assume papéis diferentes, com os quais pode ser identificado, pelo menos temporariamente. Se por um lado, essa conjunção, pode expressar um dos motivos do declínio das identidades nacionais, pode significar, ao mesmo tempo, o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades, independentemente de que haja ou tenha havido realização efetiva.

As identidades têm a ver com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e das culturas para a produção não daquilo que não somos, mas daquilo no qual nos tornamos. A teoria da viagem, desenvolvida por Edward Said, nos remete ao poeta português Fernando Pessoa quando este observa, nas primeiras décadas do século XX, o mundo todo como uma terra estrangeira,

“Viajar ! perder países ! Ser outro

constantemente, Por a alma não ter raízes, De viver de ver somente!” A noção da capacidade de „sermos nós, sendo outros, constantemente’, aliada ao conceito de viagem, interpretada como transferência, como passagem, protagonizada por viajantes, turistas, migrantes, „flâneurs’, caracterizam o movimento de trânsito e provisionalidade enfatizados por Nestor Garcia Canclini e percebido na intensificação de intercâmbios e hibridações nos movimentos recentes de globalização, que o poema de Pessoa sintetiza: “Viajar ! perder países ! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes, De viver de ver

6 somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir; A ausência de ter um fim; E da ânsia de o conseguir!”

O Hibridismo, visto a partir de uma perspectiva da teoria cultural contemporânea, está ligado aos movimentos demográficos que admitem o contato entre identidades dessemelhantes, justificando, portanto, a idéia de movimento, de identidade móvel que abrange outras metáforas relacionadas à de Hibridização, como aquela da viagem, do deslocamento, do nomadismo, da diáspora, do cruzamento de fronteiras.

Grupos em

movimento – intencionalmente ou não – quando cruzam as fronteiras ou permanecem na fronteira - física ou metafórica – apresentam uma identidade duvidosa, pois a situação provoca o contato com diversas culturas que também transformam, desorganizam, desestabilizam a original.

Assim sendo, passamos a não ser

nem isto nem aquilo, mas isto e aquilo

igualmente. O hibridismo cultural implica em portar uma dimensão basculante entre duas realidades, em apresentar uma ambivalência de sentidos: ser um, ser dois, ser três, ser muitos ao mesmo tempo - “Ser outro constantemente”. Admitir a hibridização significa perceber que as identidades nacionais, raciais e étnicas se confundem quando tentam estabelecer uma pureza ou insolubilidade dos grupos que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas - a identidade construída por meio da hibridização está longe de estar integrada com a original, embora conserve alguns de seus traços, é ambígua e ambivalente ao mesmo tempo – a simultaneidade de sentimentos ou idéias opõem-se mutuamente com a mesma intensidade.

Ao misturar as fronteiras do interno e do externo, a pós-modernidade confunde o significado de estar dentro e estar fora. Entendemos que a cultura mundializada nos leva de volta às nossas raízes e as conduz a diferentes lugares. As identidades têm a ver não tanto com as questões de “quem nós somos”, como assevera Hall, ou “de onde viemos”, mas muito mais com as questões de

“quem nós podemos nos tornar”. A cultura

mundializada muda os outros, e muda „nós‟ e, assim o fazendo, a idéia que temos dos „outros‟ também muda; „eles‟ se tornam parecidos conosco, „nós‟, nos tornamos parecidos com „eles‟: é quando a troca de culturas produz a hibridização e faz com que reavaliemos o entendimento de nossas próprias vidas, ao mesmo tempo em que colocamos em dúvida os estereótipos em relação aos outros. A maneira como temos sido representados e como essa reprodução afeta o modo como nós podemos conceber nós mesmos pode ser percebida quando “a habilidade de sermos nós, sendo outros” se torna latente.

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A América e suas Intermediações Culturais, tema deste encontro, revela o momento de trânsito num mundo Pós-Moderno em que espaço e tempo se encontram para produzir figuras complexas de diferença e identidade - os „entre-lugares‟, excedentes da soma das partes da diferença, passam a ser o lugar da formação dos indivíduos, na visão de Homi Bhabha. O interesse comunitário ou o valor cultural são negociados nos interstícios, lugar em que a necessidade de suplantar as narrativas de subjetividades originárias faz com que se enfatize o resultado da articulação social das diferenças culturais, atribuindo, assim, autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica.

Ver a América do ponto de vista do hibridismo cultural, como um processo que permite trocas, disseminação, dispersão de significado e, novamente, reunião de todos os opostos, um lugar de fusão e antagonismos, que reúne, mas também mantém a separação, uma mistura de vozes diferentes que lutam para serem ouvidas, parece ser o objetivo da grande maioria dos trabalhos a serem apresentados nesse espaço de discussão hoje e nos próximos dias - um “terceiro espaço”, que procura evitar uma política de polaridade ou um binarismo cultural, mais ainda, pretende-se um espaço em que os valores culturais sejam negociados continuamente e que resulte num reconhecimento cultural da diferença e contribua para uma

produção de uma

„cultura internacional‟,

justamente baseada na articulação do hibridismo cultural.

Nota: Discurso de abertura da XIV JORNADA DE ESTUDOS AMERICANOS, 22, 23 e 24 DE AGOSTO DE 2007, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, São Paulo, Brasil, proferido pela Profa. Dra. Vera Lucia Harabagi Hanna, presidente da ABEA e professora adjunta do Centro de Comunicação e Letras daquela universidade.

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