Amor e sexualidade na Antiguidade: estética masculina e o jogo entre austeridade e sedução

Share Embed


Descrição do Produto

Nós, os antigos, XI Semana de Estudos Clássicos da FEUSP, organizadores Marcos Sidnnei Pagotto-Euzebio e Rogerio de Almeida, São Paulo, Kéros, 2014, ISBN 9788583730149, pp. 153-166. Amor e sexualidade na Antiguidade: estética masculina e o jogo entre austeridade e sedução Lourdes Conde Feitosa1 Pedro Paulo A. Funari2

Introdução

O estudo do amor e da sexualidade apresenta uma trajetória muito particular. Durante a própria Antiguidade Greco-romana, tais questões eram da maior relevância, do âmbito filosófico, literário e sempre ligado às forças superiores do mundo dos deuses, daquilo que os gregos denominavam de ta theia. Não é à toa que um dos pilares da tradição filosófica ocidental, o Banquete de Platão, trata do amor, Eros, uma divindade. Ali se fala dos impulsos venéreos (da deusa Vênus ou Afrodite), mas também da amizade (philia) entre homens e mulheres (ou entre pessoas do mesmo sexo). O amor, conceito dos próprios antigos, não podia ser desvencilhado do que os modernos chamariam de sexualidade. Tudo mudou com o surgimento das ciências modernas, a partir de finais do século XVIII e, em especial, no século XIX. Por muitos séculos, prevaleceram concepções cristãs em relação aos desejos, inclusive os sexuais, como parte dos pecados a serem expiados. O celibato era um ideal a ser seguido, se possível, ou, caso não o fosse, deviam refrear-se os desejos, de modo que a união carnal se limitasse à procriação. O Iluminismo e o racionalismo viriam a desafiar tais preceitos e instituir uma nova perspectiva científica que identificava no corpo uma naturalidade a ser conhecida e regrada. A procriação deixava de ser uma meta religiosa para tornar-se um fim destinado à perpetuação da espécie. Os desejos não deviam ser mais reprimidos por serem considerados pecados, mas por serem contrários à natureza e ao bom funcionamento fisiológico. A masturbação era, assim, não mais pecado, mas vício, assim como a relação entre pessoas do mesmo sexo (antes sodomia) ou a busca do gozo feminino (antes pecado, depois patologia). 1 2

Professora da Universidade Sagrado Coração. Bauru/SP. Professor da Universidade Estadual de Campinas.

1

O século XX viria a testemunhar uma crescente insatisfação com tais interpretações que naturalizavam os preceitos sociais modernos, em especial a partir dos movimentos sociais como o das sufragistas e feministas. Houve, pois, uma insatisfação que alterou, de forma profunda e radical tanto as relações de gênero, como na academia. Nesta perspectiva, a emancipação feminina foi crucial. As mulheres passaram a participar da vida pública, em particular a partir da segunda guerra mundial (1939-1945) e do controle do corpo proporcionado pela pílula contraceptiva. Essa liberação feminina foi acompanhada por outros movimentos sociais de igual relevância e que reivindicam o direito à diversidade e às múltiplas maneiras de pensar e agir. Isto foi fundamental para a mudança das concepções acadêmicas relativas ao amor e à sexualidade de modernos e antigos. As abordagens tradicionais ignoravam tais temas e quando deles tratavam o era por um prisma modernista evidente, como se os banhos gregos e romanos fossem higiênicos, quando eram eventos sociais, ou como se os banquetes fossem assépticos e sem bebedeira e sexo em abundância. As traduções vertiam o Banquete de Platão, já citado, com elisões que dificultavam até mesmo sua intelecção. A partir de meados do século XX, surgiram novas interpretações mais liberais e libertárias e que procuravam dar conta, de alguma forma, das especificidades antigas (e que, claro, estavam mais de acordo com as novas sensibilidades). Assim, o general romano Júlio César era não apenas o conquistador de garotinhas (como Cleópatra), mas também ele era a rainha da Bitínia! Alexandre já não era só o amante de Roxane, como o companheiro de Heféstion. As companheiras dos banquetes (hetairai) apareceram como partícipes dos jogos de amor, mas também das conversas. Aspásia, concubina de Péricles, tomou acento privilegiado e não mais foi escondida. Neste contexto, um aspecto tem sido pouco estudado: a masculinidade. É um tema um tanto obscuro, pois sempre se considerou que a História foi composta da descrição dos varões: reis, sacerdotes, guerreiros. Mas, só se pôde falar em masculinidade a partir do desafio trazido pelo feminismo, algo que pode parecer paradoxal: os homens só passam a existir após e em consequência do reconhecimento das mulheres. De fato, isso não surpreende. A subjetividade do feminino permitiu pensar-se a constituição de sujeitos masculinos, em sua variedade e contradições. Neste pequeno ensaio, vamos tratar de como dois autores latinos do início do Principado romano, um poeta (Ovídio) e um romancista (Petrônio), construíram figuras masculinas, muito diversas daquelas da tradição cristã e da modernidade iluminista, mas que podem ser motivo de inspiração para reflexões, tanto sobre os antigos, como sobre nós mesmos. 2

Ovídio e o masculino

A destacada obra da literatura amorosa de Ovídio intitulada Ars Amatoria (A Arte de Amar), apresenta-nos um minucioso e elaborado perfil de masculinidade do primeiro século de nossa era, época em que escreveu esta obra. Neste artigo, procuraremos analisar o conceito de masculinidade apresentado pelo autor a partir de um conjunto de fatores caracterizados pelo aspecto físico, nível de informação e de conhecimento, condição econômica e comportamento amoroso. Analisaremos a relação entre a atitude amorosa e a posição social ocupada pela figura masculina apresentada no romance e quanto a sua aceitação ou transgressão em relação às regras morais e éticas podem nos fornecer informações sobre a dinâmica social durante o Principado. Iniciemos com a descrição da beleza física e comportamental do homem romano descrita na obra. Aos jovens inexperientes na arte de amar é que, de início, Ovídio dirige os seus conselhos: “primeiro, esforça-te para encontrares o que amar... O próximo trabalho é convencer a jovem que lhe agrada. Terceiro, fazer com que teu amor dure longo tempo”3. Para conquistar uma mulher é preciso saber os lugares propícios a uma conquista amorosa. As praças públicas, os teatros e as corridas de cavalos são lugares que oferecem boas oportunidades. Ali é possível achar “a quem amar, com quem se divertir, quem encontrarás apenas uma vez ou com quem manterás uma relação duradoura” (AA, 1, p. 10). Encontram-se mulheres para diferentes tipos de relacionamento, mas Ovídio ensina a arte de conquistar e conservar um amor: “preparo uma grande empreitada, como tornar capaz, pela técnica, a permanência do Amor” (AA, 1, p. 68). Ao escrever os seus ensinamentos, Ovídio imagina um público masculino definido, os homens livres: “não consideres indecente e se o for deve resignar-se, por exemplo, segurar para ela o espelho com tuas mãos de homem livre” (AA, 2, p. 84). A descrição de jovens livres e inexperientes parece indicar homens solteiros, mas não é apenas a eles que o poeta se dirige “não que, como censor, eu vos obrigue a ter apenas uma mulher. Os deuses julgaram melhor do que eu. Dificilmente com uma mulher casada isso pode acontecer. Divirta-se, mas seja comedido e que sua falta seja furtiva e rápida, nenhuma

3

Para simplificar a indicação da obra Ars Amatoria será utilizada a abreviação AA, seguindo-se o seguinte critério: o nome da obra, o número do livro e da página citada. “Principio, quod amare velis,

3

glória deve ser retirada de seu pecado” (AA, 2, p. 96 e 98). O texto sugere um público masculino formado por homens livres, casados e solteiros. Também indica que a condição de casado não obriga o homem à fidelidade a que está sujeita a mulher; entretanto, não parece que a infidelidade masculina seja de todo liberada e corriqueira, mas, tolerada e, por isso, Ovídio aconselha o homem a ser comedido. Ovídio estabelece um perfil masculino de beleza, destacando algumas características e cuidados: “não te deleites em enrolar teus cabelos com ferros, nem a tirar os pêlos das pernas com pedra-pomes. A limpeza agrada: bronzeie teu corpo pelos exercícios do Campo de Marte. Que tua toga seja conveniente e sem mancha, que tua língua não seja insensível e que teus dentes não tenham tártaro. Nem teu pé fique solto em um sapato muito largo. Que os teus cabelos não estejam deformados por um corte mal feito, mas que uma mão sábia corte a tua cabeleira e a tua barba. Que tuas unhas não estejam sujas, nenhum pêlo saliente saia para fora das narinas. Que o mal hálito não exale de tua boca e que nenhuma parte de teu corpo fira as narinas com um cheiro de bode” (AA, 1, p. 42 e 44). Todos estes cuidados com o físico agradam, mas são insuficientes para manter um relacionamento amoroso e o poeta ensina aos homens as qualidades que conservam um amor: “para conservares tua senhora e não seres jamais deixado, acrescentes as qualidades do espírito aos dotes físicos. A aparência exterior é frágil; quanto mais aumentam os anos, ela se torna menor ...” (AA, 2, p. 74). e em breve terás cabelos brancos e virão as rugas que tornarão teu corpo ressequido” (AA, 2, p. 76).

A beleza física é um atributo passageiro e logo substituído pela perda da vitalidade; os truques para escondê-la são menores para os homens do que para as mulheres: “nós não temos os mesmos recursos para os esconder, e quando a idade torna ralos os nossos cabelos, eles tombam como as folhas sacudidas pelos ventos invernais” (AA, 3, p. 140 e 142). Ensina o poeta, aos homens e às mulheres, inúmeras maneiras de conservar a beleza física, que é passageira; por isso, aconselha a ambos os dotes do espírito e do conhecimento, estes eternos. Mas, quais são estas qualidades? Aconselha os homens a serem amáveis (AA, 2, p. 74); a cultivarem o pensamento pelas artes liberais e a aprenderem das duas línguas [grego e latim] (AA, 2, p. 76); a serem eloquentes: “Ulisses não era formoso, mas era eloquente, e com isso experimentou o amor de reperire labora, ...\ Proximus huic labor est, placitam exorare puellam.\ Tertius, ut longo tem pore duret amor.” (AA, 1, p. 4).

4

duas deusas do mar” (AA, 2, p. 76); a dizerem doces palavras: “as doces palavras são favoráveis ao amor” (AA, 2, p. 78) e a não serem inconvenientes e ‘entrões’: “quando ela te desejas, aproxima-te, quando te evitas, afasta-te. Não convém a um homem educado ser imprudente” (AA, 2, 108). Aos indiscretos e garbosos é veemente em reprovar o anúncio público de seus encontros noturnos e a inventação de comentários torpes sobre as mulheres: “Atualmente, contudo, nós anunciamos nossos títulos noturnos, e não é pelo prazer que nós pagamos mais caro do que este do poder de falar. E ainda é pouco, alguns inventam o que negariam se fosse verdade e não há alguma com quem não tenham tido relações” (AA, 2, p. 116). Entretanto, pouco se atem Ovídio à estética; preocupa-se em assinalar as características que melhor mostram o perfil do homem imaginado, como a boa educação, o conhecimento das duas línguas (latim e grego), das artes liberais e da eloquência4. Ao descrever estes traços, é delimitado como público de seus conselhos amorosos o homem livre, culto, rico e respeitado. E de onde provém a riqueza e a autoridade desfrutada pelo homem aristocrático descrito pelo poeta? Localizando no tempo a poesia de Ovídio5, é possível perceber que este viveu em um período de alteração no regime político, ou seja, a passagem da República para o Principado romano e o marco político deste período é um regime encabeçado por um princeps, como resultado da ampliação do quadro aristocrático romano. Ocorreu a integração das províncias ao sistema estatal e a generalização do modelo social romano pelo império, dada pela unificação das elites provinciais e a sua incorporação à aristocracia. Isso não caracterizou mudanças significativas na estrutura social do Principado, pois a natureza do sistema econômico continuou a mesma, ou seja, a utilização da terra como principal fonte de riqueza. É certo que a época do Principado correspondeu ao período de maior desenvolvimento pelo qual passou a economia romana, favorecido pela paz, tendo florescido o crescimento do setor agrário, do artesanato e de um intenso comércio entre as diferentes partes do império. Ainda assim, a base econômica continuou sendo a agricultura (Alfoldy, 1987, p. 131-134). Esta constituía a fonte mais importante de renda, tal que ser rico significava possuir terras, base de valor social de classe no mundo romano (Veyne, 1990, p. 124), donde advinha

4

Segundo um estudo realizado por Paul Veyne, os romanos eram céticos à vaidade, à diferença dos gregos, muitos preocupados com o físico (1990, p. 109). 5 A bibliografia de Ovídio é escassa e imprecisa, como de grande parte dos autores latinos. Nasceu na cidade de Sulmo e parece ter sido de família eqüestre. Educou-se em Roma e completou a sua formação

5

o acesso a cargos políticos e o status de poder e prestígio. É para este homem livre, rico e prestigiado que se voltam os ensinamentos das doces palavras e dos serviços à mulher amada; é para ele a sugestão do local apropriado para o encontro dos amantes: “convém ao nosso amor furtivo um quarto nupcial de portas fechadas e uma veste para colocar sobre as partes pudentas do corpo. E se não trevas, procuramos, ao menos, uma nuvem opaca, algo mais discreto que a luz descoberta” (AA, 2, p. 116).

Do relato deste encontro amoroso destacam-se três aspectos abordados por Ovídio que permitem refletir sobre a sexualidade masculina: fazer amor em local fechado, fazê-lo com uma parceira não despojada de todas as vestes e, por fim, com a penumbra de uma vela6.

Ovídio canta a transgressão a um destes aspectos, a relação feita sob a claridade da vela. E como podemos interpretá-la? Segundo afirma Grimal, para a moral aristocrática romana a relação sexual feita no escuro simboliza o respeito do marido por sua esposa e, em termos éticos, trata-se de um ato vergonhoso agir com a esposa da mesma forma que com uma cortesã (Grimal, 1991, p. 107). Então, qual é o tipo de relacionamento preconizado por Ovídio? Alguns conselhos de Ovídio insistem na relação duradoura, como citado antes, mas na seqüência aconselha apenas a diversão e a banalidade com as mulheres “se és sensato, só divirtas com as mulheres, impunemente” (AA, 1, p. 54). Estas frases traduzem a idéia de um jogo poético feito pelo autor, cuja preocupação se justifica diante da moral reinante na sociedade, em que os amores passageiros são permitidos, desde que não violem a lei e a ética. O respeito à mulher casada e à moça nascida livre parece ser um importante preceito moral, e o homem não deve ser guiado pela afetividade, pois a paixão mergulha o homem na mais efetiva escravidão (Veyne, 1985, p. 11 e 1990, p. 198). A paixão torna o homem livre em escravo da mulher, chamando-a de “senhora” e estendendo-lhe o espelho como uma serva, tal como descreve Ovídio. O homem apaixonado fica vulnerável aos caprichos da emoção, comprometendo o ideal de comportamento severo e de autoridade sobre a mulher.

em Atenas; participou algum tempo da política, abandonando-a para dedicar-se à poesia. Morreu no ano de 17 ou 18 d.C. Cf. Grimal, 1958. p. 1113. v. 2). 6 Também Veyne analisou a imagem do libertino romano por meio da transgressão destas três proibições: fazer amor antes do cair da noite; fazer amor sem criar penumbra e fazer amor com uma parceira despojada de todas as vestes (1990, p. 197).

6

O homem educado tem conhecimento das artes liberais, do latim, do grego e fala com eloquência. Dele é esperado um comportamento amoroso austero, respeito por sua esposa e autoridade sobre ela. Em termos sociais, é permitido que tenha relações extraconjugais, desde que não seja com mulheres casadas, com moças nascidas livres e que não envolvam paixão. Mas Ovídio não se atém à moral estabelecida e sugere a busca do relacionamento fundamentado em bases afetivas e fora dos ditames legais e éticos, já que “o prazer é menor quando não ladeado de perigos”. Os conselhos do poeta parecem afrontar o ideal de austeridade masculina colocado para os homens livres e ricos, daí a importância do jogo de palavras. Partamos, agora, para outra abordagem, um pouco posterior, Petrônio.

Petrônio: o ético e o amoroso

No início do romance Satiricon, o personagem Encólpio apresenta uma crítica severa à temática vazia proferida pela retórica, fazendo da eloqüência um jogo de palavras vazias e sem fundamento: “com vossa permissão, vós fostes os primeiros a fazer com que decaísse a eloquência, porque excitando coisas ridículas com sons sem valor e sem alma, conseguistes que o conteúdo do discurso ficasse sem consistência e viesse a declinar (2,2). Há saudosismo em relação à retórica praticada antes por Tucídides e Péricles (2, 8) e a ruína da consistência do discurso é atribuída aos pais: “aos pais é merecida a repreensão, que consentem em absolver seus filhos do progresso em uma lei severa” (4,1). Fossem os pais mais severos, os seus filhos fariam leituras sérias, formariam o espírito com os fundamentos da sabedoria e resgatariam a arte da oratória, atividade de grandeza sem par  “grandis oratio” (4, 3). Com esta crítica à retórica, Encólpio apresenta um determinado comportamento masculino valorizado para o homem imaginado. Para este perfil masculino descrito, a educação permite a formação do espírito firmado na sabedoria e tem a finalidade de integrá-lo à carreira pública “quem deseja realizar uma arte severa e aplicar o seu espírito a grandes objetivos, primeiro procura praticar, com exatidão, um comportamento sóbrio”. Na verdade, a educação é uma condição prévia para alcançar um status elevado e extremamente útil para a carreira política (Alfoldy, 1987, p. 157-8), sendo importante dominar a gramática e a retóri-

7

ca7. O estudo da gramática permite conhecer a ortografia, as regras gramaticais e o conhecimento dos clássicos das literaturas grega e latina; a retórica prepara o aluno para desenvolver um tema, em que exibe seu domínio sobre os recursos de linguagem. Como preparação, exercitavam supostos temas que pudessem surgir nos tribunais ou nas assembléias deliberativas (s/d, p 206-7). Entretanto, os temas proclamados pela retórica distanciavam-se da realidade e tendiam ao fantasmagórico, tornando-se um jogo de eloqüência sem fundamento real. Daí a crítica severa feita no início da obra a este discurso vazio, proclamado pelo homem público romano. Para este homem é idealizado um comportamento sóbrio e espírito de sabedoria, formados por uma educação severa; qualidades estas necessárias para o resgate da arte da oratória. Em termos físicos, são apreciadas os seguintes traços, como mostram as descrições a seguir: “extraviou-se nos banhos públicos, um garoto com cerca de dezesseis anos, cabelos crespos, delicado, formoso, de nome Giton” (97, 2), “com efeito, tinha os órgãos genitais de tamanho peso que provocava, por si, uma ponta de admiração dos mais respeitosos” (92, 9). A descrição da beleza masculina está intimamente relacionada com o vigor físico da juventude e o conceito de belo é atribuído a um homem mais velho quando este conserva tais traços, como este senhor descrito por Encólpio: “setenta ou mais. Mas era duro como um corno, escondia bem a idade, tinha os cabelos negros como os do corvo” (43, 7). Entretanto, “é rara a fusão de beleza com a sabedoria” (94, 1), porque a sabedoria e o respeito são traços próprios da maturidade e da postura apresentadas pelo homem; um senhor bem cuidado, prestativo, merece confiança “vaguei por toda cidade sem saber retornar ao local do albergue, quando fui abordado por um pai de família que, bondosamente, se ofereceu para me conduzir pelo caminho” (8, 2). No contexto da obra, esta descrição é feita por Encólpio no momento em que se encontra perdido pela cidade; desorientado, ele aceita a ajuda de um senhor cuja aparência lhe suscitou confiança. O rumo da história mostra o seu engano, mas o importante é destacar que a aparência e a idade do senhor naturalmente lhe conduziram a um julgamento favorável a seu respeito. Diferente reputação goza um velho poeta, desleixado: “entrou na pinacoteca um velho de cabelos brancos, semblante experimentado e que prometia não sei o que de grande,

7

Segundo o estudo de M. L. Clarke, durante o Império a educação tomou impulso e floresceram muitas escolas das mais diferentes disciplinas, como Geometria, Retórica, Gramática, Aritmética, Música; dentre estas, as

8

mas a vestimenta deselegante mostrava facilmente ser um desses homens de letras há a muito tempo habituado com o ódio dos ricos” (83, 7). É possível perceber, pelas descrições acima, características bem definidas da estética masculina, valorizando os traços do homem jovem. Em contrapartida, é feita a relação entre sabedoria e sobriedade com maturidade e velhice. A condição de homem livre é apreciada e aparece como imposição de respeito. É estimada a educação severa, a oratória, a eloqüência, a boa aparência e o comportamento sóbrio do homem livre e rico. E como deve ser o comportamento amoroso deste homem idealizado? “Não adotava o aspecto de senhor, mas do amante que solicitava um obséquio” (113, 10). A crítica a esta atitude solícita marca a postura amorosa definida para um homem livre, segundo os mesmos parâmetros da atitude moral que este deveria ter na sociedade. Um senhor não solicita favores da mulher, mas se mantém superior a ela; evita a irracionalidade da paixão e a humilhação da súplica. Apesar desta postura definida: “uma amiga vence a esposa. A rosa reverencia o cinamomo. Aquilo que está procurando parece ótimo” (93, 2). Qual a relação sugerida ao homem livre na troca da esposa pela amante? Talvez apenas uma relação sexual mais prazeirosa do que aquela tida com a esposa? Se esta é a intenção, por que não recorrer à prostituta, símbolo da realização sexual sem vínculo afetivo? A frase abaixo sugere uma interpretação: “se tens um pouco de sangue de homem livre, não darás mais importância a ela do que a uma meretriz” (113, 11). O texto apresenta um conceito depreciativo da prostituta; portanto, não está sugerindo apenas satisfação sexual. O anúncio da amante em oposição à esposa e à meretriz parece sugerir a busca de um sentimento amoroso não sentido com tais mulheres. Diante da austeridade anunciada, a idéia da paixão rompe com o quesito da racionalidade e se contrapõe à ética preestabelecida. Analisando em conjunto as obras de Ovídio e Petrônio, percebe-se que ambos os autores descrevem um modelo idealizado de comportamento para o homem aristocrático romano, mas seguido de um velado jogo de palavras que parece brincar com os aspectos morais vigentes. E isto nos leva a refletir se o quadro amoroso apresentado pela poesia amorosa não seria apenas fruto da imaginação fértil dos poetas, com a intenção de criar cenas divertidas para seus leitores.

mais importantes eram as escolas de Gramática e Retórica, por onde passavam os romanos bem nascidos destinados à carreira pública (s/d, p 206).

9

Ao confrontarmos o quadro amoroso apresentado por estes romances com a complexa dinâmica social em que viveram, é possível perceber aspectos de crise pelo qual atravessava a instituição matrimonial, como a multiplicação dos divórcios, a extensão do concubinato entre livres e libertos e a diminuição do número de crianças legítimas (Benabou, 1987, p. 1257). A situação era tão preocupante que o próprio imperador Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) havia efetuado uma série de revisões nas leis que regulamentavam o comportamento social, tentando resgatar os valores aristocráticos colocados em questão. Preocupado em resguardar a moral dos jovens de ambos os sexos, o princeps os proibiu de assistir a espetáculos noturnos, quando não acompanhados por algum parente em idade avançada (Suetonio, Octavius Augustus, 31); alterou as leis referentes ao adultério, ao atentado contra o pudor, à ostentação e à regulamentação do casamento. Inibiu o casamento entre pessoas muito jovens; a freqüente mudança de matrimônio e impôs um limite aos divórcios (Suetonio, Octavius Augustus, 34). Parece que as leis de Augusto tentavam restringir as relações sexuais ao casamento, como alternativa para a manutenção da família aristocrática romana e as suas linhagens legítimas. Augusto procurou resgatar os valores da instituição matrimonial e também, talvez ainda mais, a própria estabilidade do Estado romano (Grimal, 1991, p. 61). Foram as leis do imperador acatadas? Uma resposta a esta indagação pode ser encontrada em Suetônio, que relata a veemente oposição surgida contra a severidade da revisão da lei do matrimônio, tendo sido aprovada apenas após supressões ou abrandamentos das penas (Octavius Augustus, 34). Isso porque as leis de Augusto parecem afrontar diretamente o comportamento costumeiro da prática extraconjugal romana, tanto masculina quanto feminina. O próprio Augusto reconheceu publicamente os escândalos da casa imperial quando baniu a sua filha Júlia pela impudicícia e orgias noturnas (Seneca, De Beneficiis, 4, 32); também o fez o imperador Nero através da denúncia do adultério de sua esposa Otávia. A partir deste contexto, mesmo considerando a submissão do homem livre, rico e viril aos caprichos da amante como fingimento natural do gênero elegíaco e da alegoria satírica, supõe-se que Ovídio e Petrônio referenciaram em suas obras uma prática extraconjugal comum no ambiente social em que viveram. Isto porque a complexa dinâmica das atitudes amorosas descritas nas obras latinas parece revelar as oscilações vividas pela sociedade e Foucault tem razão ao afirmar que “os imperativos econômicos e políticos 10

que comandavam o casamento como a transmissão do nome, a constituição dos herdeiros, a organização do sistema de alianças e a junção de fortunas perderam uma parte de sua importância quando, nas classes privilegiadas, o status e a fortuna passaram a depender mais da proximidade do príncipe, da ‘carreira’ civil e militar, do sucesso nos ‘negócios’, do que somente da aliança entre grupos familiares” (Foucault, 1985, p. 81).

Considerações finais

Embora considerando os textos insuficientes para representar toda a complexidade pertinente à acepção de masculinidade presente na elite romana do primeiro século, a literatura amorosa de Ovídio e Petrônio apresenta a idealização da estética masculina e o jogo estabelecido entre a austeridade e a sedução, que vão além da imaginação literária dos autores e permitem vislumbrar mudanças pelas quais passava a sociedade romana daquele período. Desta maneira, a análise do amor e da sexualidade realizada por meio desses documentos literários, ainda que bem conhecidos como as obras de Ovídio e Petrônio, evidenciam, em preciosos detalhes, preceitos do universo social aristocrático da Antiguidade romana.

Referências:

Autores Antigos:

OVIDIUS. Ars amatoria Libri. Paris: Panckoucke, 1830. v. 3 PETRONIUS. Satiricon. Paris: Les Belles Lettres, 1958. SUETONIUS. Octavius Augustus. Paris, Panckoucke, 1830. v.1.

Autores Modernos:

ALFOLDY, G. História Social de Roma. Tradução de Victor Alonso Troncoso. Madrid: Alianza, 1987. BENABOU, M. “Pratique matrimoniale et représentation philosophique: le crépuscule des stratégies”. AESC. Paris: v. 42, n. 6, 1987, p. 1255- 1266, nov/dez. 11

CLARKE , M. L. Educação e Oratória In: BALSDON, J. P. V. D. (org. ) O Mundo Romano. Trad. de Victor M. de Morais. Rio de Janeiro, Zahar, s. d. FOUCAULT, M. História da sexualidade. O cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. GRIMAL, P. Dictionnaire des Biographies. Paris: Presses Universitaires de France, 1958. VEYNE, P. A Elegia Erótica Romana. Tradução de M. M. Nascimento e M. G.S. Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. VEYNE, P. O Império Romano. In : ARIÈS, F. e DUBY, G. (Dir.) História da Vida Privada. Do Império Romano ao ano mil. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v.1

12

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.