AMPLIAR O OLHAR, EXPANDIR A COMPREENSÃO, TRANSFORMAR A POLÍTICA: AS IMAGENS DE YANN ARTHUS-BERTRAND (2012)

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* Artigo publicado no livro A Terra Vista do Céu por Yann Arthus-Bertrand. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.

AMPLIAR O OLHAR, EXPANDIR A COMPREENSÃO, TRANSFORMAR A POLÍTICA: AS IMAGENS DE YANN ARTHUS-BERTRAND JOSÉ AUGUSTO PÁDUA (Professor de História Ambiental na Universidade Federal do Rio de Janeiro) Imagino que os historiadores do futuro, quando se debruçarem sobre a época em que estamos vivendo - tão cheia de tensões e transformações, de riscos e oportunidades – não poderão deixar de destacar uma das suas inovações mais radicais: a ampliação do nosso olhar coletivo sobre o tempo e sobre o espaço. Existem aspectos da história que possuem uma grande dose de continuidade. Uma ocasião, em meados da década de 1970, ouvi de Luis da Câmara Cascudo, velho mestre da etnologia brasileira, que os seres humanos estavam saudando o retorno à Terra dos primeiros astronautas com um gesto categoricamente arcaico e primata: bater as palmas das mãos em sinal de satisfação. O passado remoto da nossa espécie ainda está presente em nosso corpo, em nosso viver cotidiano, apesar de todas as mudanças tecnológicas. A velha sabedoria bíblica expressou essa idéia de continuidade na frase “não há nada de novo sob o Sol”. O historiador ambiental John McNeill, no entanto, denominou de “Algo de Novo sob o Sol” o seu importante livro sobre as grandes transformações observadas nas relações entre a humanidade e o planeta no século XX. A história é sempre um jogo de continuidades e descontinuidades. Mas as mudanças que estamos vivendo, até onde conhecemos a história da nossa espécie, são de um ineditismo radical. O tamanho da população e dos assentamentos humanos, assim como a escala dos fluxos de matéria e energia que movimentamos diariamente, não têm paralelo na nossa experiência anterior. Os macro-processos históricos que originaram essas mudanças, no horizonte dos últimos séculos, são cheios de contradições e ironias. A base material desse grande avanço da presença humana no planeta, o consumo dos combustíveis fósseis, que proporcionou importantes conquistas sociais e econômicas, tornou-se também a principal causa do nosso maior

desafio coletivo: o aquecimento global que, acima de certo grau, pode alterar gravemente a atual configuração dos sistemas biofísicos do planeta, desestabilizando o conjunto de condições naturais que hoje se mostram tão propícias ao desenvolvimento das estruturas complexas da civilização. Diante dessa realidade, os diferentes aspectos da chamada “crise ecológica” aparecem com força cada vez maior nos meios de comunicação, nas agendas políticas e nas conferências internacionais. É fundamental, no entanto, superar uma visão parcial e fragmentada dessa temática para entender que se trata de um fenômeno histórico de grande alcance e profundidade. Talvez poucos tenham compreendido tão bem essa dimensão quanto Paul Crutzen, prêmio Nobel da química em 1995, ao cunhar o termo “antropoceno. Segundo ele, no contexto da modernidade urbanoindustrial, a espécie humana deixou de ser um animal como outro qualquer, que vive da apropriação de uma fração muito pequena dos grandes fluxos naturais de matéria e energia presentes no planeta, e passou a ser um agente relevante na moldagem do cenário ecológico planetário. Um verdadeiro agente geológico. Isso é especialmente verdade em alguns espaços do planeta particularmente delicados e sensíveis à capacidade de impacto da ação humana, como a atmosfera (onde alguns graus para mais ou para menos fazem uma diferença capital na vida dos seres hoje existentes) ou a biosfera (onde perdas fortes de população podem provocar extinções de espécies e redução significativa da biodiversidade). Diante dessa mudança de patamar histórico, o papel da ciência e do conhecimento torna-se cada vez mais crucial. É preciso, na verdade, construir novas visões de mundo que consigam captar essa nova realidade e catalisar ações coletivas que enfrentem com inteligência e lucidez os grandes problemas que a partir dela estão emergindo. Até porque as soluções não poderão ser pontuais, mas terão que passar por transformações profundas nos nossos padrões de vida coletiva. Assumir que já estamos vivendo no antropoceno, construir um antropoceno consciente de si mesmo, pode ser não apenas o caminho para a nossa sobrevivência como também uma oportunidade para transformar positivamente a nossa existência. Uma verdadeira mutação no nosso entendimento do que seja a política. Com o problema do aquecimento global, por exemplo, pela primeira vez a longa duração se torna uma questão política central. A negociação sobre o futuro terá que ser feita por atores sociais que talvez não estejam vivos para conhecer as conseqüências plenas de suas decisões. Tudo isso apresenta dificuldades consideráveis. O curto prazo que

caracteriza o atual debate político terá que ser superado em nome das gerações futuras, de uma visão do destino da espécie enquanto tal no planeta onde foi possível o seu aparecimento. Esse desafio poderá representar um verdadeiro salto de qualidade para a consciência reflexiva da humanidade no contexto histórico de globalização. É verdade que a produção científica contemporânea revela muitas das contradições da época em que vivemos. A construção de verdadeiras máquinas institucionais de produção de conhecimentos e inovações tecnológicas, que circulam o planeta no tempo real dos novos meios de comunicação, tem sido um aspecto essencial do presente planetário. Tal construção está por trás, ao mesmo tempo, de alguns dos nossos maiores dilemas e das nossas mais fortes esperanças. De toda forma, como mencionei no início, o desenvolvimento científico está na essência da grande ampliação de nossa percepção do tempo e do espaço. Os marcos cronológicos e espaciais de entendimento do mundo estão sendo permanentemente reformulados, de uma maneira verdadeiramente radical. Um naturalista tão renomado como Buffon, pouco mais de duzentos anos atrás, especulava com ousadia que a idade de Terra podia ser próxima de 70.000 anos. Hoje trabalhamos com a imagem de um planeta de 4,5 bilhões de anos! Nosso atual leitura do cosmos contempla a provável existência de 100 bilhões de galáxias, cada uma contendo entre 100 a 200 bilhões de estrelas! Nunca tivemos tantas informações disponíveis sobre a ecologia planetária e sobre os detalhes da condição humana. A verdade é que nunca soubemos tanto sobre problemas que não conseguimos resolver. Mas, por outro lado, o número cada vez maior de pessoas escolarizadas, a velocidade dos meios de comunicação, o estabelecimento de múltiplos espaços públicos para o confronto de opiniões, vêm contribuindo para gerar sociedades que discutem cada vez mais o seu presente e futuro. Esse fato constitui, sem dúvida, uma das chaves para um futuro potencialmente sustentável. O desenvolvimento desse debate global requer a produção de conceitos e imagens cada vez mais amplos e dotados de maior capacidade para estimular entendimentos e ações esclarecidas. Quando menciono a importância da geração e socialização de conhecimentos não estou me referindo apenas aos cientistas profissionais. Deve ser reconhecido, por exemplo, o papel fundamental de um criador como Yann Arthus-Bertrand, que nos brinda com imagens tão poderosas que constituem verdadeiras oportunidades cognitivas para uma melhor compreensão da nossa nova realidade planetária.

De maneira geral, a ampliação nas escalas da vida humana ao longo dos últimos séculos vem se articulando à demanda por imagens igualmente amplas, que permitam construir miradas cada vez mais integradoras da experiência humana. Os mapas-mundi, as pinturas de paisagem, os panoramas fotográficos (tão inovadores no século XIX), são passos no processo de espelhar os novos horizontes e dinâmicas sócio-espaciais trazidos por todo esse conjunto de transformações. É tocante observar, no Brasil do século XIX, o esforço de fotógrafos, como o francês Marc Ferrez, para utilizar a geografia montanhosa do Rio de Janeiro no sentido de elaborar pacientemente imagens que representassem com a maior amplitude possível as novas paisagens urbanas em construção. A culturas humanas, porém, não existem no vazio. Elas estão sempre localizadas em contextos geográficos, sociais e tecnológicos específicos. O campo de possibilidades gerado pelas inovações tecnológicas, especialmente a partir da grande aceleração observada na segunda metade do século XX, abriu perspectivas qualitativamente revolucionárias para nossa visão de mundo. Muito já se falou da importância das primeiras fotos do planeta a partir das viagens espaciais. Aquilo que Stewart Brand chamou de “Whole Earth Photographs”, tão relevantes no surgimento da consciência ecológica contemporânea. Caetano Veloso cantou a experiência de “na cela de uma cadeia” ver pela primeira vez “as tais fotografias” em que a Terra aparecia inteira. O profundo significado histórico e cultural de imagens desse tipo talvez só possa ser plenamente percebido no futuro. O impacto e o encantamento causado pelos trabalhos de Arthus-Bertrand, como no caso do livro The Earth from the Air e do filme Home, encontram-se na linhagem do que existe de mais refinado na busca por essa visão ampliada e integrativa do nosso presente e futuro. O dinamismo, a beleza e o sentido de conexão e responsabilidade ética que suas imagens evocam, tanto no pensamento quanto na emoção, podem indicar que estamos em um estágio mais alto na percepção do significado histórico profundo da globalização. Não são apenas imagens espetaculares. São imagens plenas de um sentido interior fundado na melhor sensibilidade ecológica e humana. Imagens que estimulam a reflexão e o diálogo sobre como reconhecer, com consciência e humildade, a realidade do antropoceno. O desafio histórico que as imagens de Arthus-Bertrand suscitam vai bem além dos lugares-comuns sobre a “crise ambiental”. Trata-se de algo potencialmente mais denso e universal: a percepção da difícil, acidentada e diversificada caminhada da

espécie humana no sentido de se reconhecer como uma humanidade em um planeta. De saber como domar ética e politicamente o seu poder tecnológico e aprender a viver com mais qualidade, responsabilidade, inteligência e sentido de justiça em nossa casa comum.

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