Amorteamo, da morte ao maravilhoso

June 30, 2017 | Autor: Rafael Sens | Categoria: Sigmund Freud, Indústria Cultural, Narrativa fantástica
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

AMORTEAMO, DA MORTE AO MARAVILHOSO
Rafael Muniz Sens

1. Introdução
A emissora de televisão Rede Globo transmite há tempos um bloco maciço de telenovelas e seriados que representam um molde eleito da sociedade brasileira e trabalham para a manutenção de preceitos estabelecidos pela rede. A Globo, sendo a emissora mais transmitida nos televisores brasileiros, possui o poder de controlar o que grande parte do país vê e, muitas vezes, pensa. Sendo assim, a rede de televisão se mantém dentro de uma margem onde seja possível abranger o interesse do público e o dos grupos de poder por detrás da emissora. Até mesmo quando se demonstra a aventura do canal em transgressões perante preceitos e tabus sociais, o trem explosivo e louco que é transmitido à grande maioria das casas brasileiras logo volta aos trilhos.
Neste breve ensaio, vamos analisar uma minissérie de 5 capítulos exibida durante os meses de maio e junho de 2015 no horário de sexta-feira à noite da rede Globo, Amorteamo. Diferente das outras séries e telenovelas exibidas pela emissora na mesma época, a minissérie é a única que se baseia na linguagem expressionista, no sobrenatural aceito e, curiosamente, no único enredo de época transmitido pelo canal durante, pelo menos, as semanas de sua exibição. Não nos debruçaremos em digressões sobre a grade de horário da emissora, mas refletiremos rapidamente sobre algumas características da minissérie que, transmitidas no canal e horário citado, apresentam um potencial de profanação do uso comum da emissora rede Globo, são elas: a vinculação do humano com a morte e os tabuísmos que essa relação envolve, o fantástico-maravilhoso não apresentado a serviço da doutrina de uma religião, mas como enredo artístico, e uma retomada da arte popular do Nordeste.
2. A morte, o maravilhoso e a arte nordestina
A série Amorteamo conta a história trágica de Gabriel, filho de um adultério, que descobre, por mentira do homem que acreditava ser seu pai, que o amor de sua infância, Lena, era sua irmã. Assim, Gabriel promete ter casamento arranjado com a personagem Malvina. Previsivelmente, ele a abandona no dia do casamento e ela se joga no mar por fúria, vindo a falecer. Até então, em termos de estrutura narrativa e temática, nada além do que já é costumeiro na grade de novelas e seriados da Globo aparece nesta minissérie. Todavia, posteriormente a noiva cadáver e outros falecidos da cidadela voltam à vida para concluir assuntos pendentes no mundo dos vivos.
Antes mesmo do surgimento do sobrenatural na série, a morte já permeia o enredo e personagens, visual e intrinsecamente. Ela aparece de forma natural e como horizonte positivo e crucial para a manutenção da própria vida, como na literatura dos contos populares. Ou seja, faz exatamente o inverso da narrativa elencada sendo rasa por Walter Benjamin onde "a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos" (2012, p. 207). Para o teórico que via o potencial residente nas narrativas orais do conto popular, a expulsão desse fenômeno natural do cotidiano acaba por resultar no declínio da autoridade do narrador, isto porque é a morte que nos garantiria a necessidade de passar o que se tem para contar a diante através do ato de narrá-lo.
Na sociedade frenética e capitalista de hoje, evoluída da imaginada por Benjamin, vivemos em condições de esquecimento desta ambivalência entre a vida e a morte. A finitude da vida torna-se o tabu "sagrado" e "impuro", como diz Freud (2013, p. 65), aquilo cuja existência temos total conhecimento, mas a recalcamos a ponto de envolvermo-la por uma camada grossa de ignorância hipócrita. Não passamos mais anos de luto por falecidos, nem erguemos monumentos para nos relembrarmos daqueles que partiram, pois queremos exatamente esquecer que eles se foram e, principalmente, que qualquer dia destes nós também podemos partir. Encontrar na Globo, a galinha dos ovos de ouro do capitalismo brasileiro, a discussão de que não somente a morte não deve ser expulsa do nosso dia a dia, mas que também deve ser abraçada por ele é, sem dúvida, um rompimento de se tomar nota. A quebra de tabus, porém, é seletiva. Quando Gabriel e Lena descobrem que são irmãos, mesmo que isso seja mentira, o caos é estabelecido no núcleo dos personagens. A proibição de um relacionamento entre dois indivíduos do mesmo totem familiar continua expressa, até porque qualquer transgressão nesse assunto em particular resultaria, provavelmente, em muitas notas de repúdio ao redor do país.
Ao longo dos capítulos, são comuns sentenças como "a morte é minha amiga" ou "sem a morte a vida perde o sentido". O medo da morte gera uma potência avassaladora dada a ideologias que controlam grande parte da sociedade e chegam por vezes a extorquir o bom senso dos que nelas são fiéis. A promessa de vida eterna, seja na transcendência a outros planos ou no preenchimento das maçãs do rosto para esconder as rugas da velhice, necessita de que sua oposição, a morte, seja temida. Um aceitamento da fatalidade e da mortalidade humana retira o poder deste campo. Ao apresentar novas leias da natureza, ou seja, a possibilidade de se voltar à vida após a morte, Amorteamo adentra o gênero do maravilhoso puro e, além disso, do sobrenatural aceito, primeiramente porque traz ao enredo um surreal que não se explica de nenhuma maneira e um sobrenatural que se constitui perfeitamente mesmo sem essa comprovação (TODOROV, 2013, p. 48). Passado o primeiro susto, a volta dos mortos-vivos torna-se apenas algo fora do comum, mas totalmente possível e verídico. Isso permitiu que o minisseriado fosse anunciado no canal como a "primeira série de terror da rede Globo". Exibindo um sobrenatural que em momento algum precisa de uma verificação de autenticidade e é vinculado a assassinatos e suspense, a emissora foi capaz de adentrar num gênero não comum em sua grade, como já vem fazendo nos últimos tempos, incorporando moldes de seriados norte-americanos de tema policial e outros.
Situada na virada do século XVIII e XIX, a série remonta propositalmente uma retomada da arte popular do nordeste. O personagem Zé Coveiro serve como contador de histórias que, no último capítulo, introduze-lo retomando os acontecimentos da cidade como num conto popular aos espectadores. O narrador benjaminiano chega a se materializar neste personagem. Não somente é ele o coveiro da cidade, ou seja, quem lida diretamente com a morte, mas também é quem os jovens apaixonados procuram para receber conselhos.
Ele é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferece sua ajuda, em caso de emergência. (BENJAMIN, 2012, p. 215)
Também não é apenas coincidência que Zé inicia o quinto e último capítulo da minissérie anunciando que "a morte até que a boa patroa, só não aceita ser contrariada". O que nos diz que todos os conflitos gerados ao longo dos capítulos anteriores são consequência da recusa da morte em vida e que poderiam ter sido prevenidos se a finitude banal e humana fosse aceita pela população ao invés de ser recalcada. Isso se encontra também na personagem Malvina, que procura a morte desde pequena ao cortar as veias dos pulsos frequentemente e ao imaginar diferentes formas de suicídio, precisa esconder sempre os pulsos com pulseiras e enfeites, além de ter este tipo de atitude, de "amizade" com a morte, podada pelo pai e escondida da sociedade. Inicialmente, a postura de Malvina é tida como estranha. A personagem veste apenas preto, cor que combina com seus cabelos e pupilas negras, mantendo sua aura macabra. No final da minissérie, porém, pode-se retirar a conclusão de que talvez ela não houvesse se tornado uma morta-viva assassina, que é o que acontece quando ela morre e depois volta à vida, caso sua afinidade com a morte não tivesse sido castrada tão fortemente pelo pai e pelo viés social.
A direção de arte da minissérie foi majoritariamente inspirada na cidade de Recife e feita por artistas da cena independente do Nordeste. As cenas de casamento, o enterro e o luto ao falecido, os pontos de entretenimento, como o bar e o prostíbulo, a religião e costumes em geral que recuperam a arte e sociedade populares estão todos em Amorteamo, remontando a estrutura de contos populares que se constroem através de tramas padronizados, desde temas convencionais, advindos de diferentes regiões e exibindo até mesmo uma falta de especificidade, possibilitando que qualquer pessoa se situe em pontos precisos do espaço e tempo (DARNTON, 1996, p. 19).
Há uma manutenção do formato de telenovelas e enredos da emissora na minissérie: um núcleo religioso, um cômico e um principal, trágico. No primeiro, o padre morto-vivo que assombra a igreja e o padre que procura continuar catequizando a cidade; no segundo, o morto que volta para tomar a ex-mulher que se casou com o irmão, ou os fiéis que correm da igreja com medo de assombração; e no último, as histórias ultrarromânticas dos e das protagonistas. Há também a luta de classes, pois o romance de Gabriel e Lena é entre o filho do patrão e a filha da empregada, além de haver sempre a promessa da ultrapassagem desta, já que os dois jovens ficam juntos no final.
Por outro lado, a presença do sobrenatural, do tratamento da morte e da arte popular nordestina, como discutida nesta breve seção, demonstra que o canal pode estar se aventurando em campos fora de sua zona de conforto. A emissora pode estar entrando em uma fase de exploração do maravilhoso em oposição à quantidade exorbitante de telenovelas realistas que retratam sempre os mesmos conteúdos, mesmo que a extinção destas seja impensável. Em 2014, foi exibida uma telenovela profundamente inspirada na literatura de cordel e de contos de fadas: um reboot de Meu pedacinho de chão. O sobrenatural, entretanto, já é presente na emissora há muito tempo através das correntes de telenovelas de cunho espiritista e religioso.
3. Conclusão
Pensando-se no histórico da emissora, no seu poder, molde e requisitos a "prestar" perante seus "controladores", analisar a entrada do maravilhoso na grade de seus enredos fictícios como um ponto de fuga profanatório pode parecer quase uma idealização. Poderíamos pensar em duas vertentes possíveis advindas desse fenômeno curioso: a primeira delas é que a presença cada vez mais frequente deste tipo de manifestação artística estaria diretamente ligado a um reuso da emissora, como diz Agamben, restituindo ao uso dos homens aquilo que era somente sagrado (2007, p. 58). Para nós, isto significa reativar um potencial de emissoras como a Globo que tem se anestesiado há muito tempo, o de fazer o espectador refletir e ser subjetivo perante aquilo que lhe é apresentado. No exemplo de Amorteamo, é repensar a questão da morte, por exemplo, e voltar a interpretar que nossa finitude humana nos acompanha desde o primeiro momento em que abrimos nossos olhos de manhã e que, ironicamente, isto não é nenhum motivo para suicídio.
A segunda não deixa de ser, até certo ponto, vinculada a primeira. Considerando ou não que o maravilhoso na TV Globo pode ser uma obra de profanação da morte, é muito difícil enxergar através da nuvem de fumaça e aceitar que este é o fim do arco-íris neste novo gênero apresentado. Isto quer dizer que a outra maneira de compreender este fenômeno é assimilar que, além e muito longe de seu potencial profanatório, tanto a morte quanto o maravilhoso e a arte nordestina aparecem em um minisseriado como Amorteamo mais como um produto a ser comprado pelo espectador do que como ferramentas de reflexão sobre a sociedade, a vida e o que nos rodeia. Principalmente na obra em questão, é visível a manutenção do formato de seriado pop norte-americano, de cenários que reproduzam as mesmas cores de obras de Tim Burton e da utilização da atriz-estrela Marina Ruy Barbosa como centro das chamadas de propaganda na televisão e veículos de mídia.
A questão é que talvez seriados como Amorteamo, 2015, ou novelas como Meu Pedacinho de Chão, 2014, sirvam, de maneira geral, apenas para proporcionar aos espectadores um momento de respiro de ar fresco dentre as incontáveis tragédias e reproduções do calçadão de Copacabana no bloco maciço das novelas da Globo. Sendo assim, ao fim de um episódio de Amorteamo, o espectador já está novamente disposto e pronto para assistir a mais algumas horas de casos extraconjugais da alta sociedade e de famílias enfrentando peripécias cômicas num cenário que copia a parte ajeitadinha das favelas do Rio de Janeiro. Em um contexto não tão drástico, mas igualmente decepcionante, essas produções podem representar nada mais que uma vontade do canal de arrematar prêmios de entretenimento internacional, como Emmy e afins, e adentrar no grupo de emissoras cult.
Críticas apocalípticas à parte, os pequenos insights revolucionários destas produções já contêm neles mesmos um avanço. Enquanto a minissérie de terror abordou a morte de maneira alternativa, maleável e produtiva, a telenovela de 2014 utilizou-se da aura multicolor dos contos de fadas, interligados contemporaneamente à infância, para tratar de assuntos ainda permanentes para a sociedade brasileira do século XXI, como o analfabetismo infantil ou adulto e a adoção e registro de crianças sem família. A estratégia advinda do maravilhoso ainda nos contos de fadas de transmitir dilemas existenciais através de uma brevidade categórica (BETTELHEIM, 2002, p .7) nos sugere que, por mais que o ventríloquo por detrás das cortinas possa permanecer em uma posição intencional de resguardo perante seu show alucinante de bonecos de papel, a sombra formada pelos holofotes sistematicamente voltados ao palco e a posição específica dos espectadores pode formar uma rede interpretativa de resultados fantásticos. Ou seja, dependendo de onde se senta, cada um pode assistir a um espetáculo de sombras diferente.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. "O elogio da profanação". In: _____. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 57-71.
BENJAMIN, Walter. "O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012 [1936]. p. 197-221.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 335 p.
DARNTON, Robert. "Histórias que os camponeses contam: o significado de mamãe ganso". In: _____. O grande massacre de gatos. São Paulo: Graal, 1996. 21-101 p.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras. 2013 [1912-1913]. 169 p.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva. 2012 [1939]. 188 p.

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