\'Amor fati\' como \"práxis de guerra\": sobre amizade e partilha da alegria em Nietzsche

Share Embed


Descrição do Produto

Amor fati como “práxis de guerra”: sobre amizade e partilha da alegria em Nietzsche (Amor fati als „Kriegs-Praxis“: über Freundschaft und Mitfreude bei Nietzsche) Igor Alves de Melo

Minha tese consiste em interpretar a amizade como práxis de guerra do amor fati. Duas perguntas de Nietzsche introduzem o problema central do meu projeto de pesquisa: “será hoje — possível a grandeza?” (JGB/BM 212); “qual de vós é, então, capaz de amizade?” (Za/ZA I, Do amigo). Nobreza, grandeza e amizade são noções fundamentais para interpretar o amor fati como práxis de guerra. Será mesmo possível uma práxis da amizade tal como Nietzsche a concebe? Supondo sua impossibilidade, como o impossível não estaria no âmago da própria possibilidade? Minha tese é a de que a práxis da amizade em Nietzsche expressa o projeto ético do amor fati no exato sentido em que Nietzsche entende a palavra “liberdade”: “como algo que se tem e não se tem, que se quer, que se conquista...” (GD/CI IX, 38). Em outras palavras, interpreto a amizade como práxis de transvaloração de todos os valores: um projeto ético, um devir e um porvir. Assim sendo, pretendo desenvolver as seguintes proposições (essa é apenas uma seleção):

1) A práxis do amor fati teria por característica fundamental a afirmação (Bejahung) da alteridade. “Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar!” (FW/GC 276). A espontaneidade da autoafirmação nobre nasce de um excesso de poder (poder é poder dizer Sim), por isso não teria como consequência a negação do outro (ressentimento), mas a associação com naturezas igualmente capazes de amar o que é necessário nas coisas.

2) Nietzsche contrapõe partilha da alegria (Mitfreude) à compaixão (Mitleid) sem estabelecer, no entanto, uma oposição absoluta. “É a partilha da alegria, não do sofrimento, o que faz o amigo.” (MA I/HH I, 499). Segundo a crítica de Nietzsche, a compaixão seria tomada como um fundamento moral para o modo de vida gregário do homem moderno, cujo critério de conservação consiste em buscar a reconciliação das oposições e a suspensão dos antagonismos. Nesse sentido, Nietzsche critica a moral da compaixão como incapacidade de amar o que é necessário em toda infelicidade pessoal (FW/GC 338; Za/ZA IV, O homem mais feio). Sob essa 1

perspectiva, o furor da compaixão caracteriza a moral moderna como “pusilanimidade” (JGB/BM 197). Nada mais estranho à práxis de guerra do amor fati do que a negação da fatalidade que envolve toda empresa humana. Se todo criador tem que ser duro, a moral da compaixão é um obstáculo para a criação do amado. Se Nietzsche concebe o Quarto Zaratustra como “doutrina da alegria compartilhada” (NF/FP 1883, 15[14]), proponho conceber essa parte igualmente como doutrina do amor fati. A partilha da alegria seria então condição para o aumento de poder das naturezas nobres.

3) A amizade se constitui pela práxis de guerra entre amigo e inimigo como perspectivas distintas de um mesmo campo de batalha. Se não há amigos, também não há inimigos (MA I/HH I, 376): a amizade é privilégio das afetividades nobres. “És um escravo? Então, não podes ser amigo. És um tirano? Então, não podes ter amigos” (Za/ZA I, Do amigo). O primeiro quer somente obedecer e busca no outro um refúgio de si mesmo, enquanto o segundo busca sempre se apossar do mais fraco. A amizade é então práxis das relações de poder inter pares; o “duelo honesto” é um pressuposto necessário para o aumento de poder dos amigos. “Quando se despreza não se pode fazer a guerra; quando se comanda, quando se vê algo abaixo de si, não há que fazer a guerra” (EH/EH Por que sou tão sábio 7). Para ser amigo é necessário “poderser-outro” (Anders-sein-können) (JGB/BM 212), “poder ser inimigo, ser inimigo” (EH/EH Por que sou tão sábio 7). Para ter amigos é necessário querer para si o inimigo, amar o inimigo (GM/GM I, 10).

4) A amizade se constitui pela relação imanente entre ipseidade e alteridade. Toda natureza nobre precisa de outras naturezas equivalentes para se contrapor e criar sua própria nobreza. Guerrear pelo amigo significa conservar a distância que permite a cada um afetar e ser afetado em graus elevados de poder. Essa dinâmica de guerra é necessária para manter o arco da relação tensionado de modo a reforçar cada vez mais a singularidade própria (Eigenheit) de cada lado. Disso segue a hipótese de que o amigo é conditio sine qua non para a criação do si próprio (Selbst): amizade como condição para o poder-ser-outro-para-si-mesmo (Für-sich-anders-sein-können), o “estar-só” (Alleinstehn), o “querer-para-si” (Für-sich-sein-wollen), o “ter-que-viver-por-si” (auf-eigneFaust-leben-müssen) (JGB/BM 212). Como amor fati, a práxis de guerra dos amigos seria a “fórmula para a grandeza no homem” (EH/EH, Por que sou tão inteligente 10).

2

Este projeto requer o estudo de todos os “períodos” da filosofia de Nietzsche. Enquanto os escritos da época de Humano, demasiado humano até A gaia ciência concentram um grande volume textual, os escritos da época de Assim falou Zaratustra fornecem as perspectivas mais radicais para o presente tema. Por sua vez, os escritos da época de O nascimento da tragédia são fundamentais para complementar as investigações sobre a alegria. Além das obras de Nietzsche publicadas e autorizadas para publicação, bem como publicações privadas, escritos póstumos, fragmentos póstumos e cartas, meu projeto requer um estudo das fontes e comentadores desse pensador. Quanto à contextualização histórica da minha pesquisa, estudo também autores como Platão, Aristóteles, Epicuro, Cícero, Plutarco, Spinoza, Montaigne, Hume, Kant, Kierkegaard, Adam Smith, Schopenhauer, Stirner, Simmel, Carl Schmitt, Heidegger, Arendt, Derrida, Adorno, Horkheimer, Sartre, Foucault, Deleuze, Guattari, Levinas, Derrida, Butler e Agamben.

3

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.