ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – FUNDAMENTOS E ATUALIDADES DE CRIMINOLOGIA CRÍTICA CANOAS, 2015

June 6, 2017 | Autor: Marco Scapini | Categoria: Michel Foucault, Criminologia, Filosofía
Share Embed


Descrição do Produto



ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – FUNDAMENTOS E ATUALIDADES DE CRIMINOLOGIA CRÍTICA

CANOAS, 2015

2033

CONTROLE PUNITIVO E CONTEXTO BIOPOLÍTICO: REVISITANDO O REALISMO MARGINAL DE EUGÊNIO RAUL ZAFFARONI

Fabricio Martinatto da Costa,

RESUMO: A noção de biopolítica, desenvolvida por Michel Foucault e, mais recentemente, Giorgio Agamben, faz referência à formação de uma sociedade em que a política é dirigida ao controle da vida em todos os seus aspectos. Nesse sentido, o presente artigo pretende levantar a possibilidade de inserir o discurso jurídico-penal nesse contexto analítico, a fim de compreendê-lo como um importante elemento que compõe o conjunto de procedimentos de governamentalidade das populações, constituindo estratégias de gestão populacional e de administração dos ilegalismos levadas a cabo pelos dispositivos de segurança. Nesse sentido, a construção das formulações técnico-jurídicas do direito penal processa-se em torno da necessidade de preservação do Estado Democrático de Direito e das formas de vida legitimadas por tal paradigma sóciopolítico. Os dispositivos de exceção passam, assim, a constituírem-se em mecanismos de garantia da própria democracia: o direito penal atua como instrumento de garantia, como instrumento que reduz (ao mesmo tempo em que autoriza e fundamenta) a incidência do poder punitivo, sendo submetido a uma racionalidade governamental que opera a partir da chave da economia (avaliação dos efeitos, se positivos ou negativos), e não da legitimidade jurídicopolítica.Paralelamente a tal abordagem, constata-se que as propostas deslegitimadoras do poder punitivo, não-abolicionistas, como a do realismo marginal de Eugênio Raul Zaffaroni, pretendem a contenção do exercício do poder de punir, através de uma reformulação do discurso jurídico-penal. O estudo do discurso jurídico-penal a partir da formação de uma sociedade biopolítica, entretanto, evidencia a necessidade de se buscar novos rumos para a perspectiva deslegitimante, sob pena de se perder o caráter radical que dá renovado fôlego à análise do fenômeno criminal. PALAVRAS-CHAVE: controle punitivo; deslegitimação do poder punitivo; funções do direito penal; realismo marginal; biopolítica. 1 INTRODUÇÃO

Não parece exagero afirmar que o problema levantado pela noção de biopolítica é incontornável, caso se pretenda compreender minimamente as

2034

implicações éticas e políticas dos dispositivos de poder na atualidade. A vida humana tornou-se não mais o objetivo último da intervenção política, mas sim um recurso para gerir populações, um instrumento de governo. Mais do que as disciplinas, os mecanismos biopolíticos reformulam a relação entre vida e política, de modo que o mero viver acaba por se equivaler a uma técnica de administração/gerência de recursos humanos. Efetivamente, o cálculo dos mecanismos biopolíticos é feito para preservar e cuidar da vida, quando útil, e abandoná-la, quando inútil. O presente artigo pretende demonstrar a pertinência de inserir os discursos jurídico-penais no contexto analítico supra exposto. Contexto este desenvolvido por autores como Michel Foucault e Giorgio Agamben. Diante de um déficit no diálogo entre biopolítica e saber jurídico-penal, a maioria dos trabalhos que adotam uma análise foucaultiana da atuação do direito penal contemporâneo acabam por sonegar veementemente os estudos acerca dos dispositivos biopolíticos, ficando apenas no já tão debatido tema dos dispositivos disciplinares. É necessário advertir desde já, portanto, que não se parte de uma cisão inexistente entre dispositivos do poder disciplinar e dispositivos

da

biopolítica.

Defende-se,

ao

contrário,

uma

relação

de

complementaridade, tal como referido por Foucault. Por seu turno, assiste-se, contemporaneamente, à emergência de uma dogmática jurídico-penal voltada para as consequências (HASSEMER, 2008), em que se exige, para sua legitimidade, além de uma conformidade normativa, uma conformidade efetiva sobre o mundo, seja para proteção de bens jurídicos, seja para prevenção (geral e especial) ou mesmo para garantir a aplicação racional, segura e justa do direito, esta última uma clara herança moderna. Qualquer que seja a orientação epistemológica das vertentes dogmáticas, as categorias que formam o arcabouço discursivo do direito penal estão orientadas para, nos termos de Vera Regina de Andrade (1994, p. 262), “gestar a segurança jurídica na administração da Justiça Penal”. Trata-se, portanto, de compreender o papel das teorias

penais

na

manutenção

ou

não

da

estratégia

governamental

contemporânea expressada pelos mecanismos biopolíticos. Diante disso, passar-se-á a considerar a proposta deslegitimadora do poder punitivo, levada a cabo, na América Latina, pelo Realismo Marginal do

2035

penalista argentino Eugênio Raul Zaffaroni que, em síntese, pretende a contenção do exercício do poder de punir, através de uma reformulação do discurso jurídicopenal. A questão, aqui, fundamentalmente será a de averiguar as limitações passíveis de serem encontradas quando se insere o Realismo Marginal na perspectiva biopolítica: seria, ainda, pertinente sustentar o direito penal como instrumento destinado à contenção do poder punitivo, diante da emergência de uma estratégia de poder que restringe o político à administração da vida humana? Quanto poderia resistir o direito penal para efetivamente afastar-se dos mecanismos biopolíticos e formular um discurso dirigido à contenção das arbitrariedades do poder punitivo?

2 A BIOPOLÍTICA, A GOVERNAMENTALIDADE, OS DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA: A LÓGICA DO DIREITO PENAL “GARANTISTA”

Michel Foucault, nas aulas proferidas no Collège de France, desenvolveu, especialmente entre 1975 e 1980, o problema da biopolítica. Em defesa da sociedade, Segurança, território e população e Nascimento da biopolítica são os cursos de Foucault que darão ênfase à questão da biopolítica, vista como “a nova tecnologia que [...]se dirige a multiplicidade dos homens” (FOUCAULT, 1999, p. 289). Tecnologia esta que, ao mesmo tempo em que se diferencia, é complementar às técnicas disciplinares anteriormente estudadas pelo filósofo francês. A noção foucaultiana de biopolítica é desenvolvida especialmente em decorrência do método que o autor adota para estudar as relações de poder. Segundo Foucault, não é possível compreender as relações de poder a partir de uma teoria da soberania, eis que tal teoria pressupõe a existência de um sujeito submetido a outro sujeito, um poder unitário e fundado em uma legitimidade transcendente. Foucault (1999, p. 51), ao contrário, trabalha com o que chama de “operadores de dominação”. Isso quer dizer que não são os poderes que derivam da soberania; a análise não parte de elementos preliminares, mas sim da “própria relação de poder, da relação de dominação no que ela tem de factual, de efetivo, e de ver como é essa própria relação que determina os elementos sobre os quais

2036

ela incide” (FOUCAULT, 1999, p. 51). O que interessa para Foucault são, portanto, “as relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos” (FOUCAULT, 1999, p. 51) e não procurar o fundamento pelo qual os sujeitos se submetem à sujeição. A perspectiva metodológica acima delineada permite a Foucault problematizar um dos atributos fundamentais da teoria clássica da soberania, qual seja, o direito de vida e de morte, bem como a transformação dos mecanismos de poder operada especialmente nos séculos XVII, XVIII e XIX. Trata-se de uma modificação do poder soberano de “fazer morrer e deixar viver” por um poder de “fazer viver e deixar morrer”, a biopolítica. Foucault argumenta que essa nova tecnologia de poder opera em um nível diferente daquele em que se exerce o poder disciplinar. Uma vez que “a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”, a biopolítica, por seu turno, se dirige a multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 1999, p. 289).

Trata-se, portanto, de um mecanismo de poder que procura dar conta de problemas relacionados à população e às massas. Problemas esses advindos de uma explosão demográfica e industrial que demandava um certo controle através de órgãos complexos de coordenação e centralização. Esta nova tecnologia de poder

seria,

portanto,

complementar

aos

mecanismos

disciplinares

operacionalizados sobre indivíduos (FOUCAULT, 1999). Entretanto,

diante

da

expressão

“fazer

viver

e

deixar

morrer”,

característica essencial da biopolítica, surge a questão: “como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências?” (FOUCAULT, 1999, p. 304). Foucault, então, argumenta que a ideia de racismo, apesar de não ter sido inventada com esse propósito, emerge como o mecanismo que permitirá decidir

2037

quem deve morrer e quem deve viver. É dessa forma que os Estados soberanos passam a utilizar mecanismos biopolíticos como meio eficaz de exercício do poder: Se o poder de normalização quer exercer o velho direito soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo. E se, inversamente, um poder de soberania, ou seja, um poder que tem direito de vida e de morte, quer funcionar com os instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da normalização, ele também tem de passar pelo racismo. (FOUCAULT, 1999, p. 306).

O termo racismo não é empregado, aqui, simplesmente na sua concepção étnica, mas deve ser compreendido como todo e qualquer mecanismo de exclusão do diferente destinado a assegurar a vida. Esse movimento, portanto, consistente num exercício de seletividade e eliminação, permite delinear o princípio racista, do qual o exercício do biopoder é dependente: “a morte dos outros e o fortalecimento biológico da própria pessoa, na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população, na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva” (FOUCAULT, 1999, p. 308). O paradoxo que se constata é que a exclusão e consequente morte do outro, operada pela biopolítica, fortalece o sentimento de ser coletivo, social e plural. Nesse mesmo sentido, é possível fazer um paralelo com o sentimento de comunidade inferido por Zygmunt Bauman, nos seguintes termos: A comunidade realmente existente será diferente da de seus sonhos — mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim, dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio. E, num toque final de ironia, é só por essa belicosidade, gritaria e brandir de espadas que o sentimento de estar em uma comunidade, de ser uma comunidade pode ser mantido e impedido de desaparecer. O aconchego do lar deve ser buscado, cotidianamente, na linha de frente. (BAUMAN, 2001, p. 22).

Realizando o movimento de inserção do discurso jurídico-penal legitimante na perspectiva biopolítica, é possível afirmar que, se é o saber disciplinar (poder sobre o corpo) que efetiva as práticas punitivas nas instituições, por outro lado é a biopolítica que dá novo sentido ao poder punitivo, ao permitir que a vida seja controlada sob a justificativa da segurança, da proteção aos bens jurídicos, ou da efetivação dos direitos fundamentais. É a biopolítica que confere o espaço legítimo de atuação do poder punitivo, a partir de todo um aparato discursivo que procura, simultaneamente, assegurar e aniquilar a vida.

2038

A biopolítica, portanto, consiste em uma nova estratégia de governo, que não age diretamente sobre os indivíduos, mas que “lida com estes fenômenos da política [...], que são os interesses ou aquilo por intermédio do qual determinado indivíduo, determinada coisa, determinada riqueza, etc., interessa aos outros indivíduos ou à coletividade” (FOUCAULT, 2008, p. 62). Exemplo de tal estratégia, segundo Foucault, seria o princípio da moderação das penas: entre o crime e o poder soberano de punir interpõe-se uma “fina película fenomenal” que sustenta o interesse pela punição e sobre a qual a razão governamental biopolítica pode agir: E com isso a punição aparece como devendo ser calculada em função, é claro, dos interesses da pessoa lesada, da reparação dos danos, etc. Doravante, porém, a punição deve arraigar-se apenas no jogo dos interesses dos outros, do seu meio, da sociedade, etc. Interessa punir? Que interesse há em punir? Que forma a punição deve ter para que seja interessante para a sociedade? Interessa supliciar ou o que interessa é reeducar? E reeducar como, até que ponto, etc., e quanto vai custar? A inserção dessa película fenomenal do interesse constituindo a única esfera, ou antes, a única superfície de intervenção possível do governo (FOUCAULT, 2008, p. 63).

Outro exemplo de implementação desta estratégia biopolítica seria a utilização de análises eminentemente econômicas para decifrar fenômenos não econômicos – a criminalidade, por exemplo –, como fizeram os neoliberais da Escola Econômica de Chicago. Complementando os argumentos inferidosem Vigiar e Punir, Foucault afirma que a suavização das penas sugerida por essa nova estratégia de governo – da qual Beccaria pode ser considerado o precursor – não está associada a qualquer princípio de humanidade ou de sensibilidade diante das formas antigas de punição, como o suplício. Trata-se, segundo Foucault, de uma análise econômica da política, uma “economia política” do funcionamento da justiça penal. A política penal, assim, não está dirigida à impossível missão de fazer desaparecer o crime, mas de intervir no “mercado do crime e em relação à oferta de crime”, no intento de limitar essa oferta. A intervenção representa um custo que, todavia, não poderá superar nunca o custo da criminalidade cuja oferta se pretende limitar (FOUCAULT, 2008). Outros problemas, portanto, são inseridos na ordem do direito penal, que não mais se limita a dizer quais condutas devem ser consideradas crimes e como puni-las. Trata-se, agora, de uma gestão da criminalidade, aquilo que Foucault

2039

denomina de “questão de penalidade”, ou seja, gerir a quantidade de delitos que devem ser permitidos e a quantidade de pessoas que devem ser deixadas impunes (FOUCAULT, 2008, p. 350). Poder-se-ia dizer que, tal como os reformadores penais do século XVIII formularam uma verdadeira dogmática jurídico-penal destinada a dar um fundamento ao direito/poder de punir do Estado, ainda hoje é possível constatar nos discursos legitimadores do direito penal a tentativa de instituir uma economia política da justiça penal. É nesse sentido que Cesar Candiotto elabora interessante estudo sobre a normalização e a regulação da delinquência em Michel Foucault. Em Vigiar e Punir, Foucault apresenta a prisão como uma forma de punição que permite operacionalizar as disciplinas, produzindo indivíduos dóceis e úteis. Entretanto, a delinquência disciplinada na prisão deve servir também a outros interesses, como a produção de riqueza. Assim, a questão não é eliminar a delinquência, mas normalizá-la, torná-la economicamente útil, politicamente favorável ao lucro fácil e escuso. O delinquente não seria o efeito negativo do fracasso prisional, mas o resultado positivo de uma sociedade burguesa que se alimenta da acumulação legal e ilegal do capital (CANDIOTTO, 2012, p. 22).

Daí a conclusão, nada ortodoxa, mas muito oportuna, de que o policiamento e o encarceramento não são mecanismos de combate à delinquência, mas são produtores da insegurança, eis que normalizam e regulamentam a delinquência para gerir as manifestações políticas e sociais, legitimando as muitas vezes ilegais atuações do estado e de seus aparelhos repressivos (CANDIOTTO, 2012). À conclusão semelhante chega Giorgio Agamben, quando afirma, na linha de Deleuze, que, mais do que disciplinar, o Estado contemporâneo destina-se a gerir e controlar, e cita um exemplo atual: “depois da violenta repressão das manifestações contra o G8 de Gênova, em julho de 2001, um funcionário da polícia italiana declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas gerisse a desordem” (AGAMBEN, 2014). O delinquente é duplamente fabricado e gerido, seja pelos dispositivos disciplinares, em espaços como a prisão, seja através dos dispositivos de segurança, quando está fora dos muros do cárcere. Essa conclusão, iniciada em

2040

Vigiar e Punir e complementada em Segurança, Território e População, permite a Foucault romper com o binarismo segurança/insegurança: os dispositivos de segurança não pretendem acabar com a insegurança. Segundo Candiotto (2012, p. 23), a delinquência passa a ser governada, pois a permissividade da circulação da delinquência está na raiz da racionalização em torno dos discursos sobre a ordem pública, que a produção da insegurança é constituinte do discurso em torno das estratégias securitárias. Ao pensar assim, ele [Foucault] rompe com a lógica dicotômica e binária segundo a qual a ordem seria a negação da desordem, a política o término da guerra, o direito a negação da violência.

Tem-se, portanto, dispositivos de segurança que são fundados na insegurança, destinados a gerir todos os espaços da vida, a partir de uma economia política. Agamben (2008) evidencia o equívoco de justapor em uma única expressão os termos “economia” e “política”, pois “onde tudo é normalizado e tudo é governável, o espaço da política tende a desaparecer”. Este espaço ausente de política é aquele onde o estado de direito é fundamentado e se indetermina a partir do seu estado de exceção, onde os dispositivos de segurança se legitimam nas apelações por segurança, onde finalmente direito e violência não

representam

uma

dualidade,

mas

estabelecem

uma

relação

de

complementaridade. O conceito de biopolítica delineado por Foucault possibilita realizar a devida crítica ao movimento totalizante empreendido pelos mais diversos discursos jurídicos contemporâneos: a tentativa de formalização da vida, ou seja, a ideia de abarcar todos os meios de vida no mundo formal do direito, de modo que seja possível a apropriação, a regulamentação e o controle de todas as ações humanas, sob o argumento “humanizadoramente” perverso de “controlar para fazer viver”. Nesse sentido são as palavras de Foucault: Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no “como” da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder (FOUCAULT, 1999, p. 295).

É a biopolítica que justifica, a partir da captura da vida, o ato de “fazer viver e deixar morrer” do Estado, ou seja, o poder de aniquilar a vida do outro para que as vidas de algumas pessoas possam ser preservadas. É a partir de um objetivo garantidor que se permite a regulamentação da vida e o controle generalizado dos

2041

corpos. Evidentemente, o sentido de aniquilamento da vida pela biopolítica, aqui referido, não significa apenas a morte biológica, mas todas as formas que levam à morte indireta: “o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 1999, p. 306). Os mecanismos do biopoder utilizados pelos Estados contemporâneos centram-se, em suma, na ideia de que “a sociedade ou o Estado, ou o que deve substituir o Estado, tem essencialmente a função de incumbir-se da vida, de organizá-la, de multiplicá-la, de compensar suas eventualidades, de percorrer e delimitar suas chances e possibilidades biológicas”. A consequência dessa função atribuída aos Estados e efetivada no âmbito da biopolítica consubstancia-se “[n]o direito de matar ou [n]o direito de eliminar, ou [n]o direito de desqualificar” (FOUCAULT, 1999, p. 313). Assim, necessário se faz abandonar qualquer ideia que aprisione o sujeito à normatividade, como se fosse possível que o homem autorizasse a regulação de sua vida – sob o argumento de segurança e garantia – em prol de uma irrealizável liberdade. Assim, torna-se inócua qualquer tentativa discursiva de reintroduzir o “sujeito normativo” (o cidadão) à ordem jurídica, como pretendem determinados discursos jurídico-penais ditos garantistas, pois não se trata de um simples equívoco normativo (falta de um estatuto garantidor aos condenados criminalmente).

A

estratégia

de

desconstrução

a

ser

efetivada

passa

essencialmente pela crítica ao discurso jurídico-penal enquanto estratégia de poder que busca disciplinar e controlar os corpos através da biopolítica. Nesse sentido, os estudos de Agamben, baseados na noção de biopolítica de Foucault, servem como norte para a constatação de alguns efeitos proporcionados pelo saber jurídico-penal. É nesse sentido que o filósofo italiano infere que o horizonte biopolítico explicita as dicotomias vividas na Modernidade, que permitiram, por exemplo, a transição do Absolutismo para a Democracia sem a necessidade de modificação profunda na lógica jurídica que sustenta essas duas estruturas (AGAMBEN, 2007a). Outra passagem que corrobora tal entendimento é a seguinte:

2042

A contiguidade entre a democracia de massa e os Estados totalitários não têm, contudo, [...] a forma de uma improvisada reviravolta: antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século (século XX), o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo (AGAMBEN, 2007a, p. 181).

Ao passo que a apropriação da vida para o exercício concomitante do controle e da exclusão constitui elemento evidentemente necessário para a promoção do Estado de Direito, ou seja, para garantir a própria vida, não é de se admirar que o saber jurídico-penal, apesar da criação de uma dogmática orientada para o Direito Penal Mínimo, não consiga constituir-se em uma racionalidade que afaste toda e qualquer forma de violência. Tal constatação não propõe pensar uma reconstrução do direito penal voltada para afastar a violência institucionalizada, mas sim alegar que até mesmo a criação de modelos minimalistas não são capazes de efetivar aquilo a que se propõem, precisamente porque fomentam a continuidade de um sistema estatal moldado pela biopolítica. A importância de Agamben, portanto, reside não apenas na continuidade que o filósofo dá aos trabalhos de Foucault sobre a biopolítica, mas também no estabelecimento de uma relação íntima entre o poder jurídico institucional e o poder biopolítico. Essa relação não foi mencionada nos trabalhos de Foucault, que separava drasticamente poder soberano e biopolítica. Nesse sentido, infere Agamben o seguinte: Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua [...], reatando assim com o mais imemorial dos arcana imperi (AGAMBEN, 2007a, p. 14).

Este trabalho, portanto, adota uma posição mais aproximada à de Agamben, no sentido de considerar que biopolítica e soberania são poderes que estão intimamente relacionados, ainda que não se confundam e guardem certas diferenças. Desde tal ponto de vista, a biopolítica pode constituir-se em uma estratégia de poder efetivamente orientada pelo poder soberano. É, portanto, a estratégia biopolítica que autoriza o Estado a fundamentar suas ações, fato que Agamben constata no desenvolvimento da ideia de vida nua, ou seja, uma vida que é incluída para ser excluída, que permite ao modelo estatal contemporâneo defender os direitos fundamentais a partir de uma lógica defensivista: exclusão do

2043

outro considerado uma ameaça. É possível concluir, com Agamben, que “a vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens” (AGAMBEN, 2007a, p. 15), cidade esta em que a vida nua não pode habitar, estando, todavia, restrita a um novo espaço: o campo. É possível concluir, ainda, que o saber jurídico-penal sustenta-se e opera a partir dessa lógica. Daí a necessária referência à biopolítica e à vida nua aqui realizada. A apropriação da biopolítica pelo Estado inclui a vida nua no espaço político. Aquilo que antes estava localizado à margem do ordenamento jurídico agora é incluído para ser excluído. É a vida nua consubstanciada pelos mecanismos biopolíticos que se tornará, segundo Agamben, “o fundamento oculto sobre o qual repousa o inteiro sistema político” (AGAMBEN, 2007a. p. 17). A vida nua constitui todo o aparato político que pretende a “proteção da vida”. Desta feita, não se pode afirmar que a vida nua seja passível de eliminação pelo Estado de Direito, eis que é exatamente o movimento excludente dessa vida que permite a permanência do paradigma político vigente. A definição de estado de exceção por Walter Benjamin, na oitava tese sobre a história, cujo estudo é ampliado por Agamben, denota de maneira contundente a inclusão da vida nua no ordenamento jurídico para que se torne objeto de exclusão: para a vida nua, o estado de exceção é a regra. O estado de exceção não significa a oposição da vida nua à norma jurídica, como se fosse um local onde faltasse direito. Ao contrário, o estado de exceção é autorizado pela norma a suspendê-la, inserindo a vida nua no âmbito do ordenamento para que seja efetivamente excluída. O estado de exceção permite que o ordenamento se relacione intimamente com aquilo que é excluído do direito, de modo que a vida nua está em perpétua relação com o poder que o baniu: A exceção é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica a exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída (AGAMBEN, 2007a, p. 25).

2044

O estado de exceção, assim, se torna a regra para fazer funcionar todo o aparato estatal idealizado para “proteger” a vida. Com as ideias aqui expostas, é possível inferir que os estudos jurídicos contemporâneos não veem, por exemplo, nos verdadeiros extermínios realizados pelo sistema punitivo brasileiro um ato constitutivo do Estado de Direito, mas uma simples ausência de Constituição. Toda a estrutura jurídica que sustenta esses extermínios torna-se, portanto, inabalável diante de uma crítica jurídica que se limita a tentar estender os direitos fundamentais para a população excluída. Não percebe que, ao realizar essa crítica, os extermínios continuarão, pois é exatamente a noção de “proteção” aos direitos fundamentais que contribui para a barbárie operada, acreditando-se ainda que o fortalecimento da ordem jurídica, a partir da submissão total da vida ao direito, seria capaz de resolver as mazelas sociais. Mais do que isso, o simples desejo de estender os direitos fundamentais à vida nua desconsidera que o viver político dessa população continua inoperante, apesar de capturado. Em outras palavras, o saber jurídico contemporâneo preocupa-se exclusivamente em estender aos excluídos uma “vida de direitos”, ou seja, tornar possível uma forma de vida racionalmente constituída a ser aceita sem maiores indagações. Trata-se, portanto, de um saber que se contenta na realização dos ideais normativos previamente constituídos pela lógica racionalista, sem promover qualquer senso crítico acerca da perversidade de uma lógica que somente considera válida as formas de vida normatizadas. Ou seja, os próprios ideais normativos (de justiça, de segurança, etc.) passam incólumes por qualquer reflexão jurídica. Nesse sentido, o contexto biopolítico do estado exceção, desenvolvido por Agamben a partir das incursões a Michel Foucault, Hanna Harendt, Walter Benjamin e Carl Shimidtt torna-se especialmente relevante neste trabalho, pois se trata de um importante exemplo de estratégia jurídica contemporânea totalizante, destinada à propagação dos efeitos de poder sobre determinadas camadas da população, entre elas aquela que é tragada diariamente pelo sistema punitivo estatal. Sistema este racionalmente justificado pelo saber jurídico-penal, onde a estratégia biopolítica encontra seu locus. A grande inovação trazida pela noção de biopolítica ao estudo dos impactos punitivos na contemporaneidade é considerar

2045

não apenas o soberano com o trânsito livre pelo espaço da vida nua, submetendo os corpos e exercendo o poder de matar e fazer viver (vida matável e insacrificável, no sentido de impossibilidade de uma pena capital). No espaço da vida nua, qualquer ação é justificada para a consecução dos objetivos do saber biopolítico, do qual o saber jurídico-penal é absolutamente conivente. É a vida nua uma categoria presente no mundo atual graças à racionalidade instrumental que torna suportável aquilo que é eticamente insuportável. A apropriação da vida em todos os sentidos, bem como o limiar que torna direito e vida indiscerníveis (vida=norma) constituem dois efeitos de poder do discurso jurídico-penal atual. Diante da apropriação de todas as formas de vida para seu efetivo controle, com a consequente eliminação do Diferente, o movimento totalizante, fruto de uma racionalidade instrumental, segue o seu destino rumo à justificação de qualquer forma de violência institucionalizada. A grande contribuição do estudo da biopolítica no âmbito do discurso jurídico-penal legitimante consiste, portanto, numa constatação daquilo que as teorias jurídicas contemporâneas ainda se furtam de enfrentar, ou que ardilosamente acabam por justificar: uma estratégia política de reconhecimento e apropriação, com o consequente movimento de eliminação (a constituição daquilo que Agamben chama de vida nua). Sem a consciência de que o duplo movimento de apropriação/eliminação constitui o próprio cerne do discurso penal legitimante, não seria possível realizar a crítica aqui proposta, eis que é possível constatar que a violência justificada pelo discurso é operada precisamente na ideia totalizante da biopolítica. Portanto, é interessante perceber como que as instituições totais vão se aperfeiçoando, de modo que, hoje, a vida não necessita ser mais aprisionada para ser submetida ao controle. Mais do que um mecanismo econômico de submissão de uma classe dominada por uma classe dominante, trata-se de um movimento político que permeia todas as relações humanas, em que todos são submetidos a uma normalização da vida. Nada mais escapa ao controle e ao exercício do poder: o direito formaliza a vida ao ditar a forma a ser aceita ou tolerada e definir qual o padrão a que todos devem estar submetidos. Sua única preocupação seria estender essa forma de vida a todos. Estamos vivendo o ápice

2046

da totalidade jurídica: o direito encontrou a forma de vida perfeita, revestiu-a de legitimidade constitucional e projeta estendê-la sem maiores considerações.

3 EXCURSO: AS DIFICULDADES DAS TEORIAS JURÍDICO-PENAIS DE RESISTÊNCIA NA COMPREENSÃO DOS MECANISMOS BIOLÍTICOS

A noção de biopolítica, como observado, é fundamental para compreender o aparato controlador desenvolvido para que a vida siga determinado rumo previamente estabelecido. São as exigências de proteção que formam determinado padrão de vida a ser preservado. A partir de então, é este padrão – também utilizado pela ciência penal - que dará sustentação às decisões sobre aquilo que deva ser preservado ou aniquilado. A vida, em todos os seus sentidos, é facilmente controlada por mecanismos tão sutis que hoje são considerados fundamentais para se viver. Vide, por exemplo, a ideia de crime e pena: poucos são aqueles que conseguem pensar a existência da vida sem a presença desses mecanismos de controle social, não obstante a comprovação empírica de sua absoluta falta de eficiência e a constatação da violência que tais categorias produzem. De certa forma, não se consegue fugir das amarras da biopolítica, eis que se fez crer que esta é essencial para a própria existência da vida. Os mecanismos de controle da vida são, assim, identificados com a própria realidade e tornados eternamente necessários. Mais do que isso, é possível verificar que o discurso jurídico-penal tenta desvincular as ações biopolíticas do exercício do poder, justificando o controle punitivo como uma estratégia meramente normativa, necessária para a proteção das pessoas. Assim, por exemplo, a teoria do bem jurídico, que atribui ao direito penal a função de tutela de bens jurídicos, delineia estratégia punitiva alicerçada na necessidade de punir para proteger. Tal teoria procura se afastar da realidade biopolítica através de um argumento estritamente normativo e, por conseguinte, possui baixíssimo grau de criticidade quanto à “bondade” do poder punitivo. É possível afirmar que o discurso que justifica a implementação dos mecanismos biopolíticos esgota a vida, pois reduz a realidade aos termos

2047

conceituais de uma teoria legitimadora. Que se encubra a violência intrínseca à execução de uma pena criminal com a elaboração de uma sentença condenatória considerada justa, simplesmente porque esta foi elaborada racionalmente em consonância com todos os princípios do direito penal e do processo penal, é já um dos efeitos perversos da representação tornada realidade pela ciência penal. É possível dizer, ainda, que há sempre um transbordamento de sentido quando a ciência penal pretende impor determinados limites para sua atuação. Isso porque no próprio estabelecimento das bases dogmáticas do direito penal, que procuram impor limites à incidência do poder punitivo, já se escamoteiam as relações de poder que estão em jogo. Nessa construção discursiva, são eleitas funções metafísicas que nada dizem respeito ao atuar concreto do poder punitivo. No entanto, como ensina Foucault, não é possível desvincular as relações de poder da formulação de um saber. E, como observa-se em Agamben, o estado de direito não é passível de conter ou de impor limites ao estado de exceção que se verifica no exercício do poder punitivo, precisamente porque o estado de exceção sustenta o estado de direito. A relação entre poder punitivo e estado de direito confirma a tese: não é possível pensar, hoje, o estado de direito sem o exercício do poder punitivo. O que nos faz concluir que as figuras do homo criminalis, do desviante, do inimigo não são apenas elementos privilegiados de um Direito Penal de Exceção (ou, para a teoria penal contemporânea, de um Direito Penal do Inimigo). Eles são figuras essenciais também para o Direito Penal do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos (1984) infere que uma política criminal de ‘proteção da sociedade contra o crime’ como foco dirigido para o indivíduo criminoso, submetido à remoção, segregação, cura e educação, sob o fundamento do estado ‘perigoso’, mesmo que acene com um Direito Penal ‘humanizado’ pela ‘ciência do crime e do criminoso’, não deixa de constituir a forma mais acerbada de violência repressiva.

Evidentemente, não se trata de tornar indiferentes o Direito Penal de Exceção e o Direito Penal do Estado Democrático de Direito. As medidas teóricas criadas para a efetivação de um direito penal orientado contra o poder soberano de punir, instituindo aportes dogmáticos de contenção das agências executivas

2048

punitivas,

são

especialmente

relevantes

nos

países

cujas

instituições

democráticas demonstram-se fragilizadas, como o Brasil. No entanto, como será delineado a seguir, a construção de um direito penal contentor do poder punitivo não aprofunda o problema. Permanecerá a possibilidade de criação de um espaço de exceção constituinte do estado de direito, permitindo que a vida nua, a partir desse espaço indiscernível de atuação soberana, possa ser morta. A morte ocorre sob os auspícios do Estado de Direito, e não fora dele. Talvez mesmo a dogmática jurídico-penal não comporte um problema desta magnitude. No entanto, tratando-se de um saber conivente com o exercício do poder punitivo, mesmo quando pretende contê-lo, necessário se faz uma investigação acerca das pretensões do direito penal diante do modelo atual de Estado e de Direito estudado por Michel Foucault e, mais recentemente, por Giorgio Agamben. Diante desse quadro, ainda que o saber penal não seja capaz de modificar a estratégia biopolítica, é a partir da análise de seu discurso que se abrem possibilidades para um pensamento que vai além da mera justificação do exercício do poder punitivo ou da mera tentativa de conter o estado de exceção consubstanciado nas práticas punitivas. Nesse sentido, deve-se ter a devida consciência da esfera de incidência do discurso legitimador do poder punitivo. Para tanto, não é possível mais dizer que o direito penal atua exclusivamente no âmbito da decisão penal e da execução da pena. O direito penal, ao representar a “programação normativa e tecnológica do exercício de poder dos juristas” (ANDRADE, 2006, p. 469), autoriza e fomenta o funcionamento de todo o sistema penal, desde as técnicas utilizadas pelas instituições de operacionalização do controle penal (Congresso, Polícia, Ministério Público, Justiça, Penitenciária) até a formação de uma cultura punitiva (mídia, escola, universidade). As funções eleitas pelo discurso, portanto, estão intimamente relacionadas com todo o aparato penalógico que sustenta e envolve o sistema penal como um todo.

2049

4 O REALISMO MARGINAL DE ZAFFARONI: É POSSÍVEL CONSTITUIR UM DIREITO PENAL LIVRE DAS AMARRAS BIOPOLÍTICAS?

Diante do que foi até aqui discutido, restaria questionar como as teorias jurídico-penais ocupam-se em construir elementos dogmáticos a fim de operacionalizar o direito penal nesse contexto biopolítico, acima delineado. Ao considerar que a penalidade contemporânea é cada vez mais uma questão de gerência da desordem do que propriamente uma questão de manter a ordem, é possível localizar o discurso jurídico-penal numa nova dimensão. Trata-se de um discurso mais preocupado em criar maneiras de atuação efetivas e condizentes com o modelo estatal adotado do que legitimar-se internamente. Uma dessas tentativas pode ser atribuída ao Realismo Marginal de Eugênio Raul Zaffaroni. A proposta de Zaffaroni é partir de um direito penal deslegitimado, ou seja, sem a intenção de justificá-lo com os objetivos de segurança ou proteção, fato que ocorre comumente nas teorias penais hegemônicas. A posição teórica, assim ganha especial relevância, sobretudo na América Latina, local em que, como salienta Zaffaroni, diante da alta mortalidade advinda da operacionalidade do sistema penal, o discurso “se desarma ao mais leve toque com a realidade” (ZAFFARONI, 1991, p. 12). A deslegitimação do sistema penal proposta por Zaffaroni é constatada a partir da análise de dados sociais, que são mais aparentes na região marginal (América Latina): mortes, privação de liberdade e vitimizações que recaem sobre os setores majoritários e carentes de nossas populações; a total indiferença pelas vítimas dos órgãos que exercem o poder penal; a perda completa de controle sobre as agências executivas do sistema penal e a crescente minimização da intervenção dos órgãos judiciários; e a prática de delitos gravíssimos por parte dos integrantes dos órgãos penais (ZAFFARONI, 1991, p. 108).

Em suma, as mortes produzidas cotidianamente em decorrência da operacionalidade do sistema penal permite, sem exageros, denominar o que hoje se vive como “um genocídio em andamento” (ZAFFARONI, 1991, p. 108). Desde já, percebe-se que a posição deslegitimante de Zaffaroni está sedimentada numa observação da realidade social da América Latina. Esta consideração não é admitida pela maioria dos discursos jurídico-penais, pois

2050

estes consideram que, por se tratar de um saber normativo, a programação do direito penal não poderia ser deslegitimada por dados empíricos, estando restrita ao mundo do “dever ser”. No entanto, é pertinente a crítica de Zaffaroni (1991, p. 19) ao inferir que o discurso jurídico-penal, ao restringir-se ao “dever ser”, desconsidera a possibilidade de esta programação “vir-a-ser”, pois, segundo o penalista argentino, “para que esse ‘dever ser’ seja um ‘ser que ainda não é’ deve considerar o vir-a-ser possível do ser, pois, do contrário, converte-a em um ser que jamais será, isto é, num embuste”. Portanto, o discurso jurídico-penal formulado alheio à realidade social é um discurso perverso, pois “oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder” (ZAFFARONI, 1991, p. 19). O erro metodológico das teorias legitimantes evidenciado não consistiria simplesmente na formulação de um “direito penal desprovido de dados sociais, mas sim construído sobre dados sociais falsos” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 65-3). A partir de tal fato, destacam-se dois dados falsos incorporados pelo discurso legitimante: “a) a suposta realização natural da criminalização secundária e b) a partir dela, a ilusão de sua capacidade para resolver os mais complexos problemas e conflitos sociais” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 67). Nesse sentido, o discurso estaria superdimensionando o poder da agência judicial frente à seletividade do poder punitivo. No entanto, “a mera observação leiga da realidade” permite constatar que o poder punitivo realmente opera a partir da seletividade, evidenciando uma séria lesão ao “narcisismo teórico do direito penal” e destruindo a crença messiânica do discurso jurídico-penal (ser o direito penal capaz de resolver os mais graves problemas sociais): Pode-se afirmar que a história do poder punitivo é a das emergências invocadas em seu curso, que sempre são sérios problemas sociais. [...] o poder punitivo pretendeu resolver o problema do mal cósmico (bruxaria), da heresia, da prostituição, do alcoolismo, da sífilis, do aborto, da rebelião, do anarquismo, do comunismo, da dependência de tóxicos, da destruição ecológica, da economia informal, da especulação, da ameaça nuclear etc. Cada um desses conflitivos problemas dissolveu-se, foi resolvido por outros meios ou não foi resolvido por ninguém, mas nenhum deles foi solucionado pelo poder punitivo. Entretanto, todos suscitaram emergências em que nasceram ou ressuscitaram as mesmas instituições repressoraspara as quais em cada onda emergente se apelara, e que não variam desde o século XII até a presente data (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 68).

2051

Valendo-se dessas falsas premissas e de objetivos “bondosos”, constrói-se um discurso jurídico-penal que: (a) cumpre função legitimadora, não apenas da agência judicial, mas de todo o sistema penal (teorias da pena); (b) cumpre função pautadora de decisões que devem ser necessariamente adequadas à premissa legitimante (teorias do delito), importando mais a coerência interna de um sistema justificador do poder punitivo do que propriamente a realidade conflitiva social; (c) é dotado de elementos negativos que reduzem o poder da agência judicial, impondo limites ao horizonte de projeção do saber penal e legitimando o exercício de poder das agências executivas (ZAFFARONI, 1991, p. 186). A partir da constatação de um poder punitivo deslegitimado e da falsidade e consequente violência dos discursos jurídico-penais legitimantes, Zaffaroni (1993) elabora, a partir do realismo marginal, um outro discurso – consciente dos efeitos de poder produzidos pela dogmática penal – que não esteja comprometido em legitimar o exercício do poder punitivo. O autor infere ser necessário, primeiramente, que o jurista tome consciência dos “estreitos limites de seu poder” (ZAFFARONI, 1991, p. 195). Ao constatar que o seu discurso legitimante está “esvaziado”, o jurista perceberá que o sistema penal – que é um fato de poder – permanecerá intacto. Assim, “por maior que seja a deslegitimação discursiva, os fatos de poder não desaparecem com os escritos dos juristas, uma vez que não estão sublinhados por sua legitimidade, mas, sim, por seu poder” (ZAFFARONI, 1991, p. 195). Seria necessário que as agências judiciais abandonassem a tentativa de relegitimar o exercício do poder punitivo (que não é um poder exercido pelas agências judiciais, mas sim pelas agências executivas) e procurassem legitimar o seu próprio exercício de poder. Essa tomada de consciência é fundamental para Zaffaroni, pois a desidentificação entre discurso jurídico-penal e exercício do poder punitivo permitirá a construção da proposta fundamental de todo o pensamento do penalista argentino: constituir o direito penal como “ramo do saber jurídico que, mediante a interpretação das leis penais, propõe aos juízes um sistema orientador de decisões que contém e reduz o poder punitivo, para impulsionar o progresso

2052

do estado constitucional de direito” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 40). O autor admite, assim, uma “volta ao direito penal liberal em novas bases, que reforcem a orientação decisória limitativa e redutora do poder punitivo por parte das agências jurídicas” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 77). Admitindo-se a inexistência de estados de direito reais perfeitos, mas apenas “estados que contêm (mais ou menos eficientemente) os estados de polícia neles enclausurados”, propõe-se que “o estado de direito [contenha] os impulsos do estado de polícia que encerra” (ZAFFARONI et. al., 2003, 41). Essa contenção, por sua vez, dar-se-ia através da constituição de um poder jurídico consciente dos seus limites, somente instituído de legitimidade quando destinado a controlar o exercício arbitrário do poder punitivo. Conforme Zaffaroni et. al. (2003), o exercício do poder punitivo a ser contido é uma clara expressão do estado de polícia que sobrevive dentro do estado de direito graças às teorias legitimantes que, em maior ou menor escala, racionalizam as funções manifestas do direito penal. Zaffaroni justifica, por conseguinte, a necessidade de uma decisão prédogmática (política) sob a qual se fundamente o direito penal, tendo em vista a impossibilidade de um saber jurídico-penal politicamente neutro: “o direito penal, neste sentido, é teleológico: trata-se de um saber com um destino político definido de antemão, que pode ser garantidor (limitador) ou autoritário (supressor de limites), funcional quanto ao estado de direito ou ao estado de polícia” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 154). Ao reivindicar um posicionamento político do discurso jurídico-penal, Zaffaroni pretende denunciar um discurso asséptico que tem a pretensão de atingir a segurança jurídica através da neutralidade de seus conceitos. Além disso, torna-se perceptível que os objetivos do discurso jurídico-penal não são definidos pelo método dogmático, mas são produtos de uma escolha política anterior, que orientará toda a construção conceitual do discurso (teoria do delito, especialmente). No entanto, o autor nega que a simples explicitação de uma opção política do discurso seja capaz de fazer oposição à violência do exercício do poder punitivo. Argumenta que também se faz necessário um “discurso sistemático

2053

elaborado de modo progressivo e redutor” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 172). Refere que, caso não se construa um discurso sistemático, a partir da deslegitimação do poder punitivo, ocorreria a substituição do sistema “por uma decisão política pura, só que em lugar de fazer a opção pelo estado de polícia, far-se-ia pelo estado de direito” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 161). Nesse sentido, não bastaria definir a opção política do discurso; esta deveria vir acompanhada de uma sistemática que oferecesse racionalidade às decisões judiciais. Assim, para Zaffaroni, uma dogmática que não explicita sua opção política – pleiteando a neutralidade – constituiria um discurso “irracional por seu método construtivo, sem prejuízo de que possa acabar no autoritarismo e ainda que não o faça” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 154). Por sua vez, um discurso que, apesar de realizar a opção política, não adote determinada sistemática ou adote uma sistemática falsa (doutrina penal voltada para a legitimação das criminalizações primárias, fundamentando-se na ficção de que “o legislador é racional” e prescindindo de uma confrontação com os dados da realidade), transformaria o direito penal em instrumento arbitrário, sem qualquer efetividade para orientar as decisões judiciais e conter o poder punitivo. Assim, a opção política da construção teórica de Zaffaroni é, como exposto, a de constituir um direito penal capaz de conter os excessos do poder punitivo. Acompanhada dessa escolha política, o autor procura construir um sistema que comporte tal função jurídico-penal e permita orientar as decisões judiciais no sentido politicamente proposto. Nesse sentido, utiliza-se da metáfora do “dique” para explicitar uma sistemática do direito penal politicamente orientada para a contenção do poder punitivo – portanto, não voltado para a simples sistematização das decisões legislativas(ZAFFARONI et. al., 2003, p. 156-5 e 162). À constatação da deslegitimação do poder punitivo exercido sempre de maneira “irracional”, Zaffaroni responde com a elaboração de um direito penal com

“racionalidade

contentora”.

Essa

construção

sistemática

seria

permanentemente dinâmica, tensa e contraditória, pois se estaria diante de uma relação de constante luta, onde são opostos direito penal e poder punitivo.

2054

A proposta, portanto, é feita a partir de uma dupla tomada de consciência. A primeira diz respeito à deslegitimação do poder punitivo. A segunda se refere aos limites do direito penal, que não é capaz de resolver os problemas sociais a que se propõe. A partir dessa conscientização, o direito penal ganha uma função delimitada, que consiste em oferecer elementos conceituais capazes de, racionalmente, orientarem uma decisão judicial contentora do poder punitivo. Para tanto, estado de direito (direito penal) e estado de polícia (poder punitivo) são polarizados. Nesse sentido, admitindo que o estado de polícia (poder punitivo) jamais será erradicado pelo estado de direito (direito penal), elabora-se um modelo (que também tem a pretensão de exercer poder – poder jurídico) que reduza a incidência do poder punitivo. As construções dogmáticas propostas por Zaffaroni a partir da perspectiva do realismo marginal não são objeto de estudo do presente trabalho. O que interessa especificamente é a crítica formulada pelo penalista argentino a uma dogmática que se furta à análise dos dados sociais para as suas formulações teóricas e a proposta alternativa a essa construção teórica. O pensamento de Zaffaroni traz o esboço até então inédito de um saber penal voltado para a produção

de

efeitos

de

poder

que

a

operacionalidade

dos

conceitos

inevitavelmente produz. É esse pensamento que, particularmente, interessa à presente exposição. Por seu turno, a perspectiva deslegitimante do poder punitivo emerge de uma confrontação entre dogmática jurídico-penal e dados fornecidos pelas ciências sociais (que, para Zaffaroni, não são meramente ciências acessórias ou auxiliares). Todavia, percebe-se que o movimento de Zaffaroni não ocorre no sentido de buscar aproximar a dogmática jurídico-penal da realidade, mas de questionar o direito penal que pretende afirmar as suas funções na realidade, de questionar os próprios limites que o projeto do direito penal encontra diante da realidade. O poder punitivo mostra-se deslegitimado não apenas em relação a não verificação empírica das funções declaradas da dogmática penal na realidade, mas, principalmente, em relação à pretensão – sempre totalizante – de esclarecer o fenômeno criminal e estabelecer a solução para o problema. Trata-se de uma tomada de consciência fundamental, em que a dogmática jurídico-penal é

2055

responsabilizada eticamente, porque não é possível que ela produza eternamente o seu discurso sob o argumento de ser uma ciência normativa e, portanto, atuar no mundo do “dever ser”. A normatividade da dogmática jurídico-penal e o seu caráter programático não são desculpas plausíveis para escamotear o entendimento de que o real sempre está diante do saber e nunca absolutizado pelo saber. Significa dizer, em outros termos, que os conceitos dogmáticos, ao tentarem efetivar as funções que dão legitimidade ao poder punitivo, préconcebem o fenômeno criminal e, numa pretensão de dominação da realidade, acreditam que os problemas estão desvelados com o esclarecimento do real. No entanto, a questão que permanece diante da proposta deslegitimante de Eugenio Zaffaroni é: não estaria o direito penal, ainda que delimitado por uma função redutora, relegitimando o poder punitivo ao pretender encontrar elementos racionalizantes que autorizam (ainda que restritivamente) a incidência de tal poder? Não estaria o direito penal relegitimado no contexto biopolítico que não discerne estado de direito e estado de polícia? A que se presta, hoje, essa desidentificação entre direito penal e poder punitivo? Quando Giorgio Agamben, na esteira de Walter Benjamin, afirma que a exceção tornou-se a regra, que a vida excepcionada pelo poder estatal tornou-se vida nua e que a biopolítica converteu-se na tática de governo hegemônica, querse dizer, ao final, que as democracias tornaram-se incapazes de pensar uma política fora do âmbito estatal. Mais do que isso, as teorias jurídicas não mais enxergam o resíduo entre vida nua e direito. Baseando-se numa igualdade formal, em que todos são sujeitos de direitos, tais teorias acreditam tratar-se de um mero problema de efetivação de direitos e ignoram que a “ausência” de direitos é fato constitutivo do estado de direito. Isso porque, repita-se, não há, para essas teorias, uma política fora do Estado: a biopolítica ainda emerge como modelo de governo a ser combatido. É preciso dimensionar, agora, as implicações dessas constatações no direito penal, especialmente sobre aquele direito penal que, acertadamente, não mais fundamenta a criação de seus conceitos a partir de objetivos metafísicos que nada dizem respeito ao atuar jurídico-penal. Tal análise acaba por restringir-se ao modelo deslegitimante de Zaffaroni, o único penalista que, reconhecidamente,

2056

trabalha o direito penal desde uma perspectiva agnóstica e, portanto, não vincula os conceitos jurídico-penais às pretensas funções “cientificamente” estabelecidas pelo sistema jurídico. A teoria de Zaffaroni, ao propor a contenção do poder punitivo (estado de polícia) pelo direito penal (estado de direito), está perfeitamente consciente – ao contrário do pensamento penal hegemônico – de que o estado de polícia não foi sucumbido pelo estado de direito. Apesar de ver os dois modelos como ideais e antagônicos, admite que o estado de polícia está presente no estado de direito através do exercício do poder punitivo e que “o poder do estado de polícia (poder punitivo) jamais será erradicado pelo direito penal” (ZAFFARONI et. al., 2003, p. 96). Sendo assim, não parece desautorizada a aproximação entre os conceitos de “estado de exceção” de Agamben e “estado de polícia” de Zaffaroni, principalmente em decorrência da relação desses dois modelos com o estado de direito. No entanto, enquanto, para o primeiro, o estado de exceção é o fundamento do estado de direito, para o segundo, o estado de polícia é passível de contenção pelo estado de direito. A reivindicação de Zaffaroni por um poder judicial (o direito penal) capaz de conter os arbítrios do poder punitivo está certamente muito distante da leitura que Agamben faz acerca do estado de exceção. O problema que Agamben identificaria na teorização de Zaffaroni talvez fosse o mesmo que o motivou a escrever Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua: a ausência de uma teoria que seja capaz de relacionar o modelo jurídicoinstitucional e o poder biopolítico. Nesse sentido, o estado de direito como contentor do poder punitivo constituiria a manutenção da estratégia biopolítica, pois o que acaba por subsistir é o estado de direito violento, o exercício legitimado da violência estatal, a gestão da insegurança por dispositivos de segurança. A função contentiva do estado de direito acaba também tornando possível o exercício do estado de exceção. Aliás, não poderia ser outro o resultado de tal proposição, tendo em vista que estado de direito e estado de exceção são complementares e não opostos.

2057

A violência é exercida, portanto, em nome da própria salvação do estado de direito. A matriz da exceção que torna direito e vida indiscerníveis continua capturando fora a figura do não-cidadão dentro do próprio estado de direito. Com isso não se quer dizer que Zaffaroni defenda o estado de exceção como regra, mas que o movimento deslegitimante perde a grande chance de questionar o próprio esquema violento que sustenta o direito penal. O reconhecimento do poder punitivo como um elemento político, fora do direito, não apenas desidentifica direito penal e poder punitivo. Há, igualmente, uma tentativa fracassada de desidentificação entre direito penal e violência, que não faz outra coisa do que autorizar a violência através do direito. Nesse sentido, afirmar que o direito penal faz-se necessário apesar de sua insuficiência não seria um retorno ao discurso eficientista que a própria racionalidade deslegitimante pretendia combater? Propor que o direito penal, que durante toda a sua história legitimou o poder punitivo, seja capaz de agora contê-lo não seria escamotear o próprio problema de uma estrutura jurídica fundamentalmente violenta? Dessa forma, admitir um poder jurídico incapaz de acabar com a violência do poder punitivo é uma constatação pertinente feita por Zaffaroni, ao identificar o genocídio em andamento vivido principalmente na América Latina. No entanto, a proposta redutora acaba por inviabilizar a radicalidade da crítica, ao se perpetuar o exercício do poder punitivo como elemento político a ser contido. Se o poder punitivo não pode ser destruído pelo poder dos juristas e se a desaparecimento do poder punitivo necessita de profundas mudanças culturais, é preciso que os manuais de direito penal – se não são capazes de formular propostas radicais – não dmitam a eternização desse poder punitivo, impedindo a crítica à subsistência da violência nas teorias jurídico-penais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A biopolítica, considerando o que se arguiu ao longo desta exposição, constitui-se em uma estratégia de poder evidenciada também nas práticas punitivas contemporâneas, delineando importante discurso jurídico-penal que se coaduna perfeitamente com o Estado Democrático de Direito. A exceção, que a

2058

biopolítica inscreve sobre o Estado Democrático de Direito, mostra-se fundamental para a garantia do próprio paradigma do Estado de Direito, constituindo uma zona indiscernível onde a exclusão inclusiva pode ser operada, onde o poder punitivo pode livremente circular sobre a vida nua. Nesse sentido, é possível questionar se o discurso jurídico-penal não pressuporia sempre, em alguma medida, a legitimação do poder punitivo, e não sua contenção ou limitação. Isso porque, segundo as considerações de Agamben sobre direito e violência, não seria cabível criar categorias da dogmática penal capazes de conter a incidência do poder punitivo. Essa tarefa estaria reservada a outro nível analítico, certamente mais inacessível quanto mais desejável,qual seja, o espaço político, ou aquilo que Agamben (2004, p. 97), inspirado em Walter Benjamin, denomina “desmascaramento da violência mítico-jurídica”, em que direito e violência não estão mais conjurados e indistintos. Reconhece-se o caráter enigmático da expressão, que necessitaria de um novo trabalho para ser satisfatoriamente explicado. Entretanto, bastaria aqui dizer que a solução da relação entre direito e violência, consubstanciada no estado de exceção e fomentada pela estratégia biopolítica, não pode ser dada por uma “reorganização” dos objetivos do direito, em especial do direito penal. Quem sugere isso desconsidera irresponsavelmente a violência que funda e mantém o direito. Por seu turno, a biopolítica mostrou-se a categoria que melhor explicita o discurso jurídico-penal como um gestor da vida, a partir de dispositivos que servem não para promover segurança, mas gerir a insegurança. O grande objetivo dos discursos jurídico-penais, hoje, consiste na governamentalidade das grandes massas, oferecendo uma proteção ilusória em função dos riscos e perigos. Entretanto, é mesmo dentro dos limites impostos ao poder punitivo que operam os dispositivos de segurança, de modo que a distinção entre dentro (direito penal) e fora (poder punitivo), como demandado pelo Realismo Marginal de Eugênio Zaffaroni, não faz qualquer sentido no contexto biopolítico. Aceitando as palavras de Foucault, que Zaffaroni tão bem conhece, “não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar” (FOUCAULT, 1999, p. 47).

2059

Evidentemente, não se trata, de modo algum, de questionar a importância fundamental da teoria de Zaffaroni na redução das arbitrariedades e tiranias do poder punitivo estatal e de sua função histórica humanizadora; seu papel decisivo na história do pensamento criminológico crítico não pode deixar de ser reconhecido, salvo por um déficit analítico imperdoável. A intenção do presente trabalho foi a de apenas indicar o caráter bifronte que quanto ao seu discurso se pode reconhecer, como em todo e qualquer acontecimento de efetiva relevância histórica e política, evidenciando suas limitações e possibilidades para se pensar além do discurso deslegitimante do realismo marginal e sua proposta de contenção do poder punitivo. Se Zaffaroni fala em um poder deslegitimado que necessita ser contido, entretanto permanece sem qualquer crítica a legitimidade de fato do Estado, que é chamado a responder às demandas sociais através da implementação de dispositivos de segurança. Em alguma medida, no sistema contentivo, o poder punitivo estará legitimado: diante da impossibilidade de ―criar‖ a ordem, restará ao direito penal, juntamente com outros aparelhos estatais, gerir a desordem, problema que a crítica deslegitimadora do exercício do poder punitivo não é capaz de, sequer, levantar.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Como a obsessão por segurança muda a democracia. Le Monde Diplomatique. 6 jan. 2014. Disponível em:www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568. Acesso em 1º jul. 2014. ____________. Democracia e pós-ideologia se elidem. IHU Online. 2008. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/12818-democracia-e-posideologia-se-elidem-entrevista-com-giorgio-agamben. Acesso em 1º jul. 2014. ____________. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. ____________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007a. ANDRADE, V. R. Dogmática e Sistema Penal: em busca da segurança jurídica prometida. 1994. 501 fl. Tese de Doutorado. Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1994.

2060

___________. Minimalismos e Abolicionismos: a crise do sistema penal entre a expansão e a deslegitimação. Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 13, p. 459488, 2006. BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. CANDIOTTO, C. Disciplina e segurança em Michel Foucault: a normalização e a regulação da delinquência. Revista Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, vol. 24, p. 18-24, 2012. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (19741976). São Paulo: Martins Fontes, 1999. ____________. Segurança, território e população: curso no Collège de France (1977- 1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. HASSEMER, W. Direito Penal: Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008. LARRAURI, E. La herencia de la criminología crítica. 3ª ed., Madrid: Siglo Veintiuno, 2000. SANTOS, J. C. As raízes do Crime. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984. ZAFFARONI, E. R. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. ZAFFARONI, E. R. et. al. Direito Penal Brasileiro – I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

2061

DISCIPLINARY AND CONTROL SOCIETIES: URBAN SECURITY AND SEGREGATION IN PORTO ALEGRE Fiammetta Bonfigli1 Giovanni Fiamminghi2

ABSTRACT: In December 2014, during an empirical resarch on public/private security and urban violence in Porto Alegre (Brasil), two main field studies have taken place: the first one in the Presidio Central (Central Prison) of Porto Alegre; the second one at the DEICC (Department for urban control) of the city. According to the semi-structured interviews conducted and the collection of quantitative data taken so far, the ipothesis of this article are: -Disciplinary society and control society, as theorized by Michel Foucault, are ongoing processes. In particular, we refer firstly, to the construction of a specific rethoric about security- as espressed by the interviewed- and secondly, to videosurveillance as an instrument for the creation of docile bodies, social normalization and spatial segregation. In this sense, disciplinary and control processes are neither rivals nor at odds with each other: they are connected in symbiosis. -Urban and prison environments have in common specific organization and structural division. Together with Wacquant the argument is that dispositifs of spatial, ethnical and social segregation, as the ones of subjectivation/desubjectivation, create urban division and are at the same time reflected in the ethno-social composition of prisonal population and its spatial/economical organization. KEYWORDS: disciplinary control society; urban surveillance; prison system; Brasil; Porto Alegre. 1 INTRODUCTION

Smooth switching between disciplinary-society and control-society has never occurred. The two models of repression and government, far from being monolithic

and compartmentalized systems, are processes that work, through

1 Fiammetta Bonfigli, Post-doc em Direito,

UnilaSalle, Canoas (RS), Brasil. E-mail: [email protected] 2 Giovanni Fiamminghi
, Dipartimento di Progettazione e Pianificazione in Ambienti Complessi, Università IUAV di Venezia, Venezia, Italy, e-mail: gio.fiamminghi @gmail.com

2062

autopoietic mutually legitimizing mechanisms , in order to expand the possibility of governmentality. Security - and its related rhetoric and the reality of violence (emptied of every possible political connotation) and fear - are outlined as places (topoi) of veridiction, legitimacy of the state, governance and policies, through the production and manipulation of languages and subjectivities. They make use of mechanisms of repression and coercion, control and vigilance, in a simultaneous or intermittent ways of acting, depending on the subjects involved, the different situations and historical or political moments. The links between these two modalities of governmentality, the disciplinary society and the society of control are many, rhizomatic and smart: firstly, the exceptional, the spectacle or opacification of violence; secondly the discretion and pseudoscientific of what informs the decisions of governance; the action of the regimes of visibility on the ego. They are immediately involved with the spheres of policy, law and representation as central fields in these processes. Moreover, applying Loicq Wacquant's analysis on prison and ghetto it is possible to draw a line of proximity and fusion between the control strategies governing life in both spaces. This “deadly symbiosis” (Wacquant:2001) is reproducing etno-racial division and domination in the Brazilian context and the penal apparatus is working as a substite of the ghetto for caste control. In the analysis of the two devices of the "Presidium of the Central" and the”Integrated Command and Control Department of Porto Alegre", we observed and questioned the modalities of operation of these mechanisms, in their similarities and differences. We experienced, in each of the two places, a guided tour of the architectural structures - of which were made two video-report - and a series of video interviews. More accurately:

15th December _ Presidio Central de Porto Alegre | Major

Dagoberto

Albuquerque da Costa | Brigada Militar | Diretor do Presidio Central | _ | Major

2063

Guatemi Echart | Integrante da Gestão do Presidio Central | | Elaine de Oliveira | Assistente Sociale | SUSEPE

18th December _ DCICC, Departamento Comando e Controle Integrado de Porto Alegre |Coronel Antônio Scussel, Diretor | _ | Coronel Ricardo Alex Hofmann | Divisão de Análise Criminal This paper tries to reveal the rhetoric and narratives that generate those "places of veridiction"(Focault:2005) capable of legitimizing the creation and the acceptance - by the social corpus (body) - of certain devices, institutions, policies, regulations.

2 EXCEPTION AND DISPOSITIF

The “exception”, as the basic institution in Law, allows the application of specific measures that can be found within a range of phenomena necessary for the possibility of governing-mentality, both regarding the disciplinary and repressive mechanisms and

control and “vigilância distribuída” ones (Bruno

2013). Giorgio Agamben (Agamben 2003), that deeply investigated this institute, in particular on the basis of theories made by C.Schmitt and W.Benjamin. He defines the “exception” as "the legal form of what cannot have the legal form", the force of law without the law, and as something that "has now become the norm," critical to the functioning of every regime of government of men, in particular of democratic regimes.He speaks of a "state of exception" as a dispositif by which the right refers to life and includes life within itself, through its own suspension. In the Agamben's ontology, everything is divided into living beings (or substances) and dispositif . The interaction between them produces subjects. And that means that everything that is not a living being is dispositif : the computer on which I am now typing, pen and paper that could replace it, and every technology. even the language - probably "the oldest of the dispositif ". The dispositifs, on which it would be misleading to differentiate between material and symbolic, or between concrete and abstract, are configured rather as

2064

an assemblage, a network of mechanisms, devices, instruments, behaviors, speeches, writings, knowledge, forms of production, average, protocols, frameworks, policies, institutions, languages, etc .. that are closely related to each other and related to the processes of subjectivation and de-subjectivation, that shape individuals and social organizations. Through this kind of interpretation devices thus become a broad and nuanced category. It is the ability to create processes of subjectivity (and-subjectivation) that makes a dispositif of government: removing, concealing the exercise of violence. As we said, therefore, the dispositifs in their interaction with the living, would be the producers of the processes of subjectivity. The relationship subject / subjectivation / subjection is at the center of the grid, which is configured as something likely to activate and put it to work - on each individuality and collectivity - a series of techniques and technologies of the self (Agamben: 1995), which are fundamental to the application of the possibility of the biopolitics. Thus, these processes affect directly and massively the possibility of creating a personal and collective identity, that could be free and definite, jointly liable. They act directly on the personal and emotional sphere of the individual, mediating its understanding / representation of reality, compromising the interpretation capacity, influencing the world views and relationships with others, confining, so, in what remains as a precarious and temporary identity , a ghostly identity (also affected by diseases and neurosis), easily influenced and controllable. All that also results territorially in how we live and inhabit the space, private and collective, habitats and daily life. As we said, today in the reading of some authors, the role of the dispositif becomes central: they create docile bodies and identities that must be subservient or precarious, spectral; they structure behaviors, produce or inhibite the desires, needs, everyday life, the ways of being together, our spaces. The ability to perceive and to be aware of these flows is increasingly compromised, left to the individual and the individual's power to resist and react to real or symbolic violence, that those devices bring. However, a conscience

2065

overstimulated just from an attention that becomes a pathological mechanism of supervision and continuing distrust, in which is rooted the fear of the other and the inability of the action, has little chance. Therefore, the individual and the population become fundamental variables for governmentality. The main variable, for the possibilities of the government of men and of spaces in its various forms. Andrea Cavalletti (2005) develops a concept of relationship between two fundamental notions - urbanization and civilization. The need for security is identified as what allows to legitimize the transfer of a part of our absolute freedom, at least potentially, to the state, leaving him a monopoly on force and violence. This process has been historicized by Contractarianism (Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau), in the fiction of an agreement that gives birth to a certain idea of modern society, with the overshoot of a hypothetical "state of nature". And with that, it also allows the creation of the 'a-social” and of the “abnormal”, as we learn from H.Arendt and M.Foucault. Probably, in the name of fear rather than in the name of common good. When the concept of population, space and govern, becomes a process, also become dynamic,. It fits the mode of capitalism and liberalism, with a logic that produces ripple effects, autopoietic. They have at their disposal new fields of experimentation: the territory, the body and minds, which become variables and constants on which to operate. Assume the centrality of the concept of "population" (which connect subjectivities and space) and “territory” (which connect population and fear, according to the definition of territory gived by Haesbaert(Haesbaert 2007), can help in understanding how they work the two different machines of repression and “vigilância distribuída”.

3 PRESIDIO CENTRAL

"Let me look here, we have 3716 people and a capacity for 1900 and something …"

2066

The numbers of the prison in Porto Alegre, provided by the Director of the "Presidio Central", Major Albuquerque Dagoberto da Costa, leave nothing to the imagination on the situation of the prison population :“Here inside there are prisoners for various types of crime but the general profile of the inmate here is 67% of people between 18 and 24 years old, 68% for drug-dealing and consume, 45% not have completed primary education and are pratically analphabets. They are young, poor, dwellers of the peripherical areas and the biggest amount is black.” Every daylife conditions' and socio-spatial segregation, already part of the reality of the prisoners before incarceration, are reproduced within the prison. Here prisoners are located in different pavilions and galleries, according to territorial origin and to gangs, or sexual preference, or religious beliefs. In this way, it is shown: on one side a coextension between prison and territory; and on the other a deep connection between subjectivity and spatial body, physical and symbolic (in terms of the individual place in society and as its ability to access certain territories and resources). The selectivity of justice- in the selection of crimes in the subjects to suppress and to punish- is already well established; the possibility of its discretion is linked to the powerful rhetoric and spectacularisation of drug trafficking, and to the legislation on the possession of drugs that leaves a gray space. In this gray space the exceptional can operate: the definition of the quantities that determine the charges of personal use or drug dealing and the periods of detention are established within the mesh of the legal institution and prison. The exception system continues to emerge in the particular management of the “Presidio Central” de Porto Alegre, entrusted to the Brigada Militar for more than 20 years. This is the only case in Brazil where the extraordinary measure theoretically linked to an emergency situation, it is still in place, despite the initial planned period should be about 6 months. “In the 90's there were a lot of revolts inside the prisons of Rio Grande do Sul, the most tensious moment was in 1995 when a lot of prisoners escaped from here after closing themselves inside the hospital. There were a lot of deaths and the Security Secretary chose at that time to give the responsability of the prison to

2067

the Brigada Militar for six months. But this exceptional situation never ended and we are still in charge of the situation”. All this then imply a reflection on staff training. Those who look to the "Prison Service", are the military police, who do not have the skills to perform the tasks assigned to them and that are formed, learning by doing, in the tense situation inside the prison. Even if they are assisted by the staff of SUSEPE (also still a segment of the Brazilian Military Police) with social workers, psychologists and other health workers, each of the respondents admitted, when questioned, the difficulties of the rehabilitative function theoretically assigned to the prison system . Prison should ensure, in its foundational rhetoric, then in her own place of veridiction, the prisoner as a subject that is still part of the society and as the holder of a whole series of rights, notably absent and violated behind the bars. Its constitutive fiction, therefore, falls here. The “ghost” of privatization of the prison system (which opens the possibility of exploitation of prison labor, probably already taking place informally) was supported by the new President of the State do Rio Grande do Sul, José Sartori. The rehabilitative function- which is implied in government programs of education and work within the Presidio Central- if put into effect, could pave the way preparing the prison population to the introduction of private companies in the system of exploitation of labor. This, to be possible, requires a number of rhetoric strategies to legitimize itself. These strategies are already at work: about the inefficiency of the judicial process, the impunity of criminals, the sisfunctions of the prison system (officially sanctioned by the report produced on the structural conditions of the “Presidio Central” - that define it as the worst prison in the Americas or the creation of fear of the indult for the holidays of Christmas, which is spoken in the media as the setting free of a multitude of prisoners). This rethorical strategies about prison of Porto Alegre, were contested and contextualized by the respondents, who have emphasized the manipulation by the the media and the public debate. Also, thanks to the power of narratives, it was created the justification for the internal management of the prison by the Military Police, and the system of

2068

internal representation of individual galleries of the prison, with the establishment of the position of prefeitos. The overcrowded structure, in the prison of Porto Alegre, is what conveys the exceptional and is what allows the use of these dispositifs. The number of prisoners does not even allow the closure of the cells (in the face of a space designed for 6-8 people, Maj Albuquerque spoke of a factual situation of more than 40 people). The cells are left open, allowing free movement within the galleries, each floor of the various pavilions present. As the head of the BM explains: “We are here since twenty years and we have established to develop a modality of administration in this prison that is not similar to others. There is no other police in the entire Brasil that has this ability to deal with a overcrowded prison like this. So we apply a strategy that is widely criticized[...]we have representatives in every prisonal wing, we have one prefeito and representatives of the gangs that negotiate between the brigada and the prisonal population. Me, for example, I cannot talk with 3700 prisoners so I just talk with the reprentatives of every wing, and he brings our orders to the other prisoners. I know that this strategy can be easily criticized because this empowerment of the prisoners is what strenghten the leaders inside and outside the prison. But there is no other way to do that, I cannot just sit and say that we have to stop this “representative method” because the representatives of the gangs are the ones that are helping us to mantain the prison under control and in peace.” Mechanisms of representation are introduced and tested

as the only

possibility to manage the situation and even justified through the rhetoric of participation and empowerment of prefeitos who are elected within each gallery. The creation of the figure of prefeitos, in the exceptional situation of the prison, explains the coextension between territory and imprisonment, by reproducing inside, the logic, and the dynamics of

gangs or other types of

affiliations; also does not allow a real control of what happens inside as revealed by the dynamics required for a search - you must empty the pavilion to allow the revenue of the Military Police, an operation that requires the whole day and a huge

2069

deployment of resources - or the discovery of a large number of weapons, telephones and other objects (or substances) that takes place in it. Control, as previously observed for the function rehabilitation, proves here to be a fiction. Thanks to this specific regime inside the Presidio Central that differentiates it from other prisons, is configured differently even the panoptic mechanism linked to the device. This, however, is known and used explicitly, as explains Major Guatemi during the interview: it is activated to allow the maintenance of internal security at the prison, used to compensate for the imbalance of numbers, the police, supervise as effectively as possible the many, the prisoners. Questions about the devices and the security protocols Maj Guatemi chose not to answer. He did it just to maintain this fiction, this doubt, worried we might socialize the information on the numbers of police officers involved in the operation in the galleries, or due to the devices and systems security. He was also worried that this information could then get hold somewhat of detainees. The same attitude of suspect is probably the basis of the behavior of Captain Marobin that, during the guided tour of the prison facilities, asked to stop shooting video once we stepped inside the room where the video surveillance system of the prison is centralized. This technique, this dispositif of visibility, allows the automatic operation of the power, and allows the self-policing mechanism is delayed as much as possible. Precisely in the regimes of visibility, as well as in the exceptional, and also in the intentional action of suspension of the rights and norms, we find one of the intersections with the mechanisms and the targets of the dispositifs of surveillance/control, of the

videosurveillance systems and of those who map

digital identities and behavior in cyberspace

4 THE REGIMES OF VISIBILITY

2070

“multiplos efeitos para o menor numero de causas; o maximo de aparencia para o minimo de realidade”(Bruno 2013)

The regimes of visibility, as said, are central to the functioning of both dispositif s of repression and control : by affecting the subjectivity through the game of seeing and being seen, of the control and being controlled. The similarities of their effects, can be found in the grammar of urban landscapes, as in behavior - induced and standardized - of the subjects. However differences between regimes of visibility, depend on the manner of supervising, and by the types and numbers of people involved. The architecture, real and ephemeral, of Bentham's panopticon, the base of the the design and structure of modern prisons, inform the total and distributed supervisory model, but not reified it, indeed it expands and refines it. Makes it work in a different way, leading some authors to speak of a synoptic model ( Baumann 1999) and "palin-optical" (Bruno, 2013). The panoptic produces an "internalization of the eye that watches, assures the automatic functioning of power and the transition to self-supervision" In the panoptic model are "few" those whom watch over the "many", by concealing the eye that watches, that in this way is always present and induces the prisoners, who do not know at what time are observed to self-restraint. In synoptic, instead, are many who watch over few. With the emergence of the current regime of visibility (typical of cyberspace but that expands itself to other territories) Fernanda Bruno, instead, speaks of the appearance of

palinottico:“ Nem panoptico nem sinoptico, mas um modelo

reticular e distribuido onde muitos vigiam muitos ou onde muitos veem e sao visto de variadas formas” This latter term seems particularly appropriate, because it takes into account the mechanisms at the basis of all the dispositifs analyzed up to here: not a linear process but a movement that includes and excludes at the same time, that works with a dual action of capture and escape. Networks of spread vigilance , not simply speak about hyperpanoptismo, as evolution of the model of Bentham, but bring out a new machine with a different

2071

assembly of its components, and then an "other configuration of practices and devices in which supervision becomes a process distributed among multiple agents, techniques, functions, contexts, propositions, suffering, etc. " The blatant violation of rights is somehow legitimized, such as those relating to privacy, conveyed through the emergency, the urgency and the security question, implemented by the cameras together with the proliferation of a number of other dispositif, in public and private spaces. Also a whole range of software, scripts, cookies, applications, work raking information about us while we browse the internet, while we experience in the virtual space of our social policies, while we give vent to the needs or desires through the purchase of products, visualize movies, music, etc .. These dispositif are directly integrated in many of the technologies and mobile devices that we use in everyday life, and even though latent, potentially expect only to be activated. Mobile phones, our laptops, audio recording devices, cookies, apps, are always there, present: are activated only when needed, and normally are disguised to justify them and accept them as non-dangerous: this is true for the actual function of the centers of command and control of the city of Porto Alegre, or for the integration of cameras in mobile phones or in the public space. They are therefore latent systems that are activated simply in a different manner and are directed selectively depending on referents. But they, however, expands the surveillance network's, in a capillary way. Potentially, through video-surveillance, dispositif observe the gestures, movements, actions, interactions in space; through audio-wiretaps they listen to the speeches; through the spy app on the Internet, they map and record our needs, desires and perversions, diseases, and the forms of our interaction. It is thus possible to create a new science of the individual. All this sets in motion the formation of a topology of subjectivity, that through certain knowledge and disciplines, and thanks to the personal information collected by the computing device allows the construction of a new taxonomic machine, which allows a more precise control of the population and individuals ,

2072

which are directly called to participate, to enable operation of the machine and the improvement of the system. And so, while theoretically the self and the sociability of the individual expands and free itself thanks to new technologies, its subjectivity and its relations are expropriated, mapped, studied, algoritmizzate, functionalized. It becomes clear, in these systems, a tension between the participatory and collaborative pulses', a way of operating that is widespread and horizontally , that however, must live with hierarchical and centralized models. The participation and involvement of the individual and social groups, become the engine of the system: they are what is controlled and what allows the machine control to exist, to function, to expand itself potentially and deeply in the spaces of our intimacy, whether they are the ones in which we move or those of the inner-self. The connection points and crossroads, between the various models such as those in which intersect surveillance and entertainment analyzed by Bruno, are central to the understanding of these dynamics. Where there is no self-control, where does not works spontaneous inhibition achieved through imagery, rhetoric, narratives, languages and action on subjectivity, then still get physical coercion, state monopoly and whose possibilities are guaranteed by law and by the police / militia.

5 CONTROL CENTERS

The establishment of the two "Centre for Integrated Control" present in Porto Alegre is directly linked to the World Cup football in 2014, and with them the entry into operation of the metropolitan integrated system of video-surveillance: the CEICC, pertaining to municipal , and designed for civilian use, and DCIC under state jurisdiction and entrusted to the management of the military police. This concerns the possibility of its economic realization, and its legitimacy through the rhetoric of security and the logic of spectacle and major events. While setting in motion these dispositif, we lose the idea of any guarantism regarding privacy and individuals' physical and psychological integrity, as well as

2073

any principle concerning to personal freedoms (the freedom of movement for example). The suspension of such rights, which requires, as always, a place of veridiction that legitimate the new rules, measures and protocols, is not produced directly by physical coercion and by internment, but prior through a subtle game, which acts on the processes of subjectivation and spatialization, and on contemporary regimes of visibility. The video-surveillance system is just one of the services offered by these centers, that flanks a whole different set of services to citizens that somehow mask and concur in legitimizing the video-surveillance system. So is clear the close link between these devices and the situation of exceptionality that legitimate and allows it to function. Very interesting is to understand what it is instead linked to the collective participation from the user-citizen, the intersections between alertness and spectacle, the impact on subjectivity and spaces. Both centers work due to the same network of cameras, the images of which are used for different purposes but with coherent goals and in a similar manner. The network is composed of more than 1500 units, of which a part are of a direct public property, the minority, and another instead of private property. These are then connected to the main infrastructure, after checking, and first imposed, a series of standards and requirements. The machine, to work, requires human being, despite the positivist and misanthropy rhetorics' on technology, automation, and unreliability. Its requires the actor rather than dell'attante. The machine also needs all that apparatus that still can be provided only by natural persons, which must be organized in hierarchical structures but also in horizontal and participatory networks. Here we have two trends. On the one hand, we have the diffusion (and dispersion) and on the other centralization. They do not work according to a dualistic logic, but thanks to a differential and reticular interaction, which has contact points and multiple crossing.

2074

On the other hand, there is the endemic disorganization linked to the hierarchy of the brazilian's apparatus of security and defense. The existence of different police forces (the civil and the military in particular as regards the "management" of urban violence) produces as well as a competition between these, also a difficult integration of the different phases of the police actions (the one preventive, the first-intervention, the detective, that repressive), the persistence of the military throughout the territory, the distance between the source of the problem (urban violence) and who should deal with it (the security is an issue pertaining to state and federal authorities, not to the municipal ones), mystifying and hiding the problems, internal management, etc .. behind the bureaucracy. The overlap of the tasks of the police, integrated under the "secretariat for safety", but still divided, complicates and increases the cost of management, creates conflicts between police forces. The expansion of the network can be produced thanks to individuals and private sectors, whether they are government-related, public-private investee companies, trade associations, inhabitants' groups: the installation of cameras in public space is entrusted to them, as well as the cost of installation and maintenance. The public authority then deals only to expand the infrastructure, transfer data, ensure their usefulness as evidence. The rhetoric and the alleged urgency of security, subjective adhesion of the citizens to the perpetuation of the "barbarism", are what already allows the existence of these systems. So, the private participate to the construction of collective security of the few and the perpetuation of socio-spatial segregation of many. The video-surveillance, however, is only one of the contemporary dispositifs used to stimulate the feeling of insecurity. Even these, however, similarly, operate according to a participatory and reticular logic. The use of a range of apps and devices to connect authorities and population, and to monitor and stimulate,in an even more sophisticatetly way, behaviors and fears, is - in the words of Coronel Antônio Scussel, Diretor DCICC -

2075

what they aspire to, and there is no doubt that it will be realized in the coming years. All this, even without there being no evidence of the effectiveness on reducing crime by these systems, and despite the obvious and disturbing intentions that already the system of video-surveillance offers, well expressed by Coronel Scussel: "We do not know how to compare with June of the year before [...] what we want is to have, with this technology, more efficiency in the action of the police …This means: one can commit a crime, but we want to get to a point where you have the absolute control of the public space..this is our goal: .to have the total control of public space "

6 SPATIAL EFFECTS AND DISPOSITIFS

These devices occupy the space, creating landscapes and urban grammars and at the same spatialization: they isolate and displace, map, geo-reference, locate, connect differentially, segregate, etc [...] The action, in the form of work is performed or induced by the networks of dispositifs, and not by a person who is reduced, by forcing, to a body without organs – like in Guattari the city and then the territory shall be regarded as a physical body of the different apparatus without organs (Foucault 2010), that give meaning to them, through the processes of territorialization / territorialization of flows. They just have to function. The process by which we come to develop these possibilities of action for the engineering of the space and for social-engineering is the result of experimentation, invention, sedimentation, removal of certain parts of knowledge. The result is that the coextension between body and body and between body and territory, are cut off. The unity of the environment understood as spontaneous interaction between natural factors and human factors, and that of the collective beings, is mediated through the dispositifs. This unity is broken by controlling the material and symbolic

territorialisation, and that of spatial and

2076

social representations. The space and the everyday, together with the imaginary, so became the field of domination and struggle.

7 FEAR LANDSCAPES

The layering of landscapes of safety and fear, as of a cyberspace with "dark" features, of red or black areas inside the metropolis, outlines as central the archaeological and genealogical investigations made on the term "territory" by Rogerio Haesbaert (which points out the proximity of the Latin roots between terraterritorium (land) and térreo-territor (terror, terrorizing)), as those of Andrea Cavalletti on the origins of the terms "population" and "urbanization"(Haesbaert 2007, Cavalletti 2005). In the city of Porto Alegre, the dispositifs - be they of coercion or control - invade the space: the rich neighborhoods (with infrared cameras, principals of private security), in the places of intimacy, as in those in which they are located the total institutions. Proximity between prison and the city shows how the production of space and the externalities of the dispositifs are not controllable, but produce these landscapes of fear and socio-spatial segregation. The location of this device, of this total institution, produces the city (and socio-spatial segregation) generating a phenomenon of displacement of the relatives of the prisoners and all those the

informal subjects connected with the

lives of the incarcerated population. In the 50s, by planning and with the location of the prison in a peripherical area - whose initial design is shown in Figure 1- thought as an isolated structure in a green area, next to the axes of the capital's historic expansion, are produced a series of spatial and social effects: with the expansion of the city in the second of the '900 and in the first decade of 2000, the prison buildings is not only incorporated by urban expansion but becomes one focus of it. Occurs so a transformation of the city in which the “Presidio Central” became one of the attractive points, and allows a further marginalization of the subjects not only inmates but linked to them by a series of connector: familiar, emotional, economic.

2077

8 GHETTO AND PRISON “MEET AND MESH”

Loicq Wacquant (2001) describes the existence of a strict relationship between the dynamics of the ghetto and the ones ruling the prisonal system. A “deadly symbiosis” between the two goes along a “colour line” that stuctrures the control dispositifs in the urban sphere and in the penitentiary world. The author has witnessed and analysed a swift and a profound deepening in the gap between the imprison rates of blacks and whites in the United States. His analysis is sustained by two main arguments: one hystorical and one institutional. Taking an historical perspective means “replacing the carceral institution in the full arc of ethno-racial division and domination”(2001, pg. 97). The “institutional” perspective clarifies how black incarceration is a “result of the obscelence of the ghetto as a device for caste control”(Ibidem). In this last sense, there is the need for a substitute (prisonal system) in order to mantain the status quo created by a long history of domination through slavery. If we look at the case of Brasil, also analysed by Wacquant, Brazil can be considered as “A living laboratory to uncover the deep logic of punitive containment as political strategy for managing dispossessed and dishonored populations in the polarizing city, a strategy first applied to the residents of the imploding black ghetto in the aftermath of the Civil Rights revolution in the United States and then to postcolonial migrants and their descendants in the deindustrializing urban periphery of Europe, as attested by their stupendous over-incarceration, relative to whites” (2008, pg. 58) on the one side of the Atlantic and to nationals on the other”. At the same time Brasil is , according to the author, one of the most enthustic Countries in applying in the urban context the “Zero Tolerance” policies of the then-Mayor of New York Rudolph Giuliani inspired by the world-wide known theories of the “Broken Window”: “Many citizens, of course, are primarily frightened by crime, especially crime involving a sudden, violent attack by a stranger. This risk is very real, in Newark as

2078

in many large cities. But we tend to overlook another source of fear—the fear of being bothered by disorderly people. Not violent people, nor, necessarily, criminals, but disreputable or obstreperous or unpredictable people: panhandlers, drunks, addicts, rowdy teenagers, prostitutes, loiterers, the mentally disturbed.” (Kelling & Wilson 1982)3. Wacquant explains further how ghetto and prison have changed internally becoming more and more similar to each other: “The resulting symbiosis between ghetto and prison not only enforces and perpetuates the socioeconomic marginality and symbolic taint of the urban black subproletariat, feeding the runaway growth of the penal system that has become a major component of the post-Keynesian state. It also plays a pivotal role in the remaking of ‘race’ and the redefinition of the citizenry via the production of a racialized public culture of vilification of criminals[...]This emerging government of poverty wedding the ‘invisible hand’ of the deregulated labor market to the ‘iron fist’ of an intrusive and omnipresent punitive apparatus is anchored, not by a ‘prison industrial complex’, as political opponents of the policy of mass incarceration maintain [...] but by a carceral-assistential complex which carries out its mission to surveil, train and neutralize the populations recalcitrant or superfluous to the new economic and racial regime”. So, prison offered itself to be a vehicle to solve the “black question”(2001, pg. 97). The hypothesis is that this convergence between the two spheres, ghetto and prison, experienced by the post-fordist United States, is applied and functioning in the contemporary Brazil. The punitive apparatus is taking the place of social welfare to control the urban poor, that is composed byblack youngsters living in favelas or in the peripherical areas of brazilian cities. Taking an historical perspective, this situation is traced in the colonization and slavery processes, that then left their marks in the political and social body of Brazil. The military dictatorship and the actual neo-liberal policies in Brasil such as the approval of the reduçao da maioirdade penal4 confirms this suspect. 3

4

https://www.theatlantic.com/past/docs/politics/crime/windows.htm http://ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13332&revista_caderno=12

2079

According to Wacquant, methodologically, it is important for the researcher to be careful when analysing these processes in the disadvantaged areas of the metropolis, trying to use analytical tools and not “folk concepts” : “To grasp the deep kinship between ghetto and prison, which helps explain how the structural decline and functional redundancy of the one led to the unexpected ascent and astonishing growth of the other during the last quartercentury, it is necessary first to characterize accurately the ghetto. But here we come upon the troublesome fact that the social sciences have failed to develop a robust analytic concept of the ghetto; instead they have been content to borrow the folk concept current in political and popular discourse at each epoch. This has caused a good deal of confusion, as the ghetto has been successively conflated with—and mistaken for—a segregated district, an ethnic neighborhood, a territory of intense poverty or housing blight and even, with the rise of the policy myth of the ‘underclass’ in the more recent period, a mere accumulation of urban pathologies and antisocial behaviors”(2000, pg. 382). In this sense, it is important to underline the structural mechanisms that make prison and ghetto “meet and mesh” to mantain inequality, poverty and the colour of violence through a relation of ethno-racial control: stigma, constraint, territorial confinement and institutional encasement. This colour of violence is historically marked by the penal apparatus, when state institutions gradually replace the communal ones. The economical growth of Brazil in the last years has aso brought an increase of zero tolerance policies against the poors, targeting them in order to “clean the streets” and gradually sterilyze the urban space (2006) “From Brası ́lia to Caracas to Buenos Aires, public officials have raced to adopt measures mim-icking those showcased by then-Mayor Rudolph Giuliani in New York City; and politicians have run head over heels to be photographed alongside the living incarnation of penal rigor, William Bratton, latter-day prophet of the virile religion of ‘‘zero tolerance’’ and pricey globe-trotting ‘‘consultant in urban policing’’ after he was fired from his position as head of the New York City Police Department in 1994. Not because these policies are particularly efficient[...]but because they are ideally suited to publicly dramatizing the new- found commitment

2080

of political elites to slay the monster of urban crime and because they readily fit the negative stereotypes of the poor fed by overlapping prejudices of class and ethnicity.”(2008, pg. 57) The imprisonment rates of Brazil talks clearly: 715.000 prisoners in 2014 make Brasil the third contry in the world in inprisonment rates (After United States of America and China).The Rio Grande do Sul State, where the capital city is Porto Alegre, is the fifth in the order with 28.743 people behind bars in 2013.5 The research and the interviews conducted in the “Presidio Central “ (Central Prison) of Porto Alegre confirm most of Wacquant's assumptions. The urban context happens to be as an open-air prison with a less visible type of control but not less intrusive and pervasive. The “dangerous neighbourhoods” are targeted and the citizens that live there too. In this sense, as Wacquant explains, ghetto and prison are in a relationship of functional equivalency, structural homology and cultural fusion: “This relationship has spawned a carceral continuum that ensnares a supernumerary population of younger black men, who either reject or are rejected by the deregulated low-wage labor market, in a never-ending circulus between the two insti-tutions”. In the brazilian context this relationship happens to be a specific tool of “limpeza da rua” (street cleansing) as is applied in the United States: “In both societies multisecular caste or color divisions haunt the configuration of urban space and continue to impinge upon the functioning of the chain of insti-tutions of law enforcement, from the police and the courts to the correctional administrations and their extensions. In both nations, the penalization of urban marginality relies on and reactivates symbolic associations between blackness and dangerousness, vice, and violence forged during and immediately after bondage” (2008, pg. 68). The point of the author is to underline how penal apparatus functions in reproducing and strenghtening urban marginality: 5

http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/rio-grande-do-sul-e-o-5-estado-com-maispresos-no-pais-4641002.html

2081

“I stress how aggressive policing, severe judicial sanction, and routine incarceration constitute self-standing sources of added urban dislocation, such that the penal state contributes directly to entrenching the very marginality it claims to resorb”(2008, pg. 58)

9 CONCLUSIONS

Concluding, the governance practices typical of disciplinary and police societies, as the ones of the control societies, seem to unite and inform each other: the great imprisonment with new Palinopticon, the socio-spatial segregation with self-control and self-restraint of the

behaviors.

All as a function of the

creation of docile bodies, which enable and facilitate the governmentality of the population. Control is permitted by multiple devices that work simultaneously:

the

video-surveillance centers, the web 2.0, as the television one: a Trhuman Show generalized, legitimized by the rhetoric despite no proven impact of these technologies and systems on data on crimes. Moreover, the link between the creation of these integrated systems and large events - in a manner similar to the relationship between processes of urbanization and transformation of the territories and major events - talks about the centrality of another theme: the exceptional . Similarly the exceptional becomes central to another phenomenon found: that of the reduction of the fundamental rights of the person. The dynamics stimulated by the security question, directly modulated by the feeling of insecurity, due to stratification and internalization of what is called the "Cultura do medo" - are emerging as a process now autopoietic, able to regenerate itself autonomously. This process legitimizes the contraction of public space, the socio-spatial segregation, limitation of human movement, creating pathological habitus' based on fear and insecurity: both to who internalizes his figure like the poor or the violent, and both of those who build their "identity" only on the process of negative definition of the others, creating itself "identity" in opposition to others and to the deviants.

2082

All these processes are implied in tthe rhetoric of a "security emergency" created especially through the media hype and the spectacle of violence, the creation of prejudice, etc ..- the opportunity to influence and control behavior, geographies and relationships, but also of contract and reduce the fundamental rights of the person, stimulating, highlighting and giving voice to the demands of the Penal apparatus. In this context, the debates on urban violence, on the etnhoracial segregation in the city and inside the prison play a central role.

BIBLIOGRAPHY AGAMBEN, G. “Che cos’è un dispositivo?”, Roma, Nottetempo, 2006. AGAMBEN, G. “Homo Sacer. il potere sovrano e la nuda vita”, Torino, Einaudi, 1995. AGAMBEN, G. “Stato di Eccezione”, Torino, Bollati Beringhieri, 2003. BATISTA, V. M. “Adesão subjetiva à barbárie”, In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal, Rio de Janeiro, Editora Revan, 2012. BAUMANN, Z. Dentro la globalizzazione - le conseguenze sulle persone, Ed. Laterza, Roma - Bari 1999. BRUNO, F. “Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjectividade”, Editora Sulina, Porto Alegre, 2013. CAVALLETTI, A. “La città biopolitica. Mitologie della sicurezza.”, Milano, Bruno Mondadori, 2005. DELEUZE, G. “Qu'est-ce qu'un dispositif?”, In: FOUCAULT, M. Rencontre internationale, Paris, 9, 10, 11 janvier 1988, Paris, Le Seuil (tr. it.: Che cos’è un dispositivo?, Napoli, Cronopio, 2002). FOUCAULT, M. “Nascita della Biopolitica”. Corso al College de France (19781979)”, Milano, Feltrinelli, 2005. FOUCAULT, M. “Sicurezza, territorio, popolazione”. Corso al College de France (1977-1978), Milano, Feltrinelli, 2005. FOUCAULT, M. “Eterotopia”, Mimesis Edizioni, 2010. KELLING, G., Wilson J. “Broken Windows. The police and neighbourhood safety”, disponível em: <

2083

http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1982/03/broken-windows/304465/>, 1982. WACQUANT, L. 2000, “The new 'peculiar institution’: on the prison as surrogate ghetto”, In: Theoretical Criminology, Vol. 4(3), London: SAGE 377–389; ____________- 2001, “Deadly symbiosis. When ghetto and prison meet and mesh”, In: Theoretical Criminology, Vol 3(1), London:SAGE, 95–134. ____________-2006, “Castigar a los parias urbanos”, In: Antipoda, n. 2, Universidad de los Andes (Colombia), 59-66. ____________-2008, “The militarization of urban marginality: lessons from the brazilian metropolis”, In: International Political Sociology, n. 2, 56–74 . ZERO HORA. RS é o estado com mais presos no país. Disponível em: .

2084

ADMIRÁVEL(?) CASTIGO VELHO – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE CASTIGO, PUNIÇÃO E SISTEMA PENAL

Anna Tereza Santos, Larissa Urruth Pereira,

RESUMO: O artigo objetiva-se a traçar breves considerações a respeito da cultura do castigo, desde uma perspectiva sociológico-histórica, passando por uma abordagem psicológico-criminológica, tentando buscar nos diversos saberes a origem, por excelência, da aplicação do castigo como forma de educação e repreensão de comportamento.Ao final, a partir de uma perspectiva crítica, analisar possíveis alternativas, como a justiça restaurativa, para o modelo sancionador vigente. PALAVRAS-CHAVE: castigo; punição; justiça restaurativa. 1 INTRODUÇÃO

O castigo, a punição como excelência, tem sido a resposta para os conflitos (morais e sociais) desde as épocas mais remotas da história da humanidade. Trata-se de assunto sensível, abordado pelos mais diversos campos do saber (criminologia, direito, sociologia, psicologia, etc). Não raras vezes se fala na falência dos modelos punitivistas adotados pela modernidade (CAMPOS; BARATTA; STRECK; ANDRADE, 1999, p.14), aduzindo a sua total incapacidade de resolução das situações-problema6 decorrentes da vida em sociedade. Tobias Barreto (2003, p.46), por exemplo, apresenta uma Teoria Agnóstica da Pena, pela qual defende que a pena, assim como a guerra, não tem nenhuma finalidade; é, em verdade, uma escolha política. No entanto, a punição, antes mesmo da pena - em seu sentido jurídico – está presente em nossas comunidades, desde a educação das crianças, passando pelas instituições de ensino e de emprego, até a mais drástica de suas apresentações: o sistema legal sancionador. Dessa forma, como bem salienta

6

Terminologia trazida por Hulsman. (HULSMAN;CELIS, 1997).

2085

Garland (1999, p.32), ao analisarmos o castigo, devemos levar em consideração que este se trata de um conjunto complexo de processos e instituições interrelacionados. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é traçar, ainda que breves, considerações a respeito da cultura do castigo, desde uma perspectiva sociológico-histórica, passando por uma abordagem psicológico-criminológica, a fim de verificar as origens do modelo sancionador vigente e possíveis alternativas para a sua execução (ou não).

2 SOCIEDADE, CONTROLE E CASTIGO

Ao falarmos de castigo (em sua forma mais abrangente – sanção, punição, pena) não há como nos afastarmos das diversas análises já realizadas. Desde os mais antigos relatos, temos a punição presente nos sistemas sociais. Há autores que defendem, inclusive, que o castigo se trata de uma instituição social (GARLAND, 1999), tamanho seu vulto e expressão nas relações, constituição e formação das sociedades. Assim, iniciamos nossa fala situando algumas dessas interpretações e análises já realizadas. Primeiramente cabe destacar – ainda que brevemente – uma perspectiva histórica do castigo e da inflição de dor no cenário latino-americano. Importante perceber que quando falamos em “perspectiva histórica” estamos usando a abordagem defendida por Benjamin (1972, p. 180), o qual reitera a importância de se conhecer a história “a contrapelo”, ou seja, pela perspectiva dos vencidos e não dos vencedores. Nesse sentido, nota-se que em nome de um progresso, calcado na evangelização e no catolicismo, a conquista do “novo mundo” se deu por meio da transformação das colônias em verdadeiras câmaras de tortura (LÖWI, 2007, p.2). Assim, já se pode perceber que o castigo, a tortura, a privação de liberdade e a inflição de dor vêm se mostrando como as mais antigas formas de afirmação de poder e dominação, revestidas por uma perspectiva educacional ou progressista. A evangelização dos povos indígenas, a exterminação de sua cultura e a imposição de um forçado padrão europeu marcam o início de uma

2086

história de sofrimento que se perpetua na América Latina. A situação da Bolívia, em relação ao contrabando e ao descaminho – por muitas vezes única fonte de renda da paupérrima população -, a exploração dos diamantes na Venezuela e a tortura praticada durante todas as ditaduras do continente são exemplos que, para muito além do sistema jurídico, por décadas demonstraram e ainda demonstram a violência exercida sobre essas populações (GALEANO, 2012, p. 187;193). Em um cenário mais atual, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – Versão 2013, ao menos cinco pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil, todos os dias, ou seja, aproximadamente, 1.890 vidas foram tiradas pela ação das polícias civis e militares em situações de “confronto”, no ano de 2013 (BUENO; SERQUEIRA; DE LIMA, 2013, p. 125). Assim, para além da prisão, o

extermínio também tem se mostrado como

resposta, ainda que revestida de um caráter “confrontista”, às ações violentas, ilegais ou indesejáveis praticadas pelos indivíduos. Nesse sentido, como já lecionava Rosa del Olmo (1974), é importante perceber que há uma prevalência da chamada violência estrutural e institucional no cenário latino-americano. O que quer dizer que – até mesmo em grau superior à violência praticada pelos indivíduos (os crimes propriamente ditos) - a falta de assistência estatal bem como a tortura e o extermínio conduzido pelos agentes repressivos se mostram como fatores preponderantes na nossa realidade. Feito esse pequeno aporte histórico, imperioso trazer à baila as observações tecidas por Durkheim (1983 e 2007), o qual, por meio de sua teoria da solidariedade social, compreende o castigo como um juízo moral, que tem como finalidade reafirmar a ordem moral da sociedade. Para além desse juízo moral, há que se levar em consideração as análises políticas e econômicas sobre a punição, que, por uma visão Marxista, pode considerar o castigo como parte de um sistema de produção o qual corresponde às relações produtivas da sociedade que o aplica (GARLAND, 1999, p. 114). Assim, o sistema de punições, dentro de um sistema capitalista, também pode ser entendido como uma etapa produtiva, que pode ser observada pelas relações econômicas que produz (serviços de vigilância, privatização dos presídios, etc).

2087

Ainda sob uma perspectiva político-econômica, podemos considerar o castigo como um mecanismo que reflete a luta de classes entre ricos e pobres, burgueses e proletariado. A Criminologia Crítica, virá realizar uma análise nesse sentindo, demonstrando a característica seletiva do sistema penal vigente, que tende a criminalizar as camadas mais débeis da população, realizando uma verdadeira eleição de sua “clientela”7. Assim, mais uma faceta da punição se desvela: a possibilidade de exercício de controle e de disciplina sob os indivíduos por meio da aplicação de sanções, assim, o que notamos é uma nítida perpetuação do caráter de dominação, historicamente exercido por meio da imposição de castigos. Neste ponto, importante salientar as perspectivas de Michel Foucault e Gilles Deleuze sobre a história das prisões e o surgimento das sociedades disciplinares e de controle. Em vigiar e punir Foucault apresenta a história do poder punitivo, desde a sociedade feudal – quando o corpo do condenado era o objeto da pena - até a sociedade capitalista – na qual tem-se a supressão do tempo livre e da liberdade, como objeto da pena (FOUCAULT, 2002). Sob essa ótica, o autor descreve os suplícios públicos como maneira de fazer-se notar a presença do soberano, deixando claro o seu poder e instaurando a sensação de medo no povo, que, motivado por este, respeitaria as normas e por conseguinte a sua soberania. No entanto, estas práticas passaram a ser vistas como “ameaça” ao poder soberano, uma vez que não mais assustavam o povo, o qual se solidarizava com o condenado realizando uma “confusão” entre soberano, condenado e julgador, frente às barbáries do castigo, que se apresentavam mais cruéis que o delito a ser penalizado (FOUCAULT, 2002, p.50-53). A punição, então, vai deixando o campo da percepção quase diária dos suplícios para adentrar no campo da consciência abstrata: “A certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro” (FOUCAULT, 2002, p.13). Nesta seara é que são instituídas as prisões, tornandose a principal forma de castigo das sociedades capitalistas. Foucault fundamenta

7

Nesse sentido ver: ANDRADE, 2003; BARATTA, 2002; ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011.

2088

na disciplina a razão pela qual as prisões, antes vistas como sinônimo de ociosidade, passam a ser a principal resposta ao delito (SANTOS, 2005). O poder de soberania cede espaço ao poder disciplinar. As disciplinas tornaram-se, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, as fórmulas gerais de dominação, instituídas para “o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”(FOUCAULT, 2002, p.118).É justamente por meio das instituições sociais que a disciplina irá se estabelecer e se firmar como meio de controle social. Estará presente na escola, na fábrica e, por excelência, no sistema judiciário. A instituição-prisão será, então, constituída como um mecanismo disciplinar de exercício do poder, elaborado para repartir, classificar, fixar e distribuir espacialmente os indivíduos, tirando deles o máximo de força e de tempo, com o objetivo de garantir a disciplina e adestramento, evitando atitudes de rebeldia, tornando-os submissos à ordem que se impõem (FOUCAULT, 2002, p.195). Ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende “autônomo”, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas.” (FOUCAULT, 2002, p.260).

Assim, a sociedade capitalista, dos meios de produção e das fábricas foi regida por um conceito de disciplina, dado por um confinamento em massa, que se instaurava em cada uma de suas instituições e por meio delas se mantinha. Ao passo que as instituições sociais passaram a se modificar – da fábrica para a empresa, da escola para a formação contínua, etc. – a disciplina deu lugar ao controle (DELEUZE, 1992, p. 225). Agora, vivenciamos a sociedade da informação, na qual os acontecimentos são difundidos instantaneamente, as redes sociais divulgam e disseminam cada passo de seus usuários e a mídia – por meio, principalmente, do marketing – controla e dita as atitudes e os desejos dos indivíduos. A prisão passa a ser reservada para aqueles que não podem adquirir os produtos anunciados por essa mídia (MATHIESEN, 2003, p.98-100) e o homem deixa de ser o homem confinado (nas escolas, nas fábricas e na prisão) para ser o homem endividado (que

2089

sucumbe aos desejos de mercado, compete com seus iguais no âmbito da empresa e se submete a um processo de eterna formação nas instituições de ensino) (DELEUZE, 1992, p. 227-228). Nessa nova realidade, o mercado define quem será castigado, a punição se apresenta como exclusão àquele que não serve à lógica do consumo. Feito este pequeno aparato teórico, podemos vislumbrar que a prisão, o castigo e a punição atravessaram o tempo como as formas máximas de expressão do poder, muito mais ligados à mantença das relações sociais (principalmente de dominação) do que como forma de educação ou prevenção de conflitos. No breve relato feito neste ponto, vimos que a punição teve/tem como escopo garantir (ou tentar) garantir os preceitos morais da sociedade, a hierarquia nela instituída e, mais marcadamente, garantir as relações de controle e de poder. Frente a essas prévias conclusões sobre o desenvolvimento do castigo nas sociedades, tentaremos, com auxílio de alguns conceitos oriundos das ciências psi, averiguar se a punição realmente possui caráter preventivo e educativo em relação aos reais conflitos sociais/penais ou se apenas se solidifica como expressão máxima de poder de uns sobre os outros. Tentaremos fazer isso de forma quase que metafórica, usando de conceitos da obra literária, sempre atual, “Admirável Mundo Novo”.

3 O CHOQUE ELÉTRICO DA PUNIÇÃO

“E agora - gritou o D.I.C. (pois o barulho era ensurdecedor) - agora vamos gravar mais profundamente a lição por meio de um ligeiro choque elétrico” (HUXLEY, 2008, p. 18). Esse extrato trata-se de um pequeno diálogo constante no início da obra de Aldous Huxley. A fala ilustra um dos procedimentos utilizados para a formação de crianças no mundo novo criado pelo autor: o choque elétrico. Na ficção do texto, todos os indivíduos eram gerados em uma espécie de laboratório, formados para agirem e exercerem papéis sociais pré-estabelecidos. Assim, quando ainda bebês, eram submetidos a choque elétricos imediatamente após serem apresentados a estímulos não compatíveis a sua estratificação social.

2090

Como vimos no ponto anterior, a aferição de dor, a privação de liberdade e a “estimulação” negativa se vislumbram nas formas de castigo socialmente aplicadas ao passar dos anos. Assim, como no “Admirável Mundo Novo”, embora não façamos, necessariamente uso de choques elétricos, desde o início da formação do ser, aplicamos punições como a máxima educacional que irá diferenciar o “certo” do “errado”. Não há como definir, ao certo, em que momento da história da humanidade esse “sistema educacional” foi implementado, no entanto, podemos encontrar vastas explicações para a sua adoção. Considerando o vulto deste trabalho, faremos uma abordagem simplista, partindo de alguns conceitos oriundos da psicologia comportamental8, com a finalidade precípua de exemplificar os efeitos do castigo na psique humana. Pavlov

desenvolveu

a

teoria

do

reflexo

condicionado

realizando

experiências com cachorros, nas quais observava as suas respostas a estímulos e as tendências a repetir as respostas quando submetidos a situações semelhantes. Por exemplo, ao emitir determinado som ao mesmo tempo que oferecia ácido aos cães, Pavlov observou que estes tendiam a repetir as expressões de repúdio quando ouviam aqueles mesmos sons, embora não estivessem mais sendo expostos ao ácido (PAVLOV, 1972, p. 183-185). Assim, essa teoria pode nos levar a entender que um indivíduo, por meio da repetição de determinada ação, tende a ficar condicionado a agir de determinada forma, quando os estímulos forem semelhantes. Nesse sentido, a psicologia da aprendizagem vem nos contar que tais estímulos podem se tratar de reforços ou punições, sendo que mediante os reforços (recompensas) aumentase a frequência do comportamento, enquanto, na ocorrência da punição, existe uma tendência de diminuição do comportamento(SANT’ANA, 2004). Parece-nos que é, justamente, baseada em tais condicionamentos comportamentais que a punição vem se estabelecendo (há tantos anos) como forma suprema de educação. No entanto, o que as teorias psicológicas demonstram é que o cérebro é capaz de condicionar-se por estímulos, sejam

8

Quando falamos em psicologia comportamental, nos referimos aos estudos de Pavlov, no sentido da psicologia da aprendizagem, por meio de reação a estímulos, conferir PAVLOV, 1972.

2091

estes positivos ou negativos (os positivos estimulam comportamentos e os negativos os inibem). Evidente que está é uma análise superficial das diversas formas cerebrais possíveis para responder a estímulos, no entanto, faremos uso dela para causar, ao menos, um desconforto em relação ao padrão educacional utilizado. Ocorre que, historicamente temos nos validos de conceitos fechados, baseados em uma indevida apropriação de “máximas universais” para justificar nossas escolhas. Embora seja cediço – nos estudos neurocientíficos - que o ser humano pode ter seu comportamento relativamente condicionado, o psiquismo é formado por incontáveis fatores, sendo impossível dizer que é possível universalizar um determinado método para controlar condutas9. Dizemos isso porque nos parece que tem sido mais fácil utilizar a imposição de dor como inibidor de comportamentos, em detrimento ao diálogo e à compreensão, por exemplo. Buscamos, incessantemente, por uma resposta científica, exata, uma forma mágica que irá reduzir a criminalidade, a violência. E é dessa forma que nos apropriamos, indevidamente, de teorias como as de Pavlov, generalizando conceitos tão abrangentes, tornando-os a receita exata do bolo, que trará “a cura” para nossos males. Mascaramos o sistema por meio de uma interface calcada em um ideal de educação – afinal de contas somente a punição é capaz de evitar o mal – enquanto, em verdade, ocultamos as reais finalidades do castigo, da pena em si: a reafirmação do poder. Traçar um paralelo entre a história de Huxley e as teorias de Pavlov nos permite questionar se não existem outras alternativas, que não a punição, para evitar, diminuir ou solucionar os conflitos sociais. Entender que o comportamento pode ser condicionado tão somente por meio de estímulos pode nos levar a um determinismo, quase que cego, em direção a uma realidade muito próxima àquela traçada pela ficção: um mundo tão perfeito em que não há espaço para sermos algo diferente daquilo que fomos programados para ser, deixando-nos levar pelo 9

Nesse sentido, ver: ZIMERMAN, 2010, p. 113-124; MELLO, MIRANDA, MUSZKAT, 2005; TRINDADE, 2004; SPITZ, 2004; WINNICOTT, JOHNS, ROBINSON, 1997.

2092

exercício de um controle invisível, que já nos mostrou o encarceramento em massa, em Foucault e tem nos mostrado a vigilância contínua em Deleuze.

4 RETRIBUIÇÃO? RESTAURANDO O “MUNDO NOVO”

Questionando-nos então a sobre a punição como forma única de educação, passamos a analisar nosso sistema sancionador por excelência: o jurídico-penal. Existem diversas teorias que buscam explicar as funções da pena no modelo brasileiro (retributiva, prevencionista e ressocializadora – por exemplo) (REALE JÚNIOR, 2009, p. 47-56). No entanto, como dito no começo desse trabalho, há que se observar uma forte crítica em relação às possíveis funções da pena. É necessário ter-se em mente que o Sistema Penal acaba por refletir muito da realidade – em especial das desigualdades – apresentadas na sociedade da qual se origina, o que faz com que nos deparemos com o seu caráter seletivo, o qual tende a reproduzir a discriminação que a sociedade projeta sobre as minorias, selecionando “as pessoas, quer para criminalizá-las quer para vitimizálas [sic.], recrutando sua clientela entre os mais miseráveis”(ESPINOZA, 2002, p. 35-36). É da natureza humana não aceitar o outro, o diferente, excluindo-o dos grupos, marginalizando-o. Figurando nessa parcela tida como “diferente” aos olhos da sociedade podemos apontar as classes mais baixas, as crianças, as mulheres, a população negra, dentre outros grupos (BECKER, 2008, p. 28-30). Em reflexo disso, os hipossuficientes, com menor representatividade nos grupos sociais, costumam sofrer, com maior incidência, o controle exercido pelos órgãos mantenedores da ordem social, quais sejam, a polícia, o judiciário e o governo. Dessa forma, analisando-se a população carcerária do Brasil, facilmente perceberemos uma maior presença de homens, negros e pobres. Nesse sentido importante retomar a já citada Teoria Agnóstica da Pena, trazida por Tobias Barreto. Tal teoria aduz que o ordenamento constitucional brasileiro não traz nenhuma justificante à aplicação das sanções, regulando apenas sua execução, visando dirimir os possíveis abusos cometidos durante o seu cumprimento. Portanto, a pena, assim como a guerra, não tem nenhuma

2093

finalidade, é, em verdade, uma escolha política. Dessa forma, tal punição só se justifica pela proteção do réu a fim de que este não sofra as dores de uma vingança ou de uma ação estatal exagerada, sendo uma mera regularização do castigo, que tem como função aplicar o menor grau de dor possível àqueles que a ela se submetem (CARVALHO, 2010, p. 147-153). O que podemos vislumbrar é uma disfunção no sistema, dada pelos níveis de dor e sofrimento que o encarceramento despende àqueles que a ele se submetem (CHRISTIE, 1984, p. 95-96), perdendo toda e qualquer função preventiva ou socializadora, agindo apenas de forma a degradar os indivíduos a ele submetidos.Logo, os castigos corporais que tanto nos orgulhamos de termos extinguido de nossos sistemas de controle, se fazem presentes. A pena de prisão, com a privação de ar, de sol, de luz, de espaço; o odor, a cor da prisão, as refeições sempre frias, a falta de atendimento médico, a proliferação das doenças, todos esses são fatores que degradam o corpo (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 62). A punição, por meio da pena restritiva de liberdade, consiste, como vimos, em uma história que conta com mais de 200 anos de fracassos e, além disso, trata-se de uma história marcada por sua eficácia invertida: em lugar de reduzir a criminalidade, introduz os condenados em carreiras criminosas, produzindo reincidência e organizando a delinquência (BECKER, 2008, p. 42-44). O sistema penal hoje intervém nas relações por meio das agências judiciais estipulando de forma abstrata qual será a resposta dada a um todo, adotando uma linha de reação uniforme, desprezando a complexidade humana e enxergando o crime como um ato isolado, fora do contexto em que se passou. Para o sistema penal, o fato decisivo é o delito, não as características individuais do culpado, não as circunstâncias particulares da sociedade local, sendo que, ao excluir todos esses fatores, o sistema se converte em uma negação de toda uma série de opções e possibilidades que deveriam ser tomadas em consideração (CHRISTIE, 1984, p. 60). Ocorre quemuitos delitos consistem apenas na tentativa de se dizer algo. Em vez de isolar essas pessoas através da pena restritiva de liberdade, deveríamos entender suas ações violentas como oportunidade para o início de um diálogo, ao invés de submetê-las a uma

2094

resposta igualmente torpe às ações desaprováveis que cometeram (CHRISTIE, 1984, p. 15). São várias as justificantes que se dão a fim de sustentar o sistema, que há tantos anos temos adotado como resposta para as situações problemáticas de nossa sociedade. Por vezes se fala em reabilitação, intimidação, prevenção geral, interdição dos transgressores e uma justa distribuição de punição para aqueles que causaram dano a outrem. No entanto, estudos após estudos temos visto que nenhum desses fundamentos se concretiza e que o aprisionamento (ou até mesmo a punição, em sua forma mais abrangente) não contribui em nada para a nossa sociedade (MATHIESEN, 2003, p. 89-95). Por esses motivos, acreditamos que somente uma mudança radical, cultural, que venha a demonstrar a irracionalidade da pena de prisão, afastando-a o máximo possível de nossos conflitos seria capaz de proporcionar um menor nível de sofrimento aos indivíduos e, talvez, uma maior compreensão sobre as suas atitudes. Temos muitos estudos sugerindo que o efeito preventivo da prisão é muito modesto (MATHIESEN, 2003, p. 91), então por que insistirmos nela? Seguindo os valores que estampamos em nossas constituições, por que não perseguir situações em que reinam a bondade e as ideias humanitárias, buscando opções aos castigos e não castigos opcionais? (CHRISTIE, 1984, p. 8-14) Com base em todo o exposto e, principalmente, entendendo que, historicamente o castigo se mostra tão somente como forma do exercício de poder, que na falência em que se encontra o sistema carcerário, tem sido, acima de tudo, um instrumento de imposição de dor, vislumbramos, na justiça restaurativa uma possível forma de administração de conflitos. Trata-se de uma alternativa inovadora, não punitiva, que com forte influência das correntes abolicionistas, rompe com a ideia de aplicação de uma pena, propondo que ocorrido o fato criminoso, as pessoas que estiverem nele envolvidas, bem como a comunidade que o cerca, discutam juntos o problema e firmem um acordo, com vistas à reparação. O objetivo do processo restaurativo é trazer vantagens para

2095

todos os envolvidos no fenômeno criminal, e principalmente dar a palavra a vítima, permitindo que ela ocupe parte central no processo10. Para compreender a Justiça restaurativa, é indispensável que se reconstrua o conceito de crime. Para Howard Zehr, a lente pela qual enxergamos determina o modo como configuramos o problema e a “solução”. Costumamos ver o crime através da lente retributiva e o processo penal valendo-se desta lente, não consegue atender a muitas das necessidades da vítima e do ofensor e acaba por negligenciar as vítimas enquanto fracassa no intento de responsabilizar os ofensores e coibir o crime (ZEHR, 2008, p.167-168). O crime é resultado de um sistema legal que faz distinções arbitrárias entre variados danos e conflitos. É um construto artificial que joga num só balaio uma série de comportamentos e experiências distintos, separando-os de outros danos e violações e, assim, ocultando o verdadeiro significado da experiência (ZEHR, 2008, p.167-168).

Neste contexto, Hulsman (1997, p. 99) propõe, inclusive, uma mudança de linguagem, sugerindo o abandono da palavra “crime” e “criminalidade” pelo termo situação problema. Acredita que a palavra “crime” obscurece os conflitos sociais e com a mudança de denominação do conflito, abre-se um leque de possibilidades de desfechos para a situação problemática, indo além da opção única do castigo (PALLAMOLLA, 2009, p. 43). A justiça restaurativa idealiza um modelo no qual não há, simplesmente, a imposição de uma pena irracional e sim, um modelo no qual a Justiça seja avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico alcançado (PINTO, 2003, p. 5). Acreditamos que a aproximação das partes, em um cenário público alternativo “onde a argumentação e o pensar escrupuloso sejam valores dominantes; um espaço público com uma cultura diferente que no final possa competir com o espaço público superficial dos meios de comunicação de massa”(MATHIESEN, 2003, p.108), seja um caminho mais coerente e, provavelmente, mais eficaz para a resolução dos conflitos. Afinal de contas,

10

Nesse sentido ver: ACHUTTI, 2012; CARVALHO, 2011.; LARRAURI, 2004; PALLAMOLLA, 2009; MARSHALL, BOYACK, BOWEN, 2005.

2096

mesmo com base na teoria comportamental de Pavlov, os estímulos positivos podem moldar comportamentos, então por que fazer uso da dor da punição no lugar do pensar escrupuloso, como sugere Mathiesen?

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo buscou, fundamentalmente, reiterar as afirmações de falência do nosso sistema punitivo, marcado por promessas não cumpridas que vão além da função intimidatória da pena até à perspectiva de ressocialização. Por meio dos estudos de Foucault nota-se que desde seu surgimento a prisão já era fadada a sua ineficácia, uma vez que sua verdadeira finalidade nunca fora a humanização do condenado, como defendido quando da sua implementação no lugar dos suplícios, mas unicamente a reafirmação do poder. Por meio de uma análise multifocal sobre as noções de castigo e punição, tentou-se demonstrar que a sanção não se trata do único e do mais eficaz meio de evitar condutas ou solucionar conflitos. O que se tentou fazer foi demonstrar que um espaço público, que envolva as partes em um diálogo pode se mostrar muito mais eficaz e menos doloroso nos processos de interação e prevenção da criminalidade. Com base nessas críticas, apontou-se a justiça restaurativa como uma possibilidade de resolução de conflitos, não punitiva, eficaz, voltada ao restabelecimentos de vínculos sociais solapados pela violência cotidiana, e muito especialmente à assunção de responsabilidades por parte tanto dos autores de práticas violentas ou de desrespeito ao direito alheio. Tendo como principais objetivos a conciliação e a reparação entre as partes, a resolução do conflito, a reconstrução dos laços rompidos pelo delito, a prevenção da reincidência e a responsabilização, e não a imposição de dor e punição do indivíduo.

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, D. S. Justiça restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. Porto Alegre, 2012.

2097

ANDRADE, V. R. P. de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora LTDA - Livros, 2003. BARATTA, A.. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BARRETO, T. Menores e loucos em Direito Criminal. Brasília: Senado Federal, 2003. BENJAMIN, W. B. Bartolomé de Las Casas. In: Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie: escritos escolhidos. Selecão e apresentação Willi Bolle. São Paulo: Cultrix, 1972. BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. BUENO, S.; CERQUEIRA, D.; DE LIMA, R. S. Sob fogo cruzado II: letalidade da ação policial. Anuário de Segurança Pública – Versão 2013. Disponível em: Acesso em 11 jul. 2014. CAMPOS, C. H. de (org.); BARATTA, A.; STRECK, L. L.; ANDRADE, V. R. P. de. Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. CARVALHO, S. de. Antimanual de criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. XXV. CHRISTIE, N. Los Límites del Dolor. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Nassetti- Ed. Martin Clareto – São Paulo, 2007. DURKHEIM, E. Da Divisão do Trabalho Social. Os Pensadores – 2 ed. São Paulo: Abril Cultural,1983. ESPINOZA, O. A Prisão Feminina desde um Olhar da Criminologia Feminista. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias. Pelotas, v.1, n.1, p.35-60, jan./dez. 2002.p.35-36. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2012.

2098

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 26. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002. GALEANO, E. Nosotros decimos no: crónicas 1969-1988. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. GARLAND, D. Castigo y sociedad moderna. Madrid: Siglo Veintiuno, 1999. HULSMAN, L. & CELIS, J. B. de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. 2. ed. Niterói: Luam, 1997. HUXLEY, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2009. LARRAURI, E. Tendencias actuales en la justicia restauradora. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 51, nov./dez. 2004. LÖWI, M. El punto de vista de los vencidos em la historia de América Latina. Revista a I’encontre (Suiza), 2007. MARSHALL, C.; BOYACK, J.; BOWEN, H. Como a Justiça Restaurativa assegura a boa prática. Uma Abordagem Baseada em Valores. In: BASTOS, M. T.; LOPES, C.; e RENAULT, S. R. T. (orgs.). Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. MATHIESEN, T. A caminho do século XXI – abolição, um sonho impossível? VERVE - Revista semestral autogestionária do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP). São Paulo, n.4, p.80-111,2003.p.98-100. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2012) MELLO, C. B. de, MIRANDA, M. C., MUSZKAT, M. (Org.). Neuropsicologia do Desenvolvimento. 1. ed. São Paulo: Memnon, 2005. OLMO, R. del. Limitaciones para la Prevención de la Violencia: la Realidad Latinoamericana y la Teoría Criminológica. Palestra apresentada nas II Jornadas Venezuelanas de Criminologia, realizadas em Maracaibo, em julho de 1974 e publicada na Revista Psicología, Vol. I, n. 1, Escola de Psicologia da Universidade Central da Venezuela: Caracas,1974. PALLAMOLLA, R. da P. Justiça Restaurativa: da teoria à prática. 1. ed. São Paulo: IBCCRIM, 2009. PAVLOV, I. P. Reflexos condicionados e inibições. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

2099

PINTO, R. S. G. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1432, 3 jun.2007. Disponível em: .Acesso em: 27 de março de 2013. REALE JÚNIOR, M. Instituições de direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. SANT’ANA, V. L. P. A Psicoterapia Analítico-Comportamental. Anais da VI Semana de Psicologia da UEM: Subjetividade e Arte. Maringá-UEM: 06/10/2004 à 08/10/2004. Disponível em: http://www. dpi. uem. br/v-semanapsi/pdf/a% 20psicoterapia% 20analitico-compo. pdf. Acesso em: 18 mai. 2014. SANTOS, J. C. dos. 30 anos de Vigiar e Punir (FOUCAULT). Trabalho apresentado no 11 Seminário Internacional do IBCCRIM (4 a 7 de outubro de 2005), São Paulo. Disponível em: . Acesso em 18 mai. 2014. SPITZ, R. A. O primeiro ano de vida. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. XIX. TRINDADE, J. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2004. WINNICOTT, D. W.; SHEPHERD, R.; JOHNS, J.; ROBINSON, H. T. (Org.). Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artmed, 1997. ZAFFARONI, E. R; PIERANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 9. ed. São Paulo: R. dos Tribunais, 2011. v. 1. ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008. ZIMERMAN, D. E. (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed. Campinas: Milennium, 2010.

2100

A ATUALIDADE DE MICHEL FOUCAULT – DESDE VIGIAR E PUNIR

Marco Antonio de Abreu Scapini

RESUMO: O presente texto tem como propósito apresentar alguns questionamentos a partir das referências temáticas de Michel Foucault, ainda em 1975, na obra Vigiar e Punir. Embora a referida obra tenha uma certa centralidade nas linhas que se seguirão, a análise da sua atualidade se dará muito mais em torno as temáticas decorrentes de uma certa leitura das questões que dizem respeito aos jogos de ilegalismos, aos dispositivos de controle e de vigilância, cuja prisão é expressão ou símbolo máximo, e que poderá abrir caminhos para a compreensão da biopolítica contemporânea. Assim, o presente texto se constrói em torno a estas temáticas, sempre com um endereçamento à justiça que, no modo como a concebemos, se dá pela negação ou pela crítica à violência. Além disso, tendo como pretensão levar ao limite as questões levantadas por Foucault, e sabendo dos riscos e das implicações que isso pode significar, entendemos necessário estabelecer encontros com autores como Adorno, Agamben, Derrida e Blanchot. PALAVRAS-CHAVE: Desconstrução; Poder; Violência; 1 INTRODUÇÃO

A atualização do pensamento de Michel Foucault se mostra cada vez mais urgente, tendo em vista as grandes contribuições do filósofo francês em diversos campos do saber e também pelas ferramentas que deixou como legado para a construção de diversas possibilidades de crítica à violência. No presente texto, fizemos a opção por abordar a temática acerca do jogo de ilegalismo presente, na Obra Vigiar e Punir, desenvolvendo os desdobramentos deste jogo para além da própria obra do autor. Nesse sentido, nas linhas que se seguirão, estabelecemos aberturas e diálogos com outros autores de modo a enfrentar criticamente as problemáticas biopolíticas contemporâneas.

2101

2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO

No mundo, em que as coisas estão em seu lugar, em que os olhos, as mãos e os pés sabem encontrá-las, em que a ciência prolonga a topografia da percepção e da práxis, mesmo ao transfigurar seu espaço; nos lugares onde se localizam cidades e campos que os humanos habitam, ordenando-se segundo diversos conjuntos, entre os entes; em toda essa realidade “correta”, o contra-senso dos vastos empreendimentos frustrados – em que política e técnica resultam na negação dos projetos que os norteiam – mostra a inconsistência do homem, joguete de suas obras. Emmanuel Levinas11

O objetivo deste texto é apresentar alguns questionamentos a partir das referências temáticas de Michel Foucault, ainda em 1975, na obra Vigiar e Punir12. Embora a referida obra tenha uma certa centralidade nas linhas que se seguirão, a análise da sua atualidade se dará muito mais em torno as temáticas decorrentes das questões que dizem respeito aos jogos de ilegalismos, aos dispositivos de controle e de vigilância, cuja prisão é expressão ou símbolo máximo. Deste modo, espera-se que tal análise poderá abrir caminhos para a compreensão da biopolítica contemporânea caracterizada por uma espécie de assujeitamento do ser. Assim, pensar a atualidade, no sentido que estamos propondo, significa realizar uma leitura ou abordagem fora da usual. Não se trata, portanto, de um pragmatismo, mas de uma leitura que possa contribuir para alguma mudança desde as ideias lançadas por Foucault. Estamos próximos a Seligmann-Silva que,

11

LEVINAS, Emmanuel. “Humanismo e an-arquia”. In: LEVINAS, E., Humanismo do outro homem. Trad. Pergentino S. Pivatto – Anísio Meinerz – Jussemar da Silva – Luiz Pedro Wagner – Magali Mendes de Menezes – Marcelo Luiz Pelizzoli. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 71. 12 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 41ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

2102

ao apresentar a atualidade dos pensamentos de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, afirma o seguinte: Não se trata de fazer um apanhado da vida e obra, nem de se fazer meticulosa avaliação crítica dos textos. A atualidade é um conceito positivo, e o texto de análise voltado para atualidade é abertamente parcial em mais de um sentido. O “atualizador” não teme cortar e recortar o fato cultural que ele estuda. Trata-se de um modo diverso do que normalmente se pratica no âmbito acadêmico, pois a escrita voltada para a atualização será mergulhada na atualidade e não pode ser simples encômio e comemoração. O autor que busca a atualidade de um pensamento parte de um diagnóstico de seu presente. Atualizar implica estar atento para o que se passa no presente do autor que escreve agora. A atualização busca um curto-circuito entre o ocorrido e o agora. Trata-se de um ato de memória e, como toda modalidade de atualização, 13 parte de um conceito forte de agora .

A atualidade do pensamento de Foucault, portanto, passa pelo diagnóstico de sua importante presença como ferramenta de análise do contemporâneo, sobretudo quando a análise envolve as questões referentes ao controle biopolítico, aos processos de subjetivação, ao encarceramento, a vigilância, ao espaço, a invisibilidade dos dispositivos, a loucura, etc. A questão em torno à prisão e ao sistema penal é de interesse de Foucault bem antes da publicação de Vigiar e Punir. Trata-se, em verdade, pelo interesse pela lei, ou melhor, pela transgressão da lei em sentido amplo, o que significa que a questão não se restringe ao sistema penal. Pode-se dizer que, de algum modo, a transgressão do limite é central nas análises de Foucault. Nesse sentido, diz filósofo francês em 1971: Há um problema que há muito tempo me interessa, é o do sistema penal, da maneira como uma sociedade define o bem o mal, o permitido e o não permitido, o legal e o ilegal, a maneira como ela exprime todas as infrações e todas as transgressões feitas à sua lei. Já encontrei com esse problema com relação à loucura, pois a loucura é igualmente uma forma de transgressão. Foi extremamente difícil para nossas civilizações fazer a divisão entre esse desvio que é a loucura e a falta ou o crime que são a transgressão. Tal é, portanto, minha preocupação: o problema da 14 transgressão da lei e da repressão da ilegalidade .

O interesse, portanto, de Foucault diz respeito ao que está por trás do que se mostra explicitamente no sistema penal. Trata-se das definições ou critérios de como uma sociedade define a legalidade, o que implica desde já no critério sobre

13

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, pp. 11-12. 14 FOUCAULT, Michel. Um problema que me interessa há muito tempo é o do sistema penal. In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 32.

2103

as infrações e as transgressões feitas. Nesse sentido, as transgressões feitas à sua lei remetem ao âmago da questão propriamente dita que é, justamente, a formulação desta lei. Segundo Gilles Deleuze: Um dos temas mais profundos do livro de Foucault consiste em substituir a oposição, por demais grosseira, lei-ilegalidade por uma correlação final ilegalismos-lei. A lei é sempre uma composição de ilegalismos, que ela diferencia ao formalizar. Basta considerarmos o Direito das sociedades comerciais para vermos que as leis não se opõem globalmente à ilegalidade, mas que umas organizam explicitamente o meio de não cumprir as outras. A lei é uma gestão dos ilegalismos, permitindo uns, tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégio da classe dominante, tolerando outros como compensação às classes dominadas, ou, mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente, proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de 15 dominação .

Desde esta perspectiva, podemos conceber a importante substituição da oposição (grosseira) da lei-ilegalidade para a correlação ilegalismos-lei como a pressuposição de que toda lei, neste sentido, faz um jogo de ilegalidades cuja produção – e diferenciação – se dá no ato de sua própria formulação. Não por outra razão, a lei é considerada por Foucault como uma gestão de ilegalismos. Esta gestão é bem demonstrada por Foucault com a análise histórica que faz na passagem para o séc. XVIII, quando descreve as transformações sociais do período, com as respectivas mudanças do controle sobre os ilegalismos, e os reais motivos da reforma penal daquela época. Assim, afirma Foucault: Podemos dizer esquematicamente que, no Antigo Regime, os diferentes estratos sociais tinham cada um sua margem de ilegalidade tolerada: a não aplicação da regra, a inobservância de inúmeros éditos ou ordenações eram condição do funcionamento político e econômico da sociedade. Traço que não é particular ao Antigo Regime? Sem dúvida. Mas essa ilegalidade era tão profundamente enraizada e tão necessária à vida de cada camada social, que tinha de certo modo sua coerência e 16 economias próprias .

A tolerância da ilegalidade era recíproca entre as classes, sendo elemento estruturante das relações diante da marca profundamente enraizada em cada camada social. Esta condição – tolerante ao ilegalismo – estabeleceu, segundo Foucault “o jogo recíproco das ilegalidades”17, que fazia parte da vida política e econômica da sociedade. 15

DELEUZE, Gilles. Um novo cartógrafo (Vigiar e Punir). In: Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2013, p. 39. 16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. pp. 79-80. 17 Idem. Op. cit. p. 81.

2104

Todavia, com as mudanças econômicas no perídio, houve uma rearticulação da lógica sobre a economia dos ilegalismos. Na metade do séc. XVIII, iniciou-se a inversão do jogo. Segundo Foucault “primeiro com o aumento geral da riqueza, mas também com o grande crescimento demográfico , o alvo principal da ilegalidade popular tende a ser não mais em primeira linha os direitos, mas os bens”18. A alteração no panorama sobre o que denominamos economia dos ilegalismos, fez com que se incrementasse o interesse da classe burguesa na punição, criando então, a necessidade de se reprimir com urgência as inúmeras práticas de ilegalidade em torno à propriedade. Neste cenário, há também a transformação da estratégia do poder de punir ou castigar. Se antes tínhamos uma certa cumplicidade entre as classes e um consentimento mudo do poder, tornando o jogo das ilegalidades algo enraizado na sociedade, passa-se, juntamente com a transformação econômica, à reestruturação da máquina penal. Nesse sentido, a “reforma penal” está profundamente vinculada aos novos interesses econômicos decorrentes, sobretudo, da necessidade burguesa de tutela à propriedade, o que transformou toda uma massa de pessoas em criminosa por sua mera condição existencial. Assim, segundo Foucault, os objetivos primeiros da estratégia da reforma seriam: Fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor, punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo 19 social o poder de punir .

Diante desses objetivos declarados, cujos (falsos) argumentos são absolutamente atuais no sentido de uma punição mais qualificada e universal, percebemos uma certa dissimulação em torno a questão do humanismo, cuja centralidade discursiva era a crítica aos suplícios e ao poder ilimitado do soberano.

Isto porque, por trás deste interesse pela limitação do poder de punir

e castigar está presente uma racionalidade econômica que pauta toda a reelaboração das estruturas punitivas e desloca o direito de punir – do soberano à defesa da sociedade20. O próprio discurso da “reforma” é sustentando por esta 18

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. p. 81. Idem. op. cit. p. 79. 20 Importante ressaltar que este deslocamento do poder de punir – do soberano à defesa da sociedade – é construído com base na teoria geral do contrato social, cujo pressuposto é a

19

2105

racionalidade. Nesse sentido, segundo Foucault, “essa racionalidade “econômica” é que deve medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas. “Humanidade” é o nome respeitoso dado a esta economia e a seus cálculos minuciosos”21. Para além do dever em medir a pena e prescrever as técnicas ajustadas, o que nos interessa nesse momento é, justamente, a forma pela qual esta racionalidade

econômica

se

dissimula

em

nome

de

um

humanismo,

reestruturando toda a máquina punitiva-disciplinar, e o modo pelo qual os desdobramentos deste gesto irão aparecer mais tarde. Assim, segundo Blanchot: Não é, portanto, por bondade que o destino dos condenados é tornado mais discreto, e tampouco é por gentileza que os corpos dos culpados 22 são deixados intactos, atacando-se suas ‘almas’ e ‘mentes’ .

Assim, o humanismo se torna apenas instrumento para suavização dos discursos declarados na reestruturação do poder. Atualmente declara-se o horror em nome da justiça e do humanismo. Nesse sentido, Jacques Derrida, leva ao limite a questão do que está por trás das “novas guerras da religião” como interesses econômicos, político-militares, etc. Para Derrida: Por trás do que se apresenta sob o nome da religião, para além do que se defende ou se ataca em seu nome, mata, mata-se ou se mata mutuamente e, por isso, invoca objetivos declarados, dito de outra maneira, menciona abertamente a indenidade. De modo inverso, se o que nos acontece assim, como dizíamos, assume frequentemente (nem sempre) as figuras do mal e do pior nas formas inéditas uma atroz “guerra das religiões”, esta, por sua vez, nem sempre se apresenta como tal. Com efeito, não é certo que, ao lado ou diante dos crimes mais espetaculares e mais bárbaros de certos “integrismos” (do presente ou do passado), outras forças superarmadas não estejam empreendendo também “guerras da religião” inconfessadas. As guerras ou as “intervenções” militares conduzidas pelo Ocidente judaico-cristão em nome das melhores causas (do direito internacional, da democracia, da soberania dos povos, das nações ou dos Estados, inclusive dos imperativos humanitários) não serão também, em alguns aspectos, 23 guerras da religião ?

Há, portanto, a presença do inconfessável naquilo que nos acontece. Em nome da religião, das melhores causas (da justiça, do direito internacional, da democracia, da soberania, do humanismo), se faz a guerra, mata e se mata, num aceitação de cada um a todas as regras da sociedade. Inclusive, Foucault menciona em nota que as ideias de Rousseau foram usadas na constituinte. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 87. 21 Idem. Op. cit. p. 88. 22 BLANCHOT, Maurice. Da sujeição ao sujeito. In. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 137 23 DERRIDA, Jacques. Fé e saber. In: A religião: o seminário de Capri. (Orgs.) Gianni Vatiimo e Jacques Derrida. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 39.

2106

exercício dissimulado (de poder) que nem sempre aparece como tal. O discurso declarado, cuja hipocrisia é sem limites, expõe-se pela falsa bondade referida acima com Blanchot.

Além disso, tais discursos (declarados) mencionam

abertamente a indenidade, cuja significação da palavra nos leva a pureza, o não contaminado, o intocado, o sagrado ou o santo, antes de qualquer profanação, ferida, ofensa ou lesão. A palavra indene é associada por Derrida às palavras “imune”, “imunidade” e “auto-imunidade”24. O que nos leva a perceber que tais discursos, além de pretender dissimular seus reais interesses, buscam também se auto-imunizar das próprias ações que tentam desesperadamente justificar. Trata-se de uma espécie de expiação da culpa. Imersos que estamos nesta dimensão – religiosa – deveríamos, pois, tentar uma espécie de dissociação da questão religiosa. Tarefa, por assim dizer, impossível. Segundo Derrida: Seria necessário estabelecer a dissociação entre as características essenciais do religioso como tal e as que servem de fundamento, por exemplo, aos conceitos da ética, do jurídico, do político ou do econômico. Ora, nada mais problemático do que fazer tal dissociação. Os conceitos fundamentais que nos permitem isolar ou pretender isolar o político, para nos limitarmos a esta circunscrição, continuam sendo 25 religiosos ou, em todo o caso, teológico-político .

Assim, todas as questões econômica, política e, nesse sentido, jurídica também, encontram-se indissociadas do religioso.

Esta indissociação com o

religioso também é pautado por Foucault, tendo como exemplo a questão do surgimento do inquérito policial. Diz Foucault: Devido a todas as implicações e conotações religiosas do inquérito, o dano será uma falta moral, quase religiosa ou com conotação religiosa. Tem-se assim, por volta do séc. XII, uma curiosa conjunção entre a lesão a lei e a falta religiosa. Lesar o soberano e cometer um pecado são duas 26 coisas que começam a se reunir .

Não obstante, como assinalamos ao início, se a questão foucaultiana é, justamente, a transgressão da lei e, posteriormente, os desdobramentos da repressão da ilegalidade, então, o problema também é de fé. Isto porque, além desta contaminação com o religioso, esta instância de fé é condição do 24

Idem. Op. cit. p. 36. DERRIDA, Jacques. Fé e saber. In: A religião: o seminário de Capri. (Orgs.) Gianni Vatiimo e Jacques Derrida. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 40. 26 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 74. 25

2107

acontecimento performativo da fundação da lei. Nesse sentido, valendo-se dos pensamentos de Pascal e Montaigne, Derrida diz o seguinte: O fundamento da lei – a lei da lei, a instituição da instituição, a origem da constituição – é acontecimento “performativo” que não poderá pertencer ao conjunto que ele fundamenta, inaugura ou justifica. Tal acontecimento é injustificável na lógica do que tiver aberto. Ele é a decisão do outro no indecidível. Desde então, a razão deve conhecer aí o que Montaigne e Pascal chamam de irrecusável “fundamento místico da autoridade”. O místico entendido dessa forma alia a crença ou o crédito, o fiduciário ou o fiável, o secreto (o que significa aqui “místico” ao fundamento, ao saber, também diremos mais adiante, à ciência como fazer, como teoria, prática e prática teórica, isto é, a uma fé, à performatividade e à performatividade tecnocientífica ou telectonológica. Nas situações em que, desmoronando, esse fundamento fundamenta, nas situações em que se furta sob o solo do que ele fundamenta, no instante em que, perdendo-se assim no deserto, perde inclusive o vestígio de si mesmo e a memória de um segredo, resta à “religião” começar e re-começar: 27 quase de forma automática, mecânica, maquinal, espontânea .

Esta questão mística do acontecimento performativo nos parece anterior ao jogo de ilegalismos suscitado por Foucault, ao mesmo tempo em que também está presente na questão foucaultiana, justamente, pela perda de seus vestígios, o que implica ainda mais na atualidade de Foucault. Nesse sentido, o místico é entendido como a concessão de um crédito, e aí está a autoridade das leis. Para Derrida “a autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes concedemos. Nelas acreditamos, eis seu único fundamento”28. Esta é a característica mais intrínseca do que estamos assinalando em torno às dissimulações do poder. Além disso, encontramos – nas críticas de Pascal e Montaigne –, conforme nos expõe Jacques Derrida: “as premissas de uma filosofia crítica moderna, uma dessedimentação das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticas das forças dominantes da sociedade”29. Não se trata aqui de um pessimismo absoluto em relação ao direito, mas de uma vigia a este aspecto fundamental que, por vezes, fica subsumido na lei já instituída, mas que nos assombra permanentemente. Podemos sugerir aqui um certo jogo de dissimulações do poder, em que as forças dominantes da sociedade se valem para reorganizar e ampliar a sua lógica de governo. 27

DERRIDA, Jacques. Fé e saber. In: A religião: o seminário de Capri. (Orgs.) Gianni Vatiimo e Jacques Derrida. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, pp. 30-31. 28 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade p. 21.Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 21. 29 Idem. op. cit. p. 23.

2108

Podemos, ainda, sugerir a existência uma dissimulação em torno da fé, ou seja, na crença na lei, ao passo que o projeto “reformista” se pauta, justamente, na legalidade e na ideia já sugerida de humanismo. Assim, sob a aparência de boas intenções que este humanismo dá a entender, o poder se rearticula silenciosamente, fazendo da própria linguagem mero instrumento, tornando-a serva de seus interesses nem sempre declarados. Para Theodor Adorno: A palavra que não é simples meio para algum fim parece destituída de sentido, e as outras parecem simples ficção, inverdade. Os juízos de valor são percebidos ou como uma publicidade como conversa fiada. A ideologia assim reduzida a um discurso vago e descompromissado nem por isso se torna mais transparente e, tampouco, mais fraca. Justamente sua vagueza, a aversão quase científica a fixar-se em qualquer coisa que não se deixa verificar, funciona como instrumento da dominação. Ela 30 se converte na proclamação enfática e sistemática do existente .

A palavra, portanto, parece destituída de sentido. Mas é justamente a sua vagueza e o seu descompromisso que fazem dela instrumento de dominação. E assim se converte na mera proclamação do existente como algo natural. É preciso, portanto, cuidado ao enfrentar a questão propriamente dita desta racionalidade, tendo em vista que nem sempre o ponto fulcral ou decisivo está visível. Nesse sentido, é justamente pela instrumentalização da linguagem, articulada por este estilo de racionalidade, mencionado por Foucault, que é possível fazer a reengenharia da lógica de poder e de castigo como meio, talvez, mais suave – se comparado ao suplício –, mas não menos cruel. Que a humanização das condições carcerárias-punitivas tenha representado um certo avanço, talvez, seja difícil questionar. Todavia, é preciso entender em nome de que tal situação foi possível ou desejável. Ou seja, entender, no caso de Foucault, desde esta racionalidade econômica e seus cálculos minuciosos, os reais motivos, ou seja, as razões deste acontecimento. O próprio Foucault percebe esta dimensão, quando afirma o seguinte sobre o pensamento burguês do séc. XIX: “ela é inteligente e cínica. Basta ler o que ela dizia de si mesma e, melhor ainda, o

30

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p 123.

2109

que ela dizia do outros”31. Nesse sentido, o aparente humanismo pode obliterar o olhar crítico, pois a racionalidade que sustenta tal pensamento, além de cínica é dissimulada. A lógica desta racionalidade é, justamente, escamotear seus reais interesses, ao passo que, por exemplo, prometendo liberdade, rearticula-se de modo a reforçar o controle e a dominação sobre o existente. A contradição, nesse caso, é meramente aparente. Desta maneira, diz Blanchot: Nem tudo aquilo que melhora as condições as condições carcerárias é, claro está, detestável, mas corre o risco de nos enganar sobre as razões que tornaram essas melhorias desejáveis ou bem-sucedidas. O século XVIII parece dar-nos o gosto de liberdades novas – isto é muito bom. Contudo, o fundamento dessas liberdades, seu “subsolo” (diz Foucault), não muda, já que ainda o encontramos numa sociedade disciplinatória cujos poderes de supremacia se dissimulam enquanto se multiplicam. Estamos sempre e cada vez mais subjugados. Dessa subjugação, que já não é grosseira e sim delicada, extraímos a consequência gloriosa de ser sujeitos, e sujeitos livres, capazes de transformar em conhecimento os métodos mais diversos de um poder mentiroso, na medida em que é preciso que esqueçamos sua transcendência substituindo a lei de origem divina pelas diversas regras e pelos procedimentos razoáveis que, quando nos cansarmos deles, parecerão frutos de uma burocracia, sem dúvida humana, mas monstruosa (não nos esqueçamos de que Kafka, que parece descrever com genialidade as formas mais cruéis da burocracia, também se inclina diante dela, vendo aí a estranheza de um 32 poder místico, que praticamente não foi degradado

A passagem de Blanchot é precisa no modo pelo qual estabelece a questão. Não se trata meramente da situação carcerária, esta questão é exemplificativa, sem dúvida, mas não se esgota em si mesma. A questão propriamente dita envolve a própria condição da existência, cada vez mais subjugada, com uma falsa aparência de liberdade. O subsolo foucaultiano – fundamento das novas liberdades –, não se alterou. Os poderes que articulam aquilo que Foucault denomina sociedade disciplinar se dissimulam enquanto se multiplicam. Nesse sentido, Barhtes afirma o seguinte: “adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social”33. O exercício do poder, portanto, está presente em cada intercâmbio social, algo muito próximo do que Foucault afirma na sua Microfísica do poder. Além disso, é 31

FOUCAULT, Michel. Entrevista sobre a prisão: o livro e o seu método. In. Estratégia, podersaber (Ditos e Escritos IV). p. 168.. 32 BLANCHOT, Maurice. Da sujeição ao sujeito. In. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, pp. 137-138. 33 BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 19.

2110

preciso entender que o poder – o exercício do poder – cria objetos de saber. Não por acaso, a racionalidade que sustenta os pilares da lógica do cárcere é a que regulará, por exemplo, a estrutura psiquiátrica – hospitalar –, escolar, militar, e a própria construção das subjetividades. Assim, afirma Foucault: Não há que se contentar em dizer que o poder tem a necessidade de tal ou tal descoberta, de tal ou tal forma de saber, mas sim que exercer o poder cria objetos de saber, os faz emergir, acumula informações, as utiliza. Não se pode compreender nada do saber econômico se não se sabe como se exercia, em sua cotidianidade , o poder, e o poder econômico. O exercício do poder cria perpetuamente o saber e, 34 inversamente, o saber acarreta efeitos de poder .

O poder, portanto, não tem a necessidade de uma forma de saber específica, pois seu exercício cria os objetos de saber. Nesse sentido, compreender o exercício do poder é condição para a compreensão do saber econômico. É por isso que a análise de Foucault passa também pelo exercício (de poder) das instituições. Para Deleuze “o poder ‘produz realidade’ antes de reprimir”35. Assim, esta “produção de realidade” está vinculada a um processo de naturalização da violência. Além disso, implica na introjeção da lei, já instituída, e dos dispositivos de controle nas subjetividades. Por esta razão é que Blanchot nos alerta para o fato de estarmos cada vez mais subjugados. O próprio Foucault reconhece a importância desta dimensão ao dizer: “hoje, é a luta contra as formas de sujeição – contra a submissão da subjetividade – que prevalece cada vez mais, mesmo se as lutas contra a dominação e a exploração não desapareceram, muito pelo contrário”36. Assim, a percepção e a luta contra estas formas de sujeição, ou a submissão da subjetividade, não pode ficar restrita apenas a análise do funcionamento e do exercício de poder das instituições. É nesse ponto que Foucault marcará uma ruptura com Goffman, que se fixa na análise da instituição propriamente dita. O que faz Foucault tão atual, na leitura que estamos propondo, é justamente o fato de que a sua análise é anterior. Isto significa que procura a racionalidade que faz operar a máquina –, ou seja, o modo pelo qual

34

FOUCAULT, Michel.Entrevista sobre a prisão: o livro e seu método. In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 172. 35 DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 38. 36 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: Ditos e Escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. Pp. 123-124.

2111

opera nas instituições e como se sobrepõe à vida das pessoas. Nesse sentido, é a racionalidade (a forma como opera) que produz as formas de sujeição e que faz o cálculo sobre o modus operandi das instituições. Desse modo, diz Foucault: De minha parte, procuro mostrar e analisar a relação que existe entre um conjunto de técnicas de poder e de formas: formas políticas como o Estado e formas sociais. O problema ao qual Goffman se prende é o da instituição mesma. O meu é o da racionalização da gestão do indivíduo. Meu trabalho não tem como objetivo uma história das instituições ou uma história das ideias, mas a história da racionalidade, tal como ela opera nas instituições e na conduta das pessoas. A racionalidade é o que programa e orienta o conjunto da conduta humana. Há uma lógica tanto nas instituições quanto na conduta dos indivíduos e nas relações políticas. Há uma racionalidade nas formas mais violentas. O mais perigoso, na violência, é sua racionalidade. É claro que a violência é, nela mesma, terrível. Mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda e extrai sua permanência da forma de 37 racionalidade que utilizamos .

A racionalidade, portanto, programa os limites do viver. O que percebemos, desde Vigiar e Punir, é o desdobramento perverso de uma lógica totalizante de uma racionalidade, cuja pretensão é o controle absoluto do viver propriamente dito. Além disso, podemos perceber também o engodo que significou o projeto do sistema penal que, a grosso modo, abriu a possibilidade real para que as estruturas de poder se reorganizassem, ou seja, o jogo de ilegalismos perpetuouse dissimuladamente pelo subsolo, cujo fundamento jamais se alterou. Segundo Foucault: “de fato, a sociedade busca, mediante o sistema penal, organizar, acomodar, tornar política e economicamente vantajoso todo um jogo de legalidades e de ilegalismos”38. Os ilegalismos demonstrados historicamente por Foucault permanecem atuais e apenas vão se adaptando as novas condições para exercer o seu próprio jogo. Além disso, poderíamos ainda questionar, se o projeto da prisão já era fracassado desde seu nascimento como afirma Foucault39, por que ainda utilizamos toda a máquina penal? Desde os argumentos já construídos, podemos sugerir que as dissimulações do poder e das formas de sujeição contribuem não apenas para que o sistema se mantenha, mas que as 37

FOUCAULT, Michel. Foucault estuda a razão de estado. In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). 2ª ed. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 319. 38 FOUCAULT, Michel. O ilegalismo e arte de Punir. In: Segurança, penalidade e prisão (Ditos e escritos VIII). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p 54. 39 Idem. Entrevista sobre a prisão: o livro e seu método. Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). 2ª ed. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 162

2112

próprias pessoas assujeitadas exijam ainda mais vigilância e controle, ainda mais poder de polícia sobre elas mesmas em nome da segurança. Trata-se exatamente da “produção de realidade” da qual referiu Deleuze. Naturaliza-se a estrutura punitiva pelo exercício das instituições nas mais diversas formas de poder, incidindo, sobretudo, no âmago da subjetividade. É nesse nível que a racionalidade se torna nela mesma terrível. Este processo de naturalização da violência, desde a delinquência e seus níveis de criminalidade, é desvendado por Foucault: A utilidade econômico-política da delinquência pode ser facilmente desvelada: primeiro, quanto mais houver delinquente, mais haverá crimes; quanto mais houver crimes, mais haverá medo na população; e, quanto mais houver medo na população, mais aceitável e mesmo almejável se tornará o sistema de controle policial. A existência desse perigo interno permanente é uma das condições de aceitabilidade desse sistema de controle. Isso explica porque, nos jornais, na rádio, na TV, em todos os países do mundo, sem nenhuma exceção, se dá tanto espaço à 40 criminalidade, como se a cada novo dia se tratasse de uma novidade .

Desde esta perspectiva, percebemos que o próprio espetáculo, que fazia parte ritual do suplício, é reinventado na atualidade. Além disso, o medo é também mecanismo de controle do poder, fortalecendo a utilidade econômica e política das práticas em nome da segurança. Assim, em Vigiar e Punir, também encontramos a genealogia destes processos de sujeição, bem como da passagem da punição disciplinar a vigilância geral, cuja condição é, justamente, este processo de sujeição. Nesse sentido, diz Foucault “uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia”41. Trata-se, exatamente do que estamos insistindo com Blanchot, ou seja, da dissimulação do poder que nos torna cada vez mais subjugados. O projeto do panoptismo (de Bentham) se rearticula para além dos limites e dos muros da prisão, tornando-se a lógica de gestão da biopolítica na atualidade, através de dispositivos de controle. Para Agamben, dispositivo é um termo técnico no pensamento de Foucault que remete a questão da governabilidade e ao governo dos homens, desde a concepção de “positividade” do jovem Hegel que, segundo Hyppolite, é o nome dado ao



40

FOUCAULT, Michel. As malhas do poder. In: Segurança, penalidade e prisão (Ditos e escritos VIII). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 183. 41 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. p. 192.

2113

elemento histórico com toda a carga de regras e ritos interiorizada42. O que não significa que Foucault tivesse como objetivo seguir a linha hegeliana de reconciliação entre os viventes e o elemento histórico. Além disso, o termo dispositivo tem uma herança latina (do termo dispositio) e, ainda, possui uma herança teológica, o que implica a assunção da semântica da oikonomia. Para Agamben: Os “dispositivos” de que fala Foucault estão de algum modo conectados com esta herança teológica, podem ser de alguma maneira reconduzidos à fratura que divide e, ao mesmo tempo, articula em Deus ser e práxis, a natureza ou essência e a operação por meio da qual ele administra e governa o mundo das criaturas. O termo dispositivo nomeia aquilo pelo qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso, os dispositivos devem sempre implicar um processo de 43 subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito .

Trata-se, portanto, com o termo dispositivo, de uma pura atividade de governo, ou seja, o modo pela qual a atividade de governo é exercida: sem nenhum fundamento no ser. Assim, o exercício desta pura atividade de governo implica na produção de subjetividades, ou seja, de seus próprios sujeitos. Esta é a condição da práxis de governo, da gestão e do controle, cuja referência é uma oikonomia44.

Desde a perspectiva foucaultiana, Agamben propõe ir além na

análise dos dispositivos, dividindo o existente em dois grupos; de um lado, os seres viventes; e de outro os dispositivos que incessantemente realizam a captura dos viventes. Retomando o termo dos teólogos, Agamben propõe a divisão entre a ontologia das criaturas e a oikonomia dos dispositivos. Nesse sentido, diz Agamben: Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medias jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é numa certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um

42

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, pp. 27-32. 43 Idem. Op. Cit.p. 38. 44 O termo oikonomia significa em grego a administração do oikos, da casa. Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 35.

2114

primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se 45 seguiram – teve a inconsciência de se deixar capturar .

Talvez, Agamben tenha reduzido a leitura de Foucault e o seu uso do termo dispositivo, o que caberia uma análise própria que não o faremos nesse momento. Todavia, é desde esta relação entre estas duas grandes classes (os seres viventes e os dispositivos) que para Agamben surge uma terceira classe: os sujeitos. É nesta relação, portanto, que há a proliferação dos processos de subjetivação. Assim, se a herança semântica da oikonomia é a administração e gestão da casa, o dispositivo nos termos expostos por Agamben é, antes de tudo, “uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo”46.

O desdobramento desta máquina de governo sem

nenhum fundamento no ser é, justamente, a sua própria disseminação e reprodução permanente. E novamente, diante deste jogo de dissimulação perpetrado também pelos dispositivos para efetivação da sujeição (em sentido foucaultiano), o próprio processo de subjetivação carrega em seu âmago uma dimensão dessubjetivante.

Nesse sentido, Agamben afirma o seguinte: “as

sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados

por

gigantescos

processos

de

dessubjetivação

que

não

correspondem a nenhuma subjetivação real”47. As implicações políticas deste processo são terríveis, na medida em que não parece haver saída e que estamos todos dominados – exatamente como colocamos em epígrafe com Levinas – somos joguetes de nossas próprias obras. Nesse sentido, diz Theodor W. Adorno “todos os fenômenos enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta do que existe”48. Estamos, pois, capturados por esta máquina de dominação do existente onde a liberdade é apenas o reflexo de sua aparência, eis uma das aporias da nossa existência..



45

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, pp. 40-41. 46 Idem. Op. Cit.p. 46. 47 Idem. Op. cit. p. 48. 48 ADORNO, Theodor. Crítica cultural e sociedade. In: Indústria Cultural e sociedade. 5ª ed. trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 101.

2115

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em torno a todas estas dimensões expostas, o espectro de Foucault ainda nos assombra e a questão em torno ao poder nos perturba, esta coisa ao mesmo tempo visível e invisível que se dá num jogo enigmático. Deste modo, deixemos em suspenso a questão foucaultiana: “quem exerce o poder? e onde ele se exerce?”49 . Questão que o aproxima, nesse sentido, a Jacques Derrida, quando pergunta, “quem assina a violência?”50. É no rastro destes questionamentos que poderemos desconstruir as lógicas de violência do contemporâneo, de modo a possibilitar a abertura de caminhos em meio às ruínas da atualidade.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T.. Crítica cultural e sociedade. In: Indústria Cultural e sociedade. 5ª ed. trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M.. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985BLANCHOT, Maurice. Da sujeição ao sujeito. In. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. AGAMBEN, G.. O que é um dispositivo? In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. BARTHES, R.. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla PerroneMoysés. São Paulo: Cultrix, 2013. BLANCHOT, M.. Da sujeição ao sujeito. In. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. DELEUZE, G.. Um novo cartógrafo (Vigiar e Punir). In: Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2013.

49

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In: In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). 2ª ed. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 43. 50 DERRIDA, Jacques. Prenome de Benjamin. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade p. 21. Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 69.

2116

DERRIDA, J.. Fé e saber. In: A religião: o seminário de Capri. (Orgs.) Gianni Vatiimo e Jacques Derrida. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Estação Liberdade, 2000; ______; Força de Lei: o fundamento místico da autoridade p. 21.Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2007; ______; Prenome de Benjamin. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade p. 21. Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FOUCAULT, M.. As malhas do poder. In: Segurança, penalidade e prisão (Ditos e escritos VIII). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. ______; A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003; ______; Entrevista sobre a prisão: o livro e seu método. In: Estratégia, podersaber (Ditos e escritos IV). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006; ______; Foucault estuda a razão de estado. In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). 2ª ed. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006; ______; O ilegalismo e arte de Punir. In: Segurança, penalidade e prisão (Ditos e escritos VIII). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012; ______; Os intelectuais e o poder. In: In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). 2ª ed. Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006; ______; O sujeito e o poder. In: Ditos e Escritos, volume IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014; ______; Um problema que me interessa há muito tempo é o do sistema penal. In: Estratégia, poder-saber (Ditos e escritos IV). Trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006; ______; Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 41ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013 LEVINAS, E.. “Humanismo e an-arquia”. In: LEVINAS, E., Humanismo do outro homem. Trad. Pergentino S. Pivatto – Anísio Meinerz – Jussemar da Silva – Luiz Pedro Wagner – Magali Mendes de Menezes – Marcelo Luiz Pelizzoli. Petrópolis: Vozes, 1993.

2117

SELIGMANN-SILVA, M.. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

2118

A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA QUE NÃO TEME DIZER SEU NOME: INDAGAÇÕES E HIPÓTESES PARA UM DEBATE

Salo de Carvalho

RESUMO: O ensaio procura analisar o desconforto que o exercício do controle social representa para a criminologia crítica, sobretudo a partir do momento em que, na América Latina, vive-se a experiência de governos de esquerda. A investigação é direcionada à análise das políticas criminais alternativas contemporâneas e à reflexão sobre o papel (e o compromisso) dos criminólogos críticos no enfrentamento das graves e sistemáticas violações aos direitos humanos produzidas na era do populismo punitivo. Em última análise, o ensaio problematiza importante questão apresentada, na década de 90, por Lola Aniyar de Castro: “vale a pena [ao criminólogo crítico] assumir o exercício do poder?” PALAVRAS-CHAVE: criminologia crítica; políticas criminais; populismo punitivo; direitos humanos. ABSTRACT: This paper aims to analyze the distress that the exercise of social control causes to critical criminology, especially from the time when Latin America experiences the increasing number of leftist governments. The research focuses on the analysis of contemporary criminal alternative policies and the reflection about the role (and commitment) of critical criminologists in coping with serious and systematic violations of human rights seen in the era of punitive populism. Ultimately, this essay discusses the important question raised by Lola Aniyar de Castro in the 90s, “does it worth to [the critical criminologist] assume the exercise of power?” KEYWORDS: critical criminology; criminal policies; punitive populism; human rights. 1 INTRODUÇÃO: A URGÊNCIA DA CRÍTICA E A OPÇÃO PELOS DIREITOS HUMANOS “O despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações.” (Adorno & Horkheimer, 1985)

2119

A viragem paradigmática realizada pelo rotulacionismo e o salto qualitativo na análise dos processos de criminalização proporcionado pela criminologia crítica constituem-se como dois momentos decisivos para a desconstrução do saber criminológico de corte positivista, que nasceu associado à psiquiatrização do delito e que, ao longo do século passado, se infiltrou nas agências penais e nas instituições acadêmicas, consolidando-se como o discurso oficial da criminologia (criminologia ortodoxa). A partir das décadas de 70 e 80, a projeção do saber criminológico crítico em ações transformadoras da realidade de criminalização seletiva (típica dos modelos capitalistas de exclusão social), possibilitou a emergência de projetos de contração e/ou abolição do sistema punitivo, conhecidos como políticas criminais alternativas. Em razão do substrato marxista nas fundamentações política e teórica da criminologia crítica e da concretização dos seus postulados em práticas políticocriminais voltadas para a transformação da sociedade e para a emancipação humana, foi possível designar esta tendência criminológica como uma criminologia da práxis51 – práxis pensada a partir do sentido proposto por Marx e Engels nas Teses sobre Feuerbach.52 53 Conforme aponta Leandro Konder, a práxis consiste em uma “[...] atividade ‘revolucionária’, ‘subversiva’, questionadora e inovadora, numa expressão extremamente sugestiva ‘crítico-prática’. A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a ação que, para aprofundar de maneira mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de 54 verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática.”

51

Termo (“criminologia da práxis”) utilizado em CARVALHO, S. A Política Criminal de Drogas no Brasil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 150-154; CARVALHO, S. Criminologia Crítica: dimensões, significados e perspectivas atuais. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 21, v. 104, São Paulo, 2014, pp. 292-297. 52 MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 539. 53 “A práxis é o conceito central na filosofia de Marx, o que está mais vivo nela. É a matriz de uma concepção original da história, uma concepção que, sendo materialista, reconhece o poder do sujeito de tomar iniciativas, fazer escolhas. Por isso, precisa de uma ética. Depende de valores que lhe permitam empenhar-se em projetos de transformação do mundo, na criação de um tipo melhor de sociedade, num futuro que valha a pena lutar.” (KONDER, L. Em Torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 16). 54 KONDER, L. O Futuro da Filosofia da Práxis: o pensamento de Marx no Século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 115.

2120

Nesse registro de um pensamento criminológico construído a partir da tradição teórica do marxismo (e exatamente por isso crítico) e direcionado à desconstrução de uma teoria tradicional55 que pressupõe como fatos históricos (o crime e a pena, p. ex.) fenômenos que deveria explicar56 – e, em consequência, reduz a vida humana à condição de objeto (processos de alienação e de reificação) –, foram projetadas intervenções emancipatórias, ações de ruptura identificadas com os discursos do abolicionismo, do minimalismo, do garantismo, do realismo de esquerda, do realismo marginal e do uso alternativo do direito penal. Na confluência entre a perspectiva rotulacionista e a tradição marxista da sociologia do conflito, a criminologia crítica, em sua primeira fase, apresentou uma pauta negativa, desconstrutora da forma mentis57 inquisitória que rege a criminologia ortodoxa e que se proliferou nos discursos das ciências criminais 55

O termo teoria tradicional está inserido no âmbito de análise da Escola de Frankfurt, sobretudo a partir do referencial texto de Horkheimer (1937) (HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica In: BENJAMIN, W; HORKHEIMER, M; ADORNO, T. W. & HABERMAS, J. Textos Escolhidos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983) e do desdobramento das suas conclusões em O Conceito de Esclarecimento (1947), de Adorno e Horkheimer (ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. O Conceito de Esclarecimento In: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985). 56 Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844), Marx apresenta uma das diretrizes centrais da perspectiva crítica: “não nos desloquemos, como [faz] o economista nacional quando quer esclarecer [algo], a um estado primitivo imaginário. Um tal estado primitivo nada explica. Ele simplesmente empurra a questão para uma região nebulosa, cinzenta. Supõe na forma do fato (Tatsache), do acontecimento, aquilo que deve deduzir, notadamente a relação necessária entre duas coisas, por exemplo entre divisão do trabalho e troca. Assim o teólogo explica a origem do mal pelo pecado original (Sündenfall), isto é, supões como um fato dado e acabado, na forma histórica, o que deve explicar.” (MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 80). Sobre a importância dos Manuscritos de Paris na fundação do pensamento crítico, conferir os comentários de Souza, Ricardo Timm de. As Fontes do Humanismo Latino II: a condição humana no pensamento filosófico contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, pp. 193-204. 57 “Ciência tradicional disfarçada de argumento, que esconde dissimuladamente o desejo de invadir a realidade. Estrutura de compreensão da realidade para a qual a criminologia foi manifestação explícita da vontade de sistema; forma mentis que é já criminologia: empecilho ao conhecimento da realidade para o qual uma não-realidade tipicamente conceitual é eleita com o condão de ocupar o vazio que a impossibilidade desse conhecimento deixa. Significa que o desconhecimento, proprius da fungibilidade que as coisas assumem para esse hábito mental, promove, com a ausência material da sua resposta, isto é, com a sua inautêntica pergunta, que o seu próprio pensamento ocupe o lugar da coisa e, em nome dela, mantenha como objeto de seu saber, como objeto criminológico, qualquer coisa que signifique ‘o sistema positivo e a prática oficial’, mas exclua a violência do seu pensamento da ordem de violências que deveria criticar.” (PANDOLFO, A. C. A Criminologia Traumatizada: um ensaio sobre violência e representação dos discursos criminológicos hegemônicos no século XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 65).

2121

(direito penal, processo penal e criminologia) e nas práticas institucionais (agências de punitividade).58 É na agenda positiva, porém, que os postulados teóricos ingressam no campo de disputa das políticas públicas, notadamente a partir do momento em que, após a queda dos regimes autoritários na Europa e das Ditaduras Civis-Militares na América Latina, as esquerdas chegam ao poder. O presente paper procura ampliar o campo de visão sobre este desconforto que representa “as aventuras e as desventuras de um criminólogo crítico no exercício do controle social”, conforme antecipado há quinze anos no já clássico relato de Lola Aniyar de Castro.59 Penso que este exercício teórico, baseado na literatura e na experiência de criminólogos críticos no poder – e, no Brasil, a referência primeira é a experiência de Nilo Batista no segundo Governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (19911994) – é extremamente necessário para que possam ser (re)pensadas não apenas as políticas de esquerda de modo geral, mas, sobretudo, para que se analise o papel (e o compromisso) dos criminólogos críticos no enfrentamento das graves e sistemáticas violações aos direitos humanos produzidas nas e pelas instituições do Estado. A questão latente que perpassa o ensaio é, portanto, aquela apresentada por Lola Aniyar de Castro: “vale a pena – em definitivo – assumir o exercício do poder?”60

2 CRIMINOLOGIA CRÍTICA E POSICIONAMENTO POLÍTICO CRIMINAL

Neste sentido, antes de enfrentar a pergunta de Lola Anyiar, creio fundamental retomar outra indagação, proposta por Becker no seminal artigo Whose side are we on? (1967). Talvez reelaborando a interrogação, em uma 58

Sobre a pauta negativa que resulta da série de discursos que conformam o campo crítico na criminologia, conferir CARVALHO, S. Criminologia Crítica: dimensões, significados e perspectivas atuais. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 21, v. 104, São Paulo, 2014, pp. 286-292. 59 ANIYAR DE CASTRO, L. Criminología y Poder: aventuras y desventuras de un criminólogo critico en el ejercicio del control social. In: Capítulo Criminológico, v. 23, n. 02, 1995, pp. 03-13. Em 1996, a autora publicou versão do debate, com algumas modificações, no Brasil, (ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 59-66). 60 ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 61.

2122

espécie de licença acadêmica, ou subvertendo a tradução para do lado de quem estamos?, a questão parece expor a tensão sempre presente entre as práticas de governo e a proteção dos direitos (das pessoas). Becker publica o artigo em forma de resposta à acusação de que a teoria do rotulacionismo apresentaria leituras demasiadamente parciais dos problemas aos quais se propunha investigar, sobretudo pela tendência de os resultados de pesquisa serem interpretados como manifestos de defesa daquelas pessoas ou grupos inconvenientes que perturbavam a ordem e a paz social – em outras palavras, os outsiders. Neste ponto, o texto de Becker antecipa o debate proposto por Herman e Julia Schwendinger em Defensores da Ordem ou Guardiães dos Direitos Humanos? (1975)61, trabalho atualizado e “domesticado”, no Brasil, por Mayora e Garcia em A Criminologia Crítica na Encruzilhada da Dominação e da Transformação Social (2013).62 O problema é conhecido, mas longe de estar esgotado, motivo pelo qual merece ser retomado. A propósito, no momento de consolidação de mais de uma década do partido dos trabalhadores no Governo Federal, voltar ao problema, desde as suas fundações, representa algo urgente. Soma-se, ainda, ao recente processo eleitoral de 2014, outro evento absolutamente significativo na história brasileira recente: as Jornadas de Junho em 2013. Desde o meu ponto de vista, as respostas sobre o direcionamento das políticas criminais (alternativas ou tradicionais), sobre os limites e as (im)possibilidades de atuação concreta em defesa dos direitos humanos desde dentro

das

instituições,

pressupõem

clareza

(e,

em

consequência,

comprometimento) em relação à pergunta ao lado de quem estamos? Conforme trabalhado em outro momento63, dentre os mais variados temas que envolvem a questão, as imagens e as percepções das violências produzidas pelas agências do sistema penal são decisivas para a escolha do “lado”. É na

61

SCHWENDINGER, H. & SCHWENDINGER, J. Defensores da Ordem ou Guardiães dos Direitos Humanos? In: TAYLOR, I; WALTON, P & YOUNG, J (orgs.). Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Graal, 1980, pp. 135-176. 62 MAYORA, M. & GARCÍA, M. A Criminologia Crítica na Encruzilhada da Dominação e da Transformação Social In: Revista de Estudos Criminais, n. 51, Porto Alegre, 2013, pp. 169192. 63 CARVALHO, S. Criminologia Cultural In: LIMA, R. S; RATTON, J. L & AZEVEDO, R. G (orgs.). Crime, Justiça e Polícia no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 139.

2123

dicotomia entre a percepção da violência institucional como estrutural ou conjuntural que o ator (social, político ou acadêmico) irá tomar partido. Afirmar o caráter conjuntural da violência institucional permite a tranquilidade de um trabalho menos conflitivo nas agências punitivas (conflitividade tanto em relação aos demais atores quanto às próprias convicções). O trabalho, contudo, apresenta um limite inquestionável que é o da reforma. Qualquer perspectiva de ruptura resta inexoravelmente prejudicada ou simplesmente excluída deste âmbito de ação. O ponto ótimo de ingerência seria o da proposição (e eventualmente de implementação) de estratégias redutoras, que sempre estão nos limites da relegitimação e da recapacitação de práticas e instituições anteriormente submetidas à crítica em razão do seu ser violento. Em sentido oposto, se a percepção é a de que a violência produzida nas e pelas agências de controle é inerente às práticas do sistema penal (violência estrutural), as atuações orientadas pela perspectiva crítica esbarrariam, em algum momento, nos limites impostos pela necessidade de êxito político. Aniyar de Castro, ao relatar sua experiência no Governo do estado venezuelano de Zulia, sintetiza a questão: “governamos com nossos princípios. Muitos deles são incompatíveis com o êxito político.”64 Os princípios orientadores da ação-reflexão de um criminológo crítico, em seu trabalho de aprofundamento da democracia, segundo a autora, seriam os de (a) transparência do discurso (isto é, “nunca enganar as pessoas”65 66), (b) defesa dos direitos humanos, (c) negação da seletividade do controle, e (d) antiautoritarismo.67 Mas para além das diretrizes apontadas por Lola Aniyar de Castro, resta uma indagação absolutamente pertinente: qual seria esta incompatibilidade da 64

ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 65. 65 ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 61. 66 “Não mentir. Não esqueço de ter escrito que ‘libertação’ é ‘libertação da mentira’. Isto significa abster-se do duplo discurso, ou seja, autenticidade e sinceridade sobre a gestão do governo; e, sobretudo, não oferecer nada que não se possa cumprir” (ANIYAR DE CASTRO, L. Criminología y Poder: aventuras y desventuras de un criminólogo critico en el ejercicio del control social In: Capítulo Criminológico, v. 23, n. 02, 1995, p. 13). 67 ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 61.

2124

postura crítica com o êxito político? Na atualidade – e desde a orientação crítica uma das tarefas centrais é o “diagnóstico do presente”68 –, em uma conjuntura na qual as principais democracias ocidentais, inclusive as latino-americanas, aderiram explícita ou implicitamente ao populismo punitivo69, o compromisso de defesa dos direitos humanos, que traz consigo uma postura antiautoritária e de negativa da seletividade do sistema penal, no mínimo dificulta (e em determinadas situações simplesmente aniquila) a real disputa pelo poder político. Uma das alternativas possíveis, que evitaria qualquer possibilidade de relegitimação da violência inerente ao sistema punitivo, seria a de desocupar estes espaços institucionais e, desde fora (da academia, p. ex.), potencializar sua crítica (negativa) e propor formas alternativas (não-penais) de resolução dos conflitos – o legado abolicionista, p. ex., reflete muito esta postura e dá indicativos reais de como esta atuação externa é possível. No entanto esta negativa pode, em determinados momentos, ser compreendida como imobilismo, indicando, inclusive, uma postura relativamente contraditória com o papel transformador que cabe à práxis crítica, pois “um criminólogo crítico se define por sua vocação transformadora. Não só da teoria, mas também da realidade.”70 A esfera intelectual é imprescindível e inegociável na perspectiva crítica, sobretudo porque estabelece um diálogo direto com as práticas transformadoras. 68

No texto clássico de Horkheimer, o autor afirma uma das orientações principais da Teoria Crítica, que é a crítica ou diagnóstico do presente – “os interesses do pensamento crítico são universais, mas não são universalmente reconhecidos. Os conceitos que surgem sob sua influência são críticos frente ao presente.” (HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica In: BENJAMIN, W; HORKHEIMER, M; ADORNO, T. W. & HABERMAS, J. Textos Escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 138). Segundo Nobre, “[...] a Teoria Crítica tem sempre como uma das suas importantes tarefas a produção de um determinado diagnóstico do tempo presente, baseado em tendências estruturais do modelo de organização social vigente, bem como em situações históricas concretas, em que se mostram tanto as oportunidades e potencialidades para a emancipação quanto os obstáculos reais a ela”. (NOBRE, M. A Teoria Crítica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 11) 69 Neste sentido, conferir GARLAND, David. La Cultura del Control: crimen y orden social en la cultura contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005, pp. 275-312; GARLAND, D. As Contradições da Sociedade Punitiva: o caso britânico In: Discursos Sediciosos, ano 7, número 11, 2002, pp. 69-92; PRATT, J. Penal Populism. London: Routledge, 2007, pp. 08-35; SIMON, J. Governing Through Crime. Oxford: Oxford Press, 2007, pp. 75-110; WACQUANT, L. A Ascensão do Estado Penal nos EUA In: Discursos Sediciosos, ano 7, número 11, 2002, pp. 13-40; CARVALHO, S. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 27-58. 70 ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In Discursos Sediciosos, v. 01, n. 02, 1996, p. 59.

2125

Todavia isso não significa que se possa abdicar do enfrentamento institucional e do exercício do poder. Do contrário, uma importante estratégia emancipatória de conquista de espaços seria negada, como, p. ex., a disputa pela hegemonia, em formações sociais como as ocidentais em que há relativo equilíbrio entre sociedade civil e sociedade política, através daquilo que Gramsci definiu como “guerra de posições.”71 A questão apresentada por Aniyar de Castro (vale a pena assumir o exercício do poder?), portanto, merece uma resposta positiva. No entanto este atuar deve estar sempre condicionado ao respeito intransigente daqueles princípios antiautoritários que orientam a crítica, sobretudo na definição de como agir de forma emancipatória nos hard cases. No momento em que surgem conflitos insolúveis entre a preservação dos direitos das pessoas e a afirmação do poder estatal, situações em que a razão de Estado se sobrepõe ao respeito aos direitos humanos, a única alternativa possível ao crítico é a desocupação imediata do ambiente institucional, sabendo, contudo, que as práticas intelectuais permitem expor, em forma de denúncia, este tipo de situação. Neste ponto, entendo que duas observações são importantes. A primeira é no sentido de que o trabalho acadêmico é, efetivamente, atuação (e atuação política). A simplificação, comumente apresentada pela teoria tradicional, que relega à academia uma função meramente teórica (falsa dicotomia teoria versus prática), sobretudo nas humanidades, deriva da herança positivista que transformou o procedimento matemático no ritual teórico por excelência, interditando, conforme Adorno e Horkheimer, a exigência clássica de “pensar o pensamento”72 – esforço que constitui, por si só, em atividade altamente relevante e com profundos impactos no mundo da vida (prática). Neste cenário,

71

Conforme Carlos Nelson Coutinho, “(…) Gramsci pôde formular, de modo positivo, sua proposta de estratégia para os países ‘ocidentais’: nas formações ‘orientais’, a predominância do Estadocoerção impõe à luta de classes uma estratégia de ataque frontal, uma ‘guerra de movimento’, voltada diretamente para a conquista e conservação do Estado em sentido restrito; no ‘Ocidente’, ao contrário, as batalhas devem ser travadas inicialmente no âmbito da sociedade civil, visando à conquista de posições e de espaços (‘guerra de posições’), da direção políticoideológica e do consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e para sua posterior conservação.” (COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 89). 72 “Na matematização galileana da natureza, a natureza ela própria é agora idealizada sob a égide da nova matemática, ou, para exprimi-lo de uma maneira moderna, ela se torna ela própria uma multiplicidade matemática. O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando

2126

“para o positivismo que assumiu a magistratura da razão esclarecida, extravagar em mundos inteligíveis é não apenas proibido, mas é tido como um palavreado sem sentido [...]. Para [est]a mentalidade científica, o desinteresse do pensamento pela tarefa de preparar o factual, a transgressão da esfera da realidade é desvario e autodestruição, do mesmo modo que, para o feiticeiro do mundo primitivo, a transgressão do círculo mágico traçado para a invocação, e nos dois casos tomam-se providências para que a infração do tabu acabe realmente em desgraça 73 para o sacrílego.”

Penso não ser excessivo lembrar que a atividade acadêmica criticamente orientada implica na reflexão sobre o mundo da vida, sobre as práticas cotidianas. Implica, igualmente, não apenas em produzir diagnósticos do presente a partir da análise empírica das instituições (punitivas, no caso), mas em projetar novas formas de atuação, o que contribui para a formação de um pensamento de tipo novo, capaz de reanalisar as práticas. Em consequência (e em segundo lugar), é fundamental perceber o papel dos intelectuais na produção cultural. Se “as ideologias das classes superiores refletem os seus interesses, apesar de serem expressos de forma idealizada”74, os meios materiais de produção intelectual (livros, jornais, revistas, web e sala de aula, p. ex.) são os veículos de formação dos consensos sobre estes interesses. Assim, a prática científica dialoga diretamente com os sistemas econômicos e políticos, fornecendo, inclusive, as condições discursivas de legitimação do poder: “esta é a razão pela qual os intelectuais, apesar de relativamente livres para formar suas ideias, tendem, de fato, a produzir ideologias favoráveis à classe que os sustenta”75. Mas, por outro lado, é sobretudo nesta esfera de produção intelectual que são estabelecidas as formas de disputa pelo conhecimento, que se constituem como qualificadas ferramentas de resistência à ideologia dominante, inclusive projetando práticas inovadoras e subversivas da ordem. a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento [iluminismo] pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento – a filosofia de Fichte é o seu desdobramento radical – porque ela desviaria do imperativo de comandar a práxis, que o próprio Fichte, no entanto, queria obedecer. O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio o denomina”. (ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. O Conceito de Esclarecimento In: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 33). 73 ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. O Conceito de Esclarecimento In: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 33. 74 COLLINS, R. Quattro Tradizioni Sociologiche. Bologna: Zanichelli, 1996, p. 50. 75 COLLINS, R. Quattro Tradizioni Sociologiche. Bologna: Zanichelli, 1996, p. 50.

2127

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eliane Brum, ao analisar o imaginário sobre a Amazônia que a ditadura civil-militar enraizou na cultura nacional, afirma a permanência de uma lógica forjada pelo regime de exceção. Segundo a jornalista, vários entulhos autoritários corroem os nossos dias, como, p. ex., os autos de resistência, utilizados pela polícia para justificar a execução de suspeitos ou desafetos, resultado perverso do aumento do poder policial na Ditadura e que se mantém inalterado na Democracia.76 A criminologia crítica brasileira já havia nominado as permanências autoritárias nas práticas punitivas e no pensamento social, sobretudo com os estudos de Vera Malaguti Batista.77 Eliane Brum chama a atenção, porém, para o fato de que, no atual estado de coisas, não se decodifica essa violência como violência, o autoritarismo como autoritarismo, e “o mais perigoso é sempre aquilo que não detectamos como perigoso, aquilo que se naturaliza como inevitável.”78 Exatamente por isso, Vera Malaguti Batista e Eliane Brum reivindicam a necessidade de jogar luz sobre o passado e compreender estas permanências. Sobretudo nominar estas práticas violentas típicas de modelos de exceção que não cessaram com a redemocratização formal do país. Nominar a Ditadura que não diz seu nome é a condição de possibilidade para superar a sua potência violenta que permanece viva e transversal aos regimes políticos formalmente democráticos. Entretanto, junto a esta necessidade de nominar a violência e de confrontar os atores que justificam o injustificável (Timm de Souza)79 em nome da 76

BRUM, E. A Ditadura que não Diz seu Nome In: El País Brasil, 31/03/2014 (versão on line). Neste sentido, Batista, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 41. Conferir, igualmente, CARVALHO, S. As Permanências Autoritárias no Sistema Punitivo Brasileiro e a Práxis de Resistência da Criminologia Crítica in Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 22, n. 262, 2014, pp. 12-14. 78 Brum, Eliane. A Ditadura que não Diz seu Nome in El País Brasil, 31/03/2014 (versão on line). 79 Utilizo a expressão no sentido proposto por Souza, Ricardo Timm. O Nervo Exposto: por uma crítica da razão ardilosa desde a racionalidade ética in BAVARESCO, A; MILONE, J; NEIVA, A & TAUCHEN, J (orgs.). Filosofia na PUCRS: 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (1974-2014). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014, p. 352. 77

2128

governança – e este não é um mero jogo de palavras com efeitos retóricos, pois basta pensar na situação prisional brasileira e nos discursos que suavizam sua potência genocida –, torna-se fundamental marcar o discurso crítico como crítico, na linha do inspirador trabalho de Safatle, A Esquerda que não Teme Dizer seu Nome, apropriado no título deste paper. Demonstra Safatle que a política [inclua-se: política criminal] não pode ser vista como a esfera de decisão sobre o possível, a política “[...] não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta hoje à esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável.”80 O argumento de Safatle atinge o centro do problema político-criminal brasileiro na atualidade: o que é inegociável para a esquerda, o que é inegociável para a criminologia crítica? É inegável que os fenômenos do extermínio e do encarceramento em massa da juventude negra são urgências que não podem deixar de ser enfrentadas em todos os níveis dos poderes públicos: se a Polícia é responsável pelo assassinato em forma de autos de resistência, o Ministério Público é igualmente responsável por não denunciar os suspeitos e o Judiciário, da mesma maneira, por arquivar os inquéritos; se o Legislativo é responsável pelo aumento do input e redução do output do sistema penitenciário, são os atores da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário que efetivam o populismo punitivo, através, p. ex., do alargamento dos critérios para realizar prisões em flagrante, da ausência de parâmetros razoáveis para pedir a conversão em preventiva e da falta de fundamentação para decretar prisão provisória. Nas duas pontas do sistema de justiça criminal (atuação da polícia e execução da pena), é a juventude negra que sofre com a seletividade genocida das agências punitivas brasileiras. E são dados concretos de realidade como estes que não apenas permitem seguirmos afirmando, como requerem que a crítica seja contundente, sem meias palavras, sem os pudores típicos dos intelectuais colaboracionistas e dos agentes políticos que justificam o injustificável

80

Safatle, Vladimir. A Esquerda que não Teme Dizer seu Nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 78.

2129

– pensemos, p. ex., nas constantes decisões que autorizam o enclausuramento de pessoas em circunstâncias desumanas sob o argumento da reserva do possível e da impossibilidade de ingerência na política, quando, em outros temas, o próprio Judiciário desconsidera tais argumentos e atua sem pudores como agente político (judicialização da política). Talvez nas margens do Ottawa ou do Tâmisa tenhamos alcançado um nível civilizatório em que a violência radical deflagrada pelas agências punitivas seja lembrada apenas como um pesadelo que atormentou um passado muito distante. Talvez em um Estado em que os direitos humanos sejam efetivos, formal e materialmente, possamos abdicar da crítica. Tenho sérias dúvidas, mas talvez seja possível. Na beira do Tietê ou do Arroio Dilúvio, porém, a realidade parece ser outra, bastante distinta e muito urgente. Várias biografias e muitos trabalhos acadêmicos, sobretudo aqueles que concentram as investigações na produção teórica da sua juventude, apontam a análise de Marx sobre a criminalização do furto de madeira como um momento central da sua sensibilização com a fragilidade dos camponeses perante o poder normativo dos proprietários de terra. Conforme destaca Guastini, a perspectiva do jovem Marx, apresentada no texto publicado em 1842, embora ainda estivesse distante da adesão ao comunismo, apresenta elementos bastante evidentes de crítica ao significativo momento de luta de classe entre o ascendente modelo capitalista e os últimos resíduos da propriedade comunal da terra, processo histórico que, mais tarde, será descrito como acumulação original, em O Capital.81 Marx, em realidade, é assombrado pela crueldade de uma legislação egoísta que excluía da massa despossuída (pequenos produtores e camponeses) o direito legítimo de colher a madeira caída ao chão82, em favor dos interesses particulares da antiga aristocracia feudal.83 Com a finalidade de garantir os direitos dos

81

Guastini, Riccardo. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974, p. 71. 82 As questões relativas à natureza do ato e à valoração da sua ilicitude são temas sensíveis de análise. Sobre o tema, esclarecedores os comentários em Guastini, Riccardo. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974, pp. 72-75. 83 No artigo publicado na Gazeta Renana, Marx acusa o parlamento renano (Dieta Renana) de constituir um Tribunal especial para os delitos patrimoniais, o que representaria uma espécie de privatização da jurisdição, em razão de a Lei contra o furto de madeira prever que o responsável pela propriedade determinaria o valor da madeira subtraída. Se a determinação do valor do dano

2130

campesinos, Marx propõe uma inovadora forma de interpretação ao invocar um argumento conservador contra o conservadorismo. Assim, ressignifica o direito consuetudinário em favor dos espoliados, invertendo as formas tradicionais de produção do jurídico: “[...] em defesa da massa pobre, política e socialmente espoliada, nos opomos àquilo que os treinados servos denominados historicistas descobriram como a verdadeira pedra filosofal que transforma qualquer alegação de erro em um genuíno ouro jurídico. Reivindicamos à pobre gente o direito consuetudinário, e não apenas um direito costumeiro local, mas um direito que em todos os países é o direito consuetudinário dos pobres. Vamos ainda mais adiante e afirmamos que, pela sua natureza, o direito consuetudinário só pode ser o direito desta massa 84 espoliada.”

Surpreende ver Marx invocar elementos de corte jusnaturalistas, comuns aos juristas da escola histórica para garantir os privilégios da nobreza, para defender os campesinos,85 em uma espécie de paleogarantismo jurídico ou protouso alternativo do direito.86 Ocorre que nesta inovadora argumentação de é um dos elementos que integram a jurisdição, a Lei personificaria o interesse do proprietário que assumiria a ambígua posição de “juiz” e “parte”. (Marx, Karl. Debates on the Law on Thefts of Woods in Treviño, A. Javier. The Sociology of Law: classical and contemporary perspectives. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1996, pp. 134-136). 84 Marx, Karl. Debates on the Law on Thefts of Woods in Treviño, A. Javier. The Sociology of Law: classical and contemporary perspectives. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1996, p. 131. 85 Aponta Guastini que a relação entre Marx e Savigny, sobretudo a tensão entre direito escrito e direito costumeiro, foi interpretada das formas mais díspares – “assim, p. ex., H. Jaeger sustenta que, não obstante ‘a sua violenta polêmica contra a Escola Histórica e os seus representantes’, Marx não deixa de recorrer aos ‘princípios savignianos’ para defender os direitos consuetudinários do povo. C. Vigouroux, ao contrário, vê na reivindicação de um direito costumeiro dos pobres, um ataque direto à Escola Histórica. M. Rossi, ao seu turno, escreve que ‘Marx encontra uma forma de redirecionar contra os juristas da Escola histórica, que utilizavam os costumes como fontes de direito para garantir a justificação dos mais reacionários privilégios de classe, a reivindicação dos mesmos direitos aos pobres, enquanto a sua condição fosse equalizada ao nível primordial de vida, ao qual, historicamente, o direito consuetudinário foi adequado’” (Guastini, Riccardo. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974, p. 87/88). Na concepção de Guastini, Marx, apesar do uso diferenciado do direito costumeiro na defesa dos campesinos, sustenta o primado do direito positivo e “qualquer afinidade entre Marx e Savigny pareceria algo de extravagante” (Guastini, Riccardo. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974, p. 89). De fato, a conclusão de Guastini parece a mais razoável. É que a legitimidade de ambas as manifestações normativas (direito costumeiro e direito escrito) dependerá, para o jovem Marx, do seu grau de racionalidade, entendida (a racionalidade do direito) como uma ordem não arbitrária e isenta de privilégios. As formas jurídicas escritas ou costumeiras que mantêm privilégios de classe, revivendo os modelos feudais, se opõem ao sentido de generalidade e de igualdade próprio das formas modernas de legislação. Sobre o tema, Guastini, Riccardo. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974, pp. 81-87. 86 Neste sentido, interessante lembrar o conceito, os usos e os limites daquilo que Michel Miaille chamou de “direito natural como arma de combate”. (Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa, Editorial Estampa, 1989, pp. 274-275). De igual forma, o uso do “jusnaturalismo de

2131

Marx encontramos uma diretriz bastante precisa que se configura em uma espécie de a priori ético-metodológico da práxis criminológica crítica: pensar e agir em defesa dos vencidos da história. Em última instância, este é o diferencial inquestionável que opõe, p. ex., as interpretações de Marx e de Savigny sobre a função do direito costumeiro na crítica ao direito escrito. Na emergência da criminologia crítica e da crítica ao direito penal – momento em que Neumann problematiza os discursos de legitimação da pena87 e Rusche e Kirchheimer exploram as variáveis históricas que possibilitaram o surgimento e a edificação do carcerário88–, já estão estabelecidos os vínculos e definidas as preocupações, até então inéditas, com aqueles que foram verdadeiramente os vencidos na trama econômico-punitiva da Modernidade: as pessoas submetidas aos processos de criminalização e sacrificadas pela experiência carcerária. Neste ponto, a orientação do jovem Marx, que guia a práxis da criminologia crítica, nutre a perspectiva frankfurtiana, notadamente as lições de Benjamin sobre a história, sobretudo a sétima tese.89 Excluída pelos mecanismos de exploração econômica, a ralé (Jessé de Souza90) ou a canaglia (Melossi)91, tem sido consumida pela máquina burocrática, definindo uma espécie de tipo concreto (não apenas de tipo ideal, em sentido weberiano) de vidas matáveis que caracteriza o objeto da intervenção punitiva. É combate” no movimento do Direito Alternativo brasileiro. (Carvalho, Amilton Bueno. Direito Alternativo: teoria e prática. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 58-66). 87 Neumann, Franz. Uma Introdução Filosófica ao Direito: tratado sobre a relação entre Estado e pena. Dissertação para obtenção do Doutorado na Faculdade de Direito de Frankfurt, Frankfurt am Main, 1922. 88 Rusche, Georg & Kirchheimer, Otto. Punição e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999. 89 “A natureza dessa tristeza torna-se mais clara se procurarmos saber qual é, afinal, o objeto de empatia do historiador de orientação historicista. A resposta é, inegavelmente, só uma: o vencedor. Mas, em cada momento, os detentores do poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre aqueles que, em cada momento, detêm o poder. Para o materialista histórico não será preciso dizer mais nada. Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é de praxe, são sempre também levados no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural”. (BENJAMIN, W. Sobre o Conceito de História in BENJAMIN, W. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 12). 90 Apud Mayora, Marcelo & García, Mariana. A Criminologia Crítica na Encruzilhada da Dominação e da Transformação Social in Revista de Estudos Criminais, n. 51, Porto Alegre, 2013, p. 188. 91 Melossi, Dario. Discussione a mo’ di Prefazione: cárcere, postfordismo e ciclo di produzione dela ‘canaglia’ in De Giorgi, Alessandro. Il Governo dell’Eccedenza: postfordismo e controllo della montitudine. Verona: Ombre Corte, 2002, p. 21/22.

2132

no olhar proposto pela teoria e pela criminologia críticas, porém, que esta massa de miseráveis criminalizados sem nome e sem importância passa a ter significado real. Se no campo das ciências criminais a teoria oficial e as práticas gerencialistas narram, repetem e seguem afirmando o cortejo dos vitoriosos (Benjamin) – do passado rudimentar da criminologia positivista ao presente sofisticado da neurocriminologia –, ou seja, sustentam o discurso dos grandes criminólogos e penalistas que forneceram as condições de possibilidade para a transformação dos marginalizados sociais em objetos de intervenção no laboratório criminológico, a crítica inverte o fluxo da historiografia oficial e constrói uma nova história. Ao contar a história dos vencidos, a crítica não apenas denuncia a ideologia dos opressores, mas resgata a potência de vida da ralé, transformando estes massacrados pelo sistema punitivo em sujeitos da história. Conforme Seligmann-Silva, é neste compromisso com os excluídos que Benjamin propõe uma nova ética da memória.92 No campo das ciências criminais, os excluídos da história que precisam ser recuperados são exatamente aqueles submetidos à radicalidade da violência oficial justificada pela razão ardilosa de direita ou de esquerda: as vítimas do genocídio em marcha que se sustenta nas engrenagens da burocracia punitiva, sobretudo na periferia do capitalismo financeiro. Vítimas que podem ser representadas pela juventude negra brasileira: grupo social preferencial dos assassinatos em nome da lei encobertos nos autos de resistência e no encarceramento seletivo.

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. O Conceito de Esclarecimento. In: ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ANIYAR DE CASTRO, L. Criminología y Poder: aventuras y desventuras de un criminólogo critico en el ejercicio del control social. In: Capítulo Criminológico. v. 23, n. 02, 1995.

92

Seligmann-Silva, Márcio. A Atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 53.

2133

ANIYAR DE CASTRO, L. Criminólogos Sediciosos no Poder? In: Discursos Sediciosos. v. 01, n. 02, 1996. BATISTA, V. M. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011. BENJAMIN, W. Sobre o Conceito de História. In: BENJAMIN, W. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. BRUM, E. A Ditadura que não Diz seu Nome. In: El País Brasil, 31/03/2014 (versão on line). CARVALHO, A. B. Direito Alternativo: teoria e prática. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. CARVALHO, S. A Política Criminal de Drogas no Brasil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. CARVALHO, S. As Permanências Autoritárias no Sistema Punitivo Brasileiro e a Práxis de Resistência da Criminologia Crítica. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. ano 22, n. 262, 2014. CARVALHO, S. Criminologia Crítica: dimensões, significados e perspectivas atuais. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 21, v. 104, São Paulo, 2014. CARVALHO, S. Criminologia Cultural. In: LIMA, R. S.; RATTON, J. L. & AZEVEDO, R. G. (orgs.). Crime, Justiça e Polícia no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. CARVALHO, S. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. COLLINS, R. Quattro Tradizioni Sociologiche. Bologna: Zanichelli, 1996. COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. GARLAND, D. As Contradições da Sociedade Punitiva: o caso britânico. In: Discursos Sediciosos, ano 7, número 11, 2002. GARLAND, D. La Cultura del Control: crimen y orden social en la cultura contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005. GUASTINI, R. Marx: della filosofia del diritto alla scienza della società. Bolonha: Il Mulino, 1974.

2134

HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: BENJAMIN, W; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. & HABERMAS, J. Textos Escolhidos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. KONDER, L. Em Torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010. KONDER, L. O Futuro da Filosofia da Práxis: o pensamento de Marx no Século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. MARX, K. & ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. MARX, K. Debates on the Law on Thefts of Woods. In: TREVIÑO, A. J. The Sociology of Law: classical and contemporary perspectives. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1996. MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010. MAYORA, M. & GARCÍA, M. A Criminologia Crítica na Encruzilhada da Dominação e da Transformação Social. In: Revista de Estudos Criminais, n. 51, Porto Alegre, 2013. MELOSSI, D. Discussione a mo’ di Prefazione: cárcere, postfordismo e ciclo di produzione dela ‘canaglia’ In: DE GIORGI, A. Il Governo dell’Eccedenza: postfordismo e controllo della montitudine. Verona: Ombre Corte, 2002. MIAILLE, M. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa, Editorial Estampa, 1989. NEUMANN, F. Uma Introdução Filosófica ao Direito: tratado sobre a relação entre Estado e pena. Dissertação para obtenção do Doutorado na Faculdade de Direito de Frankfurt, Frankfurt am Main, 1922. NOBRE, M. A Teoria Crítica. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. PANDOLFO, A. C. A Criminologia Traumatizada: um ensaio sobre violência e representação dos discursos criminológicos hegemônicos no século XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. PRATT, J. Penal Populism. London: Routledge, 2007. RUSCHE, G. & KIRCHHEIMER, O. Punição e Estrutura Social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999. SAFATLE, V. A Esquerda que não Teme Dizer seu Nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

2135

SCHWENDINGER, H. & SCHWENDINGER, J. Defensores da Ordem ou Guardiães dos Direitos Humanos? In: TAYLOR, I.; WALTON, P. & YOUNG, J. (orgs.). Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Graal, 1980. SIMON, J. Governing Through Crime. Oxford: Oxford Press, 2007. SOUZA, R. T. O Nervo Exposto: por uma crítica da razão ardilosa desde a racionalidade ética. In: BAVARESCO, A.; MILONE, J.; NEIVA, A. & TAUCHEN, J (orgs.). Filosofia na PUCRS: 40 anos do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (1974-2014). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014 SOUZA, R. T. de. As Fontes do Humanismo Latino II: a condição humana no pensamento filosófico contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. WACQUANT, L. A Ascensão do Estado Penal nos EUA. In: Discursos Sediciosos, ano 7, número 11, 2002.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.