\"An attempt to create an islam that the French can accept\": Um olhar pós-colonial sobre os fatores de raça, imigração e gênero nas políticas francesas de laïcité

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SOFIA SOTER HENRIQUES “An attempt to create an Islam that the French can accept”: Um olhar pós-colonial sobre os fatores de raça, imigração e gênero nas políticas públicas francesas de laïcité

ORIENTADOR: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

RIO DE JANEIRO 2014.1

SOFIA SOTER HENRIQUES “An attempt to create an Islam that the French can accept”: Um olhar pós-colonial sobre os fatores de raça, imigração e gênero nas políticas públicas francesas de laïcité Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Relações Internacionais.

ORIENTADOR: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama RIO DE JANEIRO 2014.1

"There is no such thing as a single-issue struggle, because we do not live single-issue lives." – Audre Lorde, Sister outsider

"I have been taught accommodation. My brother never thinks before he speaks. I have been taught to filter. (…) I want to say: we come from difference, Jonas, you have been taught to grow out, I have been taught to grow in. You learned from our father how to emit, how to produce, to roll each thought off your tongue with confidence, you used to lose your voice every other week from shouting [so much. I learned to absorb." – Lily Myers, "Shrinking women"

Resumo: A presente pesquisa pretendeu investigar o impacto em diferentes grupos das

políticas públicas francesas de laïcité que proibem o uso de certos elementos religiosos, tendo optado por focar nos homens sikhs e nas mulheres muçulmanas. A partir de um marco teórico pós-colonial, baseando-se principalmente nos trabalhos dos autores Achille Mbembe, Edward Said e Martha Nussbaum, analisa especificamente como os fatores de raça, gênero e imigração influenciam nesse impacto, em comparação com o francês branco, homem, culturalmente cristão e de origem europeia. No decorrer do trabalho, vê-se que as políticas públicas de laïcité, que supostamente garantiriam a universalidade e a igualdade dos direitos, acabam por excluir e prejudicar os grupos estudados, em favor do ideal do indivíduo francês. Palavras-chave: gênero; pós-colonialismo; laïcité; raça; imigração.

Abstract: The present research intended to investigate the impact, in different groups, of the

french public policies of laïcité that restrict the use of certain religious elements, opting to focus on sikh men and muslim women. Based on post-colonial theory, especially on the works of Achille Mbembe, Edward Said and Martha Nussbaum, it analyses specifically how factors of race, gender and immigration influence the impact of said policies, compared to the white, male, culturally christian and originally european frenchman. Throughout the work, it can be seen that the public policies of laïcité, which would allegedly guarantee the universality and equality of rights, end up excluding and harming the studied groups, in favor of the ideal french individual. Keywords: gender; post-colonialism; laïcité; race; immigration.

Sumário 1. Introdução........................................................................................................................... 6 2. Uma perspectiva pós-colonial: considerações teóricas......................................................11 3. Tomadores de decisão x sujeitos: da pesquisa.…..............................................................16 3.1. "Pourquoi je me donnerai un droit que je refuserais à un autre? Quelle étrange conception!": o self......................................................................16 3.2. “Ce que vous portez sur la tête me gêne”: as mulheres muçulmanas......................................................................................22 3.3. “A crown, an uniform and a symbol against oppression”: os homens sikh......................................................................................................29 4. Considerações finais...........................................................................................................34 5. Referências bibliográficas..................................................................................................39

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1. Introdução Em 2004, o então presidente francês Jacques Chirac aprovou a Lei 2004-228, que determina a proibição do uso de símbolos de ostentação religiosa em escolas públicas (FRANÇA, 2004). Alguns anos depois, foram passadas leis de mesmo efeito aplicadas a hospitais e ao serviço público em geral (Idem, 2007), bem como uma lei que proíbe que se cubra o rosto em espaços públicos (Idem, 2010). Essas decisões (exceto a referente a cobrir o rosto, que é atribuída a razões de segurança) são reflexos da preocupação francesa com a laïcité, i.e., o laicismo (ou secularismo francês), a separação total entre as esferas religiosas e governamentais, que é uma das bases fundamentais da política francesa (BALIBAR, 2004). São, também, consequência de debates acalorados e frequentes, trazidos à tona originalmente em incidente de 1989 (BREMS, 2006), sobre o direito de jovens estudantes muçulmanas usarem o véu (em suas variadas formas, do hijab ao niqab à burqa)1. A discussão sobre essas leis em geral gira em torno do véu muçulmano: discute-se a questão de gênero, a questão de imigração, o preconceito específico contra muçulmanos. Quanto ao gênero, temos, de um lado, argumentos de que o véu é um símbolo de opressão e, de outro, que a liberdade de usá-lo é um direito das mulheres (FRANKLIN, 2013; FREEDMAN, 2007; HOWARD, 2012); quanto à imigração, se destaca o fato de que a maior parte dos muçulmanos na França são de origem do Maghreb, e a política francesa é conhecida por sua xenofobia, particularmente durante o recente mandato do presidente Sarkozy (AHMED, 2013); o preconceito específico contra muçulmanos (a chamada “islamofobia”) é crescente desde os atentados de 11 de setembro de 2001. Mas as leis em si se referem, textualmente, a elementos religiosos que chamam atenção, sem especificar o elemento ou a religião, e poderiam ser aplicadas a símbolos cristãos, judaicos, islâmicos, sikh, ou de qualquer outra religião minoritária na França, desde que esses símbolos sejam considerados ostentativos. Considerando este ambiente tão complexo e seus elementos de gênero, raça, imigração, islamofobia e laïcité, coloca-se, então, a seguinte questão: na prática, como essas leis afetam ou limitam diferentes comunidades religiosas na França? 1

O hijab é o véu que cobre a cabeça, mas não o rosto; o niqab cobre todo o rosto, com a exceção dos olhos; o jilbab cobre todo o corpo e a cabeça, mas mantém o rosto aparente; a burqa cobre o corpo, a cabeça e o rosto, integralmente.

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Para chegar a uma resposta, é necessário levar em conta o contexto da discussão sobre o uso do véu (e as questões de gênero e raça que vêm atreladas) – que foi o estopim para que as leis fossem decretadas –, mas também o contexto das outras grandes comunidades religiosas francesas: os sikhs, em sua maioria de origem indiana, que têm seu direito ao uso do turbante restrito pelas leis (SINGH, 2005); os judeus, muitas vezes ortodoxos e, portanto, portadores de símbolos religiosos supostamente ostentativos, também muitas vezes vindos do norte da África, e, portanto, vítimas da xenofobia, e vítimas também de um crescente antissemitismo de direita (ANTISÉMITISME, 2012); e os cristãos (católicos e protestantes), maioria no país, em sua maioria não imigrantes, aparentemente menos segregados e portadores de privilégio no que diz respeito à liberdade religiosa. Com a intenção de restringir o escopo da pesquisa, a pergunta será aplicada aos sikhs e muçulmanos, utilizando a maioria cristã como grupo de controle. Esta decisão foi tomada baseada nos pontos de semelhança e diferença entre os dois grupos, que tornam a comparação interessante: sikhs e muçulmanos são ambos grupos que portam símbolos religiosos visíveis (os turbantes, no caso dos homens sikhs, e o véu, no caso das mulheres muçulmanas), e ambos grupos de maioria imigrante (os sikhs de origem indiana, e os muçulmanos frequentemente oriundos do Maghreb); no entanto, os homens sikhs são os que portam o símbolo ostentativo, enquanto são as mulheres muçulmanas que o portam, o que cria um ponto de tensão que destaca a questão do gênero. Desta forma, são considerados os elementos de raça, gênero e imigração, focando em uma comparação mais simples e viável. A religião sikh e a muçulmana são monoteístas. Mas a religião sikh é, também, fundamentada em princípios de igualdade, e nas filosofias do karma e da reencarnação – enquanto a muçulmana tem uma concepção de céu e inferno no pós-vida –, se opondo ao sistema de castas e à adoração de ídolos, e percebendo a religião como uma forma de servir a humanidade e trazer tolerância perante todos. Devido a essas crenças, é fundamental para o sikh a igualdade entre homens e mulheres, e o uso obrigatório do véu por mulheres é uma prática por eles condenada. Isto se difere muito da religião muçulmana, que apresenta uma complexa relação de tensão entre homens e mulheres, mais ou menos desigual dependendo da corrente religiosa e da interpretação, que tende a colocar a mulher em posição de subjugação e diferença. Informado pelo pós-colonialismo, este trabalho se propõe analisar o impacto

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diferenciado das leis francesas de proibição de uso de símbolos religiosos em certas esferas públicas em dois grupos principais: os sikhs – homens, em maioria indianos, portadores de turbante – e as muçulmanas – mulheres, principalmente maghrebinas, portadoras do véu. A discussão sobre o uso do véu, conhecida na França como o affair du foulard, é pertinente na atualidade e um tópico de embate acalorado na Europa e no mundo. Esta investigação, entretanto, traz uma nova dimensão ao tema, incluindo a questão dos sikhs, comparando o efeito do arcabouço de regras nos dois grupos. Desta forma, o trabalho põe em questão a preocupação com o gênero, já que os sikhs portadores de turbante são homens, em contraponto com as mulheres muçulmanas que portam véu, e também com o tratamento de imigrantes no país, já que ambos os grupos são maioritariamente compostos por imigrantes. Discute, também, através do caso da França, o embate colocado pelo póscolonialismo entre Ocidente e Oriente, entre o self e o outro, e como essa disputa se coloca na prática no âmbito estudado. É pertinente, portanto, em uma discussão atual das Relações Internacionais, trazendo questionamentos relativos à centralidade do self branco, europeu, cristão e homem na formulação e determinação de políticas, e colocando em foco o outro e sua posição no sistema, em uma contestação das teorias tradicionais da disciplina (SETH, 2012). Esta procura por uma nova forma de fazer Relações Internacionais, retrabalhando seus elementos fundamentais para que sejam mais inclusivos e críticos, está presente em trabalhos de autores como Sankaran Khrishna, Homi K. Bhabha, Edward Said e Sanjay Seth. Buscando compreender como as leis de proibição de uso de símbolos religiosos na esfera pública afetam de formas diferentes grupos diferentes da sociedade francesa, parto dos seguintes argumentos centrais a serem ilustrados no âmbito da monografia: A França justifica suas políticas de laicité com um discurso de salvação, criando um estereótipo do outro oprimido que precisa ser ajudado e “iluminado” pela organização social ocidental (BHABHA apud KRISHNA, 2009). Entretanto, essas políticas podem ser percebidas como uma forma de assimilar/excluir esse outro (BLANEY; INAYATULLAH, 2004), forçando-o a se ocidentalizar, esconder os elementos que caracterizam sua representação como “outro”, ou afastar-se da esfera social caso se negue a fazê-lo (o outro que se recusa a aceitar a assimilação forçada passa a ter direitos básicos, como a educação,

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negados). Além disso, o Estado, supostamente guiado pela laicité, apresenta ainda traços de um Estado cristão (feriados cristãos como Natal, Dia de todos os santos, Pentecostes, e Páscoa são feriados nacionais, por exemplo), o que ilustra o caráter tendencioso dessas políticas. As leis afetam, portanto, grupos diferentes de formas diferentes: afetam menos os cristãos, que compõem a maioria da população (e que, em geral, não são imigrantes), e afetam mais os sikhs e as muçulmanas. Isso se dá por conta de um viés racial – considerando, claro, raça como uma construção social e discursiva, não como um fato biológico (PAINTER, 2010) –, que discrimina os imigrantes indianos (sikhs) e magrebinos (muçulmanos), e que se relaciona à crescente xenofobia presente na política e na sociedade francesas; e também por um viés de gênero, que discrimina especialmente as mulheres muçulmanas, através da utilização de argumentos de salvação da mulher oprimida (FREEDMAN, 2007). Considera-se, ainda, no que diz respeito ao gênero, uma questão de resistência: a possibilidade de que a masculinidade seja mais resistente à exclusão do que a feminilidade, e portanto a possível exclusão dos homens sikhs seria diferente da das mulheres muçulmanas. Com a intenção de ilustrar esses argumentos, a pesquisa será feita nas seguintes etapas: Em primeiro lugar, na seção 3.1, serão identificadas as políticas públicas de laïcité a serem consideradas. Tal identificação será feita através da pesquisa no banco de dados de legislação francesa do site Legifrance (PARIS, 2013). Em seguida, será feita uma análise de discurso dos “textos” mobilizados pelos tomadores de decisão, ou seja, dos pronunciamentos oficiais relativos às leis, de forma a compreender as justificativas dadas para essas escolhas e identificar a produção e reprodução de significados. Com essas duas etapas, é estabelecido o lado do governo francês, dos tomadores de decisão. A etapa seguinte, na seções 3.2 e 3.3., é de compreender o lado dos afetados pelas leis. Devido à dificuldade do trabalho de campo neste caso, essas narrativas serão coletadas através de blogs ou ensaios pessoais publicados na internet por franceses sikhs e muçulmanos. A opção por esta forma de pesquisa se deu por conta de uma preocupação em respeitar a narrativa dos sujeitos da pesquisa, dos grupos marginalizados, levando em consideração sua percepção da situação, ao invés de tentar compreender o contexto através

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de narrativas construídas pelo grupo opressor (como seriam os textos da mídia tradicional, em sua maioria). O acesso a essas fontes é facilitado por plataformas sociais e de produção de narrativa como o Tumblr e o Livejournal, bem como blogs mais tradicionais afiliados a sites mais institucionais (como, por exemplo, o site Sikhs de France), e uma pesquisa prévia indicou considerável volume de textos em blogs que tratem da questão de ser imigrante e religioso na França. Após a leitura desses blogs, será feita a análise do material, através da identificação da presença e da recorrência de certos elementos que são tratados pelos autores do póscolonialismo (autores esses que informam esta pesquisa): a exclusão dos espaços, a assimilação forçada, o medo sentido pelo opressor frente ao “outro”, a subjugação à dominação patriarcal, a relação com os estereótipos e as tentativas de “modernização” por parte do opressor. Supõe-se que estes elementos atravessarão as falas dos sujeitos, já que estão na base da questão trabalhada. A partir daí, ao longo do capítulo 3 e mais claramente no capítulo 4, os dois grupos (sikhs e muçulmanas) serão comparados no que diz respeito a essas considerações levantadas por eles próprios, e serão então comparados ao suposto tratamento do indivíduo francês privilegiado (no caso, cristão, branco, não-imigrante), comparação esta que será trazida de certa forma pelos próprios sujeitos sikhs e muçulmanos. Desta forma, a disparidade de tratamento desses grupos diferentes e a discriminação de imigrantes, nãobrancos e mulheres serão ilustradas.

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2. Uma perspectiva pós-colonial: considerações teóricas A análise dos impactos práticos das leis de proibição de uso de símbolos de ostentação religiosa na França será feita através da ótica do Pós-colonialismo, principalmente com base nos trabalhos de Edward Said (2012), Achille Mbembe (2013), Martha Nussbaum (2012), Naeem Inayatullah e David Blaney (2004), considerando a teoria pós-colonial como uma teoria de questionamento dos discursos, estruturas de poder e hierarquias sociais do colonialismo e do imperialismo (GILBERT; TOMPKINS, 1996). O elemento essencial do pós-colonialismo utilizado nesta análise é a construção do “outro” em oposição ao self, construção esta que segrega o outro, excluindo-o do espaço dominado pelo self. Este processo se dá em duas esferas: temporal (tradição versus modernidade) e espacial (dentro versus fora) (BLANEY; INAYATULLAH, 2004, p. 10). A respeito da esfera temporal, temos um self colonizador/dominante europeu como representante da modernidade, que percebe o “outro” como tradicional, pré-moderno, quase bárbaro, preso a constrangimentos sociais de uma época passada. O self toma para si, portanto, autoridade para “modernizar” o outro, transformar seus aspectos supostamente antiquados – seus aspectos diferentes – para adequá-los aos preceitos da sociedade supostamente moderna (ocidental, europeia, dominante) (BLANEY; INAYATULLAH, 2004; SAID, 2012). Na esfera espacial, temos o self fechando suas fronteiras para, simultaneamente, manter o outro externo distante e conter e controlar o outro interno. Este controle se dá a partir de um “duplo movimento”: uma primeira etapa de separação total do self e do outro, enfatizando a diferença e colocando o outro como inferior e subjugado; e uma segunda etapa de erradicação ou assimilação do outro. A erradicação é radical e violenta, feita através do uso da força (guerra, genocídios etc.), enquanto a assimilação é sociopolítica, moldando o outro à imagem do self (BLANEY; INAYATULLAH, 2004, p. 114). A assimilação só é possível devido à autoridade autolegitimada do self para modernizar e ensinar o outro a partir de sua própria visão de mundo (SAID, 2012), e esta autoridade é justificada devido à percepção do outro como superfície, não conteúdo, como um objeto ameaçador e preocupante devido às suas diferenças observadas (MBEMBE, 2013, p. 24). Nesta concepção espacial, o interno é visto como ordem, direito e justiça, e o externo é visto

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como o caos, um campo livre de não-direito; o que ultrapassa as fronteiras do espaço privilegiado do self é a sombra, e o que se contém nas fronteiras é a luz (Ibid.). A construção assimétrica do outro a partir do self é dada por Said (2012) como a construção do Oriente a partir do Ocidente. Estes Ocidente e Oriente não são literais e geograficamente divididos, mas sim representantes ideológicos do self dominante (o Ocidente) e do outro dominado (Oriente), aos quais se atribui (isto é, aos quais o Ocidente atribui) características e papéis sociais. As características específicas, os estereótipos, variam de acordo com o momento histórico, de acordo com os valores considerados positivos (sempre atribuídos ao Ocidente) e os valores considerados negativos ou, pelo menos, excêntricos (sempre atribuídos à imagem exótica do Oriente). Alguns elementos, entretanto, se mantêm constantes, pois são também componentes da dominação e do privilégio exercidos pelo Ocidente: o Ocidente é branco e cristão, enquanto o Oriente é nãobranco e não-cristão – o específico não importa, já que o Oriente é definido pela diferença, por ser não-ocidental, portanto basta ser não-branco e não-cristão (SAID, 2012). O Outro é frequentemente representado como um animal, descontrolado e pronto para ser domado, e como uma criança, inocente, ignorante e disposta a aprender; ambas as representações desumanizam o Outro, colocam-no em uma esfera inferior (MBEMBE, 2013). Esta construção é típica do pensamento europeu, que percebe a identidade não como pertencimento mútuo a um mesmo mundo, mas como relações entre semelhantes, espelhos, codificando o outro baseado em sua diferença, seu não-pertencimento (Ibid., p. 11), e que tende a ver o universal somente a partir de suas particularidades (CÉSAIRE apud MBEMBE, 2013, p. 228). É importante destacar que o self (em suas condições de ocidental, branco, cristão) é também uma ficção, uma identidade construída em tensão à do Outro, “une fantaisie de l'imagination européenne que l'Occident s'est efforcé de naturaliser et d'universaliser” (MBEMBE, 2013, p. 73); esta identidade é colocada em uma posição de super-humano, de poder e de alvo de desejo, como se o Outro devesse almejar cruzar o limite e ser o mais próximo possível do self. Esta tensão é traduzida pelo olhar: o olhar colonial ambíguo de desejo, posse, violação, medo, e, principalmente, de negação do que se vê. Ao se recusar a ver o Outro pelo que ele é, o self se permite criar uma identidade para ocupar aquele espaço que percebe como vazio, se permite falar por aquele que percebe como mudo, ou como

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indecifrável, se permite tomar posse do Outro que vê como inumano; o Outro só existe como visto pelo self, e só fala como interpretado como self (Ibid., p. 165). Da mesma forma como o self e o Outro são construídos, também é deliberadamente construída a identidade nacional, a narrativa do que constitui um cidadão. Esta narrativa pode ser transformada de forma a ser mais ou menos inclusiva, e o caráter excludente das identidades nacionais europeias (como a francesa), que have understood the root of nationhood to lie first and foremost in characteristics that are difficult if not impossible for new immigrants to share (…) [:] blood, soil, ethnolinguistic peoplehood, and religion (…) (NUSSBAUM, 2012, p. 13).

Esse elemento é fundamental para compreender a relação de identidades nacionais europeias com o Outro (especialmente o de origem imigrante). A percepção esterotípica do Oriente é resultado de um encontro conflituoso entre Oriente e Ocidente, encontro esse informado por um aspecto de ambivalência, de um Ocidente que quer afirmar sua dominação, mas também busca legitimar essa dominação nos olhos do outro oriental. A representação do Oriente feita pelo Ocidente (e também a representação do próprio Ocidente imposta ao Oriente) é uma política em performance, uma atuação do dominante de forma a apresentar uma identidade que ele próprio atribui ao dominado (BHABHA apud KRISHNA, 2009). Esta organização do outro em categorias uniformes baseadas em estereótipos é a “unité de base d'une histoire mue (…) par des forces qui n'apparaissent que por annihiler d'autres forces, dans une lutte à mort dont le résultat ne peut être que la liberté ou la servitude” (MBEMBE, 2013, p. 34), classificando os grupos e marcando suas diferenças com rótulos de rápida identificação, de forma a delimitar espaços e posições que podem por eles ser ocupados (Ibid., p. 62). O Outro “n'existe cependant pas em tant que tel, il est constamment produit” (Ibid., p. 35), produto de uma sujeição e de uma dominação que coloca em conflito o julgamento de identidade colocado pelo Ocidente e a declaração de identidade colocada pelo Oriente (Ibid., p. 52); é, portanto, permanentemente aprisionado em sua condição social, despido de sua real essência. Este sistema de dominação e privilégio também está ligado ao sistema de dominação patriarcal, que constrói a dicotomia masculino/feminino como a diferença política entre

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liberdade e submissão (PATEMAN, 1988, p. 207). Há uma associação persistente entre o Oriente e o sexo, uma crítica aos valores familiares, sexuais e de gênero que ofendem a moral cristã, seja por serem excessivamente liberais (exemplo frequentemente mencionado é a poligamia) ou por serem excessivamente restritos (nesse caso, o uso do véu). Said deixa clara esta correlação patriarcal com tons sexuais ao dizer que, para o Ocidente, o Oriente é “resistente, como seria qualquer virgem, mas o erudito macho ganha o seu prêmio ao abrir caminho à força (…). A harmonia é o resultado da vitória sobre o recato virginal; não é em absoluto a coexistência de iguais” (SAID, 2012, p. 412), e Mbembe faz questão de apontar a representação extremamente sexualizada e fetichizada das mulheres “Outras” (no caso de seu trabalho, das negras africanas) (MBEMBE, 2013, p. 106). A visão sexual deste Outro se relaciona à sua visão inumana e animal; ao identificar o Outro como somente um corpo, um membro, ele é reduzido a seu instinto, ao seu caráter primal, despido das roupagens e das convenções que o tornariam, por assim dizer, civilizado (Ibid., p. 167). A relação de dominação self x Outro, Ocidente x Oriente, é baseada, segundo Nussbaum (2012), em medo. Este medo é, entretanto, manipulado, pois depende da percepção de perigo, e essa percepção pode ser bastante distante da realidade, atribuída a um inimigo simbólico (NUSSBAUM, 2012, p. 23). Este inimigo simbólico é construído com base num “projective disgust”, um medo do caráter animal comumente atribuído ao Outro (Ibid., p. 36), medo esse que é exacerbado pelo pavor do desconhecido, especialmente do desconhecido fisicamente coberto e visto como dissimulado (Ibid., p. 37), característica aplicada ao caso das mulheres que usam véu e dos homens que usam turbante. De acordo com Nussbaum, a forma correta de reagir a este medo, entretanto, é não ceder à tentação de discriminar com base nele, mas sim utilizar empatia e princípios morais básicos de igualdade de direitos, dignidade e consciência (Ibid., p. 59) para permitir a convivência indiscriminada de grupos diferentes, especialmente no que diz respeito à divisão por comunidades religiosas. Há, portanto, aspectos raciais, religiosos e sexuados/de gênero nesta construção do outro submisso à dominação do self colonizador privilegiado. É um sistema hierárquico que subjuga o não-ocidental, não-cristão, não-branco, não-homem. A isso se atrela um medo ocidental do mundo muçulmano, uma crença de que o Islã incorpora tudo aquilo que é desprezível nessa imagem inventada do Oriente, de que o Islã temporalmente moderno se

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recusa a ativamente se modernizar, repetindo padrões do Islã antigo, de que o Islã perpetua e valida os valores dos quais o Oriente deveria se desvencilhar (SAID, 2012, p. 318). Partindo deste marco teórico pós-colonial, a literatura que trata da questão do véu na França tende a observar nas tentativas de legislar a utilização de símbolos religiosos um claro padrão discriminatório e de tentativa de assimilação do outro pelo self dominante. Considera-se, por exemplo, que um dos argumentos pró-proibição é o de que as mulheres muçulmanas são oprimidas e, portanto, devem ser ensinadas a se “libertar” como as mulheres ocidentais, e que tal argumento é só mais uma iteração do discurso dicotômico modernidade-antiguidade, ocidente-oriente, sendo, em si mesmo, uma tentativa de assimilação e uma perpetuação de estereótipos do islã (FREEDMAN, 2007; HOWARD, 2012). Identifica-se também a relevância do véu como componente do imaginário ocidental exótico e fetichizado sobre o Oriente, o que o torna um foco de interesse e discussão, exatamente pelo desconforto que causa por estar neste papel (FRANKLIN, 2013). Incluindo na discussão o conceito de laïcité, há uma percepção de que este ideal é utilizado como parte do discurso de dominação de forma a mascarar os problemas centrais de discriminação racial, religiosa e de gênero (FREEDMAN, 2004). O marco teórico pós-colonial é, então, apropriado para compreender e analisar a questão estudada, através de suas concepções sobre a dicotomia self/outro, particularmente no âmbito Ocidente/Oriente como determinado por Said (2012), e sobre as formas de relação entre esses dois polos, como identificadas por Said (2012) e Blaney e Inayatullah (2004). Para permitir que a discussão abarque todas suas complexidades, é fundamental também a compreensão da ideia de sociedade patriarcal, como definida por Pateman (1988), para levar em consideração a dimensão de gênero envolvida.

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3. Tomadores de decisão X Sujeitos: da pesquisa Articula-se agora a teoria elaborada anteriormente ao caso estudado, como dito na introdução. Em primeiro lugar, serão analisadas as leis de laïcité francesa, e, em seguida, os relatos compilados através de pesquisas em blogs, para ilustrar o processo discriminatório. 3.1

“Pourquoi je me donnerai un droit que je refuserais à un autre? Quelle étrange conception!”2: o self

As leis e documentos com a intenção de fazer cumprir a laïcité são muitos e variados, mesmo se restringirmos ao escopo dos que trabalham com o uso de símbolos religiosos em espaços públicos. Cronologicamente, começamos a discussão com a Loi n. 2004-228 du 15 mars 2004 (FRANÇA, 2004a), cujo artigo único criou o Article L141-5-1 do Code de l'Éducation, que determina que: “Dans les écoles, les collèges et les lycées publics, le port de signes ou tenues par lesquels les élèves manifestent ostensiblement une appartenance religieuse est interdit” (Idem, 2004b). Em 18 de maio de 2004, foi emitida uma circular relativa à aplicação da Loi n. 2004-228 (Idem, 2004c), que apresenta as justificativas para as decisões de lei e detalha as condições de aplicação. A justificativa principal é o respeito pela laïcité, “principe, fruit d'une longue histoire, [qui] repose sur le respect de la liberté de conscience et sur l'affirmation de valeurs communes qui fondent l'unité nationale par-delà les apaprtenances particulières” (Ibid.). A circular segue explicando que o dever da escola e do Estado é de fazer respeitar a liberdade individual dos cidadãos, e toca diretamente no ponto sobre discriminação por raça e gênero, determinando que deve existir cuidado e discernimento na aplicação da lei para que não sejam reforçados estereótipos.3 Entretanto, a aplicação é subjetiva, e feita pela 2

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Trecho no mínimo irônico do discurso do ministro Vicent Peillon na ocasião da apresentação da Charte de la Laïcité à l'école (CHARTE, 2013). “Parce qu'elle repose sur le respect des personnes et de leurs convictions, la laïcité ne se conçoit pas sans une lutte déterminée contre toutes les formes de discrimination. Les agents du service public de l'éducation nationale doivent faire preuve de la plus grande vigilance et de la plus grande fermeté à l'égard de toutes les formes de racisme ou de sexisme, de toutes les formes de violence faite à un individu en raison de son appartenance réelle ou supposée à un groupe ethnique ou religieux. Tout propos, tout comportement qui réduit l'autre à une appartenance religieuse ou ethnique, à une nationalité (actuelle ou d'origine), à une apparence physique, appelle une réponse. Selon les cas, cette réponse relève de l'action pédagogique, disciplinaire, voire pénale. Elle doit être ferme et résolue dans tous les cas où un élève ou un autre membre de la communauté éducative est victime d'une agression (qu'elle soit physique ou verbale) en raison de son appartenance réelle ou supposée à un groupe donné.” (FRANÇA, 2004c).

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própria escola, o que torna a verificação desta discriminação difícil, já que a lei é vaga no que determina um símbolo de ostentação, e não há um protocolo claro de aplicação. Além disso, nota-se uma clara opção pelo respeito da liberdade individual através da homogeneização dos alunos, determinando que o uso de um símbolo religioso iria contra a liberdade alheia e seria um signo de diferença e desigualdade, ao invés de aplicar este respeito através da real liberdade de manifestação de sua cultura e religião em âmbitos públicos. Destaca-se, também, que todos os funcionários do ensino público, independente de sua função, “sont sumis à un strict devoir de neutralité” (Ibid.) que os impede de usar qualquer símbolo religioso, ostentativo ou não, e de manifestar, por qualquer atitude, qualquer preferência ou adesão religiosa. A circular explicita também que os alunos não possuem o direito de optar por não participar de determinadas atividades escolares por função de sua religião (por exemplo: não podem deixar de participar de natação numa aula de educação física, mesmo que sua religião tenha práticas que envolvem ter seu corpo coberto), mas dá a eles a liberdade de faltar aula em dias de grandes festas religiosas – datas, estas, publicamente anunciadas todos os anos em boletim oficial –, mediante permissão da instituição de ensino. Entretanto, certos feriados cristãos são feriados escolares nacionais, portanto os alunos cristãos são já obrigatoriamente liberados das atividades escolares nos dias de suas grandes festas, o que demonstra a normalização dos cristãos como o self europeu, e dos não-cristãos como o outro. Com a intenção de proteger o aluno, a lei prevê que a primeira medida seja o diálogo com aquele que desobedeceu às regras, antes de qualquer medida disciplinar; entretanto, uma cláusula permite que uma medida disciplinar seja tomada sem diálogo caso o responsável pela instituição não veja o diálogo como possível, o que também abre espaço para abusos da lei por parte das escolas. Quase dez anos depois, em 9 de setembro de 2013, reforçando a questão escolar da laïcité, foi apresentada a Charte de la Laïcité à l'École (Cartilha da laïcité na escola) pelo ministro francês da educação Vincent Peillon, do partido socialista 4 (FRANÇA, 2013). Esta cartilha não tem valor normativo por si só, mas simplifica de forma informativa textos legislativos para que os princípios fiquem claros tanto para alunos quanto para educadores, 4

É interessante observar que a lei original surgiu no governo de Chirac, presidente de direita (da coalizão RPR-UDF), mas que a Charte de la Laïcité foi aplicada no governo de François Hollande, presidente de esquerda, do Parti Socialiste.

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um desses princípios (o explicitado no item 14, dos 15 incluídos) sendo a proibição do uso de símbolos religiosos. Mais do que a cartilha por si só (que não traz muita novidade), nos interessa a sua versão comentada, disponível no portal Éduscol (ÉDUSCOL, 2013), que traz explicações e justificativas de cada um de seus princípios. Estas justificativas estabelecem frequentemente uma correlação direta entre laïcité, cidadania e liberdade, considerando que a expressão de sua crença religiosa é intrusiva na liberdade alheia: La laïcité est un principe de conciliation et d'harmonie sociale: elle offre à chaque citoyen le maximum d'expression de sa propre liberté de conscience qui soit compatible avec la même liberté pour tous les autres membres de la société. La liberté des uns s'arrête là où commencent la liberté et le respect des autres. Ainsi, la laïcité “permet l'exercice de la citoyenneté” pour deux raisons: elle donne à chaque citoyen la garantie de la plus grande liberté possible; elle demande à chaque citoyen de respecter la diginté d'autrui et “l'intérêt général”, et elle lui permet donc d'avoir avec les autres une relation de “fraternité”. La laïcité est au bénéfice de tous parce qu'elle fixe à l'expression des convictions de chacun la limite du respect de celles d'autrui et de l'ordre public (ÉDUSCOL, 2013).

Este trecho da justificativa do artigo 4 (“La laïcité permet l'exercice de la citoyenneté, em conciliant la liberté de chacun avec l'égalité et la fraternité de tous dans le souci de l'intérêt géneral”) mostra que os tomadores de decisão consideram que não expressar sua crença religiosa é um sinal de respeito à liberdade alheia, como se o simples manifestar de suas crenças fosse ofensivo e perturbador, mesmo que tal manifestar fosse feito sem nenhuma tentativa de ofensa ou conversão. É questionável o quanto essa “plus grande liberté possible” de fato é a maior liberdade possível, e o quanto a noção de igualdade e fraternidade presente na justificativa é aplicável ao caso real, já que as leis de laïcité são vagas o suficiente para permitir aplicação variável, e já que – como mencionado anteriormente no caso dos feriados, por exemplo – há uma variação em intensidade de restrição de liberdade no que diz respeito aos cristãos e não-cristãos. Além disso, a noção de “intérêt général” também é equivocada, pois estabelece um interesse geral “oficial”, não necessariamente condizente com os interesses dos diferentes grupos da sociedade. O que se pode constatar da análise desta justificativa – e de outros trechos, como “l'école est laïque parce qu'elle éduque et instruit sans endoctriner (…). Elle est une école de la liberté. (…) forme des femmes et des hommes (…) hors des préjugés communs (…)” (ÉDUSCOL, 2013), “la laïcité de l'école garantit que cette 'culture commune et partagée' laisse l'élève entièrement libre de ses convictions (…)” (Ibid.) e “la culture scolaire laïque

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est une culture donnée et reçue librement” (Ibid.) – é que o governo francês vê como a cultura “padrão”, aquela que deve ser compartilhada pelos alunos de forma supostamente livre e sem interferência de ideologias ou proselitismo, que se considera “comum” a todos, uma cultura que exclui, uma cultura que apaga o outro ao homogeneizar o grupo, uma cultura que silencia o outro para não “ofender” o self, como se a alteridade fosse intrinsecamente incômoda aos olhos do grupo dominador. O espaço público, o espaço comum, no qual essas leis são supostamente aplicáveis, é constituído por uma percepção distorcida de público e comum, pois é comum a poucos, não a todos, é supostamente público mas oferece restrições, exige que só circulem nele aqueles que o grupo dominante deseja ver, tolera assimilar, se permite enxergar. Este mesmo ponto de vista pode ser percebido no discurso do ministro Vincent Peillon na ocasião da apresentação da Charte de la Laïcité, quando ele declara, sobre a questão da laïcité: “(...) je considère un combat. Un combat non pas pour opposer les uns et les autres, mais un combat contre ceux qui veulent opposer les uns et les autres. Un combat non pas contre certains, mais pour tous” (CHARTE, 2013). Ao declarar, primeiro, que vê a busca pela laïcité como um combate, como uma guerra, traz um elemento retórico violento e opressor – que retoma mais a frente em seu discurso, dizendo que “[la laïcité] n'est pas d'abord une affaire de police, ça n'est pas d'abord une affair d'interdit, c'est une affaire d'éducation (...)” (Ibid.), dando a entender, com a ênfase, percebida na gravação de sua fala, ao “d'abord”, “primeiro”, “em princípio”, que, apesar de ser uma questão de educação, a polícia e a proibição são medidas aplicáveis –; e ao declarar, em seguida, que não quer segregar, mas sim trabalhar em nome de todos, acaba mostrando seu interesse na homogeneização e na assimilação, pois a não-oposição do self e do outro nessas políticas se dá pela recusa a enxergar o outro pelo que é e a respeitar sua alteridade. Neste discurso, Peillon declara também que “tous les élèves sont éducables, personne ne doit être laissé sur le coté” (Ibid.), o que é no mínimo curioso considerando que as leis que proíbem o uso dos símbolos religiosos dão margem exatamente ao contrário: a que certos alunos sejam deixados de lado. E o fazem, de certa forma, com o argumento de que aqueles alunos não são educáveis, pois não respeitam as regras da cidadania, pois não se adequam ao modelo europeu desejado. A mesma aparente contradição, que leva à conclusão da tendência à assimilação, é repetida em outros momentos de seu discurso, como quando,

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ao justificar a presença obrigatória das bandeiras francesa e europeia nas escolas (o que já poderia trazer mais uma discussão interessante em relação à substituição da crença religiosa pela crença nacional, mas que não é ao que esse trabalho se propõe), fala que a França “c'est pas la nation fermée sur elle même, c'est pas la nation qui exclu, c'est la nation qui reuni” (Ibid.), acrescentando que “nous [la France] sommes un droit, (…) nous sommes une idée, nous sommes un idéal, nous sommes pour chacun une exigence (...)” (Ibid.). Este ideal, essa exigência, este conceito de igualdade e reunião tenta se construir por caminhos tortos, por assimilação, como se o silenciamento e o apagamento da diferença fossem muito diferentes da exclusão à qual aparentemente é avessa (e digo “aparentemente” pois, como se sabe, a exclusão ocorre). O recorrente discurso de que “somos todos iguais” é, em si mesmo, excludente, pois funciona em uma lógica perversa que ou iguala os diferentes ou se recusa a vê-los, e só é real na fantasia de nacionalidade, do self, criada pela própria nação. Ainda no âmbito escolar, fugindo por um momento da questão do uso das vestimentas religiosas, mas com a intenção de contextualizar melhor a ilustração do ponto, vamos às determinações quanto às cantinas. Os princípios da laïcité são interpretados pela lei de tal forma que as cantinas escolares não têm nenhuma obrigação de servir refeições que se adequem às necessidades religiosas dos alunos, e que os alunos não têm o direito de demandar tais refeições; além disso, no caso de cantinas que optam por servir refeições “especiais”, estas podem ser mais caras do que as refeições “normais”, e, em estabelecimentos escolares que não permitem que alunos levem almoço de casa, não há possibilidade de permissão especial para aqueles que têm restrições alimentares por razões religiosas. A justificativa é que “des demandes particulières, fondées sur des motifs religieux, ne peuvent donc justifier une adaptation du service public” (FRANÇA, 2011). Apesar de não tratar do uso de símbolos religiosos, esta determinação é demonstrativa da tentativa de uniformização dos alunos a partir de um modelo que se adequa aos ideais franceses de cultura. Determinações semelhantes se aplicam a penitenciárias e hospitais, dando aos espaços a liberdade de servir ou não alimentos apropriados aos regimes religiosos, e de oferecer estes alimentos por um preço (em oposição às refeições gratuitas oferecidas aos que não têm restrições alimentares). Seguindo no que diz respeito aos hospitais: a Circulaire N.DHOS/G/2005/57 du 2 février 2005 relative à la laïcité dans les établissements de santé declara que “les patients se

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voient garantir la libre pratique de leur culte et la manifestation de leurs convictions religieuses” (Idem, 2005, p. 2), com exceção ao que diz respeito à vestimenta, pois “le malade doit accepter la tenue vestimentaire imposée compte tenu des soins qui lui sont donnés” (Ibid., p. 3). Podemos considerar que, nesse caso, se trata de uma medida de higiene e saúde, aplicável de fato a todos independente de questões religiosas, mas é sempre válido contextualizar da forma mais completa possível a situação, portanto é ainda relevante mencionar tal circular. O documento também indica que a proibição do uso dos símbolos religiosos é aplicável às pessoas que trabalham no hospital, mas que estes também são protegidos de discriminação por parte dos pacientes (nenhum paciente pode recusar ser tratado por um atendente específico por razões de sua religião). Vamos, por fim, à Loi n. 2010-1192 du 11 octobre 2010 interdisant la dissimulation du visage dans l'espace public, lei controversa e amplamente discutida, que, por razões supostamente de segurança, proíbe vestimentas que cubram o rosto – mais notadamente, a burca (Idem, 2010). Esta lei determina, no Article 1, que “nul ne peut, dans l'espace public, porter une tenue destinée à dissimuler son visage”, mas, no Article 2, apresenta uma lista de exceções: (...) si la tenue est prescrite ou autorisée par des dispositions legislatives ou réglementaires, si elle est justifiée par des raisons de santé ou des motifs professionals, ou si elle s'inscrit dans le cadre de pratiques sportives, de fêtes ou de manifestations artistiques ou traditionelles (Ibid.).

Fica claro, portanto, que há uma intenção bem clara com a lei, e esta intenção é proibir a burca. Martha Nussbaum (2013) chega à mesma conclusão: “one's first reaction to this capacious list is that the law has tried to include every possible occasion for covering the face – except the burqa” (NUSSBAUM, 2013, p. 134), e aponta ainda que o argumento utilizado pelos franceses para indicar que não há discriminação contra os muçulmanos, de que “they do not exempt any religious occasion or motive for covering the face” (Ibid.), é falho, pois, apesar de não se explicitar a palavra “burca”, não existiriam outras roupas religiosas aplicáveis, so what the law has done is single out something that is of central importance to at least some members of one religion and to apply a very heavy burden to it, without similarly burdening central and cherished practices of other religions (Ibid., p. 135).

Observando estas determinações legais, é fácil perceber o quão tendenciosas elas são,

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restringido a liberdade religiosa de certos grupos mais do que de outros (até especificamente, no caso da Loi n. 2010-1192, das mulheres muçulmanas), com a aparente intenção de assimilar tais grupos nos moldes europeus de civilização. É recorrente o silenciamento da

alteridade, e o reforço de ideais que correlacionam igualdade e

homogeneização, liberdade e silenciamento, respeito ao outro e recusa em vê-lo. 3.2

“Ce que vous portez sur la tête me gêne”5: As mulheres muçulmanas

Os relatos analisados nesta etapa foram recolhidos principalmente através do site Viedemusulmane.fr, um blog colaborativo dedicado às mulheres muçulmanas francesas criado em 2009, e do site da Ligue Française de la Femme Musulmane (LFFM.org), grupo de direitos das mulheres muçulmanas sediado em La Courneuve. Ambos os sites contém histórias e declarações de mulheres sobre ser mulher e muçulmana na França, inclusive muitas relativas ao uso do hijab (o véu que cobre simplesmente os cabelos), do niqab (o véu que cobre também o rosto inteiro), do jilbeb/jilbab (a vestimenta que cobre o corpo inteiramente e o cabelo, mas não o rosto), e da burqa (a vestimenta que cobre o corpo, o cabelo e o rosto). Em relato no site da LFFM, Safiya Meziani (2013), na posição de mulher muçulmana, reforça muito do que foi estabelecido na parte teórica deste trabalho: La femme musulmane représente l'objet de tous les fantasmes em Europe, tout particulièrement em France. Stigmatisée de toutes parts, des répresentants politiques aux donneurs de leçons tous bords confondus em passant par les médias: la femme musulmane serait de surcroit une femme “soumise”, considérée comme une “mineure” de par le poids des traditions culturelles et familiales, sous le joug patriarcal, une femme “battue”, réduite à être objet sexuel, niée même dans son bon droit le plus élémentaire d'émettre un avis personnel... Sans nul doute, l'image de la femme musulmane tant déformée dans la société, fait l'objet de beaucoup de frustrations chez les femmes musulmanes qui en souffrent (MEZIANI, 2013; grifos meus).

A autora deixa claro que, como mulher muçulmana, sente que é estigmatizada, colocada pelos representantes políticos, pela mídia e pela sociedade em posições determinadas por seu estereótipo: submissa, silenciada, subalterna, sexualizada; e que este estigma leva à frustração de mulheres muçulmanas francesas. Em seguida, neste mesmo texto, ela critica o modelo europeu de feminismo branco, 5

Declaração de professor da Sorbonne a aluna muçulmana que usa véu (KADDOUR, 2009).

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que força sua visão eurocêntrica de modernidade e liberdade sobre um grupo de mulheres que querem o direito de ter sua própria voz, sua própria opinião e sua própria definição de liberdade e emancipação: Il est d'autant plus choquant que ce soit dans une société dite “démocratique” que ces femmes se voient dicter le modèle qu'il faudrait suivre, celui-ci étant considéré comme LE modèle unique d'émancipation de la Femme. Dès lors que celui-ci n'est pas suivi, la femme est considérée comme aliénée. Adopter une façon uniformisée de se comporter, de se vêtir rend-t-il plus libre, plus émancipée, plus moderne? (…) De quelle liberté s'agit-il? Celle qui consiste à parler à la place des femmes! (…) La femme musulmane est la grande oubliée des causes féministes, celles qui au nom même de ce principe excluent la Femme en tant que telle parce que musulmane. Le paradoxe est que la femme musulmane est au centre des polémiques puremente politiciennes alors qu'elle est la grande absente des débats (...), si bien qu'elle paraît invisible (…) (Ibid.).

E, mais adiante, termina por criticar a transformação em “estrangeiro” da figura da mulher muçulmana francesa, sua colocação como cidadã menor, como externa à sociedade, como necessitada de salvação e instrução coloniais: La femme française de confession musulmane, citoyenne à part entière n'a nullement besoin d'être renvoyée à ses origines culturelles que l'on souhaite em substance exclure de la société à l'aquelle elle appartient. Elle n'est pas cette étrangere que l'on décrit systématiquement comme étant la figure néo-coloniale que l'on doit irrémédiablement instruire, émanciper et libérer comme le voudrait le système politique (Ibid.).

Este ponto de vista, colocado por Meziani (2013) e reforçado pelos autores do marco teórico deste trabalho, é aplicável às situações mais cotidianas relatadas pelas mulheres muçulmanas nos sites investigados. Muitas delas afirmam sofrer preconceito de colegas, amigos e familiares (LINA, 2013; AÏCHA, 2013; INÈS, 2014; LINDA, 2013); ter medo de não encontrar trabalho por conta do uso do véu (MILANA, 2013); de fato não encontrar trabalho por conta do uso do véu (DONIA, 2009; MARIE, 2011; LFFM, 2007a); sofrer no ambiente de trabalho por conta do véu (NOURIA, 2009; SAMIRA, 2010; NORA, 2009); ter problemas escolares por não poder usar o véu (SOUKAYANA, 2009; HANA, 2009; NIL, 2013; SIRINE, 2013); sofrer discriminação mesmo em ambientes que não possuem leis de proibição de uso do véu (LFFM, 2007b; KADDOUR, 2009; LFFM, 2008), e assim por diante. E o que se percebe nestas situações é que essa proibição, essa forma de ver e tratar a mulher muçulmana, é prejudicial a elas, pois elas estão incomodadas com o tratamento e sofrem com as ações tomadas contra sua liberdade individual (mesmo que esta liberdade seja diferente da noção de liberdade pregada pelo ponto de vista etnocêntrico europeu da

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laïcité). Nouria (2009), por exemplo, em relato ao Viedemusulmane.fr, declara: “(...) je porte le voile (…). Je suis obligée de l'enlever à mon travail, ce qui me gêne énormément, je me sens comme une femme nue. Je me sens mal à l'aise, (…) pas moi même, (…) étrangère ” (NOURIA, 2009). A proibição a estrangeiriza, a coloca em posição de desconforto e exposição de sua alteridade que, para ela, reforça sua exclusão e seu sentimento de nãopertencimento. Samira (2010), em texto para o mesmo site, apresenta o conflito entre a opção pelo trabalho e pelo uso do véu: (...) je suis enseignante em lycée (…). Comme vous le savez, travailler pour l'éducation nationale m'empêche de porter le voile dans l'immédiat. (…) je dois faire un choix. Néanmoins, je ne suis ni prête à le porter, ni prête à abandonner ma profession d'enseignante toute récente (SAMIRA, 2010).

Apesar de constatar que não quer, no momento, trocar o trabalho pela liberdade de usar o véu, deixa claro que é necessário fazer uma escolha, e implícito que, mesmo não se sentindo “pronta” para isso agora, eventualmente optará por abandonar seu trabalho para poder praticar sua fé. E mesmo mulheres que não estão em conflito mostram que a opção é limitada, como no caso de Donia (2009), que diz que “après mes études je n'ai pas eu vraiment de mal pour trouver du travail, j'ai beuacoup travaillé dans le domaine du Call Center (Centre d'appel), c'est le seul domaine où le voile est autorisé...”, ou seja, que encontrar trabalho não foi realmente difícil, mas que sua única opção é em call centers. O depoimento de Marie (2011), recente convertida em muçulmana, mostra o peso da escolha de usar o véu: Voilà, une fois, une amie me dit “Faire le choix du hijab, c’est se suicider socialement”. Un avis fort et pourtant loin d’être faux. J’ai choisi, suite à un rêve il y a quelques années, de porter le voile. (…) Un choix qui allait inévitablement poser un problème avec ma famille, mon entourage mais aussi au niveau professionnel. (...) Pour être une femme encore plus épanouie que je ne le suis maintenant, je souhaite ne pas m’effacer professionnellement. Oui mais voilà, pas évident de trouver un emploi en étant voilée en France. (...) Battez-vous, avec douceur, pour faire accepter vos choix (MARIE, 2011).

Já para as adolescentes ainda na época da escola, o conflito e o sofrimento é ainda mais intenso, pois o uso do véu é inteiramente proibido no ambiente escolar público. Seus relatos indicam um desejo forte de usar o véu, mas um desejo impedido pelas leis, e ocasionalmente pelos próprios pais, que se preocupam com a inclusão da filha na sociedade francesa e preferem que ela apague este traço de sua religiosidade de forma a se integrar

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melhor no padrão socialmente determinado. Esta resistência da família – e seus argumentos de preocupação com a integração – pode ser vista nos depoimentos de Milana (2013) – “(...) je veux porter le hijab, mais ma mère ne le veut pas, (…) elle me dit: 'nous sommes em France, tu dois étudier, si tu te voiles, tu n'auras pas de travail' (...)” –, Lina (2013) – (...) j'ai 17 ans et je suis au lycée. (…) j'ai décidé de porter le voile, avec un famille où ils sont tous nés musulmans mais totalement contre tout ce qui se rapproche de l'islam! Donc toutes les remarques qui vont avec “t'es dans une secte”, “arrête ton délire, ici on est em France” (…) (LINA, 2013).

–, Aïcha (2013) – “Je veux porter le Hijab mais mes parents ne veulent pas, ils disent (…) que plus tard je trouverai pas de travail, pour l'école c'est pas bien (...)” –, Inès (2014) – (...) j'ai parlé à ma mère par rapport à mon choix pour le port de hijab, (…) elle a refusé em disant: “tu ne trouveras jamais de travail”, “tu te marieras, tu feras des gosses, t'auras ni travail ni rien telle une popoche”, “tu seras soumise” (…) (INÈS, 2014)

– e Linda (2013) – En Terminale, c'est à dire maintenant, je sens (…) qu'il me manque quelque chose: le hijab. (…) j'en ai parlé avec ma mère et elle ne veut pas que je le porte. (…) Elle a des arguments du genre: “tu vas l'enlever devant ton lycée, ça ne sert à rien”, (…) “tu ne vas pas trouver de travail” (…) (LINDA, 2013).

Para as que efetivamente usam o véu, as coisas não são mais fáceis. Soukayna (2009), por exemplo, sofre com a proibição do uso do véu na escola: Aujourd'hui j'ai 17 ans, je suis musulmane pratiquante, je porte le voile pour aller aux lycée et je mets le jelbeb dehors. À vrai dire le problème c'est que j'en ai marre d'enlever mon voile pour des mécréants et j'en ai marre de ne pas pouvoir pratiquer correctement ma religion. À chaque fois que je vais aux lycée je me sens mal parce que je désobéis à Allah (…). Et le fait d'aller faire des études pour après ne pas travailler avec mon voile (jelbeb) me démoralise, donc je sèche souvent les cours, je suis très souvent absente, etc. Mon année commence et c'est déjà catastrophique... mes notes. J'ai envisagé d'arrêter l'école mais je ne sais pas quoi faire (…) (SOUKAYNA, 2009).

Sua dor passa pela questão da imposição da vontade alheia sobre seu corpo e suas escolhas: ela não aguenta mais ter que tirar seu véu por conta dos “descrentes”, por conta da decisão de pessoas que não compreendem sua fé e portanto a impedem de praticá-la; não aguenta a ponto de não conseguir frequentar a escola, à qual a política francesa supostamente estaria tentando integrá-la. Hana (2009), tem problema semelhante: Je suis une lycéenne de 17 ans. Je porte le voile depuis le mois d'août 2008. J'ai donc dû passer une année à retirer mon hijab pour pouvoir entrer em cours. Une année difficile psychologiquement, je

26 séchais très souvent les cours, je suis même passée en commission éducative, car vraiment, c'était devenu difficile à vivre. (…) Des soeurs m'ont proposé la solution du CNED (Centre National d'Enseignement à Distance): la solution idéale! (…) Je m'inscris pour une Terminale L et (…) c'est le compromis pour meus soeurs qui portent le hijab et qui accordent de l'importance à l'école (HANA, 2009).

Diferente de Soukayna, Hanna optou por abandonar o ensino público tradicional e se inscrever, no último ano de ensino médio, no CNED, sistema público francês de ensino a distância. Mais uma vez, vê-se que a política pública, que deveria, teoricamente, facilitar a integração, leva ao afastamento, à segregação e à marginalização das jovens muçulmanas que usam véu. As jovens que conseguem continuar frequentando a escola apesar de não poder usar o véu também se sentem em tensão, e procuram soluções alternativas para cumprir sua fé. Milana (2013), já mencionada anteriormente, diz que, na aula, gostaria de “(...) mettre une tunique (manche longue) jusqu'aux genoux, sur jeans (...)” (MILANA, 2013), já que não pode usar o jilbeb que deseja. Nil (2013), por sua vez, não consegue usar o hijab por medo do preconceito alheio: (...) j'ai 15 ans et em seconde, et j'étudie dans un lycée 'français', dans mon lycée y a peu de musulmans voire pas du tout, mon souci c'est que le premier jour de la rentrée j'ai porté mon hijab, mais bien sûr je l'ai malheureusement retiré par la suite, mais voilà le deuxième jour de la rentrée je l'ai plus remis. (…) car pour moi c'est vraiment difficile, j'ai peur (…) des regards des autres, et comme je connais personne c'est encore plus difficile (…) (NIL, 2013),

enquanto Sirine (2013) sente dificuldade de conciliar sua vida estudantil e social de adolescente com seu uso do hijab: Tout d'abord, je suis une fille actuellement au lycée, em première. Depuis les grandes vacances, j'ai décidé de porter le hijab. Mais je ne le mets pas avant et après l'école, seulement quand je n'ai pas cours (je ne peux le mettre que devant un miroir). (…) Mais le week-end, je mets le hijab. Je me sens très hypocrite, à l'école j'ai les cheveux lâchés bien coiffés, des fois les gens me disent que je suis jolie... (…) Et aussi une fois je suis sortie avec mês amis du lycée je n'ai pas réussi à mettre le hijab devant eux j'étais vraiment mal à l'aise... (SIRINE, 2013)

A preocupação em relação ao uso do véu é presente também mesmo no discurso daquelas que não estudam no ensino público tradicional. Oum Ibrahim (2009) se questiona sobre a possibilidade de usar o véu durante sua prova do bac6, que será aplicada num

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Prova para obtenção do diploma de “baccalauréat”, concedido tradicionalmente aos alunos que completam o ensino médio.

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colégio público, mesmo que ela esteja inscrita como “candidate libre”7. O que é interessante observar também é que os comentários de seu post no blog dão respostas variadas, e ninguém consegue descobrir a informação de sua possibilidade ou não de uso do véu neste contexto, o que mostra uma falta de regulamentação e de informação no que diz respeito à questão (IBRAHIM, 2009). E o véu continua sendo uma questão mesmo para as alunas de faculdade, por mais que seu uso seja, teoricamente, liberado no ensino superior. Malika (2013), recém-formada no ensino médio, teme a possibilidade de ser impedida de usar seu véu – “(...) je pourrai donc mettre mon foulard sans problème sauf si il y a une nouvelle loi islamophobe” – e este medo se concretiza em casos como os reportados por Hanane Kaddour (2009) e pela LFFM (2007b). No primeiro desses casos, Samia, uma aluna de sociologia política na Sorbonne, sofre preconceito do professor: Il lance à Samia: “ce que vous portez sur la tête me gêne. Juridiquement, vous en avez le droit, mais je vous laisse le choix de changer de professeur”. Samia n'est donc pas la bienvenue. Elle se dépêche de ranger ses affaires et de quitter les cours. (KADDOUR, 2009).

Em seguida, o professor, se justificando para os alunos que se incomodaram com a afronta, começa com argumentos racistas e islamofóbicos – “Il fait savoir qu'il connaît bien le Maghreb et 'que des amis y sont morts, à cause de l'islamisme'” (Ibid.) – e, ao ser interrogado por um aluno sobre sua concepção de laïcité, sobre se faria o mesmo com um aluno usando outro símbolo religioso, “(...) silence dans la salle... 'non', répond sèchement Christian C.” (Ibid.). No segundo caso (LFFM, 2007b), uma aluna de faculdade de biologia é proibida de usar seu véu na aula de Geologia por um professor que alega razões de segurança – “(...) m'a prise à part à la fin du premier cours (…) et m'a dit comme quoi le port du 'tchador' ('si ça em est un?' a-t-il dit) est interdit em salle de Travaux Pratiques (TP) et ce pour des raisons de sécurité.” (Ibid.) –, mas, ao questioná-lo sobre que razões seriam essas, recebe resposta insatisfatória – “Il n'a pas voulu m'expliquer ces raisons de sécurité car en fait il n'y arrivait pas (...)” (Ibid.). Finalmente, o professor admite que a questão é religiosa, e a aluna se posiciona defendendo seu direito de usar o véu, de forma aparentemente bem7

É possível, no entanto, se inscrever independentemente, sem estar cursando o ensino médio, de forma semelhante ao Enem no Brasil.

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sucedida. Mesmo que, no final, o resultado tenha sido mais positivo do que no caso anterior, o fato de alunas que usam véu serem tratadas de forma desrespeitosa e contestadora por professores num ambiente em que estão em seu direito de expressar sua religião é sinal de irregularidade e falta de respeito ao outro. Este tipo de desrespeito ocorre também em outras esferas, como na busca por um trabalho. O relato de uma mulher à LFFM (2007a) é bastante representativo do que diz Lina (2013) em seu próprio relato ao Viedemusulmane.fr: “(...) les gens se bloquent dès qu'ils voient un voile” (LINA, 2013). A mulher em questão, na ocasião de uma entrevista de emprego, recebe o pedido de retirar seu véu, e retruca que não o fará pois “le fait que mes cheveux ne soient pas visibles n'est pas une entrave à la communication” (LFFM, 2007a). A resposta que recebe é “que dans leur entreprise ils n'avaient besoin que du personnel intégré”, e termina seu relato por declarar: “Je suis née em France, d'origine et de nationalité française, je vote, je suis diplômée... Et tout à coup parce que je porte le foulard, je ne suis plus intégrée!” (Idem, 2007a). Esta situação mostra claramente a tendência francesa de considerar não-integrado, não-francês, aquele que não se adequa ao modelo eurocêntrico de indivíduo, mesmo que seja, no caso, um cidadão francês; esta tendência de basear integração em aspectos culturais que o “outro” não consegue compartilhar é historicamente recorrente na Europa, como aponta Martha Nussbaum: “Ever since the rise of the modern nation state, European nations have understood the root of nationshood to lie first and foremost in characteristics that are difficult if not impossible for new immigrants to share” (2013, p. 13). Nos relatos que analisamos, podemos ver que “(...) practicing Islam in France is becoming more and more difficult, and that French laws specifically target Muslims (…)” (BOUDLAL, 2013). Os estereótipos das muçulmanas como submissas e silenciadas são reproduzidos dentro das próprias famílias, devido ao medo do preconceito que estas jovens podem sofrer na sociedade francesa. As limitações práticas da vida acadêmica, social e profissional impostas pelas leis de laïcité são reais, e afetam mesmo aspectos que não deveriam afetar, inclusive dando margem a argumentos preconceituosos e islamofóbicos (como nos casos das alunas de faculdade e dos professores que as desrespeitaram). A segregação e o movimento de dar as opções somente de exclusão ou assimilação são claramente visíveis também, como no caso das alunas que não conseguem frequentar as

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aulas, ou da professora que precisa optar entre sua vida profissional e sua vida religiosa. Como diz Lahcen, homem muçulmano entrevistado por Youssef Boudlal em seu projeto fotográfico Living as Muslim in Paris, sobre as leis de laïcité: “The law is an attempt to create an Islam that the French can accept”. 3.3. “A crown, an uniform and a symbol against oppression”8: Os homens sikh

No caso da pesquisa sobre homens sikh, foi mais difícil encontrar relatos diretos em blogs no modelo dos das mulheres muçulmanas (blogs de sikhs americanos e ingleses eram mais frequentes). Entretanto, foi possível encontrar um coletivo organizado na página do Facebook Sikhs de France9, que compartilha notícias, relatos e atualidades da comunidade sikh francesa, usando frequentemente a hashtag #laïcité para tratar de temas relativos às leis de laïcité que afetam o uso do dastar/dastaar (também chamado de pagri e pagg, o turbante usado pelos homens sikh) e do rumal/roumal (uma espécie de lenço usado para conter os cabelos dos homens sikh – que não podem ser cortados – sob o dastar, ou quando não podem vestir o dastar). Além disso, encontrei também relatos incluídos em sites de notícias tratando de manifestações de sikhs franceses contra a proibição do turbante – entretanto, é importante ressaltar que nesses casos o relato já vem editado e manipulado, e portanto pode ser considerado menos confiável, já que é trazido por um detentor de voz e poder que traz à tona sua percepção da voz do outro oprimido. Os relatos da página Sikhs de France ilustram, entre outras coisas, a aplicação inconstante da lei e seu caráter subjetivo, com casos em que dastaars e rumals são permitidos e outros em que são proibidos, em ambientes equivalentes. No dia 6 de fevereiro de 2014, a página compartilhou a história (marcada com a hashtag #laïcité) de “un dastaar toléré dans un lycée publique em 2014”, acrescentando que encore une fois, on voit que la loi du 15 mars 2004 a été inutile, qu'elle a annihilé toutes existences de diversité dans nos écoles publiques et renie l'image de la société française du XXIème siècle, une belle France Arc-en-Ciel (SIKHS DE FRANCE, 2014a).

Pouco tempo antes, no dia 14 de janeiro do mesmo ano, tinha compartilhado um relato de um sikh proibido de usar o dastaar e o roumal durante o recenseamento, situação 8 9

Trecho do vídeo “Don't freak, I'm a Sikh” (DON'T, 2014). Disponível em: .

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em que, teoricamente, o uso de tais artefatos seria permitido: “(...) un jeune français de confession Sikh s'est vu refusé de porter son Dastaar (…) et également son roumal (…) lors de sa journée d'appel” (Idem, 2014b). A página lembra, em seguinte, a ilegalidade desta proibição: “Nous rappelons que les autorités de l'armée ne peuvent justifier une restriction de la liberté de religion, uniquement en se fondant sur une dite Charte de la Laïcité”. Mais dessa subjetividade pode ser vista 2013. Primeiro, em 20 de janeiro: (...) l'école Primaire Jules Guesde au Blanc Mesnil refuse aux élèves de porter le rumal (…)! La loi de 2004 relatifs aux signes religieux n'interdit em rien le rumal! Il s'agit là encore une fois d'un abus de l'application de cette loi (Idem, 2013d).

Neste post da página Sikhs de France podemos ver que a interpretação que os donos da página possuem da lei é diferente da que a escola em questão possui, e a razão disso é a margem que a lei dá à interpretação subjetiva. Para os sikhs da página, o rumal não estaria incluído na lei, provavelmente por não ser um elemento por si só religioso, mas sim uma forma de conter os cabelos não cortados; para a escola, provavelmente é visto como um elemento religioso ostensivo, e portanto é proibido. Um outro caso de 2013, relatado em duas partes na página do Facebook, da época de volta às aulas, mostra, se comparado ao caso de fevereiro de 2014 (Idem, 2014a), que a restrição imposta pela lei é de aplicação inteiramente subjetiva. A primeira notícia é de que “A Pantin, un cas de refus d'accepter un jeune enfant de confession Sikh em raison de son Patka” (Idem, 2013c); em seguida, a página informa que “L'enfant de confession Sikh scolarisé dans la commune de Goussainville s'est coupé les cheveux, suite à la pression de la direction de l'école” (Idem, 2013b). Ou seja, enquanto numa escola um aluno pode entrar com o Dastar (Idem, 2014a), em outra um aluno é pressionado a cortar seus cabelos, ato que vai contra os preceitos de sua religião, pela direção (Idem, 2013b). A repressão variada e subjetiva ilustra bem uma falha inerente à lei, que dá margem ao abuso do poder por parte de escolas preconceituosas (como a que pressiona um aluno jovem a cortar seus cabelos quando sua religião não o permitiria). Além desses casos relatados na página, podemos ver, por artigos em sites de notícia, que há uma preocupação da comunidade sikh politizada com as leis de laïcité. Durante visita do atual presidente François Hollande à Índia, em fevereiro deste ano, sikhs em Nova Déli protestaram contra a proibição francesa (ANI NEWS, 2014), o que indica um

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envolvimento significativo da comunidade internacional sikh, como ilustrado por declarações de ativistas sikhs indianos: If the Sikh children do not start wearing turbans from schools then they will not wear turban when they grow up. They will wear caps or they will get hair cut. So, as France is a secular country putting a ban on religious symbols is illegal (SINGH, M. apud ANI NEWS, 2014);

“Turban is the symbol of pride for us and defines the core identity of Sikhs. We want that the government of France should lift the ban” (SINGH, G. apud ANI NEWS, 2014). Dentro da França, o movimento de resistência também é forte, especialmente após a apresentação da Charte de la Laïcité pelo ministro Vincent Peillon (ÉDUSCOL, 2013). Kashmir Singh, do comitê administrativo do principal templo sikh francês, em Bobigny, declara que “Le kesh (port des cheveux longs) et le pagri (turban) sont obligatoires et ce ne sont pas des symboles, mais une part sacrée inhèrente à notre religion” (SINGH aput FAIT RELIGIEUX, 2013). Mais uma vez, vemos a questão da interpretação: Singh não vê o turbante como um símbolo, portanto não o vê incluído na lei. A força da resistência sikh é apontada também em matéria do site La Vie, que declara que “seuls les sikhs – pour qui le port du turban est sacré – semblent encore aujourd'hui rencontrer des problèmes à cause de la loi” (LINDELL, 2014). A matéria segue por afirmar que, na realidade, há resistência muçulmana também, mas que a resistência sikh – apesar da quantidade demográfica significativamente menor se comparada à de muçulmanos – é mais visível é notável. Poderíamos associar isso a um silenciamento maior das muçulmanas? Poderíamos atribuir este silenciamento a seu ser mulher e à islamofobia recorrente na sociedade francesa? Poderíamos atribuir essa visibilidade maior dos sikhs simplesmente a, com menor peso demográfico, eles apresentarem menor risco e, portanto, não precisarem ser silenciados, do ponto de vista do governo? Ao mesmo tempo, os sikhs parecem estar comemorando mais vitórias. Em 2013, o comitê de Direitos Humanos da ONU reconheceu a violação da liberdade religiosa de um sikh francês: Ici, il s'agit du cas de M. Singhara Singh Mann, français de confessio Sikh, ayant passé son service militaire avec son turban dans les années 80, qui s'est vu refusé son turban sur son permis de conduire par l'administration Française. Durant les déliberations entre le 8 au 26 juillet 2013, le comité des Droits de l'Homme a consideré que le décret n. 2001-185 et son équivalent n. 2005-1726 imposant une photo tête nue sur le permis de conduire étaient contraires au Pacte Internacionale relatifs aux droits civiles et politiques, traités signé et ratifié par la France depuis 1981 (SIKHS DE

32 FRANCE, 2013a).

Destaco também a visibilidade da questão sikh inclusive em 2004, na época em que a lei foi passada (GRZYBOWSKI, 2004). Enquanto a lei ainda era discutida e recente, os sikhs temiam ser “efeito colateral” da proibição do uso do véu, devido ao caráter sagrado de seu turbante. Chain Singh, um dos responsáveis pelo templo e associação cultural Gurdwara, declara, na época: Ne nous obligez pas à choisir. (…) Nous aimons la France où nous vivions et où nous travaillons honnêtement. Mais nous ne pouvons pas enlever notre turban. Il fait partie de notre corps, comme notre bras ou notre jambe (SINGH apud GRZYBOWSKI, 2004).

Mesmo na época, há já relatos de intolerância nas escolas – “Certains profs sont intolérants. L'un ou l'autre nous a déjà menacés em nous disant qu'il fallait nous préparer à elever nos turbans” (BIKRAMJIT apud GRZYBOWSKI, 2004) –, e, inclusive, relatos de islamofobia, que afetaria também os sikhs: “Quand les profs font la différence entre nous et les musulmans, cela se passe bien (…) mais ils sont trop souvents ignorants sur ce point” (GRZYBOWSKI, 2004) . A lei, para eles, “(...) marquerait à coup sûr un recul de leur intégration” (Ibid.), pois o preconceito já ocorria: “(...) cinq universités m'on refusé, en raison de mon turban. J'ai donc renoncé à tout diplôme (...)” (KARMVIR apud GRZYBOWSKI, 2004). Da mesma forma como ocorre com as mulheres muçulmanas que devem abandonar os estudos por conta da lei, vemos que Karmvir também não pode continuar seu ensino por conta do preconceito; mais uma vez, vemos que a lei que alega ser baseada em igualdade e inclusão acaba por impedir o acesso de alguns à esfera acadêmica. Nos relatos e casos analisados, percebemos, então, que os sikhs estão bem organizados, e veem que “l'une des conséquences directes de la loi du 15 mars 2004 relative à l'interdiction des signes religieux dans les établissements scolaires est la suppression de l'identité Sikh” (SIKHS DE FRANCE, 2013b). Além disso, entretanto, podemos observar algo que não foi visto no caso das muçulmanas: a subjetividade inerente à lei, e a permissão desigual de estudo, concedida a uns e não a outros dentro da própria comunidade. Vemos que a preocupação com a laïcité, é, então, permeada de preconceito, e pouco clara em seu estabelecimento: afinal, o que faria que certos sikhs fossem mais laicos do que outros? Por que uma escola consideraria o turbante laico, e outra o consideraria religioso? Por que,

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dentro da própria comunidade sikh, há dúvidas sobre o que seria ou não um símbolo religioso ao qual a lei se aplicaria?

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4. Considerações finais Ao longo desta monografia, procurei ilustrar o caráter opressor e discriminatório de certas políticas públicas francesas de laïcité, aplicando um olhar pós-colonial às leis e discursos dos tomadores de decisão e a relatos de mulheres muçulmanas e homens sikh sobre a questão. Como previsto, os relatos foram transpassados por aspectos de discriminação, exclusão, sentimento de não pertencer, estereótipo, assimilação forçada, e medo; da mesma forma, os pronunciamentos dos tomadores de decisão e os próprios textos das leis mostraram o discurso opressor de tentativa de assimilação forçada ou exclusão e de “salvação” e “modernização” do outro, discurso este recorrente numa perspectiva histórica de dominação. Nos aprofundando mais na comparação entre as mulheres muçulmanas e os homens sikh – e no contraste de seus relatos e dos discursos dos tomadores de decisão –, podemos perceber que os relatos das mulheres muçulmana indicam discriminação mais sistemática e, aparentemente, menos vitórias. Enquanto, no caso dos sikh, a aplicação da lei na proibição do dastar e do rumal é inconstante, as mulheres muçulmanas parecem ser sempre impedidas de usar seu véu (seja ele hijab, niqab, burqa ou jelbeb). Podemos supor que isso indica, em algum nível, o fato de que as leis são direcionadas à questão do véu (afinal, vale lembrar, foi esta discussão que levou à criação da lei em primeiro lugar). Além disso, os relatos dos homens sikh trazem à tona protestos na Índia, vitórias perante a ONU, e interpretações mais amplas e maleáveis das leis, enquanto mulheres muçulmanas indicam sofrer preconceito até em casos em que a lei não se aplicaria (por exemplo, na faculdade e no ambiente de trabalho). Outro elemento marcante nesta comparação é que os próprios sikhs percebem que as leis são direcionadas à comunidade muçulmana, pois apontam sofrer mais preconceito quando são confundidos com muçulmanos do que quando são compreendidos como sikhs (GRZYBOWSKI, 2004). Esta declaração é uma demonstração clara de quão tendenciosas são as políticas públicas de laïcité, e de quão islamofóbica é a sociedade francesa, a ponto de, frente a um indivíduo de raça diferente, de origem imigrante, de religião diferente, reagir pior se esse indivíduo é muçulmano do que se é sikh, indicando um preconceito específico religioso, além do racismo e da xenofobia.

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As mulheres muçulmanas também relataram com muito mais ênfase o desejo de se integrar (ou o desejo da família de que se integrassem) e a dificuldade em fazê-lo por conta dos preconceitos, das políticas de laïcité e da falta de informação da sociedade sobre a aplicação destas políticas. Perante dificuldades deste tipo, os homens sikh parecem ter muito mais sucesso em suas contestações; não só isso, como parecem não ter esta dificuldade tanto em mente, seja porque têm menos necessidade de se “integrar” neste sentido (possivelmente por serem menos numerosos demograficamente), seja porque têm menos dificuldade de fazê-lo. Neste ponto, vale também especular se o fator de gênero não tem um peso: afinal, mulheres muçulmanas, vistas como menos capazes, como subjugadas, têm um estigma específico estereotipicamente atrelado a elas, e a recusa em se adaptarem a um modelo forçado sobre elas por homens opressores (afinal, nos casos de faculdade e mercado de trabalho relatados, o interlocutor foi sempre homem, o que não é necessariamente uma coincidência) é tomada como mais “insolente” do que a insistência do homem sikh em usar seu turbante (que, como vimos, frequentemente é frutífera). Outro ponto de tensão pode ser colocado no que diz respeito às origens dos imigrantes que compõem cada grupo: o Maghreb, região de origem da maior parte dos muçulmanos, foi colônia francesa, enquanto a Índia, de onde vêm os sikhs da França, foi colônia britânica. Há, portanto, uma relação mais próxima histórica de colonização francesa no que diz respeito aos muçulmanos, já que são magrebinos. Os indianos, colonizados por outra nação, são distant others, podendo talvez ser percebidos como suficientemente outros para serem mais respeitados nesta alteridade; já os muçulmanos, outros historicamente diretamente colonizados pelo self francês em questão, se encontram num ponto de proximidade que os torna alvos mais claros da assimilação, pois há neles um elemento francês que não se encontra nos sikhs indianos. O olhar do self francês sobre esses outros – sikhs e muçulmanas – existe na tensão desejo/disgust. Os sikhs, distant others, homens, minoria demográfica, com seus cabelos longos escondidos, são percebidos com certo projective disgust (NUSSBAUM, 2012, p. 36); podemos supor que o respeito à alteridade deste grupo passe um pouco por esse projective disgust, manifestado na tendência a mantê-los afastados ou de permitir que usem aquilo que cobre o que se tem medo de ver ou lidar com. Já as mulheres muçulmanas, em sua proximidade de magrebina, em sua percebida vulnerabilidade de mulher, em sua posição

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objetificada e fetichizada, são colocadas no lugar do desejo, que se manifesta com a obrigatoriedade de que elas tirem aquilo que as cobre, de que elas se dispam do que usam para – como percebido pelo europeu – se esconder, de que se apresentem em sua forma mais visível e “acessível” ao self europeu masculino que a deseja. Podemos também questionar aqui o fato de que os homens sikh não parecem ter estereótipos diretamente atrelados a eles (como vemos, eles próprios declaram que o problema é quando são vistos como muçulmanos), enquanto as mulheres muçulmanas os têm em quantidade, a ponto de serem vistas desta forma estereotípica mesmo quando, supostamente, não se aproximam nem um pouco deste esterótipo na realidade: por exemplo, a quantidade de adolescentes muçulmanas que desejam usar o véu e não têm o apoio da família vai completamente contra o argumento tradicional de que essas leis as “libertariam” de uma família machista e opressora; ou, por outro lado, a mulher, que, em entrevista de emprego, é considerada “não integrada” por portar o véu, apesar de, como ela própria diz, ser francesa, nascida e criada na França, e se identificar como tal. No âmbito referente à organização política francesa, cabe destacar a permanência dos discursos independente da tendência dos partidos. A primeira lei foi do governo de Jacques Chirac, de direita; entretanto, a Charte de la laïcité, por exemplo, foi criada por um governo de esquerda, sob presidência de François Hollande, e apresentada por Peillon, um ministro também de partido de esquerda. Podemos tomar isso como indicação de que a lógica que conduz essas políticas públicas é baseada em convicções inerentemente francesas, ligada diretamente à concepção de identidade nacional, e não politicamente de direita ou esquerda, mantendo-se mesmo com as mudanças de governo (passando por Jacques Chirac, de direita, da coalizão RPR/UMP, por Nicolas Sarkozy, de direita, do UMP, e por François Hollande, atual presidente, de esquerda, do Parti Socialiste). Quando políticas públicas se preocupam mais em tratar com estereótipos do que com as pessoas que sofrem por esses estereótipos, podemos considerar que há algo errado e falho na forma de se fazer política. As leis de laïcité parecem, pelo que foi visto ao longo dessas páginas, ter aprofundado o cisma entre a concepção francesa de cidadão (“laico” – o que significa: não muçulmano, mas possivelmente cristão, judeu ou, até mesmo, em algumas instâncias, sikh –, branco, inerentemente “não outro”, o que quer que isso signifique) e este outro oprimido, este outro que tem a face de uma mulher muçulmana de origem africana,

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este outro a quem se dá a “escolha”: se transforme no que desejamos ou vá embora; e, mesmo quando a opção é “se transformar”, ainda há os que dizem que não é o suficiente. Retomo, uma última vez, Martha Nussbaum (2013), que, bem alinhada aos relatos dos sujeitos estudados, declara: “(...) the French law betrays a bias in favor of the familiar and dominant French way of being a human being, whatever that way is”.

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