Ana Mendieta - Corpo e Performatividade

May 29, 2017 | Autor: Erika Villeroy | Categoria: Performance Studies
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Descrição do Produto


Dança, Licenciatura Plena




ERIKA VILLEROY DA COSTA







ANA MENDIETA – CORPO E PERFORMATIVIDADE
























Rio de Janeiro
2016
ERIKA VILLEROY DA COSTA



ANA MENDIETA – CORPO E PERFORMATIVIDADE














Monografia apresentada como requisito para a Conclusão de Curso de
Graduação em Dança, Licenciatura Plena, pela Faculdade de Dança
Angel Vianna.







Orientador: Professor Jorge Albuquerque Vieira









Rio de Janeiro
2016


RESUMO

COSTA, Erika Villeroy da: Ana Mendieta - Corpo e Performatividade.
Orientador: Jorge Vieira. Monografia de finalização de curso em Dança,
Licenciatura Plena. Rio de Janeiro: Faculdade Angel Vianna, 2016.1 (24
páginas)

Este trabalho é uma análise teórica sobre três dos primeiros
trabalhos da artista plástica e performer cubana Ana Mendieta, realizados
entre os anos de 1972 e 1974, através da perspectiva do conceito de
performatividade, tal como enunciado por Judith Butler, a fim de levantar
questões acerca da natureza das construções identitárias em um contexto pós-
colonial, sobretudo aquelas relativas a gênero e raça, suas imbricações e
possíveis relações com o tempo. A partir das imagens produzidas por
Mendieta nas obras "Sem Título (Impressões de Vidro sobre Corpo)", "Sem
Título (Sangue e Penas #2)" e "Sem Título, Imagem de Yagul", será feita uma
investigação sobre como ela pôde agir sobre seus próprios contornos e
transmutar-se em figuras outras, no que essas transformações podem implicar
enquanto movimentos de resistência e subversão das estruturas de poder que
constituem corpos marginalizados, no sentido da construção de alguma
autonomia sobre um estar no mundo que tende a ser regulado em todas as suas
instâncias.

Palavras-chave: Ana Mendieta. Performance. Performatividade. Questões
identitárias, Construtivismo. Pós-modernismo. Materialização.













LISTA DE IMAGENS


"Figura n°1 – Sem Título (Impressões de Vidro Sobre Corpo), Ana "p.16 "
"Mendieta " "
"Figura n°2 – Sem Título (Sangue e Penas), Ana Mendieta "p.17 "
"Figura n°3 – Imagem de Yagul, Ana Mendieta "p.19 "






























SUMÁRIO


"1.INTRODUÇÃO................................................."5 "
".................................................. " "
"2.ASPECTOS "7 "
"BIOGRÁFICOS.................................................." "
"........................... " "
"3.PERFOMATIVIDADE E QUESTÕES "10 "
"IDENTITÁRIAS................................. " "
"4.PRIMEIROS "16 "
"TRABALHOS...................................................." "
"........................... " "
"5. CONSIDERAÇÕES "22 "
"FINAIS......................................................." "
"...................... " "
"6. "24 "
"BIBLIOGRAFIA................................................." "
"............................................... " "


1 – INTRODUÇÃO


Com esta pesquisa, pretendo fazer uma análise dos primeiros trabalhos
performáticos da artista cubana Ana Mendieta e mapear quais questões podem
ser levantadas a partir das imagens concebidas nesses processos através dos
conceitos de performatividade, construção e materialização propostos por
Judith Butler a fim de abordar as questões identitárias que atravessaram a
vida e a produção da artista, suas imbricações e possíveis relações com o
tempo e a corporeidade. Mendieta morreu aos 35 anos deixando uma obra
extensa que passou por muitas transformações ao longo da sua trajetória – e
ao mesmo tempo em que transitou por mídias diversas como fotografia, video,
escultura e pintura, foi o seu próprio corpo, ou corpos que ela mesma
esboçava, que se fizeram presentes em todos os seus trabalhos,
caracterizados pela experimentação, dissolubidade e pelas políticas de
identidade que marcaram a produção artística e o pensamento político dos
anos 70.
O primeiro capítulo trata-se de uma curta biografia da artista. São
apontados alguns traços da sua história que considero serem fundamentais
para a compreensão da sua obra, ainda que não concorde de todo com a
categorização dos seus trabalhos como autobiográficos, um termo que parece
diminuí-los em sua profundidade e caráter político. A sua trajetória é
colocada aqui, portanto, como um elemento referencial para a construção do
seu discurso e da sua estética. No segundo capítulo, faço uma abordagem
teórica dos conceitos anteriormente citados – performatividade, construção
e materialização – tal como descritos por Judith Butler em seu livro
"Bodies That Matter", bem como uma contextualização da performance enquanto
prática artística na década de 70.
De quais maneiras, então, a artista foi capaz de estabelecer
contornos outros para si, construir e re-articular identidades outras
através de ações pontuais registradas em fotografia e vídeo? Falando a
partir de sua experiência enquanto mulher latina residente dos EUA,
Mendieta contribuiu de forma consistente para a construção de práticas pós-
modernas, as quais a pesquisadora Jane Blocker define como um debate acerca
da diferença e identidade, a análise da subjetividade e autoridade, bem
como da recontextualização da história (BLOCKER, 1999, p. 23). Ao mesmo
tempo, ela também aponta para o fato de que os estudos feitos até agora
sobre a obra de Mendieta foram moldados por determinadas ideologias
estéticas, raciais, nacionalistas. Esta pesquisa, de forma alguma, teve a
pretensão de manter-se isenta dessas mesmas influências, mas tampouco se
manteve restrita a um ou outro campo de interpretação.
Serão abordados os trabalhos Untitled (Glass on Body Imprints) [Sem
Título (Impressões de Vidro sobre Corpo)], Untitled (Blood and Feathers #2)
[Sem Título (Sangue e Penas #2)] e Unttitled, Image from Yagul (Silueta
Series) [Sem Título, Imagem de Yagul (série de Silhuetas)], que foram todos
realizados entre os anos de 1972 e 1974, sendo este último o primeiro da
série pela qual a artista tornou-se conhecida, as Silhuetas, nas quais ela
trabalhou por sete anos até 1980. Nessa série, Mendieta marca seus
contornos em diversas superfícies como terra, grama, areia, lama e neve –
n'um primeiro momento com o próprio corpo e em seguida usando um molde de
compensado que passou a substituí-lo. Apesar das Silhuetas aparecerem como
um momento distinto em sua obra, elas estabelecem uma relação direta com
seus primeiros trabalhos e são, de fato, um desdobramento das questões com
as quais ela dialogava desde o início das suas experimentações. Deste modo,
essas três obras serão abordadas em uma tentativa de abrir possibilidades
para o entendimento de como são possíveis o deslocar e o reinventar a si
mesmo através de ações performáticas, entendidas aqui não só como um
empreendimento artístico, mas como uma prática social inerente às relações
e à vida cotidiana, bem como os efeitos da representação sobre aquilo que
se representa.



















2. ASPECTOS BIOGRÁFICOS


Ana Mendieta nasceu em 18 de novembro de 1948, em Havana, Cuba, numa
família proveniente da oligarquia cubana da época anterior à revolução,
cuja figura central era a matriarca Elvira Mendieta, filha do general
Carlos Maria Rojas[1]. Descrita como uma grande narradora, Elvira veio a
exercer uma forte influência sobre Ana. Em 1961, dois anos depois da
Revolução Cubana, Ana e sua irmã Raquel – e mais 14 mil crianças cubanas –
foram embarcadas em direção aos EUA como refugiadas através da Operação
Peter Pan, coordenada pela CIA (Agência Central de Inteligência americana)
e pela Igreja Católica, com o apoio das famílias que se opunham ao regime
comunista e, posteriormente, daquelas que temiam que seus filhos fossem
enviados para acampamentos juvenis na União Soviética.
De acordo com sua irmã, foi nos Estados Unidos que Mendieta descobriu-
se como uma mulher de cor. Tendo passado o primeiro mês do exílio em um
orfanato em Miami, seguiram então para o estado do Iowa onde estiveram em
diversos lares temporários. Este período na vida de Ana foi marcado pelos
conflitos com as famílias que a receberam com a missão de inseri-las na
sociedade estadunidense, que, por certo, refletiam as questões implicadas
pela sua condição de imigrante latina em território norte americano –
sobretudo no Iowa, estado conhecidamente marcado pela xenofobia e pelo
racismo. Para exemplificar o teor das agressões que envolviam Mendieta,
Lynda Avendaño cita a ocasião em que ela foi chamada de sucia cubana
(cubana suja) durante discussão com uma de suas mães adotivas (AVENDAÑO,
2012, p. 2)



No Oeste, as pessoas me viam como um ser erótico (o mito
da latina ardente), agressivo e, de certa maneira,
diabólico. Isso criou em mim uma atitude muito rebelde,
até que, por assim dizer, explodiu dentro e mim e eu
adquiri consciência do meu ser, da minha existência como
um ser particular e singular. Esse descobrimento foi uma
forma de ver a mim mesma separada dos outros, sólo.
(MENDIETA, Ana, citação de um texto inédito e não-datado
recolhido em MEREWETHER, Ch., 1996, p. 101)





Nessa fala, é possível observar como a nacionalidade, etnia e gênero
estavam imbricadas no que dizia respeito à condição marginalizante de
Mendieta em uma sociedade à qual deveria passar a pertencer, e também como
o reconhecimento da sua própria alteridade fez com que essas diferenças se
transformassem em potência. É interessante também olhar para esta
experiência como condicionada ao contexto na qual ela se encontrava, isto
é: se em Cuba, que é um país indiscutivelmente negro, Mendieta pertencia à
uma elite social e econômica que configurava o que se chama hoje de
primeiro mundo do terceiro mundo, e que dentro das relações raciais a
localizava como branca, quando chega aos Estados Unidos essa situação se
inverte e a artista passa a habitar a beira de uma sociedade que a
racializa como latina, em um contexto que a artista passou a reconhecer
desde muito cedo, como fica claro na fala acima, e que em momento algum foi
esquecido. Mendieta declarava-se publicamente como não-branca e, ainda que
num primeiro momento tenha feito aliança com artistas feministas da galeria
A.I.R., por exemplo, que era formada exclusivamente por mulheres,
posteriormente veio a se afastar por considerar que as reivindicações
relativas ao gênero levantadas por elas não davam conta da sua própria
experiência.
Em 1966, a mãe de Ana chegou aos EUA (Freedom Flight), junto com seu
irmão menor – os dois foram morar também no Iowa enquanto seu pai seguia
preso em Cuba por ter supostamente colaborado com a CIA durante a invasão
da Baía dos Porcos[2]. Acredita-se que foi então que ela adquiriu um pouco
mais de estabilidade em sua vida cotidiana e, após concluir seus estudos no
Barcliff College, inscreveu-se no curso Intermedia Studies Program
(Programa de Estudos de Intermídia), da Universidade do Iowa, aonde teve
contato com as práticas artísticas da vanguarda das décadas de 60 e 70.
Lynda Avendaño, em seu artigo Trazas de cuerpo-huellas que obliteran
improntas (2012), menciona dois autores que naquela altura tiveram uma
grande influência sobre o pensamento de Mendieta - foram eles Octavio Paz e
seu livro El Laberinto de la Soledad e o filósofo Adorno[3], que teria
fundamentado seu pensamento crítico com relação às implicações sócio-
políticas da arte, afinado com as produções, ainda segundo Avendario, mais
transgressoras do século XX. Além disso, ao participar de excursões
arqueológicas no México, para onde ela voltaria muitas vezes, Mendieta
conhece as ruínas das civilizações pré-hispânicas da América Central, a
história e a estética dos povos Astecas, Olmecas, Zapotecas e Mixtecas da
cidade de Oaxaca, aonde, não por coincidência, a artista veio a realizar o
primeiro trabalho da sua extensa série de Silhuetas.

"(...) um profundo interesse pelo seu país de origem -
Cuba - que a levou a indagar sobre a cultura Taino;
culturas às quais recorrerá como referências permanentes
do seu imaginátio, e que a permitirão, junto ao encontro
das culturas mexicana e cubana contemporâneas, fazer um
trajeto de regresso às suas raízes de uma maneira
libertadora, distanciando-a da aflição que afeta um
expatriado; ferramentas que atravessaram seu processo
criativo, que a fizeram ingressar crítica e rigorosamente
na realidade sócio-cultural e artística na qual estava
inserida nos Estados Unidos, território onde as
problemáticas da diferença nas décadas de 60, 70 e 80 não
eram tratadas sistemática e assiduamente como o são hoje."
(AVENDAÑO, 2012, p. 3)



Para compreender parte desse interesse de Mendieta por culturas pré-
hispânicas, assim como a sua relação posterior com a Santeria, talvez seja
fundamental voltar à questão da sua latinidade em um contexto norte-
americano. Sendo assim, ao invés de pensar em modelos de hibridismo
cultural que se relacionam com noções como assimilação e cooptação. Gloria
Andalzua, no livro Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1987),
descreve uma experiência chicana através dessa subjetividade nomádica que
articula mestiçagens múltiplas que não podem ser compreendidas através de
um pensamento binário relativo à tradição e modernidade, ao centro e
periferia.

"Sou sem cultura porque, como uma feminista, desafio
as crenças culturais/religiosas coletivas de origem
masculina dos indo-hispânicos e anglos; entretanto, tenho
cultura porque estou participando da criação de uma outra
cultura, uma nova história para explicar o mundo e a
nossa participação nele, um novo sistema de valores com
imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao
planeta. Soy um amasiamento, sou um ato de juntar e unir
que não apenas produz uma criatura tanto da luz quanto da
escuridão, mas também uma criatura que questiona as
definições de luz e de escuro e dá-lhes novos
significados." (ANDALZUA, 1987, p. 80)


A fala de Andalzua tem uma estreita relação com a obra e a trajetória
de Mendieta. Ao voltar-se para civilizações chamadas originárias, ela
deslocava não só a si mesma, como a esses mesmos referenciais alternativos
que assumiam um novo significado nas suas ações performáticas, num contexto
contemporâneo. Isto é, não para serem localizados e fixados em outra
posição ainda relativa à cultura hegemônica, mas talvez para ocupar o que
Andalzua chama de limiaridade, de uma disjuntura entre tempo e espaço que
possibilitam ao sujeito reinvenções de si mesmo.









2 - PERFORMATIVIDADE E QUESTÕES IDENTITÁRIAS



A performance, como movimento e prática artística reconhecida,
aparece de forma consistente nas décadas de 60 e 70, junto ao declínio do
modernismo e do expressionismo abstrato[4]. Nesse período, movimentos de
vanguarda vinham conduzindo um processo descrito pelos historiadores como
desmaterialização do objeto de arte, bem como a procura de mídias
alternativas às tradicionais pintura e escultura – isso enquanto estratégia
de questionamento da institucionalização e capitalização do ofício, que
podiam ser atribuídos, sobretudo, às galerias e demais instituições
relacionadas às práticas artísticas. As galerias eram – como ainda o são –
espaços elitizados e perpetuadores de estruturas classistas, racistas e
misóginas, e sua existência se justifica basicamente na necessidade de
selecionar e agenciar objetos de arte a serem expostos e vendidos. Sendo
assim, a eliminação dos objetos e a execução dos trabalhos fora do espaço
da galeria foram movimentos no sentido da democratização da arte, da
subversão de uma lógica capitalista que, mais tarde, vieram a ser cooptados
pelas mesmas engrenagens que tentaram destruir. Neste sentido, para além da
performance, surgiram também a arte conceitual, as instalações, a
vídeoarte, a land art[5] – todas práticas distintas, mas que passavam pela
mesma questão de rompimento com os limites dos espaços reservados à
exibição de obras de arte, bem como a da permanência, da durabilidade
desses objetos e da própria figura do artista enquanto autor. De acordo com
Jane Blocker, esses movimentos foram influenciados por uma maior
disponibilidade, nos EUA, de traduções da teoria pós-estruturalista
francesa. Ela cita o artigo "A Morte do Autor", de Roland Barthes[6], que
afirma que a "deificação do autor é o produto de uma ideologia ultrapassada
enraizada no capitalismo e no positivismo." (BlOCKER apud BARTHES, 1999, p.
42)

"A despeito do efeito importante que teve na história da
arte, a desmaterialização do objeto de arte foi
acompanhada por uma gama de premissas inexploradas: que a
obra de arte pudesse ser visto como distinta da identidade
do artista que a fez; que todos os artistas tivessem igual
acesso à autoridade que esse movimento tentou diminuir;
que uma tentativa de subverter essa autoridade não pudesse
ser recuperada por maiores reivindicações culturais pela
dominância, que os espectadores se tratassem de um grupo
homogêneo cuja subjetividade seria clara e cujo acesso às
obras de arte seria igualitário." (BLOCKER, 1999, p. 51)





Ao longo da sua obra, Mendieta esteve de acordo com virtualmente
todas as tendências e diretrizes dos movimentos artísticos da época –
eliminar o objeto, subverter a autoridade do artista e envolver o
espectador mais ativamente. (BLOCKER apud POPPER, 1999) Entretanto, devido
às questões identitárias que a atravessavam e ao seu posicionamento
político, em todas essas instâncias a artista colocou em evidência os
problemas acima mencionados. O seu trabalho exige uma elaboração mais
complexa tanto dos modelos de autoridade quanto dos conceitos de identidade
e subjetividade trazidos pela teoria pós-estruturalista[7]. O que Blocker
quis dizer com essa colocação é que as críticas apresentadas pelo pós-
estruturalismo, apesar de pertinentes, não levaram em conta as
desigualdades de caráter sócio-político sobre as quais a história da arte
foi construída. Fala-se em um autor deificado, mas quais são os autores que
são deificados? A quem é outorgada essa autoridade que se pretende
desconstruir? Da mesma forma, há que se pensar no que a presença, ainda que
escassa, de artistas latinas, de artistas negras em galerias representa.
Teriam sido cooptadas pelas engrenagens do sistema? Ou são parte de uma
contracorrente que resiste e transpõe os limites impostos por esse mesmo
sistema? De todo modo, o que Mendieta parece ter feito não foi afirmar
diretamente coisa alguma, mas ao operar sobre aquilo que não é dito, sobre
o desaparecimento e sobre a plasticidade da sua própria imagem, ela
levantou indícios precisos – em sua imprecisão – sobre a natureza das
questões identitárias.
As circunstâncias da sua morte, da qual o seu marido, o artista
plástico Carl Andre, foi acusado e em seguida inocentado, contribuíram para
que a artista se tornasse um ícone da luta feminista no contexto da arte
contemporânea. O nome de Mendieta passou a ser citado com frequência por
outras mulheres, tanto artistas quanto pesquisadoras, para tratar
exclusivamente da questão de gênero. Em 1992, o Guggenheim de Nova Iorque
inaugurou uma exposição que contava com trabalhos de Carl Andre. A Women's
Action Coalition (Coalizão de Ação de Mulheres, tradução livre) uma
associação feminista composta em sua maioria por mulheres brancas,
organizou um protesto na porta do museu que reuniu cerca de 500 pessoas
(entre elas Raquel Mendieta), algumas com cartazes que diziam "Carl Andre
está no Guggenheim. Onde está Ana Mendieta?". Foram impressas também
fotografias da artista que as ativistas que conseguiram entrar na
vernissage colaram sobre os trabalhos minimalistas de Andre. Essa
associação entre o nome de Mendieta e a ideologia feminista não foi algo
fabricado. Em 1978, já com 30 anos, Mendieta juntou-se às artistas
residentes da galeria A.I.R., que era também a primeira galeria cooperativa
formada apenas por mulheres nos Estados Unidos – fundada em 1972 enquanto
um espaço permanente de exposição para artistas mulheres num período em que
as galerias de arte comerciais em Nova Iorque contavam quase que
exclusivamente com trabalhos feitos por homens. Ao mesmo tempo, é também
sabido que Mendieta conhecia pessoalmente a maior parte dos artistas
latinos, fossem mulheres ou homens, residentes em Nova York, e
constantemente os encorajava a continuar produzindo e a se manterem
atuantes no contexto da arte contemporânea da época.
Os anos 70 foram de fato marcados por uma intensa produção de
conhecimento no campo das políticas identitárias, que em parte derivaram do
Movimento dos Direitos Civis dos Negros[8], dos protestos contra a Guerra
do Vietnã e do advento do pós-colonialismo[9], cada um deles trazendo
criticas das epistemologias dominantes de cultura e identidade. (BLOCKER,
1999, p. 56). No campo da arte, formaram-se diversos grupos de
reivindicações políticas como o Art Workers Coalition (Coalizão de
Trabalhadores da Arte, tradução livre), o Black Emergency Cultural
Coalition (Coalizão Cultural da Emergência Negra, tradução livre), El
Movimiento Artístico Chicano (Movimento Artístico Chicano, tradução livre)
e o Task Force on Discrimination Against Women and Minority Artists (Força
Tarefa sobre a Discriminação Contra Mulheres e Artistas de Minorias,
tradução livre), do qual Mendieta participou ativamente no fim da década de
70. O seu trabalho, sobretudo nos primeiros anos, dialogava diretamente com
a pauta feminista da época – entretanto, essa mesma ideologia tinha (como
ainda o tem) seu discurso limitado por tratar da questão a partir de uma
experiência específica do que era ser mulher, isto é, da experiência da
mulher branca de classe média, tomando-a como universal e deixando de lado
diferenças fundamentais que estão imbricadas no gênero, como a questão
racial. Por ser latina, Mendieta era marginalizada duas vezes e ao mesmo
tempo, como também o eram as mulheres negras norte-americanas, e foi
justamente a invisibilização das minorias dentro das reivindicações
feministas que motivou o afastamento de Mendieta do movimento, não sem
antes passar por alguns conflitos com suas colegas da galeria A.I.R.

A complexidade das imbricações de gênero, raça e classe faz com que
falar de um corpo genérico seja falar de corpos que são entendidos e
validados como tal por um conjunto de normas regulatórias. Portanto, nomear
as diferenças entre os corpos, principalmente no que diz respeito às
questões de classe/raça/gênero, não se trata de assumir uma posição
essencialista. Trata-se de responder a um sistema de opressão que ao mesmo
tempo em que constrói e é construído sobre a existência do outro, no plano
discursivo achata e invisibiliza as diferenças produzidas por ele mesmo. Ao
mesmo tempo, Judith Butler aponta para a importância de se resistir ao
modelo de poder que entende o racismo e a misoginia (e, no caso, a
homofobia) como relações paralelas ou análogas – passando por cima de
especificidades históricas, da maneira como cada uma delas foi construída,
e dificultando o "importante trabalho de investigação a respeito de como
estas relações dependem e se utilizam uma das outras para fins de sua
própria articulação." (BUTLER, 1993, p. 19)

Para esclarecer como essas diferenças são estruturadas, Butler aponta
para o conceito de performatividade enquanto um conjunto de ações,
fundamentadas na repetição e reiteração, que ao mesmo tempo resultam de e
são criadas dentro de uma rede de relações de poder. Mais uma vez, entende-
se a performatividade não como um empreendimento artístico como é
frequentemente descrita nos estudos de performance, mas como uma prática
social que compreende a vida cotidiana e as relações/inter-relações que ali
se estabelecem. Deste modo, Jane Blocker, no livro Where is Ana Mendieta?
(1999), fala da necessidade de ir além de uma idéia previamente
estabelecida da performance para compreender em maiores detalhes as
condições identitárias, a prática historiográfica e os efeitos de
representação. Além disso, é importante observar que essa prática social
mencionada por Butler, que nada mais é do que a repetição de determinadas
ações, já se encontraria codificada semioticamente e imbuída de poder, e
daí a idéia de que todo e qualquer agenciamento é realizado sempre dentro
de uma matriz, ainda que na tentativa de desconstruí-la.

Para Butler, identidade não é algo que se tem, mas algo que se faz – o
efeito de uma ação altamente regulada, mas que enquanto processo ultrapassa
as categorias opressoras de identidade previamente existentes. Ao mesmo
tempo, essas mesmas categorias exercem poder regulatório sobre qualquer
ação que tente dar conta delas, isto é, existe um paradoxo que permeia a
questão da identidade, que também passa pelo debate do construtivismo[10]
versus fenomenologia[11], que faz parecer com que todas estas questões
sejam indissociáveis – a própria Butler reconhece que não é possível passar
por cima das categorias de identidade e dos riscos que elas representam
(BLOCKER, 1999, p. 30). Deste modo:

"Acho que devemos ir além e desenvolver uma linguagem
crítica que possa acomodar tanto a estética do
desaparecimento quando as políticas de identidade e poder
que são centrais nesses trabalhos. Trazer o foco para as
premissas teóricas do trabalho invoca a performatividade
tal como foi definida de diferentes maneiras no campo dos
estudos da performance. Para meus propósitos, o
performativo descreve uma classe particular de ações que
derivam e são configuradas dentro de uma rede de relações
de poder. Como a noção mais comum de performance, a sua
ênfase na liminaridade sobre a legibilidade e na mudança
sobre a fixidez é eficaz ao colocar uma ênfase
interpretativa nas ações mais do que em objetos
comodificáveis. (BLOCKER, 1999, p. 24)



Com base nessas idéias, pode-se pensar em como Mendieta, através do
seu trabalho performático, esboça identidades outras e re-articula aquelas
que lhe foram previamente atribuídas no momento em que executa uma
intervenção sobre corpo e sua imagem. Quais são os efeitos dessas ações
pontuadas, que não podem ser capitalizadas ou comodificadas senão através
dos seus registros em fotos e em vídeo, que não são nada além de índices da
sua obra? O que o fato delas se perderem no tempo, desaparecerem, diz sobre
a natureza da(s) identidade(s) de Mendieta? Quando se fala em construção de
identidades outras, não se trata de identidades falsas, de um travestir-se
de algo diferente daquilo que se é. Se pensarmos que não existe de fato uma
essência que nos constitui, que os nossos contornos se estabelecem através
da repetição de ações reguladas tanto pela rede de poder que nos atravessa
quanto pela nossa agência sobre o que nos é imposto, então não há nada por
debaixo ou escondido sob as figuras que se apresentam nos trabalhos de
Mendieta. Se ela deforma o seu corpo com uma placa de vidro, por exemplo, o
que há ali não é um corpo que foi deformado por uma placa de vidro, mas um
outro corpo, com outras formas, que só existe em relação àquela placa. Se
está coberta de penas e chama o trabalho de "Transformação em Pássaro",
então naquele instante ela passa a ser um pássaro, mas um pássaro que o é a
partir da singularidade[12] determinada por Mendieta. Ainda, se estendermos
essa interpretação para identidades de gênero e raça, pode ser que não seja
possível compreendê-las através de um argumento exclusivamente
construtivista ou, ao invés disso, exclusivamente fenomenológico. São
instâncias que dizem respeito tanto à experiência do grupo quanto à
experiência do indivíduo, e que ao mesmo tempo em que têm efeitos concretos
sobre ambas, sabe-se também que não são mais do que nomes dados a processos
que estão em constante transformação. No momento em que são enunciados,
devido à sua plasticidade, perde-se algo de fundamental sobre eles, mas
também são estabelecem-se limites que precisam ser compreendidos antes de
serem rompidos.








































3 - PRIMEIROS TRABALHOS




Fig. 1 - Sem Título (Impressões de Vidro Sobre Corpo), 1972



Em Untitled (Glass on Body Imprints) [Sem Título (Impressões de Vidro
Sobre Corpo)], Ana Mendieta usa uma placa de vidro para deformar partes do
seu corpo, dando continuidade às investigações acerca de transformações e
intervenções sobre seus próprios contornos registradas em fotografias. Seu
rosto, seus seios, ventre, nádegas e costas são esmagados contra uma placa
de vidro que a própria artista manuseia, produzindo imagens que podem ser
entendidas como grotescas – ou monstruosas, que, nesse caso, é um termo bem-
vindo. Nesse sentido, dentre algumas possibilidades de interpretação do
trabalho, são duas as mais difundidas: a mais óbvia é a da subversão da
imagem do corpo dito feminino que é definido pela subjetividade dominante
como um corpo que deve belo, e ainda, belo segundo padrões determinados por
uma estética à qual mulheres racializadas, como Mendieta, dificilmente
correspondem. Ao deformar a si mesma, ela recusa essa determinação.

Uma outra possibilidade é a de pensar a placa de vidro como uma força
coercitiva que age sobre esse mesmo corpo e o determina, isto é, como uma
representação do poder e o corpo social que o exerce. No entanto, levando
em conta a trajetória Mendieta e seu posicionamento a respeito dessas
mesmas questões, cabe entender o corpo não enquanto apenas uma superfície
de inscrição sobre o qual o poder incide – ainda que ele a seja também –
mas considerar sua capacidade de agência acerca do que lhe é determinado.
Até que ponto os corpos podem ser colonizados? Não se pode descartar o fato
de que é Mendieta quem segura a placa e que, ao mesmo tempo em que a placa
deforma seus seios, por exemplo, seus seios também modificam os contornos
da placa no instante em que são pressionados contra ela. Além disso, como
aponta Lynda Avendario, o seu impulso transgressor se revelaria também na
própria transparência do vidro, que faz com que esse corpo seja visto em
meio ao processo de deformação. Ao considerar a ação de Mendieta como a
construção de um corpo, levaremos em conta de que essa construção não se
trata de uma dinâmica onde sujeito e objeto estão previamente determinados,
e sim de um processo de repetição e reiteração de normas regulatórias que
resultam no que a autora chama de materialização.

(...) aqui não mais seria adequado alegar que o termo
"construção" pertence à função gramatical do sujeito,
porque a construção não é nem um sujeito nem a ação do
sujeito, mas sim um processo de reiteração através do qual
tanto o sujeito quanto suas ações aparecem. Não existe um
poder que age, mas um agir reiterado que é o poder em sua
persistência e instabilidade. O que eu proporia no lugar
dessas concepções de construção é um retorno à noção de
matéria, não enquanto um lugar ou superfície, mas enquanto
processo de materialização que se estabiliza com o tempo
para produzir o efeito de limite, fixidez e superfície ao
qual chamamos de matéria. Penso que a ideia de que a
matéria tenha estado sempre materializada deve ser pensada
em relação aos efeitos produtivos e materializantes do
poder regulatório no sentido Foucaultiano. (BUTLER, 1993,
p. 112)


Com isso, temos a ideia de que esse processo de construção está
diretamente relacionado com ações localizadas no tempo. Quando Butler fala
em materialização, ela a descreve como sendo regida por normas regulatórias
que por sua vez determinam quais corpos são viáveis e quais não são,
produzindo assim corpos abjetos – marginalizados – que pertencem a um
"campo de deformação" e que por oposição reafirmam e justificam a norma que
os exclui e invisibiliza. Então, se Mendieta realiza uma série de ações
performáticas ao longo de vinte anos de pesquisa, podemos pensar que ela
está de fato operando sobre seus próprios contornos e modificando a sua
experiência do real, o seu modo de estar no mundo. Isso não quer dizer que
ela tenha adquirido autonomia com relação ao sistema na qual estava
inserida, mas que foi capaz de assumir alguma agência sobre si mesma e
sobre seu entorno.



Fig. 2 - Sem Título (Sangue e Penas), 1974

Untitled (Blood and Feathers #2) [Sem Título (Sangue e Penas #2)] é um
curta de três minutos e meio gravado nas margens de um rio em Old Man's
Creek, que fica na comunidade Sharon Center em Iowa - filmado em Super 8 e
fotografado também em slides 35mm. Na abertura do registro, Mendieta
encontra-se de pé, nua, nas margens do rio. Logo depois de olhar
diretamente para a câmera, ela levanta uma garrafa na altura dos ombros e
derrama sangue sobre si mesma, sobre seus seios, abdômen e pernas, e em
seguida pelas suas costas. Depois de jogar fora a garrafa já vazia, deita-
se sobre um monte de penas brancas, rolando de um lado para o outro até que
seu corpo esteja coberto por elas, coladas em sua pele pelo sangue.
Mendieta se levanta lentamente, os braços estendidos para longe do corpo,
mas de cotovelos flexionados como se fossem asas, e mantém a posição ainda
por um tempo antes que o filme termine.
Este trabalho, realizado em 1974, remete a um outro momento da sua
pesquisa – um momento em Mendieta, já havendo iniciado seu trabalho com as
silhuetas, volta-se para o que alguns críticos chamam de retorno às
origens, à ancestralidade que permeava habita a sua terra natal. Mais
precisamente, ela passou a ter como referência estética e epistemológica a
cultura Taino, povo indígena que habitava o território cubano antes de
terem sua população dizimada pelos espanhóis, e a santeria, culto religioso
afro-cubano similar ao candomblé afro-brasileiro, trazido pelos negros
escravizados cujos descendentes são hoje a maioria da população de Cuba.
Para a santeria, o sangue e as penas são elementos ritualísticos
fundamentais que representam respectivamente, o fluxo da vida – sagrado –
que condiciona a existência, e a proteção espiritual. Talvez em parte
influenciada por Octavio Paz e seu fascínio pelos processos iniciáticos e
culturas originárias, Mendieta via na Santeria uma percepção da natureza
enquanto sagrada, que em muito dialogava com seu próprio processo
artístico.

"A minha arte é fundamentada na crença de uma única
energia universal que corre através de tudo: do inseto
para o homem, do homem para o espectro, do espectro para a
planta, da planta para a galáxia. Meus trabalhos são as
veias irrigatórias desse fluido universal. Através delas
ascende a seiva universal, as crenças originais, as
acumulações primordias, os pensamentos inconscientes que
animam o mundo." (MENDIETA, Ana)




Quando Mendieta fala em fluxo vital, ela evoca um outro conceito
também fundamental para a santeria, e por assim dizer da herança iorubá no
território latino-americano, que é o de asé. É o asé que é transmitido pelo
sangue, é o asé que sustenta e movimenta o mundo. No entanto, ao falarmos
de ancestralidade, em tradição e em povos originários, devemos pensar
também na relação que se estabelece com essas questões. Sabe-se que a
oposição ancestralidade x contemporaneidade, tradição x inovação, natureza
x cultura vem caindo por terra nas últimas décadas. As culturas originárias
das quais Octavio Paz tanto fala ainda estão vivas e em movimento, embora
permanentemente ameaçadas pelo processo de globalização e conseqüente
esmagamento das suas respectivas singularidades. A santeria e o candomblé
são religiões contemporâneas. Dito isso, o que Mendieta fez em trabalhos
não foi resgatar nada, mas recorrer a outras cosmogonias e visões de mundo
diferentes e politicamente resistentes aos modelo dominantes, inclusive e
sobretudo na arte.
Neste trabalho, como em outros que o precederam, Mendieta se faz
passar por uma transmutação, que carrega em si uma série de significados,
onde o próprio ato de transmutar-se é a sua obra. Quando ela olha pela
primeira vez para a câmera, está ao mesmo tempo reconhecendo o espectador e
a máquina (uma provável influência do movimento Fluxus[13]), e ao concluir
a ação em uma pose estática, recuperando o olhar para quem a observa, é
como se ocorresse – ou de fato ocorre – uma dilatação no tempo através da
sua permanência ali, naquele mesmo registro, e o seu corpo-imagem-pássaro
então assume contornos e materializa-se por alguns segundos antes que o
filme acabe. O tempo aqui é, mais uma vez, uma questão fundamental para a
compreensão do que acontece quando Mendieta assume outras formas, e como
ela o faz, assim como do processo de construção identitária defendido por
Butler.





Fig. 3 - Imagen de Yagul (Imagem de Yagul), 1973




O trabalho de Mendieta com as silhuetas se estendeu de 1973 a 1980. A
primeira delas, Silueta – Imagen de Yagul (Silhueta, Imagem de Yagul), foi
executada em Yagul, Oaxaca, para onde a artista viajou com seu professor e
companheiro Hans Breder, junto com um grupo de estudantes do programa de
Intermedia da Universidade de Iowa. Aqui, Mendieta está deitada no interior
de uma tumba Zapoteca, uma das civilizações pré-hispânicas que habitou a
região, com flores brancas espalhadas sobre seu corpo – que se faz presente
aqui em uma das suas poucas aparições na série das silhuetas.
Posteriormente, ela passou a usar um molde de compensado para marcar seus
contornos sobre diferentes superfícies. Assim, o seu corpo-imagem passa a
ser representado enquanto rastro, enquanto o índice da existência de algo
que já não está mais lá. Essa interpretação pode, de todo modo, ser
estendida à esta e às outras ações performáticas da série onde Mendieta de
fato se coloca em cena, porque seguirem a mesma lógica do desaparecimento:
marcando um lugar no espaço para depois deixá-lo, no que Blocker chama de a
"ontologia do desaparecimento" (BLOCKER, 1999, p. 179), que a autora
relaciona com pontos relativos à trajetória da artista – o exílio, as
constantes viagens. Porém, mais uma vez, convém atentar para a redução de
tantos possíveis significados do trabalho de Mendieta a uma questão
exclusivamente autobiográfica. Ao mesmo tempo em que sim, o desterro possa
ser um dos vetores que atravessam o imaginário das silhuetas, podemos pensá-
lo como não só como o desterro de Ana Mendieta, mas o desterro enquanto
experiência humana, enquanto uma dimensão do estar no mundo.
A escolha deste local muito tem a ver com a relação que Mendieta
construiu com o México, um território marcado pela existência de culturas
indígenas que precederam a colonização espanhola e que a remetiam às suas
próprias origens híbridas. É uma imagem que trata de origem, de morte e
nascimento, dois aspectos indissociáveis tanto na perspectiva das culturas
originárias da meso-américa, quanto da santeria cubana e do povo Taino
(indígenas que habitavam o território cubano no período da chegada dos
espanhóis). Fala-se de origem, porque Mendieta descreve seu corpo nu como
despido de história, de marcas que o localizem no tempo e no espaço – de
onde ele vem ou a quem ele pertence (exceto pelo fato de ser,
indiscutivelmente, um corpo feminino), deitado dentro de um túmulo que pode
ser, ao mesmo tempo, interpretado como um útero. A vegetação que parece
crescer sobre ele, por sua vez, parece um índice de passagem do tempo. Não
de um tempo histórico/linear, como Mendieta fez questão de ressaltar, mas
de um tempo-entidade, mais próximo de Iroko[14], ou de Chronos[15].

Além disso, Mendieta levanta uma questão que permeia toda a série das
Siluetas que é a da relação desse corpo com a terra – que foi matéria prima
de mais de 200 dos seus trabalhos (BLOCKER, 1999). Ela descrevia parte da
sua obra enquanto earth-body sculptures (esculturas do corpo e da terra) –
com as quais estabelecia um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino
através de seus próprios contornos.


Estive conduzindo um diálogo entre a paisagem e o corpo
feminino (baseada na minha própria silhueta). Eu acredito
que isso foi um resultado direto de ter sido exilada da
minha terra natal durante a minha adolescência. Estou
tomada pelo sentimento de ter sido retirada do útero. A
minha arte é a forma de re-estabelecer os laço que me unem
ao universo. É um retorno à fonte maternal. (MENDIETA.
Ana)


Para Mendieta a terra assumia um caráter de útero, a fonte
fundamental da vida, terra natal, origem pré-histórica, natureza, paisagem,
conexão com a ancestralidade, lugar de enterro e um ser senciente.
(BLOCKER, 1999, p. 105) Essas eram noções anteriores a Mendieta e que,
entretanto, não foram apenas reiteradas por ela, mas re-significadas.
Através da relação estabelecida com o termo "feminino", a noção de "terra"
seria da mesma forma construída e regulada por determinadas normas – sendo
assim, Blocker prossegue descrevendo a terra enquanto um campo semiótico
que, devido aos significados que foram atribuídos a ele, pode representar
também o processo de formação de identidade.
Neste contexto, o trabalho de Mendieta foi e ainda é criticado por
ser essencialista no que diz respeito às representações do feminino
justamente na sua relação com a natureza e, especificamente, com a idéia de
terra enquanto a Grande Mãe, ou a Árvore da Vida, por exemplo – crítica
feita por feministas norte-americanas, fazendo uso argumentos
construtivistas para questionar a existência de uma essência genérica que
responda à pergunta do que é ser, de fato, uma mulher. No entanto, a
questão é que a A 'Grande Mãe', a deusa de quem Mendieta fala não é a mesma
deusa sem nome que passou a ser evocada por parte do movimento feminista em
meados da década de 70. Mendieta se refere a divindades específicas do
panteão da santeria cubana (Yemayá, ou Iemanjá, por exemplo) e dos povos
Taino (Itiba Cahubaba). Algumas mulheres, entretanto, passaram a cooptar
essas mesmas representações como o arquétipo de uma deusa genérica – e
embranquecida. Existe uma implicação política muito distinta daquela
prevista pelas adeptas do 'sagrado feminino' quando se evoca estas imagens
que por sua vez têm origem em cosmogonias que resistiram à colonização e
que partem de outras premissas para significar termos que boa parte do
pensamento feminista norte-americano e europeu só foi capaz de compreender
através da sua própria perspectiva universalizante.











CONSIDERAÇÕES FINAIS



Esta pesquisa sobre a vida e parte da obra de Mendieta começou a
partir de alguns questionamentos a respeito dos limites de práticas
artísticas em suas dimensões políticas, bem como do funcionamento das
estruturas de poder que envolvem as problemáticas de gênero e de raça. Além
de perguntas, havia a princípio também algumas afirmações – das quais
muitas ainda permanecem – construídas acerca de uma experiência que, assim
como os trabalhos de Mendieta, e como qualquer outra experiência, não diz
respeito somente a mim. Dessa forma, eu já tinha então algumas pistas sobre
o modo como o poder é exercido através dos nossos corpos, sobre como
vetores de força de fato podem determinar nossos contornos e que as
imagens, ou antes, a regulação do imaginário coletivo e individual tem aí
uma função fundamental. Compreendia também, de alguma forma, a necessidade
de construirmos alguma autonomia nesse campo do corpo e da imagem, ou do
corpo-imagem.
Durante esses meses de trabalho, ainda que parte dessas questões
fizeram-se de alguma forma mais consistentes, havia outras que pareciam
desintegrar no mesmo instante em que eram examinadas. Mendieta opera sob
uma política de desaparecimento. A relação que suas ações estabelecem com o
tempo e com a história faz com que não seja possível apontá-las como
estando neste ou naquele lugar. Ela não só está fora dos livros de história
da arte e dos museus, como o que resta do seu trabalho são registros em
imagens que podem ser apagadas, perder a cor, como as silhuetas que fazia
sobre, inevitavelmente desfeitas pela ação do tempo. Permanecer não-dita e
invisível, no entanto, é parte da potência da sua obra – talvez por essa
relação, como dito anteriormente, com a natureza das questões identitárias
que marcaram a sua vida. O extenso imaginário que Ana Mendieta construiu
nas suas ações performáticas tem sua força naquilo que não somos capazes de
apontar, ou de explicar. São como espectros que aparecem num determinado
instante, para depois desaparecer e que então reverberam por tempo
indeterminado. Mais uma vez, aqui o tempo permanece uma entidade
desconhecida, mas que determina todo esse processo. Se é através dele que a
repetição delimita contornos, e se entre cada repetição há um intervalo
maior ou menor – que pode ser imperceptível, como n'uma lâmpada acesa –
então existe aí uma brecha, uma fenda temporal que pode ser alargada, sobre
a qual podemos operar e subverter a mesma lógica que condiciona e regula a
nossa existência.


Essas perguntas acerca da natureza da materialidade do corpo e da
natureza plástica do tempo não só são pertinentes à questão das construções
identitárias, como parecem ser anteriores a ela, como se tivessem em si
alguma coisa de origem – origem essa também já citada por Mendieta, quando
ela fala de uma história que precede e transcende a própria história. Não
no sentido platônico, mas como contado, por exemplo, na cosmogonia iorubá,
onde o tempo é circular, o retorno é uma constante e, paradoxalmente, as
transformações também. Portanto, a partir desta noção de circularidade
construída sobre/através das repetições que delimitam e estruturam a
matéria, por sua vez em estado permanente de mutação, é possível pensar
para além da colonização dos territórios políticos e sensíveis, no sentido
da sua descolonização através da articulação de outras resistências
orientadas pelo esgarçamento de fendas, do habitar das fronteiras e dos
entre-lugares do corpo e do tempo.































BIBLIOGRAFIA

ANZALDUA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. São Franciso:
Aunt Lute Books, 1987.


AVENDAÑO, Lynda. Trazas de Cuerpo-huellas que obliteran prontas. Madrid,
2012. Disponível em http://artglobalizationinterculturality.com/wp-
content/uploads/2012/11/Lynda-Avendanio_Ana-Mendieta.pdf


BUTLER, Judith. Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova
Iorque: Routledge, 1993. 288 p.


BLOCKER, Jane. Where is Ana Mendieta? Identity, Performativity and Exile.
Carolina do Norte: Duke University Press. 1999. 188 p.


ROLNIK, Suely e GUATARRI, Felix. Micropolitica: Cartografias do Desejo. Rio
de Janeiro: Vozes, 2013. 439 p.

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[1] Carlos Maria de Rojas y Cruzat (1862 – 1945): Um dos líderes na guerra
da independência de Cuba
[2] Tentativa frustrada de invasão do sul de Cuba, coordenada pela CIA em
acordo com um grupo paramilitar de exilados cubanos anticastristas.
[3] Theodor Adorno (1903 – 1969): filósofo, sociólogo, musicólogo e
compositor alemão, co-autor da "Dialética do Esclarecimento."
[4] Movimento artístico surgido nos Estados Unidos durante o pós-guerra sob
influências do expressionismo alemão e das escolas abstratas da Europa,
como o Futurismo, Bauhaus e Cubismo Sintético.
[5] Obras realizadas através de espaços e recursos naturais.
[6] Roland Barthes (1915-1980): escritor, sociólogo, crítico literário,
semiólogo e filósofo francês.
[7] Conjunto de investigações filosóficas contemporâneas que, negando os
princípios teóricos do estruturalismo, além da forte influência de
Nietzsche, propõem um pensamento de recusa aos fundamentos tradicionais da
filosofia, como as idéias de verdade, objetividade e razão.
[8] Movimento ocorrido entre os anos de 1955 e 1968, que tratava-se da luta
por reformas sociais contra a segregação racial nos Estados Unidos.
[9] Perspectiva conceitual que analisa efeitos políticos, filosóficos,
artísticos e literários causados pela colonização nos países colonizados.
[10] Perspectiva epistemológica que entende todo conhecimento, e também a
realidade, como construções fundamentadas na percepção humana, na
experiência social e nas convenções que daí derivam.
[11] Perspectiva epistemológica que entende que a realidade consiste em
objetos e eventos tal como são percebidos e entendidos pela consciência
humana, sob a perspectiva da primeira pessoa, e não da experiência social.
[12] Relação de expressão e de criação na qual o indivíduo se reapropria
dos componentes da subjetividade. (ROLNIK apud GUATARRI, 2005, p. 42)
[13] Grupo Fluxus: rede internacional e interdisciplinar, movimento de
artistas, poetas, compositores e designers dos anos 60 e 70 que faziam
experimentações artísticas através da síntese de diferentes mídias.
[14] Iroko: Orixá, ou divindade iorubá, que está associado ao tempo e à
árvore conhecida como gameleira branca.
[15] Chronos: deus da mitologia grega também associado ao tempo.
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