Amoris laetitia: a alegria e o júbilo que nascem do amor

Share Embed


Descrição do Produto

FOTOS: VISUALHUNT E L’OSSERVATORE ROMANO - DESIGN: REBECA VENTURINI

RELIGIÃO FRANCISCO

48 revista família cristã

“Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem em uma nova união, mas a todos, seja qual for a situação em que se encontrem” Moisés Sbardelotto *

A

moris Laetitia, “A alegria do amor”: esse é o título da nova Exortação Apostólica Pós-sinodal que o papa Francisco entregou à Igreja em abril passado, como fruto dos dois sínodos sobre a família, de 2014 e 2015. Essa alegria, especialmente quando vivida em família, “é também o júbilo da Igreja” (no 1). A exortação recolhe os frutos do “caminho sinodal”, durante o qual surgiram diversas questões em torno da família, como a formação dos noivos, os divorciados em segunda união, o papel da mulher, os homossexuais. Mas a Amoris Laetitia não oferece respostas prontas e definitivas, nem encerra o debate de uma vez só. Ao contrário, Francisco relembra uma de suas máximas – “o tempo é superior ao espaço” – e reitera que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais”, pois cada Igreja particular, país ou região também pode “buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (no 3). Francisco também não aconselha

uma “leitura geral apressada” do documento, dada a sua “inevitável extensão”: nove capítulos, 325 parágrafos, 391 notas de rodapé, em mais de 260 páginas. Em vez disso, sugere que cada família ou agente de Pastoral Familiar aprofunde “pacientemente uma parte de cada vez” ou encontre o que for necessário “em cada circunstância concreta” (no 7). Os nove capítulos da Amoris laetitia estão assim divididos: o primeiro intitula-se “À luz da palavra”, inspirando-se na Bíblia, que “aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas” (no 8). O capítulo dois – “A realidade e os desafios das famílias” – considera a situação atual das famílias, para “manter os pés assentados no chão” (no 6), sem teorizações desencarnadas, pois “os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história” (no 31). O terceiro capítulo mantém “O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”, no qual são retomados alguns elementos da doutrina da Igreja, especialmente o anúncio do querigma, do “amor infinito do Pai,

que se manifestou em Cristo entregue até ao fim e vivo entre nós”. O foco nesse anúncio evita que o ensino da Igreja sobre o matrimônio e a família se torne “mera defesa de uma doutrina fria e sem vida” (no 59). Os capítulos quatro e cinco são dedicados ao amor. Primeiro, o papa reflete sobre “O amor no matrimônio”, mediante uma releitura do hino à caridade de São Paulo (cf.1Cor 13,4-7). Apresentam-se indicações práticas e cotidianas para o cultivo do amor, inclusive em torno da sua “dimensão erótica”, com uma valorização da vida sexual dos esposos, pois “o próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas” (no 150). No capítulo cinco, aborda-se “O amor que se torna fecundo”, sobre a acolhida da nova vida, dos filhos, que são “sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e mãe” (n. 165). Aqui, o papa se dirige especialmente às mulheres grávidas e lhes faz um “afetuoso” pedido: “Que nada te tire a alegria interior da maternidade. Essa criança merece a tua alegria” (no 171).

“O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado” maio de 2016 49

Religião Francisco

O capítulo seis destaca “Algumas perspectivas pastorais”, em que são retomados os principais debates dos sínodos. A partir deles, as comunidades locais também são chamadas a “elaborar propostas mais práticas e eficazes, que levem em conta tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e desafios locais” (no 199). O sétimo capítulo é um convite a “Reforçar a educação dos filhos”. Para isso, Francisco valoriza um “realismo paciente”, em que a formação dos filhos se dá “pouco a pouco […] sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis” (no 273). O tema do capítulo oito é “Acom-

panhar, discernir e integrar a fragilidade”, no qual o papa indica o que a Igreja deve fazer diante de situações de “fragilidade de muitos dos seus filhos”, especialmente “no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia” (no 291). Encerrando a exortação, o capítulo nove reflete sobre a “Espiritualidade conjugal e familiar”, que é uma espiritualidade do “vínculo habitado pelo amor divino”. Reafirma-se que “a presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários” (no 315). A partir de uma leitura transversal

da Amoris Laetitia, quero destacar três polos de novidade na reflexão eclesial sobre matrimônio, família e laicato. Neles, Francisco consegue traduzir com mais clareza e ênfase alguns elementos de grande importância na tradição da Igreja. O primeiro é o reconhecimento da vocação e imperfeição da vida matrimonial. Segundo o papa, “a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto de um discernimento vocacional” (no 72), em que o matrimônio não é “o fim do caminho” (no 211). Ao contrário, trata-se de uma vocação que lança os noivos para frente, “com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis” (no 211). Por outro lado, trata-se de um chamado específico a viver o amor conjugal como “sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja” (no 72). Com isso, o papa deseja evitar que se jogue sobre “duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica ‘um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus’” (no 122).

Frente a situações difíceis, o papa convida a Igreja a promover “um cuidado especial em compreender, consolar e integrar” 50 revista família cristã

Um “afetuoso” pedido às mulheres grávidas: “Que nada te tire a alegria interior da maternidade. Essa criança merece a tua alegria” Famílias, avancemos – Francisco também faz uma autocrítica das limitações da Igreja, devido a um acompanhamento dos casais jovens não adaptado “às suas linguagens”, a apresentação de um “ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato”, uma ênfase aos casais “quase exclusiva no dever da procriação”. Em suma, uma “excessiva idealização” do casamento, “com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade” (no 38). Por isso, o papa também agradece a Deus porque “muitas famílias, que estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam em frente, embora caiam muitas vezes ao longo do caminho” (no 57). Afinal, “o amor convive com a imperfeição, desculpa-a e sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado” (no 113). Um segundo polo envolve conceitos-chave da experiência cristã como consciência e discernimento. O papa reconhece que é difícil para a hierarquia da Igreja “deixar espaço à consciência dos fiéis”, mas afirma: “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituílas” (no 37). A consciência – afirma o papa, citando o Concílio Vaticano II – é “o centro mais secreto e o santuário do ser humano, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir

na intimidade do seu ser” (no 222). E a própria dignidade humana exige que cada um aja segundo a própria consciência (cf. no 267). A consciência também é “esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor”, discernimento este que é “dinâmico” e “sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa” (no 303). Tal discernimento deve ser “cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar” (no 312), e “deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento em meio aos limites” (no 305). “Lembremo-nos” – afirma Francisco – “de que ‘um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades’” (no 305). É diante de tais limitações que entram em cena a acolhida e a integração, especialmente das pessoas mais frágeis. Frente a situações difíceis, o papa convida a Igreja a promover “um cuidado especial em compreender, consolar e integrar”, sem fazer com que as pessoas se sintam “julgadas e abandonadas

precisamente por aquela Mãe que é chamada a lhes levar a misericórdia de Deus” (no 49). É preciso “oferecer a força sanadora da graça e da luz do Evangelho”, em vez de “doutriná-lo” e “transformá-lo em ‘pedras mortas para as jogar contra os outros’”. O caminho da Igreja “é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração” (no 296). Por isso, é preciso “integrar a todos”, exorta Francisco. “Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem em uma nova união, mas a todos, seja qual for a situação em que se encontrem” (no 297). Na tensão entre a vocação divina e a imperfeição humana dos matrimônios e das famílias, Francisco encerra o seu documento com esperança: “Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…) Avancemos, famílias; continuemos a caminhar!” (no 325). * Moisés Sbardelotto é leigo casado, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e pela Università La Sapienza, em Roma. É autor de E o Verbo se fez bit (Editora Santuário). maio de 2016 51

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.