Amplificando Orfeu em Direção à Clínica

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Nessa postagem, quero atualizar o mito de Orfeu na vivência clínica de um garoto de doze anos de idade. Mitos são pontos condensados de significados psíquicos, nós ou nódulos significativos [semântico-simbólicos] para os quais costumam convergir feixes de significantes e/ou "linhas narrativas". Para melhor operacionalizar meu intento de descrição clínica, passo a analisar dois poemas meus, que tratam de algo do fulcro do mito de Orfeu, sem precisar reproduzir-lhes as narrativas clássicas, nem dos libretos operísticos que foram feitos em seu nome.


Vamos aos textos, então.


Orfeu 













Temos de vê-lo em seu próprio
grupo ou cortejo: ele é um cantor
sagrado. Mas há um problema: ele
olha para o passado como fardo.


Por isso não viceja, pois se relaciona
com o aspecto minguante da Musa
ou da Deusa, e há um sentimento de
Tragédia pessoal em sua vida que
atrapalha tudo, há um pesar pelas
pétalas amareladas do crisântemo
espalhadas no final do outono. Ele
é Outonal. Ele é Orfeu.


Sim. Ao mesmo tempo, ele é muito
comprometido com a Inteireza e com
o Melhor dos Mundos, como costumam
ser os muito Trágicos e Idealistas. E segue
em busca da Visão Sagrada, enquanto canta,
como Dante em busca de Beatriz, sua Amada,
e de Virgílio, seu Guia e seu Vate ao longo das
estradas e das Esferas Secretas do Mundo, nas
Fendas das Tragédias Gregas. 


E o Cantor canta sua Musa Morta como
canta o Bode quando Estertora na Hora da
Morte: Canto Trágico que apazigua feras em
seu Trajeto, enternecendo-as, condoendo-as,
murchando seus ímpetos ferinos genuínos,
transformando águias em codornas, tratando,
como gatos, leões e panteras.


Mas ele é o Primeiro a seguir por este
Rumo, o Primeiro de todos, com seu toque
hipnótico e cortante, em estreita relação com a
Coisa Morta e com a atmosfera da Flauta de Hamelin,
ainda que Ele Venha Antes e Desde Sempre, como
a Sombra de um Sonho que Se Fora.


E essa singularíssima eloquência de
quem toca é quase monocórdia, porque 
embebida em pranto indiano e raga: este
som que volta sempre à mesma nota.


Vê-se que há um quê de acanhado nele,
cabisbaixo, Entretido com a Coisa Perdida,
algo tosco e ingênuo, por isso mesmo capaz
de mobilizar emocionalmente os outros, de
Comovê-los e atraí-los, como se atrai o fio
da ponta ao novelo.


Ele pode ser encantador, sobretudo aos mais
jovens [ele encanta como encantava Sócrates],
ou aos já maduros que não puderam fazer vingar
Seus Frutos, os que conhecem o Outono Somente
Como Promessa Que Não Se Cumpre. Orfeu atrai
os outonos de outrora, como atrai outonais e insones.


Seu refinamento é triste, verde-cinza,
capaz de atrair os que têm Fome como Ele
e Sede, os Saudosos do Bem Ausente, os
Impacientes com a Mesmice, como hão de
ser todos os Puristas: os Órficos, Pitagóricos,
Platônicos, os Sérios, enfim, e somente Estes.


E Isso deve rechaçar a muitos, torná-lo um
Homem Fora De Lugar, ou menos que um Homem,
um Extemporâneo em qualquer Tempo que Se O
Deixe Pisar, que não seja Outono. Hão de achá-lo,
assim, de um Exotismo Amargurado, Inaugurado em
Mar Salgado e Condenado a Amar Sem Ser Amado.
Por isso choram, ganem ou apedrejam quando Ele
Passa Depressa em Suas Vidas Sem Graça.


Alguns, às vezes, parecem encantados com o
Cantor dos Fados, às vezes desconfiados, outras
vezes ambos, porque lhes parece querer Ele con
-verter o Mundo à sua Dor Maior, aos Valores
para além da Oitava Esfera dos Planetas. Disso
é acusado no Verão, Inverno e Primavera.


"Quem é Ela: Sophia, Beatriz, Eurídice,
 e Onde Mora?!" É a pergunta que lhe fazem,
eis o que o acusam de dizer, sem provar o gosto.
Assim, Ele é o corruptor da Lira, como Sócrates,
com Perguntas, Corrompia. Resta-Lhe Ser Fiel a Si
Sem Nem Mesmo Conhecer tão bem Quem Canta,
sendo perseguido amado ou desprezado por Isso.
E acordar a Musa, distante ou morta, com seu
Acorde.


Não importa que a fertilize na Pureza
Mesma da Pergunta. Talvez, por Isso
Mesmo, devolvendo ao Mundo o que
Nunca Esteve Aqui.


Ele é Orfeu, Qualquer que
Seja o Nome que se Lhe
Dê.











Marcelo Novaes
Postado em 20th November 2012 por Marcelo Novaes
Marcadores: A Franja Branca da Luz, Cada Coisa em seu Contexto, Cada Qual em seu Cortejo, Da Sombra do Sonho Que se Fora, Dante Alighieri, Flauta de Hamelin, O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, Outonais e Insones, Tragédia

Vamos nos aproximar do conteúdo e ressonâncias do poema do modo habitual: estrofe por estrofe. Assim temos:

Temos de vê-lo em seu próprio
grupo ou cortejo: ele é um cantor
sagrado. Mas há um problema: ele
olha para o passado como fardo.


Orfeu precisa ser visto em seu próprio cortejo. Qual seria ele? O dos poetas? Um músico acompanhado pelas mênades, as companheiras de Dioniso? Ou, ao contrário, por portar sua lira, Orfeu seria da linhagem de Apolo, ainda que de forma oblíqua? Apolíneo ou Dionisíaco? Se procurarmos a fortuna crítica a respeito de Orfeu e seus avatares, encontraremos respostas diversas ao tema. O poema, de qualquer maneira, não faz alusão a tais ascendências ou linhagens. Por outro lado, não se pode dizer que o texto seja omisso, ainda que sucinto: ele declara ser Orfeu um cantor sagrado, qualquer que seja o significado que se dê a isso. Os marcadores do texto [as "tags"] nos dão pistas adicionais. A lira de Orfeu e seu canto pôde fazê-lo atravessar o estreito entre Cilas e Caríbdis, sem se deixar encantar pelas sereias de Circe. Seu canto suplantava o canto encantatório delas, o que significa dizer que era mais encantador que seus feitiços. Ao contrário de muitos marinheiros, Orfeu não precisava, pois, amarrar-se aos mastros do navio para não se atirar ao mar, morrendo enfim. O canto de Orfeu seria, então, da ordem de "um canto que o manteria vivo". Um canto para continuar vivendo. Temos, aqui, uma das linhas de análise que migra para o fulcro polissêmico [e multi-simbólico] do mito de Orfeu.

Mas os indicadores [ou "tags"] nos dão mais pistas a respeito de nosso personagem. Encontramos ali, além da pista de "cada qual em seu cortejo" a figura do "Flautista de Hamelin". O leitor poderá procurar este conto folclórico reescrito pelos Irmãos Grimm. Em 1284, é o que se conta, a cidade de Hamelin, na Alemanha, estaria às voltas com um problema: infestada de ratos. Surge um homem na cidade [portanto, vejamos bem: surge um forasteiro] que anuncia ter uma solução para o problema, solução para a qual lhe pagariam uma moeda pela cabeça de cada rato morto. O sujeito se apresenta como um flautista. Então, temos aqui um forasteiro flautista ou flautista forasteiro, alguém que veio de fora ou que veio não se sabe de onde. Este flautista aparece aqui como "só um homem" [isto é: não há mais do que um] e como "um homem só" [ou seja: um homem solitário, de cujo lar ou companhias nada se pode saber]. Poemas, como mitos, são polifônicos, nunca serão óbvios. Se o forem, não serão poemas.

Temos de vê-lo em seu próprio
grupo ou cortejo: ele é um cantor
sagrado. Mas há um problema: ele
olha para o passado como fardo.


Temos de vê-lo em seu próprio cortejo. Essa é a primeira afirmação do poema. Soa como uma premissa, mais do que simples assertiva. Precisamos ver Orfeu em seu próprio cortejo, e a frase subsequente, enunciada depois de dois pontos, parece demarcar "qual seja este cortejo": o dos cantores sagrados. No entanto, os marcadores apontam para "O Flautista de Hamelin", aparentemente um perfeito outsider que surge sozinho numa cidade que nunca visitou [nenhum habitante de Hamelin dá sinais de tê-lo conhecido antes], prometendo eliminar os ratos que infestavam a cidade por meio de sua música. Temos, aqui também, não um cantor, mas um flautista poderoso. E sabemos que a voz humana é um instrumento de sopro. O leitor pode pensar em Al Jarreau, em Nina Simone, em Louis Armstrong, mitos modernos. Ou pode pensar em Orfeu, um mito antigo, um mito-tipo, um "arquétipo", que aglutina em torno de si as tais linhas narrativas que, em si mesmas e somadas, constituem todo um "complexo psíquico" [ou seja: "um complexo de símbolos de significação psíquica, atuantes em conjunto"] em torno de si. Assim são os arquétipos. E assim são os "complexos psíquicos" que eles, arquétipos, constelam, o que vale dizer: complexos que eles, arquétipos, fazem surgir à existência por seu próprio poder atrativo, imantatório. E isso se dá com todos os arquétipos, sem exceção. Por isso encontramos "n" variáveis internas [as tais "linhas narrativas"] em todo mito que se conta ou que se transforma em conto. Assim sendo, o Flautista de Hamelin é uma variante do mito de Orfeu, se entendermos o "arquétipo de fundo" de ambos os mitos ou "mito-narrativas".

Senão, vejamos: há variantes ou sub-relatos do mito de Orfeu que o apontam "fazendo as árvores se curvarem para ouvirem seu canto", os pássaros pararem de cantar para ouvirem o seu canto e os animais perdendo o medo dele e dos humanos, seguindo-os, pacificamente. Pois bem: variantes tingidas com cores ainda mais fortes apresentam Orfeu arrancando as raízes de árvores que quereriam seguir sua música e/ou seus versos.

O que eu disse alguns parágrafos acima, sobre o poder encantatório da música [ou dos versos] de Orfeu, suplantando o canto das sereias [um canto encantatório - ou o som da lira - suplantando outro canto ou canto-feitiço] coloca-o como ancestral direto do personagem narrado pelos Irmãos Grimm. Orfeu é um proto-"Flautista de Hamelin". Ou o Flautista de Hamelin é um sub-Orfeu. Como queiram. Ambos [e as "tags" nos ajudam nessa pista] fazem parte, portanto, do mesmo cortejo!

Temos de vê-lo em seu próprio
grupo ou cortejo: ele é um cantor
sagrado. Mas há um problema: ele
olha para o passado como fardo.


"Temos de vê-lo em seu próprio grupo ou cortejo". Qual? "O dos cantores sagrados".

O Flautista de Hamelin prometeu para os cidadãos da cidade infestada um pequeníssimo milagre: hipnotizar ratos com sua flauta. Ele os conduziria, assim, para fora da cidade. O forasteiro prototípico, aquele que "veio de fora", conduziria os ratos "também para fora", levando-os consigo. Se em Orfeu, apresentavam-no arrancando árvores com seu canto, ou contrapondo-se a outro canto encantatório para anulá-lo, segurando, assim, os marinheiros no barco, ou atraindo animais ou ninfas com seu canto [ou lira], no caso do Flautista de Hamelin, temos um "primeiro cortejo" a ser esboçado: um cortejo de ratos hipnotizados pelo som da flauta! Não se trata de nada solene, muito pelo contrário!

Aqui, já temos uma visão nova das assertivas iniciais do poema: precisamos ver Orfeu em seu próprio cortejo, qual seja: o dos cantores sagrados. Mas parece que cada um desses cantores "cria" um cortejo próprio que o segue! Um cortejo ou mais de um! Pensemos nos astros pop, manejadores de sons, nos músicos, nos solitários poetas que encontram outros solitários que os leem. Parece-nos que Orfeu atraiu, nas variáveis narrativas, árvores, pássaros, animais, mênades, bacantes, parece que segurou marinheiros [os argonautas] no Barco de Jasão [o que é outra forma de atrair, segurando-os], o que mostra que, em Orfeu, vemos a apresentação de "sucessivos cortejos", segundo a variante do mito narrada. Arrematando, então, o tema [especificamente para nossos propósitos], vemos que Orfeu e O Flautista de Hamelin se apresentam como "cantores-músicos" [não nos esqueçamos de que "a voz humana é um instrumento de sopro"] que participam de "um mesmo cortejo": o do arquétipo da voz que encanta, neutraliza encantos, hipnotiza. E mais: por terem essa voz-instrumento que encanta-hipnotiza, atraem para si cortejos outros, variados: árvores, ninfas, argonautas, ratos.

Precisamos ver Orfeu em seu próprio cortejo.

Mas precisamos arrematar a história do Flautista de Hamelin, porque as "tags" apontam para a sua pertinência para o poema. As tags são "linhas de amplificação" para o texto supra mencionado, ou seja, para o poema.

O Flautista de Hamelin cumpre o prometido no trato e atrai os ratos para fora da cidade. Em troca, ele receberia dos cidadãos uma moeda por cada cabeça de rato morto. Ocorre que os ratos foram atraídos para o Rio Weser e, portanto, mortos por afogamento. Não haveria cabeças de ratos para contar. E os habitantes, manhosa e malandramente, deixaram de cumprir o trato feito. Eles sabiam que estavam livres da praga, mas, como tantos e malandros advogados de todos os tempos, preferiram se ater "à letra do contrato" e não ao mérito.

Vamos nos deter um pouco aqui. Os ratos foram atraídos a um rio, pelo Flautista. Ele se comporta como um "pastor a conduzir um grupo para fora". Orfeu é tido, como Hermes, seu patrono arquetípico, como um "bom pastor". Na Bíblia, Jesus é o Bom Pastor. Mas ele não só atrai cortejos: também os expulsa! A narrativa mais emblemática dessa função-Orfeu em Jesus [e, também, de sua "função-Hamelin", por extensão, já que Hamelin é um "sub-Orfeu"] consta no relato da expulsão dos demônios de um possesso no território de Gerasa [atual Jerash, no norte da Jordânia]. Temos versões do relato de Marcos 5: 1-20, Mateus 8: 28-34 e Lucas 8: 26-39, aqui elencados para a apreciação do leitor interessado, para se possa apreender melhor a "função-Orfeu" no caso de "exorcismo dos encantos ou feitiços alheios". Não nos custa grifar, para efeitos didáticos, que o milagre operado por ocasião da viagem mítica dos argonautas conduzidos por Jasão, em busca do Tosão de Ouro, foi da mesmíssima ordem do milagre do Flautista de Hamelin, tal como narrado no conto dos irmãos Grimm: se Orfeu não cantasse para "abafar o canto-encanto das vozes das sereias", os argonautas-marinheiros se atirariam ao mar, morrendo exatamente da mesma forma que os ratos que se atiraram no Rio Weser! E "um milagre reverso é um milagre análogo", em termos de análise mítica. Orfeu e O Flautista de Hamelin se mostram, assim, como "frutos da mesma cepa". Ou como provenientes do mesmo arquétipo de fundo.

"Onde está o exorcismo de Orfeu na situação dos argonautas?", perguntará um leitor mais teimoso ou menos atento. Ora, direi eu, o exorcismo consiste em "demarcar ao mar, e não ao barco, o efeito do canto das sereias", o que equivaleria, em termos de exorcismo, a "expulsar o canto de dentro do barco, 'devolvendo-o ao [ou 'expulsando-o para o'] mar'". Espero que a similitude esteja clara.

Antes de seguirmos no poema, precisamos acompanhar os desdobramentos narrativos do conto dos Irmãos Grimm. O que aconteceu com o Flautista e com a cidade de Hamelin? Aliás, não é muito próprio chama-lo de "Flautista de Hamelin", porque ele é um forasteiro, da mesma forma que Jesus era um forasteiro em Gerasa. O mais correto seria dizer "O Flautista em Hamelin", porque ele estava só de passagem. Exatamente como Jesus. Ou como Orfeu, os argonautas e Jasão, atravessando aquele trecho de mar em sua viagem conjunta.

Uma viagem é uma viagem, não é um porto.

Ou, de forma ainda mais candente: "Então, aproximando-se dele um escriba, disse-lhe: 'Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores'. Jesus lhe respondeu: 'As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça'". Mateus 8: 19-20

Orfeu tem consciência de "estar de passagem", daí as "linhas-de-fuga" [ou feixes narrativos] que o apontam familiarizado com o mundo dos mortos.

Como o mito apresenta um fato em seus dois modos, o direto e o reverso, ser conhecido pelos mortos é o mesmo que conhecê-los, em algum nível recôndito.

Senão, vejamos:

E, tendo chegado ao outro lado, à província dos gerazenos, saíram-lhe ao encontro dois endemoninhados, vindos dos sepulcros; tão ferozes eram que ninguém podia passar por aquele caminho.
E eis que clamaram, dizendo: Que temos nós contigo, Jesus, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?
E andava pastando distante deles uma manada de muitos porcos.
E os demônios rogaram-lhe, dizendo: Se nos expulsas, permite-nos que entremos naquela manada de porcos.
E ele lhes disse: Ide. E, saindo eles, se introduziram na manada dos porcos; e eis que toda aquela manada de porcos se precipitou no mar por um despenhadeiro, e morreram nas águas.
Os porqueiros fugiram e, chegando à cidade, divulgaram tudo o que acontecera aos endemoninhados.
E eis que toda aquela cidade saiu ao encontro de Jesus e, vendo-o, rogaram-lhe que se retirasse do seu território.
Mateus 8 :28-34

Que temos nós contigo, Jesus, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?

Os demônios mostram, aqui, que sabiam quem era Jesus. Mas os habitantes da cidade não sabiam quem ele era e lhe pediram para se retirar.

Os ratos sabiam quem era o flautista. Mas os habitantes da cidade pediram que ele fosse embora, sem as suas moedas.

Mas o Flautista em Hamelin não era magnânimo como Jesus. Ele quis mostrar para os habitantes, devedores e malandros, quem ele era. Que espécie de forasteiro estava ali. Pois bem, narra a história que ele voltou a Hamelin e atraiu crianças, meninos e meninas em número de cento e trinta. A cidade [eu diria mais um povoado do que uma cidade...] estava livre de seus antigos ratos, mas também sem as suas crianças. E assim termina o relato dos Irmãos Grimm, com a cidade de Hamelin desprovida de pragas, mas também de risos e alegria infantis.

Prossigamos com nosso poema:

Por isso não viceja, pois se relaciona
com o aspecto minguante da Musa
ou da Deusa, e há um sentimento de
Tragédia pessoal em sua vida que
atrapalha tudo, há um pesar pelas
pétalas amareladas do crisântemo
espalhadas no final do outono. Ele
é Outonal. Ele é Orfeu.


Ele é Outonal. Ele é Orfeu. Que espécie de afirmação é esta?

Não sabemos onde morava e de onde vinha o tal Flautista em Hamelin, mas ele era um forasteiro. Um outsider. Jesus, aliás, foi o maior de todos os outsiders, e não era de Gerasa, mas de Nazaré, um povoado à época. Diz o conto dos Irmãos Grimm que o Flautista levou as crianças para uma "caverna", ou seja: para uma espécie de "isolamento". Moraria o tal Flautista na citada "caverna" ou fora dela? O conto não o diz e também não diz se o tal Flautista tinha "pedra onde repousar sua cabeça". Atormentado este Flautista que, de uma forma ou outra, reteve para si os risos das crianças. Toda caverna é um invólucro. Seria a caverna um invólucro também temporal, no conto? As crianças na caverna [uma vez na caverna e "isoladas pela caverna"] permaneceriam, talvez, para sempre crianças? Não o sabemos.

Este Orfeu do poema se encontra "no Outono", o que equivale a dizer que ele "habita o Outono", é familiarizado com suas "cores minguantes": o verão e a primavera lhes são estranhos. E ele é estranho a essas estações. É dito, no poema, que "ele não viceja, por se relacionar com o aspecto minguante da Musa ou da Deusa, havendo um sentimento de tragédia pessoal que a tudo atrapalharia, um pesar pelas pétalas amareladas e pelas folhas que caíram", etc. Então, temos algo bastante consistente e interessante aqui: Este Orfeu narrado, longe das estações de fulgor ou de vida em ascensão/abundância, habita um lugar que lhe pesa na alma: habita seu próprio pesar refletido nas coisas que minguaram ou amarelaram. Este Orfeu habita o pesar. Ele mesmo é minguante. Mas não podemos nos esquecer que o Outono traz seus frutos. E "amarelos" pode significar que "chegaram ao ponto".

Então, teríamos aqui um primeiro paradoxo. Todo poema encarna em si algum paradoxo, ou muitos. Toda vida nos apresenta paradoxos, inúmeros. Toda terapia que "descola dos paradoxos", por extensão, também se descola da vida.

Estar no Outono, habitá-lo, é "bom" ou "ruim"? Parece ser "bom" e "ruim". Explicito e explico. Há verdade no outono, como também há verdade nas outras estações do ano. Há uma verdade no Outono. Parece que Orfeu está "aninhado" nesse matiz amarelado-maduro-imaturado de verdade. É curioso e paradoxal. As crianças na caverna do conto dos Irmãos Grimm estariam rindo como crianças para sempre? Estariam enfeitiçadas na infância? Com isso [e se este for o caso] elas teriam algo de bom e de ruim, simultaneamente. Perderiam as dores e alegrias de outros estágios da vida: seriam impedidas de crescer e morrer. Isso é bom, ruim ou ambos?

As crianças, ali, não vicejariam por estarem "sempre-vivas", como flores congeladas no tempo. Não há espaço para vicejarem mais [se isso lhes fosse possível], nem para decaírem. Não há liberdade para viver o ciclo que a si mesmo se fecha enquanto se libera de si próprio. Isso é o oposto do "se fixar em". Nosso Orfeu do poema não viceja, ele está fixado no que murchou ou minguou. Parece que até o seu Outono é mais melancólico. Talvez ele não esteja focado nem mesmo no Pleno Outono ou no Outono Pleno, mas apenas em uma de suas facetas. E a lua minguante também é só um quarto das facetas-de-lua disponíveis.

Este Orfeu habita uma das faces ou fases do Outono [parece que já rumando para o Inverno], assim como "habita" a lua minguante. Seus olhos miram para o que lhe mora dentro.


Prossigamos com o poema:


Sim. Ao mesmo tempo, ele é muito
comprometido com a Inteireza e com
o Melhor dos Mundos, como costumam
ser os muito Trágicos e Idealistas. E segue
em busca da Visão Sagrada, enquanto canta,
como Dante em busca de Beatriz, sua Amada,
e de Virgílio, seu Guia e seu Vate ao longo das
estradas e das Esferas Secretas do Mundo, nas
Fendas das Tragédias Gregas. 


A que se refere o advérbio afirmativo? Que "sim" é este? Este sim vem a corroborar a última assertiva da estrofe anterior do poema, desdobrada em duas assertivas tidas por similares e análogas, quais sejam: "Ele é Outonal. Ele é Orfeu." Bom, comentamos nossos parágrafos acima a partir dessas assertivas complementares, como se um conectivo as unisse: "ele é um Orfeu Outonal." Portanto, essa estrofe começa nos lembrando do que não deveríamos [nem poderíamos] perder de vista [essas duas assertivas "em uma", ou "uma em duas"], se quisermos entender, minimamente, do que nos fala o poema. Assim sendo, precisamos avançar da retumbância ultrassintética de um simples "sim" como frase quase-autônoma, para o que se segue a esta reiteração.

Ao mesmo tempo, ele é muito
comprometido com a Inteireza e com
o Melhor dos Mundos, como costumam
ser os muito Trágicos e Idealistas. E segue
em busca da Visão Sagrada, enquanto canta,
como Dante em busca de Beatriz, sua Amada,
e de Virgílio, seu Guia e seu Vate ao longo das
estradas e das Esferas Secretas do Mundo, nas
Fendas das Tragédias Gregas. 



Aqui estão esboçados alguns traços que nos oferecem a silhueta desse avatar de Orfeu: "Ele é muito comprometido com a Inteireza, com maiúscula mesmo, com o Melhor dos Mundos [idem], como costumam ser os muito Trágicos e Idealistas [ibidem]." Ainda que haja algo de muito parcial nesse Orfeu, a exiguidade de sua "habitação em clave minguante da vida" [poder-se-ia dizer: tal como numa caverna], há, paradoxalmente, algo de "excessivo" ou "transbordante demais" nele: a aspiração pelo Bom, pelo Melhor, pelo Sumo-mais do-que-os-sumos-costumeiros, pela quintessência da Vida ou da Fruta. Vejam que curioso: isso também é um aspecto de ser Outonal [e assim mesmo, com maiúscula!]. Estamos, então, captando melhor as nuances desse Orfeu minguante, que aspira por um "amarelo em Plenitude", o supra-sumo do Outono, como se n'Ele, neste Outono, se conjugassem e se enfeixassem todas as estações do ano. O círculo todo completo em cada ponto que o constitui. Essa é uma aspiração Idealista e Trágica. Nosso Orfeu é um Idealista Trágico.

Interessante: estamos distinguindo nosso Orfeu de outros "mitemas". O Flautista de Hamelin [que deveria ser "o Flautista em Hamelin"] nos deu uma pista mais geral para o arquétipo de Orfeu, mas ele, o flautista, não era um idealista. Era um comerciante. Queria moedas pelo seu serviço. Talvez o que haja de trágico nele, no flautista, tenha sido "capturar as crianças para sua tragédia". Isso é trágico, mas é um rapto. Não há idealismo algum aqui: há, no máximo, uma busca de companhia para a própria tragédia, inscrita nessa mesma tragédia: atrai-se o outro para o próprio claustro. O Flautista em Hamelin não é um personagem para atrair simpatias idealistas: ele é quase um código de comportamento ou manual mínimo para agiotas – "se não me dás o valor devido, eu te levo muito mais"! Não se trata, pois, de idealismo algum, e a "tag" parece nos ter dado uma pista genérica para que aprendamos a fazer distinções e nuances subsequentes às primeiras generalidades, para que, só nesse segundo momento apreendamos as características individuais de nosso Orfeu. Generaliza-se para depois discriminar, sofisticando a apreensão do objeto único em nossa grande angular, como numa fotografia sempre irrepetível.


Ao mesmo tempo, ele é muito
comprometido com a Inteireza e com
o Melhor dos Mundos, como costumam
ser os muito Trágicos e Idealistas. E segue
em busca da Visão Sagrada, enquanto canta,
como Dante em busca de Beatriz, sua Amada,
e de Virgílio, seu Guia e seu Vate ao longo das
estradas e das Esferas Secretas do Mundo, nas
Fendas das Tragédias Gregas. 


Ele é comprometido com o Bom e o Melhor, provavelmente como "compensação para a exiguidade de seu espaço vital", qual seja: "o Outono nas circunvizinhanças com o Inverno". Se ele habita esse exíguo espaço, no entanto sabe aspirar por todo o espaço, aquela coisa ideal-trágica ou trágico-ideal de pretender fazer caber todo o círculo em cada um de seus pontos discretos, como se súmula pudessem ser de todos os outros. Essa aspiração trágico-ideal pode servir como SOS, um pedido de Socorro. Mas ele é discreto. Ele canta seu pedido de Socorro, como Dante cantava Beatriz, como Virgílio cantava Eneida, como um Vate [e todos e cada um deles, todos em cada Vate] canta seus cantos pelas estradas e faz seus versos como eterno itinerante. Todo Vate se sabe "itinerando". O grito de Socorro, como a haste verde que brota no cimento, surge nas fendas e frestas das Tragédias Clássicas, que têm nas Gregas o seu Protótipo Ocidental. Nosso Orfeu aspira pela Harmonia das Esferas. Além de músico, idealista e melancólico, parece ser ele, também, um Pitagórico.

Sigamos com o poema, desta vez com duas estrofes, só pra variar:


E o Cantor canta sua Musa Morta como
canta o Bode quando Estertora na Hora da
Morte: Canto Trágico que apazigua feras em
seu Trajeto, enternecendo-as, condoendo-as,
murchando seus ímpetos ferinos genuínos,
transformando águias em codornas, tratando,
como gatos, leões e panteras.


Mas ele é o Primeiro a seguir por este
Rumo, o Primeiro de todos, com seu toque
hipnótico e cortante, em estreita relação com a
Coisa Morta e com a atmosfera da Flauta de Hamelin,
ainda que Ele Venha Antes e Desde Sempre, como
a Sombra de um Sonho que Se Fora.


A primeira estrofe parece definir Tragédia em sua Gênese e Significado Primal: o Estertor do Bode Sacrificial. Temos aqui a apresentação de Orfeu na linhagem de Dioniso: ele conhece a Tragédia, para além [ou aquém] de todas as suas aspirações ideais. Ele conhece o peso da Morte, também com maiúscula. Ele perdeu alguém que lhe era muito significativo. E ele canta essa perda. E esse canto-de-perda condói os outros, atraindo-os e apaziguando-os ou enternecendo-os. Temos aqui uma versão mais benigna do tal Flautista de Hamelin porque, estando preso, ele não quer aprisionar: apenas seu canto por ter, talvez, a natureza de um choro-em-canto ou canto-em-choro, por sua qualidade intrínseca e vizinhança ao choro, enterneça, inadvertidamente e não propositalmente, quem porventura o ouça. Isso é um convite à visitação da dor, não uma prisão. Ele não pretende aprisionar ninguém numa caverna, ou no canto exíguo de uma estação do ano: ele apenas canta o lócus vital onde habita.

A estrofe seguinte avança mais na distinção deste Orfeu aqui do tal Flautista patrono dos agiotas, porque diz que ele "vem antes", de certa forma pretendendo recuperar o "tônus" do arquétipo primal de Orfeu, uma aspiração poética do cantor do poema que parece, ironicamente, emparear-se e se emparear com o idealismo algo "nostálgico" e "trágico-ideal" do próprio personagem retratado! A cadência do texto e sua mensagem mimetizam algo do perfil do personagem que se pretende delinear. "Mas ele é o Primeiro a seguir por este
Rumo, o Primeiro de todos". Com isso se pretende, idealmente, rastrear o mitema-Orfeu até seu fulcro original, seu ponto de concentração máxima, que se expande para todos os sub-relatos que o tenham como "nódulo central". O poeta mimetiza, aqui, a busca do personagem pela Origem deste mesmo Personagem [também com maiúsculas!], enquanto traça no Flautista apenas "um de seus desdobramentos possíveis, como subproduto de sua riqueza hermenêutica e, jamais, como espelho pleno e suficientemente confiável". As desventuras e aspirações do personagem narrado arrestam a própria narrativa, impregnado-a dessas características. Orfeu confisca, por fim, a intenção [o mais bem-intencionada que seja] de narrá-lo!

Este Orfeu, como o Cantor de Eurídice, está em plena conexão com o Luto. E essa perda, como no mito grego de Eurídice no Hades soa assim mesmo: Como a Sombra de Um Sonho que Se Fora. O Sonho também é Maiúsculo, mesmo quando apassivado pela partícula pronominal [que Se Fora]. O Tempo Verbal também é maiúsculo, porque se impõe como a Passagem que, de fato, Passou, sem termo ou tergiversação possível.

Prossigamos, agora, com três estrofes do poema, uma vez que estamos atingindo o seu clímax, ainda que, no caso, ele possa se dar em "nadir" ou "eclipse": dando-se tanto mais por anular-se. Nosso Orfeu é familiarizado com os poentes e amarelados, com as coisas que se quedaram, por maduras ou mortas. Ambos os casos. Paradoxais, como tanto mais no poema.

E essa singularíssima eloquência de
quem toca é quase monocórdia, porque 
embebida em pranto indiano e raga: este
som que volta sempre à mesma nota.


Vê-se que há um quê de acanhado nele,
cabisbaixo, Entretido com a Coisa Perdida,
algo tosco e ingênuo, por isso mesmo capaz
de mobilizar emocionalmente os outros, de
Comovê-los e atraí-los, como se atrai o fio
da ponta ao novelo.


Ele pode ser encantador, sobretudo aos mais
jovens [ele encanta como encantava Sócrates],
ou aos já maduros que não puderam fazer vingar
Seus Frutos, os que conhecem o Outono Somente
Como Promessa Que Não Se Cumpre. Orfeu atrai
os outonos de outrora, como atrai outonais e insones.



O que é a raga indiana? É todo um circunlóquio melódico, muitas vezes pungente, mas sempre circular, porque voltando à nota de origem. A eloquência de Orfeu, como seu Trágico Idealismo, tem a circularidade formal da raga indiana: é circular como sua própria inspiração e Aspiração. E isso, sem dúvida, é uma espécie bastante singular de eloquência.

E, sim, também, ele parece ingênuo, como há algo de aparentemente ingênuo na nota que, depois de voar em desdobramentos melódico-narrativos, insiste em pousar em si mesma. Então, este jeito órfico [um dos muitos jeitos órficos] de estar entretido [um jeito que procura se aproximar do "jeito primal", do fulcro mesmo do arquétipo], soa tacanho ou acanhado por parte de quem o vê de fora, antes e aquém de toda a inspiração e Aspiração que o formatam a partir de dentro. E, ainda assim, tosco e acanhado, ele consegue mobilizar os outros, pela força primal de seu impulso genuíno e o mais sincero, o impulso pela busca da Ponta do Novelo, o que também atrai os outros. Há muitos querendo encontrar O Mesmo, e que Embarcam no seu Canto. Isso é ser órfico e encantar, sobretudo os jovens [estes ainda são idealistas, e lembremos que o Flautista dublê de agiota atraiu para si crianças!], porque nos jovens Ideais e Tragédias ainda se conjuminam sem o alívio do embaçamento das rotinas fixas e fixas rotinas. E este Orfeu pode, assim, ser encantador [ou se manter assim para os jovens], como um dia o foi Sócrates para os não-conformados e ainda-não-formatados de seu tempo. Porque o tempo de Orfeu alcança os albores dos tempos gregos, como já foi insinuado em anterior estrofe. Mas Orfeu atrai também os inconformados mais velhos, os que não contabilizam nenhuma tarefa por dada ou já concluída, aqueles que não puderam fazer vingar Seus Frutos [com maiúscula!], porque todo fruto ficou aquém de suas aspirações e ideais mais legítimos e trágicos, porque ficaram todos os frutos atrás desses mesmos ideais trágicos e legítimos do próprio Orfeu, e que marcam o tônus de seu canto circular, essa espécie de Moto-Perpétuo a sobrescrever Toda História Humana.


Prossigamos, agora, com mais duas estrofes do poema.


Seu refinamento é triste, verde-cinza,
capaz de atrair os que têm Fome como Ele
e Sede, os Saudosos do Bem Ausente, os
Impacientes com a Mesmice, como hão de
ser todos os Puristas: os Órficos, Pitagóricos,
Platônicos, os Sérios, enfim, e somente Estes.


E Isso deve rechaçar a muitos, torná-lo um
Homem Fora De Lugar, ou menos que um Homem,
um Extemporâneo em qualquer Tempo que Se O
Deixe Pisar, que não seja Outono. Hão de achá-lo,
assim, de um Exotismo Amargurado, Inaugurado em
Mar Salgado e Condenado a Amar Sem Ser Amado.
Por isso choram, ganem ou apedrejam quando Ele
Passa Depressa em Suas Vidas Sem Graça.


O refinamento desse canto-em-choro e desse choro-em-canto é discreto e nada exuberante. Por força de todo o dito, também é outonal ou cinza-esverdeado, como os finais de domingo. É verde-cinza, mas capaz de atrair os que têm fome e sede de Bem e de Justiça, os trágicos mais trágicos e sempre. Desses que parecem em queda livre, impacientes com a Mesmice [e aqui temos a maiúscula não do valor, mas da Onipresença!], como são somente os sérios, e somente eles. Como o público a quem Jesus se dirigiu no Sermão do Monte. Apenas para eles. E esse canto, por sua cor sem brilho fácil ou de outra espécie mais visível, de fato deve rechaçar a muitos, como canto sem canto ou sem valor. Como canto mais-que-ordinário ou delírio. E isso faz de todo Orfeu, mesmo do aprendiz e mentor dos agiotas, o pequeno Flautista, um Extemporâneo, um sujeito fora de seu tempo e espaço, o Outsider mais legítimo e inquestionável, aquele para quem a maioria vira o rosto, pretendendo, com isso, imaginá-lo sem ninguém. Mas isso é incorrer em erro, duplo e ingênuo. Ele é irmão de todos os seus, em pleno Outono, ainda que seja esse só um canto pequeno das estações. Mas é um Canto. E, mais, segundo erro no avaliá-lo: ele sabe cantar o canto onde se senta e move. E quantos o sabem, mesmo que diversos? Tão poucos que até cogitam expulsá-lo dos povoados: Hamelin, Gerasa, um trecho qualquer da Faixa de Gaza ou Egito. Mas ele passa e vai como veio, sem deformar-se além de sua própria deformação originária: não pelo ciciar das pedras que lhe atiram ou o atinjam.

Não por isso.


Por isso, não.

E o poema encontra, aqui, seu arremate, mas não o encontra o Canto que ele [poema] canta com seu Personagem.

Alguns, às vezes, parecem encantados com o
Cantor dos Fados, às vezes desconfiados, outras
vezes ambos, porque lhes parece querer Ele con
-verter o Mundo à sua Dor Maior, aos Valores
para além da Oitava Esfera dos Planetas. Disso
é acusado no Verão, Inverno e Primavera.


"Quem é Ela: Sophia, Beatriz, Eurídice,
 e Onde Mora?!" É a pergunta que lhe fazem,
eis o que o acusam de dizer, sem provar o gosto.
Assim, Ele é o corruptor da Lira, como Sócrates,
com Perguntas, Corrompia. Resta-Lhe Ser Fiel a Si
Sem Nem Mesmo Conhecer tão bem Quem Canta,
sendo perseguido amado ou desprezado por Isso.
E acordar a Musa, distante ou morta, com seu
Acorde.


Não importa que a fertilize na Pureza
Mesma da Pergunta. Talvez, por Isso
Mesmo, devolvendo ao Mundo o que
Nunca Esteve Aqui.


Ele é Orfeu, Qualquer que
Seja o Nome que se Lhe
Dê.

Orfeu encanta na medida mesma [sejamos sinceros: em medida menor, em tom bemol] do que causa desconfiança. Afinal, falta tanto no que ele canta como as outras estações do ano. E em todo tempo se supõe que também ele possa ser um raptor, como o infeliz flautista. Quem é Esta que cantas, onde moram, onde residem os tais Valores que te mantêm parcamente vivo e entre nós, pelo menos antes de ires em paz para nossa Paz Maior, se necessário, até com teu sacrifício? Ousarás tanto como uns poucos que ficaram em nossos registros?


Orfeu pode ser seguido ou perseguido, amado ou odiado pelo mesmíssimo Canto. E sempre irão acusá-lo de algo. Dirão que não consegue acordar a musa que canta. Dirão que não consegue resuscitar sequer um morto. Talvez dizendo a ele que não cabe neste mundo e que melhor seria se retirar. Talvez lhe tirando a dignidade do nome, como se ele não tivesse um. E como se não fosse Orfeu.


Como preciso avançar para a especificidade de um "Orfeu Juvenil", para o caso específico de um menino embebido nessas sutis ambiências e questões, passo ao meu segundo poema sobre o assunto para, logo após, destrinchar ou deslindar o caso clínico em questão.


Orfeu infante 












Onde está Inês agora?


Morreu de meningite,
quando tinha dez e você
quatorze.


Não pôde enterrá-la como
devia, ou esquecê-la, não
soube pranteá-la e deixá
-la ir em paz ir embora,


e agora Inês é morta
e é sombra em sua
porta,


e não adianta repetir
quatro anos na escola
para encontrá-la no rosto
daquelas outras que não são
ela.


Escreva uma carta e se despeça,
do jeito que tem de ser, para que
Inês desapareça, e não respire
mais atrás de suas costas.











Marcelo Novaes
Postado em 20th November 2012 por Marcelo Novaes
Marcadores: A Franja Branca da Luz, A Perpetuação da Sombra à Porta do Remanescente, Da Respiração na Nuca, Inês é Morta, Meningite, O Corpo Insepulto na Memória


Os poemas não pretendem ser retratos factuais de nada havido. No poema, um menino perde a irmã com dez anos tendo, ele, quatorze. No caso clínico em pauta, ele a perdeu quando tinha doze anos e ela oito. Por quatro anos seguidos, ele repetiu o ano escolar, e nunca se associou o fato ao simples-e-complexo fato dele pretender permanecer ao lado de pessoas da idade dela, que o acompanhariam desde lá atrás, desde a morte mal pranteada, até onde ele pudesse seguir sem-e-com-ela, assim mesmo: de forma paradoxal. Ela morreu no hospital em poucos dias, sem que ele pudesse imaginá-la a caminho da morte. Ninguém podia. Diagnóstico tardio para o que parecia uma dor de cabeça comum. Sem lhe falar antes da morte, seu solilóquio íntimo parecia sem fim e contínuo, sempre ainda algo-por-dizer, para meninas e meninos que passaram a evocá-la como um emblema incrustado na memória, fadada a ser eterna.

O que se poderia pretender dizer àquela que está para partir? As sinceridades sempre adiadas. As singelas confissões de querer bem. Os pedidos de desculpas por brigas e dribles fraternos. As pendências que os diálogos de rotina fazem submergir à rotina, rotinizando e perpetuando as pendências.

O garoto precisava de um diálogo póstumo. Ele era cristão. Acreditava na oração. Beleza. Que ele ritualizasse a despedida na língua que lhe soasse significativa e confortável.

Uma carta de despedida e uma oração livre, na sua própria língua e religião, além do fato de ser misturado em grupos mistos, onde alguns meninos mais novos eram atrevidos e, os de sua idade, mais brandos e capazes de "cantos e aspirações". Meninos com ideais, mesmo que nostálgicos. Assim, com esse duplo viés de intervenção, ele pôde, a despeito do atraso inscrito na sua tira biográfica, ir se atualizando com os demais na idade cronológica, sem que a irmã precisasse, enquanto imagem nele, sempre-viva e suspirante, interromper-lhe o sono ou assombrá-lo, ou mesmo sombreá-lo ou ensombrecê-lo, por conta da palavra que não houve a tempo.

Para nenhum dos dois.


Mas agora...



Marcelo Novaes











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