ANAIS DO II SEMINÁRIO LINGUAGENS, TECNOLOGIAS E PRÁTICAS DOCENTES

May 30, 2017 | Autor: Sandra Mina Takakura | Categoria: Bakhtin, Scott McCloud, Dostoievski
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ANAIS DO II SEMINÁRIO LINGUAGENS, TECNOLOGIAS E PRÁTICAS DOCENTES

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Ficha catalográfica: BENTES, José Anchieta de Oliveira; SANTOS, Isabel Cristina França dos; ALMEIDASILVA, Rita de Cassia (orgs). Anais do II seminário Linguagens, Tecnologias e Práticas Docentes Belém-Pa: PPGED-CCSE, 2016 320 p. 21x29,7 cm ISSN 2358-4645 1 Linguagens; 2 Tecnologias; 3 Prática docente I- BENTES, José Anchieta de Oliveira Bentes (org); II - RODRIGUES, Isabel Cristina França dos Santos (org); III ALMEIDA-SILVA, Rita de Cassia (org)

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II SEMINÁRIO NACIONAL DE LINGUAGENS, TECNOLOGIAS E PRÁTICAS DOCENTES 11 e 12 de setembro de 2014 COMISSÃO ORGANIZADORA M.Sc. Sueli Pinheiro da Silva (UEPA) Dr. Isabel Cristina França dos S. Rodrigues (UFPA) Dr. José Anchieta de O. Bentes (UEPA) M.Sc. Patrícia Sousa Almeida (UFPA) M.Sc. Sandra Mina Takakura (UEPA) M.Sc. Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA) COMITÊ CIENTÍFICO Dr. José Anchieta de Oliveira Bentes M.Sc. Rita de Nazareth Souza Bentes M.Sc. Sueli Pinheiro da Silva M.Sc. Denilson Souza da Silva M.Sc. Patrícia Sousa Almeida M.Sc. Rita de Cássia de Macedo Leal Dr. Isabel Cristina França dos S. Rodrigues M.Sc. Eunice Braga Pereira M.Sc. Rita de Cássia Almeida da Silva M.Sc. Sandra Mina Takakura M.Sc. Jane Miranda Alves M.Sc. Débora Cristina do Nascimento Ferreira M.Sc. Maria Helena Rodrigues Chaves M.Sc. Welton Diego Carmim Lavareda COMISSÃO DE LOGÍSTICA Dr. Isabel Cristina França dos S. Rodrigues Esp. Vera Lúcia Gomes Travassos Grad. Tiago Sousa Santos Esp. Maria Bernadete de Lima Acad. Leila de Charle Costa da Silva Acad. Ana Claudia Ferreira Brito COMISSÃO DE INSCRIÇÃO Acad. Aurenice Roseane Costa Roxo Acad. Mayara Alexandra Oliveira da Cruz Acad. Jessica Rocha de Souza Acad. Leonardo Barata Amaral Grad. Mariane Portal COMISSÃO DE FINANÇAS M.Sc. Rita de Nazareth Souza Bentes M.Sc. Sandra Mina Takakura Grad. Aline Tainá M. de Araújo

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO......................................................................................................................................... 8 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO .................................................................................................... 9 TUX PAINT: UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO NA EJA............................................................. 9 ANTONIO GOMES DA SILVA FALAR E ESCREVE: FRONTEIRAS E PERSPECTIVAS PARA A ALFABETIZAÇÃO .............. 25 CLÉBIA DO SOCORRO SALVADOR MACIEL PROBLEMAS DE ALFABETIZAÇÃO OBSERVADOS NO 6º ANO ................................................. 37 DJANE DO SOCORRO PEREIRA BENJAMIM GILCÉLIA AMARAL MENDES A PRÉVIA ANÁLISE DO MÉTODO GEEMPA UTILIZADO NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ALFABETIZAÇÃO DOS ALUNOS DO 3º ANO DA REDE REGULAR DE ENSINO DO MUNICÍPIO DE SOURE ................................................................................................... 44 EDDA JAQUELINE SOUSA DE OLIVEIRA JANE MIRANDA ALVES CONSTRUÇÃO DE UMA BASE DE ORIENTAÇÃO A PARTIR DOS GÊNEROS TEXTUAIS .... 52 JALMA GEISE MARIA BRABO DO PRADO LETRAMENTO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS ............................................................... 60 LUCILEI MARTINS DE OLIVEIRA RODRIGO MILHOMEM DE MOURA ANÁLISE DO DISCURSO ........................................................................................................................ 67 HISTÓRIA E IDEOLOGIA EM UM TRECHO DA OBRA “O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO”, DE MIA COUTO ........................................................................................................................................ 67 HERBERT RODOLFO ANAISSI FABÍOLA FIGUEIREDO REIS AMBIGUIDADES NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: PERSUASÃO E DISSIMULAÇÃO ............. 74 HELDER DO VALE FARIAS EDUCAÇÃO INCLUSIVA ........................................................................................................................ 81 TORNANDO UM HERÓI: UM ESTUDO DE MONOMITO EM “FRENTE DA CLASSE” ............ 81 ANA CARLA SANTOS FABRICIA SILVA SANDRA MINA TAKAKURA NO ENCALÇO DE GABRIELA*: UMA HISTÓRIA DE INCLUSÃO ESCOLAR ........................... 86 ANA PAULA MELO DE ARAÚJO JAQUELINE DE OLIVEIRA COSTA MARCELO LUIZ BEZERRA DA SILVA A METODOLOGIA DE ENSINO E O CONHECIMENTO PRÉVIO PARA ALFABETIZAR CRIANÇAS SURDAS DO INSTITUTO FELIPE SMALDONE ........................................................... 92 ANA ROSA VILHENA DE SOUZA LEILANE FERNANDA DAS DORES MONTEIRO JOSÉ ANCHIETA DE OLIVEIRA BENTES

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A AÇÃO DO COORDENADOR PEDAGÓGICO NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA .......................... 100 GICELE HOLANDA DA SILVA PINTO INCLUSÃO ESCOLAR E AS POLITICAS EDUCACIONAIS NO ENSINO DE SURDOS ........... 106 KLÉBER CARLACK MARTINS DA SILVA KATHARYNI MARTINS PONTES O LETRAMENTO LITERÁRIO NO ENSINO DE ALUNOS SURDOS: POSICIONAMENTOS, ESTRATÉGIAS E INSTRUMENTOS DIDÁTICOS MOBILIZADOS PELO PROFESSOR .....................................................................................................................................................................113 KATHARYNI MARTINS PONTES THAÍS PEREIRA ROMANO RITA DE NAZARETH SOUZA BENTES O LETRAMENTO, O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE E OS CAMINHOS POSSÍVEIS PARA A ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN...............120 ANTONIO SERGIO VASCONCELOS DARWICH A INCLUSÃO DE ALUNO SÍNDROME DE DOWN NA ESCOLA COMUM: INCLUSÃO OU EXCLUSÃO? ............................................................................................................................................ 127 SÍLVIA HELENA GONÇALVES FONSECA A FLEXIBILIZAÇÃO DAS METODOLOGIAS UTILIZADAS NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO COM EDUCANDOS SURDOS .............................................. 138 IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA WALDMA MAÍRA MENEZES DE OLIVEIRA LITERATURA E O ENSINO DE LITERATURA ................................................................................ 143 ANÁLISE DO LIVRO EM QUADRINHOS XINGU: POSSIBILIDADES DE USO DA OBRA NA ESCOLA PARA A COMPREENSÃO DA QUESTÃO INDÍGENA ................................................... 143 CLAUDIO EMIDIO-SILVA SANDRA MINA TAKAKURA RITA DE CÁSSIA ALMEIDA-SILVA LITERATURA E ENSINO DE LITERATURA .................................................................................... 150 JOEL CARDOSO A FACE HEROICO-BÁRBARA DA CABANAGEM NO CONTO O REBELDE DE INGLÊS DE SOUSA ....................................................................................................................................................... 156 J.P.F O LETRAMENTO E A LEITURA LITERÁRIA: UMA SEQUÊNCIA BÁSICA PARA O ENSINO DE LITERATURA ................................................................................................................................... 162 JONILSON PINHEIRO MORAES HEATHCLIFF UCHIHA: UM ESTUDO SOB A PERSPECTIVA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO DE BRONTE E KISHIMOTO ................................................................................................................ 172 LEONAM DE ANDRADE NEVES SANDRA MINA TAKAKURA O PAPEL MATERNO DE NELLY DEAN: UM ESTUDO FEMINISTA DE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES ................................................................................................................................ 176 LEONARDO BARATA AMARAL SANDRA MINA TAKAKURA

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VOZES QUE UIVAM NO SILÊNCIO: UMA ANÁLISE BAKHTIANIANA DE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES ................................................................................................................................ 181 MILENA VANESSA SILVA CUNHA JENNIFER THAYNNÁ DOS SANTOS DA SILVA IZABELLY KAROLINY BRITO BENTES SANDRA MINA TAKAKURA O ESTRANHO EROS DE MAX MARTINS ......................................................................................... 185 JOSEBEL AKEL FARES NATÁLIA LIMA RIBEIRO RASKÓLHNIKOV UM HOMEM NAPOLEÔNICO: UM ESTUDO ACERCA DO DISCURSO DE RASKÓLHNIKOV DE CRIME DE CASTIGO...................................................................................... 191 ODAISE BARRA MACHADO SANDRA MINA TAKAKURA O EU E O OUTRO QUE FALAM: UM ESTUDO DO DIÁLOGO BAKHTINIANO E FREUDIANO EM O DUPLO DE DOSTOIÉVSKI ........................................................................................................ 195 SANDRA MINA TAKAKURA RITA DE CÁSSIA ALMEIDA SILVA A LEITURA DE UM CLÁSSÍCO EM HQ: IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR .......................... 201 SILVANA BANDEIRA OLIVEIRA GERMANA SALES PRÁTICAS DO ENSINO DE LÍNGUAS ............................................................................................... 208 CANTINHO DE LEITURA: UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DE CRIANÇAS LEITORAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL .................................................................................................................. 208 JULIANA TORRES DOS SANTOS LORENA BISCHOFF TRESCASTRO PRÁTICAS DE LEITURA: QUAIS SÃO AS METODOLOGIAS UTILIZADAS PELO PROFESSOR PARA O ENSINO DA LEITURA? ................................................................................ 217 RENATA APARECIDA SANTOS DE SOUZA LORENA BISCHOFF TRESCASTRO A IDENTIDADE DOS PROFESSORES DE INGLÊS E A INSERÇÃO DO ESPANHOL NO ENSINO MÉDIO: REPENSANDO O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE BELÉM ..................................... ......................................................................................227 JOSANE DANIELA FREITAS PINTO A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA SALA DE AULA: A PERSPECTIVA E AS ATITUDES DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA NO COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO .................................................................................................................................................................... 234 MAYARA ALEXANDRA OLIVEIRA DA CRUZ SUELI PINHEIRO DA SILVA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM SALA DE AULA ............................................................................. 241 ROMÁRIO DUARTE SANCHES CELESTE MARIA DA ROCHA RIBEIRO O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS PCN: DAS ORIENTAÇÕES ÀS PRÁTICAS EM SALA DE AULA. ...................................................................................................................................... 248 SILVANA OLIVEIRA BANDEIRA

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TÂNIA REGINA DO NASCIMENTO MONTEIRO TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E DOCÊNCIA .................................... 255 O USO DE BLOGS COMO SUBSÍDIO À PRÁTICA DOCENTE NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA .............................................................................................................................................. 255 ANA CYLENE COLINO ANA PAULA MELO DE ARAÚJO OS PROFESSORES E AS TICS NA ESCOLA PÚBLICA DO SÉCULO XXI: UMA REALIDADE OU AINDA UM SONHO? ....................................................................................................................... 262 BÁRBARA CHAGAS DA SILVA LORIANE SORAIA LOURENÇO DE ANDRADE SILVANA TABOSA SALOMÃO TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO: O MUSEU VIRTUAL DOS MONUMENTOS DE BELÉM ...................................................................................................................................................... 269 BERNARDO BAIA DOS SANTOS CONCEIÇÃO CARMEN LÚCIA SOUZA DA SILVA AUTO REFLEXÃO E AUTO EXPRESSÃO NAS REDES SOCIAIS ATRAVÉS DA ESCRITA ... 273 CAETANO DA PROVIDÊNCIA SANTOS DINIZ AS NOVAS TECNOLOGIAS NO COTIDIANO DOS PROFESSORES DE PORTUGUÊS: UM RELATO SOBRE OS DESAFIOS DO PROJETO PIBID NA REGIÃO DO BAIXO TOCANTINS PARAENSE ............................................................................................................................................... 278 CRISTIANE DOMINIQUI VIEIRA BURLAMAQUI EVERNOTE: FERRAMETA DIGITAL PARA A PRÁTICA DOCENTE ........................................ 285 FRANCINÉLIA CRUZ LILIANE PONTES JOSIELE SOUZA NOVAS TECNOLOGIAS, REDES SOCIAIS E FORMAÇÃO DOCENTE: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO PARFOR ................................................................................................................ 289 ISABEL CRISTINA FRANÇA DOS SANTOS RODRIGUES A LINGUÍSTICA APLICADA CRÍTICA E AS NTICS: NOVOS PARADIGMAS PARA O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA ........................................................................................................................ 295 JONILSON PINHEIRO MORAES CRISTIANE DOMINIQUI VIEIRA BURLAMAQUI TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS E INCLUSÃO: EXPERIÊNCIAS NO MINI-CURSO NOÇÕES DE BRAILLE PARA FUTUROS DOCENTES ..................................................................................... 307 COSTA, S. E. A. PINHEIRO, M. O. CASTRO, S. M. V LABORATÓRIO MULTIDISCIPLINAR: ALTERNATIVA DE PRODUÇÕES PARA INFORMÁTICA ....................................................................................................................................... 312 Wander Wilson de Lima Cardoso

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APRESENTAÇÃO O Grupo de Estudos em Linguagens e Práticas Educacionais da Amazônia (GELPEA) foi criado em 17 de junho de 2008. Ele reúne professores pesquisadores de instituições públicas em torno de cinco linhas de pesquisas: 1) Estudos do Discurso; 2) Literatura e ensino; 3) Práticas de ensino de línguas e letramentos; 4) Práticas educacionais e sociais inclusivas na Amazônia; 5) TICs e Formação Docente As pesquisas nestas cinco linhas intencionam o estudo e a divulgação de resultados de pesquisa a partir da refleção científica das problemáticas locais amazônidas. A linha de “Estudos do Discurso” discute questões referentes ao estudo do discurso, em diferentes perspectivas teóricas; Promover a prática da análise discursiva a partir do reconhecimento da constituição do discurso enquanto prática social. A linha “Literatura e ensino” discute questões da literatura e seu ensino sob o enfoque das vertentes da teoria literária em suas variadas escolas e movimentos que muitas vezes chegam aos nossos dias por meio das novas mídias, como os filmes e /ou animação. Pretendese realizar pesquisas sobre e questões do ensino de literatura nas escolas de educação básica, tanto dos cânones quanto dialogando com esses novos gêneros, focando na leitura de corpus literário ou de seus estudos. A linha de “Práticas de ensino de línguas e letramentos” investiga práticas que conjuguem a oralidade, a leitura e a escrita em classes escolares e não escolares, problematizando os modos de ensino-aprendizagem da escrita nelas implicados. Sob a perspectiva paradigmática de alfabetizar letrando, trataremos de questões relacionadas à apropriação do Sistema de Escrita Alfabética, ao processo de aquisição da escrita, em sua interface com a oralidade e outras semioses, à constituição da textualidade e da discursividade na escolarização básica obrigatória. A linha de “Práticas educacionais e sociais inclusivas na Amazônia” realiza estudos relacionados à identificação de situações de normalizações, que impedem a aceitação das diferenças nos ambientes públicos, ao mesmo tempo, que propõem práticas de formação de professores a partir de procedimentos e resultados de pesquisas realizadas. E a linha de “TICs e Formação Docente” desenvolve investigações que articulem o conhecimento das tecnologias com o processo de formação do professor de língua materna e adicional/estrangeira que atuará na Educação Básica. Discutir, ainda, as formas de apropriação dos diferentes tipos de linguagens presentes nos ambientes virtuais por parte dos professores, seja na formação inicial ou continuada e os reflexos disso nas práticas educativas. Já realizamos dois seminários: em 2012, nos dias 10 a 11 de setembro, com 68 trabalhos inscritos e participação de 250 pessoas, e o segundo, nos dias 11 e 12 do mês de setembro de 2014, com 85 trabalhos inscritos e com a participação de 186 pessoas, ambos no Auditório Paulo Freire da Universidade do Estado do Pará. Este segundo evento discutiu seis temas: a) Educação Inclusiva; b) Literatura e ensino de Literatura; c) TICs e Docência; d) Análise do Discurso; e) Alfabetização e Letramento; e f) Práticas de Ensino de Línguas. Parte dessas pesquisas está posta neste e-book, resultante das comunicações orais apresentadas no nosso II seminário. Neste E-book temos 43 artigos envolvendo 72 autores. Dito isso, boa leitura! José Anchieta de Oliveira Bentes Isabel Cristina França dos Santos Rita de Cassia Almeida Silva Junho/2016

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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO TUX PAINT: UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO NA EJA ANTONIO GOMES DA SILVA O letramento é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários, por isso é um conjunto de práticas (MARCURSCHI, 2007).

RESUMO: Neste artigo apresenta-se uma proposta de letramento de alunos da EJA usando a linguagem oral e escrita, através do software educacional Tux Paint. Este instrumento pode ser utilizado por professores que enfrentam dificuldades em trabalhar seus conteúdos através dos recursos digitais. O estudo foi embasado em pesquisa bibliográfica, a qual revelou que para uma utilização eficaz do letramento através do Tux Paint na EJA é necessária uma proposta que considere a oralidade, análise e formação de palavras, produção de frases, ilustração da sequência e escrita da história. Palavras-chave: Letramento, Oralidade, Conto, EJA, Tux Paint. ABSTRACT This article presents a proposal for literacy students EJA using oral and written language through educational software Tux Paint. Teachers who face difficulties in making their content through digital resources can use this instrument. The study based on a literature review, which revealed that a proposal to consider orality, analysis and word formation, production of sentences, the following illustration and story writing for effective use of literacy through the Tux Paint is necessary in EJA. Key Words: Literacy, Orality, Fairy, EJA, Tux Paint. 1 INTRODUÇÃO Pesquisa realizada pelo Instituto de Geografia e Estatística – IBGE em setembro de 2012, revelou que o Brasil possui 30,5 milhões de analfabetos funcionais. Pessoas que conseguem decodificar as letras, como frases, textos curtos e outros. Todavia, encontram dificuldades para compreendê-los. Conforme mostra a pesquisa, o problema não está somente em saber ler e escrever, mas na capacidade de utilização desse conhecimento no dia a dia. “Isso significa que além da preocupação com o analfabetismo também emerge a preocupação com o alfabetismo, ou seja, com as capacidades e usos efetivos da leitura e escrita nas diferentes esferas da vida social”, segundo Ribeiro (2006). A partir de 1980 surgiram várias teorias que mostravam que o aprendizado da escrita não se reduziria ao domínio da decodificação e codificação, mas sim da vivência de um processo ativo no qual desde cedo, a criança ou adulto, tivesse contato com materiais escritos e elaborasse hipóteses de escrita, ou seja, construísse e reconstruísse a hipóteses sobre a natureza e o funcionamento da língua escrita como um sistema de representação. Em meio a esse contexto é que surge o letramento, como afirma Soares (2004a). Para Magda Soares (2003), o letramento é entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais. No sentido mais amplo, o letramento, se dá pela aprendizagem de toda a complexa tecnologia envolvida no aprendizado do ato de ler e escrever. Com a era da informática, o aluno precisa apropriar-se do hábito de buscar não somente nos livros e revistas, mas nos computadores o convívio com a leitura e a escrita, principalmente com os alunos da EJA, que de alguma forma, já sabem da existência dessa

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tecnologia. Para isso, os professores devem conhecer e utilizar os meios tecnológicos em sala de aula. No entanto, muitos professores ainda enfrentam dificuldades em trabalhar seus conteúdos através desses recursos. A Informática na educação no Brasil surgiu desde os anos 70 e a partir dessa data foram implantados diversos projetos em instituições diferentes de ensino com o objetivo de auxiliar o professor em sala de aula, segundo Valente (1999). Além disso, muitos softwares educacionais foram criados e disponibilizados no mercado tecnológico. Dentre eles, pode-se enfatizar o software Tux Paint. O Tux Paint é um programa de computador que pode ser usado em vários sistemas operacionais, como Windows, Linux e Mec. Ele pode ser encontrado na internet gratuitamente. Além de favorecer ao usuário a possibilidade de acrescentar imagem, figuras, papel de parede e outros. Considerando o contexto supracitado, a questão principal que norteia este estudo é: Em que o Tux Paint pode contribuir para o processo de letramento na EJA? O objetivo geral é elaborar uma proposta de letramento com a linguagem oral e escrita através do software educacional Tux Paint aos professores que enfrentam dificuldades em trabalhar seus conteúdos através dos recursos digitais. Os objetivos específicos são: 1 Apreender os conceitos de letramento; 2 Compreender os fundamentos da linguagem oral e escrita; 3 Conhecer as principais ferramentas do software Tux Paint e suas possibilidades para o processo de letramento. 4 Apresentar o gênero textual contos no Tux Paint. O método de estudo foi embasado em pesquisa bibliográfica envolvendo temas como: Letramento, Educação de jovens e adultos, Linguística, Língua oral e escrita e software educativo Tux Paint. Os principais teóricos desta pesquisa foram Luiz Antônio Marcuschi, Sozângela Schemim da Mata, Ana Marian Soek, Marcos Bagnos, João Batista Araújo, Rosa Virgínia Mattos Silva, Magda Soares, Luiz Carlos Gagliari, Silviane Bonaccorsi Barbato e Bill Kendrick. 2 LETRAMENTO Para Magda Soares (2004b), a palavra letramento é uma versão para o Português do termo inglês literacy, que significa o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e a escrever. No Brasil o conceito de letramento originou-se nos meados dos anos 80, assim como na França, illettrisme, em Portugal, literacia, para nomear fenômenos distintos daquele denominado alfabetização, alphabétisation. Naquele momento, o que se observava em vários países é que a população, embora alfabetizada, não dominava as habilidades de leitura e de escrita necessárias para uma participação efetiva e competente nas práticas sociais e profissionais que envolviam a língua escrita. Assim, na França e nos Estados Unidos, para limitar a análise a esses dois países, o letramento surge de forma independente da questão da aprendizagem básica da escrita (SOARES, 2004b). No caso do Brasil, o letramento surge também a partir dos questionamentos sobre o conceito de alfabetização e a eficácia dos processos de aprendizagem. A partir disso pode-se identificar nas discussões uma progressiva extensão do conceito de estar alfabetizado. Antes significava apenas capacidade de escrever o próprio nome ou um bilhete simples, mas atualmente este conceito se amplia. Alfabetização e letramento é o resultado da ação de ensinar e apreender as práticas sociais de leitura e escrita, também é o estado ou condição que

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adquire um grupo social ou individuo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais, segundo Soares (1998). O letramento tem a escrita como instrumento de mediação simbólica em diferentes contextos com a finalidade de atingir diferentes objetivos. Como bem observa Silviane Bonaccorsi Barbato, O processo de letramento diz respeito a práticas discursivas culturais e é constituído por eventos de uso, em que a leitura e a escrita das pessoas não são apenas orientadas pela escolarização. Os usos e as funções sociais da escrita de uma sociedade e de comunidades são desenvolvidos ao longo de suas histórias de acordo com as diferentes situações sócio comunicativas, cabendo à escola oportunizar práticas dialógicas em que os princípios de diferentes contextos situacionais possam ser vividos pelos alunos. (BARBATO, 2008, p. 23).

No Brasil muitos sabem decodificar os sinais da escrita, no entanto, não sabem sequer preencher um requerimento. Esse é um exemplo de pessoas que são alfabetizadas e não letradas. Existem também, aqueles que sabem como deveria ser aplicada a escrita, todavia, não são alfabetizadas. Como no filme Central do Brasil – alguns personagens conheciam a carta, mas não podiam escrevê-la por serem analfabetos. Eles ditavam a carta dentro do gênero, mesmo sem saber escrever. A personagem principal, a Dora (interpretada pela atriz Fernanda Montenegro), era um instrumento para essas pessoas letradas, mas não alfabetizadas, usarem a leitura e a escrita. No universo infantil há outro bom exemplo: a criança, sem ser alfabetizada, finge que lê um livro. Se ela vive em um ambiente literário, vai com o dedo na linha, e faz as entonações de narração da leitura, até com estilo. Ela é apropriada de funções e do uso da língua escrita. Essas são pessoas letradas sem ser alfabetizadas. (SOARES, 2003, p. 3).

2.1 O PAPEL DO PROFESSOR MEDIADOR DA EJA O professor assumindo o papel de mediador nas turmas da EJA tem que planejar suas aulas, tendo em vista os processos já adquiridos e em desenvolvimento, além de provocar situações que promovam o aprendizado por meio de atividades diferenciadas, discussões e reflexões que conduzam o aluno na transformação de seu conhecimento. O professor mediador deve ficar atento para compreender a forma como os diferentes grupos e indivíduos se apropriam de novos conceitos e atividades, levando em consideração as influências da história e da cultura no desenvolvimento humano e na aprendizagem, segundo Barbato (2008). Para Silviane Barbato (2008), a cultura de um grupo começa a fazer parte da vida de uma pessoa desde o seu nascimento quando ela começa a conviver com a cultura, participar da história de seu grupo e socializar-se com os diferentes contextos. Os quais vão se diferenciando com passar do tempo conforme a pessoa vai se desenvolvendo e se tornando autônoma. Para a autora, Um desses contextos é a escola, a comunidade escolar e os significados construídos nesses ambientes: os vários conhecimentos que podem se aprendidos, o desenvolvimento moral, as trocas possíveis, a aprendizagem da variante padrão da língua, a leitura e a escrita, que são importantíssimas para todo o processo de escolarização e dependem do desenvolvimento de competência de compreensão de textos. (BARBATO, 2008, p. 22).

As etapas de desenvolvimento do aluno na leitura e escrita na EJA, depende de como o professor mediador constrói as pontes para mediar o conhecimento em relação aos seus

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alunos, além disso, incentivando o uso de conhecimentos prévios assimilados e também o conhecimento aprendido no cotidiano. Para Ana Maria Soek (2009), os desafios da EJA exigem um olhar cuidadoso sobre as questões que podem interferir na motivação dos alfabetizadores, em sala de aula, uma vez que um dos fatores que dificultam a aprendizagem encontra-se no fato de o alfabetizando iniciar ou recomeçar a escolarização na fase adulta. Nesse sentido, muitos alfabetizando sentem vergonha de voltar à escola depois de adultos porque pensam que não são capazes de aprender, além disso, veem a escola como espaço de aprendizagem para crianças. Muitos deles trabalham fora estudam, outros são responsáveis família e organização da casa. “Sendo assim, os alfabetizandos necessitam que os encaminhamentos pedagógicos sejam organizados conforme a realidade temporal e cultural destes sujeitos” (SOEK, 2009, p. 22). O Professor deve estar consciente do é e de onde surgiu a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Essas informações se revelam importantes uma vez que permite a compreensão das condições limitadas impostas pelo modelo rígido da educação formal quanto se pensa na EJA enquanto modalidade educativa. Nesse sentido Ana Maria Suek, orienta, Diante disso, é necessário indagar: quem são os sujeitos da EJA situado historicamente? Quais as marcar sociais e o perfil desse sujeito? Por que e como foram se delineando na história de alfabetização de jovens e adultos no país? Como se construiu a identidade desses sujeitos. (SOEK, 2009, p. 21).

Também a autora enfatiza, que a EJA é uma modalidade da educação básica, definida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº9393/96, não pode ser pensada como oferta menor, nem pior, nem menos importantes, mas sim como uma modalidade educativa, um modo próprio de conceber a educação básica, modo desse determinado pelas especificidades dos sujeitos envolvidos. 3 A LINGUÍSTICA NO TEXTO E NO CONTEXTO DA LINGUAGEM A necessidade de formação do aluno com adequadas habilidades para ler, escrever e se expressar oralmente é uma imposição do século XXI. Isso se deve tanto ao fato de que a informação circula intensamente e deve ser apreendida, compreendida e, sobretudo, filtrada, como ao fato de que as pessoas são cada vez mais solicitadas a se expor publicamente, seja pela fala ou por escrito. Dentro desse novo cenário onde a tecnologia é cada vez mais abrangente é impossível não pensar no ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa. Principalmente, sobre as práticas de ensino de leitura e escrita que devem ser um exercício constante para adequar-se nas mais nas diversas mídias. Ensinar ao aluno o seu idioma materno é justamente um dos maiores desafios do professor de Língua Portuguesa, ou seja, algo que ele já conhece. Como destaca Rosa Virgínia Mattos e Silva sobre a língua materna, Qualquer trabalho de ensino da língua materna se constitui em um processo de enriquecimento do potencial linguístico da falante nativo, não se perdendo de vista a multiplicidade que variará, a depender das características de cada uma, enquanto língua histórica, isto é, língua inserida tanto sincrônica quanto diacronicamente no contexto histórico em que se constitui (SILVA, 2004, p.27).

Compreender o que ler é o artifício central em torno do qual devem ser pensadas e organizadas as atividades de trabalho com a língua materna. O enfoque do texto como centro do sistema tem sua justificativa: é nele que a linguagem se concretiza e, desse modo, coerente

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para o aluno, que consegue enxergar ali um propósito para as reflexões que irá realizar nas aulas de Língua Portuguesa. Atualmente existe uma série de ações favoráveis para empreender um ensino mais eficiente em todos os Níveis. Importa aqui destacar a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais - os PCNS em cujas concepções teóricas se privilegia uma dimensão interacional e discursiva da língua e se define o domínio dessa língua como uma das condições do indivíduo em seu meio social (MATTA, 2009, p.09).

Dessa forma, o sujeito capaz de ler e interpretar adequadamente um texto torna-se mais apto ao exercício de sua cidadania, mais crítico e assim, mais preparado para intervir na sociedade, além de ser capaz de estabelecer parâmetros de avaliação para a imensa quantidade de informação que está ao seu alcance. 3.1 A LÍNGUA: ABORDAGEM ORAL E ESCRITA A reflexão sobre a Língua Portuguesa em situações funcionais e expressivas, que contemplem a dinâmica dessa cognição emergente não deve perder de vista a formação de cidadãos íntegros, como afirma Luiz Antônio Marcuschi, Partindo do princípio de que são os usos que fundam a língua e não o contrário, defende-se a tese que falar ou escrever bem não é ser capaz de adequar-se às regras da língua, mas é usada adequadamente a língua para produzir um efeito de sentido pretendido numa dada situação. Portanto, é a intenção comunicativa que funda o uso da língua e não a morfologia ou a gramática. Não se trata de saber como se chega a um texto ideal pelo emprego de formas, mas como se chega a um discurso significativo pelo uso adequado às práticas e a situação a que se destina. (MARCUSCHI, 2007, p. 9).

Visto que a linguagem oral e a escrita sejam entendidas não através das diferenças formais, mas através das semelhanças constitutivas, que permitam pensar a aquisição da escrita como um processo que dá continuidade ao desenvolvimento linguístico. Atualmente a prática da oralidade não se restringe à conversa informal, aparentemente fragmentada e dependente de contexto, compreende um leque muito maior de manifestações. Essas manifestações, por sua vez, têm estrutura e características próprias que devem ser exploradas com os alunos. Um debate, por exemplo, envolve a exposição de opiniões de forma clara, organizada, com o propósito de apresentar as diferentes facetas de uma questão. Nesse sentido afirma Sozângela Schemim da Matta “O mais importante é perceber que existe a possibilidade de se trilharem vários caminhos, e o professor dever estar atento para optar por aquele que seja, mais pertinente e produtivo para suas atividades em sala de aula”. (MATTA, 2009, p.12). O fundamental é fazer o aluno perceber que manifestar-se por meio de sua fala não significa somente conversar, mas, sim, incorporar uma série de aspectos que entram em jogo em cada gênero de interação oral demonstrando assim a grande possibilidade de variação oral. 3.2 GÊNERO TEXTUAL: CONTO Para Marcushi (2004), os gêneros textuais são os textos materializados encontrados em nosso cotidiano. Eles apresentam características sociocomunicativas definidas por seu estilo, função, composição, conteúdo e canal. Quando interagimos com outras pessoas por meio da linguagem, seja a linguagem oral, seja a linguagem escrita, produzimos certos tipos de textos que, com poucas variações se repetem no conteúdo, no tipo de linguagem e na estrutura. Esses textos são os chamados Gêneros Textuais.

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Para João Batista Oliveira (2008), contar uma história é a forma mais tradicional e popular de escrita. Há vários tipos de conto. Uma forma é classificá-los em modernos e tradicionais por sua vez incluem os contos populares e os contos de fada. Todos possuem diversas características em comum. Os contos tradicionais, segundo Oliveira (2008), possuem as seguintes características: 1-Origem popular: são antigos gêneros literários, transmitidos oralmente de gerações a gerações. 2 Ausência de autor: foram criados a partir da linguagem oral sendo modificados ao longo do tempo. Daí a expressão popular: “quem conta um conto acrescenta um ponto”. 3-Registro: no século XVII, alguns autores começaram a registrar os contos populares e particularmente os contos infantis. Alguns autores mantiveram a linguagem mais popular, outros adotaram uma linguagem mais literária. Já para os contos modernos ou literários, conforme Oliveira (2008), eles começaram a ser escritos a partir do século XIV. Essa tendência começou com um escrito chamado Boccaccio, que escreveu os contos do Decamerão, que apresenta um tipo de narrativa decorrente dos contos tradicionais e o conto moderno, com as seguintes características: 1 Tem um autor, não é fruto da imaginação coletiva; 2 A linguagem é própria do autor que pode ou não reproduzir a linguagem popular; 3 O estilo varia, de acordo com o autor. É muito comum, tanto nos contos tradicionais quanto nos modernos, o uso do diálogo. Pois através das falas é possível, de uma só vez, narrar as ações realizadas numa situação, caracterizar os personagens e, ainda, apresentar o ambiente no qual ocorre a história. Normalmente a linguagem dos contos se dá no passado Era uma vez, um dia, etc. Como conclui Araújo (2008). Para Marcos Bagno (2002) as práticas orais são importantes para ampliar o conceito de letramento, aplicando-o à capacidade de que os seres humanos sempre tiveram nas mais distintas épocas e culturas, transmitindo conhecimento, preservando a memória do grupo e estabelecendo vínculos de coesão social por meio de práticas que independem do conhecimento de qualquer forma de escrita. Com o avanço da tecnologia, Bagno faz uma alerta, Não podemos esquecer também que o acelerado desenvolvimento atual da tecnologia da informática nos obriga a incluir em nosso interesse um outro tipo de letramento, o letramento digital, uma vez que a tela do computador se tornou um novo portador de textos (e de hipertextos), suscitando novos gêneros, novos comportamentos sociais referentes às práticas de uso da linguagem oral e escrita (BAGNO, 2002, p. 55).

Conforme o autor, essa realidade cobra dos profissionais da educação novas teorizações e novos modelos de interpretação dos fenômenos da linguagem. 4 O SOFTWARE TUX PAINT E SUAS FERRAMENTAS O Tux Paint foi desenvolvido por Bill Kendrick. É um software educacional considerado de autoria, porque possui várias ferramentas que permitem desenvolver uma variedade de atividades que estimulam o cognitivo.É um programa de desenho criado para o público infantil, mas pode ser usado no letramento de jovens e adultos. A palavra Tux Pain vem do Tux, famoso e divertido mascote pinguim do Linux. (Figura 01).

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Figura 01 - Tela inicial do software

Fonte: Tux Paint

Tux Paint é um Software livre de código aberto, ou seja, os usuários são livres para executar, copiar, distribuir, estudar, mudar ou melhorar o software. Segundo Kendrick, (2009), o Tux Paint por ter um custo zero e por ser compatível às múltiplas plataformas facilita para as pessoas o seu uso no Linux no estabelecimento escolar e no Windows em sua casa. O download do software pode ser feito acessando o site do Tux Paint. O editor de imagem Tux é simples, divertido e fácil de usar. Todavia, não quer dizer que é um software sem nenhum sentido e nem também “tão na cara”, é “destinado para criança, mas é apropriado para o uso de adultos também. Eu tive pessoas que sugeriram um tema para adultos, com menos efeitos sonoros e uma interface com aparência mais séria” segundo Kendrick (2009, p.31). O Software Tux Paint oferece uma interface simples com efeitos sonoros divertidos e uma tela em branco com as várias ferramentas, pincéis e cores, de desenho que ajudar o aluno a ser mais criativa (Figura 02). Figura 02 - Área de trabalho

Fonte: Tux Paint

Outro aspecto importante do programa é que não há acesso direto as camadas do computador. A imagem atual é mantida quando o programa é fechado, e reaparece quando é reiniciado. Ao salvar as imagens o programa não exige nomes de arquivos ou o uso do teclado. A abertura de uma imagem é feita selecionando-o a partir de uma coleção de miniaturas. O Software possui botões que contém as ferramentas (Figura 03) que o aluno poderá utilizar para escrever uma história e ilustrar ou pintar conforme a necessidade. Além disso, possuem ferramentas como: Carimbos, Linhas, Formas, sair e outras.

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Figura 03 - Ferramentas

Fonte: Tux Paint

A ferramenta “Pintar” permite desenhar à mão livre (Figura 4). Basta clica no ícone do pincel e aparecerá ao lado direito da tela as opções de pincéis e na parte debaixo as cores que o a criança poderá usar conforme seu interesse. Ao usar o pincel, dependo da escolha da sua espessura, o programa emitira um som. Figura 4 - Desenho feito a pincel

Fonte: Tux Paint

Carimbos A ferramenta “Carimbar” (Figura 5) apresenta várias figuras como pássaros, ursinhos, répteis, mamíferos, aquáticos, brinquedos e outros. Para inverter ou aumentar o tamanho do carimbo, basta clicar na parte inferior do menu na opção desejada. O software possibilita o acréscimo de novos carimbos, basta colá-las na pasta stamps no formato ou extensão png.

Figura 5: Carimbos

Fonte: Tux Paint

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Linhas Esta ferramenta permite desenhar linhas retas (Figura 6). Basta selecioná-los. Depois clique na tela, arraste e solte para completar a linha. Figura 6: Linhas

Fonte: Tux Paint

Fonte: Tux Paint

Formas São as figuras geométricas, como o quadrado, triângulo, retângulo, círculo, preenchidos ou somente com contorno (Figura 7). Para inserir basta clicar na figura, depois na tela e arrasta para definir o tamanho. Quando soltá-lo dará a opção de girar a figura e com um clique desenhá-la de vez.

Figura 7: Formas

Imagem: Tux Paint

Texto A ferramenta “ABC Texto” permite escrever, aumentar e alterar o tipo de forte para negrito ou itálico (Figura 8). Ao clicar na tecla ENTER, uma nova linha surge para ser escrita. Também, assim como as outras ferramentas, é possível trocar a cor da fonte.

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Figura 8: Texto

Fonte: Tux Paint

Imagem: Tux Paint

Sair Ao clicar no botão “Sair” (Figura 9) ou pressionar tecla “Esc” aparecerá uma janela perguntando se realmente deseja sair, e se o desenho atual, ainda, não tiver sido salvo o programa questionará se deseja salvá-lo. A última imagem guardada será aberta automaticamente na próxima vez que o Tux Paint for iniciado. Figura 9: Sair

Fonte Tux Paint

5 PROPOSTA PARA APLICAÇÃO DO TUX PAINT NO LETRAMENTO DA EJA A proposta aqui apresentada usa o texto extraído da obra de Leila Nascimento, “História Boa de Contar”, publicada em 2011 pela Gráfica Amazônia. O livro apresenta contos folclóricos cheios de magia e mistérios relatados por pessoas moradoras da região bragantina. Estes contos eram passados de geração em geração. Na proposta, aqui apresentada, o texto-base utilizado foi o conto “Um banho com a mãe d'água” por ser mais conhecido pelos moradores do município de Bragança-Pa, além de possibilitar com facilidade a lustração e o trabalho com um banco de palavras no software Tux Paint como: Beto, roça, fome, mãe d'água, floresta, vovó, tio, igapó, banho, rio, roupa, mistério, árvores, assobiar, barulho, cabeça, mulher, riachos, peixes, feitiços, profundezas, criatura, desespero, desesperado, estranha, netos, quintal, felicidade e sussurra. As ilustrações podem ser fotografias da própria localidade ou imagens retiradas da Internet e colocadas na pasta stamps do Tux Paint no formato ou extensão png. Geralmente a pasta está localizada na unidade C do computador. Propõem-se para aplicação do software Tux Paint no Letramento da EJA as seguintes fases: 1ª fase – Oralização: Contação da história “Um banho com a mãe d’água” pelo professor. A oralidade é a transmissão dos conhecimentos armazenados na memória humana

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de forma oral. Antes mesmo do surgimento da escrita tudo era transmito oralmente. Por isso, é importante que o professor desempenhe um papel fundamental na compreensão leitora, visto que esta requer, dentre outros, prática do hábito de contar histórias que favorece a “ponte” entre o oral e o escrito. 2ª fase – Leitura: Leitura coletiva da história, destacando algumas palavras-chave. Nesta oportunidade o professor destaca os elementos básicos da narrativa: título (Figura 10), autor, personagens, contexto, introdução, desenvolvimento e desfecho. Figura 10: Título da história

Fonte Tux Paint

A história contada por uma avó aos seus netos é sobre o tio Beto que voltando da roça vai tomar banho no rio na hora do meio dia e vê a mãe d’água. Após rezar ela vai embora, mas ele desmaia e só retorna no hospital, onde permaneceu três dias. 3ª fase – Análise e formação de palavras: Nomear e completar os nomes das figuras da história (Figura 11). Neste processo o aluno levanta hipóteses, reflete e reelabora estas hipóteses com a mediação do professor. As palavras são selecionadas do banco de palavras originado da história.

Figura 11: Formação de Palavras

Fonte Tux Paint

4ª fase – Produção de frases: Elaboração e ilustração de pequenas frases. Pensar na história e sintetizar ações ou situações e expressá-las através de frases é muito importante para a produção da escrita, assim como para o raciocínio lógico (Figura 12) do aluno.

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Figura 12: Frase

Fonte Tux Paint

5ª fase – Ilustração da sequência da história: Recontar a história através de ilustrações (Figura 13) ou desenho livre. Da mesma forma que na produção de frases, agora com maior complexidade, o aluno precisará planejar e organizar seu pensamento e contar a história a partir de uma linguagem não verbal. Figura 13: Ilustração da história

Fonte Tux Paint

6ª fase – Reescrita da história: Reescrever a história com suas palavras (Figura 14). Esta fase é a mais complexa, pois além do aluno ter clareza dos acontecimentos sequenciados da história terá que representá-los através do texto escrito. As ilustrações criadas na fase anterior deverão ser utilizadas para ilustrar a produção de texto nesta fase.

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Figura 14: Reescrita da história

Fonte Tux Paint

Clarissa Golbert (1988) observa que para o aluno compreender a linguagem oral deve haver uma consciência linguística de controle, análise e grau de atenções maiores do que os comportamentos mais espontâneos próprios da linguagem oral. Nesse sentido é que entra o professor mediador, para fazer ponte entre a vivência da oralidade dos alunos com os materiais usados no Tux Paint, propiciando uma interação entre os jovens e adultos. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nos aportes teóricos utilizados, são possíveis algumas considerações para que haja um bom resultado no letramento dos alunos da EJA. Primeiro, é necessário que o professor conheça o software educacional Tux Paint e suas ferramentas, as possibilidades de alteração de interface ou inclusão de imagens. Caso o professor não conheça o software terá dificuldades de planejar atividades importantes que favoreçam o alcance dos objetivos. Segundo, organizar um planejamento sequenciado, com calendário, onde as atividades que serão realizadas estejam claras nos seus objetivos, metodologias e recursos. Terceiro, que o professor assuma uma postura de mediador, com a finalidade de orientar os alunos na realização das atividades. Nesta mediação o professor deve procurar envolver os outros alunos incentivando a colaboração mútua e a socialização de ideias e dificuldades, ou seja, todos podem ensinar e aprender. REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. Língua materna: letramento, variação e ensino / Marcos Bagno, Gigné, Michael Stubbs,- São Paulo: Parábola Editora, 2002 BARBATO, Silviane B. Integração de crianças de 6 anos ao ensino fundamental. São Paulo: Parábola Editorial, 2008 CASTRO, Leila Cristina do Nascimento. Histórias Boas de Contar. Gráfica Amazônia, Bragança-PA, 2011 GOLBERT, Clarissa S. A evolução psicolinguística e suas implicações na alfabetização: teoria-avaliação-reflexões.Porto Alegre: Artes Médicas, 1988

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KENDRICK, Bill. Entrevista com Bill Kendrick, criador do Tux Paint. Revista Espirito Livre, out-2009. Disp. em: http://revista.espiritolivre.org/pdf/Revista_EspiritoLivre_ 007_outubro09.pdf Acesso em: 10 jan. 2013, 09:02:25 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2007 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, Luiz Antônio; XAVIER, Antônio Carlos (Org.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004 MATTA, Sozângela Schemim da – Português – Linguagem e Interação/ Sozângela Schemim da Mata- Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda. 2009. OLIVEIRA, João Batista Araújo e. Usando textos na sala de aula: tipos e gêneros textuais/ João Batista Araújo e Oliveira. Juliana Cabral Junqueira de Castro:- 3° ed. rev.- Brasília: Instituto Alfa e Beta, 2008 RIBEIRO, Vera Masagão. Analfabetismo e alfabetismo funcional no Brasil. Boletim INAF. São Paulo: Instituto Paulo Montenegro, jul.-ago, 2006 Software Tux Paint. Disponível em: . Acesso em: 03 jul.2013, 10:23:00. Software de Autoria. Disponível em: http://educacao-etecnologias.blogspot.com.br/2010/09/softwares-de-autoria.html. Acesso em: 15 jul.2013, 9:50:10. SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. O Português são dois...Novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 SOARES, Magda. in Diário na Escola Santo André. O que é letramento. Pag. 3, 29/08/2003 _______,Magda. Alfabetização e Letramento: caminhos e descaminhos. Revista Pátio Pedagógica. Editora Artmed. Porto Alegre, RS, ano 8, n.29, p.18-22, fev./abr. 2004a. _______, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, nº 25 Jan /Fev /Mar /Abr 2004b. _______, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica 1998 SOEK, Ana Maria. Mediação pedagógica na alfabetização de jovens e adultos / Ana Maria Soek, Sonia Maria Chaves Haracemiv, Tânia Stoltz. Curitiba: Ed. Positivo, 2009. VALENTE, J. A.O computador na sociedade do conhecimento. Campinas, SP: UNICAMP/NIED, 1999.

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APÊNDICE A CASTRO, Leila Cristina do Nascimento. Histórias Boas de Contar. Gráfica Amazônia, p. 3337, Bragança-PA, 2011 UM BANHO COM A MÃE D'ÁGUA Certo dia, tio Beto chegou da roça cansado e com muita fome, mas, antes de se sentar à mesa para comer, resolveu se banhar. Como era meio-dia, eu ainda o avisei: – Cuidado com a mãe d'água que é hora dela também andar na beira do rio, e ela não gosta de intrusos interrompendo o seu banho! Sabem o que ele me respondeu? – perguntou a avó com aquele seu jeito de desaprovação. – Se essa danada aparecer, tomo banho com ela! – e os netos riram da graça. – Seu tio vivia fazendo essas brincadeiras de mau gosto porque não acreditava nas histórias que esse povo conta sobre os seres fantásticos da floresta. Achava que era tudo invenção. – E o que aconteceu com ele vovó? – perguntou um dos netos impaciente. E ela continuou: – Chegando ao rio, sentiu o típico clima friorento provocado pelas sombras das árvores e pela umidade do igapó. A sombra emanava o conhecido mistério da natureza que reforça a cultura dos horários em que os seres mágicos da floresta gostam de se banhar e passear nas margens dos igarapés. Seu tio tirou a roupa e se jogou nas águas deliciando-se com a frieza reconfortante depois de uma manhã de trabalho forçado carregando mandioca, porém, ele se esqueceu de fazer algo muito importante. – O quê vovó? - perguntaram os netos, aflitos. – Ele esqueceu de se benzer. Dizem os antigos que se a gente se benzer três vezes antes de mergulhar em qualquer rio, afasta mal olhado ou qualquer coisa ruim que estiver por perto. Num desses mergulhos ele teve a estranha impressão de que alguém ou alguma coisa o observava. Para espantar maus pensamentos, até para não dar o braço a torcer de estar sentindo o que uma boa parte dos homens finge não sentir – medo – começou a assobiar enquanto se ensaboava. Terminada a ensaboação, mergulhou, e ao fazer isso ouviu um barulho como se mais alguém estivesse usufruindo daquelas águas. Num impulso, levantou a cabeça para ver quem se atrevera a entrar no rio mesmo sabendo que tinha alguém tomando banho. Todos nessa redondeza sabem que devem respeitar quando ouvem barulho de gente no rio. Foi nesse momento que o Tio Beto levou o maior susto da sua vida. Quando se levantou, viu mergulhada com a cabeça virada para baixo uma mulher de cabelos longos, loiros e com o corpo todo coberto por aqueles ramos que nascem no fundo dos riachos. O enorme susto lhe enfraqueceu as pernas e ele não teve forças para sair de onde estava. Ficou paralisado, ali, no meio do rio com o olhar fixo naquela criatura estranha que começou a mergulhar de um lado para o outro. Uma coisa que muito o impressionou foi que ela não parava para respirar; parecia fazer isso debaixo da água como os peixes, e ia e vinha rodeando o rapaz como se o cercasse ameaçadora. Tio Beto então se lembrou das histórias contadas pelos seus conterrâneos. Eles diziam que numa situação como aquela, se a mãe d'água colocasse a cabeça para fora e seus olhos se encontrassem, ele seria hipnotizado e levado para dentro do rio como seu prisioneiro para sempre no fundo das águas, onde diziam existir um mundo encantado que somente ela

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conhecia o caminho de ida e de volta. Também diziam que algumas pessoas conseguiram se livrar desse mundo de encantamentos e feitiços, mas, ninguém sabia como isso acontecera, porque os que se salvaram não lembravam nada depois de fortes febres e delírios. Pensando em tudo isso Tio Beto arrependeu-se de ter brincado tantas vezes e gozado das histórias do povo. Se tivesse prestado mais atenção e respeitado seus conhecimentos, talvez soubesse como sair daquela situação ameaçadora. Não queria ser levado para as profundezas do rio, não queria ser seduzido por aquela mulher estranha, aquela visagem que com certeza se preparava para hipnotizá-lo. Com as pernas paralisadas e o medo, ele começou a rezar o creio em Deus Pai bem alto sem desviar os olhos daquela criatura. Enquanto rezava, notou que a estranha mulher parou de nadar num dos extremos do rio como se dormisse. Apesar do medo ele não parou. O desespero foi tanto que ele resolveu apelar por um pedido de graças e gritou: – Oh! Meu Deus, se o senhor me tirar dessa situação, eu prometo que nunca mais vou duvidar das coisas que desconheço e nunca mais vou desrespeitar os mais velhos quando contarem suas histórias. Assim que concluiu sua prece, desesperado viu a mulher recomeçar os mergulhos e aproximar-se devagar. Quando ela chegou bem pertinho dele, saiu de dentro da água num impulso e o encarou. Foi aí que ele viu o seu rosto numa mistura entre o belo e o estranho. Os cabelos longos caiam encobrindo-lhe os seios e seus olhos eram tão verdes que realmente hipnotizavam. A estranha mulher aproximou-se ainda mais. Tio Beto sentiu o corpo congelar quando seus olhos se encontraram e ela tocou-lhe o rosto como uma namorada que admira o seu amado. Parecia que ela queria beijá-lo de tão próxima que estava dele. Analisou as faces do moço como se o considerasse também estranho, enquanto ele permaneceu quieto, dominado pelo medo. Depois desse ritual de apresentação, para a surpresa do rapaz ela lhe disse baixinho: – Não era você quem eu esperava. Sua sorte! Dizendo isso, mergulhou novamente e num passe de mágica desapareceu sem deixar o menor vestígio. Por algum tempo ele permaneceu ali, parado, recobrando-se do susto. Aos poucos suas pernas voltaram ao normal. Quando sentiu que poderia sair do rio não pensou duas vezes e desembestou a correr parando apenas quando chegou em casa. Porém, não teve tempo de contar o que lhe ocorrera. Logo foi desmaiando e só acordou no hospital onde ficou internado durante três dias delirando e tremendo por causa de uma enorme febre. – E o que aconteceu depois vovó? – perguntou um dos netos. – Desse dia em diante, nunca mais ele fez gozação das histórias que o povo conta, e nunca mais foi ao rio no mesmo horário em que a mãe d'água costuma tomar o banho dela. – E que horas a gente não deve ir ao rio vovó? – Bom, dizem os antigos que seis horas da manhã a mãe d'água está dormindo e se for acordada com barulho fica mui zangada, meio-dia e seis horas da tarde com certeza são os horários que ela gosta de se banhar. – E quem a senhora acha que a mãe d'água estava esperando vovó? – perguntou um dos netos. – Ninguém nunca soube. Imaginamos que ela estivesse esperando alguma das crianças da redondeza ou várias delas, afinal, meio-dia é o horário que muitas criancinhas teimosas costumam ainda estar no rio em grupo fazendo barulho e sujando a água, coisa que irrita a mãe d'água. Meio-Dia é para estar em casa porque é hora de almoçar e não de tomar banho! – Credo vovó! Nunca mais fico no rio até o meio-dia. – disse um dos netos.

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– Nem eu. – disseram um a um os outros. – E a avó sorriu. – Mas eu conheço uma história de uma menininha que foi levada pela mãe d'água para dentro do rio. – disse a avó tentando despertar a curiosidade dos netos, e todos gritaram ao mesmo tempo: – Conta vovó, conta! Eu prometo que conto, mas, apenas amanhã depois que vocês chegarem da escola e fizerem o dever de casa. – Aqui debaixo da árvore de novo vovó? A velha senhora olhou o quintal ao seu redor, e saudosa saboreou a visão das árvores, a magia que encantava o sítio. Relembrou das tantas vezes que contou suas histórias e de como se sentira feliz. De repente pediu para Deus que pudesse por muito tempo continuar sentindo a felicidade de saber que era capaz de despertar sonhos e através deles poder proporcionar os ensinamentos que só os antigos conheciam. Ensinamentos que guardam os mistérios sagrados do interior e fascinam pequenos e grandes corações, e ela continuou contando. Dizem que até hoje os ventos trazem o eco de sua voz que passeia pelo quintal e quando ele bate nas folhas das árvores parece que sussurra: Era uma vez...

FALAR E ESCREVER: FRONTEIRAS E PERSPECTIVAS PARA A ALFABETIZAÇÃO Speaking and writing – borders and perspectives for literacy CLÉBIA DO SOCORRO SALVADOR MACIEL* Universidade Federal do Pará (UFPA) RESUMO: Com o intuito de aprofundar as considerações que se tem sobre a influência da fala no processo de alfabetização, trataremos, neste trabalho, de questões relativas a alguns fenômenos linguísticos presentes na escrita de alunos, como a neutralização, o rotacismo, a monotongação e o apagamento do -r final, e, quais as dificuldades que acarretam para o ensino de língua materna. Como sugestão, para solucionar tais questões, apresentaremos algumas estratégias que podem ser seguidas por professores de vários níveis de ensino. Para tanto, discutimos a natureza das duas modalidades da língua, fala e escrita e, propomos uma nova abordagem linguística, que as vê como meios para a realização de duas atividades sociais, oralidade e letramento. Sendo assim, nos embasamos em autores importantes da área, como Mollica (1998), Marcuschi (2010) e Cagliari (1997), que discutem o conceito de alfabetização numa abordagem social, levando em consideração a constante influência da fala na escrita. Palavras-chave: Fala. Escrita. Alfabetização. ABSTRACT: In order to deepen the consideration, which has been under the influence of speech in the process of literacy, we will, in this work, the issues some linguistic phenomena present in the writing of students, as neutralization, the rhoticism, the monophthongization and erasing the -r end, and what are the difficulties that cause for the teaching of mother tongue. As a suggestion, to solve such issues, we will present some strategies that can be follow by teachers of various levels of education. For this, we discussed the nature of the two *

Aluna do curso de mestrado, da Universidade Federal do Pará, programa PROFLETRAS, financiado pela CAPES. Especialista em Ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa e graduada em Letras, pela Universidade Federal do Pará – UFPA

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modalities of language, speech, and writing and, we propose a new linguistic approach that sees them as a means for the realization of two social activities, orality and literacy. Thus, we based, on important authors area, such as Mollica (1998), Marcuschi (2010) and Cagliari (1997), that discuss the concept of literacy in a social approach, taking into account the constant influence of speech in writing. KEYWORDS: Speech. Writing. Literacy INTRODUÇÃO Nos últimos anos muito tem se falado sobre a necessidade de se melhorar a qualidade do ensino no Brasil, e para tanto o governo tem criado novos planos e projetos, o mais recente deles é o Plano Nacional de Educação, que apresenta novas metas para o ensino, e prevê que, ao final de dez anos de vigência, os brasileiros deverão ser alfabetizados até, no máximo, seis anos de idade. Toda essa preocupação se dá em função dos altos índices de analfabetismo que ainda assolam o país, e dos últimos resultados dos sistemas de avaliação promovidos no Brasil, como o PISA2 (Programa internacional de avaliação de alunos), cujo último resultado aponta que o Brasil teve uma pequena melhora nos resultados, mas ainda ocupa uma das últimas posições quando se trata de proficiência em leitura. Desse modo, é desejo não só do governo, mas de todos os agentes envolvidos na educação, que ocorra uma melhoria significativa no ensino, não para que simplesmente se aumentem os índices de desenvolvimento do Brasil frente às estatísticas dos outros países, mas para que de fato, seja promovida uma educação de qualidade que forme cidadãos conscientes e capazes de agir em sociedade, para seu próprio benefício e benefício de seu país. Para tanto, cremos que, para que uma grande mudança aconteça, algumas pequenas mudanças também precisam ser realizadas, começando pelo próprio professor, sua formação e concepção do que é ensinar, suas atitudes e práticas pedagógicas e como tudo isso se reflete na criança. Acreditamos que seja necessário promover uma reflexão sobre nossas práticas pedagógicas e nossos conhecimentos enquanto professores de língua materna. Sendo assim, desenvolvemos um trabalho onde tratamos de alguns pontos que julgamos fundamentais para o ensino de língua, como a relação entre língua falada e língua escrita, vista durante muito tempo como dicotômica e ímpar. Em seguida, tendo em vista que um dos objetivos da educação é formar cidadãos capazes de atuar criticamente dentro da sociedade da qual fazem parte, passamos a reconhecer a relação entre fala e escrita como práticas de oralidade e letramento, que atribuem ao ensino uma característica mais social. Dentro dessa nova perspectiva, iniciamos a discussão sobre o processo de alfabetização (vista como uma das etapas do letramento), fase onde a criança inicia seu contato com o código escrito, e quais os maiores entraves que esse período pode apresentar. Baseados em uma literatura específica sobre o assunto, e em observações informais de nossa própria prática docente, passamos a discutir a ocorrência de alguns fenômenos fonéticofonológicos, e, finalmente apresentamos algumas sugestões e estratégias de ensino, com o intuito de auxiliar a prática docente de alfabetizadores e professores de língua materna, de todos os níveis de ensino. Por fim, apresentamos as nossas considerações finais sobre o conteúdo exposto acreditando que o mesmo possa, de alguma maneira, ser uma ajuda, mesmo que singela, para a melhoria de nossa educação.

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O programa é desenvolvido e coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em cada país participante há uma coordenação nacional. No Brasil, o Pisa é coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

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I FALA E ESCRITA A fala é uma capacidade inata ao ser humano, ou seja, desde que não haja qualquer tipo de deficiência física ou biológica, todo ser humano é capaz de falar. Já a escrita é algo adquirido, que necessita de ensino específico e, muitas vezes apresenta sérias dificuldades durante o processo. Ambas as modalidades fazem parte de uma concepção maior, a de língua, que, por possuir um caráter extremamente heterogêneo, possibilita o surgimento de diversas variações, tanto na forma oral quanto na escrita, transformando a relação entre fala e escrita em algo muito interessante. O processo de desenvolvimento da fala ocorre de maneira natural, nos primeiros anos de vida, bastando que a criança esteja em contato com pessoas que falem seu código linguístico (seu idioma), seja ele qual for. O processo de aquisição da escrita ocorre um pouco mais tarde, quando a criança já possui um certo domínio da fala. Em alguns casos, esse processo se inicia já em casa, quando os pais começam a introduzir a criança no universo gráfico da escrita, em outros, inicia-se apenas quando a criança ingressa na escola, por volta dos três anos de idade3. E é justamente nesse período que muitas vezes, uma grande confusão começa. A criança que se inicia na alfabetização já é um falante capaz de entender e falar a língua portuguesa, com desembaraço e precisão, nas circunstâncias mais variadas de sua vida, mas, não sabe escrever nem ler. Esses são novos usos da linguagem para ela, e é isso que ela espera da escola: aprender a utilizar essas modalidades. Essa criança já sabe utilizar sua linguagem oral; forma palavras, inverte sílabas, cria códigos; mas toda essa capacidade usual e criadora, muitas vezes, é bloqueada, em função da necessidade que a escola tem em impor a modalidade escrita, quase na maioria das vezes, em detrimento da fala. Se você perguntar a um professor de português, principalmente de turmas de alfabetização, qual a maior dificuldade das crianças nesta fase (e em muitas outras que se seguem) a resposta é quase unânime: “Eles escrevem como falam”. É claro, é a fala que conhecem, é o que dominam. E isso acontece realmente, na análise de muitos “erros”, encontrados em provas e nas avaliações feitas nas séries iniciais, é fácil observar que, em muitos casos, a criança revela um apego muito grande às formas fonéticas e fonêmicas da língua, em lugar das formas ortográficas. Ao escrever, a criança se baseia no que fala, no que ouve, e esses erros não ocorrem por distração, o que ocorre é que elas estão apenas transpondo para a escrita algo que reflete sua percepção da fala. Por exemplo, quando a criança escreve: oro ~ ouro, fejão ~ feijão, ela escreve conforme sua percepção auditiva, conforme sua fala, ou seja, ela faz uma transcrição fonêmica. Mas como incutir na criança as diferenças entre língua e fala? Como ensiná-la a utilizar a linguagem escrita se valendo de sua própria linguagem falada? É preciso, antes de tudo, que se entenda que a fala sempre vai estar mais presente na vida das pessoas que a escrita, e em muitas situações é o que basta; a escrita é uma necessidade comunicativa muito mais social, que também é extremamente importante, mas não pode ser vista como algo de valor muito mais elevado em relação à fala, devido a seu caráter mais formal. Sendo assim, vejamos um pouco da natureza da escrita e desse status que ela adquiriu ao longo do tempo. 1.1 A NATUREZA DA LINGUAGEM ESCRITA A escrita tem uma natureza alfabética, oriunda do sistema alfabético grego. Segundo Kato (1987), sua motivação era antes de tudo fonética, ou seja, cada letra representaria um som da fala, o que demonstra um dos primeiros objetivos da escrita, o de representar a fala. Entretanto, a autora aponta que, devido ao caráter heterogêneo da língua, e sua variabilidade, 3

Segundo a legislação atual vigente que prevê o ensino fundamental de nove anos.

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o que se nota é que a escrita é motivada por diversos fatores: fonéticos, fonêmicos, lexicais e diacrônicos. A motivação é fonética quando, por exemplo, seguimos a regra de que antes de p e b, em contexto nasal, utilizamos m, o que ocorre em função da natureza bilabial dos fonemas em questão, tal traço se justifica pela nasalização que o contexto vai fornecer à palavra. A motivação será fonêmica quando encontramos variações de um mesmo fonema sem traços distintivos (alofones), como ocorre com o a de cama: o primeiro é mais fechado por causa da consoante nasal que o segue, já o segundo é mais aberto; as duas representações não são distintivas, são apenas duas variantes do mesmo fonema. A motivação também pode ser lexical, pois algumas palavras apresentam determinada grafia face à família lexical da qual fazem parte. A motivação lexical é encontrada no sistema ortográfico da língua em formas que mantêm o mesmo grafema, ainda que ocorra mudança no som. É o que ocorre, por exemplo, na palavra medicina, grafada com ‘c’ por se tratar de uma derivação da palavra primitiva ‘médico’ (do latim medicus); e a palavra sal escrita com ‘l’ porque ‘l’ pode ser encontrado nas palavras derivadas ‘saleiro’, ‘salgado’ e ‘salina’. E, por fim, a motivação da escrita pode também ser diacrônica devido à bagagem histórica da palavra, como ocorre em homem, escrita com h por derivar da forma latina homo. Apesar do dinamismo da língua, por vezes, a escrita se mantém conservadora. Por ocasião do processo de aquisição da escrita essas motivações devem ser observadas, pois, muitas vezes, a falta de conhecimento dessa realidade, até mesmo por parte do professor, dificulta o aprendizado dos alunos. Principalmente na fase inicial do processo, na alfabetização, onde a motivação fonêmica é muito frequente, provocando o surgimento de muitos fenômenos de neutralização, como por exemplo: minino (menino), bunita (bonita), onde há a presença dos alofones i ~ e; u ~ o. 1.1.1 Diferenças formais e sociais entre a fala e a escrita Ao longo dos anos, o trato dicotômico dado à fala e a escrita sofreu intensas mudanças. Atualmente, não se fala mais em dicotomia, mas em um continuum, (BortoniRicardo 2004, Marcuschi, 2010) que depende em grande parte das práticas sociais em que ambas as modalidades se realizam, ou seja, fala e escrita não são diferentes simplesmente por fatores inerentes a cada uma delas, mas principalmente pelo uso social que pressupõem em situações sócio comunicativas concretas. As características que antes as distinguiam, tais como as que podemos observar no quadro abaixo, sugerido por Marcuschi (2010), pertencem, segundo o autor, a uma classificação meramente teórica e abstrata, centralizada tão somente no código, que não considera o caráter dinâmico de ambas as manifestações.

Fala x contextualizada dependente implícita redundante não planejada imprecisa não normatizada fragmentária

Quadro 1: Diferenças entre a fala e a escrita Escrita descontextualizada autônoma explícita condensada planejada precisa normatizada completa

Fonte: elaboração a patir de Marcuschi (2010)

Além das diferenças acima citadas, que de algum modo impõem uma certa superioridade à escrita em detrimento da fala, sempre acreditou-se que a escrita apresentava

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um maior status social, mesmo a fala sendo anterior, cronologicamente, à escrita, e sendo esta, desenvolvida, a princípio, para representar a fala. A questão de a fala ser cronologicamente anterior à escrita também não confere a ela um grau de importância maior, e nem o fato de muitas sociedades não terem desenvolvido nenhum sistema ortográfico, sendo totalmente ágrafas. A realidade é que não existe nenhum tipo de supremacia ou superioridade entre fala e escrita. São apenas duas modalidades da língua que apresentam características peculiares, mas não dicotômicas. Fala e escrita são duas práticas sociais, logo, dependem de um contexto determinado para que possamos distingui-las. Essa distinção dependerá principalmente, conforme Marcuschi (2001), do gênero de texto que tomarmos como base de análise. Para o autor, “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não da relação dicotômica de dois polos opostos” (p.37). Não podemos dizer, por exemplo, que a fala é não planejada, imprecisa, não normatizada, se há gêneros que a utilizam de forma planejada, precisa e normatizada, como é o caso das exposições acadêmicas, conferências etc. Sendo assim, é necessário que se abandone de vez essa dualidade ímpar de fala e escrita, e se passe a concebê-las como meios para se chegar a um fim, o da comunicação, como necessidade social do ser humano. Desse modo, partimos para uma outra questão: baseados na perspectiva atual de ensino em que nos inserimos, que visa não só a aquisição do código escrito, mas seu uso em prol do benefício social do ser humano, como preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais, precisamos ensinar a ler e a escrever para, de fato, formar cidadãos. O domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizado por uma comunidade linguística, são condições de possibilidade de plena participação social. Pela linguagem os homens e as mulheres se comunicam, têm acesso à informação, expressam e defendem pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, produzem cultura. Assim, um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de contribuir para garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania. (Parâmetros curriculares nacionais, 1998, P.19)

Desta feita, passaremos a tratar de uma nova visão de ensino, que trata de oralidade e letramento. II FALA E ESCRITA X ORALIDADE E LETRAMENTO A concepção de fala e escrita como duas modalidades de uso da língua nos leva a fazer algumas suposições. Primeira, codificar e decodificar a língua escrita são habilidades muito importantes para o desenvolvimento cognitivo de uma pessoa, mas não são condições únicas e restritas para isto. Segunda, uma pessoa que domina apenas a fala, desconhecendo totalmente o código escrito, utiliza normalmente sua língua, de acordo com a realidade em que vive e com as necessidades que possui. Contudo, é claro que o ideal, para um pleno desenvolvimento intelectual de um ser humano, é que o falante tenha domínio das duas realidades: o conhecimento das modalidades linguísticas (fala e escrita) e seu uso nas práticas sociais (oralidade e letramento). Oralidade e letramento podem ser consideradas práticas sociais porque visam à interação entre os interlocutores para fins comunicativos. Já a fala e a escrita representam certos domínios que se tem dos códigos, seriam respectivamente a habilidade de falar e a habilidade de escrever, mas ambas se inserem nos conceitos de oralidade e letramento, porque representam um meio de realização destes.

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O conceito de letramento é relativamente novo, tendo sido empregado a primeira vez em 1986, por Mary Kato (KLEIMAN, 1995). E apesar de muito se falar nesta prática, o termo ainda não está dicionarizado conforme o significado real que pressupõe, voltado para o ensino. Segundo Soares (1999), “letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e a escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (p.18). Visto dentro dessa perspectiva, o conceito de letramento se assemelha muito ao que se entende por alfabetização, tido como o processo em que se dá a aquisição da escrita e sua realização por meio da leitura. Entretanto, a noção de letramento vai além, pois, segundo Kleiman (1995), “letramento significa uma prática discursiva (...) relacionada ao papel da escrita para tornar significativa a interação oral, mas que não envolve, necessariamente, as atividades específicas de ler ou de escrever” (p. 18). Sendo assim, uma pessoa, seja ela criança ou adulto, pode ser considerada letrada se consegue repassar os ingredientes de uma receita, mesmo sem saber ler, por exemplo, pois conhece a forma do gênero, ou seja, mesmo sem utilizar a escrita (seja ela codificada ou decodificada), ela se utiliza de um modelo escrito, o gênero receita. Em suma, uma pessoa pode não saber ler ou escrever, ser analfabeta, mas pode ser, de certa forma, letrada, uma vez que utiliza-se da linguagem escrita nas práticas sociais das quais participa. Dentro dessa perspectiva, podemos falar de níveis de letramento, que vão desde o domínio básico do código escrito, como a mera representação oral de um gênero, até os mais altos graus de domínio da escrita. Notamos assim que, muitas vezes, a oralidade serve como suporte para o desenvolvimento de práticas de escrita, isso porque a passagem da oralidade para a escrita, e vice versa, ocorre cotidianamente, nas mais variadas formas de práticas sociais, até dentro das mais “restritas” situações de predomínio da escrita, como a preparação de uma tese de doutorado (pode ocorrer a passagem para a forma oral por ocasião da defesa do referido trabalho). Então, cabe aqui uma consideração sobre essa relação de oralidade e letramento, que pressupõe também as relações de fala e escrita e, serve ainda para especificar as diferenças e semelhanças entre as duas dimensões: a transição de uma modalidade a outra, o que chamaremos aqui, segundo a proposta de Bortoni-Ricardo (2004), de continuum de oralidade e letramento. Segundo a autora, não existem domínios nem fronteiras entre os eventos de oralidade e letramento, até porque um evento de letramento, como uma aula ou uma apresentação formal, pode ser permeado de eventos de oralidade, bem como o inverso. Com isso, percebemos que a oralidade pode ser utilizada para a aquisição do código escrito, bem como para a construção da consciência cognitiva de um educando, contribuindo assim para o desenvolvimento das habilidades de ler e escrever – competências previstas para a alfabetização. Contudo, é preciso que se tenha em mente que alfabetizar é diferente de letrar, a capacidade de escrever não faz do indivíduo um ser letrado, mas ambas as concepções podem andar juntas, pois, segundo Magda Soares, é possível alfabetizar letrando, isto é, podemos ensinar crianças e adultos a ler, fazê-los adquirir o código escrito e a utilizá-lo para si e para os outros, a usar a palavra escrita em sua vida social. Nosso problema não é apenas ensinar a ler e a escrever, mas também, e sobretudo, levar os indivíduos – crianças e adultos – a fazer uso da leitura e da escrita, envolver-se em práticas sociais de leitura e de escrita. (SOARES, 1998 apud BAGNO, 2002, p. 53)

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III FALA E ESCRITA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO. Podemos inferir que a fala está inserida no conceito de oralidade. Já a escrita está inclusa no campo do letramento. Sendo, portanto, inerentes umas às outras. Desta feita, passamos a tratar das questões relacionadas à alfabetização, entendendo esta como um processo de desenvolvimento de habilidades e competências para o uso consciente da língua escrita, nas mais variadas práticas sociais de leitura e escrita, ou seja, como um processo de letramento. Vimos também, no início desta discussão, que, ao ingressar na escola, a criança já domina a língua falada, e, muitas vezes, realiza, adequadamente, eventos de letramento, faltando-lhe o conhecimento do código escrito, que vai possibilitar-lhe ler e escrever, iniciando-se o processo de alfabetização. Segundo Cagliari (1997, p.96), “um dos objetivos mais importantes da alfabetização é ensinar a escrever”, e é frequente que tal capacidade seja entendida pelos educadores como algo tão natural quanto à fala, ou quase, em função da familiaridade que todos têm com a escrita. Por vezes, não se percebe o quanto isso tudo é difícil para a criança, que tem seu primeiro contato com o código escrito, muitas vezes, apenas na escola. Tanto que, é comum observarmos situações onde as crianças apenas copiam o que lhes é repassado, como uma atividade mecânica, desassociada da compreensão do que está escrito, e muitos professores já consideram tais resultados como escrita, ou seja, eles “escrevem” (copiam), mas não lêem. A escrita é uma atividade de expressão e compreensão do código linguístico, e precisa ser ensinada dessa maneira. Para tanto, é necessário que os alfabetizadores estejam atentos para o fato de que, a princípio, essa atividade é espontânea, e muitas vezes, não vai corresponder aos padrões dos modelos ortográficos. E quando essa espontaneidade é tolhida, quase sempre, com correções violentas e dramáticas, a criança tende a se fechar e inibir sua criatividade. Desse modo, o professor precisa estar atento à realidade linguística da criança, valer-se dela e, procurar sanar, de maneira amena e gradativa, as dificuldades que o aluno venha apresentar. Uma das maiores dificuldades que a maioria (ou totalidade) dos professores alfabetizadores enfrenta é a influência da fala na escrita, problema que percorre praticamente todos os anos do ensino fundamental, e em alguns casos, do médio também. Isso ocorre porque as crianças escrevem como falam (ou ouvem), e, por desconhecerem as motivações da linguagem escrita, o que os leva, em alguns casos, a generalizarem regras internalizadas que detém de sua fala e repassarem para a escrita. Como já foi dito anteriormente, uma das premissas da escrita era sua tentativa de representar a fala, sendo assim, o fato de a criança escrever conforme fala, nada mais é do que um desenho, um meio da criança representar o que deseja dizer. Infelizmente essa realidade costuma não ser vista com bons olhos por muitos educadores, talvez até por desconhecimento da possibilidade de ocorrência desse fenômeno no processo de aquisição da escrita, o que faz com que, eventualmente, o processo todo se torne doloroso e traumatizante, tanto para alunos quanto para professores. Segundo Luiz Carlos Cagliari (1997), Na análise de muitos erros encontrados em provas e nas avaliações feitas na alfabetização, é fácil observar que, em muitos casos, a criança revela um apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas ortográficas, não raramente deixando o professor perplexo com a ‘burrice do aluno’, devido a sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competência que a criança apresenta (p. 29).

A escola, na maioria das vezes, ignora o conhecimento que a criança já traz de casa, chegando, inclusive a tentar substituir esse conhecimento em função daquilo que considera “correto”. Isso acarreta consequências catastróficas, provocando inibição nas crianças, medo

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de tentar e errar, e principalmente preconceito, pois nessa tentativa de ensinar a forma correta, a escola passa por cima da identidade cultural dos seus alunos, esquecendo, até do caráter heterogêneo da língua. Passa-se então a ensinar não só como escrever certo, mas a falar também. Uma fala totalmente mecânica e artificial que o aluno desconhece, pois nunca ouviu – nem ouvirá – tais pronúncias, a não ser nas tentativas da professora ao dizer, pausadamente ce-nou-ra, lei-te, can-tar, quando na realidade, o aluno e todas as pessoas com quem convive, inclusive os professores, fora da realidade de sala de aula, falam cenora, leiti (ou leti) e cantá. Não estamos dizendo que as tentativas de anulação da influência da fala na escrita não devam ocorrer, pelo contrário, queremos, na realidade, que os educadores entendam a razão pela qual isso acontece, e não a ignorem; o aluno deve ser respeitado enquanto falante nativo de uma língua tão heterogênea quanto qualquer outra língua do mundo, e mais, a influência da fala pode ser o primeiro degrau para o ensino da modalidade escrita, pois são, nessas situações, que o professor vai agir, mostrando as diferenças entre as modalidades dentro de contínuos, ou seja, caberá ao professor mostrar a seu aluno que, apesar da língua ser uma só, existe um modo de falar que pode ser variável, mas existe um único modo de escrever, e que ele só precisa saber se adequar a cada situação, seja de oralidade ou de letramento. Em outras palavras, o professor deverá levar o aluno a entender que ele pode falar cenora, dependendo da situação em que se encontra (caso não haja formalidade), mas que é preciso que ele escreva cenoura, porque o sistema de escrita apresenta apenas esta forma de expressão para esta palavra. IV A INFLUÊNCIA DA FALA NA ESCRITA: PRINCIPAIS FENÔMENOS. Muitos trabalhos já foram feitos sobre a influência que a fala exerce na escrita, e desta influência é possível se identificar a recorrência de muitos fenômenos fonético-fonológicos, como: neutralização, rotacismo, monotongação e apagamento do –r final em formas verbais de infinitivo; assim como fenômenos de ordem sintática, como: concordância, regência e referenciação. Entretanto, nas séries iniciais (alfabetização e ensino fundamental menor), os fenômenos fonético-fonológicos são muito mais frequentes em função do nível de ensino em que se encontram os alunos. Para uma melhor compreensão dessa problemática, faremos uma breve exposição conceitual dos principais fenômenos observados nessa fase de ensino: • Neutralização: ocorre diante da realização de dois ou mais alofones, ou seja, quando o fonema em questão perde seu traço distintivo, seja ele consoante (por exemplo, t ~ t ʃ - tia ~tʃia) ou vogal (e ~ i – menino ~ minino), no caso desse último, dizemos que ocorre harmonia vocálica. • Rotacismo: fenômeno que se dá na troca do fonema /l/ pelo /r/, como em: prantar (plantar), bicicreta (bicicleta), fror (flor). • Monotongação: ocorre quando há passagem de um ditongo para um hiato, por exemplo: ouro ~ oro, cadeira ~ cadera. • Apagamento do –r final em formas verbais de infinitivo: supressão do fonema –r no final dos verbos quando estão no infinitivo, como em: amar ~ ama, correr ~ corre. Dentre os fenômenos citados, o menos recorrente é o rotacismo, por ser muito mais visível na fala (e sujeito a críticas) e, consequentemente, acarretar uma autocorreção na escrita. O mais frequente talvez seja a neutralização, pelo menos motivo, mas de modo inverso, a pronúncia em /e/ e /o/ não é tão visível na fala, o que provoca uma maior probabilidade de as palavras serem grafadas com seus alofones correspondentes /i/ e /u/.

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Como se pode perceber, o que é mais recorrente na fala, tende a ser mais repetido na escrita, e é neste aspecto que reside uma das dificuldades que os professores enfrentam durante o processo de ensino de língua materna, especialmente na fase de alfabetização. V SUGESTÕES E ESTRATÉGIAS DE ENSINO. O processo de alfabetização – entendido aqui como uma das etapas do letramento – não é algo que se realize num período determinado de tempo, um ano, por exemplo, como prevê a nomenclatura das séries escolares. Mesmo que seja de competência do 1º ano escolar, ensinar a ler e a escrever, o processo como um todo tem sequência durante toda a vida escolar das crianças, e vai se aperfeiçoando ao longo do tempo, quando o indivíduo vai elevando seus níveis de letramento. Entretanto, em se tratando dessa primeira etapa da vida escolar de uma pessoa, que corresponde ao primeiro contato com a língua escrita, enquanto atividade social, não só de codificação e decodificação, é interessante que sejam levadas em consideração algumas questões relativas ao ensino da língua, alguns saberes que precisam ser dominados pelos professores e, algumas atitudes que precisam ser tomadas. Desta feita, estaremos propondo a seguir algumas sugestões e estratégias que podem auxiliar o educador durante o processo de alfabetização de seus alunos, que levam em consideração, principalmente, as questões relativas à oralidade e a maneira como se pode trabalhar com essa modalidade no ensino da língua escrita. Primeiramente, é preciso que o professor, seja de qualquer nível de ensino, tenha consciência de que a fala influencia a produção escrita das crianças, pelos motivos já relacionados anteriormente (c.f. 11). Sabendo disso, ele deve buscar descobrir o que é mais recorrente em sua sala de aula, ou seja, deve investigar quais fenômenos linguísticos (fonéticos, fonológicos, sintáticos, lexicais) ocorrem com mais intensidade na escrita de seus alunos. O professor, conforme diz Mollica (1998), deve ser, antes de tudo, um pesquisador, para que seja capaz identificar os principais casos de influência oral na escrita, e possa trabalhar ativamente sobre tais fenômenos. 5.1 O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO No que diz respeito à alfabetização, especificamente, (1º ano do ensino fundamental), é importante saber que essa influência é totalmente natural, e deve ser o primeiro passo a ser dado pelo professor, ou seja, o professor deve iniciar o ensino da língua escrita a partir da língua falada, que corresponde ao conhecimento que o aluno já domina. Segundo Bortoni-Ricardo et al (2010), em artigo intitulado O papel da oralidade na aquisição da cultura letrada, “as práticas de letramento no contexto escolar precisam contemplar, em princípio, atividades orais para que as crianças pequenas desenvolvam uma consciência fonológica que possa assegurar a construção de leitura e escrita.” Baseadas nos estudos de Adams et alii (2006), as autoras sugerem que o trabalho pedagógico, nesta fase de ensino, proponha atividades lúdicas que explorem a competência linguística oral dos alfabetizandos, como jogos de escuta, que privilegiam a percepção do som das letras e assim a construção de uma consciência fonológica4 por parte dos alunos. Propõem também jogos com rimas por meio de poemas, versos e pequenas canções, jogos com palavras e frases, jogos com sílabas e com fonemas iniciais e finais das palavras. É preciso também permitir que os alunos falem as palavras que estão aprendendo, segundo Cagliari (1997), “é sempre interessante (necessário mesmo, diria) ouvir as crianças falando para se poder entender melhor o que elas escrevem” (p.63). Essa prática possibilita à professora não só verificar a razão de um aluno escrever de determinada forma, como 4

Segundo Bortoni-Ricardo et al, (2010) “a consciência fonológica consiste na habilidade de se perceber a estrutura sonora das palavras ou parte dela”

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também, identificar seus traços linguísticos de variação dialetal, e promover assim, um ensino sem preconceito, que respeite as peculiaridades dos alunos e a variação da língua. Outra questão importante nessa fase é a escolha de como iniciar o ensino da leitura e da escrita. Muitas vezes o professor utiliza métodos que excluem a criança do processo de ensino, como se ela fosse um mero receptor, e não um sujeito pensante e atuante. Segundo Cagliari (1997), A professora pode, logo no início do ano, fazer um levantamento junto às classes para saber de suas aspirações e de sua situação linguística, incluindo, é claro, questões muito específicas sobre o que representa a escrita para as crianças, para que serve, como os adultos a usam, quando e o que se deve escrever, etc. as crianças gostam de ser ouvidas, de participar do planejamento das atividades escolares, sobretudo na alfabetização. Partindo das expectativas das crianças, a escola pode discutir com elas outros aspectos da escrita que talvez elas não tenham visto ou em que nem sequer pensaram (p. 101).

Na fase de alfabetização, o mais importante é despertar o interesse do aluno e instigálo a participar do processo. Utilizar recursos e métodos que possibilitem a construção de sua consciência fonológica para que ele possa perceber a estrutura sonora das palavras e das partes que a compõem, e assim, conseguir entender o sentido dessa palavra num contexto maior, e consequentemente, construir seus próprios textos. Com relação às questões relativas aos famosos “erros” ortográficos por influência da fala, muitos estudos orientam que estes sejam apenas trabalhados com mais afinco nas séries subsequentes, pelo fato de ser a alfabetização (1º ano), o momento em que a criança está ainda assimilando a relação fonema/grafema, o que, segundo Mollica (1998), já é um processo suficientemente complexo para se introduzir mais informações sobre fala e escrita. 5.2 AS SÉRIES SUBSEQUENTES AO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO. Nas séries que se seguem ao 1º ano do ensino fundamental, apesar de o aluno, teoricamente, já saber ler e escrever, ele ainda não alcançou um nível elevado de letramento, até porque este vai se construir ao longo de toda sua vida escolar. E, muitas vezes, por desconhecerem esse fato, muitos professores, taxam seus alunos de analfabetos e criticam os professores anteriores de incompetentes. O trabalho não termina em um ano, como dissemos anteriormente, ele é contínuo e precisa fazer parte da consciência crítica dos educadores. Desse modo, o que se pode fazer para sanar pequenos problemas de escrita? Primeiro, é importante saber que muitos “erros” ortográficos ocorrem por influência da fala, mas outros ocorrem em função da complexidade da língua, de convenções ortográficas, devido às motivações da gramática padrão (c.f.11), e eles só vão ser melhorados no decorrer do tempo, conforme os níveis de letramento dos alunos forem subindo e suas práticas de leituras sendo exercitadas. No que se refere aos erros que ocorrem em função da influência da fala, podemos sugerir algumas estratégias didáticas para o professor utilizar em sua sala de aula. Para as séries iniciais, onde ainda são usados os famosos ditados, é importante que o professor fale naturalmente, sem uma pronuncia forçada e artificial. Caso o aluno escreva palavras que apresentem os fenômenos fonético-fonológicos citados anteriormente, ou outros, uma estratégia interessante é o professor escrever a palavra de acordo com sua forma ortográfica padrão e, explicar ao aluno que há diferenças entre falar e escrever, que, por mais que ele fale dessa forma (levando em consideração o nível do aluno), é preciso que ele escreva conforme as regras ortográficas.

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É preciso conscientizar os alunos de que há várias maneiras de se falar uma palavra, de acordo com os dialetos e a variação que são peculiares à língua, mas existe um único sistema ortográfico. Isto é, o professor pode partir das próprias dificuldades que o aluno apresenta para lhe ensinar a forma adequada. Para Koch e Elias (2012), Cabe, pois, ao professor conscientizar o aluno das peculiaridades da situação de produção escrita e das exigências e recursos que lhe são próprios. Isto é, quando da aquisição da escrita, a criança necessita ir, aos poucos, conscientizando-se dos recursos que são protótipos da oralidade e perceber que, por vezes, não são adequados ao texto escrito (p. 18).

Neste exercício, o professor deve escolher as palavras que apresentam mais dificuldade para os alunos, os fenômenos mais frequentes e resistentes; o que ocorre com mais frequência na fala tende a ser mais difícil de anular na escrita. Por exemplo, se na escrita dos alunos há uma incidência maior de casos de monotongação, o professor pode trabalhar textos que apresentem mais palavras com ditongos, principalmente vocábulos que façam parte de seu ambiente de fala, comuns ao seu cotidiano. Os exercícios e práticas de distinção entre fala e escrita devem existir em todos os anos escolares. No que diz respeito à ocorrência de fenômenos sintáticos por influência da fala na produção escrita, percebemos que isso se dá porque na fala, as referências são apontadas, e na escrita, muitas vezes, os alunos não encontram palavras para dar sequência ao texto ou para fazer a referenciação, Em alguns casos, devido ao baixo nível de letramento que possuem. Em casos como esse, os exercícios de leitura e reescritura são muito eficientes. Os de leitura porque possibilitam ao aluno expandir seu vocabulário, e facilita o uso de elementos anafóricos e catafóricos, por exemplo. A reescritura pode ser a sequência das atividades de produção textual, quando o professor avalia os textos produzidos pelos alunos e sugere algumas correções para que o mesmo se torne mais coerente. Dentro dessa perspectiva, podem ser sugeridas também, atividades de retextualização5, que, de modo simplificado, instigam a transcrição de um texto oral para um escrito. Neste caso, o professor chamará a atenção dos alunos para as características de cada modalidade, bem como para a variação de formalidade que pode ocorrer dentro do continuum do contexto no qual o texto se insere. De modo geral, independente da série, o importante é que sejam levados em consideração alguns fatores: que a língua é um fator social e deve ser tratada e trabalhada como tal, respeitando-se seu caráter variável e heterogêneo; toda criança, ao ingressar na escola já domina a forma oral da língua e o professor deve partir desse conhecimento; as influências da fala na escrita são uma realidade que, se tratadas de maneira direcionada e bem embasadas tendem a desaparecer no decorrer do avanço nos anos letivos, por parte da criança, o que corresponde a um nível mais elevado de letramento. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A alfabetização é algo que vem preocupando os setores educacionais do Brasil há muitos anos. O país tem um histórico de altos índices de analfabetismo, e, atualmente, com uma visão mais detalhada do processo, que corresponde aos níveis de alfabetismo, ainda preocupa seus governantes.

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Termo utilizado por Marcuschi (2010, p. 46), definido como “processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bemcompreendidos da relação oralidade-escrita”.

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Muito se tem discutido acerca das causas do fracasso do processo de alfabetização e, a conclusão a que se costuma chegar, apesar de não ser definitiva, é que, talvez, o problema resida no conceito que se tem de alfabetização. O processo de alfabetização é muito complexo, compreendido a partir de uma multiplicidade de perspectivas e abordagens, como a psicologia, a pedagogia e a linguística, e analisada sob vários enfoques, que envolvem sujeitos atuantes no processo, professores e alunos. Portanto, é natural que apresente visões diferentes do que se considera fracasso, sucesso e solução, prova disso são os diversos métodos de ensino que existem. Contudo, percebemos que, independentemente do método (que não está sendo discutido aqui), do enfoque e da abordagem que se adote para realizar melhorias na alfabetização, o importante é que os envolvidos do processo, responsáveis pela efetivação do mesmo, tenham consciência do caráter social que o envolve, que não basta a consciência do conceito tradicional que o termo possui, enquanto meio de aquisição do código escrito e das habilidades de ler e escrever, num processo de codificação e decodificação, de representação de fonemas (sons) em letras e vice versa. Atualmente, após a inserção e compreensão do conceito de letramento, têm-se pensado em alfabetização, também, como um processo de compreensão e expressão do código escrito, onde o falante possa não só realizar as atividades mecânicas de ler e escrever, como também, refletir sobre esse código e se expressar por meio dele, atribuindo, desse modo, um caráter social ao processo. Para tanto, é preciso que os educadores tenham em mente que, por ser um processo de caráter social, a alfabetização vai apresentar um alto índice de complexidade, mesmo porque trata de uma das habilidades de uso da língua, e, desse modo, é carregada de heterogeneidade e variabilidade, sujeita a várias influências, especialmente da fala na escrita. Sendo assim, o professor deve estar atento a essas influências para saber reconhecê-las e tratá-las da maneira mais adequada e eficiente. O ensino de língua materna deve envolver, portanto, atividades que visem o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso da língua em práticas sociais, ou seja, é necessário que ocorram práticas de letramento, não só na alfabetização (mas a partir desta), como em todos os níveis de ensino pelos quais passa uma pessoa. Percebemos assim a importância de se ter um ensino desenvolvido dentro do contexto de práticas sociais de leitura e escrita. Contudo, é necessário que essa concepção faça parte da vida dos professores e da escola como um todo, bem como sejam dados maiores incentivos governamentais que visem o aperfeiçoamento dos profissionais da área, que, por sua vez, também devem buscar esse aperfeiçoamento, principalmente no que diz respeito aos conhecimentos linguísticos que necessitam ter, pois como diz Cagliari (1997), “quem lida com o ensino de línguas tem que saber linguística” (p. 39). Esse conhecimento é necessário para que o professor reconheça as ocorrências de influência da fala na escrita, por exemplo, e possa, de maneira consciente, direcionar essa problemática e buscar soluções para tal. REFERÊNCIAS BORTONI-RICARDO. Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 BORTONI-RICARDO. Stella Maris; GONDIM, Márcia Regina Alves; BENÍCIO, Miliane Nogueira Magalhães. O papel da oralidade na aquisição da cultura letrada. In.: HEINIG, Otília L. e FRONZA, Cátia de A. (orgs.). Diálogos entre linguística e educação: a linguagem em foco. Blumenau: EDIEURB, 2010 (p. 187 – 205)

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KLEIMAN, Angela (org). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de letras, 1995 SOARES, Magda. Letramento: um tema, em três gêneros. São Paulo: Autêntica, 1999. KATO, Mary A. No mundo da escrita: uma perspectiva psico-linguística. 7 ed. São Paulo: Ática, 2001 MOLLICA, Maria Cecília. Influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998 MARCUSCHI. Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2010. CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e linguística. 10 ed. São Paulo: Scipione, 1997 BAGNO, Marcos; STUBBS, Michael; GAGNÉ, Gilles. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002 KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012 COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. 7 ed. Rio de Janeiro: Ao livro técnico S/A, 1990 BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: Língua portuguesa. Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998 PROBLEMAS DE ALFABETIZAÇÃO OBSERVADOS NO 6º ANO DJANE DO SOCORRO PEREIRA BENJAMIM (UFPA) GILCÉLIA AMARAL MENDES (UFPA) RESUMO: Este artigo pretende abordar alguns dos principais problemas de alfabetização observados no 6º ano do Ensino Fundamental. Para isso, faz uma breve abordagem sobre algumas teorias de alfabetização em voga no Brasil, dentre elas, o Construtivismo, que se opõe ao Método Tradicional de Ensino. Recorreu-se também às orientações feitas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e os de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental (1º ao 4º ciclos), estabelecendo-se uma relação entre as orientações propostas por esses documentos e a Teoria Psicogenética, a qual deu origem ao construtivismo. A partir dessas abordagens e considerando ainda a categorização dos erros ortográficos proposta por Cagliari, faz-se uma análise sobre os textos produzidos pelos alunos de uma turma do 6º ano de uma escola pública do município de Ananindeua-PA, observando problemas relacionados à alfabetização. Assim, aplicando princípios linguísticos na interpretação e análise desses problemas e, posteriormente, repensando as práticas pedagógicas, propõem-se orientações didático-metodológicas que visem melhorar o processo de aquisição da escrita e, consequentemente, o ensino da língua portuguesa. Palavras-chave: Alfabetização. Construtivismo. Propostas didático-metodológicas. ABSTRACT: This article aims to address some of the key literacy problems observed in the 6th grade of elementary school. For this, a brief approach to some literacy theories in vogue in

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Brazil, among them, Constructivism, which is opposed to the traditional method of teaching. We used also the guidelines made by the National Curriculum Guidelines for Early Childhood Education and the Portuguese Language for Primary Schools (1 to 4 cycles), establishing a relationship between the guidelines proposed by these documents and the Theory psychogenic, which gave rise to constructivism. From these approaches and considering the categorization of misspellings proposed by Cagliari, it is an analysis of the texts produced by the students in a class of the 6th year in a public school in the city of Anand-PA, noting problems related to literacy. Thus, applying linguistic principles in the interpretation and analysis of these problems and then rethinking teaching practices, it proposes didactic and methodological guidelines to improve the writing acquisition process and therefore the teaching of the Portuguese language. Keywords: Literacy. Constructivism. Didactic and methodological proposals. 1 INTRODUÇÃO O ensino da alfabetização no Brasil pode ser dividido em duas fases, a primeira, que enfatizava o método em si e atribuía a responsabilidade do sucesso ou fracasso ao aluno; a segunda, oriunda da teoria difundida pelas pesquisadoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky, a partir de 1979, com a publicação de Psicogênese da Língua Escrita, livro no qual as pesquisadoras relatam suas pesquisas sobre o processo de aquisição da escrita pelas crianças, elucidando os “níveis conceituais linguísticos”. A partir dessa teoria, há no Brasil toda uma reformulação no processo de alfabetização, substituindo-se, gradativamente, o método tradicional pelos princípios da teoria psicogenética. Como comprovação, pode-se observar esse embasamento na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e nos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental. Neste artigo, pretendemos discorrer sobre esse processo, numa breve abordagem, uma vez que são questões necessárias para que apresentemos alguns dos principais problemas de alfabetização observados em uma turma do 6º ano de uma escola pública do município de Ananindeua-PA. De posse do conhecimento teórico acerca de como os alunos aprendem e constroem seus conhecimentos, a partir do elucidado pela teoria construtivista e também pela categorização dos erros ortográficos, é necessário fazermos algumas indagações, a saber: por que algumas crianças chegam ao 6º ano do Ensino Fundamental (geralmente aos 11 ou 12 anos) sem ainda estarem alfabetizadas? De que forma, enquanto professores de língua materna, poderemos contribuir para que, de fato, nossos alunos consigam chegar ao final do ano letivo dominando o código escrito? 2 A ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL: TRADICIONAL X CONSTRUTIVISTA - UMA BREVE ABORDAGEM No Brasil, a partir da década de 80, quando emergem os estudos de Emília Ferreiro, passou-se a questionar o método de alfabetização tradicional que até então era aplicado em nossas escolas, o qual consistia, basicamente, na compreensão da escrita a partir de etapas: os alunos aprendiam as letras (maiúsculas e minúsculas); aprendiam a sequência do alfabeto; combinavam as letras entre si, formando sílabas e palavras; soletravam as sílabas; soletravam palavras; liam sentenças curtas e histórias. De acordo com esse método, eram considerados aptos mesmo aqueles que faziam uma leitura mecânica do texto, através da decifração das palavras, vindo posteriormente a leitura com compreensão. As cartilhas eram utilizadas para orientar os alunos e professores no aprendizado, apresentando um fonema e seu grafema correspondente por vez, tentando evitar confusões auditivas e visuais. Esse aprendizado, feito de forma mecânica, por meio da

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repetição e de forma descontextualizada,foi considerado pelos críticos como o mais cansativo e enfadonho para as crianças. Os estudos de Piaget sobre como as crianças adquiriam conhecimento de acordo com a sua idade intelectual propiciaram transformações nas perspectivas pedagógicas. E os de Ferreiro e Teberosky sobre o processo de aquisição de leitura e escrita das crianças, denominados também de Teoria Psicogenética ou Construtivista, a exemplo daquele autor, levam à conclusão de que as crianças têm um papel ativo no aprendizado. Elas constroem o próprio conhecimento – daí a palavra construtivismo. De acordo com essa teoria, o processo de aprendizagem da criança sobre a escrita é tido como sistema de representação: há valorização do diagnóstico dos conhecimentos prévios que todas as crianças possuem; há a análise dos erros como indicadores construtivos e hipótese de aprendizagem; deve existir uma valorização do ambiente alfabetizador; o professor é visto como mediador e não como detentor do conhecimento; a criança constrói seu conhecimento a partir de suas experiências; há uma ampliação do conceito de letramento; deve haver uma inserção das crianças em práticas sociais, além da ênfase nas dimensões conceituais em detrimento do sistema metodológico do ensino. O Construtivismo avaliava os processos pelos quais as crianças evoluíam durante a alfabetização, os denominados “Níveis Conceituais Linguísticos”6 que não dependem da idade biológica das crianças, mas de sua idade psicológica.São eles: Nível 1- Pré-Silábico A criança, quando se encontra neste nível, passa por algumas fases bem definidas: a fase pictórica, fase gráfica primitiva e fase pré-silábica. Na fase pictórica há o registro de garatujas, desenhos sem figuração e, mais adiante, desenhos com figuração. Em seguida, a criança passa para a fase gráfica primitiva, quando já consegue fazer o registro de símbolos e pseudoletras, misturadas com letras e números. Apresenta uma linearidade e utiliza-se do seu conhecimento do meio ambiente para escrever, podendo ser bolinhas, riscos, ensaios de letras. Nesta etapa surge uma reflexão sobre os sinais escritos. A criança, então, é bastante questionadora sobre a representação que a cerca. Na fase pré-silábica, propriamente dita, acontece a diferenciação de letras e números, desenhos e símbolos e o reconhecimento do papel das letras na escrita. A criança percebe que as letras servem para escrever, embora ainda não saiba como isso ocorre. Nível 2- Silábico Neste nível a criança desenvolve confiança porque já consegue escrever estabelecendo alguma lógica. Com certa concepção silábica, ela conta os “pedaços sonoros” (sílabas) e coloca um símbolo (letra) para cada sílaba, podendo ou não apresentar valor sonoro convencional. Por isso continua tendo dificuldades na leitura de palavras, frases e textos e o professor ainda não consegue ler o que a criança escreveu. Percebe-se nessa fase que a criança distingue a sonorização ou fonetização da escrita, o que a difere das fases anteriores. Isso implica na percepção da correspondência entre grafema e fonema. Porém, utiliza uma letra para cada palavra numa frase, faz uso de recorte silábico e não define ainda categorias linguísticas (artigo, substantivo, verbo). Nível 3- Silábico-alfabético É um nível marcado pelo conflito estabelecido pela criança, pois esta precisa negar a lógica do nível silábico. Esse conflito é gerado pela incompreensão daquilo que ela escreveu. Nesse momento, a criança sente-se desorientada. O papel do professor é primordial para que ela consiga perceber sua escrita, comparando-a com a convencional, possibilitando a percepção do valor sonoro das sílabas. Nessa fase, a criança está a um passo da escrita 6

Esses níveis encontram-se presentes na pesquisa feita por Ferreiro e Teberosky (1985) e são importantes para se compreender o processo de aprendizagem da escrita pela criança, tomando como suporte a Teoria Psicogenética de Jean Piaget, e utilizando-se de dados de pesquisa experimental realizada pelas mesmas.

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alfabética e precisa ser estimulada a refletir sobre o sistema linguístico a partir da observação da escrita alfabética e da reconstrução do código. Nível 4- Alfabético Nessa etapa ocorre uma estruturação dos vários elementos que compõem o sistema de escrita. Essa é a fase de conhecimento do valor sonoro convencional de todas ou de algumas letras, bem como a de saber juntá-las para que constituam as sílabas. As crianças já distinguem basicamente algumas unidades linguísticas, tais como letras, sílabas e frases, pode ainda não dividir a frase convencionalmente, e sim de acordo com o ritmo. Sua escrita é fonética e não ortográfica. Portanto, após o último nível, pode-se afirmar que a criança já passa a dominar o código escrito da língua, embora ainda não domine o código ortográfico, haja vista que a língua portuguesa é essencialmente fonêmica e não fonética, isto é, o seu sistema de escrita não mantém uma relação direta entre letras e sons. É principalmente em razão disso que decorrem os principais problemas de escrita, pois a criança pode escrever de acordo como escuta as palavras que, no caso da língua portuguesa, possibilita inúmeras possibilidades de representação dos sons. 3 A ORIENTAÇÃO DOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCN) Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Infantil afirmam que: No processo de construção do conhecimento, as crianças se utilizam das mais diferentes linguagens e exercem a capacidade que possuem de terem ideias e hipóteses originais sobre aquilo que buscam desvendar. Nessa perspectiva as crianças constroem o conhecimento a partir das interações que estabelecem com as outras pessoas e com o meio em que vivem. O conhecimento não se constitui em cópia da realidade, mas sim fruto de um intenso trabalho de criação, significação e ressignificação. (PCN, 1998, Vol1, p. 21-22) Pode-se perceber explicitamente que os elaboradores dos PCN para a Educação Infantil se embasaram na teoria psicogenética elaborada por Ferreiro e Teberosky, haja vista a compreensão de que a criança constrói seu conhecimento a partir das interações sociais num processo contínuo de hipóteses de natureza cognitiva a respeito de como se escrevem as palavras. Nesse sentido, compreende-se que os educadores que atuam na referida modalidade de ensino são orientados pelos PCN a abandonar o método tradicional de alfabetização e orientar sua prática pedagógica pelos princípios construtivistas. Para isso, é necessário que se trabalhe sob uma nova concepção de currículo, substituindo, assim, as metodologias tradicionais por metodologias que enfatizem não o processo de alfabetização em si, mas as crianças que vivenciam esse processo. Os PCN para o ensino fundamental orientam para que até o final do 1º ciclo o processo de alfabetização se conclua. Todavia ainda encontramos alunos no 3º ciclo com inúmeras dificuldades no domínio da leitura e da escrita. Ao se deparar com um aluno, nesta etapa, não-alfabetizado, é provável que o professor se questione sobre como tal aluno foi promovido sem ainda dominar o código alfabético da língua? Ou ainda, como trabalhar os conteúdos do programa com um aluno não alfabetizado? O que fazer com esse aluno ao final do ano: aprová-lo ou retê-lo? Observamos os principais problemas de escrita apresentados nos textos, produzidos por alunos de uma turma do 6º ano, de uma escola pública de Ananindeua-PA e, após análise dos mesmos, pensamos em algumas atividades que podem nos ajudar a trabalhar efetivamente as questões levantadas. De imediato, é significativo observar que os erros ortográficos

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expressam as dificuldades que as crianças possuem ao usar o sistema ortográfico da língua e que, por meio desse uso, é possível diagnosticar em que medida a criança está alfabetizada. 4 ANÁLISE E REFLEXÕES DAS PRODUÇÕES DOS ALUNOS O relato pessoal foi a proposta sugerida pela professora de Língua Portuguesa para a produção textual da turma F6TR01 do 6º ano do ensino fundamental da E.E.E.F.M. Manuel Saturnino de Andrade Favacho, localizada no bairro Paar, em Ananindeua-PA. Esta turma é composta por alunos que têm entre 11 e 14 anos de idade. Foi sugerido aos alunos que escrevessem sobre uma experiência marcante em sua vida. Essa atividade fez parte de uma sequência didática que se iniciou com a leitura de um texto pertencente ao gênero relato pessoal. A partir de uma leitura atenta dos textos produzidos, observamos inúmeros problemas de escrita que, inicialmente, atribuem-se a uma alfabetização deficitária. Mas, segundo Cagliari (2004)7, antes de qualquer julgamento, é necessário investigar melhor os erros dos alunos para observar que tipo de reflexão eles estão fazendo ao cometê-los. Vamos analisar a maior parte dos “erros”, encontrados nos textos dos alunos, segundo a categorização proposta por este autor. Para ele, o erro mais comum é caracterizado por uma transcrição fonética 8, uma vez que os alunos utilizam sua fala como referência para a escrita, como ocorre em: “desizão” (anexo 015), “comesei” (021), “pacei” (025). A nasalização ou desnazalização também faz parte desta categoria, como ocorre em “mim sempará” (me separar, 15) e “pergutei” (23). Ainda como tentativa de reprodução da forma oral, observamos o apagamento da terminação de infinitivo, como “pedi(r)” (15), “trabalha(r) (03) e a monotongação em “robavam” (roubavam, 05) “comeso”(começou, 08) “chego”(chegou, 16) e “grito(gritou, 08). Outros exemplos de erros decorrentes de transcrição fonética podem ser citados: “dispidida”(16), “imbarcamos” e “vistidos” (05), já que os alunos trocam e por i porque assim o pronunciam. A segunda categoria diz respeito ao uso indevido de letras, Cagliari (2004) considera que o aluno escolhe uma letra possível para representar o som de uma palavra, no entanto a ortografia usa outra. Por exemplo, em manhan (manhã, 05), “agradesso”, “abedo”, (aberto) e “centeja” (certeza) (15) e “jegando” (chegando, 06). Outra categoria, a hipercorreção, ocorre quando o aluno já conhece a forma ortográfica de algumas palavras, tenta corrigir e generalizar certas regras e, com a intenção de acertar, acaba errando. É o que ocorre, por exemplo, quando alguns alunos escrevem l ou o no lugar de u: “almenta”(19), “municípil”(05),”vil” (viu), “difício” e “decidio”(08). Esses exemplos sinalizam uma percepção do aluno em relação às regras do sistema ortográfico. Segundo Cagliari (1999), a invenção da ortografia foi a “salvação” do alfabeto, pois uniformiza a escrita, mas a criança muitas vezes cria hipóteses na escrita e escreve conforme a sua fala. A quarta categoria refere-se à juntura e à segmentação intervocabular, como pode se verificar em “tai” (está aí, 16) “cominha” (com minha, 25), “meachava” (me achava, 26), “passouse” (passou-se) e “inão” (e não) (09), “porfavor” (08), “medis”(me diz, 03), “com migo” (04, 10, 26) “em bora” (04, 08) “a inda” (05), “de pois” (06). A juntura pode ser justificada porque na fala não existe separação das palavras, a não ser quando marcada pela

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Segundo Cagliari (2004), os erros podem ser: por transcrição fonética, hipercorreção, modificação da estrutura segmental das palavras, juntura intervocabular e segmentação, forma morfológica diferente, forma estranha de traçar as letras, uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas, acentos gráficos, sinais de pontuação e problemas sintáticos. 8 Esses erros ocorrem, principalmente devido à dificuldade para grafar um determinado som que pode ser representado de diversas maneiras. A classificação por nós utilizada nessa pesquisa é semelhante à de Cagliari (2004) e será importantíssima para compreendermos a escrita “fonética” que o aluno realiza.

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entonação. No caso da segmentação, pode ocorrer devido à acentuação tônica das palavras, uma separação na escrita, que incorre em erro ortográfico. Alguns erros de escrita revelam problemas sintáticos, como a ausência de concordância nominal ou verbal: “a gente só se preocupamos” (19) “meus irmão” (15), “nós saio” e “nós vio” (22), “nós não sabia”, “nós ouve ele”, “só pra nós rir”, “os cara” e “as ropa” (1). Isso revela formas de falar que representam uma variante não padrão, que podem ser justificadas pelos pressupostos sociolinguísticos. Em alguns textos percebemos também construções e estilos que só ocorrem no uso oral da linguagem, como, por exemplo, “aí ele ficou desesperado, aí ele pegou o primeiro barco” (05). Mesmo depois de ter passado por todo o processo de alfabetização, que naturalmente ocorre nos primeiros cinco anos do ensino fundamental, o aluno chega ao 6º ano ainda com inúmeras dificuldades de escrita. Então o professor se pergunta: O que fazer para alfabetizar a esta altura? Como trabalhar os conteúdos do programa com esses alunos? Mas um olhar mais detalhado sobre os textos produzidos por esses alunos nos mostra que os problemas de escrita por eles apresentados são na verdade dificuldades conceituais do sistema de representação da linguagem. Segundo Ferreiro e Teberosky (1985), a escrita pode ser concebida como um código de transcrição que converte as unidades sonoras em unidades gráficas, primando pela discriminação perceptiva (visual e auditiva) e sua aprendizagem é concebida como aquisição de uma técnica. Mas se a escrita é considerada como um sistema de representação, sua aprendizagem se converte na apropriação de um novo objeto de conhecimento, ou seja, uma aprendizagem conceitual. O problema então se coloca em novos termos: embora os alunos saibam falar e construir seu texto nos moldes da oralidade (pois se observou nos textos produzidos que eles contam suas histórias com logicidade, coerência), também se observa que muitas vezes eles reinventam o sistema de representação escrita e que esta nem sempre corresponde ao sistema ortográfico vigente. A dificuldade observada é, portanto, de compreensão da natureza desse sistema de representação. Essa compreensão dar-se-á aos poucos, conforme o processo de letramento avance. À medida que a escrita ganha significação no dia a dia do aluno, os elementos que a compõem e a relação entre eles serão substanciados. Para isso é necessário, segundo Ferreiro, restituir à língua escrita seu caráter de objeto social, garantir a interação nos mais diferentes contextos e a aceitação de que todos podem produzir e interpretar escritas no seu nível de aprendizagem. Cabe ao professor do 6º ano intervir com leituras significativas, menos mecânicas e artificiais do que as que o aluno provavelmente viu no processo de alfabetização. 5 ORIENTAÇÕES DIDÁTICO-METODOLÓGICAS Segundo Ferreiro (1999, p. 47) “a alfabetização não é um estado ao qual se chega, mas um processo cujo início é, na maioria dos casos, anterior à escola e que não termina ao finalizar a escola primária”. Em consonância com o pensamento da autora, Cagliari (2004, p.29) também afirma que “há tantas coisas a respeito de escrita e leitura, e de dificuldades tão variadas, que se torna conveniente o seu ensino ao longo de todos os anos de estudo”. Portanto, o primeiro passo para o professor de língua portuguesa tentar reduzir os problemas de alfabetização no ensino fundamental é aceitar o papel de alfabetizador também, sem o jogo de culpas que normalmente ocorre quando julgamos nossos antecessores. Faz-se necessário também repensar as teorias e práticas difundidas e estabelecidas que, segundo os PCN, para a maioria dos professores, tendem a parecer as únicas possíveis. Alguns ensinam da mesma maneira como aprenderam, de forma mecânica, generalizante e descontextualizada.

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O professor deve ser um pesquisador, analisar constantemente os usos de seus alunos com consciência linguística, verificando casos de variação mais recorrentes, buscando explicações para esta variação e criando metodologias que contemplem tal fenômeno. Ao se deparar com o uso de variante não padrão e com interferências da fala na escrita, o professor deve agir com naturalidade, respeitando a fala do aluno, mas pronunciando a forma correta para que o mesmo ouça, demonstrando a forma escrita e explicando que nem sempre a ortografia corresponde à oralidade. Pois a maioria das dificuldades dos alunos (erros) é responsabilidade do sistema ortográfico. É necessária então uma orientação constante sobre a ortografia durante todo o percurso escolar. O professor deve ainda criar um material específico para trabalhar com os casos mais recorrentes, como tabela de pares mínimos para verificar a troca de letras e a nasalização, exercícios que contemplem dificuldades pontuais, bem como incentivar o uso do dicionário para consulta, nos casos em que várias letras representem o mesmo fonema, por exemplo. Considerando as reflexões apresentadas, então, no 6º ano, o ideal é dar continuidade ao processo de alfabetização, proporcionando o contato com textos diversos, monitorando de perto a leitura e escrita dos alunos e observando mais atentamente os casos recorrentes de dificuldades na escrita. Pois, segundo os PCN, “os “erros” cometidos pelos alunos devem guiar a prática do professor, tornando-a menos genérica e mais eficaz”. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se pôde observar, os níveis intelectuais diferem da faixa etária em que as crianças se encontram, o que faz com que cada uma delas tenha seu próprio tempo de aprendizagem em relação aos níveis intelectuais linguísticos. Sendo que ao chegar ao último nível, o alfabético, embora a criança já domine parte do código escrito da língua, ela ainda precisará dominar o código ortográfico, que é convencional. Nesse sentido, torna-se indispensável a tomada de consciência e um posicionamento do professor diante dessa dificuldade linguística que a criança possui no domínio da representação ortográfica dos sons de sua língua. É necessário que o professor não veja nessas ocorrências “erros” deliberados, e que saiba utilizar-se dessas dificuldades para analisar o que elas já sabem sobre o sistema ortográfico de sua língua materna, refletir sobre essas ocorrências e buscar metodologias que visem a reduzir ou mesmo solucionar esses problemas, dando, portanto, continuidade ao processo de alfabetização e letramento, o que certamente estimulará a autonomia de leitura e escrita dessas crianças. 7 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, vol. 1, 1998 BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: 1º e 2ºciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998 BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998 CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Linguística. São Paulo, Scipione, 2004 CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetizando sem o BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU. São Paulo: Scipione. 1999. FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. A psicogênese da língua escrita. Trad. D. M. Lichstenstein, L. D. Marco e M. Corso. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985

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FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Com todas as letras. São Paulo: Cortez, 1999. http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/emilia-ferreiro-306969.shtml, acesso em 2809.2013, às 18:00 horas.

A PRÉVIA ANÁLISE DO MÉTODO GEEMPA UTILIZADO NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ALFABETIZAÇÃO DOS ALUNOS DO 3º ANO DA REDE REGULAR DE ENSINO DO MUNICÍPIO DE SOURE EDDA JAQUELINE SOUSA DE OLIVEIRA (FIBRA) Especialista em Língua Portuguesa e Literaturas [email protected] JANE MIRANDA ALVES RESUMO Os estudos atuais sobre linguagem revelam a urgente necessidade de a escola assumir a língua como forma de ação social e empreender esforços na formação das habilidades discursivas dos discentes, como plena garantia de lhes assegurar a inserção na sociedade grafocêntrica, posto que as interações se encontram atreladas às práticas discursivas. Partindo desse pressuposto, esse estudo se propõe a analisar e verificar até que ponto essas práticas discursivas têm ganhado uma dimensão prática dentro do contexto da alfabetização, tal como proposto pela metodologia do GEEMPA9, em uma turma do 3º ano da rede municipal de ensino de Soure, cidade próxima a Belém do Pará. Para isso, adotou como método de investigação a pesquisa etnográfica colaborativa, pois os dados foram construídos coletivamente aos professores da turma. Para tanto, utilizou-se de questionários, fichas avaliativas dos alunos, testes psicopedagógicos, escada de desempenho da turma e a observação in lócus. As análises se fundamentaram na teoria do letramento de Soares (1998; 2003; 2012) e na concepção interacionista da língua de Geraldi e Tavaglia (1984, 1996 apud FERREIRA, 2011). Os dados coletados permitem afirmar que o trabalho de alfabetização da turma tem apresentado progressos, mas ainda: i) compreende a leitura e a escrita como instrumentos de decodificação, pois não enfoca o texto e os gêneros dentro de uma perspectiva interacionista da língua; ii) não possibilita uma visão dos aspectos referentes ao gênero; iii) a leitura ainda parte do ensino da cartilha; iv) as produções textuais se manifestam como mera tradução do oral para o escrito. Isso leva a concluir que embora haja, no município, uma proposta metodológica de ensino que se autodenomina interacionista, GEEMPA, as atividades em sala de aula permanecem atreladas à concepção instrumentalista da língua. Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Leitura e Escrita, GEEMPA. RESUMEN Los estudios actuales sobre el lenguaje revelan la urgente necesidad de que la escuela para tomar el lenguaje como una forma de acción social y esforzarse en la formación de habilidades discursivas de los estudiantes como garantía completa de garantizar su integración en la sociedad grafocêntrica, ya que las interacciones están vinculados a las prácticas discursivas. En base a este supuesto, este estudio tiene como objetivo verificar el grado en que estas prácticas discursivas han adquirido una dimensión práctica en el contexto de la alfabetización, según lo propuesto por la metodología de GEEMPA en una clase de 3 º año de las escuelas municipales de la ciudad de Soure cerca de Belém do Pará para este método de 9

Grupo de Estudos sobre Educação Metodologia de Pesquisa e Ação.

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investigación adoptado como la investigación etnográfica colaborativa porque los datos fueron colectivamente construidas para los maestros de clase. Para ello, se utilizó cuestionarios, registros evaluativos de los estudiantes, las pruebas psicológicas y educativas, escalera de rendimiento de la clase y la observación en el locus. Los análisis se basan en la teoría de la alfabetización Soares (1998, 2003, 2012) y la concepción interaccionista de la lengua y Geraldi Tavaglia (1984, 1996 apud FERREIRA, 2011). Los datos recogidos nos permiten afirmar que el trabajo de la clase de alfabetización ha mostrado un progreso , pero aun así: i) comprende la lectura y la escritura como herramientas para el descifrado , no se centra en el texto y géneros dentro de una perspectiva interaccionista del lenguaje, ii) no ofrece una visión general de los aspectos relacionados con el género, y iii) la lectura incluso parte de la enseñanza del libro de jugadas iv) las producciones textuales se manifiestan como mera traducción del lenguaje oral al escrito. Esto lleva a la conclusión de que si bien existe en la ciudad, una propuesta educativa metodológica que se autodenomina interaccionista GEEMPA, las actividades en el aula permanecerá vinculado a la concepción instrumentalista del lenguaje. PALABRAS CLAVE: Alfabetización. Literacy. La lectura y la escritura, GEEMPA. 1 INTRODUÇÃO Estudos recentes sobre alfabetização e letramento apontam a importância de inserir a criança no mundo da escrita a partir do trabalho interativo com o texto, mas ainda predomina no ambiente escolar práticas que não se enquadram dentro da concepção interacionista da língua. Partindo dessa problemática, esta pesquisa se propôs a investigar o método de alfabetização desenvolvido em uma turma do terceiro ano de uma escola municipal da cidade de Soure, afim de verificar como o método GEEMPA tem promovido a alfabetização: em sentido pleno, considerando o texto e suas dimensões interativas; ou se em sentido restrito limitando-se à aquisição do alfabeto. Para tanto, recorreu aos recursos da pesquisa etnográfica de base colaborativa como meios de coleta de dados e considera a Alfabetização, o Letramento e as Concepções de Linguagem como pontos de partida para analisar os dados coletados. Os resultados comprovam uma tentativa de inserir o texto no contexto da alfabetização, mas tal tentativa ainda não está pautada na concepção interacionista da língua, já que o gênero textual, suas especificidades e usos sociais não são salientados. Os textos, restritos ou a leitura ou a reescrita, permanecem ligados ao uso da cartilha e a aplicação de ditados, o que contribui sensivelmente para que a leitura permaneça, de modo retrocesso, como atividade de decodificação e a escrita como tradução do oral para o escrito. Isso reduz o ensino da língua portuguesa a uma concepção instrumentalista da língua. 2 PERCURSO TEÓRICO DA PESQUISA 2.1 PESPECTIVA HISTÓRICA De acordo com Bonini (2002) até antes do século XX a alfabetização não ultrapassava o sentido de levar à aquisição do alfabeto. Os “alfabetizandos” precisavam desenvolver apenas as habilidades motrizes e perceptuais necessárias para reprodução das letras e dos sons. Não havia qualquer preocupação com os aspectos cognitivos e sociais das práticas de leitura e escrita. O ensino da língua se baseava exclusivamente nas atividades de prontidão 10, no ensino da cartilha e na reprodução de fonemas e grafemas. Dessa forma, o ensino se fundamentava na concepção que trata a Linguagem como Instrumento de Comunicação.

10

O Parâmetro Curricular Nacional (PCN) de língua portuguesa de 1ª a 4ª série de 1997 define as atividades de prontidão como sendo um conjunto de atividades mimeografadas, cujo principal objetivo é desenvolver a leitura e a escrita a partir do exercício repetitivo de cobrir e reproduzir.

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Essa concepção considerou o texto, porém o limitou a simples decodificação e codificação, consequentemente, “[...] restringiu o trabalho textual a uma prática monológica, imanente e formalista que se voltara mais a gramática do que propriamente ao texto”, afirma Ferreira (2011, p. 8). E ainda assim, foi tomada como fundamento teórico pela LDB (em 1971) na promulgação de um modelo de ensino de língua portuguesa11. Desse modo, para Soares (2003, p.29) o termo alfabetizado, por muito tempo foi empregado na acepção de quem dominava a língua escrita, todavia centrava-se apenas na mecânica e nos procedimentos rudimentares presentes na forma como a língua era vista. Era necessário então ver o ensino de Língua Portuguesa sob uma lente de aumento que contemplasse aspectos voltados a uma nova política educacional que abrangesse uma concepção de linguagem que atendesse às novas perspectivas de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa. 2.2 “A GRANDE VIRADA PRAGMÁTICA” De acordo com Ferreira (2011, p.7-8), a partir de meados do século XIX, a democratização da educação no Brasil facilitou a entrada das classes populares nas instituições de ensino, mas não garantiu permanência e progressão. Isso, instaurou a “crise no ensino”12 e a reformulação das políticas educacionais. Esta, considerada por Bonini (2002) como “a grande virada pragmática”13, passou a empreender esforços na melhoria do acesso, permanência e progressão escolar das classes marginais e se dispôs a eliminar o caráter prescritivo da linguagem para inserir em seu lugar o texto e sua enunciação, como unidade básica do ensino. Por essa razão, os debates passam a defender uma alfabetização alicerçada no letramento (Literacy), na qual se potencialize, segundo Antunes (2009), tanto a alfabetização: “a competência inicial para lidar com os sinais da escrita” (ANTUNES, 2009, p.192), quanto o letramento: “o domínio da funcionalidade da língua e o uso prático das habilidades discursivas” (ANTUNES, 2009, p.192), nesse sentido o ensino da língua passa a dar ênfase aos textos que circulam no meio social e nas habilidades discursivas. Assim, d e acordo com Soares (2012), não se pode separar o letramento da alfabetização porque a entrada da criança no mundo da escrita ocorre simultaneamente por estes dois processos: Quando se estabelece a separação a qualidade da alfabetização está comprometida e a escola acaba contribuindo para a formação de analfabetos funcionais14. 3 METODOLOGIA A corpora deste trabalho está constituída por dados coletados através da observação in lócus, anotações no caderno de campo, entrevistas livres e análise de documentos15, por essa razão usou o método de pesquisa etnográfica de base colaborativa. De acordo com Moita Lopes (1996, p.88) análises que se fundamentam nesta técnica de investigação apresentam uma triangulação da realidade educacional o que permite uma visão mais profunda do objeto

11

Nesse contexto, a Língua Portuguesa passou a integrar a área de Comunicação e Expressão do então 1º grau. (PERFEITO, 2005 apud FERREIRA, 2011, p. 11). 12 Segundo Soares (1986 apud Ferreira 2011, p. 8) a retenção e evasão implicou em uma conjuntura intitulada pela literatura como “crise do ensino” essa crise se originou da falta de organização das instituições de ensino e das políticas educacionais durante a democratização da educação. 13 Esta expressão foi escolhida por Bonini (2002) para marcar as mudanças que ocorreram durante a revolução industrial na área da educação. 14 Martins; Carvalho (1999, p. 51) usam esse termo para referir-se às pessoas que se alfabetizam, mas não incorporam a prática da leitura e da escrita “[...] na prática [...] milhões de jovens e adultos brasileiros que se julgavam alfabetizados [...] não conseguem escrever um bilhete ou entender o que leem num jornal [...]”. 15 Questionários encaminhados aos professores, testes psicopedagógicos, escada alfabética do GEEMPA, fotos do ambiente educacional da escola pesquisada.

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de análise. Para André (1995, p.28) este tipo de pesquisa ajuda na descrição, narração e compreensão dos fenômenos característicos da vida em sala de aula. A coleta de dados foi realizada nos meses de agosto e setembro de 2013, em uma escola pública municipal, localizada na área periférica da cidade de Soure (PA), Ilha de Marajó. Teve como sujeitos seis professores concursados da rede municipal de ensino que trabalham a mais de 2 anos na alfabetização, além de 17 alunos regularmente matriculados no 3º ano do ensino fundamental, antiga 2ª série. Os dados foram transcritos para gráficos e tabelas e analisados a partir dos pressupostos teóricos sobre concepções de linguagem e letramento. Porém para uma melhor análise é imprescindível descrever a natureza do GEEMPA, pois desde de 2012, vem assessorando o trabalho docente no município, através de formações, repasse de materiais e verificação de resultados. O que é o GEEMPA? O GEEMPA (Grupo de Estudos sobre Educação Metodologia de Pesquisa e Ação) é registrado em Porto Alegre como entidade sem fins lucrativos e desenvolve desde sua fundação pesquisas na área da educação, mantém uma proposta de trabalho que visa alfabetizar 100% das crianças na idade certa em um período de seis meses e corrigir os déficits de aprendizagem. Já fora desenvolvido em diversas instituições de ensino de várias regiões do Brasil e está em fase de implementação no município de Soure. O trabalho deste grupo é apoiado e patrocinado pela UNESCO16, pelo UNICEF17 e pelo MEC. A base teórica do GEEMPA18 é o pós-construtivismo, segundo a qual o conhecimento não é fruto do inatismo e tão pouco do empirismo é resultado da construção do aluno mediante a interação com o objeto do conhecimento, o social, o cultural e os demais indivíduos. Embora esteja fundamentado teoricamente na corrente construtivista, o método GEEMPA em termos práticos apresenta pontos de fragilidade: Vejamos: A família: é considera apenas fonte de vida biológica e afetiva, cuja qualificação não é suficiente para contribuir no processo educativo. O grupo afirma que o aprender é demasiado complexo para pais que não possuem a mesma formação de um professor, considera que a aprendizagem é responsabilidade única e exclusivamente da escola e que a família é “território separado”. Restringir a família à fonte de afeto, e a escola à fonte de saber é deveras contraditório a todo o arcabouço literário que se tem sobre o papel da família na escola. A própria LDB propõem que esta relação seja estreitada, pois: “a escola abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar [...]”. (LDB, 1996, p.1). Mas ainda assim, o GEEMPA sustenta que: [...] pais e mães, na família, são demandados a produzir afeto. A família é lócus onde devemos nos sentir amados. A escola é o lócus onde nos sentimos aprendendo. A escola é lugar de produção de pensamento, de ideias, de compreensões da realidade [...]. (Informação Verbal: depoimento de Grossi 19 em curso de formação do GEEMPA realizado em Soure, no ano de 2013)

A autonomia na aprendizagem e o papel do professor: para o GEEMPA a autonomia na aprendizagem só será alcançada pelo educando se este construir, elaborar e formular seu 16

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Fundo das Nações Unidas para a Infância- United Nations Children's Fund. 18 O GEEMPA fundamenta-se nas teorias de Emilia Ferreiro, Jean Piaget, Paulo Freire, Vygotsky, Wallon, Sara Pain e Gerard Vergnaud para erguer uma nova metodologia baseada na concepção de alfabetização titulada: pósconstrutivista. 19 Ester Pilar Grossi coordenadora geral do GEEMPA. 17

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próprio saber, por isso o professor deve restringir-se ao papel de articulador da aprendizagem: provocar curiosidades, levantar questionamentos e criar ambientes educativos. O professor não poderá se comportar como detentor do saber, ao invés disso deverá deixar o aluno construir “sozinho” (re) formulando e (re) elaborando hipóteses e conclusões. Acredita que a autonomia só será atingida se a criança fizer, pensar, construir “SÓ”. Porém, os elementos que corroboram para a conquista da autonomia são: a interação, a socialização, a troca de conhecimentos, o convívio com a família, com o professor, a sociedade, etc. Jamais a solidão. Portanto, ainda que o GEEMPA defenda “o discurso da autonomia”, que na realidade se traduz como “aprenda sozinho” é fundamental advertir que cordões de isolamento que demarcam limites de influências na aprendizagem do aluno causarão alienação ao invés de autonomia. 4 ANÁLISE DE DADOS 4.1 LEITURA E ENSINO DO GÊNERO TEXTUAL A leitura tem ganhado lugar de centralidade na alfabetização, pois 100% dos professores desenvolvem atividades lúdicas que envolvem a leitura, ilustração disso é o “cantinho da leitura”20. Diversos textos: conto infantil, parlenda, trava língua, cantiga de roda, carta, bilhete, receita, poesia, história em quadrinho, etc, são lidos, dramatizados, cantados diariamente, juntamente com o ensino da cartilha21. Porém, apesar de ser trabalhado inúmeros textos, não se pode falar ainda que exista o trabalho do gênero textual, no sentido de que tais textos ou são apenas lidos, ou servem de esboço, do qual são retiradas palavras, sílabas, letras, etc. Estão desvinculados de suas práticas sociais. Portanto, as práticas de leituras permanecem focadas na decodificação e codificação dos sons e letras. E o que se denomina “ensino do gênero textual” corresponde unicamente a leituras diárias de textos diversos por meio de dinâmicas. 4.2 PRODUÇÃO TEXTUAL NO CONTEXTO DE SALA DE AULA As produções textuais foram trabalhadas de duas formas, em uma o professor mostrava uma sequência de figuras e solicitava aos alunos que as descrevessem oralmente e por escrito; em outra: o aluno narrava um episódio que lhe acontecera, o professor registrava para depois ditar para o aluno. Assim, a produção textual se concretiza como um mecanismo de representação da oralidade (parte do relato de uma experiência diária e do ditado). O problema desse método está no fato de insinuar que a língua não apresenta nenhum tipo de variação e que embora fala e escrita estejam num continuun22, aqui as características inerentes a cada uma dessas modalidades desaparecem, forçando um uso sistemático, mecânico destituído de um objetivo real de uso. Esse exercício mecanizado é problemático porque não estimula o aluno a pensar o texto como produto de interação. 4.3 ANÁLISE DO DESEMPENHO DOS ALUNOS A turma pesquisada teve sua primeira aula entrevista no mês de março de 2013, a segunda no mês de junho e a terceira no mês de setembro. Portanto, a pesquisa se localiza nesses meses.

20

Espécie de minibiblioteca dentro da própria sala de aula. Nela os livros infantis ficam disponíveis para livre acesso dos alunos. 21 Fotos registraram a presença de macro cartilhas usadas pelos professores nas aulas de alfabetização. Isso mostra que apesar de o GEEMPA tentar coibir seu uso ela é acastelada pelos professores. 22 Para Koch (1997) “existem textos escritos que se situam, no contínuo, mais próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários.

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Mês de Março: a escada de aprendizagem do GEEMPA23 aplicado em Março de 2013 demonstra que os 17 alunos do 3º ano apresentavam níveis de desenvolvimento diversificado: 11,7% não tinham compreensão clara sobre sílaba e se expressavam basicamente através de rabiscos, por isso estavam no nível pré-silábico II. Estavam no nível silábico 52,9%, pois tinham vaga noção de sílaba e as representava de forma incipiente. 23,5% estavam no nível alfabético conseguiam estabelecer a relação entre grafemas e fonemas e formavam as sílabas, embora em alguns casos faltassem letras em suas representações e apenas 11,7% estavam no nível alfabetizado. Conforme se pode ver no gráfico 1 1º nivelamento dos alunos do 3° ano

60%

52,90%

40% 20%

23,50%

11,70%

0%

11,70%

0% Pré-silábico 1

Pré-silábico 2

Silábico

Alfabético

Alfabetizado

Gráfico 1 Nível de aprendizagem dos alunos do 3º ano em Março de 2013

Estes dados remontam ao início da implementação do projeto GEEMPA na escola e indicam que a professora recebeu a turma: com quase 90% de alunos não alfabetizados. Comprova que os alunos pouco avançaram em seus eskemas24 no ensino-aprendizagem da língua materna, embora já estivessem no 3º ano. Mês de Junho: neste mês o índice de alunos nos níveis alfabético e alfabetizado aumentou. O nível alfabético ascendeu de 23,5% para 58,9% (o aluno já consegue utilizar as letras de forma mais consistente) e o alfabetizado foi de 11,7% para 29,4%. Apesar de 5,8% terem se mantido no nível pré-silábico e outros 5,8% permanecerem no nível alfabético, 88% dos alunos avançaram em suas elaborações acerca do uso da língua e ascenderam em seus níveis. Volto a frisar: 88% dos alunos progrediram em seus esquemas lógicos, isso corrobora o avanço extraordinário que esta turma atingiu como um todo, dentro de aproximadamente quatro meses. Observe no quadro comparativo dos meses de Março e Junho. Quadro comparativo: Nivelamento dos Alunos do 3° Ano nos meses de Março e Junho. Nível Pré-silábico 1

Março 0%

Junho 0%

Pré-silábico 2

11,7%

5,8%

Silábico

52,9%

5,8%

Alfabético

23,5%

58,9%

Alfabetizado

11,7%

29,4%

Fonte: Escada alfabética do GEEMPA dos meses de Março e Junho

Mês de Setembro: os resultados obtidos também assinalaram progressos. Nesse mês, não há mais alunos no nível pré-silábico 2 Estão no nível silábico 5,8%, 29,4% ocupam o nível alfabético e 58,9% alfabetizados conseguem ler e produzir textos com autonomia. No mês de Setembro surge um índice novo o de desistentes: 5,8%25.

23

Espécie de escala na qual os alunos são classificados a partir do nível de aprendizagem da língua. É elaborada quatro vezes ao longo do ano e parte da avaliação da aula entrevista. 24 GEEMPA (2013) usa esse termo para destacar as várias hipóteses elaboradas e refutadas pela criança durante a aquisição da língua. 25 O aluno desistente já havia iniciado o ano letivo alfabetizado, portanto a porcentagem de 5,8% deslocado para o índice de desistência na realidade outrora estava incorporado aos dados dos alunos no nível alfabetizado.

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Em termos numéricos significa dizer que dos 16 alunos que permaneceram estudando 1 estava no nível silábico, 5 no nível alfabético e 10 alfabetizados. Conforme gráfico 2 3º nivelamento dos alunos do 3° ano 100% 29,40%

50% 0%

0%

58,90%

5,80%

5,80%

0% Pré-silábico 1

Pré-silábico 2

Silábico

Alfabético

Alfabetizado

Desistente

Gráfico 2 Nível de aprendizagem dos alunos do 3º ano em Setembro de 2013

O gráfico 2 revela que em setembro 58,9% dos alunos, mais da metade da turma, já estão alfabetizados. Assim, colocados estes resultados em comparação a Março e Junho, percebe-se que a aprendizagem foi contínua e ascendente. Supõem-se a partir daí que a intervenção didática foi adequada. Veja o gráfico 3 gráfico comparativo de desempenho da turma do 3º ano 60%

Março

40%

Junho

Setembro

20% 0% Pré-silábico 1

Pré-silábico 2

Silábico

Alfabético

Alfabetizado

Desistente

Gráfico 3 Comparação de desempenho dos alunos do 3° ano (Março/Junho/Setembro/2013).

Considerando que no início do ano apenas 11,7% ocupavam o topo da escada e agora esse número multiplicou para 58,9%, houve um aumento significativo na porcentagem de alunos no nível alfabetizado. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das contradições metodológicas e teóricas a alfabetização no município de Soure, com a implementação do GEEMPA, tem atingido resultados positivos. A turma pesquisada iniciou o ano com aproximadamente 10% de alunos alfabetizados, no mês de setembro superou este índice e foi para 58,9%. Mas, há de se destacar que a presente pesquisa por se pautar nos conceitos de letramento e ser de cunho interacionista, chegou à conclusão que as crianças estão adquirindo o sistema ortográfico da língua escrita, o alfabeto e suas representações, mas elas ainda não estão sendo alfabetizadas em uma perspectiva interacionista da língua, não estão sendo orientadas a fazer uso prático dos textos que circulam no meio social e isso se deve ao fato de que: i) a alfabetização permanece em sentido restrito, pois está equacionada ao sentido tradicional de aquisição do alfabeto; ii) o contato do aluno com textos variados não corresponde ao que deve ser o ensino do gênero textual, pois não há a explicitação das suas funções e estruturas; iii) a leitura se restringe a decodificação da escrita; iv) a escrita parte de ditados e de atividades de transposição da oralidade, ou seja é entendida como tradutora da fala. Isso é sintomático de que apesar do método GEEMPA ser pós-construtivista, o uso de diversos gêneros textuais acaba por cair na velha ideia da concepção de linguagem como instrumento de comunicação, o texto é usado como pretexto para um ensino mecânico da língua, baseado na repetição, tal como é proposto na cartilha. Os resultados apontam para uma prática pedagógica que vê a língua como uma expressão monológica, individual, racional, independente de influências pragmáticas, permanece nos limites da imitação, repetição e na dificuldade de articular teoria e prática no que tange o uso de variados textos em sala de aula. Assim, emprestando a metáfora de Rajagopalan (2003, p. 165), a alfabetização no município de Soure, está como “vinho velho em garrafa nova”. Vinho

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velho porque a essência permanece em defesa de uma leitura mecanizada, não vai além das linhas escritas, porque o texto é instrumento do qual são retirados micro estruturas: letras, palavras, etc., nada mais que isso; está pautada no caráter instrumental de tal forma que não considera relevante o contexto social, a família do aluno e o professor para o desenvolvimento das práticas discursivas. Em garrafa nova porque usa um discurso em defesa da autoaprendizagem, da inserção dos gêneros textuais, do caráter interativo da linguagem, muito embora não se efetive nesses moldes. Portanto, não se trata necessariamente da abolição da cartilha, tal como debate o GEEMPA, ou da legitimidade de seu uso, pois suprimir a cartilha não quer dizer obviamente que os gêneros passarão a ter o tratamento devido. Entretanto, abolir o uso da cartilha é apenas uma entre tantas modificações que se precisa fazer para que os avanços se voltem para uma perspectiva interacionista da língua. Enfatizar a importância da família, entender que a aprendizagem não é um ato solitário, reconhecer o poder de interferência do professor no processo de aprendizagem do aluno, organizar o ensino dos gêneros a partir da sequência didática são alguns pontos que necessitam de reformulação para que a alfabetização se efetive como prática de letramento e contemple o caráter interacionista da língua. 6 REFERENCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995 ANTUNES, I. A leitura de olho nas suas funções. In: _____. Língua texto e ensino. São Paulo: Parábola, 2009, p. 185-207 BONINI, A. Metodologias do Ensino de Produção Textual: A Perspectiva da Enunciação e o Papel da Psicolingüística. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, 2002 BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Lei nº 9394/96 Brasília: MEC, 2004 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa, ensino de primeira à quarta série. Brasília: Ministério da educação e do desporto, 1997 FERREIRA, D. Fundamentos teóricos metodológicos da linguagem. Belém: Universidade do Estado do Pará, 2011 GEEMPA. Aula entrevista: caracterização rumo à escrita e à leitura. 2 ed. Porto Alegre: Gráfica Comunicação Imprensa, 2013 KOCH, I. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997 MARTINS, S.; CARVALHO, A. Educação: o segredo do futuro. Belo Horizonte: Lê, 1999. MOITA LOPES, L. P. Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino/ aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado de letras, 1996 RAJAGOPALAN, K. Repensar o papel da lingüística aplicada. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma lingüística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006, p. 149-167

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SOARES, M. Alfabetização e Letramento. 6ª ed. São Paulo: Contexto, 2012 SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. In: Revista Brasileira de Educação, São Paulo: Autores Associados, v.25, 2003 p. 5-17

CONSTRUÇÃO DE UMA BASE DE ORIENTAÇÃO A PARTIR DOS GÊNEROS TEXTUAIS JALMA GEISE MARIA BRABO DO PRADO - Doutoranda em Educação (UFPE) [email protected] RESUMO: Há algum tempo vem sendo discutido não só nos inúmeros materiais escritos voltados ao ensino da língua materna, mas também nos encontros destinados à formação inicial e continuada de professores de língua e da educação básica o quão importante é o trabalho com os gêneros textuais. Todavia, observa-se que, apesar de se compreender a importância desse tipo de trabalho, na prática ele não é tão facilmente compreendido. Assim, durante as aulas da disciplina A produção de textos na escola, no curso de doutorado em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, surgiu a inquietação de verificar de que maneira as atividades com gêneros textuais auxiliam na construção de uma base de orientação para a efetiva elaboração de um texto em dado gênero. Schneuwly (1988) acredita que é a partir da construção de uma base de orientação para a escrita dos textos que se determinam diferentes modos de construção textual, ou seja, as condições dadas para a escrita de um texto é que guiam a atividade. Portanto, pensar em se trabalhar com gêneros textuais implica considerar as características próprias de um gênero, como o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional (BAKHTIN, 2000). Neste sentido, assim como Bakhtin (2000), assume-se a posição de que ninguém escreve por escrever, pois os enunciados são gerados a partir de contextos situacionais que exigem o uso de determinado gênero. Para tanto, o presente trabalho aborda a prática pedagógica de uma professora do 2º ano da Rede Municipal de Ensino do Recife/ PE a partir de gêneros textuais. No decorrer das aulas, que exploravam o gênero carta, ficou claro que a professora tem consciência do trabalho que desenvolve e o que pode ser alcançado a partir dele. A sequência didática, pautada em Dolz e Schneuwly (2005), é o fio condutor de seu trabalho. Palavras-chave: Base de orientação; Gêneros textuais; Sequência didática. 1 INTRODUÇÃO Não há dúvidas de que a produção de texto na escola está, timidamente, mudando de status, à medida que as práticas de ensino de língua materna também se modificam. Isto talvez se deva, em parte, às orientações expressas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997) que trazem à tona, dentre outros aspectos, a reflexão acerca da linguagem, de suas concepções. Assim, a linguagem deixou de ser compreendida, por alguns docentes, como a mera expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação, passando a ser concebida como forma de interação (GERALDI, 2002). Outra questão que se faz necessário mencionar e que pode estar contribuindo para a referida mudança diz respeito aos estudos sobre gêneros discursivos, encampados por Bakhtin (2000, p. 279), para o qual os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados” elaborados em cada esfera social de utilização da língua, pois o ser humano, em quaisquer de suas atividades, serve-se da língua por meio da elaboração de enunciados que ganharão contornos diferenciados, serão realizados de maneiras diversas, a partir do seu interesse, da

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intencionalidade e da finalidade específica de cada atividade. Deste modo, o gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no movimento da linguagem e da comunicação de uma sociedade. Não obstante, a noção de Sequência Didática também tem entrado nas discussões sobre o ensino da língua, sendo considerada como uma possibilidade viável para se trabalhar a língua materna, já que é uma estratégia que pode favorecer a construção de uma escrita voltada aos interesses dos aprendizes. A sequência didática, c onforme propõem Dolz e Schneuwly (2005, p.97), “é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito, que tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação”. É na perspectiva do trabalho com gêneros textuais, a partir de sequências didáticas, que apesentamos este trabalho, fruto das reflexões das aulas da disciplina Produção de Textos na Escola, do curso de Doutorado em Educação da UFPE e das observações das aulas de uma professora do 2º ano da Rede Municipal de Ensino do Recife/PE que trabalha, com seus alunos, por meio de sequências didáticas. Segundo a professora, ao se trabalhar com as sequências didáticas, ela propicia que os alunos construam uma base de orientação e, com isso, podem se tornar escritores proficientes. 2 UM POUCO DE TEORIA Por muitos anos, a prática de produção de textos esteve relacionada à elaboração de redação, que pode ser considerada, como afirma Marcuschi (1997, apud MATENCIO, 2001), “um gênero construído pela escola e para a escola”. A primazia dessa prática reforçava a ideia de que os professores davam pouca importância à prática de produção de textos, o que justificava o fato de a maior parte das aulas de língua portuguesa ser destinada ao “ensino” da língua padrão, que é notoriamente confundida com o ensino das regras gramaticais. Esse tipo de prática adotada ainda por inúmeras escolas é preocupante, uma vez que sendo um usuário da língua, o aluno deveria produzir mais, quer dizer, pôr em prática todos os seus conhecimentos sobre a língua. Esse conhecimento deveria ser ativado constantemente e não apenas de forma esporádica, ou melhor, tão somente quando o professor acreditar que determinada aula seja propícia a esse tipo de atividade. Todavia, paulatinamente, este quadro vem mudando. Os estudos de Bakhtin (2000) acerca dos gêneros discursivos têm contribuído para isso e têm gerado algumas reflexões por parte dos professores, inclusive sobre a forma de conceber a linguagem. Segundo Geraldi (2002, p. 40), Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula.

De fato, a afirmação de Geraldi (2002) deve ser levada em conta, já que, ao se deparar com as práticas de produção de texto vigentes, verificamos que elas estão intimamente relacionadas à concepção de linguagem adotada pelo professor, assim como à sua concepção de ensino e de aprendizagem da língua. De acordo com o mesmo autor, três concepções fundamentais de linguagem devem ser consideradas: a linguagem como expressão do pensamento, a linguagem como instrumento de comunicação e a linguagem como forma de interação. Ainda assim, essas três concepções corresponderiam às três grandes correntes dos estudos linguísticos: a linguagem como expressão do pensamento corresponderia à gramática tradicional; a linguagem como instrumento de comunicação corresponderia ao estruturalismo e ao transformacionismo e a linguagem como forma de interação corresponderia à linguística

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da enunciação. Essas concepções de linguagem circulam nas escolas brasileiras, só que em medidas diferentes. A produção textual que vislumbramos neste trabalho está situada no interior da concepção de linguagem como forma de interação, pois, assim como Geraldi (2002, p.41), acreditamos “que ela implicará uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos”. Nessa perspectiva, como afirma Koch (1998, p. 22), A produção textual é uma atividade verbal, a serviço de fins sociais e, portanto, inserida em contextos mais complexos de atividades; trata-se de uma atividade consciente, criativa, que compreende o desenvolvimento de estratégias concretas de ação e a escolha de meios adequados à realização dos objetivos; isto é, trata-se de uma atividade intencional que o falante, de conformidade com as condições sob as quais o texto é produzido, empreende, tentando dar a entender seus propósitos ao destinatário através da manifestação verbal; é uma atividade interacional, visto que os interactantes, de maneiras diversas, se acham envolvidos na atividade de produção textual.

Muito embora essa concepção de linguagem esteja ganhando espaço nos meios educacionais, a prática de produção de textos ainda está longe do que essa abordagem considera como ideal, posto que a produção exigida pela escola foge totalmente ao sentido de uso da língua, uma vez que os gêneros textuais que circulam na sociedade, ao serem trazidos para o interior da escola, tornam-se gêneros escolarizados, com isso, a produção torna-se, forçosamente, uma situação de emprego artificial da língua, e o texto que foi elaborado, geralmente, terá o professor como único leitor, via de regra, com um único objetivo: corrigir, controlar a escrita, verificar os erros. Entretanto, como já mencionamos, a prática de produção de textos na escola vem ganhando novo fôlego e mudanças vêm ocorrendo, como verificaremos na seção 3 A partir dessa nova perspectiva, não só de ensino da língua materna, mas, sobretudo, da produção de texto, em sala de aula, quando o professor trabalha com os gêneros textuais, amplia o horizonte dos educandos que terão a opção de escolher o gênero que mais se adequa ao fim desejado à situação comunicativa que vivenciarem. Além disso, o professor pode colocar os alunos em um embate discursivo em que suas opiniões, sobre os mais diversos temas, poderão ser expressas. Os conflitos que surgirão são salutares para a compreensão da dinâmica da amplitude do discurso que dá poder, causa injustiça, dá vida, mas também mata ao calar aquele que não consegue desenvolver o seu discurso. Dentro de uma dada situação lingüística o falante/ouvinte produz uma estrutura comunicativa que se configurará em formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado, pois são formas marcadas a partir de contextos sociais e históricos. Em outras palavras, tais formas estão sujeitas a alterações em sua estrutura, dependendo do contexto de produção e dos falantes/ouvintes que produzem, os quais atribuem sentidos a determinado discurso (BAKHTIN, 1953 apud CARVALHO, 2002).

Isto porque, ao se produzir um texto, alguns conhecimentos são necessários e devem ser mobilizados, independentemente se o texto é oral ou escrito. Assim, na produção de textos, é preciso que se leve em conta o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional (BAKHTIN, 2000), além da finalidade, do suporte, do destinatário e das condições de produção. Dentro da discussão sobre gêneros discursivos, não podemos esquecer, ainda, que o interlocutor quando recebe e compreende a significação de um discurso adota, simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva. Tal atitude do ouvinte está em elaboração constante, durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início

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do discurso, às vezes, já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. Diante disso, afirmamos que toda compreensão de um enunciado é prenhe de resposta. Logo, cedo ou tarde, o que foi ouvido ou compreendido terá eco em discursos outros. Daí a necessidade de a produção de texto realizada na escola não se encerrar nela mesma. Para tanto, o professor há de encontrar maneiras para que o texto do aluno não tenha seu sentido esvaziado, por não circular socialmente, podendo, então, trabalhar a partir de sequências didáticas. Embora a atividade propiciada pela sequência didática possa não ser real, justamente por ser ensinada na escola, a situação didática favorece a mobilização de elementos e de operações da linguagem necessários ao desenvolvimento das capacidades de linguagem, a partir da qual os aprendentes poderiam ampliar sua capacidade de se expressar nas duas modalidades da língua, desde os anos iniciais de escolarização. Conforme Dolz e Schnewly (2005, p.80), Toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagem, que são sempre de dois tipos: trata-se de aprender a dominar o gênero, primeiramente para melhor conhecê-lo ou apreciá-lo, para melhor compreendê-lo, para melhor produzi-lo na escola ou fora dela; e, em segundo lugar, de desenvolver capacidades que ultrapassam o gênero e que são transferíveis para outros gêneros próximos ou distantes.

Assim, cabe ao docente favorecer esse aprendizado ao aluno, considerando, no planejamento de suas aulas, que a escolha dos gêneros deve ser feita de acordo com a situação de comunicação, com as capacidades de linguagem apresentadas pelos alunos (DOLZ e SCHNEUWLY, 2005). Os autores, partindo do pressuposto de que o gênero é um instrumento para agir em situações de linguagem, explicitam, ainda, que o trabalho escolar [...] faz-se sobre os gêneros, quer se queira ou não. Eles constituem o instrumento de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho, necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade. A análise de suas características fornece uma primeira base de modelização instrumental para organizar as atividades de ensino que estes objetos de aprendizagem requerem (DOLZ e SCHNEUWLY, 2005, p. 51).

Nesse sentido, o trabalho com gêneros textuais por meio de sequências didáticas é de suma importância para que o educando crie uma base de orientação, a qual, segundo Schneuwly (1988), é o guia para as escolhas textuais e que tal base de orientação, ou seja, as representações sobre a situação de interação (o lugar social – modo de interação que o texto é produzido; a posição social do emissor – o papel social que o emissor desempenha na interação em curso; a posição social do receptor – o papel social atribuído ao receptor do texto; e o objetivo da interação) é construída durante todos os momentos de escrita. Portanto, à medida que esta base de orientação vai sendo modificada, o texto vai sofrendo alterações. Logo, a base de orientação encaminha o escritor para a tomada de uma série de decisões, tais como a escolha do gênero e dos recursos linguísticos que serão utilizados na interação. É nesse sentido que, ao se ter criada uma base de orientação, Leal (2003b, p. 2) destaca que “(...) o agente representa a situação em que o texto emerge, procurando delimitar o objetivo a que se propõe, antecipar as reações dos leitores que pretende atingir e atender às restrições impostas pelas condições concretas de produção (tempo, suporte textual, práticas culturais)”. Portanto, se quisermos um ensino de produção de textos por meio de uma sequência didática, ao planejá-la, além de centrarmos sua elaboração em gêneros que o aluno não domina ou não domina suficientemente e com os quais ele tem pouca familiaridade (DOLZ e SCHNEUWLY, 2005), temos que pensar na sua efetividade, perguntando-nos, conforme explicitam Morais e Ferreira (2007), se ela propicia ao aprendiz ter clareza sobre: qual é a finalidade do texto a ser escrito; o que se deseja comunicar e qual o gênero textual

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adequado para fazê-lo; quem é o leitor-destinatário e quais são as características dele que precisamos levar em conta como escritores; que “tom” (registro mais ou menos formal) vai-se poder usar na hora de escrever; em que espaço de circulação o texto produzido será lido; qual suporte será adequado para divulgarmos o texto naquele espaço. Além disso, por ser a produção de texto uma atividade complexa, ao se planejar a sequência didática para o trabalho com algum gênero textual, devemos nos perguntar ainda se os passos considerados na sequência auxiliarão o discente a: • conhecer o gênero em questão, lendo bons textos que servem como modelo para refletir sobre suas características; • viver uma elaboração do tema a ser escrito, antes de começar a escrever, refletir sobre as idéias/ informações que vai querer expressar; • antecipar como vai organizar as idéias/ informações no texto, de modo a dar conta das propriedades do gênero; • revisar a versão inicial do que conseguiu produzir, buscando melhorá-la do ponto de vista da textualidade e da convencionalidade da escrita (obediência à ortografia), a emprego da norma prestigiada, de modo a alcançar, de modo mais eficaz, o objetivo junto ao destinatário-leitor (MORAIS e FERREIRA, 2007, p.74).

Diante do que vimos, é interessante percebermos que o trabalho com gêneros textuais a partir de sequências didáticas projeta uma possibilidade de o aluno tornar-se um escritor proficiente, ainda que frente a simulações de situações comunicativas reais, já que a atividade de produção de texto é uma atividade escolar, mas seria muito válido que essas produções, verdadeiramente, projetassem situações de comunicação significativas para o aluno, ou como afirmam Melo e Silva (2007, p. 96) “É importante que as atividades de produção de textos solicitem ainda o atendimento a situações de interação comunicativas não apenas escolares, mas também daquelas que ultrapassam esse domínio e se estendem às práticas de linguagem reais”. Assim, ao se deparar, na vida cotidiana, com situações semelhantes às que experienciou na projeção escolar, o aluno saberá de qual melhor gênero textual se valer, considerando todos os elementos que lhe são peculiares. 3 COMO A PRÁTICA ABSORVE A TEORIA Durante três semanas de trabalho entre os meses de novembro e dezembro, Rosa26, professora do 2ºano de uma escola da Rede Municipal de Ensino de Recife/PE, trabalhou com seus alunos o gênero textual carta. Para isso, ela elaborou uma sequência didática com os seguintes passos: • mobilização de conhecimentos prévios sobre o gênero carta; • diferenciação de gêneros semelhantes ou próximos; • análise das principais características do gênero no que diz respeito ao conteúdo temático, forma composicional e estilo; • consideração das condições de produção específicas do texto a ser produzido no gênero carta; • alimentação temática e orientações para os alunos buscarem informações novas em diferentes materiais e suportes; • planejamento global do texto; • reflexão sobre as estratégias e recursos linguísticos relevantes para a escritura do gênero carta; • atividades de avaliação, revisão e reformulação. Evidentemente, a professora intermediou todo o processo de aprendizagem dos alunos, sempre os motivando a participarem. 26

Para preservar a imagem da professora, adotamos um nome fictício nessa pesquisa.

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A primeira carta foi escrita coletivamente e surgiu de uma necessidade dos alunos quando realizavam uma atividade sobre a história em quadrinhos “Branca de bolo”, na qual Cascão corria perigo. Diante do perigo eminente que a personagem corria e a insatisfação das crianças com o provável desfecho que teria, aos alunos foi sugerido que escrevessem para Cascão, comunicando-o do perigo que corria. Para isso, foi-lhes questionado de qual maneira conseguiriam avisá-lo e, prontamente, as crianças se manifestaram falando que fariam isso por meio de carta. Nesse momento, foi dado início ao estudo do gênero textual “carta pessoal”. Para tanto, os alunos foram levados a refletir sobre quem era Cascão e entenderam que se tratava de uma personagem da Turma da Mônica. Em seguida, juntamente com a professora, decidiram escrever a carta para Maurício de Sousa e este, por ser o criador da personagem, deveria entregar a carta para Cascão. A carta foi escrita com a participação de todos; as crianças construíram o texto, leram e realizaram algumas modificações, com a ajuda da docente. A professora foi a escriba e constantemente propunha desafios durante o processo de escrita. Ao observar o resultado da produção coletiva, retratada abaixo, e a ânsia dos alunos em avisarem ao Cascão que ele estava em perigo, a docente percebeu que a carta não poderia se encerrar ali e resolveu enviá-la, de fato, ao Maurício de Sousa, com total apoio das crianças que assinaram, uma a uma, a carta. Tal atitude foi tomada porque a professora queria mostrar qual a finalidade de uma carta, tentou dar um destino a ela, fazê-la circular socialmente, ainda que não obtivesse uma resposta. Texto 1: Texto coletivo produzido por alunos do 2º ano da Escola Municipal Maurício de Nassau Recife, 22 de julho de 2012 Olá Maurício de Sousa, Tudo bom? Gostaríamos de falar com você. Nós lemos a história de Branca de Bolo e sabemos que tem uma bruxa má atrás de Cascão. Por isso fizemos uma carta para Cascão. Mas, precisamos de você para entregar essa carta. Por favor, você podia nos ajudar? Gostamos muito de suas histórias e temos uma caixa de gibis. Mas, precisamos de novas aventuras para nossa turma. Contamos com você! Abraços da turma do 2º Ano A, da Escola Maurício de Nassau.

Dias após o envio, chega um envelope à escola contendo uma carta endereçada a cada um dos alunos da turma, uma carta-padrão enviada pela equipe de Maurício de Sousa Produções, mas que deixou a turma em polvorosa e ainda mais motivada para a atividade de escrita. Depreendemos da produção acima, que a carta atendeu não só a finalidade para qual se destinava, mas também priorizou a escolha de recursos linguísticos adequados ao interlocutor e ao gênero em questão. Dessa forma, a docente ao ressaltar para os alunos que a carta seria enviada pelos Correios a Maurício de Sousa, estimulou-os a assumirem uma postura engajada, a qual resultou na tomada decisões durante o processo de produção. Dando prosseguimento à sequência didática, as crianças continuaram escrevendo cartas, mas individualmente. Elas tiveram a missão de escrever uma carta para o Papai Noel. A ideia da professora também era fazer circular a carta, de modo que os alunos tivessem uma resposta do “bom velhinho”. Para isso, ela orientou os alunos não só quanto ao conteúdo temático e à estrutura composicional da carta, mas, sobretudo, quanto à finalidade, ao locutor e ao interlocutor da carta, elementos essenciais para efetivação da comunicação. Também orientou os alunos quanto ao processo de revisão de texto. Mesmo os alunos sendo crianças na faixa etária dos 6 aos 8 anos, eles tentaram, na medida do possível, levar a cabo as orientações da professora para garantir a comunicação, como se observa no exemplo a seguir, o qual ilustra uma situação de comunicação: carta do aluno enviada ao Papai Noel e Papai Noel respondendo à carta do aluno.

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Texto 2: Carta do Aluno Recife, 6 de dezembro de 2012 PaPai noel Pofavor o Senhor PoDe me dar um PreSente muito bom PaPai noel o PreSente que eu PeDi e um Play Dois e os CD Para eu jogar Pofavor o Senhor PoDe fazer iSSo Pormim Porque iSSo e o que mais que eu Peferi muito muito eu Prefiro mais Do que outro PreSente (Vini)

Texto 3: Reescrita da carta do aluno Recife, 6 de dezembro de 2012 Papai Noel por favor o senhor Pode me dar um presente muito bom? Papai Noel o presente que eu pedi E um Play dois e os CD para eu jogar. Por favor o senhor pode fazer isso por mim Porque isso e o que eu prefiro mais do que outro presente. Abraço, (Vini). Finlândia, 18 de dezembro de 2012

Texto 4:Resposta à carta do aluno Querido Vini, Estou muito feliz por ter recebido a tua cartinha e por saber que acreditas na magia do Natal. Este ano recebemos muitos pedidos e não estamos dando conta da demanda, pois sempre nos baseamos no Natal do ano que passou para nos programarmos para o próximo Natal, mas acho que erramos na estimativa e o número de pedidos foi superior ao esperado. Minha criança, não fique triste, pois sempre damos um jeito de atendermos a todos, mesmo que não ganhes o que pediu, meus ajudantes escolherão um presente bem bacana para eu te mandar. Não desanime, quem sabe no Natal do ano que vem tu não ganhas o que queres. Tenha juntamente com toda tua família um FELIZ E ILUMINADO NATAL! HOU, HOU, HOU!!! Papai Noel.

Na sequência didática elaborada pela professora, houve o planejamento da circulação da carta escrita pelas crianças. Para que o texto escrito cumprisse com sua finalidade, a professora distribuiu as cartas de seus alunos entre alguns amigos que tiveram a incumbência de responder à cartinha que receberam. Assim, além de presentinhos, cada aluno recebeu uma carta “enviada” por Papai Noel. A entrega da carta do “bom velhinho” a cada um dos alunos fechou a sequência didática planejada pela professora e os alunos ficaram encantados por terem recebido uma carta de Papai Noel, e uma carta individualizada, considerando o que cada uma escreveu. Ao fim da sequência, percebemos que os aprendizes conseguiram captar qual a finalidade de uma carta, levando em consideração seu destinatário e a temática nela abordada. Também constatamos que os elementos de sua construção composicional como: Local e data; cumprimento; assunto; assinatura e distribuição do texto no papel foi apreendido pelas crianças. Todas explicitaram esses elementos nas cartas que escreveram. Isso foi possível, em parte, pela exposição e contato que tiveram com alguns modelos de carta e também pela

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mediação da professora que, na sequência didática, teve o cuidado de planejar situações em que as crianças tivessem que refletir sobre as condições de produção do gênero carta. 4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Como mencionamos, este artigo surgiu da necessidade de verificarmos de que maneira as atividades com gêneros textuais auxiliam na construção de uma base de orientação para a efetiva elaboração de um texto em dado gênero. Para tanto, buscamos fundamentar nosso estudo nas questões do gênero, da sequência de didática e da construção de uma base de orientação, defendendo, portanto, um trabalho com gêneros a partir de sequências didáticas que propiciem um contato com situações contextualizadas e que possam representar diferentes esferas de interação social. Assim, na trajetória aqui mostrada, tentamos explicitar, ainda, que, se quisermos formar alunos-escritores, devemos trabalhar com diferentes gêneros textuais, planejando e organizando o ensino na perspectiva de assegurar, de fato, a diversificação de tipos textuais e de práticas de uso da linguagem, pois acreditamos que o aluno é capaz, em qualquer idade, de produzir bons textos, desde que lhe seja propiciado o contato com modelos distintos de textos. Aqui, a máxima de que aprendemos a escrever escrevendo e lendo textos variados se faz verdadeira, já que partilhamos da ideia de que por meio da leitura de textos diversos podemos construir uma bagagem não só de conhecimentos temáticos, mas também de relativos às características dos vários gêneros textuais. Ao que aqui fazemos alusão, tornou-se claro na prática da professora Priscila Santos, que pauta o ensino de textos em sequências didáticas, fio condutor de seu trabalho. A professora acredita que ao trabalhar com sequências didáticas favorece o aprendizado do gênero, pois, à medida que a cada sequência trabalha com um gênero diferente, o aluno vai, paulatinamente, construindo uma base de orientação, ou seja, a cada nova sequência a criança vai tomando consciência de que, para produzir um texto, é preciso considerar o que escreve, quem escreve, para quem escreve e para que escreve, assim como em que suporte o enunciado circulará e como circulará. Todavia, admitimos que o trabalho com gêneros por meio de sequências didáticas não é algo simples, mas também não é impossível. Portanto, o professor que queira enveredar o ensino de textos a partir de sequências didáticas, a fim de proporcionar ao educando a construção de uma base de orientação e, consequentemente, a possibilidade de se tornar um escritor proficiente, enfrentará, conforme enfatizam Brandão e Leal (2007, p. 62), pelo menos, dois grandes desafios: o de “proporcionar, a cada ano escolar, situações de escrita de gêneros pertencentes aos cinco agrupamentos de textos” propostos por Dolz e Schnewly (2005), a saber: textos da ordem do narrar, do relatar, do argumentar, do expor e do descrever, “levando-se em conta os objetivos didáticos e expectativas em relação à produção de textos para um dado grupo de alunos”; e o de “indicar que aspectos relativos a um mesmo gênero textual poderiam ser priorizados em diferentes níveis de ensino e como tais aspectos poderiam ir sendo aprofundados ao longo dos anos escolares”. Enfim, o desafio está lançado, as possibilidades existem e são desafiadoras, porém promissoras. Basta nos permitirmos mudar, encorajando-nos e encorajando os alunos também a entrarem no mundo dos textos, de forma que todos serão beneficiados. Nós, professores, com o vislumbre de um ensino melhor e os aprendizes com a perspectiva de uma aprendizagem de qualidade e efetiva para a escola e, principalmente, para além dela. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Michael. Estética da Criação Verbal. 3ª ed. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997 CARVALHO, Maria Angélica Freire de. Os gêneros do discurso e o texto escrito na sala de aula: uma contribuição ao ensino. Rio de Janeiro: UERJ, 2002 DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2005 GERALDI, Wanderley (org.) O texto na sala de aula. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2002 (Coleção Na sala de aula). KOCH, Ingedore G. Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 2ª ed. São Paulo: Contexto,1998 LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. É possível ensinar a produzir textos! Os objetivos didáticos e a questão da progressão escolar no ensino da escrita. In: LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. 1ª ed., 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 45-63 LEAL, Telma Ferraz. Condições de produção de textos no ensino de jovens e adultos. Anais da 26ª Reunião Anuala da ANPEd, Caxambu, 2003b. MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Os Estudos sobre o ensino de português. In: Estudo da língua falada e aula de língua materna: uma abordagem processual da interação professor/alunos. Campinas: Mercado de Letras, 2001, p. 23-42 MELO, Kátia Leal Reis de; SILVA, Alexsandro da. Planejando o ensino de produção de textos escritos na escola. In: LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. 1ª ed., 1ªreimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 81-98 MORAIS, Artur Gomes de; FERREIRA, Andréa Tereza Brito. Avaliação do texto escrito: uma questão de concepção de ensino e aprendizagem. In: LEAL, Telma Ferraz; BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi. (Orgs.). Produção de textos na escola: reflexões e práticas no Ensino Fundamental. 1ª ed., 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 65-80. SCHNEUWLY, B. Le Language Ecrit chez l`Enfant: La producion dês textest informatifis et argumentatifs. Neucâtel: Delachax & Niestlé, 1988

LETRAMENTO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS LUCILEI MARTINS DE OLIVEIRA RODRIGO MILHOMEM DE MOURA Universidade do Estado do Pará (UEPA) Resumo: O trabalho com a Educação de Jovens e Adultos deve ser (re) pensado e planejado para que os discentes não saiam prejudicados e não evadam à escola/aula, para tanto, seu

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contexto como diz Paulo Freire, deve ser levado em consideração, isto é, partindo da realidade deles. Um tema interessante e que gera grande dúvida, é de como procede o letramento com essa modalidade. Por sua vez e por mais que já se tenha discutido acerca dele, ainda continua em pauta, e tem mobilizado pesquisadores da Educação a refletir sobre o tal assunto. Ângela Kleimem e Magda Soares são grandes nomes que pesquisam e escrevem sobre o referido tema. Dessa forma, este trabalho objetiva fazer um breve aparato sobre o letramento, ou seja, como surgiu, explicitando sua relação com a alfabetização de jovens e adultos (EJA), embasado nas teorias supracitadas, de Paulo Freire (2003;); Gadotti e Romão (2011). Partindo desse pressuposto, pode-se dizer que toda a abordagem temática que será discutida, poderá auxiliar professores a refletirem sobre sua prática e realmente se perguntarem se estão inserindo as práticas de letramento no seu trabalho ou não, e como deve proceder essa inserção. Em suma, quando há professores que compreendem sobre o assunto e tenta conciliar isso a vivência do estudante, muitos paradigmas em relação a aprendizagem são quebrados. Palavras-chave: Letramento. Educação de Jovens e Adultos. Vivência do Estudante. A trajetória da EJA no ensino brasileiro A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade educativa que surgiu em conjunto com a educação popular (PAIVA, 1987). Esta aos poucos foi conquistando seu espaço no cenário educacional brasileiro a partir da difusão de seus pressupostos teóricos e pedagógicos. No entanto, para que este fim se concretizasse, foram travadas inúmeras discussões e lutas de uma classe que desde muito tempo se viu excluída da instrução básica. A Educação de Jovens e Adultos começou a ter destaque no cenário educacional do Brasil por volta da década de 1930, quando começou a se consolidar um sistema público elementar de ensino no país. Foi somente na década de 1940 que a EJA veio definitivamente a compor a história da educação brasileira por meio da extensão do sistema elementar aos adultos e da criação de novas diretrizes educacionais pelo governo da época. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e da Ditadura de Vargas em 1945, a Educação de Jovens e Adultos tomou novos rumos no país. Com o objetivo de eliminar o analfabetismo o governo federal lançou uma Campanha Nacional de Educação de Adultos. O adulto que era analfabeto era considerado nesta campanha como uma pessoa incapaz, marginal e vista como uma criança alienada. No entanto, durante a referida campanha, essas visões preconceituosas referentes ao analfabetismo foram criticadas, e aos poucos, os adultos analfabetos começaram a ser vistos com outra visão, como uma pessoa capaz, eficaz, produtiva, mesmo sem saber ler e escrever. A respectiva campanha se iniciou em 1947 e teve alguns resultados significativos, entretanto as iniciativas que estavam voltadas para a zona rural, não obtiveram o mesmo sucesso, e esta foi extinta no final da referida década (JESUS; REIS, 2010). Durante as décadas de 1940 até o final da de 1950 foram criadas algumas campanhas voltadas para a EJA, entre estas se destaca a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) no ano de 1947; a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) em 1952 e a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA) no ano de 1958 No entanto, as mesmas não tiveram os resultados esperados e acabaram fracassando, surgindo assim a partir da década de 1960 as concepções de Paulo Freire, que inspiraram os principais programas de alfabetização e educação do Brasil. Azevedo (2005, p. 05) enfatiza a contribuição de Paulo Freire, afirmando que: Na década de 60, surge à nova perspectiva do ensino para jovens e adultos, através do círculo da cultura pelo célebre Paulo Freire, que expandiu a oportunidade em alguns municípios, instruindo os trabalhadores através de suas teorias liberais libertadoras, abrindo novos horizontes à sabedoria da consciência política e

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revolucionária que partia do seu método do contexto sócio-cultural e histórico das pessoas.

A partir das concepções de Freire foram implementadas políticas públicas para a EJA com a criação de programas educacionais que partia da realidade do aluno no sentindo de entender a forma que o mesmo estava inserido na sociedade. Esse fato estimulou o surgimento de novos movimentos educacionais voltados para a EJA. Ressalta-se que apesar do sucesso e aceitação dos movimentos sociais os programas se desenvolveram em curto período devido às intensas perseguições sofridas. A ditadura militar perseguiu duramente o pedagogo que teve que se exilar na Argentina, bem como extinguiu os programas de alfabetização através do método revolucionário. Para substituir as metodologias de Paulo Freire foi criado em 1967, o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) que possuía uma concepção completamente inversa as teorias liberais e libertadoras. O MOBRAL privilegiava apenas a decodificação de letras e números, que não levavam os educandos a reflexão e nem ao desenvolvimento do senso crí9tico. Este movimento tinha como objetivo a alfabetização de grandes parcelas da população adulta, sem nenhum contexto político, nas diversas regiões do país. O referido programa teve uma duração de 18 anos, e em 1985 foi extinto sem cumprir a meta de erradicação do analfabetismo no Brasil. Com o fim do MOBRAL, outros programas governamentais relacionados à alfabetização de adultos foram surgindo, entre eles a Fundação Educar que se responsabilizou pelos programas desenvolvidos pelo antigo Mobral e tinha como principal objetivo acabar com o analfabetismo em 10 anos. A mesma foi abolida em 1990 pelo governo de Fernando Collor de Mello e neste mesmo ano o MEC criou o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC). No fim do século XX e início do século XXI o Governo Federal desenvolveu algumas ações voltadas para a EJA, entre elas se destacam a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos em 2000 e o Programa Brasil Alfabetizado em 2003 que tinha como principal objetivo abolir o analfabetismo no país. A esse respeito Jesus e Reis (2010, p. 20) mencionam que: “[...] esses projetos e essas propostas, longe de produzirem o fim do analfabetismo de forma massiva, constituíram-se mais uma tentativa de implantar uma mudança conceitual na forma de interagir com os jovens e adultos do que alfabetizar”. Sobre o Programa Brasil Alfabetizado de acordo com dados do MEC este programa no ano de 2005 atendeu mais de 1,1 milhão discentes diretamente e 713 através de ONGs (SZANTO, 2006). Porém, de acordo com a referida autora ainda não foi encontrada nenhuma avaliação oficial sobre os resultados obtidos, sendo encontradas apenas questões referentes ao número de alunos atendidos, verba repassada, números de parceiros e outros. A partir do exposto, observa-se que a EJA passou ao longo dos anos por profundas transformações educacionais, visando uma melhoria na qualidade de ensino das pessoas que não tiveram uma educação no tempo adequado. No entanto, apesar de todas as mudanças ocorridas, poucas coisas mudaram realmente, sendo que atualmente ainda predomina um modelo de ensino tradicional, que exclui e que favorece a evasão escolar, que é entendida como o abandono do aluno com frequência escolar ou desistência do mesmo em prosseguir seus estudos. CONCEITUANDO LETRAMENTO O letramento é segundo Soares (1999) uma palavra considerada contemporânea, surgida a partir dos anos 80, apresentava-se como principal objetivo disponibilizar uma nomenclatura para um fenômeno novo que havia surgido, ou que simplesmente ainda não tinha um nome, por isso, tido como novo.

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O termo letramento tem sua origem na palavra inglesa literacy, Soares (1999), faz toda uma explicação morfológica acerca do assunto, explicitando a questão de criação da referida palavra. Literacy significa: the condition of being literate (a condição de ser letrado), no entanto, ainda segundo a autora, letrado assume uma postura diferente da qual tem no português, apresentando o significado de quem domina a leitura e a escrita. Afirma Soares (1999, p.3) que: Literate é, pois, o adjetivo que caracteriza a pessoa que domina a leitura e a escrita, e literacy designa o estado ou condição daquele que é literate, daquele que não só sabe ler e escrever, mas também faz uso competente e freqüente da leitura e da escrita.

Por esse motivo, pode-se inferir sem receios que existe distinções entre alfabetização e letramento, pois o literate faz completa alusão a alfabetização, quem domina o ato de ler e escrever e o literacy ao letramento, profundidade de uso dessas habilidades no convívio sociocultural. Maiores detalhes serão explicados no tópico a seguir letramento ou alfabetização. LETRAMENTO OU ALFABETIZAÇÃO Existe uma certa confusão entre o sentido de letramento e alfabetização, pois muitos acreditam que esses dois fenômenos compõem a mesma área, e que o letramento é uma continuação da alfabetização. Portanto, segundo Soares (2004), torna-se conveniente ressaltar que esses processos são interdependentes e indissociáveis, pois não podem ser trabalhados isolados. Por essa razão, mesmo sendo dependentes entre si e não podendo haver a separação de ambos, torna-se de fundamental importância apresentar as diferenças entre eles, afirma Soares (1999, p.3) que: Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, ser alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe ler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o sentido que tem literate em inglês). Ou seja: a pessoa que aprende a ler e a escrever - que se torna alfabetizada - e que passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita - que se torna letrada - é diferente de uma pessoa que ou não sabe ler e escrever - é analfabeta - ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da leitura e da escrita - é alfabetizada, mas não é letrada, não vive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever e pratica a leitura e a escrita.

Dessa forma, percebe-se que esses dois fenômenos apresentam características relevantes e que cada um tem seu papel, a alfabetização ficando responsável por ensinar os indivíduos a ler e escrever, enquanto que de uma maneira mais profunda, o letramento vai ajudá-los a usarem essas habilidades no seu contexto diário. A alfabetização, então, segundo Kleiman (2007) é basicamente difundida na escola, onde o aluno terá que dominar as referidas habilidades para aquele dado contexto, ler e escrever bem, é o que importa. Enquanto que o letramento acontecerá de uma forma mais complexa, o uso dessas competências na vivência social, apresentado entendimento para os diversos contextos, não só da decodificação de letras e símbolos, mas o que cada um representa e apresenta na realidade, no convívio com os outros. LETRAMENTO E EJA O letramento com a Educação de Jovens e Adultos (EJA) necessita ser repensado urgentemente, para que os alunos não sejam prejudicados em relação as suas vivências diárias e em suas práticas sociais. Pois, a EJA é direcionada para as pessoas que não tiveram

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oportunidades de estudar no tempo tido como regular, então mais tarde com a constante evolução e avanços tecnológicos veem o quanto faz falta a habilidade com a leitura e a escrita. Se formos analisar o contexto da EJA embasados no estudo do letramento, pode-se inferir que a volta aos estudos desses discentes, é um reflexo dessa prática, pois como vimos anteriormente, é necessário ser alfabetizado (dominar a leitura e a escrita) para compreender tal fenômeno e assim continuar a desenvolver com facilidade as atividades básicas do dia a dia. De acordo com Marcuschi (2005, p.16): O letramento (literacy), enquanto prática social formalmente ligada ao uso da escrita, tem uma história rica e multifacetada e (...) numa sociedade como a nossa, a escrita, enquanto manifestação formal dos diversos tipos de letramento, é mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social indispensável para enfretar o dia a dia, seja nos centros urbanos ou zona rural. Neste sentido, pode ser vista como essencial à própria sobrevivência no mundo moderno (...).

Pode-se inferir que os alunos de EJA necessitam desse domínio, pois as tarefas diárias tornam-se cada vez mais complexas e dificultosas, então regressam a escola, para tentar se adequar as novas demandas do século. No entanto, nesse processo eles ganham mais do que a inclusão, isto é, os prestígios que uma pessoa recebe por dominar as habilidades da leitura e da escrita e as colocar em prática. Soares (1999,4) refere-se a isso da seguinte maneira: (...) a hipótese é que aprender a ler e a escrever e, além disso, fazer uso da leitura e da escrita transformam o indivíduo, levam o indivíduo a um outro estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre outros.

Gradativamente o aluno de EJA vai sendo moldado para as implicações do novo século, superando grandes paradigmas e obstáculos e conseguindo dominar o letramento, dessa forma, vai se tornando cada vez mais fácil a interação com os outros indivíduos e desempenhando também o papel político na sociedade. O PAPEL PROFESSOR É sabido que o educador assume proporções muito grandes no que diz respeito ao ensino, pois é ele o mediador entre conhecimento e aluno, na EJA torna-se ainda mais complexa essa mediação, pois os alunos na maioria das vezes vêm de cargas exaustivas de trabalho, deixam filhos com parentes, levam filhos para a escola, dentre vários outros fatores. Mas, antes de falar sobre o profissional da EJA, é de fundamental importância relatar os compromissos do docente independentemente da série e expor também, a fundamentação de uma boa relação professor/aluno na construção do saber, aliada a uma boa metodologia para se ter um melhor resultado na assimilação dos conhecimentos, habilidades, hábitos e competências. De acordo com os autores estudados o papel do profissional, não se restringe somente ao bom relacionamento dentro da sala de aula, bem como envolve vários aspectos relevantes à aprendizagem, pois, o educador é parte fundamental do conhecimento do aluno. Ressalva-se que, este deve sempre utilizar-se de metodologias que melhor se adequem aos discentes. Assim, propiciará leques que envolvam uma boa interação em sala de aula, conduzindo os educandos a um novo caminho educacional, preparando desta forma o indivíduo para o mercado de trabalho e, sobretudo para viver melhor em sociedade. O docente da EJA também deve ter um cuidado maior ao expor as informações em sala de aula, informações estas, que às vezes acabam causando aos discentes obstáculos e bloqueios, tirando o próprio poder de decisão e criação dos mesmos, dificultando desta forma o processo de aprendizagem.

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O papel do professor se define na transmissão dos conhecimentos e de conteúdos predestinados as leis da escola, como também exerce o papel de “mediador e incentivador” de cada aluno, necessitando manter-se sempre motivado na construção do conhecimento repasse deste, sabendo reconhecer que o bom relacionamento é tão necessário como os bons métodos. Santos (2009) relata que para trabalhar na EJA é necessário que o educador esteja preparado e capacitado. Para trabalhar com a EJA é necessário saber o que ensinar e o porquê, considerar primeiramente os saberes que estes educandos já têm, fazendo-os perceber que como sujeitos históricos, têm direitos e também deveres [...] O educador que trabalhar com EJA deve ser comprometido com o trabalho que realiza, reconhecendo e valorizando nos seus alunos, a sua cultura, a partir de suas histórias de vida, das suas experiências, sonhos, desejos e aspirações (SANTOS, 2009, p.16).

De acordo com o autor, o profissional da EJA deve estar capacitado para trabalhar com este público, onde o mesmo deve levar em consideração as diferenças, conhecimentos dos alunos para que se desenvolva uma educação com qualidade e, por conseguinte leve o educando a desenvolver o seu censo crítico. Complementa-se a fala mencionando que muitos educadores que trabalham neste campo educativo utilizam uma metodologia ultrapassada, que visa apenas à decodificação das letras e números e não contempla a realidade dos alunos conforme foi relatado anteriormente no transcorrer do trabalho. Tendo como referência os autores supracitados, se o profissional da EJA fosse do próprio meio e se repensasse os métodos didáticos utilizados segundo o cotidiano do aluno, seria mais fácil funcionar a educação de jovens e adultos. Outro fator a ser levado em conta é a faixa etária destes indivíduos, que em grande maioria são advindos das camadas periféricas e grupos sociais de baixo poder aquisitivo, tais como portadores de necessidades especiais, mães solteiras e etc. Enfim, são vários os excluídos e muitos são os portadores de conhecimentos diferenciados. Nas últimas décadas, a questão da profissionalização do educador de adultos tem-se tornado cada vez mais nuclear nas práticas educativas e nas discussões teóricas da área. Aos poucos a própria legislação incorporou a necessidade da formação especifica desse educador. A LDB 5692/71, por exemplo, que atribuiu um capítulo ao ensino supletivo, explicitou em um artigo a necessidade de preparação do professor tendo em vista as especificidades de se trabalhar com adultos. A mais recente LDB, Lei 9394/96, estabelece a necessidade de uma formação adequada para se trabalhar com o jovem e o adulto (SOARES, 2005, p. 129; 130).

Assim sendo, Soares (2005) destaca que antes de tudo para que a EJA funcione efetivamente é necessária uma qualificação melhor por parte dos docentes, para que possam respeitar os diferentes grupos sociais e seus múltiplos saberes reconhecendo também suas diferenças e semelhanças e, sobretudo o conhecimento prévio do aluno. Dessa forma o profissional da EJA deveria trabalhar neste patamar de ideias, ter conhecimento de tudo isso e saber o que ensinar e o porquê, pois o fator aprendizagem depende muito do educador. O professor antes de tudo deve respeitar as diversidades presentes na sala de aula para que ocorra um ensino adequado e significativo para os diferentes níveis de aluno que compõem a EJA, bem como devem estar aptos para lidarem com as diferenças pessoais, individuais e coletivas de cada discente. Para Soares (2005) o educador deve partir desta reflexão acerca de que são seus alunos, cada um possui uma visão de mundo diferenciada e que nos levam a atuação nesta área e acima de tudo reconhecer a importância da tarefa que é educar. A respeito disso o referido autor salienta:

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Conhecendo as condições de vida do analfabeto, sejam elas as condições objetivas como o salário, o emprego, a moradia, sejam as condições subjetivas, como a história de cada grupo, suas lutas, organização conhecimento, habilidades, enfim sua cultura. Mas, conhecendo-as na convivência com ele e não apenas “teoricamente”. Não pode ser um conhecimento apenas intelectual, formal. O sucesso de um programa de educação de jovens e adultos é facilitado quando o educador é do próprio meio (SOARES, 2005, p. 32, grifo do autor).

Segundo destaca o autor os profissionais desta área devem desenvolver práticas coerentes, com verdadeiras características de um educador da EJA, com metodologias que reconheçam os saberes e a história de cada aluno. Propiciando um ambiente investigativo, mas, sobretudo dinâmico. Enfim, promovendo uma formação tanto individual quanto coletiva. CONCLUSÃO No que diz respeito ao ensino do letramento ou uso das habilidades ler e escrever no cotidiano, isto é, aplicando aos contextos onde os indivíduos estão inseridos, toda a perspectiva de ensino muda, segundo Kleiman (2007,p.6), o professor obtêm "uma grande vantagem do enfoque socialmente contextualizado" pois "a autonomia que ele ganha no planejamento das unidades de ensino e na escolha de materiais didáticos" Idem (2007,p.6). Diante disso, o professor deve não só ensiná-los a ler e escrever, mas mostrar a eles que essas práticas sociais estão presentes no seu convívio diário, e que influencia diretamente no desenrolar das atividades simples do cotidiano. Seguindo esse pressuposto o profissional deve trabalhar respaldado nas dificuldades, demandas e necessidade de seus alunos, para que realmente surta o efeito desejado que é da aprendizagem da leitura e da escrita, e mais além ainda do aperfeiçoamento dessas práticas nas vivências diárias. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Francisca Vera Martins de. Causas e consequências da evasão escolar no ensino de jovens e adultos na Escola Municipal “Espedito Alves”. – Angicos/ RN. 2005 Disponível em: < http:// ebserver.falnatal.com.br/revista_nova/a4_v2/artigo_13pdf>. Acesso em 18 nov.2010. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (orgs). Educação de jovens e adultos: teoria, prática e proposta. 6 ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2003 Guia da escola cidadã; v. 5 JESUS, R. S; REIS, S. A. P. A Educação de Jovens e Adultos: uma análise dos processos de ensino-aprendizagem utilizadas nas turmas de 1º e 2º etapas das escolas municipais urbanas de Conceição do Araguaia – PA. 2010. 50 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia) – Universidade do Estado do Pará, Conceição do Araguaia, 2010. KLEIMAN, Ângela B. Preciso “Ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Coleção Linguagem e letramento em foco: linguagem nas séries iniciais. Ministério da Educação. Cefiel/IEL. UNICAMP, 2005-2010. 65 p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da Fala para a Escrita: Atividades de retextualização. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2005

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OLIVEIRA, Apoluceno de; XAVIER, Mário Brasil. Palavra-ação: em educação de jovens e adultos. Belém: CCSE-UEPA,2002 OLIVEIRA, Marta Kohl de. Jovens e Adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Revista Brasileira de Educação, nº 12, São Paulo: USP, 1999. PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. 5 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1987 SOARES, Leôncio (Org.). Aprendendo com a diferença: estudos e pesquisas em educação de jovens e adultos. 1edição. 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2005 144p. SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento: caminhos e descaminhos. Revista Pátio, 2004 SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003 SOARES, Magda. O que é letramento e alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica,1999. SZANTO, Janyssa Oliveira. Psicologia e educação de jovens e adultos: história de vida e caminhos percorridos pelos jovens que voltam à escola. São Paulo, 2006 160 p. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós – Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em:. Acesso em 17 fev. de 2011, 22h16min. ANÁLISE DO DISCURSO HISTÓRIA E IDEOLOGIA EM UM TRECHO DA OBRA “O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO”, DE MIA COUTO. HERBERT RODOLFO ANAISSI27 FABÍOLA FIGUEIREDO REIS28 RESUMO: A proposição deste artigo é identificar e analisar o discurso ideológico e histórico presente em um trecho da obra O Último Voo do Flamingo (2012), de Mia Couto. Por meio do seu trabalho, o autor expõe a situação de transição política-ideológica conturbada de diversos países africanos, presenciada por ele entre o período colonial, a data de independência e adiante. Ao tratar com culturas conflitantes e influências internas e externas, o autor desenvolveu senso estético-cultural singular e inovador. Palavras-Chave: discurso, história, ideologia, linguagem. ABSTRACT: The proposal of this article is to identify and analyze the historical and ideological discourse in an excerpt from the book O ultimo voo do Flamingo (2012), of Mia Couto. Through his work, the author exposes the reality in the troubled political-ideological transition of several African countries, witnessed by him between the colonial period, the 27

Graduado em Letras (Português/Inglês) pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia (FIBRA); Email: [email protected] 28 Doutoranda em Letras (Linha de Pesquisa: interpretação, circulação e recepção de textos literários) Universidade Federal do Pará (UFPA). Email: [email protected] (orientadora)

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independence and beyond. When dealing with conflicting cultures and internal and external influences, the author developed unique and innovative aesthetic-cultural sense. Keywords: discourse, ideology, language, linguistics.

CONSTITUINTES DA ESTRUTURA LITERÁRIA Toda obra contêm, em si, uma relação entre autor e herói que só pode ser considerada singular pela expressão intrínseca, e tal relação foi, por muito tempo, negligenciada em círculos voltados ao estudo da estética literária. Contudo, hoje, essa característica passa a ser consideradas como crucial na análise e apreensão dessa arte, pois, ao conceber o princípio básico do herói, melhor se pode destacar e determinar um posicionamento sobre ele e o todo que compõe. Bakhtin teve importância fundamental ao delinear um estudo para a concepção desse fator, pertinente na urdidura estilística de qualquer obra literária. Sua pesquisa passa a se distinguir claramente de outras pesquisas relacionadas à concepção da estética literária ao, como pioneiro, estabelecer a mencionada relação entre autor e herói. Esta relação deve ser considerada, de acordo com uma dinâmica e arquitetura, a partir de um princípio básico e da perspectiva individual do autor que é inerente à obra. A perspectiva individual aqui apontada é referente aos fatores auxiliares para a concepção de uma obra literária, sendo que estes abarcam desde o objeto exposto até a sua importância para o autor arquitetar sua concepção estética, a qual refletirá diretamente na figura do herói. Pois, a partir desta interação entre objeto e herói é que se construirá e definirá os valores diversos os quais são peculiares como atributos de personalidade e moral do herói. Uma relação compreendida no transcorrer da trama exposta por estar entrelaçada na finalidade constitutiva da mesma, o que a caracteriza como finalidade estética, conforme explica Bakhtin em: [...]na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta, etc., expressamos unicamente a posição que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e esse juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele; [...] (BAKHTIN, 18, 1997)

Para a concepção de uma análise eficaz da construção verbal, deve-se considerar que todo ato de um personagem é uma reação a uma ação originária de uma posição de princípio, em seu cerne produtiva e criadora, a qual o apresentará à ideia global intencionada pelo auto. No romance, toda e qualquer atitude ou representação tem o intuito de expor as características do personagem, estando suas reações morais de acordo com a representação artística do autor, e esta será efetivada em decorrência da relação entre herói e um objeto determinado. Outra característica se identifica na construção do herói, pois esta será apresentada por meio de barreiras, disfarces prejudiciais para uma definição de seus atributos, que serão evidenciados no transcorrer da trama para dar vazão a reações emotivo-volitivas do autor, e será através das determinações conflituosas impostas pelo autor que se alcançará a definição da postura de valores do herói em um todo necessário. A história fica como que idealizada pelo autor pela forma como foi construída, baseada em regras que a estruturaram de maneira objetivada. A reação global que dará por definido o todo do objeto deriva do esforço aplicado pelo autor na intenção durante o processo criador, o que o impossibilita de falar do processo da obra ou sobre como foi o processo criador, pois este não está em algo definido ou determinado, porque a resposta para o que define a obra é a própria obra. Para Bakhtin, “o trabalho de criação é vivido, mas trata-se de uma vivência que não é capaz de ver ou de apreender a si mesma a não ser no produto ou no

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objeto que está sendo criado e para o qual tende.” (BAKHTIN, 1997, p. 19). Já os aspectos técnicos da obra podem ser identificados no objeto estético que a representa. Para se considerar o autor na obra deve-se considerar a profundidade de suas palavras enquanto parte de um discurso; até que ponto o locutor pode dizer que determinada palavra é originária de um, sem influência de outro; se esta palavra fosse original, ela poderia ser utilizada em uma obra literária? O fato do autor não estar reproduzindo diretamente suas ideias, consciente ou inconscientemente, o qualifica como uma “segunda voz” a partir de outra. Como esclarece Bakhtin, “o escritor é aquele que sabe trabalhar a língua situando-se fora da língua, é aquele que possui o dom do dizer indireto.” (BAKHTIN, 1997, p.188). Dentro da obra literária, habitua-se a começar uma discussão de acordo com um tema proposto na trama e, consequentemente, dá-la um desfecho, contudo alguns autores estendem suas discussões para fora de suas obras. Dostoiévski acrescentou a sua obra o estenograma de discussões inacabadas e inacabáveis. São recorrentes dessas a polifonia, considerando a uma ferramenta da literatura ao construir questionamentos acerca de ideias constantes na história humana. Para Bakhtin, o texto funciona da seguinte forma: O texto como reflexo subjetivo de um mundo objetivo. O texto é a expressão de uma consciência que reflete algo. Quando o texto se torna objeto de cognição, podemos falar do reflexo de um reflexo. A compreensão de um texto é precisamente o reflexo exato do reflexo. Através do reflexo do outro, chega- se ao objeto refletido. (BAKHTIN, 1997, p.190).

O objeto real originário de estudos é, contudo, o homem social. É esta a resposta ao seguinte questionamento de Bakhtin: “Quando se trata do homem em sua existência, será possível encontrar uma abordagem diferente daquela que consiste em passar pelos textos de signos que ele criou ou cria?” (BAKHTIN, 1997, p.190). Dentro desta concepção, a percepção da linguagem como de uma realidade autônoma é negado por Marx e Engels em sua obra A ideologia alemã, na qual é explanado o motivo para nem todas as alterações dadas às instituições sociais serem repercussão de causas econômicas, que, de acordo com Fiorin, tem sua exemplificação: “[...] a manutenção consonântica do alto alemão, que ocorreu por razões internas ao sistema fonológico.” (FIORIN, 1998, p. 08). A partir dessa implicação da linguagem sobre a formação social alemã, concebe-se a complexidade da linguagem devido a sua interferência em variados domínios, como o individual, o social, o físico, a fisiológica e a psíquica, assim distinguindo dimensões e níveis autônomos de dimensões e níveis determinados. O discurso, enquanto conjunto de frases, tem uma estrutura composta sintaticamente e semanticamente. A sintaxe discursiva compreende a estrutura discursiva, enquanto que a semântica discursiva envolve os conteúdos relativos às formas sintáticas abstratas. Estes, simultaneamente, correspondem à: Manipulação consciente, pois o falante procura organizar suas ideias no intuito de criar efeitos de sentido, de verdade ou de realidade na intenção de atingir o ouvinte de forma a persuadi-lo, valendo-se de um jogo de imagens, que, segundo Fiorin, “o falante organiza suas ideias de acordo com um jogo de imagens [...] que ele faz do interlocutor, a que ele pensa que o interlocutor tem dele, a que ele deseja transmitir ao interlocutor” (FIORIN, 1998, p. 18); Determinações inconscientes, pois um elemento semântico utilizado faz parte de um todo semântico, usado em uma época de acordo com a forma determinada por uma dada formação social. Como afirma Fiorin, “esses elementos semânticos, assimilados por cada homem, ao longo de sua educação, constituem a consciência e, por conseguinte, sua maneira de pensar o mundo.” (FIORIN, 1998 p. 19). A linguagem discursiva remete à interação dentro do contexto social, o que a qualificará, a partir desses moldes, como engajada, não inocente ou neutra, muito menos

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natural. Será por motivo dessas que ela será manifestadora da ideologia, como um sistemasuporte mediador das relações articuladas e defrontadas pelos agentes coletivos, efetivando a relação entre o homem e a sua realidade. Estabelecida a necessidade entre o dizer e a condição de produção desse dizer, passarse-á por caminhos onde serão considerados conceitos exteriores ao puramente linguístico, na intenção de melhor conceber as unidades dessa linguagem. Contudo, deve-se reforçar a condição da análise do discurso enquanto dependente dos conceitos e métodos da Linguística, pois essa última está pressuposta à primeira, portanto ganha especificidade em relação às metodologias de trabalho da linguagem das ciências humanas. Por outro lado, será necessário considerar outras dimensões, apontadas como: a) O conjunto das instituições em que o discurso é produzido, sendo estes fortes delimitadores da enunciação; b) As questões históricas, sociais, etc., inerentes ao discurso; c) O espaço próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso. Os aparelhos ideológicos do Estado geram mecanismos de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração de acordo com o discurso das classes dominantes. Os aparelhos ideológicos estarão representados nas instituições que intervêm na tentativa de convencer ou forçar a classe dominada a submeter-se ao sistema de exploração. Para Brandão (2004), “todo funcionamento da ideologia dominante está concentrado nos aparelhos ideológicos do Estado, a hegemonia ideológica exercida através deles é importante para se criarem as condições necessárias para a reprodução das relações de produção” (p. 22). A ideologia em geral, contudo, deve ser diferenciada das ideologias particulares, porque estas irão exprimir sempre uma posição de classe, enquanto que a ideologia geral deve ser vista da seguinte forma: “abstração dos elementos comuns de qualquer ideologia concreta, a fixação teórica do mecanismo geral de qualquer ideologia” (ALTHUSSER, apud, BRANDÃO, 2004, p. 22). O que possibilita a interação e compreensão de todas as ideologias. A ideologia geral é formulada em três hipóteses, sendo: - A primeira a relação que cada homem tem com a realidade em si, sendo essa relação imaginária, pois o homem cria formas simbólicas representativas para conseguir relacionar-se com o mundo natural; - A segunda deriva do fato existencial da ideologia pela construção livre das ideias pelo homem consciente, que reconhece e aceita as ideias nas quais crê. Assim, possibilitando a concretização das ideias em atos próprios, porém essa existência só é possível dentro de um aparelho ideológico material; e - A terceira, na qual o aparelho ideológico material interpela os indivíduos na intenção de inseri-los dentro de rituais matérias do cotidiano, tornando-os sujeitos que espontaneamente efetivarão parte da existência do aparelho através de suas ações. A função da ideologia não deve ser considerada unicamente como justificação da dominação de uma classe. Essa redução leva a aceitar, sem crítica, a ideologia por uma identidade relacionada a noções de erro, mentira, ilusão. Tais funções não podem ser negadas, mas devem-se entender, também, as funções básicas da mesma. Em Moçambique, país de origem de Mia Couto, a realidade não destoava da condição sofrida por muitos países africanos. Os escritores tinham de lidar com duas realidades das quais não podiam se abster, configuradas na sociedade colonial e na sociedade africana; condição que perdurou até a data de independência. No meio da tensão entre dois mundos, a escrita literária sofria uma caracterização singular por abarcar esses dois mundos, principalmente pelo fato dos escritores utilizarem uma língua europeia e carregarem na escrita as impressões infligidas pela tensão originária da utilização da língua portuguesa em

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realidades de grande complexidade, onde heranças de correntes e movimentos literários, tanto europeus quanto americanos, entrelaçavam-se às manifestações provenientes do contato com línguas locais. ANÁLISE DA OBRA É comum no decorrer do livro encontrarem-se sentenças as quais são alusões vagas, características do conhecimento popular em uma obra que procura realçar com reverência os hábitos de um povo, reforçando a escrita poética do autor. Como a seguir: “Sabe o que dizia sua mãe? Que o melhor lugar para se chorar era a varanda.” (COUTO, 2012, p. 206); essa transcrição representa muito bem uma particularidade do estilo abordado na obra justamente por ser identificável na realidade, no cotidiano de uma cidade provinciana: os ditados enigmáticos. O léxico tem posição bastante definida ao transmitir a linguagem de um povo, estando nesta impressa a ideologia configuradora dos personagens. Segundo Brandão “toda ideologia é simplificadora e esquemática (...) ela é racionalizadora e sua forma de expressão preferencial são as máximas, slogans e formas lapidares onde a retórica está sempre presente” (BRANDÃO, 2004, p. 25), como é visto na obra O Último Voo do Flamingo (U. V. F.), na qual essa característica da ideologia se manifesta através de expressões, superstições e ditos populares. Como exemplo, tem-se “mudam-se os tempos, desnudam-se as vontades.” (COUTO, 2012, p. 36). A sentença retoma um poema de Camões, de nome “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. A troca do segundo verbo por “desnudam-se” insinua uma mudança temporalhistórica da expressão, por fazer referência a Camões, que foi o maior representante do classicismo português, influenciando toda a cultura literária dos países que foram colonizados por Portugal. Assim, manifesta-se a repercussão de sua obra na história de Tizangara. Contudo, estas transcrições literárias estão a mercê da ideologia, resultando na mudança: [...] que é definida como uma visão, uma concepção de mundo de uma determinada comunidade social numa determinada circunstância histórica. Isso vai acarretar uma compreensão dos fenômenos linguagem e ideologia como noções estreitamente vinculadas e mutuamente necessárias, uma vez que a primeira é uma das instâncias mais significativas em que a segunda se materializa (BRANDÃO, 2004, p. 27)

Com o decorrer do tempo, a frase passa a expressar a realidade local, convertida aos costumes do povo oprimido, que esconde seus interesses por medo de represálias políticas. Ao optar pelo discurso indireto livre, o narrador tem como intenção balizar as situações escritas através do ponto de vista de cada cidadão tizangarense apresentado. Uma vez que a condição social dos personagens está impressa em suas palavras, ela irá contribuir para a construção e difusão das crenças e ideias de acordo com seu grau de instrução, influência ideológica e cultural. Um reflexo disso está nas palavras “Se não sabes pensar, conte uma história” (HEIDEGGER, apud, STEINER, 2012), que procura expor a forma de expressar os pensamentos por uma via mais simplista. Tais apontamentos devem ser levados em consideração para a análise do discurso por abarcarem a interseção que irá interligar a linguística discursiva com outras áreas do conhecimento, que é a semântica, e esta: [...] constitui, na realidade, para a linguística o ponto nodal das contradições que atravessam e organizam essa disciplina sob a forma de tendência [...]; É justamente nesse ponto nodal [...] que a linguística confina com a filosofia e especificamente com a ciência das formações sociais ou o materialismo histórico. (BRANDÂO, 2004, p. 32)

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Dentro da situação abordada no livro, atente-se à formação social que se define a partir de dois pontos distintos e contrários, um seria o estrangeiro, que na condição de representante do mundo (Nações Unidas) impõe sua ideologia indiretamente, através de conceitos ditos "pacíficos" – o uso das aspas acerca de tal juízo é por motivo desse “conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia.” (FIORIN,1998, p. 28). Em relação à criação desse conjunto de ideias, ressalta-se sua sustentação em ciências políticas reconhecidas por uma comunidade científica mundial (correspondentes à ONU). E, apesar de não serem expostas na obra, estas ciências estão pressupostas e acentuadas convenientes ao seu contraponto; a "ciência" cultural e social resistente à assimilação política externa, proferida pelo nativo africano, não podendo ser vista de forma diferente por nela identificar-se a tensão consonante, resistente à mudança, e pela afirmação de que “não há um conhecimento neutro, pois ele sempre expressa o ponto de vista de uma classe a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena, justifica e explica a ordem social” (FIORIM, 1998, p. 29). Contudo, é o tipo de ordem social que está em jogo, mas isso só fica patente no decorrer do livro, de forma não evidente por ser uma luta travada no campo ideológico, e pertinente a esta por suas características, de acordo com Fiorin, “[...] as formas políticas das lutas de classes e os seus resultados, as formas jurídicas, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas e as concepções religiosas exercem também influência nas lutas históricas e podem até determinar sua forma.” (FIORIM, 1998, p. 30). Classificando esta luta como pertencente a um plano aparente, irá se identificar diversas figuras representativas com categorias relacionadas ao campo político, filosófico e religioso, evidentes no romance, nas quais serão realizadas analises no objetivo de, segundo Fiorin, “mostrar que há dois níveis de realidade e que o nível da aparência é a inversão do nível da essência. A partir do nível fenomênico da realidade, constroem-se as ideias dominantes numa dada formação social.” (FIORIM, 1998, p. 28). A partir dos eventos presenciados do transcorrer da trama, o herói irá amealhar informações pertinentes para a compreensão dos ditos populares e, através destes, desvendará o significado do seu sonho, que reflete sua consciência, conceitos e condição. No trecho abaixo, a figura do sonho do personagem-narrador é significativa para o autor em sua perspectiva da apreensão sobre o futuro iminente do país. Nele serão indicadas as representações que indicam um mau presságio ao herói e a sua cultura. TRECHO O SONHO Não explodira eu, rebentara meu sonho. Eis o que restara, entre lembranças e delírio, nessa noite: nesse sonho eu estava sentado no morro de muchém, o último lugar do mundo. À minha volta tudo era água, transbordação de todos os rios. O morro era a única ilha em todo o horizonte. Ali e além se espetavam copas de árvores. Só nesses píncaros as aves encontravam pouso. Posto assim, escanchado sobre o monte formigueiro, recordava a minha vida privada. O final de minha vida era, afinal, um regresso aos meus primórdios. Porque, ali onde me terminava, o último lugar do mundo, tinha sido o primeiro local da vida. Eu estava fechando um ciclo. Tinha sido num morro como aquele que minha mãe enterrara a placenta que, durante nove meses, fora meu embrulho. Essa minha primeira manta foi sepultada no lado poente de um morro como aquele. É uma certeza, em Tizangara: a termiteira é o umbigo da terra. E nós habitáramos sempre junto de um enorme morro de muchém. Ali, por detrás do carreiro que meu pai sugeria para fugir do fim do mundo, ali se erguia ele em desafio dos tempos. O morro de muchém fora um centro de minha existência. Havia ameaça de tempestade e meu tio se atarefava a recolher terra do morro. (COUTO, 2012, P. 207-208)

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Identifica-se no início da transcrição do sonho que este vem como uma revelação negativa para o herói, já que é comparado ao destino dos soldados das Nações Unidas explodidos. Esta impressão se evidencia pelo condicionamento no trecho a seguir, em que a palavra “não” é intercalada pelas mesmas flexões verbais, criando essa relação entre as frases: “Não explodira eu, rebentara meu sonho” (COUTO, 2012, p. 207). No entanto, a apreensão criadora dessa consequência negativa deriva dos fatos ocorridos em um âmbito mais amplo, no qual estará o herói centralizado. Mais especificamente, a representação figurativa deste sonho insólito faz alusão à temática ideológico-cultural de toda uma realidade do país, estando ela contida em seu descendente, que restara sobre um pequeno pedaço de terra, rodeado por águas do rio local, as quais, segundo este descendente - que é o personagemnarrador - transbordaram e passam a confundir-se com as águas dos rios globais, partilhando assim de um destino comum. Reforça-se aqui a figura do rio, que normalmente segue um rumo determinado pelas margens de sua terra, misturando-se em desorientação com outros, semelhantes ao mar. A simbologia contida nessa descrição remete a concepção de demasiadas tradições (rios) entrelaçadas dentro de um sistema ideológico (mar) onde não se pode mais distinguir identidades. Ou seja, constitui a estrutura composta por tradições (políticas, culturais, religiosas) que são articuladas dentro de uma (super) estrutura ideológica. Assim, a metáfora retratada no sonho compõe a forma de organização social necessária para a concretização ideológica no discurso, como vemos em: ”A região do materialismo histórico que interessa a uma teoria do discurso é a da superestrutura ideológica ligada ao modo de produção dominante na formação social considerada.” (BRANDÃO, 2004, p. 37). Na sentença, “O último lugar do mundo” (COUTO, 2012, p. 207), também nomeado como o morro de muchém, faz referência a um mundo, que é o do tradutor (profissão desempenhada pelo personagem) e no qual se encontra sozinho por ele conter traços culturalideológicos tanto do seu povo quanto os dos que invadem, representantes das Nações Unidas, tendo em si uma cultura-ideológica global. A partir de então, o herói começa a se tornar ciente de sua participação e importância no estabelecimento da tradição de sua terra, certeza expressa nas palavras: “O final de minha vida era, afinal, um regresso aos meus primórdios. Porque, ali onde me terminava, o último lugar do mundo, tinha sido o primeiro local da vida.” (COUTO, 2012, p. 207); essa condição do personagem, estabelecida e alcançada dentro do enredo, é estruturada de acordo com o objetivo preestabelecido pelo autor, como demonstra Bakhtin: [...] o herói leva uma vida cognitiva e ética, seus atos se orientam no acontecimento ético aberto da vida ou no mundo pré-dado da cognição; o autor dirige o herói e sua orientação ético-cognitiva no mundo da existência que é por princípio acabado e que tira seu valor [...] (BAKHTIN, 1997, p.22)

Contudo, na condição de “solitário sobrevivente”, de novo, percebe-se a característica de tradutor, pois os conhecimentos de outra língua estão contidos nele. A intenção do autor é de definir o tradutor não por tizangarense, mas como o princípio de uma nova ideologia e cultura, aceita por este através do seu aprendizado, como relata Brandão, em “o sujeito se insere, a si mesmo e suas ações, em práticas reguladas pelos aparelhos ideológicos. Como categoria constitutiva da ideologia, será somente através do sujeito e no sujeito que a existência da ideologia será possível.” (BRANDÃO, 2004, p. 23 - 24). Encerrando em si um amalgama ideológico-cultural, com origem na cidade africana, o narrador-personagem define suas características inescrutáveis, percebido no fato dele não possuir nome apresentável no decorrer de toda a trama, consequência infligida a ele, pois “a consciência é formada pelo conjunto de discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida. O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e [...] reproduz

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esses discursos em sua fala” (FIORIM, 1998, p. 35). Daí percebe-se a repercussão provocada com a classificação que o pôs no trabalho a fim de instaurar a organização social pretendida pela classe dominante. Assim, a intenções primeiras dos estrangeiros ao promoverem sua política de pacificação torna-se evidente, essa ainda na figura do herói, que por aderir à língua estrangeira aceitou também a ideologia, que destruirá ou menoscabará a de seu país por motivo da substituição do discurso dominante por outro; “as variedades linguísticas usadas pelos segmentos sociais subalternos são consideradas erros, transgressões e seus usuários são, por isso, ridicularizados” (FIORIN, 1998, p. 07). Contudo, mantêm-se a responsabilidade pela transmissão da tradição do país, que deve ser assumida pelo herói ao identificar a condição de destruição em que sua cultura está devido aos acontecimentos dos quais participa e toma conhecimento no desenrolar da trama. Por consequência da convergência entre esses fatos, estará contida no símbolo do herói a contradição caracterizadora principal do discurso ideológico, uma vez que este reflete, pela língua, o discurso de uma cultura estrangeira para preservar a cultura de seu povo; para trabalhar a situação problemática de sua cultura, adere à outra, para, assim, sustentar a sua por valores externos. Um princípio parecido com a Antropofagia identificada no Modernismo: “O dilema nacional/cosmopolita é resolvido pelo contato com as revolucionárias técnicas de vanguarda europeia, e pela percepção de necessidade de reafirmar os valores nacionais numa linguagem moderna” (SCHWARTZ, apud, OLIVEIRA, 1999, p. 429). Este resultado só é obtido por motivo da interdiscursividade, pois esta se propicia por “procurar-se apreender não uma formação discursiva, mas a interação entre formações discursivas diferentes.” (BRANDÃO, 2004, p. 90). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Estética Da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 BRANDÃO, Helena H. Negamine. Introdução à Análise do Discurso. São Paulo: Editora da Unicamp, 2004 CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1995 COUTO, Mia. O último Voo do Flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1998 OLIVEIRA, Clenir Bellezi. Arte literária: Portugal - Brasil. São Paulo: Moderna, 1999. STEINER, George. O belo e a consolação. Youtube. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=Oear9SEXQKQ>. Acesso em: 18 Abr. 2014

em:<

AMBIGUIDADES NO DISCURSO PUBLICITÁRIO: PERSUASÃO E DISSIMULAÇÃO HELDER DO VALE FARIAS (FIBRA) RESUMO: Partindo da premissa Bakthiniana de que a palavra, e a linguagem enquanto discurso, não são neutros, mas o espaço a partir do qual ocorre a manifestação da ideologia, pretende-se analisar, neste artigo, estratégias persuasivas explícitas e implícitas de discursos publicitários presentes em slogans, a partir das respectivas ambiguidades presentes. Para

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tanto, abordar-se-á o termo ambiguidade em sentido amplo, isto é, do ponto de vista semiótico e enunciativo-discursivo, garantindo, assim, uma análise semântica efetiva do termo, a partir da perspectiva da Análise do Discurso. Nesse sentido, perceber-se-á que a propaganda não possui uma maneira aleatória, tampouco ingênua de apresentação, mas sim que ela é bastante pretensiosa, carregada de ideologias, as quais influenciam sobremaneira a forma de consumo capitalista ou simplesmente a maneira de pensar e de agir de seus enunciatários; daí seu caráter essencialmente persuasivo e dissimulado. Palavras-chave: Análise do Discurso; Publicidade; Propaganda; Ambiguidades. 1 INTRODUÇÃO Abordar-se-á, neste trabalho, a relevância do sentido dual ou ambíguo da propaganda e/ou da publicidade em seus múltiplos sentidos, focalizando as possíveis estratégias de persuasão e dissuasão presentes em anúncios publicitários. Essas estratégias, portanto, terão o poder de induzir, ou mesmo, de seduzir o enunciatário, possível cliente-consumidor, ou simplesmente possível reprodutor da ideologia ou da concepção trazida na mensagem publicitária. Pretende-se inicialmente esclarecer algumas (breves) noções distintivas acerca dos termos publicidade e propaganda; em seguida, a fim de se chegar a uma análise semântica efetiva do termo ambiguidade, com foco no discurso publicitário a partir de slogans, será feita uma abordagem das noções de ambiguidade do ponto de vista da Análise do Discurso, dentro de uma “prática intersemiótica”, ou enunciativo-discursiva, que transcende, portanto, a análise da Semântica Formal ou Referencial. Dessa forma, tem-se em vista uma análise discursiva ou enunciativa global que considere o propósito persuasivo e ideológico geral, isto é, das intencionalidades implícitas dos diversos anúncios publicitários. Por fim, a Análise de discursos publicitários, com vistas na persuasão e na dissimulação, terá, como ponto de partida, uma análise de Possenti (2009), que traz a proposta de prática intersemiótica relacionada à noção de simulacro em interdiscursos. Com base na análise desse autor, analisar-se-á, no corpus deste trabalho, um anúncio publicitário presente em slogan de um jornal de grande circulação no estado do Pará: O Liberal, com suas respectivas estratégias persuasivas e essencialmente ambíguas, no que se refere, sobretudo, a um expressivo destinatário e concorrente: o Jornal Diário do Pará, o qual também possui também expressiva vendagem no estado. 2 PUBLICIDADE E PROPAGANDA: POSSÍVEIS DISTINÇÕES De maneira geral, publicidade (do latim publicus) corresponde ao ato de tornar pública alguma informação. Entretanto essa generalidade assume, em cada tempo, acepções diferentes. Conforme Rabaça e Barbosa (1987), o primeiro uso do termo está relacionado ao sentido jurídico, pois dizia respeito a publicações de leis, éditos, entre outros documentos; posteriormente, no século XIX, assume o significado comercial. Para Childs (1967 apud Muniz, 2001), “a propaganda baseia-se nos símbolos para chegar a seu fim: a manipulação das atitudes coletivas”. Assim, o uso de representações para produzir reações coletivas pressupõe uma ação de propaganda. Segundo Malanga (1979 apud Muniz, 2001, p. 72) a propaganda se difere da publicidade por questão de finalidade comercial. Isto é, “A propaganda é difusão de ideias, mas sem finalidade comercial. A publicidade, que é decorrência, e também, persuasiva, mas com o objetivo bem caracterizado, isto é, comercial”. Dentro dos estudos do significado dessas nomenclaturas, “Na língua portuguesa, publicidade é um termo usado para designar venda de produtos ou serviços, e propaganda, tanto para a divulgação de ideias quanto no sentido de publicidade” (SANDMANN,1993, apud FÉLIX, 2007, p. 53).

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Considerando essa divulgação ou difusão de ideias, percebe-se o “aparecimento” de um elemento fundamental dentro dos estudos do discurso: a presença da ideologia, que, segundo Chauí (1982), com base nos estudos Marxistas acerca da ideologia alemã: [A ideologia] é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer (CHAUI, 1982, p. 113).

3 AMBIGUIDADE(S): UMA QUESTÃO SEMÂNTICO-DISCURSIVA. De maneira geral, no ensino básico tradicional de Língua Portuguesa, quando se trata de expor ou abordar a presença da ambiguidade, utilizam-se casos de ocorrência do termo de uma forma superficial, a nível de frase, desprovido, portanto, de seu valor enunciativo, caracterizando, assim, uma prática semântica lógico-proposicional. Como exemplos de ocorrências desses tipos de ambiguidade, podemos citar, conforme Cançado (2008), a ambiguidade lexical, ambiguidade sintática, ambiguidade de escopo, ambiguidade semântica e Ambiguidade situacional. Entretanto, pretende-se, neste trabalho, elucidar a ocorrência de ambiguidades que vão além de uma análise frasal, léxico-semântica ou sintática, partindo assim para a perspectiva da Análise do Discurso de linha Francesa. Assim, perceberemos que diversos elementos enunciativo-discursivos contribuem e concorrem para a consecução do(s) sentido(s) - ou efeitos de sentido - presente(s) em anúncios publicitários/slogans (assim como em diversos outros gêneros discursivos, que não serão tratados aqui). Entre esses elementos, conforme se pode observar a seguir, estão as condições de produção do discurso, interdiscurso, e a noção de simulacro interdiscursivo. 4 DISCURSO E ANÁLISE DO DISCURSO (AD): ALGUMAS CONSIDERAÇÕES. A Análise do discurso surge nos anos 60 do século passado, objetivando um estudo teórico que ultrapasse: o estruturalismo Sausurreano baseado, sobretudo, na dicotomia língua e fala; a outros estudos (históricos) anteriores às considerações teóricas de Ferdinando Saussure quanto aos estudos da Linguística e de Linguagem de maneira geral. Dessa forma, segundo Orlandi (2007): Embora a Análise de discurso, que toma o discurso como seu objeto próprio, tenha seu início nos anos sessenta do séc. XX, o estudo que interessa a ela- o da Língua funcionando para a produção de sentidos- e que permite analisar unidades além da frase, ou seja, o texto- já se apresentara de forma não-sistemática em diferentes épocas e segundo diferentes perspectivas (ORLANDI, 2007, p.17).

Conforme afirma Possenti (2009), o discurso se constitui como: [...] um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia, que se materializa na Língua, embora não mantenha uma relação biunívoca com recursos de expressão da língua (...). Ele se constitui pelo trabalho com e sobre os recursos de expressão que produzem determinados efeitos de sentido em correlação com posições e condições de produção específicas (POSSENTI, 2009, p. 16)

1 1 Condições de produção do discurso e Interdiscurso Segundo Orlandi (2007, p.28), pode-se considerar as condições de produção do discurso sob dois alcances de sentido: correspondem, “em sentido estrito, às circunstâncias de enunciação: o contexto imediato; e em sentido amplo incluem o contexto sócio-históricoideológico”. Para a mesma autora, considerando que as condições de produção do discurso

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correspondem aos sujeitos e à situação, ela afirma que a memória faz parte da produção do discurso no seguinte sentido: A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso (grifo meu). Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré- construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em ema situação discursiva dada. (ORLANDI, 2007 p. 31).

5 SIMULACRO E INTERDISCURSO EM SLOGANS. Essa relação, conforme se pode analisar a seguir, baseado nos estudos de Possenti (2009), diz respeito a embates ou conflitos existentes entre empresas concorrentes no mercado de produtos (ou serviços) trazendo sempre, em seu discurso, uma linguagem persuasiva, com o intuito de atrair seu (suposto) cliente e, ao mesmo tempo, de dissuadi-lo em relação ao concorrente, isto é, objetivando convencer o enunciatário ou espectador da publicidade à não aceitação do que a(s) empresa(s) concorrente(s) oferece(m) em termos de propaganda. Possenti (2009), faz uma análise discursiva a partir de slogans,29 remetendo a hipóteses teóricas de interdiscurso tratadas por Maingueneau (2008), em especial, ao primado do interdiscurso. Este autor afirma que: o caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz a interação semântica entre os discursos parecer um processo de tradução, de interincompreensão regulada. Cada discurso introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados s categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse outro se dá sempre sob a forma do simulacro que dele constrói. (MAINGUENEAU, 2008, p. 21).

Segundo Possenti, essa relação de simulacro e interdiscurso se dá, portanto, da seguinte forma: O Outro [discurso] é desenhado a partir do um. Mesmo não havendo outro (...), seu discurso, na forma de simulacro, poderia ser criado a partir de um discurso existente. Se isso acontece ou não depende de haver confronto entre discursos. (POSSENTI, 2009, p. 159).

Partindo, pois, dessas perspectivas introdutórias, consideremos a seguinte análise do autor a partir do seguinte slogan: Rider. Dê férias para os seus pés.

. Nesse slogan da marca de calçados Rider, eram apresentados ambientes de trabalho em que os trabalhadores demonstravam-se incomodados com os calçados que tinham de usar diariamente, e cujo conforto se dava, por conseguinte, a partir do momento em que eles chegavam em casa (ou aos finais de semana, em praias, piscinas, etc.), e relaxavam os pés usando Rider. 29

embora o autor faça análise discursiva de quatro slogans, será feita aqui alusão a apenas um: o de Rider, escolhido para fins de exemplificação e embasamento teórico para a posterior análise do discurso presente no enunciado O Liberal. O melhor. O maio., muito embora os quatro contenham, em sua essência, a presença da ambiguidade em sentido amplo, isto é, dentro de uma perspectiva semiótica e/ou enunciativo-discursiva.

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Uma marca concorrente produziu um simulacro das férias para os pés. Trata-se da marca Samoa. Agora os filmes apresentados por esta se opõem ao ideário propagado por Rider. Isto é, nos filmes veiculados pela marca Samoa, criou-se um ambiente pejorativo em relação à Rider, em que aquela marca sobrepuja esta, da seguinte forma: Conforme Possenti (2009) é feita uma crítica, com sentido dissuasivo em relação aos “relaxados”, usuários de Rider, estereotipados como “jovens gorduchos comedores de pipoca ou sanduíches e viciados em televisão, a que assistiam nos finais de semana madrugada a dentro” (POSSENTI, 2009, p. 163). Em contrapartida, Samoa propõe um padrão oposto, que valoriza o vigor esportivo, atlético, representados por jovens “cheios de adrenalina (acampando, praticando esportes) e em companhia de belas garotas”. Percebe-se assim que o simulacro ocorre devido ao confronto de discursos entre a propaganda (ou publicidades) de ambas as marcas de calçados. Entretanto, o autor ressalta que é de pouca relevância saber qual discurso ocorre(u) primeiro: o que importa é sua semântica discursiva, pois “é a partir da definição de férias da Samoa, que as de Rider são rebaixadas” (POSSENTI, 2009, p. 164) ao mesmo tempo em que “é a partir do discurso da Rider que usar outros calçados é um tormento. 6 ANÁLISE DO DISCURSO DO SLOGAN “O LIBERAL. O MELHOR. O MAIOR”. Conforme foi mencionado no decorrer desse artigo, a análise de ambiguidade presente nesse slogan do jornal paraense O Liberal traz a uma abordagem além daquela baseada na Semântica Formal. Dessa forma, perceber-se-á, no caso do referido anúncio publicitário, que a enunciação, decorrente deste enunciado (slogan) possui uma forte carga ideológica e, por isso, persuasiva em relação a seus (supostos) clientes-leitores - mas também de conflito- em relação a um destinatário específico: seu maior concorrente, jornal Diário do Pará, jornal também de grande circulação e vendagem no estado. O efeito de sentido persuasivo e, ao mesmo tempo, de tensão, decorrente do slogan do Jornal em análise, está relacionado à noção de simulacro do interdiscurso em slogans presente em Possenti (2009). Analisando-se textual e discursivamente o anúncio publicitário O Liberal. O melhor. O maior - e sua(s) respectiva(s) ambiguidade(s) implícita(s), que, imprescindivelmente, o torna persuasivo e dissimulado -, pode-se fazer as seguintes considerações intrínsecas entre si: (1) As condições de produção aqui estão atreladas ao convencimento do leitor acerca da (suposta) qualidade do jornal, e à disputa do mesmo com o seu principal concorrente: o jornal Diário do Pará. (2) O interdiscurso presente, como forma de simulacro, considerado aqui como forma de dissimulação, se dá, substancialmente, a partir da disputa de mercado entre o jornal Liberal e o Diário do Pará. Embora o primeiro tenha alto índice de expressividade e de venda no estado, seu maior concorrente- que também possui expressividade e venda significativas- é mais acessível financeiramente à população: custa bem abaixo do valor do primeiro, geralmente a metade do valor (que é o caso hoje). (3) Podemos observar também que essa acessibilidade do consumidor-leitor, gera, por conseguinte, um expressivo volume de vendas para o Diário do Pará. Do ponto de vista polifônico e interdiscursivo, isso implica, como consequência, outro discurso, direcionado implicitamente ao público leitor e à empresa/jornal concorrente de o Liberal: trata-se do slogan de outro jornal - do mesmo grupo empresarial de O Liberal: as Organizações Rômuo Maiorana (ORM)-, o jornal Amazônia, cujo preço de venda é inferior ao do Diário do Pará caracterizando, assim, sua popularidade equivalente a este último, do ponto de vista do acesso econômico. O slogan é : Jornal Amazônia. Todo mundo lê.

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Assim, essa propaganda do jornal Amazônia (também das ORM, de O Liberal) tem como objetivo atrair a clientela “popular”, equilibrando, dessa forma, possíveis perdas lucrativas de O Liberal em relação ao Diário, por conta do baixo preço de venda deste último. Dessa forma, percebe-se que o discurso presente no slogan de O Liberal está, mais do que muitos poderiam pensar, carregado de ideologia, ou melhor, carregado da ideia implícita de se instituir como hegemônico diante de seu maior concorrente. Esse objetivo se dá por meio do discurso publicitário, com suas estratégias ambíguas de melhor, maior, etc., conforme a descrição a seguir. (4) Partindo de uma descrição linguística, ou melhor, sintática, co(n)textual do discurso presente no enunciado “O Liberal. O melhor. O maior.”, pode-se fazer as seguintes considerações: Tem-se uma ambiguidade ocasionada sobretudo pela presença de maior, pois este termo tem como pressuposto o anterior: melhor, embora, à primeira vista (antes da análise discursiva e interdiscursiva), pareçam equivalentes, ou sinônimos. Dessa forma, ficaria a seguinte construção: O Liberal é o maior, porque é o melhor, considerando, obviamente, a noção de hegemonia tratada acima, que se refere aqui ao termo maior; Considerando-se o notório volume superior de papéis e, consequentemente, de cadernos de O Liberal em relação ao Diário do Pará, observa-se a pertinência do termo maior, em sua literalidade. Entretanto, essa literalidade pode ser relativa, haja vista que, do ponto de vista estilístico que essa publicidade assume no enunciado, pode-se inferir que, de maneira geral, ela não quer deixar evidente (considerando seus leitores de maneira geral, indiscriminadamente em relação a nível intelectual e/ou sócio-aquisitivo) que sua superioridade em relação à concorrente se dá mais quantitativa do que qualitativamente30. Entretanto, na medida em que determinado público não perceba (conforme tal publicidade quer mostrar) a qualidade das notícias, o jornal opta por ser considerado melhor “quantitativamente”, tendo em vista, sempre, um maior volume de vendas. Isso incorre em outra ambiguidade, em outra construção: O Liberal. Literalmente, o maior. Observa-se, a partir desta figura (01), a presença dos embates econômicos e políticoideológicos entre Diário do Pará e O Liberal:

(Da esquerda para a direita: senador Jader Barbalho, proprietário da TV Rede Brasil Amazônia (RBA), pai do diretor-presidente do Jornal Diário do Pará: Jader Filho; Empresário Rômulo Maiorana: proprietário da TV Liberal e do jornal “O Liberal” e “Amazônia”.) http://militanciaviva.blogspot.com.br/2013/03/tampem-o-nariz-merda-no-ventilador-nos.html

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Considera-se, para essa análise qualitativa e/ou quantitativa, a noção de subentendidos de Platão & Fiorin (2007) , com base nos estudos de Ducrot acerca de implícitos: pressupostos e subentendidos. De acordo com Platão e Fiorin (2007, p. 310), Subentendidos são “insinuações, não marcadas linguisticamente, contidas numa frase ou num conjunto de frases”. os primeiros são indiscutíveis, já que resultam, necessariamente, de alguma marca linguística colocada na frase, os segundos são de responsabilidade do ouvinte.

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A figura 2 faz uma propaganda do jornal Diário do Pará na capa dele mesmo; além disso, traz uma notícia negativa acerca das condições do hospital Santa Casa, de Belém. Na figura 3, O Liberal e Amazônia afirmam que a notícia do Diário do Pará sobre as condições físicas da Santa Casa não tem veracidade (“jornal dos Barbalhos é flagrado em farsa”; “mentirosos”), mas que foram forjadas para enganar a população e fazer críticas ao governo do estado, que é opositor do PMDB e de Jader. CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando o percurso teórico acerca das possibilidades de manifestação da linguagem do discurso publicitário, percebe-se que a ideologia presente nas propagandas do gênero discursivo slogan trazem em sua essência a ambiguidade e o simulacro interdiscursivo, condicionando, assim, o aspecto da persuasão e da dissimulação. Nesse processo percebeu-se que a ambiguidade semântica, do ponto de vista formal ou referencial não dá conta da efetividade dos sentidos que os referidos textos e discursosenunciados dos slogans- podem apresentar. Para tanto, fez-se necessária a teorização de Discurso e Análise do Discurso, a fim de se perceber a multiplicidade de fatores por meio dos quais os discursos dos slogans se manifestam, isto é, análises que consideram aspectos sócio-históricos e ideológicos a que os textos ou enunciados se submetem para garantir a efetividade de sentido dos mesmos, considerando sempre a relação dialógica ou interacional da linguagem. Por fim, pôde-se analisar em Possenti (2009), com a relação de simulacro e interdiscursos em slogans, mais veemente a maneira conflitante (e polifônica) em que ocorrem diversos anúncios publicitários, cujas relações semiótico-discursiva foram expostas na análise de “O Liberal. O melhor. O maior”. Pôde-se, pois, nas condições previstas nesse percurso teórico-conceitual, observar textual e discursivamente, na análise do enunciado “O Liberal. O melhor. O maior “que a propaganda, com suas estratégias discursivas, trazem em seu bojo um aspecto essencialmente persuasivo e dissimulado. REFERÊNCIAS CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008 CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1982

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MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola editorial, 2008 MUNIZ, Eloá. Publicidade e propaganda: origens históricas. 2001 Disponível em: . Acesso em: 21/02/2014 ORLANDI. Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo. Editora: Pontes, 2007 POSSENTI, Sírio. Os limites do discurso: ensaios sobre o discurso e o sujeito. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. RABAÇA, C. A. e BARBOSA, G. Dicionário de comunicação. São Paulo: Ática, 1987 SAVIOLI, Francisco Platão; FIORIN, José Luís. Lições de texto: leitura e Redação. São Paulo. Editora: Ática, 2009. EDUCAÇÃO INCLUSIVA

TORNANDO UM HERÓI: UM ESTUDO DE MONOMITO EM “FRENTE DA CLASSE” ANA CARLA SANTOS - UEPA FABRICIA SILVA - UEPA SANDRA MINA TAKAKURA INTRODUÇÃO Brad Cohen conta sua história em sua biografia intitulada como “Frente da Classe: Como a Síndrome de Tourette me tornou um professor que eu nunca tive” (2008), Thomas Rickman adaptou o livro para a tela e Peter Werner dirigiu o filme em 2008 Frente da Classe (2008) retrata a história de Brad Cohen, que sofre desde sua infância de Síndrome de Tourette, SGT, ou ST que é uma desordem neurológica que provoca tiques, vocalizações inesperadas que são incontroláveis por parte de quem a possui. E, por não ser devidamente compreendida os que têm que conviver com ela sofrem do estigma de serem conhecidos como “esquisitos”, “inapropriados”, “inaptos” afastando-os do convívio social. Brad interpretado por James Wolk sonha em ser professor, após passar por várias dificuldades, ele consegue concluir o nível superior, porém seu sonho não é concluído, pois não consegue um emprego devido a exclusão social por ser inapto, após várias tentativas ele consegue uma oportunidade onde ele consegue provar ao diretor, aos estudantes e aos pais dos mesmos que ele não é diferente e tem a mesma possibilidade de ensinar como qualquer outro professor. Este trabalho tem como objetivo realizar um estudo do filme Frente da classe através do conceito de Monomito de Campbell e os conceitos de mesmidade e outro de Carlos Skliar (2003). Cada dificuldade que ele passa é analisada. O conceito de Monomito que se divide de uma forma geral em Partida, Iniciação e Retorno, ajuda a entender a jornada de Brad como herói explorando a simplicidade do espírito humano, suas aspirações, poderes e virtudes, mostrando que todos, apesar de suas dificuldades, possuem a capacidade de aprender e ensinar, sendo possível vencer suas próprias limitações. O conceito de mesmidade de Skliar embasará as dificuldades enfrentadas por Brad em uma sociedade onde os iguais se aglomeram para apagar a diferença do outro. Esse estudo mostra como o personagem lida

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com o tempo presente que muitas vezes esse tempo se encontra como de difícil compreensão e que ao mesmo tempo somos obrigados a lidar “como aquilo sobre o que estamos obrigados a pensar” em uma “dissonância de continuidades, de fragmentos, de silêncios” que excluem os que não são considerados normais (SKLIAR, 2003, p. 48-49). É muito interessante estudar o filme que tem inspirado milhões de pessoas por volta do mundo, ajudando a vencer suas próprias limitações. E mostrando que é possível superar as barreiras da mesmidade presente no mundo contemporâneo. 2 O MONOMITO O conceito de Monomito ajuda a entender não apenas o significado das imagens para a vida contemporânea, mas também a simplicidade do espírito humano em suas aspirações, poderes, virtudes e sabedorias. Este conceito se divide de uma forma geral em Partida (chamada de aventura e força supernatural), Iniciação (Estrada de provas e o último estrondo) e Retorno (Domínio de dois mundos e liberdade para viver). Através do conceito de Monomito é possível analisar cada fase da jornada de Brad como herói. Na partida, “a chamada de aventura” é quando alguma coisa acontece e o herói vai para a jornada da vida dele. Enfim, é o começo de uma aventura onde o herói passará por dificuldades até completar o sua jornada (CAMPBELL, 2008). Há controvérsias acerca do indivíduo com limitações ser considerado herói num sentido de transformar a sua vida em um palco dramático. No entanto, o termo herói passou por várias significações ao longo dos anos até ser banalizado e ser resgatado por Campbell. O termo herói para Campbell pode ter a conotação das grandes tragédias clássicas, assim como implicar no ser humano da contemporaneidade que enfrenta as dificuldades no dia a dia. O que Campbell foca é a tomada de decisão e a superação desses indivíduos o que não implica em visar o reconhecimento público. O herói para Campbell implica em passar pela jornada com a ajuda de outros e se superar, assumindo a responsabilidade pela sua própria jornada da vida. Nesse sentido, o termo herói se aplica a todos os indivíduos que em sua diferença passam de formas distintas pela jornada. O monomito de Campbel lida com arquétipos, ou símbolos como figuras supernaturais e de herói. Arquétipos são “o produto de inconscientes coletivos herdados de nossos ancestrais. Os fatos fundamentais humanos de existência são arquetípicas: nascimento, crescimento, amor, família, vida tribal, morrer, sem mencionar a luta entre filhos e pais e rivalidade fraternal. ” (CUDDON, 1998, p. 53). Nenhum médico descobriu o verdadeiro diagnóstico de Brad, então sua mãe decide fazer pesquisas e descobrir o que o seu filho tinha; após várias buscas a mãe de Brad descobre que a doença do filho era Síndrome de Tourette, uma doença de natureza neuropsiquiátrica caracterizada por fenômenos compulsivos, que resultam em uma série repentina de múltiplos tiques (motores e vocais) com frequência recorrente. Então ela decide levá-lo para um centro de ajuda onde todos tinham a Síndrome de Tourette, mas logo percebe que aquele não era o lugar dele, pois o centro de ajuda simplesmente excluíam os indivíduos que sofriam dessa síndrome tratando-os através do discurso da medicina que se pauta no discurso da normalidade e da anormalidade. Uma vez que o normal era o indivíduo saudável, os indivíduos que sofriam da síndrome não tinham possibilidade alguma de se tornarem normais, pois síndrome carrega um duplo sentido, uma vez que síndrome não é considerada doença, mas uma condição permanente que irá acompanhá-lo para o resto de sua vida. A mão nesse momento não queria esse tratamento do filho como sendo um anormal, e busca trazer uma normalidade a vida de Brad como qualquer outra pessoa e que ele não fosse excluído do mundo. Então, eles decidiram ir embora daquele lugar. E, Brad permanece na escola regular

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onde os normais frequentam e onde o discurso da mesmidade impera, dessa forma passa por vários constrangimentos entre os colegas que todos os dias perseguiam-no para bater nele ou imitavam seus tiques em sala de aula fazendo os outros rirem. A “força supernatural” de acordo com Campbell (2008, p.57) é: “O encontro com uma figura protetora [...] quem fornece amuletos contra a força do dragão contra quem ele está prestes a passar.” Em “Frente da Classe”, Brad Cohen tem três figuras que representam as forças supernaturais que o auxiliam a superar as dificuldades: A mãe que está do seu lado desde sua infância, ela que descobre a doença do filho após várias pesquisas, e sempre busca o melhor para ele, dando força para enfrentar suas dificuldades e conseguir realizar seu sonho de ser professor. O diretor que deu a oportunidade de um emprego, pois Brad passa por várias entrevistas sem sucesso, ninguém acreditou em sua competência por causa da Síndrome de Tourette, então esse diretor permitiu que Brad mostrasse sua habilidade e ele provou que era possível ensinar assim como qualquer outro professor. Para Brad a própria Síndrome de Tourette funciona como uma força supernatural, pois ela lhe dá força para persistir e seguir em frente, e mostrar a todos que ele pode ter uma vida comum mesmo possuindo esta Síndrome, Brad aprende a conviver com a Síndrome de Tourette começando a conscientizar os próprios alunos sobre ela. Na iniciativa: “estrada de provas” de acordo com Campbell, (2008, p. 90) é: “A partida original para o campo de provas representado pelo começo do longo e perigoso caminho de conquista inicial e momentos de iluminação.” Esta fase é o começo da conquista. Brad ainda jovem estuda em uma escola comum e passa por constrangimentos entre os colegas por causa da Síndrome. Já consciente de sua condição, Brad é levado à diretoria por uma professora que o considera um problema na sala de aula. O dia de aula é especial, pois há uma apresentação cultural e Brad teme ficar na plateia justamente pela sua condição. O diretor percebe o que está acontecendo e o leva até o auditório fazendo com que Brad se junte aos demais estudantes. Ao final da apresentação, o diretor o leva ao palco e junto ao microfone começa a fazer perguntas sobre o seu comportamento na plateia, devido aos tiques compulsivos que Brad fazia durante a apresentação. Brad é guiado pelo diretor a explicar sobre a Síndrome de Tourette. Ele sobe ao palco envergonhado e conta aos colegas que sofre da Síndrome de Tourette e que ela o faz involuntariamente reproduzir aqueles sons estranhos dos quais todos acreditam ser de propósito. Esse incidente o marca, pois o diretor de sua escola dá a oportunidade a Brad se expressar acerca de sua condição a todos e a ganhar uma existência social de fato, ganhando visibilidade. O filme mostra que após alguns anos ele consegue ingressar na universidade e se formar como professor, realizando o seu grande sonho. Após a formatura ele entrega vários currículos, é convocado para entrevistas, mas, no momento em que chega nas escolas e é descoberto que sofre da Síndrome de Tourette é recusado em todas elas. No “último estrondo”, de acordo com Campbell, (2008) é quando: “O herói alcança o seu objetivo”. Essa noção ocorre no filme quando Brad, depois de muitas tentativas, recebe uma ligação para uma entrevista em uma escola chamada Mountain View. E foi a melhor entrevista que ele fez, pois ninguém olhava para ele como um esquisito, dando a oportunidade de se apresentar e compartilhar seus conhecimentos. Depois de algumas semanas esperando a resposta, Brad recebe novamente uma ligação da escola e finalmente realiza o seu sonho, ele é contratado. No retorno, em “domínio de dois mundos” de acordo com Campbell (2008) é quando: “O herói domina os dois mundos”. Após realizar o sonho de ser professor, Brad prova a todos que pode ter uma vida normal como qualquer outra pessoa. Ele cresce profissionalmente acumulando elogios da escola. Brad finalmente conhece uma garota pela internet em um site

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de relacionamentos e após alguns anos se casa com ela. E a cada dia Brad vai dominando os dois mundos, o mundo dos que não tem a síndrome e o mundo dos que a possuem. Na fase “liberdade para viver”, Cohen sente de fato a liberdade para viver, trabalhar e constituir uma família. Nesse momento vive-se o momento presente, sem antecipar o futuro nem regressar ao passado. O herói vê a vida de uma maneira diferente e o mundo o vê como diferente respeitando a sua condição sem passar pelo discurso da anormalidade. A vida de Brad muda completamente, a síndrome não é mais um obstáculo em sua vida. Podemos observar que a vida de Brad muda depois que ele descobre a Síndrome de Tourette, ele decide lutar pelos seus objetivos, conhece pessoas que ajudam a enfrentar seus obstáculos e no fim ele começa a ter uma vida diferente, com poder sobre a sua própria vida e destino atingindo o sucesso e principalmente possuindo a sabedoria sobre os dois mundos. Através do conceito de “Mesmidade” e “outro” de Carlos Skliar podemos observar as dificuldades que Brad enfrenta em uma sociedade onde os iguais se unem para apagar a diferença do outro. A mesmidade é tratar igualitariamente a todos os que pensam da mesma forma, que agem da mesma forma, em que levam uma vida homogênea, não havendo espaço para a diferença ou para o diferente: “A mesmidade proíbe a diferença” (Skliar, 2003, p.39). O diferente, ou aquele que pensa diferente, age diferente, é aquele que deve ser respeitado em sua diferença e não porque esse faz parte do mesmo grupo, ou pensa igual. Ser diferente é antes de tudo respeitar a si próprio e fazer com que o outro me respeite. O conceito do outro pode ser entendido pela seguinte passagem: “O outro pode ser pensado sempre como exterioridade, como alguma coisa que eu não sou, que nós não somos” (Skliar, 2003, p.26). Há necessidade de se ver o outro como o diferente e respeitá-lo mesmo que ele ou ela não faça parte do meu grupo, da minha etnia, do meu círculo de amizade, do mesmo grupo da minha sexualidade. Em “Frente da Classe” é explicito a mesmidade presente em vários locais por onde Brad passa, devido a sua doença, ele é visto como o “estranho, esquisito ou anormal” na sociedade os “normais” se aglomeram produzindo o discurso da mesmidade excluindo o outro. Desde sua infância Brad sofre com o discurso da anormalidade e da indiferença, pois é excluído na escola pelos colegas, é posto de castigo várias vezes por fazer barulhos durante a aula e a professora achar que é de propósito e voluntário como um ato infantil de provocação. Após se formar na universidade, ele passa por várias entrevistas onde não encontra oportunidades para mostrar o seu talento, por ser “anormal” aos olhos da sociedade, ninguém acreditou que Brad tinha a competência de ensinar. Após a mãe de Brad descobrir qual patologia ele sofria, ela decide ouvir os conselhos de algumas amigas de levá-lo para um centro de ajuda onde todos tinham a Sindrome de Tourette, um lugar onde os outros se excluíam dos “normais”, mas ela decide ir embora daquele lugar com seu filho, pois isso não era o que ela desejava para Brad. Depois de muita perseverança Brad consegue um emprego, um diretor que não faz parte da mesmidade, pois não viu Brad como um “inapto” ou “estranho”, ele deu a oportunidade para Brad mostrar para sociedade que ele é diferente sendo capaz de fazer tudo o que outra pessoa pode fazer. Depois que um pai de uma aluna vê que o professor de sua filha fazia barulhos estranhos, decidiu trocar sua filha de sala, ele duvidou da competência de Brad sem mesmo o conhecer profissionalmente. Em várias cenas do filme podemos observar que Brad sofre por causa da Síndrome de Tourette, todos o tratam como anormal, duvidam de sua competência e o excluem. Mas após uma oportunidade ele prova para todos que a mesmidade só existe quando não dão atenção para as diferenças. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Em “Frente da Classe”, Cohen segue os estágios de Monomito por Cambell (2008): Partida, Iniciação e Retorno sendo se deparando com as dificuldades do discurso da Mesmidade e do Outro (SKLIAR, 2003). A vida de Brad começa a mudar depois de descobrir uma doença, ele sofre por ser “anormal” e vive em uma sociedade onde os iguais se aglomeram e excluem o outro. Mas entre vários obstáculos ele decide lutar pelos seus objetivos, o qual um deles era ser professor, ele conhece pessoas onde encontra forças para seguir o caminho e correr atrás de seus sonhos e no fim ele obtém uma oportunidade e sua vida começa a mudar, Brad quebra o discurso da anormalidade e mostra a todos que ele é diferente porém pode ter uma vida como qualquer outra pessoa, ele consegue ter sucesso tanto na vida pessoal quanto na vida profissional. Com o filme aprendemos que nada é impossível quando se tem força de vontade. Foi muito interessante fazer um estudo desse filme que inspira milhares de pessoas e mostra que é possível vencer suas próprias limitações. O outro só vai existir se você permitir ser o outro, por que a mesmidade está presente em nossa vida contemporânea, porém não se exclua, seja como Brad que saiu daquele centro de ajuda e correu atrás de seu sonho, enfrentando a mesmidade presente na sociedade e dominando os dois mundos. REFERÊNCIAS CAMPBELL, Joseph. The hero with a thousand faces. California: New world library. 2008 CALDERONI, Valéria Aparecida Mendonça De Oliveira. Mesmidade. In: Nas Tramas da Igualdade e da Diferença frente à Alteridade dos Alunos Indígenas. Disponível em: Acesso em: 20 de Agosto de 2014 CUDDON, J. A. Penguin dictionary of literary terms and literary theory. London: Penguin Books. 1998 LEVY, Edna G.Os Arquétipos e Jogos de Vídeo Games. Jogos de areia. Disponível em: Acesso em 28 Novembro 2013 PETROFF, Thaís. Tique nervoso: Entenda a síndrome de Tourette. TCC: Terapia Comportamental. Disponível em: Acesso em: 20 Agosto 2014 SKLIAR, Carlos. Apresentação:Entre o e se o outro não estivesse aí? e a atenção à diversidade – notas para um esclarecimento tão confuso quanto estranhável. In: SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 17 – 36 SKLIAR, Carlos.Capitulo I: Sobre a temporalidade do outro e da mesmidade – notas para um tempo (excessivamente) presente.In: SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 37-64 SKLIAR, Carlos. Capitulo II: Sobre as representações do outro e da mesmidade – notas para voltar a olhar bem o que já foi (apenas) olhado. SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 65-96

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SKLIAR, Carlos. Capitulo IV: Sobre a anormalidade e o anormal – notas para um julgaento (voraz) da normalidade. SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 65-96

NO ENCALÇO DE GABRIELA*: UMA HISTÓRIA DE INCLUSÃO ESCOLAR ANA PAULA MELO DE ARAÚJO31 (UEPA) JAQUELINE DE OLIVEIRA COSTA32 (UEPA) MARCELO LUIZ BEZERRA DA SILVA33 (UEPA) RESUMO A pesquisa aborda o estudo de caso de Gabriela, criança portadora da Síndrome Deletiva do Braço longo do cromossomo 18, a garota tem 13 anos e está matriculada em escola regular. A síndrome em questão consiste na perda parcial do braço longo do referido cromossomo, situação que poderá resultar no comprometimento neuromotor de quem a tem. Em razão de sua raridade, é pouco conhecida, logo se faz necessário um estudo para ampliar os conhecimentos dos profissionais de educação sobre o assunto, que é um dos objetivos da pesquisa, assim como identificar o estágio de aprendizagem de Gabriela, com o intuito de encontrar estratégias pedagógicas adequadas ao ensino e aprendizagem da criança. O estudo está fundamentado em autores como Vygotsky e Piaget. A partir do acompanhamento pedagógico diário em sua rotina escolar ao longo de dois anos, visitas a Fonoaudióloga, das entrevistas com os pais – Anamnese/história de vida –, com os professores de Gabriela e com as aplicações das provas operatórias Piagetianas, nas quais se verificou que a criança apresenta atraso no desenvolvimento cognitivo, com desempenho característico da fase de transição do Período Pré-Operacional para o Período Operacional Concreto. Diante disto constatou-se que para que a criança seja incluída no processo educacional são necessárias flexibilizações e adequações nas práticas pedagógicas. Palavras-chave: Síndrome 18 q menos; Inclusão; Práticas Pedagógicas. 1 INTRODUÇÃO Enquanto educadores comprometidos com exercício da educação para todos, torna-se motivo de estudo a Síndrome Deletiva do Braço Longo do cromossomo 18, também conhecida por Síndrome do 18 q-, pesquisar sobre este caso é enriquecedor e necessário, devido à raridade de sua incidência. É sob a perspectiva de busca de soluções, que nos interessa a educação especial, na ação da inclusão, é sabido que há muito a ser feito, haja vista que a inclusão é uma quebra de paradigmas educacionais. Contudo, quando estes não satisfazem na solução dos problemas, é neste momento que se requer mudança de concepção e visão de mundo, é exatamente neste contexto que hoje se encontram as instituições escolares brasileiras. Sabe-se que toda quebra de paradigmas é cercada de incerteza e insegurança, mas também de liberdade e ousadia para mudar. Com o intuito de somar a este movimento, a fim de pesquisar o atendimento adequado aos indivíduos que tem a Síndrome, estudou-se o caso de Gabriela.

* Nome Fictício 1 Especialista em Educação Especial, [email protected] 2 Especialista em Educação Especial, [email protected] 3 Mestre em Educação, [email protected]

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A Síndrome Deletiva do Braço Longo do Cromossomo 18 (18q), foi descrita pela primeira vez, em 1964 por de Grouchy, caracteriza-se por alterações cromossômicas que resulta na perda parcial do braço longo do cromossomo 18, é um desequilíbrio genético que pode ocasionar alterações físicas e mentais variáveis ao sujeito. Segundo Couceiro et al. (2008, p. 64), O aparecimento destas anomalias depende do grau e local da deleção do cromossomo, a criança poderá apresentar dificuldades em suas habilidades físicas, sociais e cognitivas, em sua maioria, como retardo mental e diversas alterações como: auditivas, visuais, ortopédicas, posturais de tônus.

A Síndrome do 18 q- é causada devido a um problema na divisão mitótica do material genético das células reprodutivas, a qual será suficiente para modificar definitivamente o desenvolvimento embrionário, logo, essa condição deletiva do cromossomo ocasionará a pessoa algumas características físicas e mentais relevantes, as quais, dependendo do local da deleção, poderão causar atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Dados mostram que na maioria dos casos, os indivíduos apresentam baixa estatura e retardo mental (RM). A baixa estatura está relacionada a falta do hormônio do crescimento (HC), o qual é produzido pelos genes localizados no cromossomo 18Q-. No mesmo cromossomo está localizado um ou mais genes responsáveis pela formação de uma camada de proteína e gordura denominada mielina que recobre os axônios, essas são responsáveis pelos sistemas de informação e comunicação do indivíduo através dos impulsos nervosos, os quais são sinais transmitidos através dos neurônios. A mielinização nada mais é que o amadurecimento do axônio, esse processo ocorre em períodos, de forma que diferentes neurônios se mielinizam em épocas distintas do desenvolvimento do organismo, no caso do indivíduo com a síndrome há um “atraso” neste processo. Quando bebê, Gabriela apresentou as seguintes características: Aos dois meses e 5 dias, observou-se, no exame físico da menor34: baixo peso e estatura em torno de 4 kg e 52 cm respectivamente; hipertelorismo 35; epicanto36 discreto, palato37 alto, orelhas dismórficas38 e implantação limítrofe39, dedos finos, polegares de implantação proximal, dedos dos pés sobrepostos, hérnia umbilical 40, hipotonicidade41, refluxo gastroesofágico42 como principais sinais, sendo encaminhada para outros médicos especialistas de acordo com as anormalidades associadas com a síndrome para avaliações mais específicas (COUCEIRO; OLIVEIRA; 2008, p. 68).

Então foi solicitado um estudo citogenético de Gabriela, que confirmou sua patologia. As crianças com a síndrome 18q- tem atraso em seu desenvolvimento devido às características que apresentam. Portanto os estímulos devem ser intensificados, com o intuito de ajudar a identificar desde cedo os principais déficits que o indivíduo tenha, a fim amenizar os resultados futuros. 34

O termo utilizado pelo autor encontra-se em desuso segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. 35 Separação excessiva de dois órgãos. 36 Deformidade congênita que consiste em uma prega vertical de pele, em cada lado do nariz, e que, às vezes, cobre o canto interno do olho; prega epicântica. 37 Céu da boca. 38 Desconforme/descomunal. 39 Que se encontra na região fronteira. 40 É causada por um defeito no fechamento da cicatriz umbilical, que pode ser congênito ou adquirido durante a vida. 41 Hipotônico 42 Consiste no refluxo de conteúdo alimentar presente no estômago para o esôfago. Disponível em: www.verbetes.com.br. Acesso em: 13 nov. 2010.

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Segundo dados obtidos pelos fisioterapeutas que acompanharam Gabriela durante cinco anos: Uma das características que acomete o portador da síndrome é a alteração auditiva, que no caso de Gabriela é expressa por perda auditiva moderada à esquerda e moderada /severa à direita, sendo este mais um fator importante que agrava e diminui as chances dessa criança receber estímulos necessários para seu desenvolvimento, merecendo maior atenção por parte do profissional de fisioterapia, o qual deve oferecer-lhe esses estímulos de forma diferentes, permitindo seu contato com experiências sensório-motoras, mesmo com a existência dessa limitação. A menor*, no entanto, faz uso de órtese auditiva (COUCEIRO; OLIVEIRA; ROCHA, 2008, p. 68).

Vale ressaltar que atualmente a aluna não faz uso da órtese auditiva 43, pois essa foi a escolha da mesma, apesar da dificuldade de compreender certas palavras, mas esse problema não tem grande relevância no seu dia-dia e isso se deve à contribuição que Gabriela recebe de especialistas com o intuito de atender as suas necessidades. Além da perda auditiva, Gabriela nasceu com outra característica da síndrome, o terço médio superior da face retraído, o que fazem alguns nascerem com o palato aberto. No caso da mesma nasceu com o palato pouco aberto, mucosa coberta e o queixo para frente. Para fazer a correção Gabriela faz uso do aparelho ortodôntico, mas no caso da aluna a correção é para puxar a parte de cima para frente. Quando era pequena pelo fato de ser hipotônica (afeta o controle nervoso motor pelo cérebro ou pela musculatura), fez vários exercícios com o objetivo de melhorar a musculatura da boca e começar a falar. Sabe-se que a pessoa com 18 q- tem problemas com o crescimento e o processo de mielinização. Gabriela fez tratamento com hormônio do crescimento dos 3 meses aos 3 anos de idade, além de melhorar o crescimento da mesma ainda auxiliou no processo de mielinização, e na hipotonia, o que ajudou no avanço do desenvolvimento cognitivo. Mesmo diante o diagnóstico clínico como visto acima, o qual não é fator determinante, é motivo de estudo e é cabível a pergunta: Quais estratégias pedagógicas são adequadas ao ensino-aprendizagem e avaliação da pessoa com a síndrome do 18 q menos? 2 OBJETIVOS Contribuir com o processo de inclusão no ambiente escolar da criança com a síndrome de deleção do braço longo do cromossomo 18 Proporcionar estratégias pedagógicas adequadas ao ensino- aprendizagem e avaliação da pessoa com a síndrome do 18 q menos. 3 METODOLOGIA O referido estudo consiste em uma pesquisa aplicada, uma vez que visa contribuir com um processo existente nas instituições escolares, a inclusão do indivíduo com a síndrome 18 q menos, através de estratégias pedagógicas adequadas ao ensino-aprendizagem e avaliação do mesmo. A pesquisa tem caráter exploratório, pois almeja proporcionar maior familiaridade com o tema com vistas a torná-lo explícito. Envolvem levantamento bibliográfico e entrevistas com pessoas que tem experiências práticas com o assunto pesquisado Para alcançar os objetivos propostos propõe-se uma pesquisa bibliográfica, a fim de obter o histórico, conceitos e teses sobre o assunto tornando a pesquisa coerente e coesa.

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Órteses são aparelhos ou dispositivos destinados a auxiliar um segmento ou função corporal deficiente, temporária ou definitivamente. Disponível em: . Acesso em: 13 nov. 2010.

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Adotou-se a pesquisa participante, pois consiste na interação entre pesquisadores e membros da situação pesquisada. A exemplo dos pais, com eles fez-se a Anamnese (história de vida). Utilizou-se o modelo de entrevista estruturada, com formulário formado de perguntas abertas e fechadas. Visitou-se a escola na qual a criança estuda, e através de uma entrevista semiestruturada com os professores, compreenderam-se as dificuldades encontradas ao ensinar Gabriela, assim como as estratégias usadas para incluí-la. Efetuou-se o estudo de caso de Gabriela. Acompanhou-se Gabriela em sua rotina escolar num período de 2 anos, além de visitas em casa (uma vez na semana) e acompanhamento esporádico às consultas ao fonoaudiólogo, o instrumento adotado para o registro de dados foi um diário de campo. Para as análises dos dados coletados a partir dos procedimentos citados acima, adotouse a abordagem de análise qualitativa. Com a finalidade de saber qual o estágio de aprendizagem que a aluna se encontra, realizou-se o teste de Piaget, promovendo neste ínterim as análises qualitativas dos dados coletados com o propósito de entender as flexibilizações necessárias para a inclusão de Gabriela. 4 REFERENCIAL TEÓRICO Acerca das discussões sobre Educação Inclusiva há argumentos contrários a ideia, os indivíduos defensores desta opinião alegam que a escola, os professores, e os próprios alunos, não estão preparados para receber esses estudantes. Precisamos aprender com os professores das escolas de educação especial, estudar técnicas, pesquisar, fazer cursos, chamar professores que trabalhem e/ou tenham experiência sobre assunto, convocar pais e mães de crianças deficientes e aprender com eles a lidar com essas crianças, perguntar sobre a vida da criança em casa, como é que ela se cuida, como é seu dia etc. (CAMPELL, 2000, pg. 158).

A autora esclarece que é normal o professor ter receio de receber um aluno com necessidade educacional especial, mas sempre que necessário deve procurar ajuda junto aos profissionais que entendam do assunto, e em reuniões pedagógicas, expor seu receio diante dos seus colegas de trabalho. O fato de o docente reconhecer suas limitações diante de certas situações não significa que o mesmo seja incompetente. Ele deve encarar isso como situação enriquecedora na sua carreira profissional e pessoal também. E ressalta que na Educação Inclusiva há necessidade de um profissional que abrace a causa, que requer a derrubada de barreiras, exigem rupturas com o preconceito, discriminação e o desconhecimento. Só assim poderemos rever estratégias, abrir a discussões etc. E transformar a escola em um ambiente em que todos aprendam de fato. O princípio fundamental da escola inclusiva é de que todos os alunos devem aprender juntos, sempre que possível, independentemente de quais quer dificuldades ou diferenças que eles possam ter, pois, se aceitarmos alunos “deficiente” (não importa o grau) em uma escola para todos e se eles forem tratados de um modo excludente, teremos uma farsa de inclusão (CAMPELL, 2000, pg.141).

A autora adverte sobre o fato que por falta informação ou omissão de pais, educadores e do poder público, muitas crianças vivem escondidas em casa ou isoladas em instituições especializadas, e esta situação priva as crianças com ou sem deficiência de conviver com a diversidade. Segregar os alunos deficientes em escolas especiais não é prejudicial somente para eles, mas os outros ditos “normais” e também para a sociedade, Werneck (2000, pg. 53) nos

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fala a respeito: “Partindo da premissa de que quanto mais a criança interage espontaneamente com situações diferenciadas mais ela adquirirá o genuíno conhecimento, fica fácil entender porque a segregação não é prejudicial apenas para o aluno com deficiência”. Ela explica que as crianças não nascem preconceituosas, as mesmas são reflexos da sociedade que estão inseridas, pois, a própria autora, quando criança comenta a postura de seus pais. Meus pais não foram piores do que os pais de ninguém. Mas eu cresci vendo a deficiência como um grande pavor. A maioria das crianças ainda hoje é educada assim. Vê uma pessoa em cadeira de rodas na rua, tem vontade de olhar, de saciar a curiosidade, mas o adulto não deixa, diz “É feio”. Eu aprendi. Lógico, agora não sou mais capaz de gestos de rejeição explícita em relação a uma pessoa com deficiência. O preconceito ao qual me refiro se manifesta de modo sutil. Está presente nos jornais e no discurso dos próprios familiares das pessoas com deficiência, como veremos em alguns capítulos deste livro (WERNECK, 2000, pg.32).

Para a autora educar é interagir, e a educação inclusiva proporciona isso, pois, ajuda os educandos a reconhecer e valorizar as diferenças, ou seja, desenvolve o respeito, tão ausente na sociedade, os alunos com deficiência se tornam mais motivados, só temos a ganhar com a inclusão. E fala que garantir o que está na constituição não é nenhuma ação bondosa, como um favor feito a essas pessoas. A inclusão não é opção é a solução, para um problema que precisa ser dizimado, o preconceito, não se pode continuar adepto de situações excludentes que torna o caminho das pessoas com deficiência ainda mais difícil, tem que lutar contra a violação das leis que asseguram os direitos desses cidadãos. 5

RESULTADOS

A partir dos dados obtidos, conclui-se que Gabriela apresenta: Atraso no desenvolvimento cognitivo, com desempenho característico da fase de transição do período pré-operacional para o período operacional concreto. Em relação à linguagem oral: Distúrbio fonológico caracterizado por trocas, omissões e distorções de fonemas; Narrativa oral defasada para a idade; Dificuldade no processamento das informações auditivas, secundária à perda auditiva neurossensorial apresentada; Dificuldade na compreensão e no reconto de histórias. Em relação à linguagem escrita: Dificuldade no processamento das informações visuais; Dificuldade na memória de trabalho; Dificuldade na leitura de palavras e interpretação de textos (com prejuízo no acesso ao significado); Narrativa escrita defasada para sua série; Defasagem em relação ao nível de desenvolvimento da escrita; Disgrafia (alteração no traçado da letra). 6 DISCUSSÃO Diante do exposto, sistematizam-se algumas orientações quanto ao auxilio educacional dispensado à Gabriela: Estabelecer rotinas regulares na educação; Ensinar estratégias verbais que irá ajudá-la a organizar o trabalho escrito44, através de roteiros para produzir um texto ou realizar um cálculo; 44

Como foi explanado acima, Gabriela possui dificuldades para desenvolver textos. Uma alternativa adotada pela mediadora é a elaboração de um roteiro de produção textual, no qual a aluna irá responder cada tópico e posteriormente, uni-los formulando o texto.

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Utilizar materiais concretos (elaborados pela mediadora), para facilitar o entendimento dos conteúdos escolares, (posteriormente veremos um exemplo). Envolver em atividades físicas educacionais. Todo aprendizado motor é difícil, mas extremamente necessário a ela Terapia fonoaudiológica duas vezes por semana, com o objetivo de minimizar as dificuldades de linguagem oral e escrita que foram reveladas à avaliação; Acompanhamento psicopedagógico: com o intuito de intervir adequadamente na dinâmica de aprendizagem da aluna para potencializar o desenvolvimento da mesma. Acompanhamento pedagógico complementar: com professora particular em casa. Visita à escola para discussão de sugestões de facilitação para o processo de aprendizagem e avaliação. Além das orientações e sugestões pedagógicas expostas no presente trabalho com o objetivo de incluir Gabriela, acredita-se em um elemento essencial e central no processo educacional - o afeto. Quem separou desde o início o pensamento do afeto fechou definitivamente para si mesmo o caminho para a explicação das causas do próprio pensamento, porque a análise determinista do pensamento pressupõe necessariamente a revelação dos motivos, necessidades, interesses, motivações e tendências motrizes do pensamento, que lhe orientam o movimento nesse ou naquele aspecto (VIGOTSKI, 2001, p. 16).

O autor é defensor da aferição como participante dos processos de ensino e aprendizagem. Vygotsky (2004) afirma que o afeto não é um agente menor nos processos de ensino e aprendizagem. Desta forma, dentro desta pesquisa separa-se um tópico para discorrer da importância do mesmo para a educação mais especificamente, para o exercício da inclusão. 7 CONCLUSÃO A partir do minucioso estudo pautado na história de Gabriela, conclui-se que a árdua, porém inestimável tarefa de incluir é possível. No entanto, realizar essa tarefa requer dedicação de todos os atores participantes do processo. Para o bom êxito da pesquisa, foi essencial a participação da mediadora de Gabriela como uma das autoras, devido ao contato diário com criança e consequentemente, com a família e a escola. No entanto, não concordamos com o trabalho da mesma, desenvolvido juntamente com a criança, uma vez que tal apoio deve ser oferecido pela instituição escolar. Mas, no decorrer do trabalho verificou-se a participação essencial da mediadora como contribuinte para o desenvolvimento de Gabriela. Entende-se que esse processo inicia-se na família, a qual aceita e valoriza Gabriela, os pais são incansáveis ao investir no desenvolvimento da criança, oferecem a ela uma educação regulada com muito amor e disciplina, o último é fator determinante para a boa socialização de Gabriela na escola. Ao visitar a escola, constatou-se o enorme carinho dispensado a ela por todos os professores, sem exceção. Como foi visto no corpo do estudo tal aferição é elemento essencial para o bom relacionamento entre professor e aluno, o qual influencia diretamente na aprendizagem. No entanto, não basta carinho, é preciso trabalhar, envolver-se por essa tarefa, é neste momento que existem exceções no caminho de Gabriela, alguns professores preferem absterse do processo. Essa abstinência consiste em atitudes que passam pela negação de orientá-la em determinada atividade, fingir não ver situações que a criança é excluída em sala, falta de planejamento para adequar suas aulas e atividades para abarcar toda a turma (a qual Gabriela

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está inserida) chegando até mesmo a induzi-la às respostas corretas em avaliações, afinal todas essas atitudes são mais fáceis e cômodas, pois como foi dito a tarefa é árdua. Porém, é importante ressaltar que tal postura estende-se à equipe técnica e de psicologia da escola, as quais se mantêm ausentes do processo, no sentido de não estabelecer com a mediadora uma relação de soma, para juntas viabilizarem a inclusão de Gabriela. É lamentável observar que atitudes como essas são comuns nas escolas, ambiente que, teoricamente recebe a todos, aceita as diferenças e as utiliza para o desenvolvimento da comunidade escolar, logo agir desta forma, é uma atitude no mínimo ignorante, pois é negar o desenvolvimento a si mesmo, uma vez que a inclusão proporciona esse crescimento. Desta forma, indubitavelmente, o sujeito desta pesquisa nos transformou em indivíduos melhores. Afinal, não é para contribuir com que sejamos mais felizes que serve a ciência e todos os artefatos humanos? 8 REFERÊNCIAS CAMPBELL, Selma Inês. Múltiplas faces da inclusão. Rio de Janeiro: Wak, 2009. COUCEIRO, Luana dos S; OLIVEIRA, Larissa S. de; ROCHA, Rodrigo S. B. Fisioterapia no desenvolvimento neuropsicomotor da Síndrome18 Q-: estudo de um caso. Fisioterapia em Movimento, Curitiba, v.19, n.4, p. 63-71, out./dez. 2006 VYGOTSKY, L.S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004 WERNECK, C. "Por que nossos filhos vão à escola?". . Acesso em: 20 out. 2011

Disponível

em:

A METODOLOGIA DE ENSINO E O CONHECIMENTO PRÉVIO PARA ALFABETIZAR CRIANÇAS SURDAS DO INSTITUTO FELIPE SMALDONE ANA ROSA VILHENA DE SOUZA45 LEILANE FERNANDA DAS DORES MONTEIRO46 JOSÉ ANCHIETA DE OLIVEIRA BENTES47 RESUMO Esta pesquisa discute avanços teóricos relativos à metodologia de ensino, à aprendizagem, ao estudo dos instrumentos e aos objetos de ensino de alunos surdos. Visa descrever e compreender os saberes necessários para se alfabetizar surdos em sala de aula pela interação dos três componentes do sistema didático: o professor, os alunos e os objetos a ensinar. O foco são os estudantes surdos das séries iniciais, no processo de alfabetização, pois, é neste momento que se apresentam as possíveis dificuldades de aprendizagem da leitura e da escrita. A pesquisa foi realizada no Instituto Felipe Smaldone no mês de novembro do ano de 2013, por meio dos pressupostos da Pesquisa Colaborativa em educação, procurando analisar todo o processo de intervenção didática utilizados pelos professores para servir de proposta para 45

Graduanda em Letras Libras pela Universidade do Estado do Pará. E-mail: [email protected] Especialista em Educação Inclusiva pela faculdade Ipiranga [Graduada em Letras Língua Portuguesa pela universidade do Estado do Pará e Estudante de Graduação em Licenciatura em Letras Libras pela Universidade do Estado do Pará]. E-mail: [email protected] 47 Doutor em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (PPGEES-UFSCAR-SP). Mestre em Letras: Linguística pela Universidade Federal do Pará). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED-UEPA). E-mail: [email protected] 46

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trabalhos didático-pedagógicos em formação inicial e continuada na escola. O artigo está organizado a partir de um breve relato histórico do Instituto Felipe Smaldone e de uma descrição do que ele oferece para o ensino primário da pessoa surda, os quais contextualizam a análise dos saberes necessários do docente para alfabetizar uma criança surda. Os resultados das entrevistas realizadas com as professoras do 1º ano e professoras da sala do projeto de letramento, indicam as dificuldades que elas encontram para alfabetizar uma criança surda, muita das vezes por não terem conhecimento dos saberes necessários. Os resultados podem contribuir amplamente para a organização da alternância entre a teoria e a prática em formação inicial e formação continuada dos professores. Palavras-chave: Alfabetização de surdos. Trabalho Docente. Objetos de ensino. INTRODUÇÃO A partir dos progressos teóricos e de uma posição crítica em relação aos certos discursos ideológicos – valores, crenças e opiniões correntes – as investigações sobre informação a aprendizagem dos alunos com deficiência tomaram desde os anos de 1980 um novo desenvolvimento. De fato, os avanços significativos na elaboração de projetos, parâmetros e documentos oficiais, nos últimos trinta e quatro anos, começaram a organizar um saber rigoroso dos objetos ensinados – postos nos livros didáticos e em textos teóricos especializados para orientar as práticas do professor. Posto estes argumentos, elaboramos algumas razões específicas pelas quais nos levaram a realizar esta pesquisa sobre os saberes necessários ao trabalho de alfabetização de surdos na prática escolar. Postas as razões, passemos para os passos metodológicos. Foram realizadas observação no Instituto Felipe Smaldone, a partir do projeto: “Expressando o mundo através das línguas” com professoras do 3º ano do ensino fundamental – tendo em média 13 alunos –, e com professoras do 1º ano, tendo em média 08 alunos. Do total foram quatro professoras pesquisadas. Em síntese: será abordado a seguir em que consiste o trabalho dessas professoras do Instituto Felipe Smaldone, nas series iniciais, indo do Maternal até o 4º ano, sendo uma Instituição voltada para a alfabetização da pessoa surda, tendo como referencial teóricometodológico autores como: Vygotsky (1993), Bakhtin (2004), Flusser (2010), Rojo (2009) e Mello (2001) que nos ajudaram a descobrir os saberes necessários para alfabetização de crianças surdas. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Ao falarmos sobre o trabalho da Alfabetização de crianças surdas, não podemos esquecer a raízes genéticas do pensamento e da linguagem indicam que “o progresso da fala não é paralelo ao progresso do pensamento” (VYGOTSKY, 2008, p. 41). Segundo esse autor o processo da fala na criança ocorre da seguinte forma: [...] É preciso considerarmos várias hipóteses e chegarmos à conclusão de que a fala interior se desenvolve mediante um lento acumulo de mudanças estruturais e funcionais; que se separa da fala exterior das crianças ao mesmo tempo em que ocorre a diferenciação das funções social e egocêntrica da fala; e, finalmente, que as estruturas da fala dominadas pela criança tornam-se estruturas básicas de seu pensamento (VYGOTSKY, 1993, p. 62).

Vygotsky explica sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos na infância e como é realizado esse trabalho para as crianças, porém surgem algumas perguntas: “O que acontece na mente da criança com os conceitos científicos que lhe são ensinados na escola?

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Qual é a relação entre a assimilação da informação e o desenvolvimento interno de um conceito cientifico na consciência da criança?” (VYGOTSKY, 1993, p. 103). Ao falarmos da criança surda, se observa a grande dificuldade que a mesma terá para desenvolver a leitura e a escrita em seu desenvolvimento escolar, presumimos que crianças provindas de famílias fluentes em Língua de Sinais (LIBRAS) têm uma dificuldade menor devido os conceitos desta Língua serem apresentados para elas desde cedo, e elas podem tirar dúvidas e se comunicam sem muitas dificuldades em comparação com aquelas crianças surdas que não oralizam e não são fluentes em LIBRAS, vivendo rodeadas de pessoas ouvintes, não tendo a oportunidade de ter contato com pessoas surdas. Bakhtin (2004, p. 93) explica que “O processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado”. O autor trabalha com um mundo em movimento e em perene transformação, seu objeto está sempre em processo, não se submete a uma forma fixa e imutável. E é exatamente por isso que este autor não aceite que uma língua seja um conjunto de formas (signos) e suas regras de combinação (sintaxe). Da mesma forma, tem-se que o conceito de alfabetização não é simplesmente o estado ou condição de quem sabe ler e escrever, mas é muito complexo, por isso, começou-se a falar em níveis de alfabetismo, ou seja, letramento é diferente de alfabetismo. Segundo Rojo (2009, p. 76): “Alfabetizar-se, conhecer o alfabeto, envolvia discriminação perceptual (visão) e memória dos grafemas (letras, símbolos, sinais), que devia ser associada, também na memória, a outras percepções dos sons da fala (fonemas)”. Conforme o que a autora afirma sobre esse processo de alfabetização, o indivíduo poderá chegar a uma fluência de leitura, entretanto, seguindo essa teoria, observa-se que as capacidades focadas eram as de decodificação do texto, sendo esse muito importante para o acesso à leitura. E o que falarmos da leitura e escrita dentro das escolas? Rojo (2009, p. 74) explica um pouco sobre o que é a escola dentro desse contexto da leitura e da escrita. A escola é um universo de cultura escrita, e podemos nos perguntar se os meios populares não se distinguem entre si do ponto de vista de sua relação com a escrita. Por detrás da similaridade aparente das categorias sócio-profissionais, talvez se escondam diferenças, abismos sociais na relação com a escrita, diferentes frequências de recurso a práticas de escrita e leitura, diferentes modalidades de uso da escrita e da leitura, diferentes modos de representação dos atos de leitura e de escrita, diferentes sociabilidades em torno do texto escrito (ROJO, 2009, p. 74).

Caracterizando a leitura, temos diversos saberes necessários, a saber: a decodificação, a compreensão e a interpretação. A decodificação, pode-se dizer que começa a partir dos grafemas – da escrita –, devendo ser associado à memória e a outras percepções – visão, audição – dos sons da fala – fonemas – uma vez construídas essas associações, a pessoa poderia a partir daí chegar a formar sílabas até chegar à formação de uma palavra, partindo de palavras para poder construir frases e assim por diante até formar parágrafos e por fim, a um texto, sendo denominado todo esse processo de fluência de leitura, isso leva a conclusão que a decodificação é um saber muito utilizado no aprendizado da leitura e também da escrita. São capacidades de decodificação: saber a diferença entre a escrita e outros símbolos; as convenções – o ajuste ou determinação sobre um assunto ou fato, etc. –, conhecer o alfabeto; saber a relação grafema e fonema; decodificar palavras (sílabas); reconhecer palavras e a sacada do olhar – como olhamos as palavras, geralmente olhamos a primeira e a última sílaba (ROJO, 2009). Já a compreensão abrange um segundo agrupamento de saberes necessários para a leitura e a escrita, como posto por Rojo (2009, p. 77): “Posteriormente, passou-se a ver o ato

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de ler como uma interação entre o leitor e o autor. O texto deixava pistas da intenção e dos significados do autor e era um mediador desta parceria interacional”. São capacidades de compreensão: 1) Ativação de conhecimentos de mundo: o leitor, durante a leitura costuma colocar em relação seu conhecimento de mundo, procurando sempre comparar com o que o autor utiliza em seus textos; 2) Antecipação ou predição de conteúdos ou de propriedades dos textos: o leitor, conforme está lendo determinado conteúdo, cria hipóteses, esta estratégia opera durante toda a leitura; 3) Checagem de hipóteses: devido essas hipóteses do leitor, ele irá ver no decorrer do texto se suas hipóteses estão certas ou se tomarão outro rumo, podendo gerar novas hipóteses mais adequadas para o leitor; 4) Localização e/ou retomada (cópia) de informações: o leitor busca informação dentro do texto, sejam essas, citações, para depois poder comparar com outros textos e/ou utilizar para acrescentar em outros escritos, enfim, com certa finalidade de reorganizar posteriormente; 5) Comparação de informações: para construir o texto que está lendo, para chegar a uma determinada hipótese, o leitor compara o que está lendo com outros textos ou com seu conhecimento de mundo; 6) Generalização (conclusão geral sobre fato, fenômeno, situação-problema, etc.): após análise de informações pertinentes, esta generalização é feita pelo leitor através da síntese exercida sobre enumerações, exemplo, explicações, repetições, etc.; 7) Produção de inferências locais: quando o leitor se depara com alguma palavra desconhecida, geralmente exercerá estratégias inferenciais, isto é, descobrirá, pelo contexto imediato do texto e pelo significado anteriormente já construído, novo significado para esse termo, até então desconhecido, ou o leitor tentará chegar mais próximo do verdadeiro significado daquela palavra; 8) Produção de inferências globais: o texto tem seus implícitos ou pressupostos que também tem de ser compreendidos em uma leitura efetiva. Em relação à Interpretação, observa-se que o leitor, como explicado anteriormente, deverá decifrar a escrita, logo depois entender a linguagem encontrada no texto, em seguida decodificar todas as implicações que o mesmo tem e, finalmente, refletir sobre isso e formar o próprio conhecimento e a opinião a respeito do que leu. O que acontece é que fomos conhecendo cada vez mais a respeito dos procedimentos e capacidades envolvidos no ato de ler, ou seja, o simples ato da leitura não consiste apenas em decodificar palavras, ou fazer uma leitura corrida, sem respeitar as pontuações e regras gramaticais, ou fazer uma leitura mecânica, implica compreender o que esse texto tem a nos dizer e interpretá-lo através dos nossos conhecimentos de mundo, procurando aprender mais com o que lemos. As observações em sala foram feitas primeiramente na sala do 3º ano, sendo as professoras entrevistadas: Lourdes e Socorro, no período de novembro de 2013 No segundo momento foi à sala do 1º ano – antiga alfabetização – e as professoras entrevistadas foram: Silvana e Walena, no período de janeiro/fevereiro de 2014 OS SABERES NECESSÁRIOS PARA ALFABETIZAR SURDOS Antes de começarmos a pontuar os saberes necessários para a alfabetização do surdo, é preciso que primeiro conceituar a Alfabetização. Pode-se dizer que o ato de alfabetizar consiste em ensinar uma criança a ler e a escrever, esta é uma das primeiras ideias que vem em nosso pensamento. Entretanto, será que é tão simples o ato de ensinar a ler? Toda criança possui um esquema de assimilação que evolui de acordo com a etapa de desenvolvimento que

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atravessa, podendo essa etapa ser a partir do momento em que a criança agarra os objetos. Pode-se dizer que neste momento, a criança já começa a sua leitura em relação àquele objeto. A alfabetização deve ser entendida, pois, como um processo que se inicia com a criança pegando, vendo, “ouvindo”. Em relação à criança surda não se pode deixar de trabalhar os pequenos sons – ruídos – que algumas crianças ouvem – combinando e experimentando objetos. É fundamental, porém, compreender que ler e escrever constitui apenas uma etapa do desenvolvimento e que, sem uma sólida estrutura anterior – conhecimento de mundo da criança em relação à escrita – ela terá mais dificuldade de alcançar outros patamares de saber. Com isso, conclui-se que o ato de Alfabetizar é transformar, nomear as coisas do mundo real para uma variedade de modalidades – escrita, visual, tátil, auditiva, e de inúmeros movimentos do corpo. Passemos então para a descrição e análise dos saberes necessários. ENTREVISTA NA SALA DO PROJETO A turma presente na sala do projeto “Expressando o mundo através das línguas” era constituída por alunos do 3º ano – tendo em média 13 alunos. Foram observadas duas professoras ouvintes: uma de Língua Portuguesa (Ieda) e a outra de Teatro (Lourdes) para trabalhar as expressões corporais dos alunos através da dança e do teatro e uma professora surda (Socorro). Observou-se nesta sala que os objetos de ensino são repassados para os alunos em slides, tendo essas atividades muitas figuras, objetos e poucos textos, geralmente as atividades de escrita são de completar as frases, substituir as figuras dos objetos e/ou animais pelos seus respectivos nomes, como fica evidente no recorte de entrevista 01 RECORTE 01: Então a gente começa com essa questão visual mesmo, imagens têm textos ele é visual e as palavras são escritas em português, é e partindo disso o que fala da língua de sinais. Também temos, paralelamente, temos aulas de línguas de sinais, que vão aprender sinais que eles não conhecem, então vamos estudar os animais, então eles vão aprender os sinais dos animais para poder contextualizar isso ou isso são paralelos do que vão acontecendo, a gente pega uma imagem de uma floresta onde tem vários animais a partir desse texto visual a gente explora a língua de sinais e depois o português, sempre, geralmente a ordem é a língua de sinais, nessa final de reta agora de novembro, nós estamos fazendo com que eles é, com que eles trabalhem muito mais a escrita mesmo, as escritas propriamente ditas no papel”. (LOURDES, Entrevista realizada em 13/11/2013).

Observa-se no comentário da professora o quarto saber que trata da fluência na Língua de Sinais, além de ser ressaltado pela professora que o ensino para a criança surda parte do visual – primeiro saber. Além disso, a professora enfatiza logo no final de seu argumento sobre o trabalho da escrita sendo o mais trabalhado no final do semestre. “O ato de escrever é simplesmente uma forma de imprimir as letras” (FLUSSER, 2010, p.63), ou seja, tem por finalidade registrar algo. RECORTE 02: Porque primeiro é trabalhado a LIBRAS e aqui na escola nós temos projetos e o projeto da 3ª serie é em cima de receitas então tudo é voltado pra receitas é trabalhado primeiro sempre a língua mãe deles a LIBRAS ai ele vem pra cá nós vamos explorar o texto, depois vai para o quadro pra interpretação, desce vamos fazer os docinhos, vamos fazer a pizza, fomos no supermercado fazer a compra desse material aí , além do projeto de sala existe outro projeto que é a professora de libras, que é surda, de português que é a ideia e a de teatro que é a Lourdes, são as três então hoje de manhã eles passam a manhã todinha lá em cima aí tudo que é feito aqui em sala é reforçado lá em cima com elas então existe toda essa diferenciação (SOCORRO GOMES, Entrevista realizada em 01/11/2013).

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Nesse recorte 02, observa-se o segundo saber que é a fluência na língua de sinais. Nota-se ainda a metodologia utilizada pela professora para repassar determinado conteúdo – neste caso é uma receita de pizza – e se observa também a estratégia de interpretação que ela utiliza para repassar esse conteúdo em LIBRAS. ANÁLISE NA TURMA DO PRIMEIRO ANO Iniciamos descrevendo as observações feitas na sala do 1º ano e na sala onde ocorre a execução do projeto “Expressando o mundo através das línguas” – no momento da observação esta sala estava sendo composta por alunos do 3º ano. A turma do 1º ano é composta por 09 alunos, tendo 07 alunos surdos e 02 que apresentam outras deficiências, podendo ser autismo – ainda não se tem um diagnóstico. As professoras que trabalham nesta turma são: Silvana e Walena, pedagogas e com Especialização em Educação Especial. A metodologia utilizada pela professora Walena é fundada no visual, através de amostra de figuras e objetos. Ao perguntarmos como é feito o ensino da leitura e escrita para essas crianças, já que elas preferem conversar entre si utilizando a LIBRAS entre si e com as professoras preferem oralizar, observou-se segundo o argumento de uma das professoras: RECORTE 03: É porque na verdade alguns professores aqui professores de Libras, eles preferem começar primeiro a L2 (LIBRAS), né? No caso do surdo ele aprende primeiro a Libras para depois a L1 que para ouvintes é a Língua Portuguesa, tá? E muitos discordam, muitos professores pensam que primeiro deve ser realizado a L1 (Língua Portuguesa) e depois, vai ser visto a Libras, só que eu acho assim, que a gente tem/de acordo com a sua turma se você acha que pode primeiro a L1 – Português e depois a L2 a LIBRAS você pode fazer ou vice-versa, você pode, se a maioria da turma está mais entendida com a LIBRAS, aí você já começa com a Libras pra depois passar pra Língua Portuguesa porque você que está em sala de aula, você que sabe o nível que seu aluno tá, qual é que ele vai receber melhor? O entendimento dele no caso, né? Ai você segue esta linha (WALENA. Entrevista realizada em 05/02/2014).

A professora ressalta nesse recorte que a L1 vem ser a Língua Portuguesa e a L2 vem ser a LIBRAS, entretanto ela partiu do pressuposto que a referência venha ser uma pessoa ouvinte porque se fosse à pessoa surda a L1 será a LIBRAS e a L2 será a Língua Portuguesa, isto fez com que a entrevistada se confundisse ao tentar explicar qual seria a melhor forma de ensinar e educar uma criança surda se era ensinando primeiramente a LIBRAS ou a Língua Portuguesa. Elas – as professoras – já trabalham desde cedo os artigos – A, O, AS, OS - por exemplo: “o cotonete”, “o creme dental”, “o papel”, “a toalha”, “o sabonete”, “a escova”, “o condicionador”; além disso, a professora escreve no quadro o significado de cada objeto: o creme dental - serve para os dentes; o sabonete - lavar o corpo; o talco - para ficar cheiroso; a toalha - para enxugar mãos e rosto; o condicionador - amaciar os cabelos e a escoa - pentear o cabelo. Porem a explicação dos significados dos objetos tornou-se muito superficial para os alunos porque os mesmos não conseguiram entender a oralização da professora Walena e pouco compreenderam os sinais em LIBRAS que ela fazia para explicar todos aqueles significados. Em outro momento (30/01/2014) na sala do 1º ano as professoras estavam revisando o conteúdo de higiene pessoal realizando atividades de escrever as palavras, completando as frases de acordo com os desenhos, exemplo: a) com a ESCOVA escovo meus dentes; b) com o SABONETE tomo banho; c) uso a TESOURA para cortar as unhas; d) com o PENTE penteio os cabelos. Entretanto isso acabou se tornando mais confuso para as crianças devido às mesmas terem outro conhecimento daqueles objetos, por exemplo, o sabonete não serve

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apenas para tomarmos banho, mas serve para lavar as mãos, o rosto, enfim tem outras funções, assim como a tesoura também tem outras funções. Segundo a professora Walena a metodologia e objetos de ensino utilizados dentro de sala de aula ocorrem da seguinte forma: RECORTE 04: A gente começa mostrando é:: figuras é:: assim da vivencia da criança a gente procura jogar pra sala de aula, a gente mostra objeto, tem que ser uma coisa bastante o concreto, o visual porque pra eles tem que ser nesse sentido. Então a gente começa mostrando, a gente faz bastante é:: a gente trabalha é/a gente procura fazer tudo de uma forma lúdica e tudo que a gente passa quando a gente está construindo essa leitura, essa escrita, a gente tenta passar assim de uma forma lúdica, mostrando e a gente desenvolve essas atividades, e vamos mostrando as letras e os objetos depois já passa pra é:: palavras também, tudo que a gente focar que for dado pra eles, se for pra construir uma palavra, uma sílaba, uma palavra, um nome, tem que ser mostrado o concreto o objeto e aí a gente vai fazendo, buscando outras metodologias né? A gente usa muito o alfabeto móvel, a gente costuma usar porque eles começam a/eles passam pra leitura através desse objeto que a gente tem que é o alfabeto móvel, a letrinha que a gente mesmo faz, cada um tem o seu e que é trabalhado todo dia com eles, então da feita que a gente começa a passar no quadro, né? Então a gente começa a trabalhar com o nome deles desde quando eles chegam na escola, então cada um tem a sua pastinha, e eles vão construindo, vão vendo, e ao mesmo tempo que eles vão construindo eles vão aprendendo, tendo contato, né? Então através do visual e o contato que eles têm, eles vão construindo ali na sua mesinha, tá? E depois desse processo que eles fazem com o alfabeto móvel eles passam a passar pro caderno aquilo que eles estão construindo. Tem aquela fase também que eles vão pra/que é a:: caligrafia é uma coisa que a gente não deixa, tem pessoas que dizem: “a porque é antiga”, mas é necessário pra eles, então a gente vai fazendo esses momentos aí. E a gente ver que eles conseguem resultados. (WALENA. Entrevista realizada em 05/02/2014).

No início dessa entrevista, observa-se que o saber utilizado para a realização das atividades é o visual, ou seja, o primeiro saber, devido à utilização de figuras, objetos, e a entrevistada dá ênfase à importância do visual. Quando ela explica a utilização diária do Alfabeto Móvel – letras do alfabeto, peças soltas – para o desenvolvimento da leitura desse aluno surdo tem-se aí o segundo saber que relata sobre a utilização de instrumentos, objetos de ensino. Entretanto ela relata sobre a escrita, ou seja, o registrar no caderno essas atividades, os alunos olham para as figuras e tem que escrever o nome daquele objeto, uma cópia, uma repetição, escrever o que já está escrito. “O gesto de escrever não se orienta diretamente contra o objeto, mas indiretamente, por meio de uma imagem, ou seja, por meio da transmissão de uma imagem” (FLUSSER, 2010, p. 36). Já a professora Silvana explica um pouco como são utilizados e trabalhados os objetos de ensino: RECORTE 05: Olha geralmente se apresenta para o aluno em LIBRAS determinado objeto e depois a gente faz a dramatização, depois a datilologia para que ele possa se apropriar dessa escrita. E para incentivar esses alunos, geralmente os textos, nós trabalhamos através de dramatização e o teatro continua nesse mesmo foco. Geralmente eu peço, por exemplo: FLOR, eu já mostrei para ele o sinal, já oralizei e já mostrei à imagem, agora, a gente vai aprender como é na escrita, ai eu faço em datilologia F-L-O-R. Ai a partir daí você pode trabalhar uma frase, pode montar um texto. Primeiro nós fizemos a datilologia do alfabeto, depois eles tinham que levantar e escolher a letra porque tem criança que não identifica que ainda não sabe usar os dedinhos, as mãos, mas eu percebo que eles estão se apropriando mais (SILVANA. Entrevista realizada em 07/02/2014).

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Neste trecho da entrevista 05, a professora começa dando ênfase no quarto saber sobre a fluência na Língua de Sinais e quais as metodologias que ela utiliza para que os alunos se apropriem da LIBRAS como sua primeira língua a L1 O primeiro saber que é o visual é apresentando nas atividades e a entrevistada explica como são realizadas essas atividades através do visual de apresentação de imagens, figuras, objetos. No final da entrevista, a professora explica o processo de formação de palavras para chegar à formação de uma frase, através do conhecimento do alfabeto, reconhecimento das letras que os alunos têm saber decodificar palavras, esses são as características do quinto saber que é as capacidades de leitura, mas neste caso é apenas a decodificação. Uma vez construídas essas associações, uma vez alfabetizado, o indivíduo poderia chegar da letra à silaba e à palavra, e delas, à frase, ao período, ao parágrafo e ao texto, acessando assim, linear e sucessivamente, seus significados. [...] Nessa teoria, as capacidades focadas eram as de decodificação do texto, portal importante para o acesso à leitura, mas que absolutamente não esgotam as capacidades envolvidas no ato de ler (ROJO, 2009, p.76).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das experiências vivenciadas nas salas do Instituto Felipe Smaldone, pode-se concluir que os saberes necessários utilizados pelas professoras para alfabetizar uma pessoa surda, são: 1º) O aprendizado da criança surda parte do Visual, oral, sinais e escrita, a partir de uma variedade de: a escrita alfabética não se torna importante para a alfabetização do surdo, quando o entendimento parte do visual. Os procedimentos metodológicos utilizados pelas professoras partem da imagem de certo objeto, depois para a datilologia fazendo com que o aluno conheça as letras (escrita) que correspondem ao nome do objeto (palavra) e depois disso partem para o sinal em Libras do objeto apresentado; 2º) Os equipamentos e/ou instrumentos – livros, revistas, computadores, etc. – são essenciais no processo de aquisição; 3º) As necessidades, os conhecimentos prévios e as características dos alunos são necessárias para a aquisição da escrita; 4º) A fluência em Língua de Sinais é um requisito para o processo, sobretudo pelo professor; 5º) As técnicas de ensinar os fonemas do falar é um conhecimento imprescindível. As estratégias de Decodificação, Compreensão e Interpretação que são características da Alfabetização é outro conhecimento imprescindível. Existe vários outros saberes para se trabalhar no processo de aquisição e de alfabetização, porém foram apresentados apenas os saberes que as professoras entrevistadas utilizaram para realizar seu trabalho. Observa-se que foi usado neste artigo o conceito de alfabetização para designar o conjunto de competências e habilidades ou de capacidades envolvidas nos atos da escrita da criança surda e também no aprendizado da leitura, conjunto esse que se diferencia e particulariza de um para outro indivíduo, de acordo com sua pratica social e história. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, Valentin Nikolaevich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. SP: Hucitec, 2004

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FLUSSER, Vilém. A escrita: Há futuro para a escrita? São Paulo: Annablume, 2010. MELLO, Maria Aparecida. A atividade mediadora nos processos colaborativos de educação continuada de professores: Educação Infantil e Educação Física. São Carlos, Programa de Pós- Graduação em Educação, UFSCar, 2001, tese de doutorado. ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993

A AÇÃO DO COORDENADOR PEDAGÓGICO NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA GICELE HOLANDA DA SILVA PINTO (UEPA) RESUMO: A Educação inclusiva pode ser considerada como uma necessidade do ensino público atender a todo cidadão em suas especificidades, contribuindo para o desenvolvimento pessoal, intelectual e social. O desafio se concentra na capacidade do sistema de ensino em compreender a dinâmica de educação pautada no respeito às diferenças, e principalmente executá-la. A pesquisa bibliográfica possibilitou o estudo da seguinte problemática: qual a função do coordenador pedagógico na operacionalização da Educação Inclusiva? Os objetivos foram: compreender a função do coordenador pedagógico na operacionalização da Educação Inclusiva; identificar aspectos necessários a sua função e verificar como o mesmo pode contribuir para a prática do professor do discente com deficiência. A investigação possibilitou os seguintes apontamentos: a função do coordenador pedagógico na perspectiva da educação inclusiva é inerente às atribuições de sua profissão, podendo o mesmo refletir e agir em prol do atendimento de qualidade para os discentes com deficiência, porém, o mesmo necessita construir e executar seu plano de ação e estar em formação profissional contínua. Sua ação junto ao professor, precisa estar baseada na relação de reciprocidade, sendo relevante que o coordenador conheça o professor, como também o discente, para que juntos, possam construir um planejamento específico ao discente deficiente. Juntamente a essa ação do coordenador, a proposta pedagógica da escola precisa ser construída, refletida e avaliada por todos os seus membros. Palavras-chave: Educação Inclusiva; Coordenador Pedagógico; Discente Deficiente. INTRODUÇÃO A política da educação inclusiva de acordo com Honora; Frizanco (2008), é impulsionada internacionalmente e nacionalmente através da construção e implantação da Declaração de Salamanca (1994). A inserção da política inclusiva na educação brasileira gerou a ansiedade e insegurança de gestores, coordenadores pedagógicos e professores. Comportamentos justificados pelo despreparo profissional em atender e entender as necessidades dos discentes e pela ausência de espaço físico, mobiliário e materiais pedagógicos adequados e acessíveis. No decorrer dos anos de implantação da referida declaração, os anseios e inseguranças ainda são percebidos nas instituições educacionais (SOARES; CARVALHO, 2012), sinalizando que ações ainda necessitam serem executadas. A reflexão sobre essa constatação precisa ser feita tanto pelo poder público como pela escola, uma vez que é nesse espaço que muitos saberes conceituais, procedimentais e atitudinais precisam ser construídos e reconstruídos.

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Dentre os autores do processo educacional, destaco o coordenador pedagógico que para Placco; Souza (2010), tem a função de mediador do processo de ensino e aprendizagem, ou seja, de orientação da ação docente e do acompanhamento do processo e do resultado dessa ação, que é o desenvolvimento acadêmico do discente. Mas, qual a função do coordenador pedagógico na operacionalização da Educação Inclusiva? Esse questionamento foi gerado a partir da minha prática como assessora pedagógica de inclusão no município de Tucuruí, a qual me possibilitou ter contato direto com coordenadores pedagógicos e de ter percebido que a política de inclusão não contemplava suas ações, o que desencadeava a dificuldade do mesmo em orientar o professor de sala regular no atendimento pedagógico com o discente deficiente. A presente pesquisa é de cunho bibliográfico e mediante os estudos de Alves (2008), Aguiar (2010), Garrido (2009), Geglio (2011), Mantoan (2011), Serra (2008) e Souza (2010) foi desenvolvida. A pesquisa teve como objetivo geral: compreender a função do coordenador pedagógico na operacionalização da Educação Inclusiva. E como específicos: identificar aspectos necessários a sua função e verificar como o mesmo pode contribuir para a prática do professor do discente com deficiência. O presente trabalho foi dividido nas seguintes seções: o Coordenador Pedagógico e a Educação Inclusiva; a Formação Continuada e a Prática do Coordenador Pedagógico e o Coordenador Pedagógico e o Professor: ações conjuntas para atender as diferenças. 1 O COORDENADOR PEDAGÓGICO E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA Ao iniciar um trabalho que enfatize o respeito às potencialidades e especificidades dentro do contexto escolar, é necessário que todos os profissionais passem por momentos de reflexão sobre a importância de seu papel na vida de cada discente, tentando assim, sensibilizá-los para a questão do atendimento baseado na igualdade de direitos e respeito às diferenças, não podendo ser confundido com a piedade ou caridade. Nesse enfoque, cabe ao gestor escolar juntamente com o coordenador pedagógico, buscarem alternativas que possam fazer com que a equipe escolar esteja realmente disposta e preparada para contribuir para o processo inclusivo. A equipe escolar com esta concepção passa através de suas ações, exemplos positivos, que contribuirão para a relação de respeito mútuo entre os discentes, podendo também alcançar os contextos familiares. O desenvolvimento do trabalho conjunto entre gestor escolar e coordenador pedagógico é fundamental para que a equipe seja coesa e ousada para aceitar os desafios, partilhando os sucessos e obstáculos para assim, atingirem seus objetivos. No desdobramento deste texto me reportarei para a ação do coordenador pedagógico, mas elucido que todos os profissionais que fazem parte do sistema de ensino têm a sua importância nesse cenário, onde a evolução do ser humano em todos os sentidos é almejada. O Coordenador pedagógico além de exercer grande relevância para o desenvolvimento das atividades escolares deve ser o principal articulador do processo de ensino e aprendizagem, da prática do professor e da evolução geral do discente. Essa função de articulador remete à coordenação pedagógica estar em constante sintonia com todos os acontecimentos da escola, das situações escolares dos discentes e da ação do professor, dessa forma, podemos perceber a amplitude e responsabilidade de seu papel. Geglio (2011, p.116), faz a seguinte afirmação sobre a ação do CP48: “[...] seu envolvimento com os problemas, ou melhor, com a rotina da escola atinge uma magnitude e uma profundidade que extrapolam o âmbito de sua ação profissional”.

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A abreviatura se refere a coordenador pedagógico.

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E para ser capaz de atender todas as necessidades da rotina escolar sem perder o foco de sua função, esse profissional precisa estabelecer prioridades através de um plano de ação, que de acordo com Alves (2008, p. 100) esse plano, “[...] tem por finalidade a análise, a crítica, a apreensão e a transformação das ações, a partir da centralidade assumida pela linguagem na formação dos envolvidos”. Na medida em que o coordenador pedagógico consegue projetar sua ação, colocando a teoria e a prática como aspectos que direcionem e redirecionem seu agir, o mesmo poderá visualizar os caminhos que precisa percorrer para alcançar suas metas, sem se perder nas situações escolares, que não objetivem o fazer pedagógico. É importante ressaltar que as ações desse plano precisam estar baseadas nas ações elencadas no projeto político-pedagógico, para que os objetivos estejam na mesma direção e que os esforços, para a concretização dos mesmos, sejam coletivos. No processo de inclusão escolar a ação do coordenador pedagógico deve ser compreendida como uma das maneiras de garantir que a educação seja alcançada por todos que adentrarem os espaços das salas de aula, trabalhando para que a segregação e a exclusão sejam enfrentadas e eliminadas, dando assim, espaço para a interação das diferenças. Essa afirmação é plausível, devido ao poder de articulação desse profissional junto a todos os profissionais da instituição de ensino a qual desempenha sua função. Para Souza (2010, p. 95), o coordenador pedagógico “[...] é aquele que organiza, orienta e harmoniza o trabalho de um grupo, por intermédio de determinados métodos, de acordo com o sistema ou contexto em que se insere”. É possível verificar que diante dessas capacidades de organização, orientação e harmonização do CP, a educação inclusiva é inerente a sua prática, cabendo ao mesmo, refletir e agir juntamente com seus parceiros a melhor forma de promovê-la e vivenciá-la no contexto escolar. 2 A FORMAÇÃO PEDAGÓGICO

CONTINUADA

E

A

PRÁTICA

DO

COORDENADOR

A formação continuada dentro do espaço escolar precisa ser vista como um dos meios de assegurar a oferta do atendimento às necessidades e especificidades de cada discente, por isso, precisa estar elencada e sustentada na proposta pedagógica da escola. Normalmente, nos estabelecimentos de ensino a formação continuada é direcionada somente aos professores, devido estes estarem diariamente e diretamente em contato e em relação com os alunos, sentindo as necessidades, os avanços e os comportamentos. No entanto, é relevante a expansão desses estudos para todos os profissionais da escola, inclusive ao coordenador pedagógico que ao executar sua ação precisa ter clareza de seus objetivos e conhecimento do trabalho a ser desenvolvido e para isso, a valorização de sua formação continuada deve acontecer. Como toda profissão, a sua exige estudo, pesquisa e reflexão, além de situações que possam estimular aspectos como: sua autoestima, confiança, amor ao que executa e sensibilidade para sentir, perceber e ajudar o outro, que pode ser o discente, o professor ou outra pessoa de sua comunidade escolar. Garrido (2009), referindo-se à formação continuada como meio de qualificação para o professor, percebe também a necessidade de se investir na formação do coordenador pedagógico (denominado pela autora como professor-coordenador) e faz a seguinte recomendação: [...] Para tanto, é preciso que ele, figura isolada em sua unidade escolar, tenha também um espaço coletivo e formador, análogo ao HTPC 49, no qual possa apresentar as dificuldades inerentes à sua nova função, partilhar angústias, refletir 49

HTPC: Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo.

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sobre sua prática como coordenador, trocar experiências... crescer profissionalmente, para poder exercer de forma plena sua função formadora e promotora do projeto pedagógico (GARRIDO, 2009, p. 11).

Através da existência dessa formação continuada, o coordenador pedagógico poderá agir de forma mais segura e significativa, refletindo assim, no trabalho do professor e do discente, como também, na organização e execução do seu plano de ação, evitando como já foi mencionado, deixar seu agir restrito às necessidades emergenciais do cotidiano escolar que ocorrem devido ser este o local de antagonismos. “Pensando na escola como espaço organizado, com grupos distintos, programas e rotinas, não é possível concebê-la sem antagonismo, os quais geram conflitos permanentes” (SOUZA, 2010, p. 96). Nesse prisma, as ações da proposta pedagógica precisam abarcar essa realidade descrita pela autora, onde a proposta de atendimento seja capaz de penetrar os conflitos fazendo com que os mesmos não sejam obstáculos, mas sim formas de promoção do respeito às igualdades e das diferenças, onde as informações sejam transformadas em conhecimento e as experiências em aprendizagens. Inseridos nesse contexto e nos princípios da Educação Inclusiva, Aguiar (2010), visualizando a escola também como o espaço de grupos e pessoas diferentes, percebe na ação do coordenador pedagógico a necessidade do planejamento específico para o sucesso escolar do discente com deficiência. [...] a cada matrícula de um novo aluno com deficiência, faz-se necessário um planejamento visando a adequar cada situação, o que passa por conteúdo, metodologia, recursos didáticos, avaliação, até o momento de socialização deste aluno com os demais integrantes da escola (AGUIAR, 2010, p. 144).

Partindo desse princípio a entrada e permanência do discente no sistema de ensino, ocorrerá de forma mais respeitosa e significativa. Essa é uma ação de competência da coordenação pedagógica, construída em conjunto com o professor que receberá o discente, e compartilhada com todos os inseridos no processo, inclusivamente com os pais e ou familiares. Serra (2008, p. 38), evidencia que “[...] A família possui um papel decisivo no sucesso da inclusão”. Nesse sentido, a escola precisa elencar ações que contribuam com a participação ativa da família na proposta pedagógica e no enfrentamento dos obstáculos a serem vencidos. E o coordenador pedagógico, novamente, é solicitado a ser o articulador dessa aproximação e agir da família em prol da educação de seus filhos, não podendo carregar isoladamente essa missão e a busca de parcerias se faz necessária. Para a realização das ações inclusivas na escola, deve ser percebida como uma necessidade, a busca de parceiros que comunguem os mesmos objetivos e que possam contribuir de acordo com suas especificidades, para a resolução ou minimização das situações que repercutem negativamente no processo de ensino e aprendizagem dos discentes. Aguiar (2010, p. 144), alerta: “É imprescindível o apoio de diferentes profissionais que auxiliem as múltiplas tarefas que a escola exerce atualmente, uma vez que esta instituição está cada vez mais dinâmica e complexa”. As redes de apoio podem ser compostas por diferentes especialistas que possam atender as especificidades dos discentes, para isso, é importante a parceria entre a secretaria de educação, saúde e de assistência social. Fazer inclusão requer parcerias, planejamento, estudo e principalmente aceitação, aspectos inerentes ao coordenador pedagógico que não pode ser visto como o grande responsável pela educação inclusiva, mas, como um dos principais articuladores no espaço escolar da promoção de aprendizagens de saberes e interações sociais. Os desafios de sua função são inúmeros, todavia, a sua ação precisa acompanhar, avaliar e elucidar caminhos pedagógicos que tornem a arte de educar e de aprender cada vez mais prazerosa e inclusiva.

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3 O COORDENADOR PEDAGÓGICO E O PROFESSOR: AÇÕES CONJUNTAS PARA ATENDER AS DIFERENÇAS Souza (2010) traz contribuições para a relação do coordenador pedagógico e o professor na temática da educação para o atendimento às diferenças, nos conduzindo a refletir sobre as percepções que o coordenador tem ou precisa ter do professor ao qual coordena, adentrando assim, em concepções de crenças e valores individuais. Cada professor é único, com experiências sui generis, com crenças e valores que o constituem, e é com essa identidade que desenvolverá sua ação pedagógica. O desafio do coordenador pedagógico é dimensionar a mudança necessária para, ao ter claros seus objetivos, poder avaliar seu trabalho e replanejar seu caminho com o grupo. Conhecer as identidades em relação, por meio de observações de diversas atividades, seu registro e reflexão parece ser um caminho promissor (SOUZA, 2010, p. 99).

A busca de conhecer o professor com o qual o coordenador pedagógico articula, planeja e avalia situações do desenvolvimento dos discentes, é importante, para a dinamização e efetivação do trabalho pedagógico. Esse conhecer poderá dar ao coordenador caminhos necessários para fazer com que o discente se perceba também como sujeito de ação, à medida que se sinta respeitado e valorizado em suas especificidades. É salutar a presença do coordenador pedagógico, junto à ação do professor na sala de aula e em outros ambientes, como também a ocorrência de situações que contribuam para que esse professor se socialize, interaja, se sinta participante da equipe, se expresse e que principalmente não se sinta sozinho diante das dificuldades encontradas na sala de aula. A relação de reciprocidade entre esses profissionais deve ser estimulada a cada dia através do diálogo, troca de experiências, confiança e aprendizagem, não deixando que a rotina de trabalho e os casos emergenciais interfiram no bom desenvolvimento dessa parceria. Sendo assim, é necessário que um bom planejamento das formações continuadas e das reuniões pedagógicas seja realizado, criando assim, espaços para que as dúvidas sejam colocadas, as possíveis soluções direcionadas e principalmente que ocorra a comunicação de todos os acontecimentos da escola, evitando dessa forma a descomunicação que às vezes se torna o pivô de desencontros de informações e ações. No momento do ingresso no contexto escolar de um discente com deficiência, é comum ouvirmos os professores falarem, que não conseguem se perceberem como o possível condutor do processo de aprendizagem do discente incluso, mas mesmo com suas dúvidas e renúncias, aceita não o desafio, mas por hierarquia permite a entrada do discente em sua turma. É difícil ou aparentemente fácil pensarmos como será a vida profissional desse professor e a vida escolar do discente. Apesar das ações governamentais que primam por uma educação de qualidade e inclusiva disponíveis aos sistemas de ensino, essa situação ainda é vivenciada em nossas escolas. O professor muitas vezes alega não estar preparado para o atendimento, mas o tempo vai passando e essa preparação não acontece e consequentemente a segregação e a exclusão ocorrem. Quais os empecilhos que acontecem na escola para que não ocorra essa preparação? E qual a ação da coordenação pedagógica frente a necessidade do professor e a do discente? É visível que diversas ações devem ser desenvolvidas, mas, o primeiro passo deverá ser a aceitação tanto do professor como de todos os outros profissionais da escola, em quererem fazer a inclusão na educação. Para Mantoan (2011, p. 80), esse fazer “[...] Depende, contudo, de uma disponibilidade interna para enfrentar as inovações e essa condição não é comum aos professores em geral”. Todavia, cabe a equipe pedagógica da escola buscar incessantemente e

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gradativamente essa disposição interna, pois os discentes precisam não só estar na escola, mas principalmente se sentirem aceitos e incluídos. O enfrentamento às inovações da prática pedagógica, dos recursos a serem disponibilizados, da metodologia a ser empregada e da avaliação que a educação inclusiva necessita para sua efetivação, revelam as mudanças que vêm ocorrendo em nossa sociedade, e fugir dessa realidade é utopia. É nítido também, compreendermos que não se muda de estratégias de ensino e de visões de aprendizagem em tempo mínimo, mas é importante a busca de melhorias no fazer pedagógico e para isso, o professor precisa receber apoio. Mantoan (2011) faz a seguinte afirmação sobre a importância desse apoio Essa ajuda deve vir de outros colegas mais experientes e mesmo de pessoas que compõem o grupo de trabalho pedagógico das escolas: diretor, especialistas, mas a orientação do suporte técnico deverá cair sobre as situações práticas de ensino apontadas pelo professor e consistirá de discussões e de questionamentos sobre sua atuação em sala de aula, sempre buscando diminuir as inquietações e acalmar o professor, para que ele não perca as reais proporções do caso que está sendo analisado (MANTOAN, 2011, p.82-83).

As relações de troca de experiências, das dúvidas e buscas são aspectos que podem nortear o trabalho do professor na melhoria de sua ação pedagógica, fazendo com que o mesmo possa através de sua fala, da visão do outro sobre o seu trabalho e do suporte técnico pedagógico a ser direcionado pelo coordenador pedagógico, se sentir estimulado a se disponibilizar para o desafio da promoção do atendimento às diferenças, pautado nos princípios das potencialidades e especificidades de cada discente. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo teórico evidenciou a dinâmica do trabalho do coordenador pedagógico, ancorada no envolvimento com as atividades pedagógicas, burocráticas e emergências do cotidiano, o que desencadeia um acúmulo de serviço, fazendo com que aspectos importantes como a parte pedagógica não seja direcionada como precisa ser. E para se desvencilhar desses obstáculos é sugerido a construção do plano de ação das atividades a serem executadas por este profissional. Esse planejar abre espaço para que o CP reveja as necessidades de seus professores como também dos discentes e possa se mobilizar para junto com o gestor escolar e a equipe em geral realizar um planejamento maior, que é o Projeto Político-Pedagógico. O profissional da educação, especificamente o coordenador pedagógico ao iniciar sua trajetória de trabalho, tende a se afastar da busca por estudos que fortifiquem a sua prática. O tempo fica restrito ao trabalho, porém toda prática necessita de teoria, e a educação é uma ciência social que acompanha as mudanças ocorridas na sociedade, por isso, todos que fazem a educação, precisam conhecer essas mudanças, para assim, tecerem suas percepções e verificarem de que forma a mesma poderá ser explorada e/ou desenvolvida no espaço escolar. Sua ação junto ao professor, precisa estar baseada na relação de reciprocidade, sendo relevante que o coordenador conheça o professor, como também o discente, para que juntos, possam construir um planejamento específico ao discente deficiente. A sociedade é formada por pessoas diferentes que se constituem por diferenciadas formas de ser, pensar e agir. O comportamento manifestado de cada indivíduo reflete a cultura, os valores éticos, a classe social a que pertence, a educação formal e informal recebida. Ao propor a reflexão sobre a inclusão, é preciso compreender que normalmente já convivemos uns com os outros e que cada um tem um jeito diferente de ser, ou seja, por mais que exista homogeneidade nas relações sociais a questão da heterogeneidade se destaca, evidenciando que as diferenças existem para nos aproximar, nos completar, enfim, que essa é a riqueza que temos: somos diferentes.

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REFERÊNCIAS ALVES, C. N. O Coordenador Pedagógico como Agente para a Inclusão. In: SANTOS, M. P.; PAULINO, M. M. Inclusão em Educação: culturas, políticas e práticas. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 83-105 AGUIAR, L. G. Desafios do coordenador pedagógico no processo de inclusão de alunos com deficiência no ensino regular. In: ALMEIDA, L. R. de; PLACCO, V. M. N. de S. O Coordenador Pedagógico e o Atendimento à diversidade. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p.141-155 GARRIDO, E. Espaço de formação continuada para o professor-coordenador. In: BRUNO, E. B. G.; ALMEIDA, L. R. de; CRISTOV, L. H. da S. O Coordenador Pedagógico e a formação do docente. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 9-16 GEGLIO, P.C. O coordenador pedagógico e a questão da inclusão. In: ALMEIDA, L. R. de; PLACO, V. M. N. de S. O Coordenador Pedagógico e questões da contemporaneidade. São Paulo: Edições Loyola, 2011, p. 109-125 HONORA; M.; FRIZANCO, M. L. E. Esclarecendo as Deficiências: aspectos teóricos e práticos para contribuição com uma sociedade inclusiva. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2008 MANTOAN, M. T. E. Caminhos Pedagógicos da Educação Inclusiva. In: GAIO, R.; MENEGHETTI, R. G. K. Caminhos pedagógicos da Educação Especial. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 79-94 PLACCO, V. M. N. de S.; SOUZA, V. L. T. de. Diferentes aprendizagens do coordenador pedagógico. In: ALMEIDA, L. R. de; PLACCO, V. M. N. de S. O Coordenador Pedagógico e o Atendimento à diversidade. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p.47- 61. SERRA, D. Inclusão em ambiente escolar. In: SANTOS, M. P; PAULINO, M. M. Inclusão em Educação: culturas, políticas e práticas. 2ª Ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 31-42. SOUZA, V. L. T. de. O Coordenador Pedagógico e o atendimento à diversidade. In: PLACO, V. M. N. de S.; ALMEIDA, L. R. de. O Coordenador Pedagógico e o cotidiano da escola. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 93-112

INCLUSÃO ESCOLAR E AS POLITICAS EDUCACIONAIS NO ENSINO DE SURDOS KLÉBER CARLACK MARTINS DA SILVA (UEPA) [email protected] KATHARYNI MARTINS PONTES (UEPA) [email protected] RESUMO As escolas públicas de ensino regular, que se propõem a dar uma educação para alunos surdos, acabam descumprindo algumas leis que garantem adaptação metodológica, curricular e de infraestrutura nos espaços para os alunos nessas escolas. A falta de profissionais

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preparados para atuarem na educação especializada de surdos, a problemática em relação à falta de recursos materiais, a baixa qualidade do ensino, a estrutura das salas e do espaço escolar em geral são aspectos fundamentais em prol de mudanças. Os problemas anotados e discutidos neste trabalho deixaram cada vez mais evidentes que discussões com relação às politicas públicas educacionais e a inclusão das pessoas surdas, no contexto escolar, estão longe de terminarem. Este é um tema discutível e dinâmico por envolver mudanças de comportamento, de atitude ética, e principalmente de compreensão em relação às essas pessoas que de fato são diferentes. O objetivo é analisar a execução de politicas publicas educacionais no ensino de surdos, utilizando o método de aplicação de questionários dirigidos aos professores que atuam no Atendimento Educacional Especializado – AEE, nas escolas E.E.E. M. Vilhena Alves e a E.E.E.F.M. Vera Simplício. Os resultados nos mostraram, o quanto ainda se tem para ser mudado, pois as escolas ainda não conseguem assumir de forma eficiente e satisfatória conforme as leis (Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, Lei 10.436/2002 e o decreto 5626/2005) acerca da educação de alunos surdos nas escolas de ensino regular. Palavras-chave: Educação de surdos; inclusão; políticas educacionais. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivos identificar as políticas públicas que garantem o processo inclusivo no ensino de pessoas surdas nas escolas pesquisadas; analisar se ocorre ou não a realização dessas políticas educacionais neste espaço educacional; e, proporcionar aos envolvidos generalizações acerca do objeto pesquisado. Nesse sentido, esse trabalho trata da pesquisa de campo realizada com professores, com aplicação de questionários semiabertos, que atuam na sala de AEE e na sala regular de ensino de duas escolas da rede pública do estado. Foi identificado e analisado através de três categorias de análise o emprego das leis, considerando a Constituição Federal de 1988, que estabelece o direito de todos à educação; o que prescreve a LDB 9394/96 sobre a política de acesso e a permanência no ensino escolar; e, o que está estabelecido no decreto (5626/2005), quanto aos direitos garantidos sobre a qualificação profissional especializada na língua de sinais e ao acesso à educação garantida através dos processos seletivos em todos os níveis. Além do que está nas orientações do “Atendimento Educacional Especializado em Surdez” (2007) acerca do ensino de alunos inclusos na rede estadual de ensino, nas turmas regulares e de Atendimento Educacional Especializado-AEE. As escolas públicas de ensino regular que se propõem a dar uma educação com caráter inclusivo para estas pessoas, não garantem a educação gratuita, considerando todos os níveis de educação, nem a de qualidade a todos, quando não se cumprem as leis que garantem o acesso e a permanência, adaptação metodológica e curricular e a infraestrutura dos espaços nas escolas. Por, isso, a falta de profissionais preparados para atuarem na educação especializada de surdos, a problemática em relação à falta de recursos materiais, a baixa qualidade do ensino, a estrutura das salas e do espaço escolar em geral são aspectos fundamentais em prol de mudanças. Esses problemas identificados e analisados neste trabalho deixaram cada vez mais evidentes que discussões com relação às políticas públicas educacionais no que tange a inclusão de pessoas surdas, no contexto escolar, estão longe de serem resolvidos. Além dessas discussões temos que compreender que há um conflito entre os objetivos da educação especial e a educação de surdos, uma vez que vem sendo fortalecida uma teoria que surdo não seria deficiente e sim uma minoria linguística, o que retiraria os surdos de campo de abrangência da educação inclusiva. Que acaba caindo em outra discussão, a de uma escola bilíngue para surdos como a política de manutenção da língua de sinais, uma vez que

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as escolas regulares têm o trabalho docente totalmente voltado à língua portuguesa, seja ela oral ou escrita, portanto torna-se uma escola monolíngue. Por conta disso, procuramos verificar através de questionários semiabertos com os professores que atuam nestes espaços de realização efetiva das políticas públicas com relação ao ingresso e a permanência, propostas metodológicas adequadas e mudança no ambiente da escola, e analisar se as leis que garantem essas mudanças se efetivam com base nas respostas desses profissionais da área. Este processo de análise por meio das categorias em prol de resultados e discussões se configura o método desta pesquisa. 2 POLÍTICAS PUBLICA DE INCLUSÃO SOCIAL PARA AS PESSOAS SURDAS A educação inclusiva pressupõe a elaboração de políticas públicas para diversas pessoas que estão excluídas da escolarização e que esta exclusão é motivada por duas principais causas, a exclusão por características corporais, ou seja, os deficientes, pessoas com doenças crônicas e pessoas com transtornos mentais. A outra seria a exclusão por condição social, podendo abranger de crianças filhos de presidiário, prostituta, pessoas em pobreza extrema a adultos que não tiveram acesso à escola. E no Brasil a inclusão está mais relacionada ao campo da Educação Especial do que ao campo dos Estudos Surdos, como diz Bentes, (2014, p. 131) No Brasil esse termo inclusão está muito mais ligado à dita educação especial, que de acordo com a legislação também abrange as pessoas com altas habilidades ou superdotação, pessoas com deficiência e as com transtornos globais de desenvolvimento.

As pessoas diferentes devem possuir direito a uma matricula na escola pública, a um apoio individualizado e efetivo, em um ambiente que melhore o desenvolvimento acadêmico e principalmente social, de acordo com a meta de inclusão plena descrita no decreto Nº 7611/2011, no artigo 1º, item VI. Já em relação à educação de surdos a discussão é bem maior, pois existem teorias que apoiam a ideia que o surdo não é “deficiente”, já que essa deficiência pode ser compensada pela língua de sinais. Se pensarmos assim o surdo não estaria na abrangência da deficiência e na de educação especial. Neste caso, já se fala de minoria linguística (SCLIAR, 1998). Por tudo, encontra-se outra discussão: a da escola bilíngue para surdos, pois na escola regular o ensino gira em torno do ensino de língua portuguesa, ainda como primeira língua, portanto, um ensino ainda pautado em posicionamento e discurso em defesa de uma abordagem monolíngue. 2.1 O ATENDIMENTO ESCOLAR ESPECIALIZADO PARA OS ALUNOS SURDOS: UMA PROPOSTA INCLUSIVA O trabalho pedagógico com os alunos surdos deve ser desenvolvido em um ambiente bilíngue. Um período adicional de horas por dia, para a execução do Atendimento Educacional Especializado (AEE), segundo as orientações do MEC/ BRASIL (2007). Nesta orientação três momentos são relevantes: momento do AEE em Libras, em que todos os conhecimentos dos diferentes conteúdos curriculares, explicados nessa língua. Onde? Na escola comum, deve se ter cuidados para não se criar escolas segredadoras, o convívio dos surdos com os ouvintes é um momento indispensável para aumentar o conhecimento de ambos nessa interação. Quem? Essas aulas devem ser ministradas preferencialmente por um professor surdo, conhecedor da língua profundamente. Quando? Todos os dias da semana se possível. Fazer atividades que unam a língua portuguesa e a Libras, torna-se indispensável para esse melhor aprendizado do aluno surdo, haja vista que o mesmo precisará das duas línguas para o melhor convívio e adaptação social.

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Momento do AEE para o ensino de Libras na escola comum. Momento este que favorecerá o aluno surdo conhecer ou ampliar o seu vocabulário diante da língua de sinais, principalmente com sinais de termos científicos. Caso esses sinais não existam, os professores buscam através de uma análise junto com os professores de áreas específicas (Biologia, História, geografia, e outros), empregando o contexto para buscar uma melhor explicação para o aluno. Trabalho que deve ser realizado pelo professor e/ou instrutor de Libras (preferencialmente surdo). Momento do AEE para o ensino da Língua Portuguesa, no qual trabalharão especificidades da L2 para os alunos surdos. Este planejamento deve ser desenvolvido conjuntamente pelos professores de Libras e os de Língua Portuguesa para pessoas com surdez, no caso este planejamento se inicia com a definição do currículo escolar, o que influencia os professores a pesquisarem anteriormente sobre o conteúdo ministrado em sala. Os alunos são observados por profissionais que direta ou indiretamente trabalham com eles, focado na sociabilidade, cognição, linguagem, seja ela oral, escrita ou viso-espacial, afetividade, motricidade, aptidões, interesses, habilidades e talentos. 3 CONTEXTUALIZAÇÃO E ANALISE DA PESQUISA NAS ESCOLAS COM RELAÇÃO À ATUAÇÃO NO AEE. A pesquisa adotada neste trabalho foi o estudo de caso, que conforme LUDKE E ANDRE, (1986 p. 17) dizem: É o estudo de um caso, seja ele simples e específico [...] o caso é sempre bem delimitado devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo. O caso pode ser similar a outros, mas é ao mesmo tempo distinto, pois tem um interesse próprio, singular.

Esta escolha é devida a pesquisa orientar a seleção de dados relevantes para o recorte que será analisado, além de permitir na análise aos envolvidos criar generalizações sobre o tema em foco (LUDKE E ANDRE, 1986). A construção dos dados deu-se através da aplicação de questionários semiabertos aos professores, os quais responderam sobre formação inicial e continuada (cursos na área dos estudos surdos), currículo e metodologia diferenciados, instrumentos didáticos e tecnológicos utilizados em sala. Esse estudo tem como método a aplicação de questionários aos professores que atuam na sala de Atendimento Educacional Especializado – AEE e na sala regular de ensino. Estas duas escolas são definidas na pesquisa como Escola 1 e Escola 2, para efeito de preservação do lócus. Os dados foram organizados em forma de relatório para a construção de análise com base em três categorias de: permanência e acesso; metodologia de trabalho; e, infraestrutura do espaço. Por isso, a escolha do estudo de caso que é propício devido à contribuição na discussão sobre a realização de mecanismo que garantam a inclusão no espaço escolar, conforme a realidade de cada instituição.

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Política de acesso e permanê ncia

Proposta s didáticopedagógi cas

Organiza ção e infraestr

PROFESSORES Escola 1 Sala regular Sala AEE Sala regular Temos dois alunos com Este acesso à escola deficiência, sendo um não tem sido um autista e outro com problema, o professor hiperatividade. Não há acolhe estes alunos, uma flexibilidade caso ainda não tenha curricular para estes sido detectada a alunos, eles acompanham deficiência, a as atividades em sala professora indica o somente utilizando o aluno para uma material didático. A avaliação, avaliação é feita com posteriormente é feita uma maior atenção a uma avaliação mais estes alunos, de todo o específica dada pela ano letivo. O AEE COES. No entanto, a contribui de maneira permanência deste satisfatória a explorar as aluno pode ser potencialidades e atenuar prejudicada pela as dificuldades, por isso família, ao não trazer o há uma boa interação aluno corretamente nos entre a professora de horários ou não tendo classe regular e a assiduidade na escola. professora do AEE. Ainda tem o problema de alguns alunos que não frequentam a sala regular, somente a sala de recursos. O atendimento é feito com alunos entre 8 e 24 anos. É recomendado que os pais procurem escolas mais próximas as suas casas, para o bom acesso e permanência do aluno. Precisa ser mudada a questão do contra turno, pois os alunos são atendidos no mesmo horário das aulas regulares. E precisa ser mudado o engajamento das professoras das salas regulares, um compromisso maior destes profissionais. As maiores dificuldades são nas questões de materiais didáticos, que não satisfazem o proveito no ensino do aluno. As salas não são equipadas com materiais que poderiam ajudar no ensino, como: projetores, gravadores, vídeos, etc.. Materiais esses que ajudariam de forma bem

A falta de materiais dificulta o trabalho desenvolvido e o interesse do aluno em estar presente, esta dificuldade com o material é suprida ao máximo com esforço e dedicação dos professores. Os recursos assertivos não estão sendo utilizados,

Escola 2 Sala AEE São atendidos 12 alunos no turno da tarde e 04 alunos no turno da noite. Pelo turno da manhã os professores não souberam informar o número de alunos atendidos. O atendimento é realizado no contra turno do aluno, mas não possui dentro desse período um horário específico. Não há um planejamento sobre as atividades e/ou assuntos das avaliações para os alunos. Há uma resistência dos professores de ensino regular em adequar os conteúdos, essa resistência é visível também com a atuação do intérprete na escola, pois os professores ainda não aceitam bem a ideia de ser para eles, “supervisionados” pelos interpretes. Não há um envolvimento do corpo técnico da escola com os professores da Educação Especial.

A Sala do AEE é do tipo 2 Possui materiais como máquina de datilografia braile, lupa eletrônica, reglete, e punsão, um computador com dosvox, livros em braile e outros materiais produzidos pelos professores e outros comprados pelos mesmos. A variedade para alunos que não tem cegueira, não é tão

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utura do espaço escolar

eficiente no aprendizado.

pois a sala não apresenta o necessário. Já foram feitos pedidos dos materiais que estão faltando, aguarda-se apenas a resposta aos pedidos. Foi feito também o pedido de uma maior segurança para a sala de recursos que sofreu depredações e por isso neste período não pode ser utilizada.

grande. Falta de mobiliados adequados, vários profissionais em uma mesma sala, auxiliando alunos com várias necessidades diferentes.

A Constituição Federal de 1988 é clara em estabelecer o direito de todos à educação básica, como observa no Art. 206 que declara que o ensino será ministrado com base em alguns princípios relacionados a esse direito: IIIVIVII-

Igualdade de condições para acesso e permanência na escola; Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; Garantia de padrão de qualidade.

A LDB 9394/96 apresenta artigo especifico sobre educação especial onde assegura o acesso e permanência de alunos com deficiência nas escolas regulares e com isso as instituições têm que se adequar, ofertando vagas, apoio e serviço especializado para esses alunos, no caso o AEE onde este atendimento é realizado. O art.59 nos apresenta que as escolas devem assegurar aos alunos da educação especial I – currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica, para atender às suas necessidades; I – terminalidade especifica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental [...] III – professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; [...] (MILEK; SABATOVSKI; FONTOURA, 2012, p. 33)

Porém a realidade das duas instituições de ensino regular visitadas não condiz com o que apresenta a lei. As escolas não possuem infraestrutura adequada para receber esses alunos não possuem sinalizações para alunos surdos e as reformas quase intermináveis prejudicam o transito de alunos na escola, os currículos estão defasados ou não são adequados aos alunos surdos. Falta planejamento e formação para a efetiva realização dos métodos e técnicas diferenciados. Os recursos ou são precários ou improvisados, os professores do atendimento especializado ainda não conseguem lidar com o número de alunos do AEE e os professores do ensino regular não se apresentam disponíveis a mudanças no seu modo de ensino a se capacitarem para o ensino de surdos. O Atr. 3° da LDB no seu parágrafo primeiro afirma que o ensino deve ser ministrado e pautado no princípio da “igualdade de condições para o acesso e permanência nas escolas” (MILEK; SABATOVSKI; FONTOURA, 2012, p21). Mas na educação especial especificamente na educação de surdos a ausência dessa igualdade prejudica o aluno principalmente quando o corpo escolar não conhece e não compreende a importância de uso de Libras. Mesmo as escolas intituladas inclusivas não estão realmente adequadas com o que diz a LDB.

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Os professores precisam estar capacitados para atender as necessidades de seus alunos para que não ocorra um fracasso escolar e também social A carência de profissionais proficientes em libras nas escolas pesquisadas difere do que apresenta o Art. 14 do decreto 5626 de 22 de dezembro de 2005 no seu parágrafo 1° que para garantir o atendimento educacional especializado para o aluno surdo no inciso 3° consta que as escolas devem conter em seu corpo técnico: a) Professor de Libras ou Instrutor de Libras b) Tradutor e interprete de Libras- Língua portuguesa c) Professor para o ensino de Língua portuguesa como segunda língua para pessoas surdas d) Professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade linguística manifestada pelos alunos surdos. (MILEK; SABATOVSKI; FONTOURA, 2012, p. 71).

Ainda no Art. 14 as escolas tem obrigatoriamente assegurar ao aluno surdo “acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação” (MILEK; SABATOVSKI; FONTOURA, 2012, p. 70). Esse acesso acontece caso ele seja feito na língua materna do surdo na Libra, mas se há ausência de profissionais proficientes e há presença de profissionais não proficientes, isto não se efetua. A escola deve garantir também: V – apoiar, na comunidade escolar, o uso e a difusão de Libras entre professores, alunos, funcionários, direção da escola e familiares, inclusive por meio da oferta de cursos; VI – adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade linguística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa; VII – desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de conhecimento expressos em Libras desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos tecnológicos; VIII – disponibilizar equipamentos, acesso às novas tecnologias de informação e comunicação bem como recursos didáticos para apoiar a educação de alunos surdos ou com deficiência auditiva. (MILEK; SABATOVSKI; FONTOURA, 2012,p71)

A escola precisa ser um local que realmente promova inclusão se comprometendo com a qualidade do ensino e condições de aprendizagem para todos, garantindo que sejam cumpridos os direitos de seus alunos e com isso conquistar uma sociedade mais inclusiva. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O AEE foi instituído na rede estadual de ensino regular e especializado com o objetivo efetivar o ensino de qualidade e permanência ao aluno surdo, eliminando as barreiras da aprendizagem de acordo, com que propõe a legislação. Os alunos fazem da sala do AEE sua sala de aula, onde suas dúvidas sobre conteúdos de provas são resolvidas, onde os profissionais estão mais deveriam estar preocupados com a inclusão, e mais preparados para atendê-los mesmo com todas as dificuldades de infraestrutura de materiais didáticos o atendimento é realizado. Apesar de considerar que a proposta do AEE no aspecto teórico é uma boa e avançada proposta, os resultados nos mostraram que a ausência de profissionais que conheçam a especificidade linguística de alunos surdos; que a falta dos interpretes em sala e principalmente na escola, a carência de instrumentos didáticos e tecnológicos adequados no AEE para o acompanhamento desses alunos, a falta de trabalho em conjunto dos professores do ensino regular com os do AEE e a omissão dos gestores para que as mudanças nas escolas ocorram, tem causado muitos conflitos percebidos não só nos discursos como nos posicionamentos tomados entre os próprios membros do corpo docente e a gestão da escola.

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Assim, a realidade dessas escolas ainda precisa ser mudada, pois nem os professores, nem os gestores destas instituições não conseguem assumir de forma eficiente e satisfatória suas responsabilidades para garantirem que o Estado dê conta efetivamente o que estabelece a Constituição Federal do Brasil de 1988, a LDB 9394/96, o decreto (5626/2005), e as orientações do livro “Atendimento Educacional Especializado em Surdez” (2007) acerca do ensino de alunos inclusos na rede regular de ensino. Isso tudo depende de mudanças de comportamento, de atitude ética, e principalmente de compreensão de que essas pessoas verdadeiramente são diferentes. Várias reinvindicações ainda parecem não estar bem explicadas dentro dessa política de exclusão, precisa-se ainda verificar e adaptar um currículo escolar satisfatório, que alcance as necessidades de todos os alunos. É preciso atender os níveis diferenciados de aprendizagem, de acordo com o ritmo de cada aluno. A redução do número de alunos por sala, a busca de meios para que o ensino seja ativo e criativo, sem competição e nem comparação entre alunos, sendo ele deficiente ou não. Respeitar as diferenças culturais desses alunos.

5 REFERENCIAS BENTES, José Anchieta. A politica de educação inclusiva e a educação de surdos. In Trabalho docente e linguagem em diferentes contextos escolares. SANTOS, Sandoval Nonato Gomes. BENTES, José Anchieta. ALMEIDA, Patricia Sousa. (Org.). Belém: Pakatatu, 2014 LÜDKIN, Menga. ANDRÉ, Marli. E.D.A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986 SABATOVSKI, Emílio; FONTOURA, Iara P. ;MILEK, Emanuelle. LDB: lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Curitiba: 2ed. Juruá,2012 SILVA, Alessandra da; LIMA, Cristiane Vieira. Paiva; DAMÁZIO, Mirlene Ferreira Macedo. Atendimento educacional especializado: pessoa com surdez. São Paulo: MEC/SEESP, 2007 SKLIAR, Carlos. Os estudos surdos em educação: problematizando a normalidade. In A surdez um olhar sobre as diferenças. SKLIAR, Carlos org. Porto Alegre: Mediação, 1998

O LETRAMENTO LITERÁRIO NO ENSINO DE ALUNOS SURDOS: POSICIONAMENTOS, ESTRATÉGIAS E INSTRUMENTOS DIDÁTICOS MOBILIZADOS PELO PROFESSOR Katharyni Martins Pontes (UEPA) Thaís Pereira Romano (UEPA) Rita de Nazareth Souza Bentes (UEPA) RESUMO O estudante surdo tem grande dificuldade no processo de ensino e aprendizagem de literatura por não ter acesso aos objetos de ensino, porque para aprendê-los este depende da língua de sinais assim como os professores para ensiná-los. Estes às vezes não têm proficiência dessa língua no momento da interação didática, dificultando ainda mais esse processo de ensino. Ratifica-se que o problema não está unicamente no professor e muito menos nos alunos. Temse como hipótese de que a problemática esteja no modo de trabalho, escolhas de objetos e de estratégias metodológicas planejadas e articuladas com instrumentos adequados às situações de ensino desta disciplina. Assume-se neste trabalho posicionamentos favoráveis ao letramento literário com uma abordagem bilíngue para que ocorra um ensino significativo. Por isso objetiva-se apresentar uma discussão inicial do corpus identificado de acordo com as

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contribuições teóricas de Strobel (2008) e Cosson (2006). A pesquisa-ação é o tipo de investigação que adotamos porque esta consiste em orientações importantes para nos colocarmos para acompanhar e, algumas vezes, assumirmos o projeto “Literatura, leitura e produção de textos com alunos surdos do ensino fundamental e médio”, na Escola Especializada Prof.º Astério de Campos. As categorias de análise são os artefatos culturais, sendo: experiência visual, linguística, familiar e literatura surda, junto às etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação no processo de letramento literário. Conforme as análises feitas deste projeto, formularemos discussões a serem compartilhadas a partir dos resultados obtidos. Palavras-chave: Letramento literário; artefatos culturais; estratégias de ensino para surdos. 1 INTRODUÇÃO O professor precisa articular saberes e mobilizar instrumentos e modos de ensinar ao aluno surdo para que o processo de ensino e aprendizagem em literatura aconteça de forma significativa. Faz se necessário à adaptação ou a elaboração de propostas didático-pedagógicas favoráveis para o que for ensinado ao aluno passe a fazer sentido para ele, que despertem seu interesse e o façam compreender que a disciplina está relacionada à sua vida e o que está em torno de suas experiências. O uso dos objetos culturais deve ser considerado no letramento literário das pessoas surdas porque circundam a vida cotidianamente dessas pessoas: a experiência visual, a língua de sinais, a família, a literatura surda, a vida social e esportiva, as artes visuais, a política e os materiais, como propõe Strobel (2008). Por isso, a relevância de profissionais utilizarem abordagens diferenciadas na educação de surdos, sobretudo na área do letramento literário, é significativa, pois esses profissionais estão considerando e respeitando a especificidade linguística e cultural desses alunos na sua diferença. Desse modo, apresenta-se o objeto de pesquisa: conhecimento e modificações de situações de letramento literário a partir de objetos culturais apresentados aos alunos surdos pelos professores no Projeto de “literatura, leitura e produção de textos”, na Unidade Educacional Especializada Prof. Astério de Campos. Esse projeto baseou-se em alguns objetivos para efeito de acompanhamento e produção, os quais foram: identificar as estratégias metodológicas utilizadas pelos professores do projeto de literatura; elaborar estratégias para contribuir no processo de letramento literário; propor possibilidades de como os professores podem utilizar os artefatos culturais no letramento literário. A pesquisa adotada será a pesquisa-ação porque esta proporciona aos pesquisadores e aos participantes a possibilidade de resolverem com maior clareza aos problemas da situação em que vivenciaram no âmbito da pesquisa, como ação transformadora. Thiollent (2008, p.16): aponta orientações que são importantes para o desenvolvimento da pesquisa, tais como: a concepção, a organização e a socialização que podem detalhadamente serem usados como técnica. Estas categorias serão agrupadas a uma sequência básica do letramento literário em quatro passos que propõe Cosson (2006): motivação, introdução, leitura e interpretação, além de ver como essa sequência potencializa os professores no ensino dos objetos escolares, e a partir disso elaborar estratégias para atuar no projeto desenvolvido na escola. As etapas apresentadas pelo autor sobre o trabalho de letramento dizem que a motivação “consiste em preparar o aluno para entrar no texto”; para que ele aceite e se interesse pelo texto. Em seguida temos a introdução “apresentação do autor e da obra” despertando o prazer da descoberta, apresentando o livro fisicamente para que os alunos apreciem os elementos introdutórios do livro, fazendo com que o aluno receba a obra de

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forma segura e com isso seguir para o próximo passo, a leitura. Leitura essa que consiste não somente em deixar o aluno ler, mas em acompanha-lo no processo. No processo de participação percebeu-se que as professoras assumem esta postura de trabalho bilíngue no espaço do projeto. Elas têm uma proposta de atividades que envolvem os alunos na apropriação dos objetos literários através de posicionamentos, estratégias e instrumentos didáticos mobilizados cada encontro. Percebe-se o uso de diversos artefatos culturais presentes no processo didático e mobilização da sequência básica da apropriação do texto por estes estudantes. 2 LETRAMENTO LITERARIO NO ENSINO DE ALUNOS SURDOS Métodos diferentes para a educação de alunos surdos partem da necessidade de uma pedagogia diferenciada utilizando a LIBRAS. A partir desse aspecto o ensino e a aprendizagem de literatura podem ser feitos de variadas formas utilizando-se de diversas linguagens e expressões entre tantas que podem dialogar com a literatura, como diz Cereja: Como força dinâmica do processo cultural, a literatura dialoga com outras artes e linguagens, às vezes tomando a dianteira do processo de mudanças (como ocorreu no Surrealismo), às vezes ficando à mercê de mudanças que ocorrem em outras artes. Sem perder de vista o objeto central – o texto literário –, na aula de literatura cabe a música popular, a pintura, a escultura, a fotografia, o cinema, o teatro, a TV. O cartum, o quadrinho. Cabem, enfim, todas as linguagens e todos os textos, ou seja, a vida que com a literatura dialoga. (CEREJA, 2005)

A literatura não deve servir apenas para o aluno aprender a ler e a escrever, pois segundo (COSSON, 2006, p 29) “se quisermos formar leitores capazes de experienciar a força humanizadora da literatura, não basta apenas ler”. E esse é o papel do letramento literário que COSSON expõe O letramento literário, conforme o conhecemos, possui uma configuração especial. (...), o processo de letramento literário que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciado uso social da escrita, mas também, e, sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de letramento seja aquele oferecido pela escola, seja aquele que se encontra difuso na sociedade. (COSSON 2006 p, 12).

A Libras também tem seu papel neste processo, para Strobel (2008, p.44) A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos, sendo que é esta língua que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar- lhe a aquisição de conhecimento universal.

Pois será através da língua de sinais que o aluno fará a leitura em sala e na sociedade. A visão é algo muito utilizada e que faz parte de sua cultura surda, e para que isso seja respeitado o professor deve utilizar de elementos visuais em sua aula de literatura. CAMPELLO (2008) afirma que “a visualidade contribuirá, de maneira fundamental, para a construção de sentidos e significados” Compreender isto é respeitar a forma como o aluno se comunica. Esta visualidade é uma peculiaridade própria da cultura surda fazendo parte de seus artefatos culturais que são: a experiência visual, linguístico, familiar, literatura surda, vida social e esportiva, artes visuais, política e materiais. A partir desta especificidade do surdo o educador deve empregar propostas pedagógicas que utilizem recursos visuais e a literatura nas suas diversas linguagens é uma disciplina que isto pode ser aplicado com eficácia. E com isso promover o letramento literário para alunos surdos.

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Quanto à identificação das atividades propostas pelas professoras serão analisadas sob as contribuições teóricas de Cosson (2006), que propõe uma sequência básica do letramento literário em quatro passos: motivação, introdução, leitura e interpretação, além de ver como essa sequência potencializa os professores no ensino dos objetos de ensino, e a partir disso elaborar estratégias para atuar no projeto desenvolvido na escola. Para Cosson (2006, p. 62) A leitura escolar precisa de um acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista. Não se pode confundir, contudo, acompanhamento com policiamento. O professor não deve vigiar o aluno para saber se ele está lendo o livro, mas acompanhar o processo de leitura para auxilia-lo em suas dificuldades, inclusive àquelas relativas ao ritmo da leitura.

No contexto do letramento literário, sobretudo no momento da interpretação, deve ser mesmo acompanho pelo professor, pois ela é pensada em dois instantes um interior e o exterior. O interior é o encontro individual do leitor com a obra suas interpretações sobre a obra, partirão de suas experiências de convivências em diversos setores sociais. Cosson afirma que “a interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por isso, por mais pessoal e intimo que esse momento interno possa parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social”. E a partir desta leitura que o leitor fara a externalização compartilhando a sua experiência com a obra, este é o momento exterior que “é a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada comunidade”. 3 DO PROCESSO METODOLÓGICO À CONTRIBUIÇÃO NO CAMPO DE PESQUISA E ATUAÇÃO A pesquisa adotada será a pesquisa-ação porque esta proporciona, tanto aos pesquisadores quanto aos participantes no desenvolvimento da pesquisa em questão, a possibilidade de resolverem com maior clareza aos problemas da situação em que vivenciarem no lócus de pesquisa, em particular sob as diretrizes de ação transformadora. De acordo com Thiollent (2008, p.16): A pesquisa ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo corporativo ou participativo.

O autor aponta orientações que são importantes para o desenvolvimento da pesquisa, tais como: a concepção, a organização e a socialização que podem detalhadamente serem usados como técnica. Vejamos o que este autor aponta em relação à orientação: fase exploratória, tema da pesquisa, colocação dos problemas, o lugar da teoria, hipótese, seminário; campo de observação, amostragem e representatividade qualitativa, coleta de dados, aprendizagem, saber formal/ saber informal, plano de ação; divulgação externa. Quanto ao direcionamento da pesquisa o autor propõe técnicas especificas para cada momento, as quais nos possibilitam visualizar de maneira ampla e especifica o direcionamento da pesquisa em prol de ações formuladas sobre a leitura de textos literários como objeto de ensino. Quanto à identificação das atividades propostas pelas professoras serão analisadas sob as contribuições teóricas de Cosson (2006), no que diz respeito ao uso de objetos de ensino e uso de instrumentos mobilizados pelos professores do projeto para que os alunos surdos possam aprender de fato os textos literários escolhidos nesse projeto. Tudo isso somado aos

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posicionamentos desses professores com relação à concepção de linguagem e modo de ensino, os quais devem ser diferentes conforme os sujeitos envolvidos. 4 DA PARTICIPAÇÃO ÀS ORIENTAÇÕES DE ANALISE DO CORPUS: OS ARTEFATOS CULTURAIS NO PROCESSO DE LETRAMENTO LITERÁRIO. Podemos denominar artefatos culturais tudo que é produzido de material e imaterial por uma determinada cultura. O povo surdo possui seus artefatos culturais, Strobel (2008, p.38) afirma que os artefatos culturais do povo surdo ”ilustram a cultura do povo surdo isto é, as suas atitudes de ser, de ver, de perceber e de modificar o mundo”. A analise será feita com os seguintes artefatos: experiência visual, linguística, familiar e literatura surda. A experiência visual como artefato cultural consiste em ser a maneira como o sujeito surdo percebe o mundo - pela visão. É através dela que o surdo percebe as alterações e ocorrências no ambiente em que convive, daí a importância de uma língua visuogestual como a LIBRAS, pois a “visão é utilizada como meio de comunicação” afirma Strobel (2008). As atividades propostas foram projetadas e executadas sempre a partir desta especificidade dos alunos. A experiência visual deve ser explorada desde cedo com a criança surda, no contato com adultos surdos faz-se necessário o desenvolvimento da percepção visual, para que isso o constitua, como afirma Strobel (2008, p. 41) “importância de trazer as crianças surdas ao contato com surdos adultos para criarem um vinculo identificatório cultural”. O contato da criança surda com o adulto surdo proporciona melhor acesso e conhecimento da língua de sinas e a identidade cultural do povo surdo. Na língua de sinais o uso de expressões tanto faciais como corporais fazem parte dessa experiência visual, são utilizadas como pontuação das frases em libras e para reiterar algo que está sendo transmitido. A Libras é um artefato cultural linguístico, pois é através dele que o aluno surdo vai aprender diversos conhecimento escolar e de mundo. Língua de sinais, sinais emergentes, sinais caseiros utilizados por surdos de diversos locais para se comunicar; todos estes se constituem do o artefato linguístico. STROBEL (2008, p44) sobre a língua de sinais A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma forma de comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos, sendo que é esta língua que vai levar o surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição de conhecimento universal.

Por isso a importância do contato da criança com o adulto surdo que utiliza a libras para que o processo de aquisição da linguagem não seja prejudicado como normalmente acontece com crianças que não tem o contato precoce com a língua de sinais sua língua materna. Contudo esta língua também sofre variações linguísticas de região para região e mudança de sinais com o passar do tempo de acordo com a geração que o utiliza. Todas essas questões abrangem o terceiro artefato cultural que analisaremos: o familiar. Há uma grande diferença entre o sujeito surdo que nasce em família de surdos e o sujeito surdo que nasce em família de ouvintes. O surdo membro de uma família de surdos terá seu contato com a comunidade surda que usa Libras, compreendendo melhor o mundo ao seu redor, entendo as duvidas que surgem sobre o Ser Surdo. Nas famílias surdas, os membros surdos têm comportamentos próprios deles, por exemplo, é habitual assistirem televisão no volume mudo para não incomodar os vizinhos, todos usam língua de sinais como língua prioritária do lar lavam louça e fazem movimentos inesperadamente com barulho alto sem perceberem[...] durante as refeições de uma família com todos os membros surdos, a criança surda está incluída nas conversas em língua de sinais desde o inicio e quando chegam visitas

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amigos surdos e ou ouvintes, as conversas continuam sendo conduzidas em língua de sinais e assim as crianças surdas visualizam, recebem informações, categorizam, guardam e dão sentido a isto (STROBEL 2008 p52).

Em algumas famílias de ouvintes onde há um surdo o quadro é diferente, pais ouvintes querem “normalizar” o filho surdo, faze-lo falar e escutar através de tratamentos implantes, muitas vezes não aceitando o surdo no seio familiar. Com isso, A inserção desta pessoa surda na comunidade surda muitas das vezes é muito tarde e quando chega apenas um membro da família esta disposto a aprender, o que acarreta no atraso da aquisição da linguagem e no aprendizado, principalmente na falta de comunicação entre o surdo e seus familiares fazendoo sentir-se como estrangeiro em sua própria casa. Esse sujeito terá dificuldade de compreender a identidade e a cultura surda, pois, este não esta inserido nela e a ausência de quem o auxilie nisso é prejudicial para o seu desenvolvimento como pessoa. Literatura surda é tudo que é produzido pelo povo surdo a partir de experiências próprias e adaptações para língua de sinais de historias já contada. Os registros estão em mídias como CD e DVD e em livros de diversas formas e gêneros. Quarto artefato cultural é a literatura surda, ela traduz a memoria das vivencias surdas através das varias gerações dos povos surdos. A literatura se multiplica em diferentes gêneros: poesia, historias de surdos, piadas, literatura infantil, clássicos, fabulas, contos , romances, lendas e outras manifestações culturais.( STROBEL, 2008, p. 56)

As historias e piadas contadas dentro das comunidades surdas também são formas de literatura surda algumas são registradas outras se perdem com o tempo ou com a morte do surdo que a contou. Utilizamos além dos artefatos culturais apresentados por Strobel a sequencia básica do letramento literário proposta por Cosson composta por quatro passos: motivação, introdução, leitura e interpretação. Para Cosson (2006, p.54) a motivação “consiste em impulsionar o aluno ao texto; para que ele se interesse pelo texto posteriormente apresentado e faça a leitura de maneira agradável, leitura esta que “demanda de uma preparação, uma antecipação cujos mecanismos passam despercebidos porque nos parecem muitos naturais”. Para que o encontro do aluno leitor com a obra ocorra de maneira satisfatória o professor precisa elaborar atividades envolventes que criem expectativas boas do aluno sobre a obra , mas isso não determina que será feita a leitura. Em seguida temos a introdução “apresentação do autor e da obra” despertando o prazer da descoberta, apresentando o livro fisicamente para que os alunos apreciem os elementos introdutórios do livro, fazendo com que o aluno receba a obra de forma segura com o professor fazendo essa mediação, mas sem deixar de despertar a curiosidade do aluno para que ele descubra por si próprio o que mais lhe interessa no livro e as surpresas que ele contém. E a partir deste momento com isso seguir para o próximo passo, a leitura. Leitura essa que consiste não somente em deixar o aluno ler, mas em acompanha-lo no processo. Para Cosson (2006, p. 62) A leitura escolar precisa de um acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista. Não se pode confundir, contudo, acompanhamento com policiamento. O professor não deve vigiar o aluno para saber se ele está lendo o livro, mas acompanhar o processo de leitura para auxilia-lo em suas dificuldades, inclusive àquelas relativas ao ritmo da leitura.

A leitura é um momento único deve ser realizado por completo e não através de resumos da obra para com isso seguir para próximo passo. No contexto do letramento literário, sobretudo no momento da interpretação, deve ser mesmo acompanho pelo professor, pois ela é pensada em dois instantes um interior e o exterior. O interior é o encontro

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individual do leitor com a obra suas interpretações sobre a obra, partirão de suas experiências de convivências em diversos setores sociais. Como Cosson (2008,p 65) afirma. [...] a motivação, a introdução e a leitura como as definimos acima, são os elementos da interferência da escola no letramento literário. Do mesmo modo, a historia de leitor do aluno, as relações familiares e tudo mais que constitui o contexto da leitura são fatores que vão contribuir de forma favorável ou desfavorável para esse momento interno. a interpretação é feita com o que somos no momento da leitura. Por isso, por mais pessoal e intimo que esse momento interno possa parecer a cada leitor, ele continua sendo um ato social.

E a partir desta leitura que o leitor fara a externalização compartilhando a sua experiência com a obra de maneira coletiva, este é o momento exterior que “é a concretização, a materialização da interpretação como ato de construção de sentido em uma determinada comunidade”. Através de atividades que podem ser realizadas na escola onde toda comunidade possa ver o produto final da leitura- a interpretação de cada leitor. Cosson (2008, p. 66) explica o objetivo desta etapa A razão disso é que por meio do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura. Trata-se, pois da construção de uma comunidade de leitores que tem nessa ultima etapa seu ponto mais alto.

CONCLUSÃO No processo de participação percebeu-se que as professoras assumem esta postura de trabalho bilíngue no espaço do projeto. Elas têm uma proposta de atividades que envolvem os alunos na apropriação dos objetos literários através de posicionamentos, estratégias e instrumentos didáticos mobilizados a cada encontro. Percebe-se o uso de diversos artefatos culturais presentes no processo didático e mobilização da sequencia básica da apropriação do texto por estes estudantes. O uso intensivo de Libras no projeto por quase todos os envolvidos cria um ambiente bilíngue que facilita a interação na exposição e produção das atividades de leitura das obras literárias -artefatos culturais, as quais garantem o letramento literário nesse espaço. Assim, esses artefatos culturais passam a ser constitutivo dos grupos de pessoas surdas não apenas no espaço escolar como nos demais espaços sociais de convivência e de troca desse grupo, fortalecendo a divulgação e a compreensão do uso de produções culturais dentro dessa comunidade. Produções culturais realizadas de modo diferente conforme a condição específica dessa comunidade. As estratégias ou etapas apresentadas pelo Cosson (2006) sobre o trabalho de letramento diz que a motivação “consiste em preparar o aluno para entrar no texto”; para que ele aceite e se interesse pelo texto. Em seguida temos a introdução “apresentação do autor e da obra” despertando o prazer da descoberta, apresentando o livro fisicamente para que os alunos apreciem os elementos introdutórios do livro, fazendo com que o aluno receba a obra de forma segura e com isso seguir para o próximo passo, a leitura. Leitura essa que consiste não somente em deixar o aluno ler, mas em acompanha-lo no processo. REFERENCIAIS CEREJA, William Roberto. Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Atual Editora, 2005 COSSON, R. Letramento literário: teoria e pratica. São Paulo: Contexto, 2006

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STROBEL, K. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: UFSC, 2008 SILVA,I.M.M. Literatura em Sala de Aula: da Teoria Literária à Prática Escolar. UFPE: Anais do vento PG Letras 30anos Vol. I (1): 514-527 2003

O LETRAMENTO, O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE E OS CAMINHOS POSSÍVEIS PARA A ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS COM SÍNDROME DE DOWN ANTONIO SERGIO VASCONCELOS DARWICH Professor de Psicologia - UEPA RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender as relações entre atividades de letramento, o desenvolvimento da personalidade de jovens com síndrome de Down e a possibilidades de alfabetização destes, segundo abordagem da Psicologia HistóricoCultural. Chamamos de letramento para as diferentes formas de linguagem (fala, desenho, brincadeiras, escrita) utilizadas pelos seres humanos para interpretar seu contexto social, ou seja, para elaborar suas vivências. Estas últimas dizem respeito às interpretações do sujeito sobre sua situação social de desenvolvimento, seu contexto e relações sociais vividas. A partir daí, acreditamos que a personalidade se desenvolve, transforma-se e torna o sujeito capaz de influir sobre sua própria existência social. Logo, para este trabalho, analisamos uma brincadeira de papéis (cujo tema é “Almoço em Família”) e jogos de regras (trilha e dados) com jovens com síndrome de Down. A análise destas atividades nos permitiu observar mudanças nas condutas dos sujeitos com Síndrome de Down relacionadas ao desenvolvimento da personalidade destes. Em particular, observamos que uma conduta dependente das circunstâncias imediatas dá lugar a uma conduta voluntária, ou seja, emancipada das circunstâncias imediatas, graças às ações de signos, gestos significativos, imagens mentais e simbolismos. A conduta voluntária, como pudemos observar nas atividades observadas, é acompanhada pelas neoformações sistêmicas da consciência, como afetos, sentidos pessoais, imaginação, fantasias, memória, atenção voluntária, fala, pensamento, entre outras. Estas levam às generalizações das vivências interiores e, finalmente, às possibilidades de alfabetização e escolaridade. Acreditamos que estas atividades, típicas do período pré-escolar, como a narração de contos, a brincadeira e os jogos de regras criam as possibilidades de desenvolvimento simbólico, intelectual e afetivo que constituem a base da idade escolar tanto de sujeitos comuns e daqueles com síndrome de Down. Palavras-chave: letramento, desenvolvimento, síndrome de Down. 1 REFERENCIAL TEÓRICO. O desenvolvimento da personalidade parte de um sistema involuntário, inconsciente e indiferenciado segundo o qual o sujeito não tem qualquer controle sobre sua conduta, sendo escravo das circunstâncias. Este sistema é governado por funções psicológicas elementares, de origem biológica, como percepção, memória de reconhecimento, atenção e ação como reações a estímulos externos (BOZHÓVICH, 1987; 2004; VYGOTSKI, 2006). A personalidade se desenvolve em direção a um sistema com uma função psíquica sem correlatos anteriores: a vontade. Graças à vontade, o indivíduo se emancipa das circunstâncias externas e determina, também, sua conduta a partir de motivações interiores. Este sistema é governado por funções psicológicas superiores, de origem social (BOZHÓVICH, 1987; VYGOTSKI, 2006; 2012). Há, porém, uma periodização do desenvolvimento da personalidade caracterizados por diferentes níveis de diferenciação e de controle volitivo da conduta pelo sujeito. Estes

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períodos são determinados pela situação social de desenvolvimento e pelas neoformações da consciência (VYGOTSKI, 2006). Segundo Vigotski (2006), a situação social de desenvolvimento é o contexto da criança, é uma […] “relação que se estabelece entre a criança e o entorno, […] é o ponto de partida para todas as mudanças dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante cada período” (VYGOTSKI, 2006, p. 264). Já as neoformações são sistemas dinâmicos formados por funções intelecto-afetivas a partir da relação da criança e seu meio social e que “determinam, no aspecto mais importante e fundamental, a consciência da criança” (VYGOTSKI, 2006 pp. 254). Outro aspecto importante do desenvolvimento da personalidade são as crises na transição de um período para o outro. Estas ocorrem pelo surgimento de neoformações que originam novas necessidades na criança e que, por sua vez, impulsiona-a para superar a antiga situação social de desenvolvimento e a inserir numa nova. (BOZHÓVICH, 1987; VYGOTSKI, 2006). Para nosso presente trabalho, interessam-nos, aqueles períodos e crises de desenvolvimento que ocorrem entre o nascimento e o início da idade escolar. O desenvolvimento da criança inaugura-se com a crise pós-natal, provocada pelas mudanças bruscas entre o período intrauterino e extrauterino, como as mudanças nas formas de respiração e alimentação, na relação sono-vigília e com o entorno físico e social (VYGOTSKI, 2006). Depois de dois meses, dá-se início a novo período de desenvolvimento, chamado de primeiro ano. Neste, a situação social da criança é de completa dependência dos adultos e o sistema psíquico é o sensório-motor, cuja neoformação central, a percepção, orienta as demais, como a memória de reconhecimento, a atenção e a ação reativas (BOZHÓVICH, 1987;2004). Por volta do 16º ou 18º mês, acontece a crise do primeiro ano, quando as crianças se tornam mais autônomas dos adultos e os motivos das condutas delas deixam de ser apenas os estímulos externos, mas, também, a fala social, as imagens mentais e os afetos (VYGOTSKI, 2006). O período seguinte é o da primeira infância, de um aos três anos. Aqui, a situação social da criança ainda é de dependência dos adultos, porém com mais autonomia. Neste período surge um novo sistema formado pela fala social, por imagens mentais, afetividade e memória e, por isso, é denominado período da constituição do sujeito (BOZHÓVICH, 1987; 2004). Em seguida, acontece a crise dos três anos, em consequência do desenvolvimento de novo sistema: a Instância do Eu. Este permite maior individuação da criança e maior controle sobre sua própria conduta devido à tomada de consciência de si como sujeito (BOZHÓVICH, 1987). Superada a crise dos três anos, inicia-se novo período de desenvolvimento, o préescolar, de três aos seis anos. A situação social deste período é de autonomia e socialização mais efetivas da criança, por sua ida à pré-escola e por acompanhar os adultos em diversas atividades, embora a dependência dos pais permaneça. O sistema de neoformações é a Instância do Eu. Este sistema permite o controle efetivo do sujeito sobre sua própria conduta e maior liberdade frente às circunstâncias (Vigotski, 2008). Este sistema forma-se pela combinação de funções psíquicas superiores, como a memória, a fala, a vontade, a atenção voluntária, os afetos, os sentimentos morais e funções psicológicas típicas deste período, como a imaginação criadora e as fantasias (VYGOTSKI, 2010). A Instância do Eu e a nova situação social, permite à criança representar e ressignificar papéis sociais mais relevantes nas brincadeiras e nas atividades artísticas e estabelecem os comportamentos autorregulados que superam as amarras situacionais

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(VIGOTSKI, 2008). Este sistema reúne os aspectos do desenvolvimento psíquico [...] “[...] relacionados ao letramento” (KISHIMOTO & FORMOSINO, 2013, p. 28). A partir da situação social de desenvolvimento e das neoformações do período préescolar, surge, por volta dos seis anos e meio e sete anos de idade, uma neoformação superior que modifica toda a relação da criança com seu entorno social e com ela mesma: o pensamento. Este permite à criança generalizar suas vivencias interiores, como, por exemplo, o significado de tristeza, alegria, medo e coragem. Este processo, próprio do pensamento, cria condições para o aprendizado de regras de jogos e de conceitos científicos, no denominado período escolar (VYGOTSKI, 2006). Outra neoformação que surge neste período é o Eu Social e, por meio dela, a necessidade de ser socialmente útil. Esta necessidade leva as crianças a colaborarem espontaneamente com as tarefas de casa e as motiva também para se engajar na escola. Em todas os períodos descritos, observa-se a presença de atividades de letramento, ou seja, atividades que permitem ao sujeito realizar diferentes formas de ler e de interpretar o mundo social. Portanto, o letramento se inicia quando a criança se apropria da fala social, no período da constituição do sujeito. Também está presente no período pré-escolar ou da tomada de consciência de si como sujeito, nas brincadeiras de papéis, nas atividades artísticas - desenho, pintura ou conto popular (VYGOTSKI, 2010; KISHIMOTO & FORMOSINO, 2013). Por fim, com o pensamento, na transição do período pré-escolar ao escolar, as crianças penetram de forma mais aguda e profunda na existência social e pessoal. Este processo ocorre por meio da dialogia, das trocas intersubjetivas, dos jogos de rua e, por fim, da leitura e da escrita. Desta forma, já no período escolar, reúnem-se condições de iniciar o processo de alfabetização (VYGOTSKI, 2010; KISHIMOTO & FORMOSINO, 2013). Em seguida, discutiremos as especificidades do psiquismo dos sujeitos com síndrome de Down, objeto de preocupação de nosso trabalho. 2 AS ESPECIFICIDADES DO DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO DE SUJEITOS COM SÍNDROME DE DOWN. O psiquismo normal possui uma base afetiva e motivacional fluida e flexível que permite o desenvolvimento em direção à conduta voluntária e às abstrações. Porém, a criança com síndrome de Down sofre uma profunda alteração dos [...] “impulsos volitivos básicos, primários” e pela “insuficiência intelectual” (VYGOTSKI, 2012, p. 249). Em consequência, os traços psicológicos da criança com Síndrome de Down são a inércia na ação e a imobilidade dos afetos, o pensamento concreto e visual-direto e grandes dificuldades de abstração, baixa atenção, déficits significativos na memória auditiva e na conduta volitiva, possui insuficiente diferenciação de sua personalidade e infantilismo geral (KLEINHANS E SILVA, 2006; FERREIRA; FERREIRA; OLIVEIRA, 2010; OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA, 2010; VYGOTSKI, 2012). Por outro lado, o sujeito com síndrome de Down é firme e enérgico quando busca um fim e sua capacidade de percepção permanece ilesa (VIGOTSKI, 2012). Significa que nem todas as funções psicológicas são afetadas por igual. Portanto, as novas combinações interfuncionais, equilibram as funções deficientes. Este processo peculiar é chamado de compensação (OLIEIRA, 2007; VYGOTSKI, 2012). A base do processo de compensação das funções psicológica são os vínculos interfuncionais, os quais permitem […] “que o desenvolvimento de uma função compense e substitua o de outra” (VYGOTSKI, 2012, p. 141). Logo, mesmo que a criança com síndrome de Down não desenvolva o pensamento abstrato, podemos ter em seu lugar, a manifestação ativa do gesto, da fala, da afetividade, da imaginação, da memória visual, exatamente como Vygotski (2012) explica a dinâmica criativa da personalidade: [...] “o caráter de memorização direta, transforma-se num processo de combinação, imaginação, pensamento, etc.” (p. 138).

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Por outro lado, os meios auxiliares da cultura, como os signos sociais (fala, desenho, brincadeira, escrita) exercem um papel decisivo no desenvolvimento do sujeito com síndrome de Down (OLIVEIRA, 2007). Estas funções psíquicas conduzem à [...] “tese da coletividade como fator de desenvolvimento das funções psicológicas superiores da criança normal e anormal” (VYGOTSKI, 2012). Portanto, o desenvolvimento incompleto das funções psicológicas superiores se deve “ao desenvolvimento cultural incompleto da criança mentalmente deficiente, à sua exclusão do ambiente cultural” (VYGOTSKI, 2012, p. 144). 3 METODOLOGIA Propomo-nos analisar atividades de letramento (brincadeiras, jogos e contos) para compreendermos os enlaces mentais que ocorrem nos sujeitos durante tais atividades. Assim, podemos identificar os sistemas de neoformações envolvidos e o período de desenvolvimento em questão. Portanto, só a análise dos dados iluminados pela teoria histórico-cultural nos permite explicar esta relação entre desenvolvimento da personalidade, letramento e as possibilidades de alfabetização. O local de nosso trabalho de coleta de dados foi a APAE-Moju, no estado do Pará. Os sujeitos foram quatro jovens com síndrome de Down que frequentam esta instituição, cujos nomes são fictícios por respeito ao sigilo pessoal, sendo uma adolescente (Daniele: 16 anos), um adolescente (Zé: 17) e dois jovens (Ed 19 anos e Carlos, 22 anos). Utilizamos três tipos de procedimento de coleta de dados foram: 1) Uma brincadeira de papéis, cujo tema foi: “Almoço em família”; 2) Jogos de regras: de dado e de tabuleiro; 3) Conto de uma lenda popular: O Saci. Este conto era recontado pelos participantes e discutido em grupo. Em seguida, apresentaremos os resultados. 3.1 APRESENTAÇÃO DE DADOS DA BRINCADEIRA DE PAPÉIS “ALMOÇO EM FAMÍLIA”. Nesta brincadeira “Almoço em Família”, surgiram situações onde foi possível analisar as funções psicológicas presentes na atividade. Aqui, portanto, apresentaremos, as categorias de análise correspondentes. a) Categorias de análise: estas categorias representam relações específicas entre as condutas, os enlaces mentais e o período de desenvolvimento relacionados (LURIA, 1987; VYGOTSKI, 2006). A1) CATEGORIA UM: “CONSTITUICÃO DO SUJEITO”: esta categoria representa condutas cujos enlaces mentais correspondem ao período da “constituição do sujeito”, como: a memória e imagens mentais afetivamente saturadas sintetizadas em “representações motivantes” (BOZHÓVICH 1987; 2004; VYGOTSKI, 2006). A2) CATEGORIA DOIS “TOMADA DE CONSCIÊNCIA DE SI COMO SUJEITO: trata de condutas cujos enlaces mentais correspondem ao período da “tomada de consciência de si como sujeito”. Entre estas neoformações temos a imaginação combinatória, definida como a capacidade [...] “de combinar o velho de novas maneiras” (VIGOTSKI, 2010, p. 17); os sentidos pessoais (VIGOTSKI, 2001) A3) CATEGORIA TRÊS: “PENSAMENTO”: esta categoria representa a capacidade de nomear objetos, eventos, pessoas, sentimentos, além de quantificar e comparar situações do mundo físico-social e do próprio mundo interior do sujeito (VIGOTSKI, 2006). A4) CATEGORIA QUATRO: “SUJEITO SOCIAL”: esta categoria representa enlaces mentais que representam a tomada de consciência de si como sujeito socialmente útil e cooperativo (BOZHÓVICH, 1987; VIGOTSKI, 2006). 3.1.1) Momento: “O almoço na minha família”

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P: -Quem cozinha na casa de vocês, quem faz a comida? Zé: -Minha mãe. P: -E na sua casa, Carlos? Quem faz a comida? Carlos: -Minha mãe. P: -Sua mãe, também? Carlos: -É (faz sim com a cabeça). PP: -E Zé, na sua casa, quem é que cozinha, faz o almoço, a comida?

A1 A1 A1

Zé: -Minha mãe. P: -O que ela faz pro almoço? Zé: -Arroz, peixe, jabá, açaí... P: -Você gosta mesmo de que? Zé: -Açaí e jabá. P: -E você Ed, quem cozinha na sua casa? Quem faz a comida, o almoço...? Ed: -Mãe. P: -Então, Carlos, quem é a sua família, fala aí quem são seus irmãos. Você tem irmãos? Carlos: -Sim, tenho. P: -Quantos irmãos você tem? Carlos: -Seis. P: -E você Zé, quantos irmãos você tem? Zé: -Três. P: -Três? Eles almoçam com você? Zé: -É. P: -Quem mais almoça com você? Carlos: -Meu pai. P: -Hum... e quem ajuda na cozinha, na casa de vocês. Carlos levanta o dedo. P: -Carlos, você ajuda em que? Carlos: -Eu lavo louça, lavo prato, panela... P: -Muito bom, legal... E você, Léo, ajuda sua mãe na cozinha? Zé faz “não” com a cabeça.

A1 A3 A2 A1 A1 A3 A3 A1 A1 A4 A4 A1

3.1.2 Momento: “Quando todos brincam de Almoço de Família Carlos e Pesquisadoras dividem os “pratos de comida” entre os jovens. Ed, Zé e Carlos, cada um, pega um prato de plástico e suas respectivas colheres. Ed, enfim, anima-se a participar. P: -Quem vai querer carne? Carlos põe um pedaço de “bife” (de EVA) no seu prato. Ed também coloca um “bife” no seu prato e o mesmo faz Zé. A brincadeira, realmente, começa agora. Todos participam sem a interferência das estudantes/pesquisadoras. Carlos é o primeiro a começar a “comer”, de faz-de-conta. Leva a colher de comida de brincadeira à boca e imita mastigação. Zé coloca a comida de brincadeira no seu prato (de plástico), leva a colher à boca e imita a mastigação. Os rapazes, vez por outra, pegam os pratos de arroz e de salada, de carne e de feijão e imitam os gestos de se servir de comida. Carlos se serve de “salada” e tira um pouco de “arroz”, apanha a colher e mistura sua “comida. Gira a colher em círculos, “misturando a comida”, sem falar e meticulosamente. Neste momento, quando não se exige falar (uso da linguagem), quando a brincadeira depende de gestos, há mais fruição, prazer e desembaraço.

3.2 Apresentação de dados do jogo de tabuleiros: Da mesma forma que a atividade acima, criamos três categorias explicativas:

A1

A2 A2 A2 A2 A2 A2 A2

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CATEGORIA I – Signos não exercem influência sobre a ação do sujeito: mesmo com ajuda do outro, o sujeito não compreende nem executa a ação necessária para atingir os objetivos do jogo. CATEGORIA II- Signos externos exercem influência sobre a ação do sujeito: o sujeito só compreende e executa a ação que lhe permite atingir os objetivos do jogo com ajuda do outro, portanto, do signo externo. CATEGORIA III- Signos internos exercem influência sobre a ação do sujeito: significa que o sujeito compreende e executa a ação para atingir os objetivos do jogo apenas com os signos internalizados. Depois de realizarmos o jogo de tabuleiro conforme as regras descritas acima, obtivemos os seguintes resultados50: Frequência da Tarefa não realizada (signos não exercem influência sobre a ação desejada) ZÉ 02 CARLOS DANIELA 02 ED 02 Fonte: elaboração própria

Frequência da Tarefa realizada com ajuda (via signos externos) 02 -

Frequência da Tarefa realizada sem ajuda (via signos internos) 02 03 01 02

4 ANÁLISE DOS DADOS Na brincadeira “Almoço em família”, estão presentes sistemas de neoformações que têm origem em três períodos de desenvolvimento: o da Primeira Infância (Constituição do Sujeito), o da Idade Pré-escolar (tomada da consciência de si como sujeito) e o da Idade Escolar (tomada de consciência das vivencias interiores ou do pensamento), como demonstram o quadro analítico acima. As situações sociais de desenvolvimento e as neoformações sistêmicas, nos diferentes períodos, determinaram o desenvolvimento psíquico dos sujeitos. Durante as atividades, tais neoformações estiveram presentes, como enlaces mentais, para complementar e motivar a conduta correlata. Em determinadas ocasiões, as neoformações orientavam falas, noutras gestos e ações. No Jogo de Tabuleiro, analisamos a partir de outros aspectos, para chegar a mesmas conclusões. Em determinadas ocasiões, três dos sujeitos que participaram do jogo não conseguiram realizar a tarefa mesmo com ajuda do mediador, ou seja, dos signos externos. Em duas ocasiões, um dos sujeitos realizaram as tarefas com ajuda externa (do outro e de signos externos). Todos os sujeitos realizaram alguma tarefa sem ajuda externa. Um dos sujeitos, porém, realizou todas as suas ações sem ajuda externa. Significa que estas atividades realizadas sem ajuda do outro e de signos externos durante o jogo, foram orientadas por neoformações internas, como o pensamento, a memória, a atenção voluntária e afetividade, base cultural e psíquica do letramento e da alfabetização. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. O desenvolvimento da personalidade parte do sistema involuntário e inconsciente, de origem biológica, para um sistema voluntário e consciente, de origem social, que se desenvolve no processo de periodização proposto por Vygotski (2006). Os diferentes períodos de desenvolvimento expressam as transformações nos sistemas conscientes em direção a um 50

Os dados apesentados foram coletados nas atividades do grupo de pesquisa AFIM, propostas e coordenadas pelo autor deste artigo, na APAE/Moju, durante o primeiro semestre de 2014, com a colaboração dos alunos de Licenciatura em Pedagogia/2010: Sérgio Batista, Élida Nascimento e Edvard Rodrigues e de Licenciatura em Biologia/2012: Maeli Costa. Porém, estes mesmos dados e sua análise, reelaborada sob a ótica da Psicologia Genética, de Henri Wallon, estão presentes no Trabalho de Conclusão de Curso da aluna Élida do Nascimento Pereira (Pedagogia/2010), intitulado “A mediação dos signos e o desenvolvimento da psicomotricidade na educação de jovens adultos com síndrome de Down atendidos na APAE do município de Moju”, realizado na UEPA/Campus Moju, em 2014.

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autocontrole e individuação cada vez maiores. As atividades de letramento têm relação com estes sistemas conscientes e autorregulados da personalidade. Os sujeitos com síndrome de Down, na passagem do sistema involuntário para o voluntário, demonstrem deficiência no desenvolvimento do pensamento abstrato e na individuação da personalidade. Nas atividades de letramento planejadas por profissionais da educação, permitem um desenvolvimento de vínculos interfuncionais (imaginação, fala, afetos, memória visual, atenção voluntária) que compensam as deficiências mencionadas. As atividades de letramento com sujeitos com síndrome de Down e com em sujeitos normais, abrem caminho para o desenvolvimento da consciência e para a leitura e escrita, que exigem um grau de desenvolvimento superior da abstração e da generalização necessários à escolaridade. As atividades de letramento propostas criam mediações interfuncionais entre a idade pré-escolar e a escolar em sujeito com síndrome de Down que lhes permitem desenvolver neoformações da consciência, como a imaginação, a afetividade, a linguagem e o pensamento, necessária para as atividades de alfabetização. REFERÊNCIAS BOZHÓVICH, L.I. Las etapas de Formación de la Personalidad en la ontogenesis. In: DAVÍDOV, V.; SHUARE, M. (Orgs.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS (antología). Moscú: Progreso, 1987 p. 250-273 BOZHÓVICH, L.I.Developmental Phases of Personality Formation in Childhood (I). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 42, nº 4, July–August 2004, pp. 35-54. FERREIRA, D.R.S.A., FERREIRA W. A. & OLIVEIRA. M.S. Pensamento e linguagem em crianças com síndrome de Down: um estudo de caso da concepção das professoras. Ciências & Cognição. Vol 15 (2): 216-227, agosto/2010. KISHIMOTO, T. M.. Brincar, letramento e infância. In: KISHIMOTO, T. M. & FORMOSINHO, J. O. (Orgs.). Em busca da Pedagogia da Infância. Porto Alegre: Penso, 2013 p. 21-54. LURIA, A. R. Curso de psicologia geral. Vol 1. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1991. p. 71-84. OLIVEIRA, A.A.S. Descrição da fase inicial da escrita de crianças com síndrome de Down. Disponível em: http://www.psiquiatriainfantil.com.br/congressos/uel2007/161htm. UNESP, Marília, 2007 Acesso em: 15/12/2013 __________ Notas sobre apropriação da escrita por crianças com Síndrome de Down. Cadernos de Educação. Pelotas (36), 337-359, 2010, mai/ago. SILVA, M.F.M.C. & KLEINHANS, A.C.S. Processos cognitivos e plasticidade cerebral na Síndrome de Down. Revista Brasileira de Educação Especial. Marília, v.12, n.1, p.123-138 Jan.-Abr. 2006 _____________. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Disponivel em:http://www.ltds.ufrj.br/gis/. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais. Rio de janeiro, Nº 8, jun/2008, 18-36 Acesso em 15/12/2012

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______________. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Editora Ática, 2010. ______________. Acerca de los processos compensatórios en el desarrollo del niño mentalmente retrasado. In: Obras Escogidas. Vol V. Madrid: Visor Dis. S. A. 2012, p. 131152, ______________. El problema del retraso mental. In: Obras Escogidas. Vol V. Madrid: Visor Dis. S. A. 2012, 249-273. ______________. El problema de la edad. In: Obras Escogidas. Vol IV. Madrid: A. Machado Libros S. A. 2006, 250-272. ______________. La crise de los três años. In: Obras Escogidas. Vol IV. Madrid: A. Machado Libros S. A. 2006, 369-375. ______________. La crise de los siete años. In: Obras Escogidas. Vol IV. Madrid: A. Machado Libros S. A. 2006, 377-386

A INCLUSÃO DE ALUNO SÍNDROME DE DOWN NA ESCOLA COMUM: INCLUSÃO OU EXCLUSÃO? SÍLVIA HELENA GONÇALVES FONSECA51 Universidade Estadual do Pará/UEPA INTRODUÇÃO A Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva tornou-se nos últimos tempos um tema a ser discutido, analisado e avaliado nas formações, seminário, conferências e em outros eventos sobre educação, visando o aluno em sua totalidade; a sua participação e inserção na escola regular, preferencialmente, na sala de aula comum. Os paradigmas educacionais querem chegar ao ápice de uma educação que vislumbre a pessoa e a sua cidadania que seja capaz de oferecer o ensino de qualidade a todos, e em consequência inclusiva. O tema proposto deste artigo surgiu de uma reflexão, pois ao observar o cotidiano de alguns alunos com deficiência de uma escola da rede municipal, na qual trabalhei como coordenadora pedagógica no município de Igarapé-Miri, percebi que alguns professores e funcionários da escola ficavam inseguros com a presença de alunos com deficiência, sendo que a aquele aluno muitas vezes era visto como um incapaz e um trabalho a mais para escola. Então diante dessas observações, fiquei a refletir: como seria o tratamento e a receptividade quando a escola tivesse um aluno com síndrome de Down? Esse questionamento surgiu porque sempre tive contato com crianças Down. Essas crianças fizeram parte de minha vida direta e indiretamente as quais me despertaram um certo olhar de carinho e preocupação, percebia que muitas não eram matriculadas em escolas regulares e, os motivos eram sempre a vergonha, o desinteresse, o medo das famílias, a superproteção e as frustações com as práticas educativas excludentes voltadas para essa clientela. As crianças matriculadas iam para as classes especiais e lá ficavam segredadas da escola. E, a maioria não concluía o ensino porque não se adaptavam na escola por motivos como: falta de atenção, cuidado, discriminação, 51

Aluna Especial no mestrado da Universidade Estadual do Pará/UEPA, na disciplina Educação Especial na perspectiva inclusiva: políticas e fundamentos teórico-metodológicos. Graduada em Letas pela Universidade Federal do Pará (1996). Especialização em Língua Portuguesa/UFPA (2002). Especialização em Gestão Escolar/ UEPA (2003). Especialização em Educação Especial e Inclusiva/ FPA (2013).

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preconceito e outros. Os poucos que concluíam tinham a família ao seu lado, acompanhando o desenvolvimento e persistindo contra qualquer discriminação. A partir de toda essa análise depois de várias observações cotidianas pelas escolas públicas municipais pelas quais trabalhei, resolvi desenvolver uma pesquisa sobre essa temática e analisar a política de inclusão de alunos com Síndrome de Down na escola comum, onde barreiras estão presentes desde os olhares discriminatórios até a qualificação do professor que influenciarão no processo de aquisição do saber desses alunos. O objetivo da pesquisa é de analisar o ingresso do aluno com Síndrome de Down na escola comum e a concepção de professores da sala regular, observando as ações e práticas pedagógicas voltadas para o aluno com deficiência na concretude de uma escola inclusiva em fortalecer e garantir a autonomia e a permanência do aluno com sucesso na escola. A concepção de professores da rede de ensino comum sobre o ingresso do aluno SD de Down nas turmas regulares é um ponto a ser analisado, pois o professor é uma peça primordial, em minha opinião, para a permanência com qualidade desses alunos. Nessa temática identifico aspectos que se relacionam com a prática cotidiana e mais especificamente com as interações professor x aluno. Assim, retomo a escola, a sala de aula, o professor e procuro reunir as análises dos dados, aspectos que considero importantes para a revisão das práticas educativas no contexto da inclusão dos alunos Síndrome de Down. Compreender as concepções dos professores em relação ao aluno com deficiência é entender também a postura diante da inclusão e como o aluno SD poderá transformar as práticas e atitudes do professor, pois entendo que o professor frente ao processo de inclusão escolar necessita assumir novas posturas e comportamentos a respeito da educação, pois a política inclusiva pede que a escola mude seus paradigmas segredadores para paradigmas educacionais inclusivos. No tear dessas mudanças novos caminhos serão traçados, novos caminhos serão percorridos, visto que “inclusão” é ir além da estrutura física da escola, engloba enxergar o “outro” em sua totalidade. Na compreensão dessas concepções que traço as seguintes indagações: Quais as concepções dos professores da sala regular sobre a inclusão de alunos com Síndrome de Down na sala de aula? Como a escola está se preparando para concretizar a inclusão escolar? Que práticas estão sendo aprimoradas para a inclusão do aluno Síndrome de Down? Essas indagações nos oferecem amplas oportunidades de desenvolver reflexões no sentido de entender o quadro diferenciado que os portadores com Síndrome de Down enfrentam na escola regular. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDBN nº 9394/96 – (BRASIL,1996) em seu capítulo V define educação especial como modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para pessoa com deficiência. Essa regulamentação sugere a necessidade de capacitar os professores, principalmente os professores da rede pública, pela responsabilidade que têm em relação ao trabalho desenvolvido com a maioria das crianças e adolescentes em idade escolar. Essa capacitação teria que abordar questões voltadas tanto para o melhor convívio e entendimento com alunos com deficiência quanto aos seus processos de aprendizagem e necessidades adaptativas. Contudo, o que se percebe é que para essa mudança ocorrer torna-se necessário ir muito além de simples capacitações e especializações de caráter informativo para os professores lidar com essa população. A política de envolvimento vislumbra uma educação de qualidade e preserva a pessoa em plena cidadania. O desenvolvimento da temática ocorreu por de pesquisa qualitativa na qual envolveu 05 professores da sala regular e 01 da sala de Recursos Multifuncional de uma escola da rede municipal de ensino no município de Igarapé-Miri. Por respeito ao pedido da diretora atribui um nome fictício à escola, pois ela é conveniada a uma entidade religiosa, na qual não autorizou a divulgação do nome real, então vou chamá-la de Escola “anjos de luz”.

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O artigo está desenvolvido em dois subtítulos no qual no primeiro item “Conhecendo a Síndrome de Down” faço uma breve descrição das características físicas, psicológicas e cognitivas, com uma análise dos desafios da atuação docente com alunos Síndrome de Down, o que tem enfrentado na história da política da inclusão escolar. No segundo item “O Desafio da Inclusão Escolar de Alunos com Síndrome de Down: Concepções de professores.” Apresento uma reflexão sobre os entraves que perpassam na política de inclusão do aluno Síndrome de Down e a descaracterização das potencialidades que essas crianças têm enfrentado na sociedade e na escola. Apresento também a análise dos dados realizada. Os professores colaboraram no processo de coleta de dados e reflexão sobre a prática docente e como concebem o ingresso do aluno Síndrome de Down na escola pública. CONHECENDO MELHOR A SÍNDROME DE DOWN: UMA ANÁLISE SOBRE A TRISSOMIA 21 A Síndrome de down é uma condição decorrente de alteração no cromossomo autossômico de número 21 A síndrome de Down era popularmente conhecida como mongolismo ou mongoloide, termo inadequadamente utilizado, por fazer referência às raças orientais e por estar impregnado de conotações preconceituosas. Segundo Pueschel (2012) o registro antropológico mais antigo da Síndrome de Down deriva das escavações de um crânio Saxônico do século VII, apresentando modificações estruturais vistas com frequência em crianças com síndrome de Down. Para um conhecimento aprofundado sobre a síndrome de down deve ser levada em consideração a medicina, a literatura e a arte, haja vista que pesquisadores se deteram nessas ciências para chegarem a uma definição da síndrome. Até meados do século XIX eram desconhecidos registros exatos de estudos sobre pessoas com síndrome de down. De acordo com Pueschel (2012) nenhum relatório bem documentado sobre pessoas com síndrome de Down foi publicado antes do século XIX. Fatores contribuíram para isso como: Poucos registros médicos, pouco interesse despertado entre os profissionais da saúde; seus interesses estavam concentrados na desnutrição e doenças infecciosas; a morte prematura de mulheres [...] e a morte de crianças nascidas com a síndrome, ainda nos primeiros anos de vida, em decorrência de diversas doenças. Muitos estudos foram sendo realizados no decorrer dos séculos XIX e XX para se chegar a uma definição. O primeiro relato sobre a síndrome foi feito entre 1864 e 1866 pelo médico e pesquisador inglês Jonh Langdon Haydon Down em que a definição foi concretizada. Ele trabalhava em uma clínica para crianças com atraso neuropsicomotor, em Surrey, na Inglaterra. Ele listou com clareza as características físicas similares que observou em alguns filhos de mães acima de 35 anos de idade. Segundo Martins (2002) o médico registrou a existência de um grupo diversificado de pessoas com deficiência mental e descreveu também o conjunto sintomático que caracterizava a síndrome. Tendo seus estudos fundamentados na teoria da Evolução Humana de Charles Darwin o médico Jonh Langdon Haydon Down, explicou a síndrome estabelecendo uma teoria étnica, sugerindo ser a síndrome um “estado regressivo da evolução”. De uma espécie racial denominada de “mongólica Blumenbach” daí surgiu o estereótipo usado durante muito tempo às pessoas com síndrome de down. Segundo Munhoz (2003) o grande mérito desse pesquisador não está só na identificação das características físicas da criança com síndrome de Down, como também na diferenciação destas outras crianças que possuíam deficiência mental. As causas da síndrome de down até meados do século XX eram desconhecidas, muitas hipóteses foram levantadas como, por exemplo, por fatores hereditários, por ferimentos sofridos durante o nascimento, por consumo excessivo de medicamentos, por sífilis,

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tuberculose, hipotireoidismo, sendo os pacientes considerados como “crianças inacabadas.” (OLIVEIRA & GOMESS, 2013)52 Por volta dos anos 1950 aconteceram avanços significativos no campo da genética em que foi observado por cientistas pesquisadores anormalidades no cariótipo abrindo para novas pesquisas e descobrindo anomalias nos cromossomos. Os cientistas Tjio53 e Levan54 em 1956 descobriram que o número de cromossomos humanos era composto de 46 cromossomos e não de 48 até então como pensavam os cientistas. Novas pesquisas foram realizadas até que por volta de 1959, quase cem anos após a descrição do Dr Jonh Langdon Haydon Down os cientistas Jerome LeJeune e Patricia Jacobs, trabalhando de forma independente, determinaram a causa do até então “mongolismo”, como sendo a trissomia do cromossomo 21 Assim definiram que os seres humanos têm 46 cromossomos, sendo herdados 23 pares de cada pai (masculino e feminino). Devido à cópia extra do cromossoma 21, indivíduos com Síndrome de Down têm 47 cromossomas. A partir de todas essas descobertas no campo da genética foi possível explicar aproximadamente 12 síndromes congênitas humanas e demonstrar que cerca de 5 entre 1000 recém-nascidos apresentam algum tipo de “aberração cromossômica.” As descobertas do médico e pesquisador Jerome LeJeune definiram a síndrome de down ou trissomia 21 como sendo um distúrbio genético causado pela presença extra total ou parcialmente de um cromossoma 21 sendo o distúrbio genético mais comum. A trissomia do 21 foi a primeira alteração cromossômica detectada dentro dos primeiros anos da década de 50 na espécie humana. Nos Estados Unidos, após uma revisão de termos científicos realizada em 1970, a denominação “mongolismo” foi abolida e a alteração foi definitivamente denominada Síndrome de Down (Down Syndrome), em homenagem ao médico Langdon Haydn Down que a descreveu pela primeira vez. CARACTERÍSTICAS FÍSICAS, BIOLÓGICAS E COGNITIVAS DA PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN. Pessoas com síndrome de down culturalmente foram consideradas como “débeis mentais” sofreram preconceitos e são estereotipadas por causa de suas caraterísticas físicas e desenvolvimento mental. Acomete que a Síndrome de down pode ocorrer com qualquer pessoa independente da condição socioeconômica, raça ou cor. Segundo a National Down Syndrome Society – NDSS (2010), mulheres mais velhas têm uma chance maior de ter um filho com síndrome de Down. A Síndrome decorre de um acidente genético que ocorre em média em 1 a cada 800 nascimentos, aumentando a incidência com o aumento da idade materna. Atualmente, é considerada a alteração genética mais frequente e a ocorrência da Síndrome de Down entre os recém nascidos vivos de mães de até 27 anos é de 1/1200. Com mães de 30-35 anos é de 1/365 e depois dos 35 anos a frequência aumenta mais rapidamente: 52

Gisele Santos de Oliveira Médica pela Universidade Federal do Paraná, residência em pediatria pela UFPR, residência em genética médica pela FCM/Unicamp, título de especialista Genética Clínica pela Associação Médica Brasileira e Sociedade Brasileira de Genética Clínica, mestrado Ciências Médicas – concentração em Genética Médica pela FCM/Unicamp, doutoranda – Ciências Médicas – concentração em Genética Médica pela FCM/Unicamp. Meire Gomes Médica pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, residência em pediatria pela UFRN, título de especialista em Pediatria pela Associação Médica Brasileira e Sociedade Brasileira de Pediatria; exmédica da rede estadual de assistência à pessoa com deficiência do Rio Grande do Norte – Centro de Reabilitação Infantil; Curso de Formação em Perícia Médica, pós-graduanda em Direito Previdenciário. 53 Joe Hin Tjio (1919–20 Joe Hin Tjio (1919-2001), era um citogeneticista indonésia-americano conhecido como a primeira pessoa a reconhecer o número normal de cromossomos humanos. 54 Albert Levan (1905-1998) foi um botânico sueco e geneticista, co-autor do relatório, em 1956, de que os seres humanos tinham quarenta e seis cromossomas (em vez de quarenta e oito, como se acreditava anteriormente). Esta descoberta de época foi feita por Joe Hin Tjio no laboratório de Levan.

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entre 39-40 anos é de 1/100 e depois dos 40 anos torna-se ainda maior. É uma condição genética conhecida há mais de um século, e que constitui uma das causas mais frequentes de deficiência mental 18% (PORTAL DA SINDROME DE DOWN, 2013). No Brasil não existe ainda uma estatística específica sobre o número de brasileiros com síndrome de Down. Uma estimativa pode ser levantada com base na relação de 1 para cada 700 nascimentos, levando-se em conta toda a população brasileira. Ou seja, segundo esta conta, cerca de 270 mil pessoas no Brasil teriam síndrome de Down. No último Censo do IBGE, em 2010, 23,9% dos entrevistados disseram possuir alguma deficiência, sendo que 2617025 declararam ter deficiência intelectual. A contagem foi realizada por amostragem, ou seja, em apenas algumas casas aplicou-se o formulário completo, em que o cidadão declara se possui alguma deficiência. (MOVIMENTO DOWN, 2012) As características físicas associadas à síndrome de Down são: olhos amendoados, maior propensão ao desenvolvimento de algumas doenças, hipotonia muscular e deficiência intelectual. Em geral, as crianças com síndrome de Down são menores em tamanho e seu desenvolvimento físico e mental são lentos, comparadas às outras crianças da sua idade. Também é importante destacar que a síndrome de Down não é uma doença, e sim uma condição inerente à pessoa, portanto não se deve falar em tratamento ou cura. Entretanto, como esta condição está associada a algumas questões de saúde que devem ser observadas desde o nascimento da criança. Não existem graus de Síndrome de Down, o que existe é uma leitura deste padrão genético por cada indivíduo, como ocorre com todos nós. Assim, como existem diferenças entre a população em geral também existem diferenças entre as pessoas com Síndrome de Down. De acordo com a NDSS – National Down Syndrome Society (2013) foi classificado três tipos de Síndrome de Down: A trissomia livre (92% dos casos) quando a constituição genética destes indivíduos é caracterizada pela presença de um cromossomo 21 extra em todas as suas células. O mosaicismo (2 a 4 % dos casos), onde células de 46 e de 47 cromossomos estão mescladas no mesmo indivíduo. A translocação (3 a 4% dos casos), quando o material genético sobressalente pode estar associado a herança genética e é muito raro. A trissomia 21 é a presença de uma terceira cópia do cromossoma 21 nas células do indivíduo afectado. A trissomia 21 é a presença de uma terceira cópia do cromossoma 21 nas células do indivíduo afectado. Figura 1: trissomia 21

Fonte: Movimento Down 2014

O atraso no desenvolvimento na pessoa com a síndrome pode ainda estar associado a outros problemas clínicos com: cardiopatia congênita (40%), hipotonia (100%), problemas auditivos (50 –70%), de visão (15 – 50%), distúrbios da tireoide (15%), problemas neurológicos (5 - 10%) e obesidade e envelhecimento precoce. (PORTAL DA SINDROME DE DOWN, 2013).

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PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN: DIFICULDADES E POTENCIALIDADES. "A Síndrome de down é uma condição de vida do indivíduo, um estado biológico alterado, em decorrência de anormalidades cromossômicas. Assim, quem porta essa alteração, sempre terá essa síndrome” (MARTINS, 2002, p.51). É inerente na sociedade o preconceito que se cria em relação às potencialidades de uma pessoa Síndrome de Down, as concepções negativas acabam impedindo o sucesso e o crescimento da pessoa SD de progredir na vida. As dificuldades de socialização surgem da própria família, quando estas não são preparadas logo no início da diagnose recebida. Os pais reconhecem que os filhos Down têm comprometimentos na saúde, no psicológico, no mental, no cognitivo, por isso, que há um equívoco em superproteger ou ignorar essa criança. A maneira como a família encara a dificuldade que tem pela frente pelo fato de ter um filho com deficiência é determinante para o futuro da criança. Há histórias que nos mostram que a estimulação, a dedicação e o amor dos pais fazem muita diferença. Pesquisas realizadas nos EUA e na Inglaterra demonstraram que o mais importante do que ensinar as crianças ler e a escrever é importante a estimulação e incentivo para uma vida independente e autônoma. Estas pesquisas mostraram que, para ser aceito no trabalho, conta mais o grau de autonomia e de comportamento social, do que propriamente o nível de escolaridade. Assim, podemos deduzir que para o indivíduo Down naturalmente a escola é importante, mas é também fundamental o comportamento autônomo e social aceitável. “O trabalho de estimulação precoce é importante para propiciar o desenvolvimento do potencial da SD.” (VOIVODIC, 2013, p. 54). Por esse prisma é necessário um ambiente mais propício, uma sociedade mais informada, uma escola mais inclusiva e aberta e um mercado de trabalho mais receptivo, e teremos uma pessoa com maiores possibilidades e motivações para se desenvolver sempre mais, e mais importante, com um sentido para estimulação e educação. Segundo Schwartzman (1999, p.262): A educação de crianças com Síndrome de Down, apesar de sua complexidade, não invalida a afirmação de que tem a possibilidade de evoluírem. Com o devido acompanhamento, poderão tornar-se cidadãos úteis à comunidade, embora seu progresso não atinja os patamares das crianças normais.

Assim, quando a escola e a família se propõem a oferecer uma vida com autonomia e independência a essas crianças, estão possibilitando um ser capaz de decidir, criar e inventar sua própria história. A maneira pela qual podemos definir como inclusão no respeito às diferenças. Bentes (2012, p.41) nos diz que se deve reverter a valorização estabelecida pela perfeição (identidades sem falhas) e aceitar o estado atual da pessoa, como característica cultural de grupo de indivíduos, sem depreciá-las. A estimulação desenvolve ao máximo a capacidade das crianças Down. É fato verdade que essas crianças têm um ritmo diferente de aprendizagem, de agir, de pensar em relação às outras crianças, porém isso não tira o direito dela fazer parte da convivência social e escolar. 73% delas têm autonomia para tomar iniciativas, tomam decisões sem que se seja necessário que os pais digam a todo o momento o que elas devam fazer. Essa independência só acontece quando são estimuladas desde a fase infantil. De acordo com estudos avançados a inserção de pessoas com síndrome de Down na sociedade acontece quando esta não ignora oportunidades e reconheça a diferença como diversidade e não desigualdade. INCLUSÃO E PARTICIPAÇÃO: CONCEPÇÕES E OPINIÕES DE PROFESSORES. (ANÁLISE DE DADOS) Ao perguntar aos professores como definiriam educação inclusiva, a maioria deixou claro que o conceito de educação inclusiva perpassa pela ideia apenas de ingressar alunos com deficiência na escola. Enfatizaram que é papel da escola matricular alunos com deficiência:

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Está na lei, eu ouvi num encontro que eu fui, agora as escolas devem matricular o aluno deficiente e deixar junto na sala com os outros alunos. Pelo menos foi isso que eu entendi que é “inclusão”. Eu acho que é deixar o aluno com deficiência estudar na turma normal com os outros alunos.

A Inclusão Escolar não é apenas o direito ao ingresso na escola a reserva de matrícula ao deficiente. Inclusão escolar é garantir o direito à diferença e construção de uma prática pedagógica que garanta a escolarização e a integração plena do aluno com deficiência. Pela declaração dos professores a inclusão em seu sentido pleno ainda está longe de acontecer, uma ideia de segregação o “Estar” na escola, seria segundo suas concepções a “Inclusão Escolar.” De acordo com Ferreira; Guimarães (2003) comete engano a pessoa que pensa que a educação inclusiva é para apenas as crianças com algum tipo de necessidade especial. A educação inclusiva é o direito de escolarização com plena participação à todas as crianças que lhes são furtadas esses direitos e não apenas aquelas que são rotuladas com o termo deficiente. Percebi também que a maioria dos professores não tinha nenhuma formação ou curso técnico em educação especial/inclusiva. Segundo as declarações todos tem formação em outras áreas. E disseram que talvez em função da presença dos alunos com deficiência na escola, buscarão formações, porém esperam que elas sejam oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação. Com exceção da professora da sala multifuncional que possui uma especialização e um curso de aperfeiçoamento. Também duas professoras disseram que participaram de uma capacitação do Atendimento Especializado – AEE oferecido pela Secretaria de Educação. As respostas foram: Não fiz nenhum curso, eu tenho só minha graduação em educação básica. Não tenho nenhum curso e nenhuma capacitação, mas quero fazer já que as escolas vão matricular essas crianças nas salas juntas com os outros alunos. Então tenho que aprender sobre como trabalhar com essas crianças.

As demais respostas se assemelham, pois a maioria disse que ainda não possuem cursos e/ou capacitação em educação inclusiva. Diante das respostas obtidas é imprescindível que governos e instituições comecem a mudar seus paradigmas e suas propostas e se voltem para a inclusão da pessoa humana com direitos garantidos. E dentre esses direitos é de fundamental importância a “capacitação do professor”, já que a inclusão implica no aprimoramento da formação dos professores para realizar propostas de ensino e, também, e é um pretexto para que a escola se modernize, atendendo às exigências de uma sociedade, que não admite preconceitos, discriminação, barreiras entre seres, povos e culturas. Mantoan (2011, p. 39) nos diz que “a Inclusão é um desafio assim é importante promover uma reforma estrutural e organizacional das escolas comuns e especiais.” Procurar entender o ingresso do aluno síndrome de down na escola comum segundo as opiniões dos professores, é trazer átona um sentimento do outro, ou seja, é reconhecer como os professores, a escola, concebem a presença daquela criança num universo que também é seu e, que não lhe seja dado sentimentos discriminatórios e preconceituosos. Assim fiz a seguinte pergunta: Se fosse matriculado um aluno síndrome de Down em sua turma, como você o receberia? As respostas foram: Eu ficaria a princípio com insegurança porque eu não sei como trabalhar com essas crianças, mas procuraria recebê-lo muito bem. Receber eu o receberia muito bem, porém no dia a dia da sala de aula, confesso que ficaria meio temerosa, porque eu nunca trabalhei com essas crianças.

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O importante dessas respostas é que a maioria não mostrou apatia ao processo, entendem que o aluno síndrome de Down está inserido no processo educacional tanto quanto os outros alunos. Os professores demonstraram respeito, porém o medo do novo é consequência da formação acadêmica que não os habilitou para trabalharem com a diversidade. Ainda encontramos professores acostumados a trabalharem com a homogeneidade, ainda não entendem que na escola existe uma gama de pessoas diferentes em todos os seus aspectos. Esquecem que a diferença não se limita apenas em ser diferente física ou intelectualmente, mas que provem da multiplicidade do ser em seus sentimentos e ações. Assim “[...] A multiplicidade é ativa, é fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de produzir diferenças- diferenças que são irredutíveis à identidade” (SILVA, 2000, p.100-101). Minha maior inquietação foi compreender as concepções que os professores têm sobre a criança Down em seus aspectos físicos e intelectuais. Assim quando perguntei aos professores como eles imaginariam como era criança Down, fiz esperando compreender o sentimento desse profissional frente ao desafio da inclusão. As respostas foram: Imagino uma criança brincalhona, sapeca e muito esperta. Quando olho essas crianças na rua sei que o mundo delas é muito diferente do nosso. Isso me fascina!” “Eu tenho um vizinho Down e percebo que ele tem dificuldade na fala, as palavras não são “direita” e ele gosta muito de comer, mas uma coisa que eu percebo, ele é muito prestativo, ajuda a mãe nas tarefas de casa.” “Não sei se todos são assim, mas eu imagino uma criança capaz de aprender, temos que ter paciência!” “[..] uma criança alegre, que gosta de brincar, dançar. Com limitações cognitivas. Precisamos ter amor a profissional para ter essa criança e entendê-la e ajudá-la no seu desenvolvimento, pois acho um desafio trabalhar com essas crianças.

Toda criança tem suas particularidades, limitações próprias, características pessoais, físicas e emocionais diferentes. Segundo Saad (2003) nos diz que das crianças em geral não se pode esperar uniformidade nem na qualidade, nem no ritmo de aprendizagem, seja individual ou coletivo, mesmo que todas partam do mesmo grau de avaliação de QI. Vygotsky (1998, p.128) contesta este tipo de avaliação, mas reforça essa ideia dizendo que “o mesmo grau de QI em duas crianças, não representa fidelidade na avaliação nem garante o mesmo desempenho, uma vez que ele representa a zona real de desenvolvimento, sem desvendar a proximal.” Assim sendo, as pessoas se diferenciam muito entre si. Mesmo tendo as mesmas funções alteradas, as possibilidades de desenvolvimento serão diferentes tanto quanto em crianças sem deficiências. Em se tratando de pessoas com deficiência, além de uma capacidade natural desigual de desenvolvimento, também desigual é o uso que é feito da mediação. “Porém, a plasticidade do sistema psico-neurológico humano estando em constante construção no decurso do desenvolvimento humano dentro da cultura, descarta determinismos biológicos ou sociais” (SAAD, 2003 p.61). Segundo o ditado popular “ninguém é igual a ninguém”, nos faz entender que a muito tempo mesmo que subjetivamente a sociedade sabe que convivemos com pessoa diferentes, de atitudes e sentimentos diferentes. Igualitar é sinônimo de retrocesso social. “Evoluir é perceber que incluir não é tratar igual, pois as pessoas são diferentes! Alunos diferentes terão oportunidades diferentes, para que o ensino alcance os mesmos objetivos. Incluir é abandonar estereótipos”. (WERNECK, 1993, p.56) Partindo dessa análise perguntei aos professores: Você está preparado (a) para trabalhar com a criança Síndrome de Down? As respostas deixaram evidentes que a escola e os professores, em especial, compreendem que estarão preparados quando o aluno chegar à escola. Antes não há essa preocupação, segundo os professores, por enquanto não buscaram desenvolver novas práticas e nem buscaram formação porque esses alunos ainda não chegaram, mas entendem a necessidade de se buscar novas formações:

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Falei anteriormente que não fiz nenhuma capacitação ou cursos de inclusão, não sei técnicas e nem métodos de trabalhar com essas crianças, preparada não estou, mas quando eu tiver um aluno síndrome de Down vou me esforçar para fazer o melhor. Elas são diferentes no cognitivo, se a escola me ajudar, tenho certeza que me preparei muito para lidar com essas crianças. Talvez muito bem preparada tenho certeza que não estou! Quero ficar! pois a educação pede isso. Na escola inclusiva o professor é uma peça muito importante, pois, será o mediador do processo inclusivo, ele precisa estar preparado tanto teoricamente quanto psicologicamente. Oferecer capacitações aos professores seria uma proposta de renovação ao processo inclusivo, segundo Salete (2008), nos diz que o modelo de escola inclusiva tem que capacitar o corpo docente com formações específicas e continuadas, como orientação e capacitação de todos os que lidam diretamente com os alunos no ambiente escolar. Mantoan (2005) diz que o professor não tem que se preparar para ensinar métodos especiais para alunos com deficiência, mas sim se preparar para tender todas as crianças. Enfatiza que o ensino vai mal porque a escola continua repetindo no século XXI o que foi a escola do século XVIII. Ainda segundo ela, a preparação dos professores comuns deve passar pela naturalização de seus métodos, práticas de ensino, avaliações, entre outras tarefas, que estão muito defasados. Por outro lado, os professores da educação especializada precisam também aprender a distinguir as suas funções das dos professores comuns, ensinando, sem repetir nas classes especiais, o que é próprio da escola comum, como acontece muito, até hoje, nas escolas especiais. A responsabilidade da educação inclusiva não deve recair apenas no professor, lembremos que a escola é a responsável pela dinamização e qualidade do ensino. Uma escola comprometida com ensino vislumbra políticas inclusivas e democráticas. Assim perguntei aos professores da escola como a escola poderia contribuir para o desenvolvimento e desempenho de uma criança Down com sucesso e autonomia, as respostas demonstraram que os profissionais entendem que se a escola não assumir seu compromisso, através de seu Projeto Político Pedagógico, de suas estratégias pedagógicas e administrativas, a inclusão acontecerá com pouca eficiência. Pois só o professor não consegue dá qualidade ao processo sozinho. A parceria entre professores, escola e família é primordial. Todos caminhando a um só objetivo que é proporcionar um ensino de qualidade respeitando a criança em todos os seus aspectos: A escola precisa está empenhada em ajudar os professores, os alunos e outros para a aprendizagem da criança. E com a criança Down não será diferente, escola e família devem se juntar, mas a escola terá mais responsabilidade se criar estratégias para o desenvolvimento da aprendizagem do aluno com síndrome de Down. Acredito que a escola contribuirá com o desenvolvimento dessa criança proporcionando encontros de famílias, realizando palestras para os funcionários sobre essas crianças, o coordenador pedagógico deve apoiar mais os professores. Primeiro deixar ela se sentir como as outras crianças, segundo fazer conscientização na escola, terceiras deixar a criança participar de todas as atividades da escola. Isso já ajudaria muito no desenvolvimento de aprendizagem e de socialização da criança. A escola tem que respeitar essas crianças e depois oferecer condições para ela ficar na escola.

Pelas respostas dos professores a escola hoje tem um maior compromisso com o processo educacional. As opiniões se pautaram em parcerias escola e Família, formações e capacitações, envolvimento, direito da criança participar da vida escolar. Vimos através das opiniões que a escola é fundamental para que se concretize uma educação verdadeiramente igualitária em direitos e deveres. Assim: “A ação educativa, como atividade de interação subjetiva e social, implica em uma relação de comunicação e de alteridade, cujo vínculo está

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implícito em toda prática educacional que se estabelece em quem aprende e quem ensina.” (OLIVEIRA, 2004, p. 16). Uma realidade que circunda as escolas, e isso foi comprovada com as respostas dos professores em que as escolas estão se preparando para receber os alunos com deficiência, a partir da presença deles na escola. De acordo com Mantoan (2005) é óbvio que se as crianças são segregadas em escolas especiais, não há necessidade de as escolas comuns se prepararem para recebê-las. Como agora, elas estão sendo encaminhadas às escolas comuns, tudo muda. Segundo Drummond (2008) A criança com Síndrome de Down inclusa na escola de ensino regular tem grandes chances de melhor se desenvolver porque esse ambiente para ela certamente será mais desafiador, do que para os outros alunos sem deficiência, e é isso que vai servir de estímulo para que ela se desenvolva. Cabe à escola a responsabilidade de favorecer o desenvolvimento social e emocional da criança, utilizando uma postura pedagógica diferenciada, e não somente aquela em que predominam os conteúdos curriculares. A análise sobre o papel do professor e as habilidades adaptativas que as crianças com Síndrome de Down desempenham sugerem requisitos básicos para planejar o currículo educacional individualizado. A promoção social da criança fundamenta-se no currículo organizado em torno do contexto de vida do aluno e das informações sobre o seu conhecimento de habilidades e quando estas são interligadas em torno das áreas: cognitiva, sócio afetivo, psicomotricidade e interpessoais. Nesse sentido, considerar a importância da participação da família e a interação entre o professor e o aluno como agentes fundamentais no processo ensino-aprendizagem é prescindível. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tive a convicção durante todo o trabalho de pesquisa que a educação inclusiva, mesmo sendo um tema já estudado, debatido, analisado ainda causa insegurança tanto na escola quanto para os professores porque não se está vivenciado verdadeiramente essa política na prática, no dia a dia escolar, ainda se tem muito que aprender, e me arrisco a dizer “aceitar”, pois ainda estamos com olhar “míope” para a inclusão. Enquanto não olharmos para o aluno com deficiência se vendo nele e, aceitando suas diferenças a tão sonhada educação para todos não se concretizará. Seriam significativas algumas ações para práticas inclusivas dentre essas são: a busca pela renovação nas práticas pedagógicas, parceria entre escola e família, sensibilização na comunidade, apoio governamental, programas de acessibilidade mais eficazes etc. assim provavelmente não estaremos ocultando ou maquiando a inclusão por trás da exclusão. O aluno com síndrome de Down tem direitos garantidos tanto quanto outras crianças, porém esses direitos ainda são ignorados, começando pela família, pois poucas crianças Down estão no ensino regular 15% de uma comunidade de aproximadamente 120 crianças se encontram fora da escola no município de Igarapé-Miri. (APAE, 2013). Talvez seja a realidade do Brasil e tudo começa pela própria família que não busca e nem quer entender os direitos dos alunos. Muitos entraves causam a ineficiência com essas crianças dentre as quais temos: abandono escolar, crianças Down que foram matriculadas e que abandonaram os estudos porque a família desistiu de levá-las à escola; falta de profissionais qualificados para o atendimento a essas crianças; a incredibilidade causada pelo ceticismo no potencial dessas crianças. Ouvi uma declaração de um profissional que disse assim: “essas as crianças Down não irão a lugar nenhum” ao ouvi essa declaração me levou a reflexão de o quanto pessoas ceifam o direito dessas crianças só porque elas não estão dentro do padrão de normalidade que a sociedade impõe. Segundo Bentes (2012) grupos sociais estabelecem padrão de normalidade e ditam quem pode fazer parte. O autor define isso como interdições normalizadoras, ou seja, discurso e atitudes proibitivas que impedem o desenvolvimento de potencialidades das pessoas deficientes. Essas crianças devem ser vistas como pessoas e não como uma criança

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“problema” para isso precisam de oportunidades para desenvolverem suas potencialidades e habilidades sendo respeitado seu ritmo de desenvolvimento. Dentro do contexto educacional e social hoje com a política de inclusão a voga, tornase cada vez menos possível permanecer, como afirma Sousa Santos “indiferente à diferença” (CORTESÃO, 2011, p. 15). Assim, incluir o aluno com síndrome de down no ensino regular significa despojamento de dúvidas e incertezas, de preconceitos, discriminações e do medo, aceitar as diferenças e respeitar cada um dentro do seu próprio ritmo. REFERÊNCIA BENTES, José Anchieta de Oliveira. Normalidade e disnormalidade: Formas do trabalho docente na educação de surdos. Campina Grande: EDUEPB 2012 COTESÃO, Luiza. Ser professor: um ofício em risco de extinção?: reflexões sobre práticas educativas face à diversidae, no limiar do Século XXI. 3º edição – São Paulo : cortez, 2011 DINIZ, Adriana Cláudia Drumond. O processo de inclusão da criança com Síndrome de Down em contextos escolares diferenciados. Adriana Cláudia Drumond Diniz. Barbacena, 2008 MARTINS, Lúcia de Araújo Ramos. A inclusão escolar do portador da síndrome de Down: o que pensam os educadores? Natal, RN: EDUFRN, 2002 MANTOAN, Maria Tereza Egler. Compreendendo a deficiência mental: novos caminhos educacionais. São Paulo: Scipione, 1989. __________. Inclusão escolar: o que é? Por quê? Como fazer?. São Paulo, Moderna, 2003 MOVIMENTO DOWN. Disponível em: http://www.movimentodown.org.br/sindrome-dedown/caracteristicas/ Acesso em 13 de julho de 2014 INTERNACIONAL MOSAIC DOWN SYNDROME ASSOCIATION. Disponível em: www.imdsa.org. Acesso em: 11 de julho de 2014; OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Saberes, imaginários e representações na educação especial: A problemática ética da “diferença” e da exclusão social. Petrópolis, RJ. Vozes 2004 PIMENTEL, Susana Couto. Conviver com a Síndrome de Down em escola inclusiva: mediação pedagógica e formação de conceitos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 PUESCHEL, Siegfriend M. Síndrome de Down: Guia para pais e educadores; tradução Lucia helena Reily, 14ª edição Campinas, SP: Papirus, 2012 VOIVODIC, Maria Antonieta M.A. Inclusão Escolar de Crianças com Síndrome de Down. 7ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes: 2013 WERNECK, Claudia. Muito prazer eu existo. Rio de janeiro:WVA,1993

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SCHWARTZMAN, José Salomão. Síndrome de Down. São Paulo: Mackenzie: Memnon, 1999. SALETE, Maria Fábio Aranha. Adaptações de grande porte. Disponível em http://www.redebrasil.tv.br/salto/boletins2002/feei/tetx4htm acesso em 27 de julho de 2014 SAAD, Suad Nader. Preparando o caminho da inclusão: dissolvendo mitos e preconceitos em relação à pessoa com síndrome de down. Rev. bras. educ. espec. 2003, vol.09, n.01, pp. 5778 ISSN 1413-6538 Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/rbee/v09n01a07. Acesso em 15 de junho de 2014

A FLEXIBILIZAÇÃO DAS METODOLOGIAS UTILIZADAS NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO COM EDUCANDOS SURDOS IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA - PPGED/UEPA WALDMA MAÍRA MENEZES DE OLIVEIRA- PPGED/UEPA Resumo: O presente trabalho teve como objetivo geral evidenciar as metodologias utilizadas pelos educadores das SRM na educação de surdos e como essas contribuem para a aprendizagem dos educandos. Os objetivos específicos foram: (a) identificar que concepção de educação norteia a prática metodológica dos professores do AEE com educandos surdos; (b) verificar de que forma ocorre a formação dos educadores que irão trabalhar no AEE com Surdos; (c) reconhecer de que maneira são planejadas as metodologias trabalhadas no AEE com alunos surdos e (d) verificar como os professores adquiriram informações sobre a metodologia utilizada. Neste trabalho levantei como problemática a seguinte questão: as metodologias utilizadas pelos professores do AEE na educação de surdos contribuem para a aprendizagem dos conteúdos curriculares pelos educandos? A pesquisa de abordagem qualitativa consistiu em um estudo de caso, em que se utilizou levantamento bibliográfico, a observação dos atendimentos realizados pela técnica bilíngue no ano de 2012, e entrevista com um professor surdo da SRM de uma escola pública. O trabalho foi desenvolvido através do diálogo com os autores Marques (2007), Campelo (2007), Formosinho (1996) entre outros. As categorias sistematizadas no decorrer desta pesquisa se dividem em: Formação e Experiência do professor do AEE com alunos surdos, Planejamento e Metodologia utilizada no atendimento. No decorrer da pesquisa ficou evidente a importância das metodologias no ensino dos educandos surdos e suas contribuições no processo de aprendizagem, pautado no visuoespacial Os resultados mais representativos deste estudo, foi o anseio do educador da SRM, em realizar as adequações metodológicas nos atendimentos, para promover uma aprendizagem significativa, ativa e prazerosa aos educandos surdos. Palavras-chave: Educandos Surdos; Ensino-Aprendizagem; Metodologia. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema “A flexibilização das metodologias utilizadas no atendimento educacional especializado com educandos surdos”. A motivação pelo estudo se deu no contato com os alunos surdos atendidos em uma sala de recurso multifuncional de uma escola municipal da periferia de Belém, no período de maio a outubro de 2012 No momento em que comecei a conhecer e a conviver neste ambiente escolar pude perceber a importância das metodologias no ensino dos educandos surdos e suas contribuições no processo de aprendizagem. Notei que na sala de recurso multifuncional para realizar o atendimento educacional especializado, a equipe conta com certos materiais didáticos

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voltados para a educação de surdos, todavia a cada atendimento criavam-se novos materiais juntamente com o educando. A elaboração do plano de AEE inicia-se com o estudo das necessidades de cada educando surdo, respeitando o tempo de aprendizagem, o nível em que se encontra na L1 (língua materna, neste caso, Língua de Sinais Brasileira) a modalidade L2 ( escrita da Língua Portuguesa, de acordo com a gramática), tendo seu atendimento pautado em três esferas didáticas- pedagógicas segundo Damázio (2007):

Em decorrência de tudo que já foi exposto, me vi impulsionada a estudar e investigar as práticas metodológicas no AEE com educandos surdos, pois acredito que, ao evidenciar os pontos positivos e negativos das metodologias utilizadas em cada atendimento, possamos como equipe bilíngue nos aprimorar cada vez mais, tendo como base norteadora que a aprendizagem dos educandos surdos só ocorrerá de maneira efetiva e satisfatória, se os usos das metodologias adotadas no ensino estiverem de acordo, com as necessidades do educandos, em ordem psíquica, social, afetiva, linguística e cognitiva e pautada em uma concepção de educação que atenda as diversidades culturais e diferenças individuais. OBJETIVOS A pesquisa tem como problemática a seguinte questão: as metodologias utilizadas pelos professores do AEE na educação de Surdos contribuem para a aprendizagem dos conteúdos curriculares pelos educandos? O objetivo geral da pesquisa é analisar se as metodologias utilizadas pelos educadores do AEE na educação de Surdos contribuem para a aprendizagem dos conteúdos curriculares pelos educandos. Os objetivos específicos são: (a) identificar que concepção de educação norteia a prática metodológica dos professores do AEE com educandos surdos; (b) verificar de que forma ocorre a formação dos educadores que irão trabalhar no AEE com Surdos; (c) reconhecer de que maneira são planejadas as metodologias trabalhadas no AEE com alunos surdos e (d) verificar como os professores adquiriram informações sobre a metodologia utilizada. Assim, o objetivo desse estudo é identificar como está se dando o uso das metodologias no atendimento educacional especializado dos educandos surdos, quais são as adequações utilizadas pelos educadores e quais os recursos metodológicos usados no processo ensino-aprendizagem. METODOLOGIA A pesquisa de campo realizada é de abordagem de caráter qualitativo que tem como principal objetivo interpretar o fenômeno que observa na práxis. De acordo com Ludke e André (1986,p.11) “a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural com sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento.” A priori foi realizado na fase exploratória um levantamento bibliográfico (Atendimento educacional especializado para surdos, seguindo a cartilha do MEC e os dados dos educandos surdos, que continham em sua pasta na SRM) acerca do tema pesquisado, considerando que este “levantamento bibliográfico bem feito permite ao pesquisador partir do conhecimento já existente [...] dos conceitos bem trabalhados que viabilizem sua operacionalização no campo das hipóteses formuladas” (MINAYO 2010,p.61). Esta pesquisa consiste ainda em um estudo de caso. Segundo Ludke e André (1986), o estudo de caso. “é sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente definidos

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no desenrolar do estudo. O caso pode ser similar a outros, mas é ao mesmo tempo distinto, pois tem um interesse próprio, singular, visando à descoberta.”(p. 17 e 18) A importância desta fase do estudo de caso se dá, de acordo com Minayo (2002, p. 61) “pela aproximação do pesquisador da realidade sobre a qual formulou uma pergunta, mas também estabelece uma interação com os ‘atores’ que conformam a realidade e, assim, constrói um conhecimento empírico importantíssimo para quem faz pesquisa social”. A pesquisa de campo foi realizada na Escola Municipal Ensino Fundamental Walter Leite, por ser referencia nos atendimentos aos educandos no distrito do Benguí e pela quantidade de alunos surdos que frequentavam a sala de recurso multifuncional, sendo a única escola distrital/DABEN que trabalhavam com a modalidade do AEE com educandos surdos. A pesquisa foi realizada no período da manhã e tarde, de segunda a quinta – feira, em uma sala de recursos multifuncionais com quatro educandos surdos, sendo dois no período da manhã e os outros dois à tarde. O entrevistado Hulk tem 42 anos é formado em Pedagogia pela Faculdade Ipiranga e em Letras-Libras pela UFSC, possui especialização em Libras e PROLIBRAS, está no exercício dos atendimentos há 06 anos, trabalhando especificamente na escola em que foi realizada a pesquisa, sendo referencial de profissional surdo nos distritos do DABEN e DAICO. A pesquisa aconteceu no período de maio a outubro de 2012, sendo dividida em quatro momentos: (1) a observação in loco, (2) a realização da entrevista semi-estruturada, (3) a tabulação e sistematização dos dados (4) análise dos dados levantados. Os dados coletados foram sistematizados em eixos temáticos: Concepção de Educação, Planejamento, Métodos de Ensino, Avaliação da Aprendizagem. RESULTADOS DA PESQUISA Nesta secção analisaremos e observaremos os dados coletados na entrevista, acerca das metodologias no atendimento dos educandos surdos, de uma escola municipal em Belém. As categorias sistematizadas no decorrer desta secção se dividem em: Formação e Experiência do professor do AEE com alunos surdos, Planejamento e Metodologia utilizada no atendimento. 1) Formação e Experiência do professor do AEE com educandos surdos. A formação do professor da sala de recurso multifuncional foi algo bastante comentado na entrevista, para iniciarmos está secção necessitaremos citar o que vem a ser esta formação continuada. De acordo com o entrevistado Hulk a formação continuada é “efetiva, pois sempre o centro oferta vários cursos de aperfeiçoamento durante o semestre, além do que toda sexta feira termos nossa H.P que nos proporciona várias discussões”. Formosinho (1991) destaca que as escolas/centros deveriam disponibilizar cursos de formação regularmente, para capacitar os educadores para desenvolver uma boa prática pedagógica, com um único objetivo. o aperfeiçoamento dos professores tem finalidades individuais óbvias, mas também tem utilidade social. A formação contínua tem como finalidade última o aperfeiçoamento pessoal e social de cada professor, numa perspectiva de educação permanente. Mas tal aperfeiçoamento tem um efeito positivo no sistema escolar se traduzir na melhoria da qualidade da educação oferecida aos alunos. (FORMOSINHO, 1991, p. 238).

Além disso, a formação contínua é garantida pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB): (...) a formação de profissionais da educação, de modo a atender os objetivos dos diferentes níveis e modalidade de ensino e as características da cada fase do desenvolvimento do educando, terá como fundamentos: I- a associação entre teorias práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço. (BRASIL, 1996)

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Atualidade da prática docente encontra-se atrelada aos modelos impostos pelo poder público, que geralmente apresenta uma dicotomia e uma incoerência entre a teoria e a prática nas políticas públicas de formação continuada aos docentes. Sobre este aspecto Feltrin (2007) destaca que: Sempre houve, no entanto, sérias dificuldades impostas aos docentes. De um lado, a formação acadêmica e as poucas chances que o profissional da educação encontra em sua real necessidade de se atualizar. Do outro lado, a incompetência dos poderes públicos aliados a grande extensão territorial, com uma diversidade muito grande de cultura e condições socioeconômicas, o descaso e a pouca valorização do trabalho do professor e de toda a educação (p. 23).

A indisponibilidade da maioria dos educadores em participar de cursos de formação de professores, está associada à extensa rotina de trabalho em outras instituições, compromissos externos entre outros. A não qualificação do profissional prejudica sua prática pedagógica, já que as metodologias estão sempre em processo de transformação, inovação e adaptação. È errôneo pensar que a formação acaba na universidade. Isso porque, entre outras razões a formação docente “é um processo complexo para o qual são necessários muitos conhecimentos e habilidades, impossíveis de serem todos adquiridos num curto espaço de tempo que dura a Formação Inicial” (CARRASCOSA, 1996: 10-11). 2) Planejamento Segundo o entrevistado Hulk no planejamento “é levado em conta a particularidade de aprendizagem do surdo, através do visual-espacial, assim os recursos que possam a vim ser trabalhados com os surdos são: jogos, imagens, caça palavras, questões visuais, sempre relacionando a figura com a palavra.” Neste sentido, o planejamento tem como objetivo “facilitar a preparação das aulas: selecionar o material didático em tempo hábil, saber que tarefas o professor deverá executar com os alunos em sala de aula” (LIBÂNEO 2008, p. 222). Por isso, ele é tão importante no processo de ensino-aprendizagem. De acordo com Libâneo (2008): “O planejamento escolar é uma tarefa docente que inclui tanto a previsão das atividades didáticas em termos da sua organização e coordenação em face dos objetivos propostos, quanto a sua revisão e adequação no decorrer do processo de ensino” (p. 221). Ainda para Libâneo (2008): “O planejamento é um meio para se programar as ações docentes, mas é também um momento de pesquisa e reflexão intimamente ligado á avaliação. O planejamento é um processo de racionalização, organização e coordenação da ação docente”. (p. 221-222). Segundo documento do MEC (2005) as adequações curriculares consistem, em possibilitar que o aluno com necessidades especiais possa desenvolver sua aprendizagem, através de um currículo flexível, que leve em consideração suas limitações e suas possibilidades. Pressupõe que: se realize a adequação do currículo regular, quando necessário, para torná-lo apropriado ás peculiaridades dos alunos com necessidades especiais. Não um novo currículo, mas um currículo dinâmico, alterável, passível de ampliação, para que atenda realmente todos os educandos. [...]As adequações curriculares apoiam-se nesses pressupostos para atender as necessidades educacionais dos alunos, objetivando estabelecer uma relação harmônica, entre essas necessidades e a programação curricular. Estão focalizadas, portanto na interação entre as necessidades do educando e as respostas educacionais a serem propiciadas (p. 61).

Segundo Oliveira (2004) “os conceitos de adequação curricular e adaptações curriculares expressam essa visão instrumental e flexível do currículo” (p. 61) 3). Metodologia Utilizada no atendimento

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As metodologias que o educador usa no atendimento estão baseadas na pedagogia visual, trabalha todo o conteúdo utilizando imagens, sinais em libras, descrições ou ações, muitos jogos, figuras, questões visuais, sendo criados pelos técnicos bilíngues. Alguns jogos utilizados estão disponíveis na sala de recurso, outros são confeccionados e os demais são trazidos pelos próprios educadores. Estes materiais pedagógicos estão de acordo com a pedagogia visual que “está centrada no ‘ver’, dessa maneira o professor deve realizar estratégias de ensino com base visual” (MARQUES, 2007, p.141). Campello (2007) descreve a pedagogia visual, através de uma narrativa de uma aula de ciências, numa turma de 7ª série. Em que, uma professora explica como ensinar aos educandos surdos, o tema da reprodução feminina. Levantou os dois braços, com as mãos esquerda e direita abaixando, com as palmas das mãos um pouco fechadas e fechou as pernas.com a mão direita, mostrou o processo da penetração do pênis no meio das pernas. As pernas representam a figura do canal vaginal e na ejaculação, os espermatozóides entram por ele e vão subindo até o antebraço esquerdo e direito, que representam as trompas. A mão esquerda ou direita solta um óvulo e espermatozóide cruzavam-se e vão descendo até o tronco, que na figura representa o ‘saco vaginal’ e se fixam no útero. Algumas semanas depois, o embrião começa a crescer e,mostrando o tronco vai crescendo, engordando para fora, gerando uma criança dentro dele. Após nove meses, a cabeça sai pelo canal vaginal entre as pernas, nascendo (CAMPELLO, 2007, p.104 e 105).

A utilização da pedagogia visual, não é gesto nem mímica, ela está pautada na representação de signos. O educador faz uso de imagens, figuras, e da incorporação teatral, isto é, dramatiza com o corpo, o que deseja mostrar e ensinar aos educandos surdos. O entrevistado usa a pedagogia visual como metodologia, isso significa que utilizam bastantes imagens, figuras, jogos, jogos teatrais como também, recursos da internet : Filmes, vídeos, computadores etc. Sempre utilizam essa pedagogia porque consideram que a aprendizagem do surdo ocorre da maneira visual espacial. 3 A pedagogia visual,consiste em uma técnica de ensino, em que as imagens são utilizadas como base na explicação. CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo foi realizado em uma sala de recurso multifuncional de uma escola municipal na periferia de Belém e levanta a temática a flexibilização das metodológicas no atendimento educacional especializado. No decorrer da pesquisa fica evidente a importância das metodologias no ensino dos educandos surdos e suas contribuições no processo de aprendizagem, pautado no visual espacial. Entretanto, os atendimentos contam com certos materiais didáticos voltados para a educação de surdos, sendo sempre necessário criá-los juntamente com os educandos. Outro ponto a destacar é a importância de uma educação aos surdos, pautada no visual-espacial, em que as metodologias por meio do uso de diversas imagens, jogos lúdicos, incorporação teatral, viabilizem o aprendizado do aluno surdo. Assim, para que isso ocorra, cabe ao educador se valer de uma pedagogia visual no ensino-aprendizagem ao educando. Para que isso ocorra de maneira efetiva os educadores deverão estar se aperfeiçoando em cursos ofertados pela escola, para a melhoria de suas práticas pedagógicas. Entretanto, há uma lacuna imensurável entre a procura e a oferta de cursos, visto que a escola disponibiliza cursos de capacitação regularmente aos educadores, todavia os mesmo não dispõem de tempo para fazê-los. Esse trabalho apresentou um debate, acerca das metodologias empregadas no atendimento educacional especializado de educandos surdos, tendo a especificidade que demanda a adequação das práticas pedagógicas que serão trabalhadas no ensino. Para que o

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educando surdo tenha a oportunidade de se desenvolver cognitivamente e socialmente no espaço educacional, por meio de práticas e metodologias adequadas a sua aprendizagem. Em decorrência de tudo que já foi exposto, aponta-se para o fato de que nas práticas metodológicas no AEE com educandos Surdos, a aprendizagem só dará de maneira efetiva e satisfatória, se os usos das metodologias adotadas no ensino estiverem de acordo com as necessidades do educandos surdos, em ordem psíquica, social, afetiva, linguística e cognitiva. REFERÊNCIAS GIUSEPPE, Imídio Nérci. Metodologia do ensino: uma introdução 2ed.Atlas 1981 LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo, Cortez, 2008. LUDKE, Menga, ANDRÉ Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas, SP EPUD, 1986 MINAYO, Cecília, Souza (org). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. RJ ,VOZES, 2010. QUADROS, Ronice. Educação de Surdos: Aquisição da Linguagem. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997. ______.(org) Estudos Surdos I. Rio de Janeiro, Arara Azul, 2008. _______(org) Estudos Surdos II. Rio de Janeiro, Arara Azul, 2007/CAMPELLO, Ana Regina e Sousa. capítulo 4 Pedagogia Visual/Sinal na Educação dos surdos., Campello, Ana Regina Silva.5 Educação de Jovens e Adultos: Um Diálogo sobre a Educação e o aluno surdo. MARQUES, Rodrigo Rosso SKLIAR, Carlos. Pedagogia do (improvável) da Diferença: e se o outro não estivesse ai?Rio de Janeiro, DP&A, 2003. __________. (org) Surdez: Um olhar sobre as diferenças. 3 ed, Porto Alegre, Mediação, 1998

LITERATURA E O ENSINO DE LITERATURA

ANÁLISE DO LIVRO EM QUADRINHOS XINGU: POSSIBILIDADES DE USO DA OBRA NA ESCOLA PARA A COMPREENSÃO DA QUESTÃO INDÍGENA CLAUDIO EMIDIO-SILVA - (M. Sc. - UFPA) SANDRA MINA TAKAKURA - (M. Sc - UEPA) RITA DE CÁSSIA ALMEIDA-SILVA - (M. Sc. - SEDUC - PA) Este artigo traz uma análise da obra “Xingu”, de Sérgio Macedo (2007) que retrata, em quadrinhos, a história dos índios Kayapó na década de 80, momento em que tiverem seu contato com a sociedade envolvente intensificado, especialmente pela demanda por terras que colonizadores nacionais buscavam ocupar em sua região. Por meio de uma análise pautada na teoria Bakhtiniana buscamos entender a obra, estabelecer relações dialógicas com a questão indígena no Brasil, reescrita em um gênero que se aproxima da ficção científica com a

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presença de um viajante estrangeiro Vic Voyage que se conecta com o deus da floresta cuja representação lembra a de uma entidade esotérica com os seus pontos de energia ativados. Desse modo, o discurso da obra se casa com o discurso do esoterismo ocidental que descontextualizam crenças do hinduísmo e do budismo abstraindo noções como energia e representação de chacras. Podemos afirmar que a representação do nativo perpassa o mesmo discurso do corpo exótico asiático esboçado por Edward Said em Orientalismo, onde o discurso do “nós” se sobrepuja e determina o discurso do “eles” (SAID, 1978). O que se nota na obra é o que Hall (2000, p. 130) menciona como o “caráter distintivo da lógica pela qual o corpo racializado e etnicizado é constituído discursivamente – por meio do ideal normativo regulatório de um eurocentrismo compulsivo’” não permite muitas vezes que se acesse a voz do outro enquanto sujeito. Com a ajuda das categorias ‘dialogismo’ abarcando a alteridade e o espelho, verificamos o entendimento ativo-dialógico (BAKHTIN, 2003) e uma possibilidade de material de crítica acerca do discurso relacionado aos povos nativos a ser utilizada em uma sala de aula com estudantes adultos. O livro Xingu!, de Sérgio Macedo (2007) foi escrito na década de 1980, a partir de uma estadia do autor na aldeia Kapot, e publicado em outubro de 2007 pela Devir Livraria. O autor declara que não obteve a permissão oficial da FUNAI em Brasília para esta estadia, e que a permissão foi conseguida em uma conversa entre ele e Rop-Ni (Raoni) um dos líderes dos Kayapó Metuktire, mais conhecidos na sociedade não indígena como Tchukarramãe (p.70). Ele e sua esposa viveram acampados nessa aldeia durante os meses de janeiro e fevereiro de 1987, acompanhando as atividades diárias e colhendo anotações e desenhos, que foram a base para a criação do livro. Com ilustrações e fotografias feitas pelo autor, o livro procura mostrar alguns aspectos da vida daquele povo indígena. Não se trata do gênero relato e nem de um texto documental, como explica o autor e assim apresenta a obra em seu editorial: “Alguns nomes, personagens, lugares e incidentes apresentados nesta publicação são inteiramente fictícios.”. Dessa forma, nota-se que alguns pontos da obra são fictícios e outros pontos possam ser reais, dessa forma o autor não se compromete totalmente ao produzir uma obra que não possui uma correspondência com a realidade concreta das tribos nativas no Brasil ou da sociedade/civilização brasileira mostrada na obra. Apesar de catalogada como pertencente ao gênero História em Quadrinhos (HQ) a narrativa não apresenta a dinamicidade inerente ao gênero, com textos muito longos em alguns trechos (p. 12, 24, 25, 29) e páginas inteiras sem nenhum texto e com imagens que não mostram um encadeamento de ações o que comumente faria parte da sequência em HQ (p. 35), podendo possivelmente ser uma mescla entre a técnica do “aspecto ao aspecto” onde um olhar vagueia pelos espaços onde acontece a narrativa ou a técnica do “cena a cena” que seria um deslocamento maior na distância e no espaço (MCCLOUD, 1993, p. 72 )55. No entanto, a sequência de imagens remete muito mais a um álbum de fotografias que são amarradas como uma coleção de cartões postais que mostram o nativo como elemento exótico de cena do que a cenas escolhidas para o desenvolvimento da narrativa. A questão da identidade do nativo elas denotam a diferença e a exclusão uma vez que são construídas no interior das relações complexas de poder: [...] elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma ‘identidade’ em seu significado tradicional – isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna (HALL, 2000, p. 109). 55

Original em inglês, tradução da autora: “aspect-to-aspect” e “scene-to-scene”.

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Os desenhos dos quadrinhos apresentam uma qualidade diversa, os desenhos dos nativos são muito próximos da realidade com minúcias de detalhes enquanto que as demais personagens como Júlio, Elisa e Vic Voyage se afastam da imagem realista para se aproximar do icônico. Quanto mais “realista” uma imagem for mais “complexa”, “objetiva” e “específica” é a representação, enquanto que quanto mais “icônica” uma imagem for, mais ela será “simples”, “subjetiva” e “universal” (MCCLOUD, 1993, p. 46). A representação realista não deixa dúvidas quanto ao povo representado, enquanto que os demais personagens assumem um discurso mais geral e menos específico, podendo o leitor se identificar ou não com esses personagens. O artista que será referido como o autor da obra afirma que: “desenhou retratos a lápis e, tendo levado uma aquarela escolar supervagabunda comprada numa venda à beira da estrada, aproveitou para fazer aquarelas da vida tribal, que são aqui reproduzidas” (MACEDO, 2007, p.74). Não está claro como foram reproduzidas as imagens dos nativos com minúcias, mas o discurso em torno das representações da especificidade de um povo e a universalidade homogeneizante do discurso da personagem que dá o olhar da narrativa fica explícita nessa representação. A narrativa é construída tendo como fio condutor as aventuras de Vic Voyage, um estrangeiro que imprime o seu olhar no Brasil e em seguido no contexto das tribos nativas. Sua jornada se inicia no Rio de Janeiro, passando pelo Pantanal de Mato Grosso e terminando com sua permanência no Parque indígena do Xingu, em Mato Grosso e no Pará. A personagem Vic Voyage é uma personagem do gênero ficção científica, um ser quase mitológico com poderes sobre as águas: Vic Voyage, o herói deste quadrinho, é um aventureiro dos oceanos confrontado por um estranho destino. Sua origem é desconhecida de todos. Sabe-se que foi salvo de um naufrágio e resgatado por um barco australiano ao largo de Macao quando ainda era criança. Adotado pelo capitão, Vic cresceu sobre as ondas e aprendeu a linguagem do oceano. Em companhia de seus dois amigos, Ralf Von Samba e Doctor Jah, ele viaja pelos mares do globo. Víc Voyage tem no braço direito uma estranha tatuagem cujos sinais desaparecem durante algumas de suas misteriosas aventuras (MACEDO, 2007).

Vic Voyage é um herói recorrente em várias obras do mesmo autor como: Eldorado 1: Le Trésor de Paititi; Eldorado 2: à La Recherche D 'Agharta; Pacifique Sud 1: Le Monde Tabou; Pacifique Sud 2: Le Mystére Des Attols; Xingu! e El Quetzal. Nota-se que Vic tem um olhar de viajante que imprime um olhar externo sobre os locais onde visita e acerca dos povos com quem interage. Tradicionalmente em estudos acerca das representações acerca de minorias o teórico Edward Said (1978, p. 10) é acessado em seu texto seminal Orientalismo em que este “é um estilo de pensar baseado na distinção ontológica e epistemológica feita entre ‘o Oriente’ e (a maioria do tempo) ‘o Ocidente’”. Esse discurso é pautado na asserção de que “a ideia da identidade europeia [é] uma identidade superior em comparação a todos os povos não-europeus e culturas não-europeias” (p. 15). Dessa forma, a narrativa é construída tendo o nativo indígena como o elemento exótico que se opõe ao conceito de nação Brasil, já que este último representa a civilização. Vic, como outros “gringos” na obra não pertencem a nenhum país correspondente na realidade, e dessa forma universaliza o discurso que o estrangeiro é superior pois não tem relação com a civilização brasileira que destrói a floresta e o seu povo. Numa breve leitura acerca do globo, e do mapear da história, nota-se que a nação brasileira foi constituída através de um processo colonizador onde os portugueses dominaram a força o seu território, o Brasil e enquanto colônia ainda foi alvo de disputa entre franceses e holandeses. O Brasil passou por mudanças no regime de governos e, atualmente o Brasil está situado num grande construto chamado de Terceiro Mundo, onde se insere em uma relação de poder desarmônica em termos de qualidade de vida, educação, saúde, tecnologia para citar

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alguns em relação ao centro de onde muito provavelmente os estrangeiros relatados na obra são originários. A ausência de um país específico e o rótulo de estrangeiro simplesmente impossibilita a leitura política direcionada a um determinado país. Vários elementos, entre eles o desenrolar da narrativa em ambientes díspares, assim como de algumas ilustrações, provoca uma descontinuidade que leva a uma quebra de expectativas em relação ao conteúdo apresentado. O título: Xingu!, a ilustração da capa com três guerreiros Kayapó, pintados e armados tendo como pano de fundo uma aldeia e a mata, é seguida de uma outra imagem na folha de rosto, que apresenta uma canoa com muitos indígenas navegando em um rio no meio da mata, para em seguida apresentar a figura de um homem, sem artefatos que o identifiquem com um indígena, com o que parecem ser os sete chacras gravados em seu corpo, de onde brotam raios de luz, como se estivesse pairando gigante sobre a mata, representa essa primeira quebra de expectativas. A primeira página apresenta a imagem de um kayapó totalmente paramentado e caracterizado conforme sua posição social e sua cultura, tendo como fundo a aldeia e a mata, um mapa do Brasil com a localização dos três espaços em que a narrativa irá transcorrer e um pequeno texto historiando como era o Brasil em 1500 e a atualidade para os povos indígenas. Na segunda página as ilustrações mostram cenas do Rio de Janeiro bastante estereotipadas: uma vista aérea do Cristo Redentor e do morro Dois Irmãos tendo o mar ao fundo, um recorte mostrando várias mulheres em roupas de banho na praia de Copacabana, dando ênfase ostensiva à exposição do corpo feminino, enquanto o texto fala: “da corrupção, do desemprego, da miséria social, da violência urbana e da criminalidade, no ritmo do samba e do mar” (MACEDO, 2007, p.2). Outras situações estereotipadas como um negro oferecendo cocaína para os “gringos”, um homem negro confundido com um traficante sendo preso por policiais, estes mesmos policiais sendo combatidos a socos e pontapés, sem conseguir prender ninguém, playboys desfilando em carros importados e cometendo contravenções como se fosse algo normal, fechando tudo isso com um passeio de iate repleto de mulheres, entre outras ilustrações que conseguem destacar situações preconceituosas, reforçando estereótipos negativos em relação ao local apresentado: exploração da mulher, preconceito racial e social, violência e tráfico de drogas, ineficiência do poder público em combater, ou antes, em discernir o que deve realmente ser combatido (MACEDO, 2007, p. 2-6). O Brasil é mostrado como um país do Terceiro Mundo atrasado onde tudo parece permitido, o que longe de alcançar uma crítica social, acaba por reforçar o discurso estereotipado sobre o país. Os discursos presentes na obra em suas imagens acabam por convergir no discurso da propaganda turística, quando, por exemplo, passa a apresentar o segundo ambiente, o Pantanal, para onde a personagem principal se dirigiu pós os incidentes no Rio de Janeiro: Você vai gostar do Pantanal, Vic. Mais de 200 mil km² de brejos, lagoas, baias, rios piscosos, campo, cerrado e mata... A reserva biológica mais rica das Américas! Lá o gado convive com paca, capivara, veado, jacaré, sem contar os pássaros... milhões!” (p. 6).

Há também momentos em que ocorre a tentativa de criticar os modelos políticos e econômicos vigentes, e fazer uma defesa em prol da preservação do meio ambiente através de um discurso generalizador onde a sociedade brasileira como um todo representada por uma nação que represente a civilização que destrói a natureza, nesse discurso o nativo não é considerado Brasil, ou parte da nação: Aproveite e encha os olhos enquanto é tempo... Pois o programa do governo é sacrificar a natureza em prol dum tal de progresso econômico que só favorece as grandes indústrias. [...] Não sei se, no exterior, vocês veem como o Brasil trata o meio ambiente de maneira irracional e irresponsável. A fauna e a flora não tem vez,

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o desmatamento é colossal, a indústria polui os rios sem nenhum controle e o desequilíbrio ecológico é catastrófico. As madeireiras e serrarias proliferam, e a Amazônia continua sendo devastada. A sociedade de consumo avança e a mata recua (MACEDO, 2007, p. 7).

Essa fala poderia ser tomada como um ponto positivo, não fosse sua fonte: o playboy que vive no Rio de Janeiro, cercado dos luxos e regalias oferecidas pela sociedade de consumo, sendo filho de um fazendeiro com mais de 90 mil hectares de terras no Pantanal. Não bastasse, é pela fala desta mesma personagem que são expostas outras situações: [...] as madeireiras e agropecuárias já tomaram conta de tudo! Com fogo, motosserras e tratores. [...] Para explorar a madeira, as picadas são transformadas em estradas, os fazendeiros vendem a madeira de lei, queimam o resto e fazem pasto para o gado. (p. 13).

Esses espaços de negociação de culturas, “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais” são chamados de “entre-lugares”, onde “as experiências intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados” (BHABHA, 1998, p. 20). No entanto, o que se nota é que a negociação não é justa, a distribuição de renda produz fossos sociais, sendo que segundo a obra a elite que produz o discurso político, sem sair das massas numa postura de delegação de discurso. A partir da página 14 a narrativa passa a focalizar as terras indígenas, apresentando imagens dos indígenas e da natureza. Um acidente de avião apressa o encontro entre os Kayapó e Vic e seu amigo, e os dois acabam sendo resgatados e levados para a aldeia. Vic se envolve afetivamente com a irmã de Julio, Elisa que saiu da casa da fazenda e veio morar com os nativos na floresta a contragosto do pai. Para salvar Elisa Vic mata a pauladas uma surucucu e há uma cena em que Elisa é mostrada através de nu frontal, o que acaba por acessar um discurso da naturalização da nudez do corpo feminino enquanto o corpo masculino segue coberto por uma sunga. Posteriormente, Vic é mordido por outra surucucu e entra em um processo de aprendizado sendo salvo pela medicina dos povos da floresta. Toda identidade se constitui na diferença, no contato com o Outro e ‘toda identidade tem necessidade daquilo que lhe “falta”’(HALL, 2000, p. 110). Vic agoniza em meio ao tratamento recebido para lidar com o veneno de cobra e misteriosamente se encontra com a figura mostrada na contracapa cujo corpo aparece marcado por chacras energéticos. Nesse momento ele recebe a revelação de que o clima pode sofrer mudanças caso a floresta seja desmatada e que as terras dos nativos possuem uma reserva de ouro. Vic ao melhorar é chamado pelo cacique para caçar na floresta e lá escuta o relato do chefe acerca do encontro com o espírito da floresta que lhe indica a missão de conduzir o seu povo. A narrativa é descrita como sendo fruto de um relato verídico: “Esse caso foi narrado ao autor, por Raoni, A Beira do Xingu, em 1987” (MACEDO, 2007, p. 48). No entanto, a representação gráfica da HQ pode ter acessado uma linguagem que facilitaria muito a compreensão por parte de indivíduos estrangeiros, pois acessam um esoterismo e suas linguagens como: os chacras, os pontos de energia e a áurea energética. Essa linguagem desconectada da origem hindu, ou budista forma um mercado à parte do esoterismo e do bem estar do homem civilizado que tenta se reconectar com a natureza. Entende-se que o relato do Raoni foi reinterpretado e transposto a uma linguagem de HQ padronizada aonde o público possa digerir facilmente isto é o outro nesse contato. A obra intercala fragmentos em que os nativos lutam contra a tomada de suas terras e o caso amoroso de Vic e Elisa como pode se notar o diálogo abaixo:

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Vic - [...] eu sou curioso, Elisa... Até um pouco indiscreto... Você vive com o Francisco? Elisa - De vez em quanto a gente passa a noite juntos... mas não se engane, o Francisco é só um bom colega de trabalho ... Elisa - No mato a gente aprende a ser prática, Vic... E a ler nos olhos. Eu sei o que você quer. Nós dois sabemos que nem sempre é fácil passar as noites na solidão. Vic - Gosto de mulher decidida, Elisa. Elisa - Com os índios aprendi a não ter frescura a me ligar na intuição, no magnetismo pessoal. É bom sentir a sua energia positiva, Vic. (p. 57).

Elisa é construída sob o olhar masculino, do exotismo da mulher brasileira como sendo sensual e principalmente permissiva. Toda essa permissividade que parece mais uma troca de favores e servidão feminina em favor da satisfação masculina é pautada também no discurso esotérico das energias positivas. E segue-se uma sequência de quadros de conteúdo adulto, cujo discurso de permissividade dificultaria a entrada em uma escola de ensino fundamental ou médio. Os nativos se confrontam com os caçadores de peles que em seu discurso apontam que o mercado de venda será o dos estrangeiros: “O gringo vai pagar uma nota por este couro! vamos a São José do Bang Bang fazer farra. Compadre! Com mulher. cerveja e cachaça!” (p. 58). Os estrangeiros reaparecem no discurso como as pessoas ruins responsáveis pelo consumo de produtos ilegais da floresta. Ora o estrangeiro é bom quando está ao lado dos indígenas e ora ele é o vilão da estória se ele estiver do lado dos caçadores. Elisa volta para a tribo para extrair uma bala do corpo de um nativo após o confronto entre eles e os caçadores. Os nativos não querem a presença de nenhum brasileiro que é rotulado como homem branco pelos nativos, pois estão no meio de uma guerra. O nativo é visto dessa vez como um selvagem incapaz de compreender que existem brasileiros capazes de ajudá-los e incapaz de compreender os mistérios da medicina ocidental e de lidar com a morte. Ou seja, “uma moral de poder (como ideias sobre o que “nós” fazemos e o que “eles” não podem fazer ou compreender o que “nós” fazemos) que é um olhar estereotipado onde os sujeitos plurais “nós” dão o olhar sobre a cultura dos povos nativos (SAID, 1978, p. 20). Tanto Vic e Elisa sentem que correm perigo, e essa ameaça chega através de uma mensagem dada pela mulher de Puyu, o nativo que Elisa extraíra a bala: “A mulher do Puyu disse que os guerreiros estão muito excitados... Os moços querem vir aqui me violentar e ... Te matar.” (p. 62) Com esse mote Vic e Elisa escapam e encontram os engenheiros que queriam usurpar as terras indígenas com o pretexto da estrada e que na verdade o objetivo final era a exploração do ouro. As tribos os encontram e se confrontam matando o engenheiro do projeto. Vic e Elisa encontram Julio que consertara o avião e escapam. Os nativos são mostrados em sua selvageria. A mídia é acessada e a Funai decide negociar com os nativos e na mesa de negociação a fala final de um nativo sintetiza como é a paz para eles: “Não tem mais branco, não tem mais estrada, não tem mais guerra!” (p. 68). Vic e Elisa voltam ao território e o cacique mostra a preocupação com a construção de uma usina hidrelétrica na gestão Sarney e sua necessidade de continuar lutando. Vic se despede de Elisa que promete ir visita-lo no Rio após ser substituída em duas semanas, ela aponta para um provável relacionamento com Vic e a vontade de acompanha-lo em sua próxima viagem. CONCLUSÃO Pode-se conceituar o dialogismo como uma forma de resposta a um enunciado, uma vez que não se constrói um discurso sem a presença do outro. As ideias e concepções de mundo de um indivíduo sempre estarão em diálogo com o outro (BAKTHIN, 2010). Assim, a obra Xingu! (MACEDO, 2007) pode ser analisada por este aspecto, uma vez que as ideias da personagem principal vão se mesclando e encontrando eco nas demais personagens da história. Mas quando partimos para a questão da alteridade, mesmo apresentando situações

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históricas ocorridas com os indígenas e de conhecimento comum, a HQ se reveste com elementos semióticos extremamente direcionados para o universo indígena, mas não coloca o indígena como protagonista. A temática indígena na atualidade vem ganhando destaque na mídia de formas muitas vezes equivocadas. Isto possibilita a criação de estereótipos como o do bom selvagem (FORTES, 1989) ou como os matadores de brancos entre muitos outros. “Ver” o índio tal como ele é muito difícil em tempos atuais. Seus movimentos por um estado de direito é intenso. Como professores, podemos lançar mão de diferentes meios e textos para entender a temática. Mas, conhecer textos que possam realmente nos tirar do lugar comum é muito difícil. Tratar da questão indígena não garante que uma obra possa realmente retratar aspectos que possam enriquecer o debate acerca de um assunto. Pelo gênero escolhido para contar a história (HQ), a obra Xingu! não apresenta um equilíbrio entre texto e imagem. No texto Xingu!, apesar de haver um contato de diferentes culturas há um discurso que se sobrepuja. O discurso da sociedade não indígena, que só observa o outro, o indígena, sem considera-lo como uma possibilidade alternativa à sociedade ocidental que a ele se impõe. No discurso de Julio é evidente que o nativo não faz parte do Brasil ou do projeto de desenvolvimento do país, o nativo é visto como aquele que resiste à destruição do país provocada por uma massa homogênea chamada Brasil que apoia o discurso da destruição. Apesar de a obra tentar dar vozes aos grupos minoritários como os nativos, nordestinos e negros, o discurso que se sobressai é do homem branco pertencente à elite. Os estudos de Bakhtin (1993), que colocam o dialogismo como instrumento primordial para a construção dos processos históricos e sociais e a multiplicidade de vozes que assim contribuem para tecer interações permanentes e dinâmicas, reforçam os argumentos que apontam a literatura como fator que contribui para a construção da identidade de um grupo, tendo como base a possibilidade de apresentar as mais diversas situações disponibilizando elementos que contribuam para o entendimento das diferenças. Em muitas partes o texto beira ao didatismo, colocando na fala de determinadas personagens discursos sobre o meio ambiente, a defesa das causas indígenas, o desrespeito das pessoas para com as autoridades do país e suas instituições. Por outro lado, o texto e as imagens desautorizam esses discursos a partir do momento em que colocam esses mesmos personagens em situações que possam comprometê-los: uso de bebidas alcóolicas em serviço, falta de respeito dos indígenas em relação aos funcionários que trabalham com eles, cenas de conteúdo adulto. Pelo conteúdo analisado considerando os aspectos aqui citados referentes aos conceitos de dialogismo e cultura, o livro Xingu! não apresenta em seu enunciado possibilidades reais de valorização da alteridade do grupo em questão que sejam relevantes para seu o estudo em sala de aula. REFERÊNCIAS: BAKTHIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 3ed. São Paulo: UNESP, 1993. _________. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. _________. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª ed. Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2010.

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BHABHA, Homi. K. Introdução: Locais da Cultura. In: O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 19-42. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 103-133 MACEDO, Sérgio. Xingu! São Paulo: Devir livraria. 2007. MCCLOUD, S. Understanding Comics: The Invisible Art. New York: Kitchen SinKP, 1993. SAID, Edward W. Introduction. In: Orientalism. London: Routledg, 1978, p. 9- 57. FORTES, Luiz R. Salinas. Rousseau: o bom selvagem. São Paulo: FTD, 1989.

LITERATURA E ENSINO DE LITERATURA

JOEL CARDOSO56

RESUMO: Literatura é uma arte, arte da palavra. Palavra que, como mensagem, como discurso, se sabe e se quer conectada com a vida, priorizando, por um lado, não só a percepção, a recepção e o fazer acadêmico, mas que, por outro lado, não pode, também, concomitantemente, deixar de levar em consideração praticidades e exigências imediatas da nossa realidade cotidiana e da nossa condição humana. Entre os relevantes temas propostos para este evento, buscamos, aqui, refletir sobre os processos, recursos e alternativas interativos para o trabalho docente com a Literatura - e, por conseguinte, com os protocolos da leitura - preocupação permanente de quem milita não só na área das Letras, mas no âmbito das Ciências Humanas. O ensino da Literatura, extrapolando a tradicional abordagem histórica (indubitavelmente importante) e as restrições que, via de regra, se limitam a um seletivo repertório canônico, procura, na contemporaneidade, priorizar o texto (no sentido amplo do termo) como objeto artístico, com seus incontáveis desdobramentos, seus trânsitos, suas múltiplas possibilidades de realização, atentando para as relações inter e transtextuais (sem, obviamente, descartar a disciplinaridade) e, paralelamente, para as questões de teor interpretativo e de formulação de sentidos, promovendo, reflexiva, crítica e teoricamente, a inserção do literário nos âmbitos artístico, social e cultural. Palavras-chave: Ensino de Literatura; Leitura; Inter e Transdisciplinaridade CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robison Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico, botânico, antropológico (Robison passa da natureza à cultura). Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. (Roland BARTHES)

Palavras são signos que ao mesmo tempo que flertam com o real, com o conhecido, flertam também com indizível, com inapreensível, com o desconhecido. As palavras estão sempre no lugar de. Quando fogem ao imediatismo das relações, nos desconcertam, nos tiram do território firme em que pisamos. Como signos, como símbolos, sorrateiramente, nos 56

Doutor em Literatura Brasileira e Intersmiótica. Professor da Escola de Cinema, do Instituto de Ciências da Arte, UFPA.

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escapam. Literatura, por ser feita de palavras, é desafio permanente a nos olhar meio de esguelha; é imaginação solta na rota das palavras que se transmutam em imagens... Se é imaginação, portanto, está sempre à deriva, sempre solta. Poemas são mistérios, são magias, são encantamentos; podem ser enigmas a ser desvendados (ou não); ler é entregar-se ao prazer das palavras, dos discursos, sem rédeas, sem limitações; é, por vezes, transitar por territórios inóspitos; é cobrir desertos. Ler é, paradoxalmente, se encontrar ao se perder nas palavras. Sabemos que signos e situações sociais estão indissoluvelmente ligados. Assim, todo signo comporta, de alguma forma, um caráter ideológico. Para Edgar Morin, a literatura é a vida transformada em linguagem. No entanto, bem o sabemos, literatura (como arte e como toda arte) não é a vida real, mas a sua representação: a literatura cria outras instâncias que, a partir do real, elaboram outras suposições de realidade, cujos parâmetros, cujos pontos de partida são sempre a vida real. Através de nosso conhecimento do real, usufruímos desse outro universo paralelo, em que a dança da imaginação promove o baile. Versátil, ampla, prazerosa, abrangente, tudo o que é humano interessa à literatura. Num mundo regido pelas tecnologias, pela velocidade da informação, em que as urgências e a brevidade dão o tom de tudo, a literatura surge, às vezes, como oásis, outras vezes, como territórios inóspitos, como áridos desertos, sempre, no entanto, como pontos em que se entrecruzam saberes, onde tudo se perpassa, tudo se inclui, tudo pode ser fazer presente. Na leitura, é preciso que num certo momento a intenção do autor me escape, é preciso que ele se retraia; então volto para trás, retomo impulso, ou então sigo adiante e, mais tarde, uma palavra bem escolhida me fará alcançar, me conduzirá até o centro da nova significação, terei acesso a ela por aquele de seus ‘lados’ que já faz parte de minha experiência. A racionalidade, a concordância dos espíritos não exigem que cheguemos todos à mesma ideia pelo mesmo caminho, ou que as significações possam ser encerradas numa definição, ela exige apenas que toda experiência comporte pontos de abertura a todas as ideias e que as ‘ideias’ tenham uma configuração (MERLEAU-PONTY, 2012: 232-3).

Lemos por razões diversas, mas, sobretudo, para ampliar a nossa capacidade de diálogos. Ler é instaurar diálogos. Convém ter em mente que o texto literário se constitui, por sua própria natureza, de forma plurissignificativa. Um texto nunca existe isoladamente. Ele sempre vai trazer para o seu âmbito outros textos; ele sempre vai, direta ou indiretamente, se remeter a outros textos e contextos. Didática e metodologicamente, aproximando saberes que nunca na vida real estiveram compartimentados, o ensino da literatura, sem se ater a hierarquizações, se proposto em moldes transdisciplinares, perpassa pelos patamares da realidade, da complexidade e da inclusão. Lemos e apreendemos a realidade, assenhoramonos da sua complexidade que, uma vez incluída, passa a fazer parte do nosso mundo. Formase uma teia, uma rede em cujos fios se tecem, se aproximam, nem sempre de forma harmoniosa, conhecimentos variados, que vêm conectados, que atravessam a nossa experiência de vida, perpassando pelo nosso cotidiano. Não existe leitura se, antes da interação com o texto, não existirem – ainda que de forma não explícita - expectativas prévias, perguntas que se impõem, questões que que remetem a outras muitas questões. NA ROTA DAS CITAÇÕES Não existe apenas um modo de ler bem, mas existe uma razão precípua por que ler. Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas onde está a sabedoria? Se tivermos sorte, encontraremos um professor que nos oriente, mas, em última análise, vemo-nos sós, seguindo nosso caminho sem mediadores. Ler bem é um dos grandes prazeres da solidão; ao menos segundo a minha experiência, é o mais benéfico dos prazeres. Ler nos conduz à alteridade, seja à nossa própria ou à de

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nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção é alteridade e, portanto, alivia a solidão. Lemos não apenas porque, na vida real, jamais conheceremos tantas pessoas como através da leitura, mas, também, porque amizades são frágeis, propensas a diminuir em número, a desaparecer, a sucumbir em decorrência da distância, do tempo, das divergências, dos desafetos da vida familiar e amorosa. (Harold BLOOM57) É indispensável ler criticamente, ou seja, ler sem adotar atitude reverente, mas sem discordar de tudo. Também é conveniente ler de maneira contextualizada, isto é, "vivendo" a época, não pretendendo encontrar atitudes contemporâneas em acontecimentos passados. Ler bem é ficar mais tolerante e mais humilde, aceitar a diversidade, dispor-se a tolerar a divergência (Ana Maria MACHADO). “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver” (TODOROV, 2009: 23) Matéria "Leitores sem leitura" da revista número 106, Língua Portuguesa do mês de agosto de 2014: “O Brasil é uma sociedade de letrados sem leitura. Segundo a Câmara Brasileira do Livro, há quase 90 milhões de pessoas letradas no Brasil, mas uma parcela grande desse bolo simplesmente não lê nada: são 14 milhões de alfabetizados sem leitura, todos maiores de 15 anos; 1/3 do leitor da classe A admite ter total falta de prazer com o ato de ler; 1 a 4 pessoas AB que não leem por preguiça ou impaciência; 1 em 4 pessoas com nível superior diz que não gosta de ler, nem pega num livro depois dos 19 anos se não for por obrigação.” “A leitura, ao contrário da conversa, consiste para cada um de nós em receber comunicação de um outro pensamento, embora permanecendo só, quer dizer continuando a gozar do poder intelectual que se tem na solidão e que a conversa dissipa imediatamente, continuando a poder ser inspirado, a permanecer em pleno trabalho fecundo do espírito sobre si próprios.” (PROUST, 2009: 41).

TENTANDO CONCILIAR OS FIOS DISCURSIVOS Ler é, antes de tudo, um aprendizado. Um aprendizado que nunca termina. Nunca estamos prontos para todas as leituras. Tal aprendizado, no entanto, se mal orientado, pode afastar o leitor incipiente do prazer da leitura. Ler é descobrir universos, desvendar mistérios, conhecer realidades. Ler é uma ação que remete à tarefa de apreensão e interpretação de discursos, de mensagens, de códigos. Para que a leitura se efetive, vem, subentendida, uma condição prévia de uma gama de conhecimentos não apenas de um código linguístico, mas, também, de um conhecimento de mundo. Como preconizava Paulo Freire, “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Mas a leitura se efetiva sobre um suporte físico, material, que pode ser o livro, no qual as mensagens ficam gravadas, ficam inscritas. O ensino dos mecanismos da linguagem, de como ela efetivamente ocorre, pode ser importante, mas não é o essencial. Ler exige, portanto, um ato de apreensão interpretativa que faculta a quem o realiza adentrar uma gama infinda de conhecimentos que, remetendo a outros textos disponíveis em nosso repertório interior, correlacionados ou reiterados, despertam, nos tocam e, desta forma, remetem para uma novidade disponível, instigante, desafiadora, a um calidoscópio de múltiplas combinações. Assim, para quem sabe ler a leitura é um dos mais deliciosos passatempos; e, em sendo, ao mesmo tempo, uma aquisição de saberes múltiplos, é, indubitavelmente, um deslumbramento. Jorge Luiz Borges afirmava que se orgulhava não tanto dos livros que escreveu, mas muito mais dos livros que leu. Leio desde a minha infância. Ler e reler são prazeres que nos acompanham pela trajetória de vida. Começamos lendo imagens, paisagens, fisionomias. Passamos à leitura da palavra, intermediada pelos conhecimentos que vamos acumulando ao longo da existência. Com a experiência adquirida vamos depurando o nosso gosto, vamos nos 57

BLOOM, H. 2000, p.15

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tornando mais refinados, mais exigentes. Depois de conhecer, não há como voltar atrás. Com o percurso empreendido, se por um lado, tornamo-nos mais condescendentes, por outro, tornamo-nos mais conscientes, mais críticos. Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude, mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras (DELEUZE, G. e GUATTARI, F. 2009, p. 9).

A passagem do tempo nos ensina a investir no gosto, no refinamento. Descobrimos novos valores, novas dimensões para a vida, para a arte e, obviamente, para o prazer a leitura. Se trabalhar com literatura é um privilégio é, também, um desafio. Tomara que os professores que se dedicam a esse mister tenham consciência de que estão diante de uma tarefa privilegiada, prazerosa, mas, também, árdua, difícil. Que possamos driblar o convencional. Que, na docência, escapemos apenas da história da literatura (indubitavelmente importante), para chegarmos ao “prazer do texto”. Já que, possuindo de nascença a totalidade dos sentidos e fazendo as correlações entre eles, um com o outro, criamos um mundo visível de início, um mundo de objetos, conceitos e sentidos visuais. Quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através da experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes (SACKS, 2006: 119).

Muito já se tem refletido sobre literatura e sobre o ensino de Literatura. Sabemos, com Italo Calvino, que são muitas as coisas que a literatura pode ensinar. Mas, entre elas, algumas são insubstituíveis. Por exemplo, a maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar e de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assim necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em algum outro lugar, da ciência, da história, da vida (...) (CALVINO, 2006: 21).

Correndo o risco de sublinhar, talvez, o óbvio, nunca é demais insistir que é responsabilidade do professor de literatura mostrar aos alunos possibilidades de acesso a textos diferenciados. Talvez, para muitos desses alunos, a escola se constitua no único lugar em que eles poderiam ter acesso a uma diversidade textual maior. Descobrir novos gostos, novos sabores. Investir na sensibilidade. Educar a recepção sensitiva. Mostrar a potencialidade da leitura como instrumento de inserção, de inclusão, de interação no mundo. Disponibilizar o acesso aos bens de consumo, ao patrimônio cultural cujos textos servem como ponto de partida para pensar a relação do indivíduo consigo mesmo, mas, também, com os outros e com o mundo. Precisamos aprender a tirar proveito das novas possibilidades do mundo eletrônico e digital, para que, ao mesmo tempo, possamos, ainda que minimamente, entender as lógicas de outros tipos de produções escritas, acervos imprescindíveis que, na contemporaneidade, propiciam ao leitor novos instrumentos para pensar e viver melhor. LEITURAS, PRECONCEITOS, RUPTURAS "Poeta marginal? Eu, hein?!" (1980), escreve tudo, aliás, em letra minúscula: não tenho nome completo. não sou professor. não consegui conciliar nada com a literatura. nunca publiquei nada. não estou organizando meu primeiro livro. não

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acredito que a poesia seja necessária. não tenho tema preferido. não recebi nenhuma premiação em concurso de prosa e poesia. não tenho sete livros inéditos. não sou considerado um dos maiores poetas brasileiros. nunca fui convidado para dar palestras em universidades. não vejo poesia em tudo. não tenho poesias traduzidas para o francês. não estou incluído numa antologia a ser publicada no méxico. minha poesia não é corajosa. não me responsabilizo pelos poemas que assino. não sou irônico. não considero drummond o maior poeta da língua portuguesa. não sei em que ano aconteceu a semana de 22 não imito ninguém. minha poesia nunca veiculou nada. não sei o que vocês querem de mim. não escrevi isto que vocês estão lendo4 (BEHR, 1980).

Temos ainda uma concepção elitista de cultura. Temos que incentivar todas as instâncias da leitura. A eleição do cânone pode chegar depois. Caímos, na academia, frequentemente, em delimitação que, por instituir um sistema de valores, dificulta a consolidação de um gosto pela leitura. A delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos de ler como válidos, e o desprezo aos demais estão na base dos discursos que proclamam a inexistência ou a precariedade da leitura no Brasil. É leitor apenas aquele que lê “os livros certos”, os livros positivamente avaliados pela escola, pela universidade, pelos grandes jornais, por uma certa tradição de crítica literária (...). Todos os demais escritos – mesmo que materialmente idênticos aos livros certos – são “não-livros”. Da mesma forma, aqueles que os leem – embora leiam – são “nãoleitores” (ABREU, 2001: 154).

Em se tratando de leitura, sabemos que existem muitos problemas que extrapolam o âmbito da escola. Um deles está relacionado aos custos do mercado editorial. Livros não são produtos baratos. Nem sempre estão acessíveis ao bolso do leitor. A prática da leitura tem uma relação direta com as condições econômicas das famílias e dos indivíduos, sendo que estes dois devem ser colocados na categoria de “assalariados” (para não falar dos subempregados ou desempregados). A leitura é um direito de todos os cidadãos pertencentes a uma sociedade letrada para garantirlhes a sobrevivência e convivência social; entretanto, devido à ambição ilimitada do lucro (...) e ao domínio dos meios de produção e dos canais de distribuição por aqueles que estão comprometidos com o capitalismo internacional a leitura colocase, infelizmente, como um privilégio de poucos. (SILVA, 1998: 62-3)

LITERATURA COMPARADA, INTER E TRANSTEXTUALIDADE Assim, por um duplo jogo: na matéria da língua e na história social, o texto se instala no real que o engendra: ele faz parte do vasto processo do movimento material e histórico e não se limita - enquanto significado a seu autodescrever ou a se abismar numa fantasmática subjetivista (KRISTEVA, 1974: 11).

A prática do processo comparativo entre texto existiu desde sempre. Porém, ganhou sistematização e status científico a partir do final do século XIX. Trabalhar com o ensino de literatura é sempre transitar por instâncias em que o processo comparativo se faz presente, é investir na inter e na transtextualidade. Entendemos, aqui, por transtextualidade um termo que designa um grande grupo de relações possíveis entre diferentes textos (intertextualidade, hipertextualidade, paratextualidade, arquitextualidade. Ver, a respeito, Genette). Assim, dando uma amplitude maior, substituímos o termo intertextualidade (tal como definida por Kristeva) por transtextualidade (tal como definida por Genette). Tendo em vista os nossos propósitos que levam em consideração a correspondência entre as diversas artes, e os trânsitos ininterruptos que se efetivam entre as diversas linguagens estéticas, obviamente, a

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substituição do termo inter por transtextualidade se coloca como sugestão de abordagem aproximativa. Lemos o outro e confrontamos o seu discurso com o repertório de textos, de saberes, de experiências que acumulamos ao longo da existência. Como afirma Nitrini, Para que as relações de significação e de lógica (objeto da linguística) sejam dialógicas, elas devem tornar-se discurso e obter um autor do enunciado. Segundo Bakhtin, que tinha saído de uma Rússia revolucionária, preocupada com problemas sociais, o diálogo não só é linguagem assumida pelo sujeito: é também uma escritura na qual se lê o outro. Nesse momento, Kristeva ressalta que não se trata de nenhuma alusão à psicanálise. Disso decorre que o dialogismo de Bakhtin concebe a escritura como subjetividade e comunicabilidade ou, para melhor dizer com Kristeva, como intertextualidade (NITRINI, 2000: 160).

Nessa relação que, de imediato, se estabelece, não há como ficar estático. Somos tocados pelo discurso que lemos e, do processo, instaura-se um diálogo. Daí, entre muitas outras possibilidades, ler é possibilitar efetivamente diálogos com o outro, com o mundo, com o nosso universo interior. Se não existissem outras razões, só por esta, a de instaurar diálogos, a literatura, a leitura já bastaria. As proposições teóricas perambulam pelos mesmos territórios e, por vezes, propõem designações variadas para fenômenos que, se não são a mesma coisa, se aproximam de forma evdente. Vejamos. Bakhtin fala em dialogismo; Kristeva, em intertextualidade; Genette, em transtextualidade. Se em Bakhtin temos o autor narrador, em Kristeva encontramos o sujeito da enunciação e em Genette, a voz narrativa. Ao que Bakhtin chama de estilo linear, Kristeva denomina ‘palavra direta’, e Genette, intertextualidade, especificamente a citação. Para o ‘estilo pictórico’ bakhtiniano, Kristeva contrapõe a ‘palavra objetal’, e Genete, voltando a intertextualidade, à ‘alusão’. À ambivalência da palavra, em Kristeva, corresponde ao “individualismo relativista” de Bakhtim e à ‘hipertextualidade’ de Genette. Estas são, no entanto, considerações genérico-teóricas que merecem um repensar mais acuidado. Para encerrar, e encerrar filosófica e liricamente, um mini poema de Mário Quintana: Aquele fiozinho d’água Não era um rio: Bastava-lhe ser um fio de música... Mario Quintana

Sejamos nós, docentes, também, um fiozinho d’água, mas que possamos ser um fiozinho que transmita a sonoridade da vida, a beleza que nos embala e nos acaricia nas possibilidades dos encontros com os discursos artísticos. REFERÊNCIAS: ABREU, Márcia. Diferença e desigualdade: preconceitos em leitura. In: MARINHO, Marildes (Org.). Ler e Navegar: espaços e percursos da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001, p. 139 – 157 BARTHES, Roland, Aula, São Paulo: Cultrix, 1997 BLOOM, Harold. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 21) DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 2009. KRISTEVA, Julia. Sèméiotikè: recherches pour une sémanalyse. Paris: Seuil, 1969. KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva: 1974 MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo, Cosac & Naif, 2012 MORIN, Edgar. Meus demônios. Trad. Leneide Duarte e Clarisse Meireles. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. (Trad. Lucia Pereira de Souza). São Paulo: Triom, 1999. NICOLESCU, Basarab; BADESCU, Horia. (Orgs.). Stéphane Lupasco. O homem e a obra. São Paulo: USP; Triom; Centro de Estudo Marina e Martin Harvey, 2001 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. São Paulo: EdUSP, 2000. PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Lisboa: Passagens, 2009. SACKS, Oliver. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na escola e na biblioteca. 6ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1998 TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

A FACE HEROICO-BÁRBARA DA CABANAGEM NO CONTO O REBELDE DE INGLÊS DE SOUSA J.P.F (UFPA) Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar de que forma as duas faces da Cabanagem são mostradas e confrontadas no conto O Rebelde, do autor paraense Inglês de Sousa, publicado em Contos Amazônicos (1893). Por um lado, há a face heroica da cabanagem defendida pelo personagem Paulo da Rocha que vê legitimidade no movimento. Defende que os cabanos abandonados à miséria tinham todo direito de se revoltar contra a exploração perpetrada pelos portugueses e pelos detentores do poder. Por outro lado, tem-se a face bárbara do movimento quando o narrador descreve os crimes de assassinatos e furtos cometidos pelos cabanos. Para a análise da face heroico-bárbara da Cabanagem, será levado em consideração o contexto paraense da primeira metade do século XIX no qual o conto é ambientado. Também será levado em conta o contexto brasileiro do final do século XIX, quando O Rebelde foi publicado, visando compará-lo com obras naturalistas contemporâneas a ela, tais como o

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romance Germinal (1885), de Émile Zola. A análise será feita à luz dos estudos de MiguelPereira (1973), Castelho (2004), Furtado (2008) e Cunha (2010). Os resultados apontam que o embate entre as duas faces da Cabanagem, bem como o conto em si, destoam da escola naturalista a qual Inglês de Sousa é associado. Palavras-chave: Face heroico-bárbara; Inglês de Sousa; Cabanagem; Naturalismo. Abstract: This article analyses how the two faces of Cabanagem Revolt are showed in the short story named O Rebelde, by paraense author Inglês de Sousa, published in Contos Amazônicos (1893). On the one hand, there is the Cabanagem’s heroic face advocated by the character Paulo da Rocha who sees the legitimacy of Cabanagem revolt. He advocates that the cabanos abandoned to poverty had the right to revolt against the exploration perpetrated by Portuguese and power holders. On the other hand, there’s the revolt’s barbarian face when narrator describes murders and theft committed by cabanos. The Barbarian-heroic face’s analysis takes into account the paraense context in the first half of the 19th century where the short story is set. Brazilian context in the first half of the 19th century, when O Rebelde was published, will also be taken into consideration intending to compare with naturalistic works contemporary to it, as Germinal (1885) by Èmile Zola. The analysis is based on Miguel – Pereira (1973), Castelho (2004), Furtado (2008) and Cunha (2010). The results show that the clash between the two faces of Cabanagem, as well as the short story itself, distune of naturalistic school in wich Inglês de Sousa is incorporated. Keywords: Barbarian-heroic face; Inglês de Sousa; Cabanagem; Naturalism. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. Contos Amazônicos contém nove contos cujas temáticas se diferem. Alguns possuem um grande toque de ironia e crítica social como Voluntário e O donativo do capitão silvestre; outros caminham pela vereda do mítico e do imaginário amazônico, aproximando-se do fantástico: A feiticeira, Acauã, O baile do judeu e O gado do valha-me-Deus; e, por fim, os dois últimos, A quadrilha de Jacó Patacho e O rebelde que têm como tema central o movimento da Cabanagem, ocorrido na Província do Pará, na primeira metade do século XIX. Nos dois últimos contos, Inglês de Sousa tenta “discutir dialeticamente a face heróico-bárbara da Cabanagem no Pará (...)” (FURTADO, 2008, p. 104). Nos recorrentes estudos sobre O Rebelde, é comum a discussão a respeito da posição de Inglês de Sousa diante da Cabanagem. Araújo (2006, p. 125), argumenta que “As narrativas de Inglês de Sousa são pouco favoráveis aos cabanos”. Por outro lado, Lúcia Miguel- Pereira, em Prosa de Ficção (de 1870 a 1920), afirma: “O Rebelde e O Voluntárioeste mais fraco – pertencem à literatura de combate, o autor tomando sempre o partido dos fracos, dos oprimidos (...)” (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 168). No meio de opiniões contrastantes, nossa análise não irá escolher um dos lados para se direcionar. Discorreremos sobre o embate entre as duas faces do movimento cabano e os desvios irônicos na construção do personagem Paulo da Rocha, previamente identificados por Cunha (2010), que tornam a sua figura ambígua e contraditória. Tais contradições, assim como as incursões pelo mítico e pelo fantástico em outros contos, fazem com que Contos Amazônicos destoe da escola naturalista na qual a obra de Inglês de Sousa é inclusa. 1 A FACE HEROICA Até os dias de hoje, a Cabanagem, ocorrido entre 1835 a 1840, no Pará, na época, província do Grão-Pará; é louvado como um dos maiores movimentos de caráter popular da história do Brasil embora tenha tido, também, a participação de fazendeiros e comerciantes descontentes com o governo. Adquiriu caráter heroico por ter sido um movimento no qual as classes pobres, abandonadas por um governo que só favorecia as elites, conseguiram tomar o

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poder. Na capital paraense, são inúmeras as referências à revolta cabana. Sirva de exemplos o monumento à Cabanagem no entroncamento, o sambódromo da Pedreira batizado originalmente como Aldeia Cabana e o bairro da Cabanagem. Em O Rebelde, Paulo da Rocha é o único personagem expressivo a defender a face heroica do movimento cabano, que ecoa até os dias de hoje. No enredo do conto, Paulo da Rocha é um mulato pobre e velho que participou da Revolução Pernambucana de 1817 Vive com sua filha Júlia em Vila Bela, um dos espaços da narrativa, onde é hostilizado por quase todos os habitantes do local em virtude de sua condição social, o fato de ter sido revolucionário e seus aspectos físicos: “o nariz adunco, os olhos vivos, uns olhos de ave de rapina, a boca enorme (...)” (SOUSA, 2012, p. 96). Esses três fatores, inclusive, aguçam o imaginário local fazendo com que Paulo da Rocha ganhe a alcunha de velho do outro mundo e seja suspeito de ter feito pacto com o demônio. Dos moradores de Vila Bela, o menino Luís e o padre João da Costa são os únicos a tratarem amigavelmente o velho mulato. Quando Vila Bela está prestes a ser invadida pelos cabanos, o padre João da Costa, apavorado, pede o auxílio de Paulo da Rocha para combater os cabanos e defender a vila. É nesse momento que o mulato entoa um discurso em defesa da face heroica da Cabanagem: Bater os cabanos! Uns pobres-diabos que a miséria levou à rebelião! Uns pobres homens cansados de viver sob o despotismo duro e cruel de uma raça desapiedada! (...) e cuja culpa é só terem sido despojados de todos os bens e de todos os direitos. E quem disse ao senhor padre João que eu, Paulo da Rocha, o desprezado de todos em Vila Bela, seria capaz de pegar em armas contra os cabanos? (SOUSA, 2012, p. 103)

A fala de Paulo da Rocha torna evidente a heroicidade do movimento cabano. Ela remete a situação de pobreza e miséria em que viviam os participantes da revolta (caboclos, tapuios, índios e ribeirinhos em sua maioria) na primeira metade do século XIX: habitando cabanas precárias à beira do rio, vivendo à margem da sociedade, ignorados por governantes que favoreciam as elites, discriminados por sua cor de pele e explorados pelas classes detentoras do poder: fazendeiros, coronéis, brancos, políticos e portugueses. O trecho abaixo corrobora para o entendimento deste cenário: Dos três autores, a produção que se voltou reiteradamente para o mesmo espaço foi a de Inglês de Sousa, mas citemos dele apenas Contos Amazônicos (1893) (...) Nesse livro de contos, dá-se o que consideramos crimes da terra, uma vez que barbaridades são cometidas em nome da terra, ou então em função da prepotência de coronéis, de mandatários políticos, sempre acobertados porque defensores ou legitimadores de uma ordem social (...) (FURTADO, 2008, p. 104)

Por terem se revoltado contra esta situação lastimável em que viviam, “sendo despojados de todos os direitos” (SOUSA, 2012, p. 103), os participantes da Cabanagem são louvados como guerreiros e heróis que lutaram contra as classes dominantes. Seguindo a visão de Paulo da Rocha mostrada acima, os cabanos não poderiam ser tidos como simples baderneiros que destroem e roubam sem motivos. Na verdade, o que levou à rebelião foi a situação miserável em que se encontravam. É válido ressaltar, ainda, na fala de Paulo da Rocha, uma aparente insubmissão. O mulato se nega a ajudar a vila que o despreza. Trataremos melhor disso mais adiante. O conto segue e Paulo da Rocha protege o menino Luís (filho de um português rico), a mãe do menino e o padre João da Costa. Os quatro seguem para uma ilha isolada para esconderem-se dos cabanos. Em outro momento, quando já estão todos na ilha, Paulo da Rocha exalta mais uma vez o heroísmo dos cabanos:

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Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria originária das populações inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os inqualificáveis abusos com que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes. Disse da sujeição em que jaziam os brasileiros, apesar da proclamação da independência do país, que fora um ato puramente político (...) (SOUSA, 2012, p. 117).

No trecho acima, é interessante atentar para a crítica que o personagem faz acerca da proclamação da independência vista como algo puramente político. A crítica é válida porque a independência do Brasil não alterou em praticamente nada a situação das classes menos favorecidas: negros, pobres, índios, ribeirinhos, tapuios e etc. Essa crítica é semelhante a de Machado de Assis acerca da escravidão em Memórias Póstumas. Trataremos melhor disso no item 4. 2 A FACE BÁRBARA Ao longo do conto, são apontados vários crimes bárbaros cometidos por cabanos durante a revolta: roubos, saques, violência contra mulheres, assassínios, destruição de casas e etc. Vila Bela é invadida por um bando cabano e várias casas são incendiadas e destruídas: “No centro da vila uma grande chama escarlate erguia-se do telhado de uma casa (...) Ouviase o crepitar do fogo e, de vez em quando, o ruído que fazia uma trave desabando (...)” (SOUSA, 2012, p. 115). O pai do protagonista Luís, o juiz de paz português Guilherme da Silveira, é brutalmente assassinado pelos revoltosos a mando de Matias Paxíuba: “incendiando a casa do juiz de paz e queimando lhe o corpo, crivado de facas, no enorme brasido” (SOUSA, 2012, p. 115). Como é sabido, os portugueses que ocupavam cargos importantes aristocraticamente no Brasil a pouco independente, eram um dos principais alvos da revolta cabana. No entanto, o ódio de Matias Paxíuba por Guilherme da Silveira pode ser entendido, no conto, muito mais como uma vingança pessoal pelo fato do juiz de paz ter mandado prender Paxíuba no passado. Dessa forma, a barbaridade do movimento mais uma vez é ressaltada quando Luís e sua mãe (dois inocentes) são obrigados a fugir de Vila Bela para não serem assassinados. Seguindo por essa vereda, era natural que Luís e sua mãe considerassem a Cabanagem como algo repugnante, afinal, o menino perdera o pai, a mãe o marido, assassinado por revoltosos. Por esse motivo, a mãe de Luís irrita-se em vários momentos com o mulato Paulo da Rocha quando este sai em defesa da Cabanagem: “- Isso dizem os cabanos para esconder seus torpes motivos. O que eles querem é roubar e matar. (...)” (SOUSA, 2012, p. 118). Na perspectiva desta personagem, pertencente à classe dominante, a Cabanagem era um movimento puramente bárbaro onde os participantes preocupavam-se apenas em saciar sua sede de crimes e destruição. 3 OS DESVIOS IRÔNICOS EM PAULO DA ROCHA Em uma análise apriorística, poderia se concluir que Paulo da Rocha faz jus ao título do conto: O Rebelde. Participou da Revolução Pernambucana de 1817, demonstrou uma aparente insubmissão ao se recusar a combater os cabanos e saiu em defesa do movimento. Entretanto, trabalhos como os de Cunha (2010) apontam desvios irônicos e contradições na figura de Paulo da Rocha que poderiam nos levar à conclusão de que a alcunha de “Rebelde”, dada a Paulo da Rocha, não passa de uma ironia. A primeira contradição apontada pela autora é na construção do personagem que, embora sua aparência física seja de uma pessoa decrépita, suas atitudes são de um herói romântico. Ao final da narrativa, prefere entregar a filha ao bando de Matias Paxíuba para salvar o protagonista Luís que o compara até mesmo a Jesus Cristo. Tal atitude sugere que

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Rocha, na verdade, é submisso às classes dominantes. Segundo Cunha, submissão já vinha sendo mostrada sutilmente no conto em partes anteriores: (...) Rocha demonstra em várias situações uma atitude de servo, fato que se evidencia no final da narrativa, mas que aparece ao longo do texto de forma mais sutil, como por exemplo, o trabalho que Rocha desemprenha na igreja. Ele exerce os cargos de sacristão e de sineiro da matriz demonstrando grande satisfação em realizar essas tarefas (...) Essas atividades de Paulo (...) caracterizam na verdade uma satisfação em ser servo (...) é uma confirmação de sua postura de aceitação de sua condição marginal. (CUNHA, 2010, p. 79-80)

Pelo que se observa, mesmo sendo desprezado por todos em Vila Bela, Paulo da Rocha, ainda sim, faz questão de agradar as pessoas que o execram. É um contraponto à insubmissão apontada no item 1 Além das contradições apontadas acima, há um novo desvio irônico no momento em que o Rocha entoa um discurso contra os cabanos no momento em que eles invadem seu esconderijo: “Mas os cabanos matam e roubam pelo simples prazer do crime, ou, antes, porque invejam a prosperidade dos brancos” (SOUSA, 2012, p. 125). Ora, ironicamente, o mesmo Paulo da Rocha que em vários momentos saiu em defesa do movimento cabano alegando que a causa era justa, entoa um discurso muito parecido com o das classes dominantes ao reduzir os cabanos unicamente a criminosos invejosos da prosperidade dos brancos. Assemelha-se a fala da mãe de Luís, mostrada acima, que reduz os cabanos a meros criminosos. 4 INGLÊS DE SOUSA E A CENA LITERÁRIA DO FINAL DO SÉC. XIX O Rebelde foi publicado em 1893 A crítica à sociedade brasileira presente no conto insere-se neste cenário literário brasileiro do final do século XIX, em que os principais autores seguiram, ou para o Naturalismo como Aluísio Azevedo; ou para o Realismo, como Machado de Assis. Apesar das ostensivas diferenças entre Sousa e Machado, podemos estabelecer um leve paralelo do romance deste, Memórias Póstumas de Brás Cubas, com o conto do escritor paraense no que diz respeito à crítica em relação ao fato da independência ter mudado pouca coisa para as classes menos favorecidas. Como bem observou Schwarz (2000), uma das grandes denúncias que Machado realiza em Memória Póstumas é a do sistema escravocrata brasileiro que, mesmo com a independência, não fora abolido. Schwarz (2000) também discorre acerca das elites brasileiras no século XIX, que se beneficiavam com a escravatura. Da mesma forma, as elites paraenses eram favorecidas pela exploração dos menos favorecidos, já citada anteriormente, o que culminou na revolta cabana. Apesar da temática de O Rebelde render esta leve comparação com Machado de Assis, o que aproxima o conto do Realismo, Inglês de Sousa é rotulado como um escritor naturalista. Tal rótulo não leva em conta as demais obras do autor: O cacaulista, História de um pescador, O coronel sangrado e Contos Amazônicos; só leva em consideração o romance Missionário, publicado também no final do séc. XIX, em 1891, onde predominava a corrente naturalista na Literatura Brasileira, fortemente influenciada por Émile Zola. Inglês de Sousa, talvez para inserir-se neste cenário literário após seus primeiros romances não terem recebido atenção, publica O Missionário, aos moldes naturalistas. Todavia, trabalhos como os de Miguel-Pereira (1973) e Castello (2004) propõem uma revisão crítica nas obras do escritor paraense que ficaram à margem: O cacaulista, História de um pescador e O coronel sangrado; e em Contos Amazônicos no caso de Castello (2004), que conclui que as narrativas de Contos Amazônicos “não apresentam qualquer compromisso com a teoria de Zola” (CASTELLO, 2004, p. 405). 5 O REBELDE E O NATURALISMO

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Ao tratar da violência que permeou o movimento popular da Cabanagem, onde tanto os participantes quanto os opressores do movimento cometeram atos bárbaros, pode-se dizer que O rebelde dialoga, em parte, com o romance naturalista Germinal (1885), de Émile Zola. Na obra em questão, vários mineiros em greve são mortos pelo exército francês, o menino Jealin, membro de uma família de mineiros condenados à fome, assassina um soldado sem motivo aparente; e o velho Boa-Morte, explorado a vida toda pela mina Vourex, enlouquece e acaba assassinando uma jovem pertencente à classe alta. Na perspectiva naturalista do romance, o ambiente de pobreza, miséria, vício, ignorância e fome em que vivia o mineiro francês; é propício para que o homem pertencente às classes baixas desenvolva uma sede de destruir e acabe cometendo assassinatos. O homem é influenciado pela situação de miséria, abandono e exploração em que se encontra. Toda essa situação, aliada com a revolta, despertaria no homem, a sede de cometer crimes: Naturalismo significa o tipo de realismo que procura explicar cientificamente a conduta e o modo de ser dos personagens por meio de fatores externos, de natureza biológica e socióloga, que condicionam a vida humana. Os seres aparecem, então, como produtos, como consequências de forças preexistentes, que limitam a sua responsabilidade e os tornam, nos casos extremos, verdadeiros joguetes das condições. (...) (CANDIDO & CASTELLO, 1979, p. 95)

Contudo, não é o que se percebe no conto de Inglês de Sousa. Especialmente, se levarmos em conta a figura de Paulo da Rocha. Na perspectiva naturalista, o velho mulato teria vários motivos para não ser submisso às classes dominantes e, em casos mais extremos, desenvolver tendências assassinas como o menino Jealin e o velho Boa Morte. Paulo da Rocha sofrera discriminação a vida toda por conta de sua cor pele, perdeu a mulher assassinada por soldados e viveu, durante sua vida inteira, abandonado à pobreza e à miséria, à margem da sociedade. Entretanto, isso não condicionou o comportamento do personagem, não fez dele um rebelde contra seus opressores (a não ser na Revolução de 1817), tampouco o fez desenvolver tendências violentas. Além disso, a figura do velho mulato é idealizada, o que o aproxima dos heróis românticos. No momento em que os cabanos de Matias Paxíuba invadem o esconderijo de Paulo da Rocha, o velho mulato afronta os revoltosos com ofensas e bravatas. Pela lógica, os cabanos teriam uma reação violenta contra Rocha. No entanto, ao invés disso, deixam-se intimidar pelo velho mulato como se ele fosse dotado de temerosa força, capaz de batê-los. Por fim, O rebelde não tem a crueza de Germinal ou, utilizando um exemplo mais próximo, de O cortiço, de Aluízio Azevedo. A hereditariedade e o meio não condicionam os personagens principais da obra. Portanto, O Rebelde destoa, em vários aspectos, do Naturalismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa análise apresenta duas conclusões acerca do embate entre a face barbara e a face heroica do movimento cabano mostrado no conto: 1) Ao mostrar da face heroica do movimento cabano, Inglês de Sousa realiza várias críticas à sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, onde as relações econômicas favoreciam determinadas elites e oprimiam as classes menos favorecidas: ribeirinhos, tapuios, índios e etc. 2) Ao tratar da face bárbara, Inglês de Sousa exõer que, em uma revolução de caráter popular, há aqueles que se aproveitam do movimento para cometer atos violentos ou, no caso de Matias Paxíuba, executar vinganças pessoais. Em outras palavras, nem todos os envolvidos estavam preocupados em reivindicar os direitos dos menos favorecidos.

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Por fim, nossa análise acerca do conto procurou não se prender, unicamente, ao embate entre as duas faces da Cabanagem. Procurou, à medida do possível, tecer comentários acerca da relação de o Rebelde com o contexto em que fora publicado e com o Naturalismo vigente na época. Acreditamos que a obra de Inglês de Sousa necessite realmente de revisão. Ao concluirmos que O Rebelde destoa da tradição naturalista, cremos que apresentamos mais um motivo para justificar que o rótulo de naturalista atribuído a Inglês de Sousa não é suficiente para abarcar toda a sua obra. BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, J. M. Literatura e história na recepção crítica do conto de Inglês de Sousa. 2006 153 f. Dissertação (Mestrado). Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Pará. Belém, 2006. ASSIS, M. Memórias Póstumas de Braz Cubas. 3 ed. São Paulo: Cultrix. 1963 CANDIDO, A; CASTELLO, J. A. Presença da literatura brasileira: Romantismo, Realismo, Parnasianismo e Simbolismo. 8 ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Difel, 1979. CASTELLO, J. A. A literatura brasileira: origens e unidades (1500 – 1960). São Paulo: Edusp, 2004 CUNHA, L.V. Vozes da cabanagem: os discursos da literatura e da história na construção de “O Rebelde”. 2010. 90 f. Dissertação (Mestrado). Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará. Belém, 2010. FURTADO, M. “Crimes da Terra” na Amazônia, de Inglês de Sousa a Dalcídio Jurandir. Disponível em: http:/www. periodicos.letras.ufmg.br. Acesso em 30/05/2014 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Prosa de ficção: de 1870 a 1920. 3 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1973 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. 3 ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. ZOLA, Émile. Germinal. Tradução de Francisco Bittencourt. 3 Ed. São Paulo: Martin Claret, 2008

O LETRAMENTO E A LEITURA LITERÁRIA: UMA SEQUÊNCIA BÁSICA PARA O ENSINO DE LITERATURA JONILSON PINHEIRO MORAES (UEPA) RESUMO: O presente trabalho é resultado da pesquisa sobre o letramento e a leitura literária em uma “sequência básica” (COSSON, 2012), tendo como contexto de análise o ensino de literatura. A literatura é uma das artes que por meio da linguagem escrita representa a realidade, os sentimentos e a nossa visão de mundo, tendo, assim, a capacidade de nos humanizar (COSSON, 2012), por isso a relevância em discutir como foi e vem sendo feita a escolarização da literatura e o letramento literário. Nesta perspectiva, abordamos a leitura

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literária a partir de seu aspecto sócio-político-cultural, o que acreditamos possibilitar a formação de leitores conscientes, críticos, atuantes na sociedade e emancipados. Focalizamos na leitura do texto literário, o que o texto diz – o conteúdo ou assunto –, e como o texto diz – a forma e a estética. A “sequência básica” proposta por Cosson (2012) é composta pelas etapas de motivação, introdução, leitura e interpretação, às quais acrescentamos a etapa de produção textual. Concluiu-se que para uma escolarização da literatura que considere seu caráter estético, a sequência básica é um método para o ensino de literatura que permite o diálogo entre os aspectos sócio-histórico-culturais, os estruturais e os estilos presentes nos textos literários e, ainda, incentiva a leitura e a produção textual por localizar o texto no tempo e no espaço (sócio-historicamente). Palavras-chave: Literatura, Letramento, Leitura Literária, Sequência Básica, Ensino de Literatura. INTRODUÇÃO Segundo Jouve (2012, p. 30), o termo literatura, a partir do século XIX, passou a adquirir o seu sentido moderno, que é o de “uso estético da língua escrita”. Nessa perspectiva os textos literários58 têm características que lhes são especificas e que os diferenciam de outros textos, como os jornalísticos e os acadêmicos, por exemplo. O autor ainda acrescenta que um dos critérios para se identificar um texto literário é a “gratuidade”, que ele define como sendo a ausência de finalidades práticas da literatura – o que pode ser um mito, pois a literatura é a prática que amplia a visão crítica de mundo do indivíduo –, porém, acreditamos que o que torna um texto literário é a sua literariedade que, segundo Bragatto Filho (1995), é “o resultado do trabalho estético do autor, mas também o é da atuação competente do leitor” (BRAGATTO FILHO, 1995, p. 16 [grifo do autor]) Jouve (2012) distingue dois regimes presentes no texto literário: o constitutivo, no qual, os textos seguem regras de determinado gênero literário (estética), ou seja, são imanentes ao texto; e o condicional, no qual um texto seria literário por reconhecimento coletivo (institucional), a partir de critérios sociais, culturais, ideológicos e históricos, isto é, externos aos textos. Porém, esses critérios não ficam antipáticos à estética, apresentando-a parcialmente como é o caso dos Sermões, de Padre Antônio Vieira, que possuem alegorias, por exemplo. Nessa perspectiva, o trabalho com a literatura é interno ao texto por meio da ênfase dada aos aspectos estruturais e estéticos e, externo pela ênfase em aspectos temáticos que, segundo Cândido (1995), constituem a força humanizadora da literatura que tem entre suas funções a de reelaboração do real por meio da ficção e, ainda, o conhecimento do mundo e do ser por meio da palavra. Ou seja, a literatura, que é uma experiência a ser realizada, permite a humanização do sujeito: Ao confirmar e negar, propor e denunciar, apoiar e combater, a literatura possibilita ao homem viver seus problemas de forma dialética, tornando-se um "bem incompressível”, pois confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. (CÂNDIDO, 1995, p. 243).

Sendo assim, a literatura ao proporcionar, por meio do texto, que o aluno vivencie através da leitura literária discussões e debates de temas atuais e polêmicos, permite-lhe a atualização de seu conhecimento, refletindo criticamente sobre seus posicionamentos diante 58

Terra (2014) no seu livro “Leitura do texto literário” argumenta que, em linhas gerais, há duas vertentes para a conceituação do que é literário: uma imanentista ou ontológica que postula que alguns textos se caracterizam pela literariedade, ou seja, por aspectos interiores a ele, dizendo que a linguagem literária é uma linguagem especial que se distingue da linguagem ordinária. A outra perspectiva – que o autor não identifica – baseia-se em critérios externos ao texto e não em aspectos imanentes a este como a imanentista.

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de questões sociais e, assim, concretizando o letramento literário. Partindo dessa linha de raciocínio – da aproximação entre a literatura e as práxis humana –, resta-nos a reflexão mais acurada sobre a maneira como vem sendo ensinado a literatura na escola, como veremos na seção a seguir. A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA Segundo a autora Marisa Lajolo (2000), durante o decorrer do tempo em que se manteve a relação entre a escola e a literatura, que é histórica e social, houve muitas mudanças nos seus conteúdos programáticos e nos comportamentos, atitudes, valores, sentimentos e lições ali vinculadas, porém a relação de dependência entre ambas manteve-se inalterada e intacta – e se houve alguma mudança nessa relação, ela não foi de grande relevância para a antiga aliança econômico-ideológica59 entre a sala de aula e os textos literários. Pensando ainda na relação escola-literatura, Lajolo (2000) afirma que essa interrelação manifesta-se de forma externa ao texto literário, prezando por interesses a ele alheios, como os da instituição e os do professor. Assim, esse texto trabalhado pode, apesar de ser literário, tornar-se de caráter puramente pedagógico “pagando, com o que poderia chamar de compromisso pedagógico, seu ingresso no aparelho escolar” (LAJOLO, 2000. p. 68 [grifo da autora]). Isso faz com que o aspecto literário do texto seja deixado de lado no processo de ensino de literatura e, assim, havendo um “descompasso estético”. Magda Soares (2006) também analisando a relação entre escolarização, de um lado, e literatura, de outro, interpreta tal relação a partir de duas perspectivas. Numa primeira perspectiva, analisa essa relação “como sendo a apropriação pela escola, da literatura” (2006, p.17 [grifo do autor]), ou seja, pensa o processo como o apoderamento da literatura pela escola, a qual a toma no seu processo de sua escolarização a partir da didatização e pedagogização para atender seus próprios objetivos e afins, fazendo da literatura uma literatura escolarizada. Uma segunda perspectiva, dentro da qual pode-se considerar a relação escolarizaçãoliteratura, é compreendida por Magda (2006) “como sendo a produção, para a escola, de uma literatura” (MAGDA, 2006, p.17 [grifo do autor]), essa perspectiva volta-se exclusivamente para a escolarização da literatura infanto-juvenil ao analisar o processo de escolarização, como produção de uma literatura destinada à escola, aos seus objetivos e consumos e à clientela escolar, ou seja, busca-se literarizar a escolarização. Assim, pode-se pensar em literatura escolarizada, produzida independente da escola que dela se apropria ou literalização da escolarização, literatura produzida para a escola. Porém, tomamos neste trabalho a perspectiva que coloca a relação entre a literatura e a escola como a apropriação daquela por esta para atender à seus fins específicos, de formadoras e educativas, por englobar todos os tipos de literatura, desde a infantil-juvenil até a adulta60, diferentemente da outra perspectiva que engloba apenas a literatura infanto-juvenil. Consoante a Soares (2006) o termo escolarização geralmente é tido como sentido pejorativo e depreciativo quando usado na relação com os conhecimentos, produções culturais, artes e saberes, porém essa autora argumenta que é errônea e injusta a atribuição de tal conotação pejorativa a termos como “escolarização” e “escolarizado”.

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Quando Lajolo (2000) usa essa expressão – econômico-ideológica – ela coloca a escola como uma instituição divulgadora, distribuidora e consumidora de obras literárias por meio de seus acervos escolares, sendo assim, de grande importância para o mercado editorial. 60 Rildo Cosson (2012) argumenta que essa divisão da literatura segunda faixas etárias do leitor contribui para o vácuo de publicações de obras de literatura existente a considerada infanto-juvenil e a “adulta”, que é prejudicial a escola já que leitores daquela não se tornam desta.

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O surgimento da escola implicou na construção de “‘saberes escolares’ que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e disciplinas, programas e metodologias, tudo isso exigido pela invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem” (SOARES, 2006, p. 20 [grifo da autora]). Dessa forma, se constitui até nossos dias, o que podemos chamar de “essência da escola61”. Os elementos que formam a “essência da escola” são organizados e formalizados em categorias que estabelecem um tratamento particular, dado pela escola ao conhecimento por meio de competências, saberes e habilidades à adquirir, metodologias, recursos e materiais didáticos utilizados nos processos de avaliação, de seleção de textos, etc. Esse processo de formalização e organização do conhecimento, saberes, produções culturais e artes é chamado de escolarização e é inevitável, pois constitui a escola como instituição de ensino. Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, [...] ao se tornar “saber escolar”, se escolarize, e não se pode atribuir, em tese, como dito anteriormente, conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável e necessária; não se pode criticá-la, ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola. (SOARES, 2006, p. 21[grifo da autora]).

Magda Soares (2006) esclarece que usa na citação acima a expressão em tese, porque na realidade da escola a escolarização, na prática, acaba por obter um sentido negativo pela forma como ela tem sido realizada no dia-a-dia da práxis escolar. Após essa reflexão sobre a escolarização do conhecimento chegamos com Magda Soares à conclusão de que: O que se pode criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigurao, desvirtua-o, falseia-o. (SOARES, 2006, p. 22 [grifo da autora]).

Um exemplo de escolarização inadequada da literatura é o de usar textos literários como pretexto para a prática de exercícios gramaticais, que de acordo com Lajolo (2000) “até os anos cinqüenta/sessenta era prática corrente” (LAJOLO, 2000, p. 70), por sua vez sabemos que essa prática ainda não foi totalmente excluída do âmbito escolar, fazendo com que o objetivo principal do trabalho na escola com o texto literário, que é a apreciação do estético e da literariedade, seja deturpado e transformado num outro que se mostra totalmente contrário aquele objetivo, que é o ensino da morfologia e da sintaxe da língua portuguesa. Outro exemplo dessa inadequação seria a minimização da gramatiquice no trabalho com o texto literário: A adesão a uma espécie de modelo simplificado de análise literária: questionários a propósito de personagens principais e secundários, identificação de tempo e espaço da narrativa, escrutínio estrutural do texto [que com algumas modificações permanece até os dias de hoje]. (LAJOLO, 2000, p. 70).

Esse tipo de análise apesar de ser importante para seu o conhecimento, ainda é uma espécie de introdução à análise que se deveria fazer para dar conta do ensino-aprendizagem do texto literário. Para Soares (2006) a escolarização adequada da literatura é aquela que conduz às práticas de leitura ocorrentes no contexto social e, aos valores e atitudes do leitor ideal que 61

Essa “essência da” escola de acordo com Magda Soares é constituída de graus, séries, classes, currículos escolares, matérias, disciplinas, disciplinas, livros e manuais didáticos e textos que circulam nesse ambiente.

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queremos formar da forma mais eficaz possível, respeitando as características essenciais da obra literária, para não violar aspectos que constroem sua litetariedade e “que se fundamente em respostas adequadas também adequadas para às perguntas: porque e para que ‘estudar’ um texto literário? O que é que se deve ‘estudar’ num texto literário?” (SOARES, 2006, p.43). A partir dessa concepção de escolarização da literatura adequada é que se delineou a proposta abaixo, de como trabalhar a literatura adequadamente na escola, objetivo que pretendemos alcançar nas próximas seções desse trabalho. O LETRAMENTO E A LEITURA LITERÁRIA A perspectiva do “letramento literário” sugerida por Cosson e Souza (2011), parte dos usos que fazemos da língua escrita em nossa sociedade, e que evidentemente é fundamental para inserção dos indivíduos em comunidades letradas tal qual aquela alvo de nossas ações com o letramento literário. Acreditamos que esta necessidade de inserção faz parte de demandas que surgem nas atividades cotidianas dos sujeitos e, assim, “designa as práticas sociais da escrita que envolvem a capacidade e os conhecimentos, os processos de interação e as relações de poder relativas ao uso da escrita em contextos e meios determinados” (COSSON; SOUZA, 2011, p. 102). Estritamente o “letramento literário” é um dos usos sociais da língua escrita, porém tem um relacionamento diferente com a escrita/leitura, pois a literatura preenche um lugar único no que diz respeito à linguagem, já que “a literatura tem o poder de se metamorfosear em todas as formas discursivas [possíveis]. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada” (COSSON, 2012, p. 17), desta forma proporciona, a partir dos textos literários, um modo privilegiado de inserção no mundo da leitura e da escrita por meio de uma metalinguagem. É com vista na relação singular do “letramento literário” com a linguagem, que Paulino e Cosson (2009) o definem como “o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67 apud SOUZA & COSSON, 2011, p. 103), ou seja, são as experiências de dar sentido ao mundo por meio do texto e ao texto por meio do mundo, em uma relação dialética, é que se procura saber do texto quem diz, o que diz, como diz, para que diz, para quem diz e por que diz. No que diz respeito ao processo de apropriação da literatura por meio do “letramento literário”, Silva e Silveira (2013) nos indicam que: O letramento literário seria visto, (...) como estado ou condição de quem não apenas é capaz de ler o texto em verso e prosa, mas dele se apropriar efetivamente por meio da experiência estética; saindo da condição de mero expectador para a de leitor literári (SILVA; SILVEIRA, 2013, p. 96).

Acreditamos que isso ocorra porque na atual conjuntura das sociedades letradas não se admite estritamente o “saber ler e escrever”, mas se encampa a necessidade dos sujeitos dominarem amplamente estas habilidades, e fazer usos delas de maneira a incorporá-las em suas vivências, transformando, assim, seu “estado” ou “condição” em consequência do domínio dessas competências (cf. SOARES, 2013). Segundo Cosson (2012) a linguagem vinculada pelos textos literários permite três tipos de aprendizagem: (1) a aprendizagem da literatura que se dá pela experiência estética do mundo por meio da palavra; (2) a aprendizagem sobre a literatura que está relacionada a conhecimentos históricos, teoria e crítica literária e (3) a aprendizagem por meio da literatura que envolve os saberes e as habilidades/competências proporcionadas ao alunado por meio da leitura literária. Avaliamos que a aprendizagem da e por meio da literatura, indispensável para a formação do leitor literário, é a que oportunizada em sala de aula, pois há uma preocupação

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exacerbada por questões históricas e teóricas da literatura. Isso se dá porque, no que se refere ao trabalho com a literatura no âmbito escolar, o professor privilegia o ensino dos chamados estilos de época – o cânone e dados bibliográficos dos autores –, enumerando fatos históricos e culturais que influenciaram os estilos, e listando uma sequência de características desses estilos para que os alunos as decorem em aulas para lá de tradicionais. Na maioria das vezes não é proporcionado ao aluno o acesso às obras e, quando isso acontece é apenas para identificar as temáticas que há dentro do texto e em determinado período literário. Desta forma, o aluno não consegue compreender “a análise literária (...) como um processo de comunicação, uma leitura que demanda respostas do leitor, que o convida a penetrar na obra de diferentes maneiras, a explorá-la sob os mais variados aspectos” (COSSON, 2012, p. 29). Na perspectiva didático-metodológica acima descrita, o aluno é visto como uma “tábula rasa” que deve ser preenchida pelo conhecimento do professor, ou seja, mero receptor passivo, e não como construtor ativo e crítico de conhecimento com competência suficiente para fazer uma análise crítica da obra literária, a partir das suas leituras de mundo adquiridas por ele no convívio em comunidade. Nas aulas tradicionais de literatura, o professor não considera a estética do texto e sua literariedade, o que acaba por não permitir que os alunos compreendam a formação das figuras de linguagem, as imagens e a estrutura dos gêneros por meio dos quais o texto literário se apresenta. As reflexões, exclusivamente sobre o caráter histórico e teórico da literatura, impossibilitam aos educandos a experiência, por meio de discussões e análises literárias em sala, da estética da palavra e o estímulo por meio da sensibilidade estética. Mais problemático do que não trabalhar a estética dos textos literários, é usar estes textos para explorar a gramática normativa, fragmentando-os em frases e orações para praticar a análise morfossintática. Esta fragmentação esvazia o sentido global e, ainda, extingue a estética do texto literário, pois uma vez descontextualizado e separado do todo do qual faz parte e são constituintes, as frases e orações isoladas já não mais podem ter literariedade. No trabalho com o texto literário, o interesse do leitor “deve se direcionar, necessariamente, para o que o texto diz [conteúdo ou assunto] e para como ele diz o que diz [a forma, o estilo e a estética]” (FILHO, 1995, p. 43 [grifos do autor]). Segundo Campos (2003), “conhecimento e prazer fundem-se no texto literário. No entanto, dentro do currículo escolar tornam-se dicotômicos. Desprovido da sua essência, o texto literário é transformado num empobrecido sistema moralizante primário” (CAMPOS, 2003 apud SILVA; SILVEIRA, 2013, p. 95). Nesta perspectiva, entendemos que o texto literário é visto pela maioria dos professores como um artefato desprovido de suas características de literariedade, as quais, por sua vez, o tornam específico e único, permitindo a partir da proximidade a inserção profunda numa sociedade, resultado do diálogo que mantemos com o mundo e com outros. A leitura do texto literário é dita como o simples ato de decodificar os códigos linguísticos que estão no texto literário, como se fosse pegar algo que já está pronto e acabado, ou seja, apenas o conhecimento do enredo do texto narrativo, privilegiando um único sentido do texto, não dando poder algum ao aluno sobre a construção de sentidos, homogeneizando a leitura do texto literário que tem como uma de suas principais características a polissemia e a heterogeneidade, já que “a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quando do leitor e do escritor” (COSSON, 2012, p. 17). Essa prática de leitura contraria o que é dito pelos PCNs de Língua Portuguesa, segundo os quais “a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio” (BRASIL, 1998, p. 19, [grifo nosso]), que tem como resultados leitores não críticos e passivos diante do ato de ler.

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A interpretação na aula de literatura, por ser mais cômodo ao professor, é feita, geralmente, a partir das chamadas fichas de leitura que pedem aos alunos que reconheçam informações que estão literalmente na superfície do texto e, por sua vez, a transcrevam como resposta interpretativa, não requerendo que este se aprofunde no ato de compreensão e, assim, não indo em busca dos sentidos que não estão expressos linguisticamente na superfície do texto literário, por meio de inferências a partir de dicas linguísticas deixadas pelo autor, e dos conhecimentos de mundo que possui em sua bagagem sociocultural, estabelecendo uma relação entre leitura da palavra e leitura de mundo. Nessa perspectiva, não se trabalha a interpretação como “parte dos enunciados, que constituem as inferências, para se chegar à construção do sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade” (COSSON, 2012, p. 64). A produção de textos em aulas de literatura é quase inexistente, por serem geralmente expositivas e sem diálogo e interação com o alunado, e quando há produção escrita prevalece o gênero resumo que tem como principal objetivo comprovar que o aluno leu o texto literário, ajudando o professor a vigiar os alunos e não cumprindo o que postulam os PCNs (1998): “a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem objetos de correção” (BRASIL, 1998, p. 19). Infelizmente não se tem visto produção em sala de aula de literatura que promovam a discussão estética, estrutural e temática dos textos, ao procurar aguçar a análise crítica do aluno, por meio de resenhas, por exemplo, e muito menos produção de textos dos gêneros literários, que busquem selecionar os recursos linguísticos que obedeçam à sensibilidade e a preocupações estéticas e, assim, ampliar a experiência estética e a competência estilística do aluno por meio da prática literária. Perde-se, dessa maneira, a oportunidade de através da produção do texto literário: Romper os limites fonológicos, lexicais, sintáticos e semânticos traçados pela língua: esta se torna matéria-prima (mais que instrumento de comunicação e expressão) de outro plano semiótico – na exploração da sonoridade e do ritmo, na criação e recomposição das palavras, na reinvenção e descoberta de estruturas sintáticas singulares, na abertura intencional a múltiplas leituras pela ambiguidade, pela indeterminação e pelo jogo de imagens e figuras. (BRASIL, 1998, p. 27).

A partir do que foi observado a respeito do trabalho com a literatura em sala de aula, e por outras questões que não aquelas que contribuem para a formação de leitores competentes e capazes de reconhecer as sutilezas, as peculiaridades, os sentidos, a extensão e a intensidade das construções literárias, avaliamos que torna-se indispensável o trabalho com o texto literário a partir da perspectiva do “letramento literário” por meio de atividades de leitura, interpretação e produção textual que busquem trabalhar a linguagem literária em seu uso social valorizando, assim, a vivência do literário em sala de aula. A partir dessa perspectiva do letramento literário, apresentamos a seguir uma proposta metodológica para o ensino de literatura, que tem por pretensão minimizar a inadequação da escolarização dessa arte. A “SEQUÊNCIA BÁSICA” Essa sequência básica é uma proposta metodológica proposta experimentada por Rildo Cosson (2012) – um dos principais referenciais teóricos quando o assunto é ensino de literatura –, para o letramento literário na escola. Essa sequência para o trabalho com textos literários é composta por quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação; as quais acrescentamos mais duas etapa: a produção literária, por acreditarmos que são necessárias ao letramento literário a modalidade prática, que faz com que os alunos aprendam a fazer fazendo; e a exposição, para dar a esse trabalho prático uma finalidade/objetivo. A etapa de motivação é a preparação do alunado para o contato com o texto literário, que é feita por meio de dinâmicas psicomotoras, escritas ou orais relacionadas à temática e/ou

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à estrutura do texto que será trabalhado, estabelecendo laços estreitos com o mesmo, e “envolvendo conjuntamente atividades de leitura, escrita e oralidade” (COSSON, 2012, p. 57). Essa etapa tem grande responsabilidade para a realização com êxito das próximas etapas, já que o sucesso do encontro do aluno/leitor com a obra/texto literário depende de um bom planejamento e execução dela. A introdução consiste na apresentação física da obra, livro ao qual o texto que será trabalhado pertence, dando informações de aspectos que estão relacionados a ele e justificando sua escolha e do autor, falando brevemente sobre o mesmo e dando informações básicas – se possível do período de vida do autor em que ele escreveu o texto – para que essa etapa não se torne uma longa exposição entediante de detalhes biográficos que são de interesse de pesquisadores. A etapa de leitura é o momento em que se conhece o enredo da história, as informações do texto literário. Essa etapa de leitura pode ser longa algumas vezes, como a leitura de um romance, e exige que o professor faça o acompanhamento da leitura escolar, “porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista” (COSSON, 2012, p. 62), porém o professor não deve vigiar e espionar o aluno, mas sim verificar se esse está tendo dificuldades e auxiliá-lo para que a fruição da leitura aconteça, buscando também fazer com que os alunos exponham os resultados da leitura. O acompanhamento pode ser feito por meio do que Cosson (2012) chama de intervalos, que dependem do processo de letramento literário, e nos quais o professor perceberá as dificuldades de leitura dos alunos, funcionando, assim, o intervalo, “como um diagnóstico da etapa de decifração no processo de leitura” (COSSON, 2012, p. 64), sendo que esse diagnóstico das dificuldades específicas enfrentadas pelos alunos torna-se uma eficiente intervenção na formação de leitor do alunado. A interpretação é tida como o entretecimento dos enunciados para a construção do sentido do texto por meio da constituição de inferências dentro de uma interação que envolve autor, leitor, comunidade e contexto sociocultural, por meio de debates e discussões entre o alunado. Esta etapa é pensada no cenário do letramento em dois momentos: o momento interior “é aquele que acompanha a decifração palavra por palavra [...], e tem ápice na depreensão global da obra que realizamos logo após terminar a leitura” (COSSON, 2012, p. 65) – diz respeito à construção de sentido pessoal, individual e íntimo, que compreendemos como o núcleo da experiência literária –, e o momento exterior que é “a concretização, a materialização da interpretação como ato de sentido de uma determinada comunidade” (COSSON, 2012, p. 65) - está relacionado à construção de sentido interpessoal e coletivamente pela turma e ao compartilhar sentidos. A produção literária consiste na elaboração de textos de gêneros literários e de crítica literária pelos alunos, a partir de temáticas de seus cotidianos, prezando pela estética e estrutura textual, por meio da qual os alunos experimentam, na prática, o estético e o literário. Tendo consciência de que a produção textual dos alunos, na escola, quase sempre não tem objetivos, o que desestimula-os ao produzirem seus textos, já que ao em vez de produzirem nos textos diálogos, criação estética, análises literárias, exposições de ideias, argumentações e interações com outros sujeitos sócios-históricos-ideológicos por meio da escrita, estão apenas “realizando estratégias de preenchimento da folha de papel em branco [fazendo] a atividade de escrita torna-se artificial, porque aparentemente monológica” (MENDONÇA, 2007, p. 292). Tendo em vista um objetivo para as produções literárias feitas pelos alunos do letramento literário, pensamos na etapa seguinte. A exposição é o compartilhamento das produções literárias e análises literárias entre os alunos da comunidade de leitores, com o objetivo dos alunos apreciarem as produções dos outros por meio da leitura em voz alta, colagem em mural de leitura ou varal literário, para que os alunos exibam seus trabalhos aos seus colegas de classe e à comunidade escolar.

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Durante as aulas do projeto prepararemos os alunos para penetrar no texto por meio de dinâmicas e, para isso, apresentaremos o texto de um dos gêneros literários que serão trabalhados (conto, poema, fábula e crônica) seu autor, em seguida leremos o texto, enfatizando as etapas básicas do processo de leitura antecipação, decifração do código e interpretação e as estratégias inferência, visualização, sumarização e síntese (COSSON, versão on-line, p. 105, 106), adiante faremos a construção individual e coletiva de sentidos, eles produzirão textos literários dos gêneros dos textos trabalhados e, por fim, exporão suas produções para a turma. No decorrer da aplicação essa sequência pode ser alterada e ampliada para que se adeque às necessidades e especificidades apresentadas pelo nosso público-alvo, pois o próprio Cosson (2012) alerta que existem inúmeras “possibilidades de combinação que se multiplicam de acordo com os interesses, textos e contexto da comunidade de leitores” (COSSON, 2012, p. 48), considerando essa sequência como um exemplo e não um modelo metodológico a ser seguido cegamente. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da pesquisa teórica feita sobre o ensino de literatura por meio deste trabalho, pudemos depreender que o principal objetivo do ensino de literatura na escola é fazer com que o alunado experimente – na prática, diga-se de passagem –, por meio da leitura literária e suas estratégias para produção de sentido do texto, a essência da literatura, que é a sua literariedade, seus recursos de expressão e o uso estético da linguagem, observando os conteúdos vinculados por essa arte e, principalmente, o modo literário como está vinculada, que lhe dá o estatuto humanizador. Compreendemos com a discussão da escolarização da literatura, priorizando a perspectiva que tem a relação entre escolarização e literatura como a apropriação desta pela escola visando seus objetivos pedagógicos, que esse processo, que é inevitável e intrínseco a escola/instituição de ensino, em si não é o vilão do mau uso feito pela escola da literatura, motivo pelo qual carrega sentido pejorativo, mas sim a escolarização inadequada da literatura. Visando a escolarização adequada da literatura, propomos na perspectiva do letramento literário, que trabalha a literatura enquanto construção literária de sentidos, contemplar os usos sociais da leitura e da escrita da língua materna, utilizando uma das metodologias proposta pelo autor Rildo Cosson e propondo adaptações. Aqui chamada de “sequência básica”, este método é composto pelas etapas de motivação, introdução, leitura, interpretação, produção literária e exposição, que pode e deve ser adaptada, modificada e reorganizada de acordo com as necessidades que a comunidade de leitores contemplada apresenta. Acreditamos que essa “sequência básica” se constitui como uma metodologia adequada de escolarização, primeiro porque coloca no centro do “ensino” da/sobre a/por meio da literatura o texto literário, e não o utilizando para exemplificar características de períodos literários, contexto históricos e/ou apresentar biografia de autores canônicos como acontece tradicionalmente nas aulas de literatura na maioria das escolas de ensino básico de nosso país. Segundo porque trabalha aspectos internos do texto literário por meio da ênfase em aspectos estruturais e estéticos, permitindo um letramento estético do alunado, por meio da vivência do literário e, também, ao explorar os aspectos externos – mas que são tratados nos textos – dá ênfase aos aspectos temáticos, ideológicos, econômicos, sociais, culturais e históricos, permitindo um letramento social ao alunado, através de debates e discussões que estimulam à consciência crítica dos alunos, tornando-os cidadãos consciente de seus deveres e direitos, ou seja, humanizados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HEATHCLIFF UCHIHA: UM ESTUDO SOB A PERSPECTIVA DA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO DE BRONTE E KISHIMOTO LEONAM DE ANDRADE NEVES - UEPA SANDRA MINA TAKAKURA- UEPA O Morro dos Ventos Uivantes (1847) de Emily Bronte (1818-1848) é considerado um clássico na literatura inglesa e seu personagem principal Heathcliff tem levantado diversas discussões na crítica acerca de sua personalidade por vezes demoníaca, por vezes racializada e por vezes patológico. Para se compreendê-lo é primordial que no momento da leitura o leitor possa associá-lo com o seu conhecimento de mundo e estabelecer um diálogo com a obra. Dessa forma, a recepção de uma obra normalmente é realizada através da ordem cronológica de produção das mesmas. Por exemplo, lia-se a estória da Alice no País das Maravilhas de Lewis Caroll e posteriormente se tinha acesso ao filme ou animação do mesmo. Nesse caso, o livro de Caroll prepararia o terreno para a experiência do filme. No entanto, o que se nota é que atualmente cada vez mais a literatura não consegue chegar diretamente no leitor, muitas vezes devido à dificuldade na linguagem rebuscada de metafórica como é o caso do romance O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Bronte. Uma das formas encontradas para se trabalhar a compreensão de um romance com duas gerações de duas famílias interagindo em conflitos muitas vezes triangulares, uma forma é acessar experiências prévias que permitem que o leitor possa transpor ao livro no momento da leitura do mesmo. E uma das formas acessíveis ao leitor da nova geração são as produções culturais de massa como os gibis japoneses ou mangas e as suas adaptações ao meio de animações televisionadas ou facilmente acessíveis através da hospedagem em sites de vídeo. Tendo essa premissa como base, a presente pesquisa visa contrastar o personagem Heathcliff do romance O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Bronte com o personagem Sasuke Uchiha da animação Naruto (2002-2007) de dirigido por Hayato Date adaptação do mangá de mesmo nome de Masashi Kishimoto (1999-) através da perspectiva da Estética da Recepção de Jauss (1994). A animação Naruto está fazendo sucesso até os dias atuais, com a perseverança desse ninja em proteger a sua vila e se tornar o líder mais importante, poderoso e influente em sua aldeia, sendo reconhecido por todos habitantes desse lugar como Hokage. E, de acordo com o dicionário Weblio (2014) de termos arcaicos japoneses, hokage é formada por dois ideogramas, ou seja, a combinação de chama ou fogo com sombra; portanto significa tanto o brilho proveniente do fogo; e a sombra ou formas decorrentes do brilho do fogo. Dessa forma, a palavra Hokage na narrativa de Naruto pode carregar um duplo sentido daquele que traz a luz do fogo, mas que também carrega a sombra, ou seja, seria possuidor de um poder que poderia ser usado tanto para o bem comum, assim como para trazer destruição da vila. Sasuke pode ser considerado o arqui-inimigo de Naruto, pois sempre teve se opôs a ele desde criança, sendo o seu concorrente uma vez que possuía o mesmo objetivo de se tornar Hokage. No entanto, o objetivo de Sasuke não é nobre, pois se tornando Hokage iria se vingar da vila através do poder que esse líder pode exercer, uma vez que ele culpava a mesma pela decisão de seu irmão Itachi Uchiha que sacrificara os próprios pais deixando somente o irmão Sasuke vivo, esse sacrifício foi necessário para que impedisse que os membros do clã que ele fazia parte, os Uchihas, não dessem um golpe de estado provocando uma nova guerra sangrenta. Assim, Sasuke treinou em toda sua adolescência para ser um ninja mais forte e poderoso que seu irmão para matá-lo, e buscou meios obscuros para obter tal poder. Quando ele alcançou o seu objetivo com a ajuda de outros ninjas no qual desprezou em seguida, descobriu toda verdade a respeito da ação do irmão relatado por um antigo parceiro de Itachi. Com a revelação da verdade, Sasuke pretende vingar-se da vila, porém possuindo o poder do Hokage.

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O presente estudo foi realizado através da leitura da obra de Bronte; observação da animação dirigida por Date e estudo dos personagens escolhidos sob os conceitos de Jauss e da Psicanálise Lacaniana (In: ANDRADE, 1992) que por sua vez faz uma relação das características de ambos os personagens. Dessa forma a partir da analise feita, encontra-se fatos parecidos na vida deles que ratifica tal relação. As obras estavam “seguindo a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra” (JAUSS, 1994, p.6). Ou seja, antes da literatura moderna não se contemplavam a Historicidade da literatura, foco diálogo estabelecido entre a obra e o leitor. Jauss explica sua teoria sobre o Aspecto Recepcional: o leitor visualiza a obra dentro de sua prática cotidiana. E, o conceito de historicidade segundo Jauss (1994, p.8), é definido pelas premissas: [...] a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório no desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios de recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto a posteridade.

Assim, Jauss (1994, p. 19) reconhece a importância da historicidade, pois, “a interpretação deve levar em conta também a sua relação com outras formas existentes anteriormente a ela. Com isso, a escola formalista começou a buscar seu próprio caminho de volta rumo a historia.” Desse jeito, quando um leitor lê uma obra ele associa com outras experiências de leitura anteriores a ela. Por exemplo, ao se ler a acerca da caracterização do personagem Heathcliff, pode se associar com o personagem da animação Naruto, chamado Sasuke Uchiha através da construção psicológica de ambos os personagens, sendo que pelas estruturas de análise clínicas de Lacan, eles se enquadram na descrição de perverso. Segundo o dicionário inFormal (2009-2014), perversão é: [...] empregado para designar atos e pensamentos de uma pessoa má. Este é o sentido mais popular. Do ponto de vista psicológico, perversão define um quadro ou síndrome patológico, no qual o (a) individuo (a) busca encontrar prazer enquanto uma outra pessoa sofre, ou seja, o sofrimento, a dor do seu semelhante lhe causa prazer[ ...].

Na tabela abaixo é possível identificar algumas características intrínsecas do perverso em destaque, em oposição às estruturas do neurótico e do psicótico: Perversão

Neurose

Psicose

Psicopata

Histérico (somatizado)

Neurótico Esquizofrênico Depressivo Surto psicótico (louco)

Desmentir

Recalcar

Foracluir

O que foi desmentido volta como objeto.

O que foi recalcado volta como O que foi foracluído volta no Real. Simbólico. (alucinação, delírio)

No senso comum, imaginam-se psicopatas como loucos e antissociais, porém eles não se percebem como tais e pensam que estão à frente na linha evolutiva do homo sapiens, às vezes como deuses. Eles não possuem uma atividade emocional profunda, ou seja, não tem remorsos dos seus atos e são impetuosos. Assim, após um estudo da psicanálise, por essa razão se encaixam na perversão.

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Dessa forma, o perverso que desmente a castração da mãe se põe como um objeto de fetiche da mãe. O perverso se popularizou na figura dos seriais killers psicopatas na mídia, de acordo com o site da Discovery Channel, este que ensina como reconhecer um psicopata através de vinte características comportamentais das quais foram selecionadas quatorze: Problemas na infância Delinquentes na juventude Egoísta Manipulador Frio/Empático Irresponsável Impaciente

Mentiroso Patológico Sem Remorso Parasitas Emocional instável Vingativo Boa oratória Autoestima exagerada

Assim, podem-se perceber algumas características de Heathcliff que são produto de suas ações e de suas palavras como sendo vingativo, como se nota em: “Estou vendo se descubro qual a melhor maneira de me vingar do Hindley. Pode levar o tempo que for preciso, mas só descanso quando me vingar” (BRONTE, 1847, p. 56). Dessa forma, pode-se fazer uma analogia entre o Heathcliff e o Sasuke Uchiha, do anime e manga Naruto, que também foi recepcionado como sendo vingativo, o que vai ao encontro com uma forte ligação com a vingança de Heathcliff. Segundo Kishimoto (1999) conseguiríamos notar isto no fragmento a seguir em uma fala do Sasuke: “E por um tempo, eu pensei que eu poderia escolher esse caminho... mas no final... Eu decidi na vingança. Esse sempre foi o meu propósito de vida”. Poderíamos notar outras similaridades em algumas falas dos personagens como o parasitismo e a manipulação quando Heathcliff disse para Nelly o interesse de ficar com a guarda do filho, Linton, em: “[...] o meu filho é o futuro dono do sítio onde tu moras e eu não quero que ele morra antes de me fazer seu herdeiro” (BRONTE, 1847, p. 179); e quando Sasuke diz para o personagem Suigetsu o motivo de recrutar Karin para matar o próprio irmão: “Mas ela tem habilidades únicas. E eu preciso delas”. (KISHIMOTO, cap. 348, p. 4). Além desses fatos que igualam Heathcliff e Sasuke, nota-se que ambos no decorrer de suas vidas tiveram problemas quando crianças e na juventude. Heathcliff foi abusado fisicamente e psicologicamente por Hindley em sua toda sua infância e Sasuke presenciou a morte dos pais pelo seu irmão mais velho. Após esses fatos cruciais, ambos começaram a arquitetar suas respectivas vinganças, no qual não descansaram até atingi-las. E na juventude, Heathcliff buscou meios inconvenientes para ter sua fortuna e respectivamente ampliá-la. E, Sasuke a cada etapa de sua vingança concluída, obtinha um novo poder para se tornar mais forte que antes. Heathcliff vê Edgar Linton como o seu opositor, pois o senhor Linton casou-se com a mulher que ele amava descontroladamente. Esse foi o principal evento que exacerbou rivalidade entre eles. É importante salientar que esse ódio é decorrente desde o começo da narrativa, pois Heathcliff era um cigano adotado pelos Earnshaws, que vivia em uma decadência econômica, o mesmo pouco recebera um tratamento humano e, portanto teve poucas chances de gozar uma existência social de fato. Enquanto que, Edgar Linton representa o seu oposto, sendo criado em uma excelente família, tinha a sua existência social garantida pela segurança e pelo conforto propiciados pela fatura econômica. Nota-se que a diferença discrepante entre os personagens, que ratificou o ódio do protagonista Heathcliff pelo abastado Linton que se casa com Catherine, possuindo o seu objeto de desejo mais cobiçado. Por outro lado, Sasuke vê Naruto como o seu inimigo desde o tempo em que eles começaram a estudar juntos. Naruto sempre se opôs à vingança do Sasuke, pois para ele esse não era a melhor forma de trazer os pais dele de volta. Então, o caminho que Naruto

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encontrou para tal objetivo foi sempre superando o seu amigo para impedi-lo de realizar a sua vingança, através de sua dedicação e treino que superavam as do amigo. No entanto, Sasuke optou por ser mais forte através de um poder obscuro, sendo treinado por ninjas mais perigosos e poderosos no mundo ninja. Nota-se que um fato infeliz pode ser o estopim para o ato vingativo de ambos os personagens, porém no decorrer de suas vidas houve diversos eventos que reforçaram os seus desejos de vingança. Portanto, os emocionais dos personagens ficam abalados devidos o planejamento de vingança deles. Podemos notar isso em uma conversa de Heathcliff e Nelly, em que ele reconhece ser uma pessoal emocionalmente instável: “Sei que os desabafos não me aliviam; mas podem, pelo menos, explicar algumas das minhas aparentemente inexplicáveis alterações de humor. Meu Deus! Tem sido dura a luta. Quem dera que acabasse!”. (BRONTE, 1847, p. 280). E o mesmo ocorre com o Sasuke que quando se despediu pela ultima vez do seu irmão disse: “Como você vai sempre existir para proteger a vila... então eu vou destruí-la. Adeus... irmão.” (KISHIMOTO, cap. 589, p. 9). Entretanto, depois de ser convencido pelos antigos Hokages que ele estava errado sobre a sua forma de vingança ele disse para sua antiga companheira de grupo, Sakura, a razão de estar ajudando eles contra um inimigo mais forte que todos, o que se nota em: “Muitas coisas aconteceram... mas eu decidi proteger a vila, e eu... vou me tornar Hokage” (KISHIMOTO, cap. 631, p. 12). Nessa fala, é possível notar o quão dissimulado é o personagem Sasuke que demonstra o interesse de se torna o líder da vila para que posteriormente ele consiga completar sua vingança. Por esses eventos, Sasuke e Heathcliff também são considerados mentirosos patológicos, ou seja, tem a necessidade de mentir com excessiva frequência para justificar e alcançar os seus objetivos utilizando a artimanha da mentira constante, enganando a todos ao seu redor. No decorrer das histórias dos personagens, percebe-se que eles não sentem remorsos pelas suas atitudes malignas, pois se acham superiores, donos da verdade e verdadeiros deuses. Sendo assim, são adeptos dos fins justificarem os meios. CONCLUSÃO O estudo mostra que o personagem Heathcliff pode ser relacionado com Sasuke Uchiha, pois demonstram muito pontos em comum. Ambos sendo perversos tentam realizar suas vinganças a cima de tudo, e para isso utilizam as suas artimanhas para alcançar os seus objetivos. Assim, encontramos características e trajetos de vida parecida desses personagens tão demoníacos. No qual, não mediram esforços perversos para tramar e usufruir de vantagens tiradas de todas as pessoas que estiveram aos seus redores, manipulando diversas situações em seus próprios benefícios. BIBLIOGRAFIA BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. Traduzido em Português. São Paulo: Lua de Papel, 2009. HOKAGE. Weblio: Kogojiten. 2014 Versão Impressa: Gakken 2014 Disponível em: < http://kobun.weblio.jp/content/%E7%81%AB%E5%BD%B1>Acesso em 18 de agosto de 2014

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HUERTA, Pablo. Vinte maneiras de reconhecer um psicopata. Investigação Discovery. Discovery Channel. 2014 Disponível em: < http://id.discoverybrasil.uol.com.br/20-maneirasde-detectar-um-psicopata/> Acesso em 4 de junho de 2014 Frases de Sasuke Uchiha. Disponível em: Acesso em 14 de julho de 2014 COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da Recepção e Teoria do Efeito. Secretaria de Educação do Paraná. Educação Dia a dia. Disponível em: Acesso em 14 de julho de 2014 Perversão. Dicionário Informal. 2009-2014 Rádio e Televisão Record. 2009-2014 http://www.dicionarioinformal.com.br/pervers%C3%A3o/ O PAPEL MATERNO DE NELLY DEAN: UM ESTUDO FEMINISTA DE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES LEONARDO BARATA AMARAL (UEPA) SANDRA MINA TAKAKURA (UEPA) Morro dos Ventos Uivantes (1847), com o título original em língua inglesa Wuthering Heights, é um romance de Emily Brontë (1818 – 1848) clássico da literatura escrito por uma mulher no século XIX, um feito incomum na época. A princípio, negligenciado pela sociedade pela temática social e por questões de gênero que o mesmo abordava, o livro é revisitado através de novas propostas de leituras e de estudo. O foco de críticas relacionado ao livro converge para a relação central entre duas personagens pertencentes a grupos minoritários, a mulher representada por Catherine Earnhsaw e o cigano Heathcliff. Adotando uma perspectiva da Ginocrítica, definida por Elaine Showalter, pode-se perceber que é possível traçar um paralelo entre a ansiedade da autora e a ansiedade presente na obra, uma vez que: “women's writing is a 'double-voiced discourse' that always embodies the social, literary, and cultural heritages of both the muted and the dominant” (SHOWALTER, 1981, p. 201) Bronte fala do círculo mudo da mulher numa tentativa de transpor as suas experiências enquanto mulher em sua escrita, uma vez que era órfã e muitos dos personagens vivem a mesma situação. No entanto, a escritora acaba por transmitir o discurso do círculo dominante falando dos papéis da mulher enquanto mãe, e da ausência/presença da mãe e das mães postiças que formavam e nutriam a sociedade Vitoriana. Esse trabalho pretende analisar a personagem Ellen (Nelly) Dean sob a abordagem da ginocrítica focando de que forma as experiências de Emily Bronte são transpostas na ansiedade da maternidade e da orfandade na obra, explorando noções de mãe, maternidade, relações de trabalho e o contexto cultural. Com base nas teorias de Elaine Showalter, esse estudo focará nos papéis assumidos por Nelly de assalariada, o papel de mãe, pois a obra quebra com paradigmas sociais. Em que momentos Ellen transita entre o seu papel de assalariada e o de figura materna? Ainda, tentará responder as seguintes questões: Existe uma relação entre o fato de ela ser uma assalariada e o papel materno que ela assume em uma espécie de política do corpo nos círculos públicos e privados? E, finalmente, de que modo a escrita feminina da autora Emily Bronte trata a ansiedade da maternidade e da orfandade no romance como reflexo de suas experiências enquanto mulher?

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Nelly, narradora-personagem da história, que se alastra por duas gerações que serão referidas como fases. A primeira fase do livro Nelly é uma serviçal na casa dos Earnshaw, em Wuthering Heights, quando os personagens Catherine, Heathcliff ainda são crianças, e ela e Hindley possuem idades semelhantes. Desde sua juventude a personagem já apresenta algumas características maternais, no qual acaba assumindo o papel que é herdado da mãe, de governanta. Na segunda fase na casa dos Linton, em Trushcross Grange, Nelly está adulta e passa a cuidar da filha de Catherine Earnshaw e Edgar Linton. Um aspecto em comum entre ambas essas fases é o fato de que nos dois momentos Nelly está presente em lugares onde existem crianças órfãs de mãe. Com isso, Nelly representa para todos os personagens um papel materno, visto que todos ao seu redor recorrem a sua ajuda e seus conselhos. É importante ressaltar que ela se sobrepõe até mesmo aos patriarcas de ambas as famílias, uma vez que Nelly assume o comando das casas por diversas vezes. No entanto, esse poder é volátil e instável, e ela por vezes se retrai, pois percebe o contexto em que está inserida, sendo apenas uma assalariada de ambas as famílias, o que não legitima o seu direito de se envolver profundamente nos conflitos familiares. Um dos papéis ocupados por Nelly é o de mãe, que de acordo com Badinter (1985, p. 25) pode-se definir tradicionalmente através de um modelo familiar à medida que seu papel é configurado sempre em relação ao marido/pai e filho: A mãe, no sentido habitual da palavra (isto é, a mulher casada que tem filhos legítimos), é uma personagem relativa e tridimensional. Relativa porque ela só se concebe em relação ao pai e ao filho. Tridimensional porque, além dessa dupla relação, a mãe é também uma mulher, isto é, um ser específico dotado de aspirações próprias que freqüentemente nada têm a ver com as do esposo ou com os desejos do filho.

No entanto, é possível notar que a autora também ressalta que esse conceito pode ser revisado, a partir do momento em que “[...] qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a ama, etc.) pode ‘maternar’ uma criança.” (BADINTER, 1985, p.17). Visto isso, cabe analisar que não apenas é mãe a mulher que é casada, pode-se encontrar o papel materno em qualquer indivíduo, independente de gênero, classe e se tal mantém laços de consanguinidade com a criança. Ao direcionarmos tais conceitos para a obra de Brontë, visualizamos que a personagem Nelly Dean representa para alguns personagens da obra o papel materno, uma vez que não há uma figura materna de fato nas famílias Earnshaw e Linton, uma vez que em ambas as residências os papéis das matriarcas são suprimidos. E Nelly ao herdar o cargo de serviçal de sua mãe que trabalhara na casa dos Earnshaw em Wujthering Heights, fato comum nas famílias oitocentistas, faz com que seu papel social se misture a um papel biológico que é designado as mulheres, o papel de mãe. Na primeira fase do livro, ainda temos a morte prematura de Frances ao dar à luz ao seu único filho com Hindley, Hareton Earnshaw, Nelly então acaba o criando também por um breve intervalo de tempo. Pois, Heathcliff ao voltar de sua viagem a Liverpool toma o menino da guarda de seu pai juntamente com Nelly e Catherine. A relação de Nelly com Hareton era de grande estima, pois havia se apegado ao menino, como uma mãe que ama seu filho, como se nota em: “É engraçado pensar isso, mas não me resta a mínima dúvida de que ele esqueceu completamente Ellen Dean; no entanto houve tempo em que, para ela, Hareton valia mais que o mundo inteiro e ela para ele também (BRONTE, 2010, p. 114) Um fato implicitamente retratado na obra é a morte de todas as personagens femininas que casaram e geraram filhos. Primeiramente, existe a mãe de Hindley e Catherine, que é apenas mencionada na obra, pois essa já havia falecido; logo após sucede o falecimento de Francis Earnshaw ao ter seu filho com Hindley, deixando Hareton orfão, seguida por

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Catherine, que falece no mesmo contexto que cunhada, ao dar à luz a sua única filha com Edgar Linton, a Catherine Linton. Existe ainda a personagem Isabella Linton, que falece em Liverpool após abandonar seu casamento doentio e obsessivo com Heathcliff, deixando órfão Linton Heathcliff. No entanto, Ellen e Catherine Linton permanecem vivas, pois nenhuma tinha casado e nem possui filhos. Emily, ao contrário, mata as mulheres casadas do seu romance. Com a exceção das apagadas matriarcas, as senhoras Earnshaw e Linton, as demais morrem ao dar à luz. As únicas sobreviventes são: a narradora Nelly Dean e a filha de Cathy, Catherine [...]. (DIAS, 2012, p.18)

Ellen Dean (Nelly) é narradora-personagem e a única personagem que perpassa por todos os momentos importantes da vida e da criação das crianças que se tornaram órfãs de mãe no romance. Na segunda parte do livro, já na casa dos Linton, ela cuida de Catherine Earnshaw, Heathcliff e Catherine Linton assumindo um papel materno na casa. Devido a essa representação, muitas vezes os personagens procuram Nelly para desabafar e ouvir seus conselhos quase maternos. Entretanto, ela sustenta uma postura mais contida, pois percebe o contexto em que está inserida, sendo apenas uma assalariada da família. – Pois aceitei, Nelly. Ande, diga depressa se fiz mal! – Aceitou? Então que adianta agora discutir o caso? Já deu sua palavra, não pode voltar atrás. – Mas diga se eu devia ter respondido assim, diga! – exclamou Cathy, mais agastada ainda. Esfregava as mãos, franzia a testa. – Tenho que ponderar ainda muito as coisas, antes de responder direito à sua pergunta – foi minha sentenciosa resposta. (BRONTË, 2010, p.99)

O fato de perpassar por duas gerações da família, realça o papel da personagem ser uma sobrevivente também, o que segundo Gubar e Gilbert (1984) é umas das características que uma narradora que é personagem deve apresentar. Na obra, Nelly sempre mantém um ar de saúde e vida, no qual Brontë mostra um caráter saudável que é atribuído a personagem, uma vez que muitos personagens perecem por enfermidades retratadas no período oitocentista. O ato de amamentar representa simbolicamente, um dos principais atos da maternidade, leia-se que esse ato pode acontecer tanto com a mãe biológica ou com as chamadas “mães de leite”. Inicialmente com a amamentação e posteriormente com alimentos sólidos, a figura materna assume um papel crucial em um núcleo familiar de nutrir os membros da família. Sendo que essa nutrição pode ser tanto no sentido orgânico de nutrição de corpo que dá a vida, assim como a nutrição cultural, do corpo que passa a assumir papéis sociais. Pode-se notar em O Morro dos Ventos Uivantes que Nelly se preocupa em alimentar aos outros personagens, e estando na cozinha prepara o porridge para a família. Essa preocupação é clara quando esta responde ao Sr. Earnshaw que deseja frutas como presentes de sua viagem a Liverpool: Hindley pediu uma rabeca. O patrão volveu-se para a srta. Cathy, que ainda não tinha 6 anos, mas já montava qualquer cavalo da cocheira; pediu, portanto, um chicote. Não fui esquecida: o amo tinha bom coração, embora se mostrasse severo. Prometeu-me trazer um pacote de maçãs e peras (BRONTË, 2010, p. 48)

De acordo com Gilbert e Gubar (1984) simbolicamente a intenção de Nelly seria pedir as frutas não para seu consumo próprio, mas sim poder alimentar principalmente a família, principalmente os jovens Hindley e Catherine. A representação de Nelly como uma pessoa

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indelével e indefectível, que jamais sucede a qualquer tipo de doença, soa como um arauto àqueles que a própria cuida e pode ser vinculada duplamente a esse papel de uma progenitora que nutre sua cria tanto fisiologicamente quanto culturalmente. Gilbert e Gubar (1984) afirmam que essas características fazem com que Nelly seja uma “general mother”, ou seja, assume uma ideia geral de mulher tradicional aceita em sociedade. O alimento cultural se refere ao fato de que em toda a obra, enquanto essa narradorapersonagem visualiza que fatos desfavoráveis podem ocorrer, ela tenta guiar os personagens que ela toma como filhos, quase sendo um ato de domesticidade, pois essa tenta mostrar o certo e o errado para todos, “And similarly, she does not tell stories to participate in them herself, to consume emotional food they offer, but to create a moral meal, a didatic fare that will nourish future generations in docility” (GILBERT; GUBAR, 1984, p. 291). Assim como toda mãe, ela não apenas alimenta, mas tenta guia-los a seguir o melhor caminho. Segundo Gubar e Gilbert (1984) Nelly seria como uma parede, relacionado a ambos os lados, tanto o dos Earnshaw, quanto dos Linton, e essa seria muito diplomática com relação aos seus conselhos e advertências, pois evita assumir lados em um confronto na maioria das vezes. No entanto, Nelly em certos momentos, a exemplo da primeira fase do livro, quando a saúde do Sr. Earnshaw está abalada, Hindley submetia Heathcliff a abusos físicos. Após a morte do Sr. Earnshaw, Hindley assume o papel de patriarca, e em muitas situações quando castigava Heathcliff o punha para fora de casa para dormir no celeiro, e como punição o privava de alimentos. Nelly, mesmo que de forma inconspícua, confrontava o discurso do patriarca e alimentava Heathcliff, mostrando que mesmo existindo uma ordem patriarcal, ela não se submete de forma cega, analisa a situação e toma uma atitude. Outro exemplo seria da segunda fase do livro, quando deixa a sua imparcialidade de lado, como quando essa está estritamente em desacordo com os tratamentos recebidos por Catherine Linton quando Heathcliff a sequestra e aprisiona-a numa tentativa de casá-la com seu filho Linton Heathcliff, como vingança a Edgar Linton que casou com sua eterna amada Catherine Earnshaw. E, ao unir o seu filho Linton com a Catherine Linton, Heathcliff não só concretizaria sua vingança como também herdaria toda a herança a ser deixada a Catherine Linton, uma vez que a saúde de Linton era debilitada mesmo sendo muito jovem, e este fora obrigado a deixar um testamento no qual repassa a seu pai toda a riqueza de sua esposa. Na casa dos Lintons, tomando conta de Catherine mãe e filha, Nelly é inserida em um contexto onde ocorre uma inversão de valores, uma vez que o patriarca da casa, o Sr. Edgar Linton se mostra como uma figura sem autoridade, e que faz com que mais uma vez Nelly assuma o comando da vida dessa nova família. Ela é uma figura que mesmo morando na casa dos Linton pode fluir livremente por ambas as residências, isto é, circula entre os dois espaços privados. Like a wall of fixture, moreover, Nelly has a certain impassivity, a diplomatic immunity to entangling emotions. Though she sometimes expresses strong feelings about the action, she manages to avoid taking sides – or, rather, like a wall, she is related to both sides. Consequently, as the artist must, she can go anywhere and hear everything. (GILBERT; GUBAR, 1984, p. 290)

Analisando a obra pela perspectiva da Ginocrítica, definida por Elaine Showalter, pode-se perceber que há uma transposição da vida da autora para sua obra. Uma vez que Emily Bronte era órfã e muitos dos personagens vivem a mesma situação, tanto na família dos Earnshaw, quanto na família dos Linton, na primeira os personagens Catherine Earnshaw, Heathcliff e Hindley possuem apenas a figura paterna a seu lado; na segunda, Catherine Earnshaw morre ao dar luz a Catherine Linton, deixando-a literalmente órfã. A figura materna é apenas representada por Ellen durante a obra. De acordo com Gilbert e Gubar (1984) tanto Bronte quanto as personagens órfãs passam por experiências em comum, uma vez que todos

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passaram por situações de perda na vida. Ao transpor a ansiedade decorrente dessa experiência de perda para a sua escrita pode ser considerado uma forma de proteção, de defesa própria, ou até mesmo de transcendência, pois a narrativa mostra como as personagens lidam com as adversidades que lhes foram apresentadas durante a vida. Emily Brontë acaba por definir que ser mulher e o que é ser mãe, no período oitocentista, em uma sociedade permeada por valores patriarcais que moldam os papéis sociais. Através da construção da identidade feminina definida por Showalter, Nelly quebra com tais paradigmas sociais, pois pertencendo a uma classe assalariada menos privilegiada, adquire conhecimento literário por esforço próprio uma vez que esteve em contato com a camada economicamente privilegiada e obteve acesso a esses livros. Nelly narra o romance, narrando também a estória de sua própria vida e num diálogo com o senhor Lockwood que é ironicamente o outro narrador do romance, conta ter lido todos os livros da biblioteca do Sr. Edgar Linton: A Sra. Dean riu: – Na verdade, acho que sou mulher de juízo, e sossegada; mas não pelo fato de viver nestes morros e enxergar sempre as mesmas caras, e assistir sempre aos mesmo atos, de janeiro a dezembro; é que fui submetida a uma disciplina muito dura que me ensinou a ter tino; e além disso, tenho lido muito mais do que o senhor poderia imaginar, Sr. Lockwood. Não abrirá nesta biblioteca um livro que eu já não tenha lido – e dele tirado alguma coisa -, salvo os daquela prateleira, que são em grego e latim e francês. E, mesmo esses, sou capaz de os diferenciar um do outro. Creio que isso é o máximo que o senhor pode exigir da filha dum pobre homem do campo... (BRONTË, 2010, p. 81).

Ela também é uma das únicas personagens que não se casou, uma vez que a obra insinua que o casamento possivelmente tenha levado as personagens Catherine Earnshaw e Francis à morte, e que também teria assolado a vida de Isabella Linton. CONCLUSÃO: Tendo em vista a concepção Ginocrítica podemos analisar a obra O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë e a ansiedade da escritora e o como isso é transferido para a narrativa e como pode ser notada nas características de cada personagem. E assim podemos entender a maneira de agir e pensar das mulheres vitoriana, uma vez que elas muitas vezes tentam se desvencilhar dos grilhões patriarcais aos quais eram presas. O papel materno também analisado neste trabalho visa a reavaliação dos conceitos de maternidade, visto que o ato de maternar pode ser ligado a um não membro da família como o caso exposto de Nelly Dean, essa que assume um papel crucial na obra, uma vez em que todos os elementos que definem a vida dos personagens e seus destinos passa pelo intermédio da mesma. Nelly Dean é uma parte tão primordial da história retratada na obra de Brontë quanto os próprios protagonistas, Heathcliff e Catherine, pois a partir dela podemos analisar seus atos como a de uma matriarca que se sobressai a muitas figuras patriarcais que a obra retrata, e o fato de essa ser mulher e sua classe social ser um fator que moldava estereótipos, ela representa uma mãe, aos quais outros personagens recorrem. REFERÊNCIAS: BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Abril, 2010.

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DIAS, Daise Lilian Fosneca. A recepção crítica a o morro dos ventos uivantes: questões de mulher e literatura. Revista Graphos, vol. 14, nº 2, 2012 GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The madwoman in the attic: the woman writer and the nineteenth-century literary imagination. Yale University Press, 1984 SHOWALTER, Elaine. Feminist criticism in the wilderness. Critical Inquiry. Winter vol. 8, n. 2 Writing and Sexual Difference, University of Chicago Press. 1981, p. 179 – 205

VOZES QUE UIVAM NO SILÊNCIO: UMA ANÁLISE BAKHTIANIANA DE O MORRO DOS VENTOS UIVANTES MILENA VANESSA SILVA CUNHA (UEPA) JENNIFER THAYNNÁ DOS SANTOS DA SILVA (UEPA) IZABELLY KAROLINY BRITO BENTES (UEPA) SANDRA MINA TAKAKURA (UEPA)

INTRODUÇÃO O Morro dos Ventos Uivantes (1847) de Emily Brontë se destaca como uma obra que intriga os leitores e os críticos devido à complexidade de vozes que entrecortam a obra. Nelly Dean, uma servente na casa dos Earnshaws e na casa dos Lintons, narra uma estória de amor e ódio entre Heathcliff e Catherine, sendo que Heathcliff, um cigano, é marcado pelo amor que sente por Catherine enquanto é desprezado por dela. Em ambos os casos a memória está presente na fala das personagens e na fala de Nelly, que testemunha os acontecimentos. Este estudo objetiva realizar uma leitura sob o enfoque Bakhtiniano (2003; 2013) sobre a obra, explorando as relações dialógicas presentes. A metodologia adotada foi a dos 4 pontos traçados por Bakhtin (2003, p. 399): “A percepção psicofisiologica do signo físico”; “[a] compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua”; “compreensão de seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante)”; “compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância)”. Foram adotadas as noções de Bakhtin como dialogismo (alteridade, espelho e a memória), polifonia e cronotopo. Uma vez que as vozes das personagens Heathcliff e Catherine “se cruzam e [...] combinam duas consciências (a do eu e a do outro)” ocorre uma tensão de aproximação e distanciamento das vozes (BAKHTIN, 2003, p. 395), quando a voz de um torna-se a voz do outro e passam a existir um “para o outro com o auxílio do outro”, sendo que dessa forma um representa o espelho do outro (p. 395). De modo que a ausência do espelho, que é o referencial para o “eu” de Catherine, é o motivo que a leva à loucura. VOZES ENTRECORTADAS O Morro dos Ventos Uivantes62(2013) único romance da escritora britânica Emily Brontë, é considerado um clássico na literatura inglesa, onde seus personagens complexos se relacionam numa trama que se alastra por duas gerações de duas famílias, os Earnshaw e os Linton. O enredo gira em torno de Heathcliff, um coração livre que se endurece por ter sido vítimas de maldades. Abandonado pela jovem que ama, emprega toda sua força para se vingar das pessoas que provocaram a separação. Em um clima de ódio e revolta, Heathcliff vai aniquilando um por um, todos que considera seus inimigos. 62

Título original em língua inglesa Wuthering Heigths (1847).

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O clima tenso da obra não impede, todavia, a presença de um lirismo estranho e comovente, em que as misérias e as paixões humanas são tratadas de maneira incisiva. A metodologia de Bakhtin (2003, p. 399) se pauta em quatro formas de entendimento, sendo que a primeira é: “A percepção psicofisiológica do signo físico” que é a leitura do texto literário e compreensão dos diálogos e suas relações. O segundo ponto é: “[a] compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua” (BAKHTIN, 2003, p. 399). Os críticos a definem por obra romântica produzida no período Vitoriano, essa classificação romântica é em grande parte devido ao estudo dos temas góticos que abordam a subjetividade, o amor obsessivo, tendo natureza como o refúgio às problemáticas da civilização. A terceira forma de compreensão é: “compreensão de seu significado em dado contexto (mais próximo e mais distante)” (BAKHTIN, 2003, p. 399). A compreensão do texto no contexto de produção no Período Vitoriano se dá através dos valores e morais aceitos naquela sociedade patriarcal, pois através da cultura é que se faz a manutenção do status quo, das relações hierárquicas entre serventes e senhoras. Através da manutenção do papel submisso da mulher é que se mantém o núcleo familiar estável e uma sociedade comum, nesse contexto o casamento é adotado enquanto solução de problemas de moças solteiras, de famílias falidas e de bons negócios. E, finalmente a quarta compreensão equivale a: “compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância)” (BAKHTIN, 2003, p. 399), onde o estudo do dialogismo em “Wuthering Heigths” em torno das relações que se estabelecem entre os personagens, diálogos que podem se complementar ou não. “A pesquisa nas ciências humanas se configura num ato dialógico entre o eu e o outro, sendo que o eu se põe no lugar do outro, encontrando o “reflexo de mim mesmo no outro” e a completa fusão do eu e do outro.” (BAKHTIN, 2003, p. 394). Esse princípio de alteridade é notado de uma forma radical no falar de Catherine quando as duas consciências, a de Heathcliff e a de Catherine Earnshaw se fundem: Meu amor por Heathcliff, assemelha-se aos rochedos imotos que jazem por baixo do solo: fonte de alegria pouco aparente mas necessária. Nelly, eu sou Heathcliff! Ele está sempre, sempre, em meu pensamento. Não como um prazer, visto como nem sempre sou um prazer para mim mesma mas como meu próprio ser. (BRONTË, 2013, p. 100).

E o encontro entre o eu e o outro se faz além do pensamento, através da memória dos personagens, Nelly Dean, a servente, é que narra a estória de acontecimentos passados para Lockwood, por vezes refletindo a relação afetiva que teve com os personagens que fizeram parte da estória, por vezes sua consciência se fundindo com as consciências dos mesmos. A memória para Bakhtin pode ser vista como: “A história da autoconsciência concreta e o papel nela desempenhado pelo outro (amante) [; o] reflexo de mim mesmo no outro. A morte para mim e a morte para o outro [, a] memória.” (BAKHTIN, 2003, p. 394). Na personagem Nelly Dean, identificamos o conceito esboçado por Bakhtin de memória, pois sendo testemunha ocular de todos os acontecimentos, é capaz de especificá-los, com datas exatas dos fatos, como no seguinte trecho: Seja como for, se tenho de continuar minha história à maneira de uma verdadeira “comadre”, o melhor é não perder tempo. Em vez de saltar três anos, contentar-meei em passar para o verão seguinte... O verão de 1778, isto é, há quase 23 anos.63 (BRONTË, 2013, p. 78)

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Grifos da autora.

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Com a morte de Catherine, Heathcliff vê-se imerso em um universo ao qual julga não fazer parte, um universo onde tudo é memória, lembrança do objeto de devoção. Catherine era para Heathcliff o espelho, o referencial, assim como ele o era para ela, que em um primeiro momento, com a fuga de Heathcliff chega ‘às portas da loucura’. Em outro momento, onde o não há a presença do espelho para refletir o outro (a morte de Cathy), faz com que Heathcliff mergulhe em uma profunda solidão, em que, uma vida onde não se dispõe do referencial, da figura da pessoa amada, não há razão de ser vivida. Por fim, resta somente a memória, a lembrança dos fatos, o princípio e o fim, personificada em Nelly Dean, que assistiu o decorrer dos acontecimentos, a ruína de tudo, e de algum modo, a reconstrução. Este obra pode ser considerada como um romance polifônico, onde há as relações dialógicas entre o leitor e a obra e entre os próprios personagens, reforçando o conceito esboçado por Bakhtin (2013, p. 4) de polifonia, ou seja: A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental de romances de Dostoiévski.

Este fenômeno pode ser identificado em Catherine Earnshaw, que se vê em conflito entre o querer pautado em seu amor por Heathcliff o dever de libertá-lo do cotidiano de sofrimento, provação e abuso causados por seu irmão Hindley, casando-se com o rico Edgar Linton. Catherine encontra em Heathcliff, uma pessoa já estereotipada pela sociedade, um par, um discurso que conversa com o seu, onde ambos se complementam ainda que seus discursos estejam em constante convergência e divergência. No entanto, há um discurso exterior, o das convenções sociais, de que esta deve procurar manter o status, e ao casar com Edgar Linton, Catherine concorda e aceita este discurso, abdicando de toda uma vida que poderia ter sido feliz e não foi justamente pela contradição dos sentimentos e das atitudes, restando a morte como forma de redenção. A morte também pode ser considerada a solução para silenciar o discurso, convergindo a um monologismo. No entanto, o que se nota é que mesmo com a morte, Catherine não é silenciada, e Heathcliff busca continuamente acessar esse discurso através de sua memória, revisitando o local onde os dois passaram a infância como os campos do morro e o quarto de Catherine, memória que é materializada através dos objetos, como os livros e as anotações de Cathy, os chamados ‘hieróglifos’ para o personagem Lockwood. Essa polifonia ocorre devido ao local que os personagens ocupam em seus discursos, sendo que esse local chamado de cronotopia é visto através da relação intrínseca entre o tempo e o espaço. E, esse espaço passa a ser carregado nos corpos dos personagens do romance. O pai de Edgar Linton ao ver Heathcliff pela primeira vez, ler o discurso no corpo do Heathcliff, todas as características de um menino cigano que carrega em seu corpo o discurso pagão, contrário ao cristão e a estrutura social nômade. Heathcliff sob um viés tradicional não poderia ser visto de forma positiva: “É apenas um menino... No entanto, a perversidade se retrata no rosto dele. Não seria um benefício para a região enforcá-lo imediatamente, antes que ele mostre em atosa natureza que os seus traços revelam?” (BRONTE, 2013, p. 63). E nas duas casas, uma em cima do morro, habitação dos Earnshaws, e a outra no vale, a dos Lintons, nota-se duas noções de tempo diferentes. No morro, o dia a dia tem um ar pesado da dureza, de uma falta de rotina, tendo as crianças soltas ao ar livre como se fossem selvagens, cortados pelos sermões abusivos de Joseph e pelo espancamento de Heathcliff. No vale temos uma rotina harmônica dentro da casa iluminada e aconchegante, com as crianças

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permanecendo na sala de estar onde levam uma rotina de estudo e de troca de afetividade com os pais. A posição das casas também é um ponto a ser observada, a morada dos Earnshaws nos altos não representa superioridade economia ou elevação espiritual, ao contrário, esta é uma família decadente com diversos problemas tanto no âmbito afetivo quanto no financeiro. A atmosfera da casa também é pouco familiar e receptiva remetendo sempre a umidade e ao frio, tal frieza que também é característica de seus habitantes, como pode ser notada na narração do personagem Lockwood: Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes) é o nome da casa do Sr. Heathcliff. Wuthering é um significativo provincianismo que descreve o tumulto atmosférico a que está ela sujeita na época tempestuosa. Certo é que ali em cima sopra um ar puro e salubre, em qualquer estação. A força com que o vento norte passa por aquele cimo é provada pela excessiva inclinação de alguns enfezados abetos plantados em um extremo da casa e por uma aléia de magros espinheiros, que estendem os galhos de um lado só, como se implorassem uma esmola de sol. (BRONTË, 2013, p. 12)

Em contrapartida, os Linton que habitam no vale são pessoas respeitáveis, cultas e com posses, que atraem o interesse das pessoas do vilarejo, em especial da jovem Catherine. Esta que vê a possibilidade de não somente mudar sua realidade como também a de Heathcliff, casando-se com o primogênito Edgar Linton abdicando do seu amor de infância para adequar-se as convenções sociais. Por serem pessoas de posses, os Lintons vivem em uma residência altamente confortável, com um ar harmônico e aconchegante: Ah! Como era belo! ... um esplêndido salão, atapetado de vermelho, e cadeiras e mesas também cobertas de vermelho, um forro de um branco cintilante bordado de ouro, e no meio uma chuva de lágrimas de vidro suspensas de cadeias de prata e iluminada pela luz suave de pequenas velas. Os Lintons velhos não estavam ali. Edgar e sua irmã estavam sós. Não se julgariam eles felizes? (BRONTË, 2013, p. 61)

A fuga de Heathcliff após este escutar acerca do casamento de Catherine é um verdadeiro mistério que é marcado com o seu retorno. Heathcliff se livra aparentemente do discurso presente em seu corpo, essa mudança se dá pelo fato de que este esteve em um espaço e tempo diferentes, se moldou a outros discursos tornando-se um indivíduo abastado, adulto e maduro. Este retorna para se vingar de todos que ele considera culpados pelo seu passado de sofrimento mesmo que para isso precisasse passar por cima dos sentimentos e afetos que sentia por Catherine. Heathcliff em sua vingança mostra-se implacável, arquiteta e executa seu plano tornando-se aquilo que Catherine admirava, um homem respeitável e provido de posses, pois tornou-se o dono de Wuthering Heights e Thrushcross Grange. No entanto, ao ter sua vingança concretizada com a morte de Edgar Linton e o domínio das duas casas, Heathcliff vê-se imerso em uma intensa melancolia e frustração, pois vê o seu plano de vingança de toda uma vida ser aniquilado com a junção da segunda geração das duas famílias. Este assiste mais uma vez a ligação de um Earnshaw e uma Linton (Young Cathy e Hareton), restando-lhe somente a morte que, assim como foi para Catherine, é sinal de redenção perante a uma vida de amores, desilusões, vinganças e frustrações. CONCLUSÃO O estudo mostra que as posições sociais dos personagens Catherine e Heathcliff os impediu de viver um romance em sua plenitude, pois ao que tudo indica, o amor das personagens principais leva antes à destruição do que à felicidade. O princípio da alteridade

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presente nos personagens onde ‘um vive pelo outro e para o outro’ os leva a ora se aproximarem, ora se afastarem, pois são almas com o mesmo temperamento, do mesmo material, por serem tão idênticas, parecem funcionarem melhor afastadas uma da outra, de forma que ecoa no texto de Brontë, o que Bakhtin defende como ‘a morte para mim e a morte para o outro’. A morte não representa necessariamente o fim, pois um amor inefável com almas tão idênticas, que se apropriam do mesmo discurso, não se prende a esse plano, podendo perpetuar a outras gerações. A memória desse amor pode ser acessada tanto no relato de Nelly Dean, como nos objetos da casa ou nos campos do morro. E, portanto, essas vozes não são silenciadas. Essas vozes ecoam no silêncio. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. ______. O Romance Polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária. In: Problemas na Poética de Dostoiévski. 5º ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2013, p. 3- 51 BRONTË, Charlote. O Morro dos Ventos Uivantes. Trad. Oscar Mendes. 5ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2013 O ESTRANHO EROS DE MAX MARTINS JOSEBEL AKEL FARES (UEPA) NATÁLIA LIMA RIBEIRO (UEPA) Minha Arte pois que há uma canção em ti submarina uma promessa de água e soma um som premissa Eu Eros quero te dizer, disseminar, minar-te (Max Martins)

O EROS: O TRANSGRESSOR POÉTICO Eros, figura mitológica da antiguidade clássica, é uma temática abordada amiúde na poética universal. O valor do estudo sobre um fazer poético minado por tal tema se faz necessário quando tratamos de Max Martins. O eros, em M.M¹, pode ser relacionado com a figura clássica da mitologia: Eros filho de Póros (Expediente) e Penía (Necessidade) e foi concebido no Jardim dos Deuses, durante o banquete em que se festejava o nascimento de Afrodite. Dessa união nasce um ser que não é nem divino nem humano, mas intermediário entre as duas condições – um dáimon, um “gênio” ou um “demônio” –; nasce também com as qualidades do pai e da mãe. Assim, o amor é uma carência, uma falta que busca incessantemente ser suprida. Por ter nascido quando se comemorava o nascimento de Afrodite, torna-se seu companheiro e servo. Mas Eros, o Amor, é sobretudo a ânsia pela união de duas metades para formar o Ser íntegro, completo, que só por meio dele ascende à condição de plenitude. (OLIVEIRA, 2007, p.143)

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Seria então Eros a busca pela criação de um novo ser. Esse ser será diverso dos seus predecessores, e, como nos legitima Georges Bataille (1989), como também Arthur Schopenhauer (2005), a quebra do homem contra a sua própria finitude, transformando-se em outro ser. Esse Eros irá se disseminar na poética de M.M não como um simples tema, mas como materialização da busca de um novo ser. Segundo Bataille (1989): O erotismo, eu o disse, é aos meus olhos o desequilíbrio em que o próprio ser se põe conscientemente em questão. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer que, no erotismo, EU me perco. Não é, sem dúvida, uma situação privilegiada. Mas a perda voluntária implicada no erotismo é flagrante. (p.21)

E, nesse desiquilíbrio, nessa perda total, é que pode ser encontrada a poética erótica de M.M. Iremos observar as questões que são nos dadas nessa perda do Eu no poema a seguir:

(MARTINS, 2001, p. 176)

O Poema “a b a c a d a b r a”, pode ser lido como uma figura do órgão sexual feminino, por conta da forma e da disposição de cores das letras. A continuação do A, formando um triângulo, pode ser considerado como um ato de perde-se, e a linguagem também, sendo assim, não formando a palavra abracadabra, que em um rápido olhar, significa algo encantado, mágico. Porém, vamos observar essa questão de maneira mais apurada. Os ritos mágicos sempre foram associados à mulheres, que, desde a idade média, eram perseguidas por conta de usarem de elementos místicos, ou até profanos, para a realização de encantamentos. Novamente, temos a relação entre divino e demoníaco da própria figura mitológica de Eros. A terminologia Abracadabra pode ser definida como: Essa palavra viria da expressão hebraica abreg ad hàbra, que significa: arremessa teu raio até a morte.(...) A formulada abracadabra responde, nesse espírito, às mesmas preocupações que causaram a invenção de amuletos, talismãs ou pentáculos. Todas essas formulas , das quais Abracadabra é apenas um exemplo, apoiam-se num simbolismo muito antigo. Não se chegou até a fazer aproximações com nomes de Mitra, o deus solar, sacrificador e salvador? Tal como os amuletos, talismãs e pentáculos, todas elas procuram dar ao homem um sentimento de proteção, colocando-o em harmonia com as leis misteriosas que regem o mundo, e em relação a poderes superiores (CHEVALIER, 2000, p. 7-8).

Novamente, teremos o diálogo da obra com o sagrado e o profona, como a própria terminologia de abracadabra sugere. Esse destruir, e até se perder, despir não somente as roupas, mas as convenções sociais e tudo que a sociedade contemporânea prega, o (des) construir, através desse abismo o qual o

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erotismo nos lança. Esse misticismo ligado ao mágico, ao novo, pode ser um erotismo, colocando-se em frente aos questionamentos. Pensando apenas como a sociedade ocidental cristã, excluímos outras leituras que podem ser feitas. Em M.M, teremos a presença de outras maneiras de ver o sagrado, além daquelas que são prescritas na sociedade. Podemos dialogar, na figura do encantamento, como sagrado para dada cultura, e esse sagrado, como afirma Bataille(1989) De uma maneira fundamental, é sagrado o que é objeto de um interdito. O interdito que designa negativamente a coisa sagrada não tem só o poder de nos dar — no plano da religião — um sentimento de medo e terror. Este sentimento transforma-se em última instância em devoção; transforma-se em adoração. Os deuses, que encarnam o sagrado, fazem tremer os que os veneram, mas eles os veneram. Os homens são em um mesmo tempo submetidos a dois movimentos: o terror, que intimida, e a atração, que comanda o respeito fascinado. O interdito e a transgressão respondem a esses dois movimentos contraditórios: o interdito intimida, mas a fascinação introduz a transgressão. O interdito e o tabu não se opõem ao divino senão num sentido, mas o divino é o aspecto fascinante do interdito: é o interdito transfigurado. A mitologia compõe — às vezes ela embaralha — seus temas a partir desses dados. (p.45)

O erotismo em M.M também será encontrado na própria linguagem, na própria palavra:

(MARTINS, 2001, p. 175) No poema “Copulêtera” temos a união do homem (man) e da mulher (woman), dessa maneira, podemos encarar no Eros a provação do homem até a morte, já que na reprodução são colocados em jogo os seres limitados, descontínuos: Os seres que se reproduzem são distintos uns dos outros, e os seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles que os geraram. Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros certo interesse, mas ele é o único diretamente interessado. Só ele nasce. Só ele morre. Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade (BATAILLE, 1987)

Na união, há a construção de um novo ser, o entrelaçamento das letras, tornando não mais descontínuos, limitados, mas sim, recriando-se. No ensaio de “Da Morte Metafísica do Amor do Sofrimento do mundo”, Shopenhauer (2005) nos mostra sobre amor e afirma que esse é a eterna busca do homem se encontrar com a eternidade. Não nos apaixonamos por alguém, por alguma pessoa, mas sim pela possibilidade da eternização do homem, quebrando o ciclo do eterno retorno, da vida e da morte. No erotismo seremos algo além das instituições, seremos homem e animal, na criação de uma força que termine as limitações do ser: É na descontinuidade dos seres que através do erotismo atinge o seu aspecto sagrado. Se o mundo dos interditos é o profano, o mundo das transgressões é o do sagrado. É nessa esfera do sagrado que é negada a descontinuidade e é onde se experiência o misticismo proporcionado por esse erotismo (BATAILLE, 1987, p. 24).

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A própria poética quer se se renovar , podemos ver que o poema é caracterizado ser a união dos M de Max e o de Martins, recriando-se, tornando-se algo novo, como sua poética, que, apesar de sua morte, será eterna, pois conseguiu transgredir a literatura da maneira mais bela: usando o corpo da palavra. O erotismo põe o homem descontínuo em questão: Há na passagem da atitude normal ao desejo uma fascinação fundamental da morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Digo: a dissolução dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que nós somos. Mas no erotismo, menos ainda que na reprodução, a vida descontínua não está condenada, apesar de Sade, a desaparecer: ela está somente posta em questão. Ela deve ser incomodada, perturbada ao máximo. Existe uma busca de continuidade, mas em princípio somente se a continuidade, que só a morte dos seres descontínuos estabeleceria definitivamente, não triunfar. (BATAILLE, 1989, p. 14/15)

Podemos perceber uma relação do erotismo muito mais ligado ao ato de transgressão do que o próprio ato de reprodução no próximo: i.é.: um campo magnético apontavam limpas vitais as liberdades dos bicos dos seios raízes rebuscando (eu sem ver teu rosto a forma do próprio amor-próprio a doar-se a doer-se Ela de frende & de costas Com o mais que possível da ternura Esperando O justo renovo do corpo a promessa o rastilho que desce do cimo dos ombros dos flancos da espinha para a leitura das nádegas as linhas nítidas das palmas das mãos do princício do umbigo tuas águas de sépia empoçada sombria esperando (como esta língua solitária e cativa Também esperando sanguínea A tempestade (MARTINS, 2001, p. 69)

Podemos ler o poema como um ato sexual com apenas a finalidade do prazer, pois a questão colocada em jogo pelo poema está mais associada com um olhar erótico do que perpetuação. Aqui podemos relacionar a figura do Eros demoníaco, não com relação à coisas diabólicas, mas um Eros terreno, o qual se dissocia do eterno, divino, para encontrar-se no prazer da carne. Nos versos: “apontavam limpas vitais as liberdades / dos bicos dos seios raízes”, a questão que podemos suscitar é de que, no ato sexual, nos despimos de conceitos, de tudo que a sociedade impõe e faz do homem. A relação entre o erótico e transgressão é bastante nítida:

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Muitas vezes a transgressão do interesse não está menos sujeita a regras que o interdito. Não se trata de liberdade: em certo momento e bem nesse momento, isto é possível, tal é o sentido da transgressão. Desde que se cria um primeiro limite, podese deflagrar o impulso ilimitado à violência: as barreiras não são simplesmente abertas, pode ser até necessário, no momento da transgressão, afirmar a sua solidez. A preocupação com uma regra é às vezes maior na transgressão: pois é mais difícil limitar um tumulto uma vez começado (BATAILLE, 1989, p. 43).

Essa transgressão pode ser lida também nos versos: “o justo renovo do corpo/a promessa/ o rastilho”, esse renovo que o corpo se revela no ato sexual é uma questão que a poética nos lança: através do sexo, somos renovados? Pois, não precisamos de conceitos, na verdade devemos nos despir de todos os preceitos, de toda a religião, transgredindo com a própria finitude do ser, lançando no abismo do erótico. Essa transgressão pode ser, em até certos momentos, lido como um “rastilho”: s.m. fio coberto de pólvora ou de outra substância, para comunicar fogo a alguma coisa; aquilo que serve de causa imediata ou pretexto para o desencadeamento de um conflagração (BUENO, 1996, p. 553).

Dessa violência, resulta o ser colocado em questão, como sendo jogado em “tempestade”. Despindo-nos do que nos é conhecido, seguro, somos lançados para/como questões. E, quando isso acontece, qualquer lugar se torna seguro, se torna “Lugarejo”, até nos colocarmos em questionamento através do erotismo: O LUGAREJO Perda& ganho (de quem a chama) pomo Poema Sumo De pêssego & álcool Sobre a mesa, passos Precários sobre a neve Espiritual o mapa De conversação da longitude E o corte Musical De entre suas pernas O soante andarilho louco atravessando A autonomia soberana de um bosque de pinheiros “Estou realmente num lugarejo perdido” (a saber AQUI (AQUILO) (pelo clarão Azul) é o paraíso O Que era áspero à língua À ponta da palavra a ir-se A irem-se os mês olhos e ouvidos NELA Se decompondo o gosto A pérola macia (antes Que eu acabasse de dizê-la) Gosma Era isso (que eu perdia) Êxtase Ou este pós-escroto: “Quando chegarás?” (MARTINS, 2001, p. 70)

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A relação em que o homem se dá no erotismo pode ser equivalente, como vemos no verso, de “perda & ganho”. Perdemo-nos no erotismo, mas ganhamos questões e o ato de se questionar é elevar o ser a um patamar de incertezas. Esse sentimento de perda pode ser relacionado com uma transgressão do ser: Esse desejo de se perder, que trabalha intimamente cada ser humano, difere entretanto do desejo de morrer na medida em que ele é ambíguo: trata-se, sem dúvida, do desejo de morrer, mas é, ao mesmo tempo, o desejo de viver nos limites do possível e do impossível, com uma intensidade sempre maior. É o desejo de viver deixando de viver ou de morrer sem deixar de viver, o desejo de um estado extremo que talvez só Santa Teresa tenha descrito com tanta força, ao dizer: "Morro de não morrer!" Mas a morte de não morrer não é precisamente a morte, é o estado extremo da vida; se eu morro de não morrer, é com a condição de viver: é a morte que, vivendo, eu experimento, continuando a viver. Santa Teresa sentiu-se transtornada, mas não morreu realmente do desejo que teve de se perder. Ela perdeu o controle de si, não fez senão viver mais violentamente, tão violentamente que conseguiu dizer para si mesma que estava perto de morrer, mas de uma morte que, exasperando-a, não fazia estancar a vida. (BATAILLE, 1989, p. 155)

O lugar perdido, agora achado, e no encontro, há a perda, a claridade e o clarão nos levarão para as incertezas que o eu-lírico atravessa, essa travessia é evidenciada nos versos: “De entre suas pernas/ O soante andarilho louco atravessando/ A autonomia soberana de um bosque de pinheiros”. O erotismo é um jogo de perdas e ganhos, que só poderão ser experimentados por uma travessia de transgressão do ser. Dessa maneira, nunca chegaremos a tal resposta, na verdade, sempre terminamos com mais questões, assim como termina o poema: “Quando chegarás?”. Podemos inferir no movimento dessa travessia que sempre chegará na perda, e essa perda nos lançará no abismo das questões universais que abordam a literatura. CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo apresentado teve como proposta não fazer uma análise de uma poética que sempre se despiu de rótulos, na verdade, o objetivo maior foi lançar questões quanto erotismo e o ser, fazendo um paralelo de como ele se materializa em relação à obra de M.M. Trazer questões universais, as quais a poética desse autor paraense foi construída, e não caindo apenas no regionalismo. Tais questionamentos não precisam de respostas, na verdade, precisam de novas questões. REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. — Porto Alegre : L&PM, 1987 BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. – São Paulo: FTD: LISA, 1996 CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. – 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. MARTINS, Max. Poemas reunidos, 1952 – 2001 –Belém : Editora da Universidade do Estado do Pará/ EDUFPA, 2001 OLIVEIRA, José Quintão de. “Eros e Psique”, de Fernando Pessoa: um poema múltiplo. Revista Alpha, UNIPAM (8): 142-154, nov. 2007

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SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte Metafísica do Amor do Sofrimento do mundo. São Paulo: Martin Claret, 2005

RASKÓLHNIKOV UM HOMEM NAPOLEÔNICO: UM ESTUDO ACERCA DO DISCURSO DE RASKÓLHNIKOV DE CRIME DE CASTIGO ODAISE BARRA MACHADO (UEPA) SANDRA MINA TAKAKURA (UEPA)

1 INTRODUÇÃO: Rodion Românovithc Raskólhnikov é o herói do romance Dostoievskiano Crime e Castigo (1866) um jovem que estudava direito em São Petersburgo (Rússia), seu nome significa “cisão” um homem atormentado. A extrema miséria levou Raskólhnikov a abandonar os estudos e viver com o dinheiro que conseguia empenhorando objetos com uma velha agiota. Todo o romance é escrito com o enfoque em Raskólhnikov, que é a personagem principal. Uma personagem construída de suas ideologias, de sua força e de uma alma que não podemos determinar com apenas um conceito, com apenas uma palavra. Raskólhnikov comete o assassinato de uma velha agiota Alíona Ivânovna, mas nem por isso podemos taxalo como um assassino comum. Apesar de um crime vil e pesado, há todo um contexto ideológico por trás dessa cena de crime. É notório o estudo de Bakhtin acerca da obra de Dostoiévski, que resultou no livro Problemas na Poética de Dostoiévski (2013). Esse artigo objetiva seguir a proposta de Bakhtin e esboçar um estudo partindo de noções Bakhtinianas de polifonia, consciência autônoma e ideia centrando-se no herói Raskólhnikov. Este trabalho não tem a justificativa de defender a atitude sem julgamento de valor, mas de estudar a complexidade do discurso de Raskólhnikov e as relações que resultaram no crime e posteriormente em seu arrependimento. Esse estudo irá seguir a metodologia da “compreensão ativo-dialógica” do corpus para se chegar aos complexos motivos ideológicos com os quais o herói constrói e se constrói na obra (BAKHTIN, 2003, p. 398). Dessa forma, este estudo objetiva traçar como Raskólhnikov dialoga com os discursos de injustiça social que segundo ele justifica o crime que ele cometeu, e o seu arrependimento tem relação com o discurso religioso que a prostituta Sônia internalizou. 2 RASKÓLHNIKOV E ALÍONA IVÂNOVNA: Raskólhnikov vivia na miséria, em um cubículo que ele alugara em São Petersburgo na Rússia, conseguia comer e beber porque a serviçal da senhoria que era dona do cubículo sentia compaixão pela sua situação. Para conseguir alguns rubros ele empenhorava objetos de valor com Alíona Ivânovna, que era uma velha agiota. Raskólhnikov sempre viu Alíona Ivânovna com desprezo, pois ela além de pagar tão miseravelmente pelos objetos que ele e os outros indivíduos em desespero levavam para empenhorar explorava e humilhava a própria irmã Lisavieta. Num ato de desespero, Raskólhnikov planeja e executa o assassinato de Alíona usando um machado, e acaba por matar Lisavieta que entra inesperadamente e assiste ao crime. Há duas explicações para que Raskólhnikov tenha cometido o crime de assassinar a velha agiota como será mais detalhado no tópico 3 deste trabalho. Com o crime consumado por Raskólhnikov, surge então o tema mais discutido na obra Crime e castigo que é a culpa, que corrói, mortifica e abate a personagem principal, não só em seu aspecto psicológico mas também em seu aspecto físico.

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Essa culpa que Raskólhnikov carrega consigo ora é um fardo, ora é um questionamento enquanto eu inserido em um contexto social complexo de relações de poder e de dominância. Ele se questiona o porquê de sentir tal culpa já que para ele a velha agiota não representa nem “uma pessoa humana”, uma representação discursiva que o fazia considerá-la tão medíocre quanto um “piolho”. Esse momentos de culpa e de não-culpa, ou seja, de ausência de culpa fazem com que os discursos de Raskólhnikov sejam permeados de suas ideologias próprias que entram em diálogo com o discurso social da justiça e, dessa forma, geram um conflito dentro do próprio Raskólhnikov, uma vez que: “A sua autoconsciência vive de sua inconclusibilidade, de seu caráter não fechado e de sua insolubilidade” (BAKHTIN, ano, p. 77). O que explica o conflito da personagem consigo mesmo, essa sobreposição de ideias faz com que a personagem seja muita rica, não delimitada apenas em sua idéia, mas tendo noção de sua autoconsciência e os pilares que sustentam sua ideologia, a e visão dos outros sobre si. 3 O CRIME: “EU MATEI UM PIOLHO”: A primeira explicação para que Raskólhnikov tenha matado a velha agiota, seria em decorrência do recebimento de uma carta, onde sua mãe Pulkhiéria Alieksándrovna lhe conta que Dúnia, irmã mais nova de Raskólhnikov havia se envolvido com Svidrigáilov o marido da senhora em que era empregada, e nessa carta também, lhe contando que Dúnia havia sido pedida em casamento por Lújin. O casamento de Dúnia com Lújin restauraria a imagem de Dúnia, além de ajudar a mãe e ao próprio Raskólhnikov já que Lújin era um homem bem de vida. Raskólhnikov sente-se como um inválido fazendo com que a irmã cometesse tal sacrifício, já que com a morte de seu pai Raskólhnikov sente-se o homem da família. Mas como salvar Dúnia de um casamento por sacrifício se ele mesmo estava no auge da sua miséria. A única saída seria uma boa quantia de dinheiro, e esse pode ser o motivo que tenha desencadeado o crime, com o dinheiro que ele roubaria da velha agiota ele ajudaria a mãe e Dúnia, e até a Marmieládov. O segundo motivo seria reafirmar para si mesmo a sua ideologia: “que tudo contagia e tudo determina” (BAKHTIN, 2012, p.11). Raskólhnikov não estava apenas em uma miséria física, mas espiritual também, tinha abandonado os estudos e vivia com pouquíssimo que mal dava para comer, mas Raskólhnikov era um ex-estudante, publicava artigos em jornal, era um homem dotado de conhecimentos, e fortes ideias. Uma das suas ideologias principais era sobre os grandes homens da história, que não tiveram medo de ser assassinos, como Napoleão. Raskólhnikov dividia os homens em “ordinários” e “extraordinários”, e apenas os homens ordinários deveriam obedecer, seguir ordens e não possuírem o direito de infligir às leis; já os extraordinários eram dotados de livre arbítrio, inclusive para cometer crimes, já que eram homens magníficos em sua essência, e isso justificava todos os seus atos. O que se nota em: “Eu não matei nenhuma pessoa humana; apenas matei um princípio. Um princípio foi o que matei” (DOSTOIÉVSKI, 2002, p.254). Ainda mais adiante, Raskólhnikov afirma que o capital não é o motivo real de ter cometido o crime: “quando matei, precisava mais de outra coisa do que de dinheiro...” (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 388) E, por fim ele acaba por desejar apoderar-se do discurso do outro, de ser o outro: “Eu queria ser um Napoleão” (DOSTOIÉVSKI, 2002, p.384). Raskólhnikov se considerava um homem extraordinário, e considerava Alíona um “piolho”, então, para Raskólhnikov não seria crime matar a velha agiota, seria uma afirmação de seus ideais, e a afirmação de que ele era realmente um homem extraordinário. Nessas frases de Raskólhnikov podemos perceber que o crime pode vir a ser por um motivo não banal, mas por toda uma forte ideologia e convicções do próprio Raskólhnikov.

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Segundo Mikhail Bakhtin, polifonia é as “muitas vozes” dentro de um determinado texto, a presença de ideias e vozes de um texto dentro de outro texto: “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski.” (BAKHTIN, 2013, p. 4) Em Crime e Castigo, Raskólhnikov possui o que Freud chama de “consciência”, o personagem tem competência ideológica, com concepções filosóficas próprias, que às vezes nem são as mesmas do autor (Dostoiévski), as personagens possuem “autoconsciência”: Segundo Freud, o psiquismo humano se divide em três campos: a consciência, o inconsciente e o pré-consciente. Esses três campos ou sistemas do psíquico estão em permanente interação; os dois primeiros, em estado de luta permanente entre si. A essa interação e a essa luta se resume a vida psíquica do homem. Cada ato psíquico e cada ato humano devem ser vistos como resultado da competição e luta da consciência com o inconsciente como índice da correlação de forças estabelecidas em dado momento entre esses três campos continuamente em luta. (BAKHTIN, 2012, p. 25)

A consciência de Raskólhnikov pode ser vista como uma consciência conflituosa onde há uma tensão intensa entre o inconsciente e o consciente. Sendo que o mesmo altera estados de consciência devido a sua saúde que o deixa debilitado fisicamente e psicologicamente. Ele dorme e tem pesadelos que se intensificam após o crime . O autor não usa o personagem da sua obra para objetificar sua palavra, pois o herói possui sua própria palavra e sua própria ideologia sobre o mundo que o cerca, o herói possui poder dentro da obra, e tem seus valores. Por exemplo, Raskólhnikov se opõe ao discurso da mãe e da irmã, pois isso vai de encontro com o seu orgulho enquanto homem. Raskólhnikov conta a raiva que sentiu ao ler a carta da mãe. Por outro, Raskólhnikov se depara com a filha de um bêbado, que fora expulsa de casa pois fora encontrada dormindo na mesma cama com o pai. O autor não lhe impões julgamento moral, e não se sabe se o fato decorre da pobreza e do frio em compartilhar uma mesma cama. No entanto, Sonia resiste ao discurso exterior de acusação de que ela seja uma mera prostituta. O conflito de ideias surge no momento em que a realidade parece barrar os desejos de Raskólhnikov, enquanto que Sonia mesmo barrada por uma realidade dura persiste no seu discurso agarrando-se ao discurso religioso. Dessa forma, quando o indivíduo nasce é dirigido somente pelo princípio do prazer onde há a “satisfação aleatória dos desejos; porque a criança ainda desconhece a diferença entre ao real e o irreal” (BAKHTIN, 2012, p. 32). Nessa fase toda até mesmo um sonho ou uma ideia é considerada realidade, enquanto que adentrando no princípio da realidade que contraria o indivíduo. Há um certo perigo no indivíduo que não consegue lidar com esse princípio justamente em questão do desejo: Agora, todas as experiências emocionais psíquicas devem passar na psique por uma prova dupla do ponto de vista de cada um desses princípios porque amiúde o desejo pode não ser satisfeito e por isso causar sofrimentos ou, ao ser satisfeito, acarretar consequências desagradáveis: tais desejos devem ser reprimidos. (BAKHTIN, 2012, p. 33)

No caso de Raskólhnikov, o desejo dele é de ser o substituto da figura paterna, ou da figura de autoridade em casa, isso o sustenta e todas as agruras, desde que abandonara a universidade. Incrivelmente, Raskólhnikov não demonstra ter desejos por Sonia, nem a vê como um objeto de desejo, pelo elo que tivera mesmo que por um período isolado com o pai dela, um funcionário público alcóolatra, ele a respeita como indivíduo, mesmo que essa atitude se choque com o discurso da mãe e da irmã que tinham se deslocado a São Petersburgo para encontra-lo dando as boas novas acerca do noivado de Dúnia com Lújin.

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O desejo que causa Raskólhnikov sente causa lhe sofrimento primeiramente porque não há satisfação e posteriormente por ter sido satisfeito, portanto ele deveria tê-lo reprimido. No entanto, Raskólhnikov, confrontado com a realidade de sua existência pobre, impotente sem poder conduzir a família que o pai deixara, faz exatamente o contrário, escolhe a figura de Napoleão para poder tomar uma decisão que custaria a vida de duas pessoas. Como vimos no fragmento acima, o personagem do romance polifônico é dotado de sua ideologia, de sua ideia: “O herói dostoievskiano não é apenas um discurso sobre si mesmo e sobre seu ambiente imediato, mas também um discurso sobre o mundo [...]” (BAKHTIN, 2012, p.87). Raskólhnikov tem um discurso de seu lugar de origem o campo, e se sente profundamente afetado pelo fato da mãe e da irmã terem decidido sustentá-lo através do trabalho da irmã como serviçal na residência de um homem casado onde é acusada de se envolver com o mesmo. Mesmo que posteriormente, a esposa dessa família reconheça que não houve traição, a irmã de Raskólhnikov é levada a se casar para que sua fama não fique ruim. Raskólhnikov se sente traído por não poder assumir o papel de homem na família e isso é fruto de uma sociedade contraditória onde o camponês envia o filho para a capital para que esse tenha estudo, mas o mesmo ainda carrega em si o discurso do campo. Após Raskólhnikov ser preso pelo crime, ele se depara com a Bíblia de Sônia e esta através do silêncio o convence a ler: Tinha o Evangelho debaixo da almofada. Pegou-o maquinalmente. Aquele livro era dela, pois era o mesmo em que ela lera a passagem da Ressurreição de Lázaro. Nos primeiros tempos do presídio pensava que ela havia de importuná-lo com a religião e que se poria a falar do Evangelho e a aborrecê-lo com o livreco. Mas, com o maior assombro da sua parte, nem uma só vez ela lhe falou nisso, nem uma vez sequer lhe tinha proposto o Evangelho. Fora ele quem lho pedira, um pouco antes de ter adoecido, e ela levou-lho em silêncio. Até então ele nem sequer o abrira. Agora também não o abriu, mas ocorreu-lhe um pensamento: "Poderia, por agora, a sua crença, não ser a minha também? Pelo menos os seus sentimentos, as suas aspirações..." Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura (DOSTOIÉVSKI, 2002, p.509).

O diálogo permanente entre Sônia e Raskólhnikov é polifônico autêntico, defendido por ambos, em que Sônia utiliza o discurso religioso e Raskólhnikov usa suas ideias e convicções, mas ao final, após Raskólhnikov ter sido preso ele então adota pra si o discurso de Sônia. 4 CONCLUSÃO: Vimos neste trabalho os possíveis motivos que levaram um homem inteligente, dotado de muitos conhecimentos, a assassinar uma velinha agiota. Vimos também à relação das personagens e seus diálogos com o mundo ao seu redor, questões envolvendo polifonia e autoconsciência. Nesse trabalho podemos observar a grandiosidade de uma personagem dotada de muitos conceitos, que não pode ser delimitada como um assassino qualquer, pois Raskólhnikov e Sônia são personagens onde “o interno ser é maior que externo ver” (Láo-Tsé, Tao Te Ching). 5 REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Perspectiva. 2012.

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BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. BAKHTIN, Mikhail. O Romance Polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária. In: Problemas na Poética de Dostoiévski. 5º ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2013, p. 3- 51 ______. A ideia em Dostoiévski. In: : Problemas na Poética de Dostoiévski. 5º ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2013, p. 87-114. O EU E O OUTRO QUE FALAM: UM ESTUDO DO DIÁLOGO BAKHTINIANO E FREUDIANO EM O DUPLO DE DOSTOIÉVSKI SANDRA MINA TAKAKURA (UEPA) RITA DE CÁSSIA ALMEIDA SILVA (SEDUC- PA) Um diálogo entre dois teóricos como Bakhtin e Freud não é tarefa simples, pois o primeiro parte de uma concepção Marxista da linguagem focando no seu aspecto social, enquanto que o segundo foca justamente na construção do “eu” e do seu mundo interior. No entanto, é possível notar em Freudismo de Bakhtin (2012, p. 11), que o indivíduo passa por um duplo nascimento que primariamente é “físico” e em seguida seria “social”, tornando-se apenas depois do segundo nascimento, um ser da história e da cultura. Bakhtin imprime um olhar social e cultural ao psicologismo de Freud, e em Problemáticas na Poética de Dostoiévski (2013) traça um estudo acerca do herói e suas consciências autônomas. Esse trabalho tem como o objetivo realizar um diálogo entre Bakhtin e Freud tendo como o corpus de análise a obra de Dostoiévski, O Duplo (2011). Para isso, foram focados a consciência autônoma da personagem Golyádkin que é atormentada por vozes e discursos de uma sociedade contraditória onde o indivíduo nasce historicamente; a presença do duplo como sendo o estranho Freudiano, a revelação do que estava oculto ou a volta do que fora recalcado; e no transtorno dissociativo que leva a personagem além de ver-se como outro a projetar outros duplos até ser finamente internado em um manicômio. A metodologia adotada é a “compreensão ativo-dialógica” em que os textos (enunciados) fluídos por vezes aproximam as vozes do herói e do autor, e do herói e dos outros personagens e por vezes os distancia sem que haja uma síntese obrigatória final (BAKHTIN, 2003, p. 398). É possível notar um duplo nascimento do indivíduo, que primariamente nasce “fisicamente” e passa por um nascimento “social” tornando-se um ser da história e da cultura: Efetivamente, não existe o indivíduo biológico abstrato, aquele indivíduo biológico que se tornou o alfa e o ômega da ideologia atual. Não existe o homem fora da sociedade e, consequentemente, fora das condições socioeconômicas objetivas [...] O indivíduo humano só se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe e através da classe. Para entrar na história é pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele não entra na história. É necessário algo como um segundo nascimento, um nascimento social. (BAKHTIN, 2012, p. 11)

De acordo com Bakhtin, a obra de Dostoiévski é fruto de uma sociedade contraditória, polifônica, extremamente hierarquizada na Rússia, que foi escrita no período Realista da literatura, quando a literatura funcionava como uma espécie de obra-denúncia. Por trás dos romances de Dostoiévski é possível perceber um projeto que se propõe a expor a sociedade a partir das pessoas mais simples que a compõe e demonstrar a complexidade dos mecanismos sociais que obrigam as pessoas a adotarem formas comportamentais muitas vezes contrárias a sua personalidade para que possam ser aceitas socialmente e que frequentemente podem

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desencadear em problemas psicológicos. Nesse aspecto Dostoiévski instiga a alta sociedade da Rússia, provável leitora de suas obras a olhar o outro, que representa a camada social menos privilegiada, que até então era retratada quando muito através de estereótipos como o próprio Dostoiévski aponta quando cita Capote em uma de suas obras, por exemplo, Gente Pobre (2011). Esse fato provocou a repulsa da crítica literária que divulgou amplamente o erro em tê-lo reconhecido como um grande escritor após a publicação do Gente Pobre. A obra narra em detalhes os acontecimentos que antecedem essa cisão, demonstrando a polifonia, a multiplicidade de vozes que atormentam o “nosso herói”, como constantemente o denomina seu autor, ao longo de toda a obra, dando continuidade a seu projeto literário. Sendo que: “A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2013, p. 4) O texto escrito dentro dos pressupostos do Realismo, opõe-se aos heróis idealizados presentes no Romantismo; expõe a opressão que o regime político e hierárquico da Rússia daquele período histórico impunha aos habitantes, principalmente da classe pobre trabalhadora; expõe essa opressão a partir de um foco narrativo privilegiado, qual seja, colocando os oprimidos como personagens principais de suas obras, a exemplo de Gente Pobre, seu livro de estreia. O Duplo conta a história de um momento da vida de Golyádkin, em que sua psique envolta nas vicissitudes humanas não suporta a pressão do mundo que o cerca e, em uma tentativa de apaziguar sua existência, passa a justificar seus atos deploráveis refletindo-os em seu duplo: Golyádkin II. A história apresenta aproximadamente quatro dias da vida de Yákov Pietrovitch Golyádkin, do momento em que acorda e se prepara para ir à festa de aniversário de Clara Olsufievna, filha de Olsufi Ivánovitch – Conselheiro de Estado e Chefe maior de Golyádkin, até sua internação em um manicômio. Durante a narrativa, através das lembranças da personagem principal, o “nosso herói”, como costuma denomina-lo o narrador em terceira pessoa que conduz boa parte da narrativa, e que sutilmente vai abrindo cada vez mais espaço para que Golyádkin, em fluxo de consciência, dê continuidade a sua história em primeira pessoa, é possível traçar um fio condutor para a trama, colhendo fatos da vida posterior da personagem que levaram ao desfecho triste de Golyádkin. A personagem principal, vinda do interior, teve um envolvimento com Carolina Ivánovna, uma estrangeira, alemã e dona de uma taberna, de quem se aproveitou para ganhar refeições em troca de uma promessa de casamento. Transferido para a capital São Petersburgo, gozou da proteção e acolhimento do Conselheiro de Estado Olsufi Ivánovitch, seu “benfeitor desde minha remota idade, que em certo sentido substitui meu pai.” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 59). Mas Golyádkin não conseguiu conter seus impulsos, e se apaixonou pela filha de seu benfeitor, ou pelo menos teve para com ela alguma atitude que fez com que fosse expulso da casa do Conselheiro de Estado, passando a viver em um apartamento simples e sem o conforto e acolhimento que lhe davam na classe mais abastada a que pertencia Olsufi Ivánovitch. Desde o início da trama, quando ainda não se conhece os detalhes anteriores da vida de Golyádkin, ele menciona as máscaras que as pessoas usam para viver em sociedade, afirmando que delas não faz uso, que é direto, que só se vale de máscaras onde elas devem ser usadas, em bailes e carnaval. Senhor Golyádkin não consegue se enquadrar na sociedade, e a dor por sua incapacidade, mesclada à culpa por seus atos condenáveis em relação às mulheres, seu preconceito e sua mania de perseguição, e a percepção de que sua conduta era realmente inaceitável socialmente, sobrecarrega de tal maneira sua psique a ponto de cindi-la, provocando o surgimento do outro senhor Golyádkin. Na mente perturbada de nosso herói, seu duplo mostra para a sociedade as qualidades que ele sabe que deveria ter para conviver socialmente, mostra sarcasmo em relação a ele e suas fraquezas, apontando todos os seus defeitos. É seu duplo quem o conduz a carruagem que levará para o manicômio.

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A obra narra em detalhes os acontecimentos que antecedem essa cisão, demonstrando a polifonia, a multiplicidade de vozes que atormentam o “nosso herói”, como constantemente o denomina seu autor, ao longo de toda a obra, dando continuidade a seu projeto literário. O texto escrito dentro dos pressupostos do Realismo, opõe-se aos heróis idealizados presentes no Romantismo; expõe a opressão que o regime político e hierárquico da Rússia daquele período histórico impunha aos habitantes, principalmente da classe pobre trabalhadora; expõe essa opressão a partir de um foco narrativo privilegiado, qual seja, colocando os oprimidos como personagens principais de suas obras, a exemplo de Gente Pobre, seu livro de estreia. É possível construir um fio condutor para a história, pinçando trechos de memórias aos poucos reveladas, para que se entenda que antes do ápice da narrativa, que neste caso podemos considerar como o momento em que a cisão se concretiza na mente do senhor Golyádkin, que encontra em um beco escuro o seu duplo “em carne e osso”, muitas situações denunciam o comportamento antissocial da personagem, desencadeando o desprezo das pessoas com quem convive em razão proporcionalmente inversa ao desejo da personagem de pertencer a um círculo social mais privilegiado. O autor explora o medo das sombras, o medo do outro que representado pelo duplo, o inconsciente sobrepujando o consciente, uma espécie de luta hercúlea do bem contra o mal que habita em cada indivíduo e que é ensinado a sufocar. E, é embate do consciente e do inconsciente que faz parte do psiquismo humano que é narrado na obra: Segundo Freud, o psiquismo humano se divide em três campos: a consciência, o inconsciente e o pré-consciente. Esses três campos ou sistemas do psíquico estão em permanente interação; os dois primeiros, em estado de luta permanente entre si. A essa interação e a essa luta se resume a vida psíquica do homem. (BAKHTIN, 2012, p. 25)

Na tradição ocidental o duplo se apresenta na forma de irmãos, gêmeos ou não, quase sempre representando o bem e o mal: Abel e Caim, Esaú e Jacó, Osíris e Seth, Baal e Moth, Romulo e Remo, os filhos gêmeos do deus celeste Dióscuros que puxavam o carro do deus Sol pelo céu, Castor e Pólux, gêmeos a quem se atribuíram dois pais, sendo Castor o filho de Zeus e Pólux filho do rei Tíndaro. A sombra do homem, considerada na antiguidade a alma humana, veja-se a crença de que não se pode pisar na sombra de outra pessoa, e anteriormente aos estudos da psicanálise como o segundo eu. A sombra, oposto da luz, indica a face ameaçadora da existência. Mas como calar nossa alma-sombra, se ela faz parte de nós? Não se pode fugir de si mesmo, com o agravante desse ato nos levar a loucura. O estudo da representação do duplo foi esboçado por Freud (1919) em seu ensaio “O Estranho” ou “Das Unheimlich”, o estranho é que provoca o estranhamento ou assusta, sendo que a raiz da palavra indica o oposto de heimlich que possui dois sentidos: Aquilo “que é conhecido”; e aquilo que está “[e]scondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos outros.” Dessa forma o unheimlich ou o estranho possui uma dupla negação e indica o que é não familiar e “tudo que deveria ter permanecido […] secreto e oculto mas veio à luz.” (SCHELLING. In: FREUD) A questão do duplo sempre esteve presente no imaginário humano, fruto de complexa psique humana, que nos surpreende diante de atitudes por nós tomadas e que não se mostram constantes, e na maioria das vezes, nada adequadas à máscara social com a qual se apresenta para o mundo. A personagem que é constantemente referida pelo narrador como sendo o herói é o Sr. Golyádkin, cujo nome é Yákov Pietóvitch. O senhor Golyádkin afirma de maneira nenhuma possuir máscaras para se viver ne sociedade, pois as considera hipocrisia: “Não gosto de meias palavras; a mísera hipocrisia me desgosta; abomino a calúnia e a bisbilhotice. Só ponho máscaras quando vou a um baile de máscaras, e não a uso diariamente diante das pessoas” (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 25) Ironicamente a atitude da personagem não confirma

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esse enunciado uma vez que ao receber o salário delicia-se em andar de carruagem, em entrar em lojas de móveis caras que não poderia comprar, faz suas encomendas sem sequer dar uma entrada do valor do móvel prometendo que iria buscá-lo: Nosso herói foi a uma famosa loja de móveis, onde combinou o preço de móveis para seis cômodos, deliciou-se com um tocador muito requintado e da última moda e, depois de assegurar ao comerciante que mandaria sem falta buscar tudo, saiu da loja prometendo o sinal, como era o seu habito, depois foi a mais algum lugar e negociou alguma coisa. (DOSTOIÉVSKI, 2011, p. 34)

Essa simulação de um status socioeconômico ao qual não pertence, mas aspirado mostra uma intenção de ser o que não é, de se adequar socialmente na escala econômica do ex-benfeitor Olsufi Ivánovitch. Dessa forma, podemos traçar o surgimento do duplo e a forma como é apresentado sob a perspectiva da personagem, pois representa o desejo do mesmo em ser aceito na sociedade, o choque acontece no momento em que é expulso da festa de aniversário de Clara Olsúfievna, quando é descrito como “não só queria fugir de si mesmo, mas deixar-se destruir completamente, não ser, virar pó” (p. 66) Dessa angústia surge um duplo idêntico ao senhor Golyádkin: Era o outro senhor Golyádkin, totalmente outro, mas ao mesmo tempo idêntico ao primeiro – da mesma altura, da mesma compleição, vestido do mesmo jeito, com a mesma calvície -, numa palavra, nada, nada vezes nada estava falatando para que a sememlhança fosse completa, de tal forma que se os pegassem e os colocassem lado a lado, ninguém, decididamente ninguém se atreveria a definir quem era mesmo o Golyádkin de verdade e quem era o falsificado, quem era o velho e quem era o novo, quem era o original e quem era a cópia.” (p. 82)

O duplo reflete aquilo que ele gostaria de ser, alguém incrivelmente familiar, pois carrega em si as características físicas idênticas ao eu e à idealização dele próprio que estava oculto e que saiu à tona como o estranho que é a negação do eu, um não eu. O indivíduo é regido pelo princípio do prazer e pelo princípio da realidade. O primeiro, ocorre na criança que ainda não sabe distinguir o que é real ou irreal não sabendo dos limites ou da vergonha, o sonhar já é real. Enquanto que, o segundo a realidade passa a contrariar os desejos de vontades da criança. Dessa forma, há uma negociação entre os dois princípios uma vez que existem desejos irrealizáveis que causam dor e há outros que caso realizados causam dor: Todas as experiências emocionais psíquicas devem passar na psique por uma prova dupla do ponto de vista de cada um desses princípios porque amiúde o desejo por não ser satisfeito e por isso causar sofrimento ou, ao ser satisfeito, acarretar consequências desagradáveis: tais desejos devem ser reprimidos. (BAKHTIN, 2012, p. 33)

O senhor Golyádkin em algum momento de sua vida teve contato com uma família abastada que o acolheu em seu lar onde pode conhecer o lado abastado da sociedade, seus gostos e sua tradição. Por esse motivo, Golyádkin tenta de alguma forma buscar esse passado para sempre perdido e a satisfação do desejo de estar naquele momento revivendo as mesmas experiências da classe abastada, mesmo que a sua condição econômica não permita tal extravagância. No entanto, senhor Golyádkin não consegue reprimir esses desejos e uma vez aflorados provocam experiências amargas como a rejeição da bela moça a quem leva um agrado de aniversário e uma exposição pública e social ao ridículo. Logo o senhor Golyádkin nota que o seu duplo começa a se relacionar melhor com os seus colegas de repartição e ser aceito, o duplo seria uma espécie de projeção dos desejos mais íntimos do eu que haviam sido reprimidos e que voltaram à tona:

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Na última sala, contígua ao gabinete do diretor, deu de cara e ficou face a face com Andriêi Filíppovitch e o seu homônimo. Os dois já retornavam; o senhor Golyádkin deu passagem. Andriêi Filípovitch falava sorrindo e alegre. O homônimo do senhor Golyádkin primeiro também sorria, adulava, saltitava a uma distância respeitosa de Andriêi Filíppovitch e com ar extasiado lhe murmurava algo ao pé do ouvido, ao que Andriêi Filíppovitch balançava a cabeça de forma mais benévola. Nosso herói compreendeu de imediato toda a situação. (p. 117-18)

As atitudes do senhor Golyádkin são guiadas pelo princípio do prazer, que são evidenciadas de uma forma quase infantil quando ele próprio começa a desejar que uma mágica seja feita para que o estranho desapareça e que ele seja feliz: Bem, se agora – pensava ele – aparecesse algum feiticeiro ou se alguém aparecesse em caráter oficial e dissesse: vamos, Golyádkin, me dá um dedo da mão direita e estamos quites; não haverá outro Golyádkin e tu serás feliz, só que sem um dedo- eu daria o dedo, eu o daria na certa e sem pestanejar. (p. 128)

Tal fato não se explica uma vez que o desaparecimento do segundo senhor Golyádkin não traria a sua felicidade. A presença do duplo é justamente um sintoma do quadro dissociativo de transtorno de despersonalização: “Experiências persistentes ou recorrentes de sentir-se desligado de si próprio e de como se o indivíduo fosse um observador externo dos próprios processos mentais ou do próprio corpo (p.ex., sentir-se como em um sonho).”64 O senhor Golyádkin sonha que figuras iguais a ele, ou seja, seus duplos brotam da terra se são presos pela polícia: Mas a cada passo, a cada batida dos seus pés no granito da calçada, brotavam como que de debaixo da terra figuras iguaizinhas, totalmente semelhantes ao asqueroso e devasso senhor Golyádkin [...] [T]oda a capital acabou infestada dos totalmente semelhantes, e um policial, ao ver tal infração da ordem, viu-se forçado a pegar pelo cangote todos esses totalmente semelhantes e prendê-los na guarita que surgira a seu lado... (p. 157)

Assim como no divã do analista é extremamente difícil diferenciar um quadro de estrutura Psicótica e Neurótica, no momento inicial na narrativa a personagem parece apresentar o que parece ser um quadro psicótico de cisão de personalidade que desemboca no surgimento do duplo, Golyádkin II. No entanto, no decorrer, da construção da narrativa a personagem Golyádkin passa a ver o seu duplo, com ele trava amizades, troca confidências, chega até a enviar cartas e o abrigar debaixo do mesmo teto. Muito dos sintomas da neurose se parecem com os do louco clássico que é o psicótico que se desconecta da realidade. Uma vez que, o senhor Golyádkin mantém uma conexão com a realidade mesmo que cause imensa dor o quadro parece se aproximar da estrutura do neurótico. O neurótico pode somatizar os sintomas fisicamente e pode sofrer transtornos dissociativos, este último é o caso percebido na narrativa do senhor Golyádkin que percebe o outro ou o estranho como um reflexo de um espelho: “[O] senhor Golyádkin, à porta que, aliás, até então nosso herói confundira com um espelho, estava um homem – estava ele, estava o próprio senhor Golyádkin, não o herói da nossa história, mas o outro senhor Golyádkin, o novo senhor Golyádkin.” (p. 133) O senhor Golyádkin vai ai gabinete do general pedir por proteção, pois achava que poderia o seu posto de trabalho para seu duplo, no entanto, ele não consegue mais do que balbuciar algumas palavras até notar a presença do seu duplo falar com toda a desenvoltura. Esse contraste 64

NETO; MARCHETTI. Histeria somatização conversão e dissociação. 2009. Disponível em: < http://www.medicinanet.com.br/conteudos/revisoes/2325/histeria_somatizacao_conversao_e_dissociacao.htm>

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marca a diferença entre ele e o seu duplo, uma imagem de um espelho invertida que projeta o que ele gostaria de ser: À porta, que até então ele tomara por um espelho, como outrora já lhe acontecera, apareceu sabe-se quem: ele, o conhecido bem íntimo e amigo do senhor Golyádkin. [...] Aparentemente o senhor Golyádkin segundo passava a uma intensa participação na conversa, que agora escutava com ar nobre, meneando a cabeça, saltitando, sorrindo e de instante e instante observando Sua Excelência como se implorasse que também ele permitissem meter na conversa suas meias palavrinhas. “Patife!” – pensou o senhor Golyádkin, e involuntariamente deu um passo adiante. (p. 208-09)

Por fim, o senhor Golyádkin nota lágrimas de solidariedade nos olhos de todos ali presentes inclusive os de Olsufi e de sua filha Clara, essa aceitação aparente por todos faz com que o duplo apareça menos ameaçador ao senhor Golyádkin deixando de ser a sua projeção: “[E] nesse momento transbordando de amor não só por Olsufi Ivánovitchi, não só por todos os presentes juntos, mas até por seu malvado gêmeo, que agora não tinha nenhuma aparência de malvado e nem sequer de gêmeo do senhor Golyádkin.” (p. 277) Mas o que parecera uma aceitação social na verdade passa a ser um convite a uma internação no manicômio, quando o senhor Golyádkin nota que está sendo conduzido por uma estrada desconhecida, passa a estranhar o médico Crestian Ivánovitch. O médico passa a ser visto como o estranho Freudiano que partira da referência do médico que lhe era conhecido e que passa a revelar o que estava oculto e o que o senhor Golyádkin mais temia: “O senhor vai receber do Estado casa com aquecimento, Licht e uma criada, o que não merece – rosnou Crestian Ivánovitch de modo severo e terrível, como se pronunciasse uma sentença.” (p. 234). CONCLUSÃO: O Duplo é uma obra que desafia críticos e instigou Bakhtin a explorá-lo em seus estudos acerca de Dostoiévski. Trata-se de uma obra polifônica sendo que ela se manifesta além das diferenças socioeconômicas reais na mente da personagem Golyádkin que acaba por produzir um outro como um mecanismo de defesa. Porém, esse outro se encaixa no conceito de Freud de estranho que é não familiar, a negação do familiar e dessa forma a negação do eu em favor de um eu aceitável pela sociedade. Ao mesmo tempo em que o outro se revela como aquilo que estava oculto, os desejos não satisfeitos que provocam a dor, sendo que esses mesmos desejos uma vez satisfeitos também provocam a dor pela exposição ao ridículo. O senhor Golyádkin trava uma luta no seu consciente e inconsciente recalcando medos e angústias que por fim retornam e o atormentam. REFERENCIAS BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Perspectiva. 2012 BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.393-410. BAKHTIN, Mikhail. O Romance Polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária. In: Problemas na Poética de Dostoiévski. 5º ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2013, p. 3- 51 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Duplo. São Paulo: Editora 34, 2011 ______. Gente pobre. São Paulo: Editora 34, 2011

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LIMA, Fernanda Mara da Silva Lina; MATTOS, Alyne Camargo de; LIMA, Shirley Cavalvante de. “Verwerfung” e sua Incidência na Clínica das Psicoses. ECOS: Estudos Contemporâneos da Subjetividade, UFF: Rio de Janeiro, vol. 3, nº 1, p.152- 159, maio, 2013 NETO, José Gallucci; MARCHETTI, Renato Luiz. Histeria somatização conversão e dissociação. 2009. Disponível em em: < http://www.medicinanet.com.br/conteudos/ revisoes/2325/histeria_somatizacao_conversao_e_dissociacao.htm> Acesso em 6 de setembro 2014 SCHUBERT, René. Estruturas Clinicas: Neurose, Psicose e Perversão. René Schubert: Psicologia e Psicanálise. Disponível em: . Acesso em 2 de maio de 2014

A LEITURA DE UM CLÁSSÍCO EM HQ: IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR SILVANA BANDEIRA OLIVEIRA (UFPA) GERMANA SALES (UFPA) RESUMO: O processo de leitura acontece de forma mais efetiva quando é motivada pela necessidade e pelo prazer. Pode-se dizer que a presença das histórias em quadrinhos dentro da escola possibilita ao professor incentivar a leitura e também a escrita do aluno. E é neste contexto que as adaptações dos clássicos literários para o formato HQ dão nova aparência aos mesmos, relacionando-se com os textos originais. E Tendo em vista a adoção das HQs como material didático no processo de incentivo à leitura de crianças e jovens, é necessário promover uma reflexão sobre o uso dessas novas metodologias, devido à presença das adaptações de clássicos literários brasileiros. Assim, este estudo se propõe a refletir sobre essa temática, analisando a revista Iracema, em quadrinhos, de Jão e D’Ambrosio para saber em quem medida sua leitura pode auxiliar numa aproximação com a obra original. INTRODUÇÃO No final do século XIX, nos Estados Unidos, surgiram as histórias em quadrinhos65, na forma como hoje são conhecidas. Esse período foi um momento de grande expansão tecnológica, no qual a Revolução Industrial possibilitou o surgimento da fotografia e do cinema ( CIRNE, 1990). Com a impressão tipográfica em pleno desenvolvimento, foram criadas condições necessárias para o aparecimento dos quadrinhos, sobretudo, as publicações de caricaturas e cartuns que proporcionaram o avanço dessa nova narrativa, concentrada no “humor gráfico”, que antes era conhecido como “histórias ilustradas”, “literaturas em estampas” e “romances caricaturados”. É nesse contexto que as adaptações dos clássicos literários para o formato HQ conferem nova aparência aos mesmos, atraindo os jovens leitores para o contato, cada vez mais cedo, com as narrativas das obras literárias clássicas. Essas adaptações tem se mostrado cada vez mais presentes nos espaços pedagógicos escolares da contemporaneidade. Entretanto, é necessário que os educadores da área da linguagem discutam essa temática. Por isso, cabe-nos refletir em que medida a leitura da obra Iracema, em quadrinhos, pode auxiliar numa aproximação com o romance original. Neste estudo, empregamos a pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa a partir dos estudos de Cirne (1990), Palhares (2008) Franchetti (2007), Jão e D’Ambrosio (2008) e 65

Doravante HQ.

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outros autores para construção do aporte teórico. A pesquisa se concentrou na análise e discussão de informações encontradas na adaptação da obra Iracema e no seu original, buscando pontos convergentes entre ambos, de maneira a refletir sobre a importância dessas adaptações para os jovens leitores. 1 UM POUCO DA HISTÓRIA DOS QUADRINHOS NO BRASIL No Brasil, o surgimento da primeira narrativa em quadrinhos deu-se com As aventuras de Nhô-Quim, de Ângelo Agostini, publicada na revista Vida Fluminense, em 1869, no Rio de Janeiro. Essa narrativa conta as desventuras de um homem simples do interior do Brasil. “Agostini, autor de desenhos de teor cômico, mas ainda assim de cunho crítico, utilizava, em suas histórias, os cortes gráficos que viriam a ser um dos elementos determinantes na futura criação das histórias em quadrinhos” (PALHARES, 2008, p. 07). Já em 1905, foi lançada a revista O Tico-Tico, que se tratava de uma produção voltada para as crianças. Considerada como o marco inicial das publicações dedicadas ao público infantil, essa revista “trazia contos, textos informativos, curiosidade e comics66 [...]. Os personagens mais destacados da revista eram Buster Brown e Tige, de Richard F. Outcault, rebatizados, no Brasil, como ‘Chiquinho’ e ‘Jagunço’” (IANNONE, L.; IANNONE, R., 1994, apud SANTO M. GANZAROLLI M., 2011, p.03). Em 1934, o jornalista e editor Adolfo Aizen, influenciado pelo sucesso das HQs que observou durante uma viagem nos EUA, produziu a revista Suplemento Juvenil com histórias e personagens dos quadrinhos. Esta revista fez muito sucesso, promovendo a fundação da EBAL- Editora Brasil América Ltda, caracterizada por editar somente HQs. A EBAL, em 1948, começava a publicação de diversos clássicos da Literatura em forma de HQ, por meio da revista Edição Maravilhosa, especializada em adaptações de romances da Literatura mundial e nacional (CIRNE, 1990). A revista trazia, em seus escritos, a observação: No final da maioria dos volumes vinha a seguinte nota editorial: ‘As adaptações de romances ou obras clássicas para a EDIÇÃO MARAVILHOSA são apenas um ‘aperitivo’ para o deleite dos leitores. Se você gostou procure ler o próprio livro em sua tradução e organize sua biblioteca_ que uma boa biblioteca é sinal de cultura e bom gosto’ (CIRNE, p. 32).

Podemos perceber, assim, a preocupação da EBAL em esclarecer que a leitura das adaptações de obra de clássicos literários não substituía a leitura da produção original. Seu objetivo em publicar as adaptações era atingir um maior número de leitores conhecedores das produções literárias. 2 ROMANCE IRACEMA O romance Iracema, de 1865, junto com O Guarani (1857) e Ubirajara (1874) compõe a trilogia ligada ao romantismo brasileiro de José de Alencar que retrata os indígenas brasileiros. Essa obra é uma das responsáveis pela busca do caráter nacional da Literatura, com uma descrição específica da paisagem brasileira (SILVEIRA, 2009). Alencar, em meio a um momento de consolidação da independência, produz essa obra na tentativa de construir novos caminhos para a Literatura nacional. Esse romance é um dos principais da fase indianista do romantismo e traça uma espécie de mito da fundação da identidade dos brasileiros. O livro trata da origem da terra natal do escritor, Ceará, a partir do amor entre um português branco e uma índia tabajara. Há na narrativa um tempo considerado poético, marcado pelo ritmo e passagem da natureza e um tempo cronológico marcado pelos primeiros anos do século XVII. 66

Termo em inglês usado para denominar as histórias em quadrinhos norte-americanas.

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Jão e D’Ambrósio (2008, p.38) afirmam que “a principal característica do livro é a forma como se dá o encontro da natureza (Iracema) com a civilização (Martim). Enquanto ela dialoga com a paisagem, ele, europeu, é um homem do início do século XVII, quando Portugal ainda estava sob o domínio da Espanha”. José de Alencar, ao escrever Iracema, engrandece as terras brasileiras, mostrando um nordeste paradisíaco e valorizando as praias locais. A protagonista é vista em harmonia com essa natureza, com a floresta virgem, um resumo das maravilhas da beleza americana. Fauna e flora são associadas à beleza da virgem de lábios de mel. É diante de toda essa beleza, proporcionada pela paisagem, que acontecerá o encontro entre Martin e a indígena, que a princípio, verá o estrangeiro como inimigo, para, logo em seguida, despertarem um sentimento profundo que será responsável pela origem do povo brasileiro, conforme o trecho seguinte: Nesse sentido, do amor entre Martim, nome derivado de Marte, deus da guerra na mitologia, e Iracema, cujo nome tem as mesmas letras da América, surgirá a nação brasileira, representada pelo filho do casal, Moacir, que significa ‘filho da dor’, numa alusão à morte da índia. (JÃO E D’AMBROSIO, 2008, p.38).

O romance de Alencar surpreende a todos por atravessar o século e fixar suas raízes no imaginário dos brasileiros, sendo considerado um clássico da Literatura brasileira. Segundo Franchetti (2007, p. 02-09): Isso se pode perceber de várias formas: desde a voga duradoura do nome das personagens, até o reaproveitamento (mesmo que crítico ou irônico) da fábula como base de novos produtos culturais, passando pelo espantoso número de edições da obra, nos cem anos que se seguiram ao lançamento de Iracema: só no Brasil, contam-se 113 edições em português, além de uma em latim e uma em inglês, e de duas em Braille, bem como três de adaptação para verso de cordel e uma para história em quadrinhos. A informação sobre as tiragens também impressiona: a principal editora do livro, as Edições Melhoramentos, imprimiu, entre 1934 e 1965, dezessete edições, num total de cento e vinte mil exemplares; e, durante esse período, outras editoras também publicaram o livro (...). Na primeira edição, Iracema é um livro pequeno, de 208 páginas, nas quais o texto vem rodeado de margens amplas. A parte narrativa conta apenas 156 páginas.

Como percebemos esse romance tem um alcance muito grande de leitores, tanto nacionais quanto estrangeiros, e agora por meio dos quadrinhos, essa narrativa busca atingir o público mais jovem. 3 HQ: UMA ADAPTAÇÃO A revista em quadrinhos, Iracema, é uma adaptação de 2008, realizada por Jão e Oscar D’Ambrosio, do romance de Alencar. Essa adaptação mantém a narrativa original, uma vez que conserva os personagens e os principais conflitos presentes na obra. As lutas entre as tribos indígenas, o conflito entre Martim e Irapuã e a história de amor entre a índia tabajara e o estrangeiro compõem o enredo em um cenário que busca retratar a paisagem brasileira descrita na obra de 1865 A adaptação procura se manter o mais próximo da obra de Alencar. Já no início há a presença do prólogo, o qual traz a figura do autor na janela de uma casa se apresentando e narrando aquilo que seria o livro: O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros (JÃO E D’AMBROSIO, 2008, p. 03).

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Contudo, a ação inicia a partir do capítulo III, quando, juntos, a índia e o estrangeiro seguem para a cabana do pajé. “O estrangeiro seguiu a virgem através da floresta. Quando o sol descambava sobre a crista dos montes, eles descobriram no vale a grande taba; e mais longe, a cabana do Pajé” (JÃO E D’AMBROSIO, 2008, p. 05). Todas as descrições iniciais da paisagem e dos protagonistas, presente na obra original, configuram-se ao longo da adaptação por meio de imagens, cores e traços, reproduzindo toda a carga atmosférica do romance. Figura 01: As personagens vão à cabana do pajé.

Fonte: Adaptação de Iracema, 2008, p. 05

Figura 02: A paisagem nordestina.

Fonte: Adaptação de Iracema, 2008, p. 26

Quando analisamos o cenário, percebemos que é ilustrado por imagens coloridas com tonalidades intensas de vermelho, de amarelo, de verde e de lilás. Essas cores dão à paisagem desenhada um tom tropical, aludindo aos locais nordestinos como as matas, os rios, a taba, onde se passa a história, bem como as passagens do tempo, o sol, a lua, a brisa, a noite e o dia. Além disso, desenhos de bananeiras, coqueiros e outras grandes árvores ajudam a compor o ambiente, a floresta nativa, criando um aspecto regional à adaptação da obra. Os detalhes e as descrições minuciosas que compõem a poética da narrativa são, também, sugeridos e retratados pelas nuances das cores já descritas. Percebemos, então, a preocupação em aproximar a adaptação, por meio dos desenhos e cores, da descrição paisagística original contida no romance Alencariano. Com relação às imagens, a versão de Jão e D’Ambrosio se mantém fiel ao texto do escritor cearense. Assim, os autores desenvolveram todos os conflitos e as cenas principais, construindo uma síntese do que é o romance Iracema. Em Iracema, em quadrinhos, vamos perceber a presença de várias cenas e cenários diferentes, cada um dando sequência ao enredo, de modo a construir a narrativa. Temos, assim, de início, a chegada de Martim a tribo tabajara, seu encontro e conflito com Irapuã, a guerra entre os tabajaras e os pitiguaras, o ritual tabajara, a cerimônia de Martim, bem como a gravidez da virgem, o nascimento de seu filho e a morte da indígena. Esses fatos, entre outros não menos importantes, ajudaram contar os principais acontecimentos presentes na história original, destacando-se alguns, devido à riqueza com que foram desenvolvidos ou ilustrados. No ritual dos tabajaras, ao beber do licor da jurema, por exemplo, há tanto a descrição verbal do momento, como sua retratação com imagens, em que sombras de animais são ilustradas, revelando os sonhos de alguns indígenas. Bem anterior a esta cena, há também as alucinações vividas por Martim que tomara o licor oferecido pela virgem. As imagens juntamente com as pequenas descrições dão o sentido pretendido pelos autores, de retorno do estrangeiro às lembranças do passado. No que diz respeito às cenas que envolvem a gravidez de Iracema, o nascimento de seu filho Moacir e a morte da índia, há uma sequência de quadros que retratam esses episódios, dando uma ideia geral da importância desses acontecimentos para o desfecho da história.

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Na adaptação, ao desenhar os protagonistas, Iracema e Martim, Jão, ilustrador, conta com as descrições feitas na romance indianista. Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. (...). Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. (ALENCAR, 1991, p.07).

Nas imagens em quadrinhos é possível ver tais traços físicos descritos acima. Quanto às características psicológicas dos personagens, percebemos a sua construção ao longo da história, por meio do cenário, das ações dos protagonistas e da fala do narrador: “A virgem seguira o estrangeiro como a brisa sutil que resvala sem murmurejar por entre a ramagem [...]. Iracema passou entre as árvores, silenciosa como uma sombra” (JÃO E D’AMBROSIO, 2008, p.6-8). Irapuã, chefe tabajara, por toda sua força, imponência e cólera, é sempre ilustrado com a cor escura, olhos vermelhados, dentes pontiagudos e com armas de guerra. A passagem seguinte resume um pouco essas características. O guerreiro cravou nela o olhar abrasado: — O coração aqui no peito de Irapuã, ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de Arequém (ALENCAR, 1991 p. 13).

Araquém, pajé e pai da virgem, é desenhado sempre com traços franzinos, cabelos brancos e fumando seu cachimbo, sentado à beira de sua cabana, caracterizando o respeito e a sabedoria indígena, como revela o trecho: O ancião fumava à porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os sagrados ritos de Tupã. O tênue sopro da brisa carmeava, como frocos de algodão, os compridos e raros cabelos brancos. De imóvel que estava, sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas (ALENCAR, 1991 p. 08).

Caubi e Poti são personagens apresentados nos quadrinhos como guerreiros valentes, fortes e destemidos, o primeiro, irmão de Iracema e o segundo irmão de guerra de Martim. Ambos são caraterizados assim mais por suas falas e ações nas passagens da narrativa do que por suas imagens. A obra descreve Iracema e Martim ao longo da história como personagens perfeitos, belos, de uma atmosfera sonhadora. Na HQ, as ilustrações referentes aos protagonistas tentam ao máximo alcançar a magia, a beleza existente nesses personagens, assim como reproduzir a natureza e a importância dos demais personagens para a adaptação. O ilustrador se vale dessas descrições e muitas outras para traçar a imagem desses personagens e se aproximar da essência do romance, naquilo que se refere à intensa beleza e dramaticidade presentes na obra. Quando analisamos a linguagem verbal, percebemos que ela se apresenta por meio de diálogos mantidos entre os personagens. Tais diálogos são transcrições do romance Iracema, ou seja, são falas fiéis dos personagens que foram selecionadas sem modificações, observemos um exemplo: — Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os pitiguaras, inimigos de tua nação. Meu nome é

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Martim, que na tua língua quer dizer filho de guerreiro; meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às margens do Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os pitiguaras de Acaracu, na cabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade. Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus, vim aos campos dos tabajaras (JÃO E D’AMBROSIO, 2008, p. 05).

No romance de Alencar, percebemos a mesma passagem, ou seja, a fala do estrangeiro Martim ao pajé tabajara: — Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os pitiguaras, inimigos de tua nação. Meu nome é Martim, que na tua língua quer dizer filho de guerreiro; meu sangue, o do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar às margens do Paraíba, de onde vieram; e o chefe, desamparado dos seus, atravessa agora os vastos sertões do Apodi. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os pitiguaras de Acaracu, na cabana do bravo Poti, irmão de Jacaúna, que plantou comigo a árvore da amizade. Há três sóis partimos para a caça; e perdido dos meus, vim aos campos dos tabajaras (ALENCAR, 1991, p. 08).

Além dos diálogos, as passagens narrativas que ajudam no encadeamento da história também são recortes do romance, conforme a passagem: “Atravessaram o bosque e desceram ao vale [...]. Iracema fez ao estrangeiro um gesto de espera e silêncio; logo depois desapareceu no mais sombrio do bosque [...]. Quando a virgem tornou, trazia numa folha gotas de verde e estranho licor” (ALENCAR, 1991, p. 11). Esse fato confirma o objetivo de seus autores, a fidelidade à obra de Alencar. 4 FECHANDO A CONVERSA Após a leitura de Iracema, em quadrinhos, fica visível que os aspectos analisados: as cores e o cenário, as ações, as personagens e a linguagem foram importantes para a composição desta HQ, porque os autores dessa adaptação exploraram ao máximo essas características, buscando torná-las o mais atrativo possível para os leitores a que se destina, o público jovem. A união das duas linguagens, verbal e não-verbal, conferem a essa narrativa um alto poder criativo e comunicativo. Tudo aquilo que é descrito por meio de palavras no romance Iracema, em sua adaptação, são as imagem, o espaço, as cores e a distribuição de planos, que, trabalhados em conjunto, constituem a mensagem. Segundo Palhares (2008, p.10), “quanto maior for a originalidade e a criatividade do desenhista na composição desses códigos, maior será a carga expressiva e comunicativa da mensagem”. Os cenários na adaptação da obra constituem o que enredo não pode mostrar em palavras. Eles preenchem os lugres vazios, dando a noção de espaço, indo além da simples representação, reconstruindo o momento histórico da narrativa. Dessa maneira, o leitor viaja pela história por meio das imagens. Nessa HQ, diferente daquilo que conhecemos do gênero que traz diálogos curtos e simples, a linguagem, na revista Iracema, não é simplificada, ela é a transcrição da narrativa original, com alguns cortes, é claro. Percebemos assim, que o objetivo não é somente popularizar o clássico literário adaptado, expandindo o conhecimento da obra, mas sim, adaptá-lo com a melhor qualidade, levando em consideração linguagem do romance original e a sua intenção, a expressão do ufanismo brasileiro. Nas palavras de Jão e D’Ambrosio (2008, p. 42)

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acima de tudo, texto e imagem se combinam de modo a oferecer ao leitor uma visão precisa e lúdica de um livro que foi produzido em 1865, ainda no espírito de consolidação da independência, e que fora considerado ‘um poema em prosa’ agradando tanto aos leitores quanto aos críticos literários.

Essa citação reforça ainda mais o motivo pelo qual as HQs dos clássicos literários devem estar presentes em sala de aula e outros ambientes pedagógicos da escola. Elas devem ser vistas como entrada para o mundo da Literatura. A adaptação analisada é resultado do esforço de seus realizadores em trazer para o conhecimento do público mais jovem o enredo de um dos grandes clássicos da Literatura nacional, que não pode ser dispensado pela da leitura de sua adaptação, a qual deve funcionar como um saber complementar que promove um interesse no leitor em conhecer a produção original, o romance Iracema. Essa adaptação é vista como mais um recurso pedagógico se levada em consideração que pode ser o primeiro contato do leitor com a obra, conduzindo o jovem à reflexão e conhecimento do conteúdo, despertando nele, posteriormente, o interesse em conhecê-la na íntegra, adquirindo assim, o gosto pela leitura literária. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando entendemos que a prática da leitura acontece de forma mais efetiva a partir do momento em que é motivada pela necessidade e pelo prazer, consideramos as HQs instrumentos pedagógicos que estimulam o desenvolvimento dessa prática, quer seja nas instituições escolares ou em outros ambientes. Assim, o conhecimento de obras do clássico literário brasileiro, por meio de uma ferramenta que já faz parte da realidade de crianças e adolescentes, as HQs, possibilita a esse público o contato com leitura de narrativas clássicas, as quais se apresentam sob uma nova forma, mais atraente e lúdica, contribuindo, posteriormente, para o conhecimento e leitura do enredo original. A presença dos clássicos, em quadrinhos, dentro da escola, também, possibilita ao professor incentivar, além da leitura, a escrita do aluno, pois as HQs são diversificadas, informativas e coloridas. São recursos que chamam a atenção da criança e adolescente e apresentam narrativas que empolgam e satisfazem os leitores. Logo, podemos afirmar que o colorido presente em Iracema, em quadrinhos, é um dos fatores que atraem o jovem para sua leitura, além do interesse deste em conhecer a obra. Nesse contexto, as HQS são gêneros privilegiados a serem utilizados em sala, pois, elas relacionam escrita e imagem num único meio. Desse modo, a adaptação de Jão e D’Ambrosio representa muito bem essa afirmativa, uma vez que retrata um romance clássico da Literatura brasileira, Iracema, por meio de quadrinhos que apresentam textos e imagens, que traduzem a obra do escritor José de Alencar para um novo público, mas, sem esquecer sua essência, o ufanismo brasileiro. REFERÊNCIAS ALENCAR, J. Iracema: lenda do Ceará. 7 ed. São Paulo: ÁTICA, 1991 CIRNE, M. História e crítica em quadrinhos. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990. FRANCHETTI, P. (Org.). Iracema, de José de Alencar. 1ed.Cotia (SP): ATELIÊ EDITORIAL,2007v.1317p. Disponível em: http://books.google.com.br/books/p/atelie?id =vUWDaqvNCLsC&pg=PA18&source=gbs_to _ &cad=2#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 03 maio de 2012

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JOÃO E D’AMBROSIO, O. Adaptação de Iracema/ José de Alencar - São Paulo: NOOVHA AMÉRICA, 2008 Disponível em:http://www.4shared.com/document/ EnZUwByV/iracema.html. Acesso em: 24 nov. 2011 PALHARES, M. C. História em Quadrinhos: Uma Ferramenta Pedagógica para o Ensino de História. 2008 Disponível em:http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/ portals/pde/arquivos/2262-8pdf. Acesso em: 26 abr. 2012 SANTOS, M. O.; GANZAROLLI, M. E. Histórias em quadrinhos: formando leitores. TransInformação, Campinas, n. 23, v. 1, p. 63-75, jan./abr. 2011 Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2012 SILVEIRA, C. Iracema e a graciosa ará: As metáforas e comparações entre personagens e natureza em “Iracema”. 2009. 190 f. Dissertação (Mestrado em Literatura brasileira)Universidade de São Paulo. SÃO PAULO. 2009. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-2303201 Acesso em. 03 maio de 2012

PRÁTICAS DO ENSINO DE LÍNGUAS

CANTINHO DE LEITURA: UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DE CRIANÇAS LEITORAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL JULIANA TORRES DOS SANTOS (UFPA) LORENA BISCHOFF TRESCASTRO (UFPA) RESUMO: Este artigo apresenta os resultados preliminares de um estudo sobre estratégias de leitura adotadas pela professora na sala de aula, a partir do cantinho de leitura, que contribuem para a formação de crianças leitoras na Educação Infantil. A metodologia da pesquisa, de caráter qualitativo, envolveu: pesquisa bibliográfica e observações em sala de aula de uma turma de Educação Infantil, em uma escola particular, localizada em Belém. A análise dos dados está fundamentada em Colomer (2007), Jolibert (1994), Lajolo (2005), Schneuwly e Dolz (1999) e Solé (1998). Os resultados preliminares da pesquisa apontam que as estratégias de leitura mais utilizadas pela professora foram leitura de histórias, seguida de diálogo e desenhos, e exploração espontânea do acervo literário do cantinho de leitura pelos alunos. Na análise se observou que de uma atividade coletiva e oral de leitura de histórias, resultaram registros individuais e visuais, pictográficos e escritos, reveladores da compreensão leitora da criança, no entanto o acervo do cantinho de leitura poderia ser ampliado com vistas a incluir outros gêneros discursivos, como cantigas, quadrinhos e brincadeiras infantis. Palavras-chave: Cantinho da leitura; Estratégias de leitura; Educação Infantil. 1 INTRODUÇÃO A formação de crianças leitoras na Educação Infantil nem sempre é prática corrente nas escolas, que posterga as atividades para a aprendizagem da leitura para o Ensino Fundamental, no entanto sabe-se que as crianças antes dos seis anos de idade têm interesse em ouvir e contar histórias e podem representar estas mesmas histórias já conhecidas através de desenhos acompanhados de legendas escritas. Além disso, a criança convive cotidianamente em suas práticas diárias de linguagem com uma diversidade de gêneros textuais que nem

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sempre são explorados no espaço escolar para promover estratégias de leitura na Educação Infantil. O interesse pelo estudo sobre a formação de crianças leitoras na Educação Infantil surgiu no decorrer do estágio, realizado pela primeira autora deste artigo, no Curso de Licenciatura Integrada em Educação em Ciências Matemática e Linguagem (IEMCI/UFPA), quando se constatou por parte da professora da turma um trabalho didático para a aprendizagem da leitura a partir do cantinho de leitura instalado em sala de aula. Este tema abrange a importância da leitura no contexto educacional, uma vez que diferentes práticas podem ser adotadas, desde o ingresso da criança na escola, e mediadas como estratégias que contribuem para a construção do conhecimento do mundo das letras pela criança. Neste estudo, destacamos o papel da escola na formação de crianças leitoras, desde a Educação Infantil, porque de modo geral nem sempre as crianças dispõem em outro lugar que não a escola de um acervo variado de livros que lhe oportunizem acesso a uma diversidade de histórias infantis. Ao nos propormos a estudar o trabalho de leitura na sala de aula é possível explorar e conhecer as estratégias que são adotadas nas práticas de sala de aula na Educação Infantil que são essenciais ao processo de ensino e aprendizagem e podem motivar e despertar, dependendo das estratégias adotadas pelos professores, o interesse das crianças pela leitura na escola e fora dela. A leitura deve partir do universo da criança para despertar o interesse durante as atividades de linguagem, como é o caso da ambiência de leitura criada na sala de aula com o cantinho de leitura, que dispõe de recursos que podem ser explorados em várias atividades em sala de aula. Se tratando de um estudo de práticas escolares de leitura é que pretendemos observar as estratégias utilizadas pela professora, numa turma de Educação Infantil, a partir do cantinho de leitura, que é um espaço essencial para o processo de ensino e aprendizagem a fim de contribuir para a realização de diferentes atividades e proporcionar a interação com uma variedade de livros infantis. A partir do cantinho de leitura, o professor pode explorar diversas estratégias que podem contribuir para a formação de crianças leitoras a fim de desenvolver as práticas de leitura. Esse cantinho que se encontra no espaço escolar serve como recurso para auxiliar o professor no envolvimento da turma provocando o interesse das crianças por diferentes textos literários que as encantam, pois, com o cantinho de leitura, elas têm acesso a um acervo literário e podem escolher o livro que desperta sua atenção, tal como os leitores o fazem em atividades sociais fora da escola, por exemplo, em uma livraria ou banca de revistas. Durante o estágio foram observadas situações em que, quando as crianças estão no cantinho de leitura, elas escolhiam o livro que desejavam ler, depois começavam a folhear o livro de histórias, olhavam e comentavam o que estavam vendo nas imagens e passavam o dedo para mostrar que estavam fazendo a leitura e começavam a contar a história do seu jeito. Pode-se notar que pelo simples fato da criança manusear e escolher o livro, tais procedimentos geram uma atitude autônoma no processo de leitura. Diante do exposto, considerando que as práticas de leitura na Educação Infantil são essenciais para a aprendizagem da linguagem pela criança, o estudo foi desenvolvido a partir das seguintes questões norteadoras: (1) como as crianças interagem com os livros no cantinho de leitura, se de modo espontâneo ou mediado pela professora? (2) quais atividades de leitura a professora realiza com a turma utilizando o acervo literário do cantinho de leitura? (3) o que foi proposto para que as crianças realizassem após o momento que permaneceram no cantinho de leitura? (4) o que propor para contribuir na formação de crianças leitoras além do que foi observado nas aulas? De modo geral, com este estudo buscou-se identificar estratégias de leitura, adotadas pela professora na sala de aula, a partir do cantinho de leitura, tendo em vista contribuir para a formação de crianças leitoras na Educação Infantil. Para tanto, primeiramente foram feitos

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registros de como as crianças interagem com o acervo literário disponível no cantinho de leitura na sala de aula. Em seguida, foram apontadas as estratégias adotadas pela professora nas situações didáticas com enfoque na leitura, incluindo a análise das produções das crianças. E, por fim, a título de sugestão, com vistas a contribuir com as práticas de leitura na Educação Infantil, foram apontadas outras estratégias de leitura que podem ser incluídas às práticas observadas. Neste sentido, entendemos que o registro e a análise de como as crianças interagem com os livros no cantinho de leitura e de quais atividades a professora realizou com a turma, utilizando o acervo literário, podem contribuir para a compreensão sobre o uso do cantinho de leitura como espaço privilegiado para a formação de crianças leitoras na Educação Infantil. 2 METODOLOGIA A pesquisa, com abordagem qualitativa, foi desenvolvida em quatro etapas metodológicas: pesquisa bibliográfica, observação em sala de aula, análise dos dados coletados e sugestões de estratégias de leitura para a Educação Infantil, conforme segue: (1) Na primeira etapa foi feito levantamento bibliográfico acerca das práticas e estratégias de leitura na sala de aula. (2) Na segunda etapa foram feitas dez observações em sala de aula em uma turma de Educação Infantil, de uma escola particular de Belém, no período de 21 de fevereiro a 06 de junho de 2014, às sextas-feiras, porque era neste dia da semana que estavam previstas no planejamento as atividades no cantinho de leitura. A coleta de dados se deu por meio de registros fotográficos e anotações no diário de bordo, focalizando as estratégias de leitura no ambiente escolar a partir do cantinho de leitura. (3) A terceira etapa compreendeu a análise dos dados coletados na observação, com vistas a evidenciar as atividades propostas pela professora e realizadas pelas crianças em sala de aula. (4) Na quarta etapa, a título de contribuição às práticas de leitura, foram feitas considerações e apontadas estratégias para a formação de crianças leitoras na Educação Infantil, para além do que foi observado. 3 APRENDIZAGEM DA LEITURA NA EDUCAÇÃO INFANTIL De acordo com Colomer (2007, p.198), “incentivar a leitura e ensinar a ler são os dois eixos sobre os quais discorre a inovação no ensino da literatura”. O convívio das crianças com os livros na sala de aula, desde a Educação Infantil, se constitui em uma condição essencial para a educação literária das novas gerações. Ainda que não saiba ler, no sentido literal do termo, na escola, quando a criança observa o professor lendo para ela sua atenção se volta para aquele que conta a história que até o momento para ela era desconhecida ou sabe pouca coisa a respeito. Ouvir histórias lidas ou narradas pelos adultos é essencial para o desenvolvimento da linguagem infantil. Pesquisas de Wells (1988), citadas por Teberosky e Colomer (2003, p. 170), concluíram que “a preparação mais benéfica para a aquisição da linguagem escrita consistia em ter escutado narrações ou leituras de histórias”. A criança ao observar o adulto ler, deseja fazer o mesmo, isso mobiliza na criança atitudes leitoras e quando tem a oportunidade de escolher um livro para folhear, como no acesso ao acervo literário do cantinho de leitura, organizado na classe de Educação Infantil, fará suas próprias escolhas em relação ao tipo de livro a ser lido, pois já conhece um repertório de histórias. Essas vivências também repercutem na compreensão que a criança vem construindo acerca da cultura escrita, tal como indicam Trescastro e Silva (2014, p. 2069) ao afirmarem que: Do ponto de vista pedagógico, a leitura em voz alta pelo professor à turma, um gesto coletivo, seguida da produção escrita da narrativa pelo aluno, uma atividade

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individual, no sentido de que cada aluno escreve seu próprio texto, ainda que subjetivamente para escrever acesse uma multiplicidade de vozes decorrentes de leituras e/ou concepções de sua própria individualidade, se constitui em uma intervenção necessária para que os alunos aprendam a se comunicar por escrito a partir da leitura de textos literários.

Ainda que não se pretenda que a criança na Educação Infantil saiba produzir um texto escrito, como é o caso das crianças do Ensino Fundamental, entende-se que ela possa reconstituir a narrativa por meio de desenhos, palavras, garatujas e expressões. De qualquer modo, ao manusear o livro, a criança começa a descobrir o que está por trás de cada página impressa. Ouvir a professora ler para ela e depois ter oportunidade de ler por si mesma, em um movimento social para um individual, se constituem em atividades, que certamente contribuem para a formação de crianças leitoras, desde a Educação Infantil. Práticas escolares de narração e leitura de histórias pela professora, realizadas sistematicamente, desde a Educação Infantil, podem proporcionar estratégias de leitura que contribuem para a formação de crianças leitoras criando situações, na sala de aula, na biblioteca ou em outros espaços de convívio com os livros e outros materiais de leitura, nas quais as crianças se envolvam em diversas atividades de leitura. No entanto, a aprendizagem da leitura decorre tanto das situações de ensino que são proporcionadas na escola quanto das situações vividas no cotidiano ao longo da vida. A esse respeito Lajolo (2005, p. 7) argumenta que “ninguém nasce sabendo ler, aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem por aí, na chamada escola da vida”. Com suas palavras, Lajolo nos chama atenção para que além da escola há outros lugares para se ler e aprender a ler, e que além de livros há outros tipos de textos que as crianças interagem fora da escola. Para Solé (1998, p. 87), “é preciso ensinar estratégias que ajudem a compreender diferentes tipos de textos”. A formação de crianças leitoras não se limita ao estudo da palavra e da frase, mas se estende ao texto. Conforme Jolibert (1994, p.149), o texto deve ser entendido como todo escrito autêntico (ou seja, não construído especificamente para ensinar/aprender a ler), integral (não desfigurado pela redução a um ‘trecho’), que responde a uma determinada situação efetiva. Serve para comunicar, isto é, expressar, informar, contar, descrever, explicar, argumentar e fazer entrar em jogo a função poética da linguagem. Na prática de sala de aula, o professor deve colocar à disposição dos alunos uma multiplicidade de textos que estão disponíveis em livros, jornais, revistas, catálogos, panfletos, cartazes, listas telefônicas, dicionários, filmes..., enfim o que circula na sociedade, em ambientes extraescolares, e é lido por leitores autênticos, “pode ser uma história, um artigo, um cartaz, uma ficha, uma carta, uma lista, um poema, um anúncio classificado, etc.” (JOLIBERT, 1994, p.149), porém não são os materiais disponíveis, propriamente, que criarão as condições de aprendizagem da leitura, mas as interações que as crianças realizarem com estes objetos culturais, com a orientação do professor, mediante a execução de projetos e atividades de leitura individual, em grupo e coletiva, de diferentes modos, com múltiplos significados. Em seus estudos Schneuwly e Dolz (1999) recomendam que o trabalho com gêneros textuais na escola se encaminhem no sentido de que as práticas sociais de linguagem se constituam como objetos de ensino da linguagem na escola. Para os autores, os gêneros do discurso servem como um “ponto de comparação que situa as práticas de linguagem” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6). De modo que ao se utilizar o gênero textual na escola, o texto se constitui como um instrumento que possibilita o estudo e a aprendizagem da língua sem deixar a comunicação fora desse processo, porque os textos e as atividades realizadas são

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legítimas, tais como ocorrem socialmente, fora da escola, e não produzidos apenas para servirem de objeto de ensino. Nesta mesma perspectiva, consta no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, p. 139) que “a ampliação do universo discursivo das crianças também se dá por meio do conhecimento da variedade de textos e de manifestações culturais que expressam modos e formas próprias de ver o mundo, de viver e pensar”. Entende-se que tal variedade inclui histórias infantis, brincadeiras, cantigas, lendas, histórias em quadrinhos, notícias, regras de jogo e todo tipo de texto que possa interessar à criança. Este Referencial sugere práticas de leitura para que sejam realizadas com as crianças em classes de Educação Infantil, quais sejam: “Participação em situações que as crianças leiam, ainda que não o façam de maneira convencional” (BRASIL, 1998, p. 140), ou seja, mesmo que ainda não dominem o sistema de escrita alfabética para proceder à decodificação do escrito, pode a criança desenvolver atitudes próprias de leitores experiências e suas preferências e gosto por determinado gênero literário. Neste mesmo sentido, o documento sugere também a “observação e manuseio de materiais impressos, como livros, revistas, histórias em quadrinhos etc., previamente apresentados ao grupo” e a “valorização da leitura como fonte de prazer e entretenimento” (BRASIL, 1998, p. 141). Uma das formas de se proporcionar essas práticas de leitura na sala de aula de Educação Infantil é a organização de um cantinho de leitura com materiais diversos que possam envolver as crianças em diferentes atividades de leitura, planejadas e espontâneas, como fonte de informação e entretenimento. 4 ANÁLISE DE DADOS O espaço do cantinho de leitura, presente no contexto da sala de aula observada, é destinado aos livros infantis com várias histórias adequadas às crianças na faixa etária de quatro a cinco anos, a partir do qual diversas histórias foram narradas e lidas pela professora provocando a imaginação e o encantamento das crianças. Nesse lugar onde ficam os diferentes livros ao alcance dos olhos e das mãos das crianças é que as leituras em voz alta pela professora foram rotineiramente realizadas às sextas-feiras no momento áulico denominado Ciranda da História. O local destinado aos livros de histórias, que são lidos para as crianças, ficava disposto na parede da sala, mais precisamente em um conjunto de sacolas confeccionadas com pano que ficavam suspensas (tipo sapateira), enfeitado com personagens da Turma da Mônica, que são personagens de histórias em quadrinhos, com seis espaços nos quais foram distribuídos os quarenta e dois livros de histórias infantis que compõe o acervo da sala de aula (Figura 1). Pode se observar pela condição do acervo que os livros foram manipulados pelas crianças e usados nas atividades de leitura. Figura 1: Acervo do Cantinho da Leitura

Fonte: Pesquisa de campo, 2014

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Na turma onde ocorreu a pesquisa, observou-se que toda sexta-feira, conforme o planejamento da rotina da sala de aula, ocorria a atividade chamada Ciranda da História. Nesta atividade, a turma ouvia a leitura de uma história feita pela professora, mas antes era feita a eleição da história a ser lida por que alguns alunos queriam ouvir a história que despertava sua atenção e interesse, divergindo em suas preferências. Devido à diversidade de preferências, para proceder à escolha do livro a ser lido pela professoa, naquele dia, a professora realizava uma votação para eleger a história preferida pela maioria das crianças da turma. As histórias que foram lidas pela professora no decorrer do semestre foram diversas conforme a escolha dos alunos (Quadro 1). As histórias apresentam temas próprios do universo infantil, pois contam histórias sobre personagens criativos que despertam a curiosidade da criança de 5 e 6 anos, faixa etária correspondente ao público da pesquisa. De modo geral foi observado que a leitura de histórias mediada pela professora no decorrer da Ciranda contribuiu com o processo de aprendizagem da linguagem dos alunos. Houve interação da turma, no momento da leitura, quando a história de um personagem começava a se desenhar na imaginação da criança, cujas ideias foram posteriormente manifestas em seus desenhos. Após ler a história, antes de pedir para as crianças desenharem a história, a professora fazia questões provocativas da fala e da imaginação infantil sobre aspectos relacionados à história. Essa interação no momento e após a leitura da história foi fundamental, pois em parte o que comentaram oralmente correspondeu ao que as crianças registraram em seus desenhos (Figuras 2, 3, 4 e 5). Os livros de literatura infantil, enumerados no Quadro 1 apresentado a seguir, que foram lidos durante a Ciranda da História na classe, tendo a cada sexta-feira a realização de uma nova leitura pela professora à turma. Quadro 1: Cronograma de livros lidos na Ciranda da História 1 Um castelo com vampiros 2 O mágico de OZ 3 A cigarra e a formiga 4 A loira do banheiro 5 Que horta 6 João e o pé de feijão 7 O soldadinho de chumbo 8 O flautista de Hamelis 9 Inácio o rato sortudo 10 Quero ser uma princesa

21/02/2014 07/03/2014 14/03/2014 21/03/2014 28/03/2014 04/04/2014 25/04/2014 16/05/2014 30/05/2014 06/06/2014

Fonte: Pesquisa de campo, 2014 Conforme mostra o Quadro 1, foram dez as histórias lidas na Ciranda da História, durante o semestre. No decorrer das observações, verificou-se que a atividade ocorria de forma lúdica e espontânea com a participação das crianças, inclusive na escolha do livro, o que motivava a criança para ouvir a leitura e para realizar as atividades que foram desenvolvidas em sala de aula, durante e após a leitura do livro. Com essas atividades, os alunos aprenderam a ouvir histórias, por se tratar de algo que é rotina para eles, pois sabiam de antemão que aquele era o momento de ouvir uma nova história. Após cada leitura realizada, também ocorreram novas interações, questionamentos, comentários e observações pelas crianças, que contribuíram, por certo, para o processo de ensino e aprendizagem da linguagem. Pode-se observar que a forma como a professora procedeu à leitura de uma história fez com que os alunos ficassem atentos gerando imagens mentais como se estivessem assistindo a um desenho animado. Essa atividade de ouvir histórias faz com que a criança preste atenção na situação vivenciada e lhe dá condições para depois reproduzir e criar suas próprias histórias seja através de desenhos, de garatujas ou da escrita. Em cada livro há uma história

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que traz ensinamentos que ajudam no desenvolvimento da criança que ouve atentamente a leitura realizada pela professora. Nesse processo de ensino, entendemos que a leitura de histórias infantis, enquanto prática cotidiana, contribui para o desenvolvimento do imaginário e da linguagem da criança. Ao realizar a leitura, na Ciranda da História, a professora procurava atrair a atenção da criança, seja no uso da entonação da voz, da gesticulação, da apresentação das ilustrações do livro, dentre outras maneiras que utilizava no momento da leitura. As crianças observavam e ouviam atentamente cada detalhe da história, pois ao ouvirem a leitura, elas começam a imaginar o que ocorria na história, esse é, neste momento, o modo de ler das crianças, cujo texto chegava pela voz da professora. Após a leitura da história pela professora, na Ciranda da História, os alunos comentavam a história ouvida oralmente e quando perguntados sobre a história destacavam os personagens que estavam em cena no momento da leitura e agora passaram a fazer parte do seu imaginário. Depois da interação sobre a história, em que os alunos comentavam a história ouvida oralmente, os alunos passavam para o processo de registro escrito da história ouvida e comentada. Para realizar a atividade de registro da história, cada criança recebia uma folha de papel A4 para escrever o título da história e desenhar sobre a história. Cada aluno fazia seu registro de seu jeito e pintava o desenho para colocar no mural, onde ficavam as histórias da leitura realizada, naquela semana, assim todos podiam visualizar o desenho do outro com o que foi registrado sobre a história. Depois, ao final do semestre, os desenhos dos alunos foram encadernados, pela professora, compondo um caderno por aluno e cada criança pode levar para casa os seus desenhos (Figuras 2, 3, 4 e 5), feitos a partir das atividades de leitura na Ciranda da História, com o acervo literário do cantinho de leitura. Figuras 2: Desenho e escrita da criança – A cigarra e a formiga

Fonte: Pesquisa de campo, 2014

Figuras 3: Desenho e escrita da criança – Que horta

Fonte: Pesquisa de campo, 2014

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Nos desenhos das crianças pode-se observar a presença dos personagens principais de cada história e o cenário em que ocorreram os acontecimentos da narrativa. Ao reproduzirem as histórias através de desenhos as crianças trabalharam o reconto da história porque muitas vezes se verificou a necessidade das crianças de falarem sobre seus desenhos, contando para a professora e para a estagiária o que tinham feito. Tais registros visuais, pictográficos e escritos são reveladores da compreensão leitora infantil, pois as crianças reproduziram em seus desenhos elementos que estavam presentes nas histórias ouvidas. Ao se referirem ao desenho, as crianças recuperavam de memória o que tinha ouvido da história, provocando o reconto com palavras próprias, cuja atividade favorece o desenvolvimento da linguagem infantil manifesta na fala, no desenho e na escrita. Figuras 4: Desenho e escrita da criança – João e o pé de feijão

Fonte: Pesquisa de campo, 2014

Figuras 5: Desenho e escrita da criança – Quero ser uma princesa

Fonte: Pesquisa de campo, 2014 Com a leitura das histórias pela professora, percebeu-se o interesse dos alunos pela literatura infantil, pois eles pediam para manusear os livros ou até mesmo para que fosse feita a leitura para eles em outros momentos da aula que não às sextas-feiras, quando ocorria a Ciranda da História. De modo que atividades espontâneas por parte dos alunos para realizar a leitura dos livros foram observadas em sala de aula. No cantinho de leitura, em determinados momentos das aulas, a turma começava a explorar os livros de forma espontânea, por gostar das histórias que foram contadas pela professora ou por explorar as imagens das páginas de outros livros, ainda não lidos coletivamente. Mesmo ainda não dominando a leitura das palavras escritas, as crianças manipulavam o livro como se estivessem lendo a história. Cada criança tem sua preferência quando escolhe o livro, observou-se que as meninas, normalmente, preferiam histórias de princesa e os meninos histórias de aventura e de super-heróis.

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O interesse pela literatura infantil por parte das crianças foi demonstrado constantemente em sala de aula, após o recreio uma das coisas que elas faziam era pegar os livros do cantinho de leitura e começar a visualizar cada página, seguindo a orientação própria do movimento do ato de ler livros, da esquerda para direita, atitude típica de um leitor. Isso demonstra que as atividades de leitura realizadas pelo grupo que foram conduzidas pela professora, aos poucos foram repercutindo em atitudes autônomas realizadas pelas crianças que passaram a explorar o acervo literário do cantinho de leitura de maneira espontânea e individual. Pode-se constatar, no decorrer das observações, que proporcionar aos alunos acesso às histórias pela voz do professor que lê o texto em voz alta, envolvendo a criança no momento em que é contada a história, enquanto atividade de rotina do planejamento semanal, por meio da Ciranda da História, por exemplo, como ocorreu na turma em que se deu a pesquisa, é uma das estratégias possíveis de serem utilizadas na escola para favorecer a formação de crianças leitoras na Educação Infantil. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS É o cantinho de leitura, do modo como foi trabalhado pela professora da turma, inserido no planejamento semanal como parte da rotina escolar, com a Ciranda da História, um espaço privilegiado na sala de aula que promove a participação e o envolvimento das crianças em atos de leitura suscetíveis de impulsionar o trabalho didático para a aprendizagem da leitura e da escrita na Educação Infantil. Os desenhos das crianças foram reveladores da compreensão leitora das histórias que ouviram. Pode se verificar com este estudo que ler, falar e registrar a história com desenhos e escrita se constitui em uma boa sequência de atividades a ser incluída no trabalho pedagógico para o desenvolvimento da linguagem da criança. O que podemos acrescentar a essa experiência, a título de sugestão, é promover a ampliação do acervo, no segundo semestre letivo, com a renovação dos livros, que já estão desgastados pelo uso e manuseio. Para tanto, poderia ser feita uma campanha de doação de livros, envolvendo a família dos alunos e os estagiários que atuam nas turmas da escola. O envolvimento dos pais ou responsáveis na recomposição do acervo literário da sala de aula poderia se estender com o dia do empréstimo do livro, para que os alunos pudessem levar o livro para ser lido em casa, motivando-os a realizarem leituras para além do espaço da sala de aula. Para além do trabalho de leitura a partir da Ciranda da História, na turma poderia também ser realizada a leitura de outros gêneros textuais como cantigas, poesias, notícias, histórias em quadrinhos e brincadeiras infantis, tal como recomendam o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que indica como práticas de leitura a “participação nas situações em que os adultos leem textos de diferentes gêneros, como contos, poemas, notícias de jornal, informativos, parlendas, trava-línguas etc..” (BRASIL, 1998, p. 140). Para isso poderia ser incluído no planejamento o dia do varal de notícias, quando os alunos iriam manipular textos jornalísticos, e o dia da confecção de brinquedos, no qual as crianças leriam junto com a professora o passo a passo para a confecção do brinquedo e depois as regras da brincadeira, e no acervo do cantinho de leitura poderiam ser incluídas revistas de histórias em quadrinhos, que por serem ilustradas e criativas apresentam narrativas que interessam às crianças da Educação Infantil, por exemplo. Tais sugestões, dentre outras possíveis, visam à inclusão de outros gêneros textuais, no cantinho de leitura, como mediadores da formação de crianças leitoras.

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REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. V. 3 Brasília: MEC/SEF, 1998 COLOMER, T. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007 JOLIBERT, Josette e colaboradores. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994 LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6 ed. São Paulo: Ática, 2005 SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n.11, p.5-16, Maio/Jun./Jul./Ago. 1999. SOLÉ, Izabel. Estratégias de leitura. 6 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. TEBEROSKY, Ana; COLOMER, Teresa. Aprender a ler e a escrever: uma proposta construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003. TRESCASTRO, Lorena Bischoff; SILVA, Cilene Valente da. Narrativas infantis: a interlocução entre a recepção oral e a produção escrita no 3º ano do ensino fundamental de 9 anos. Revista Linha Mestra, N.24, ALB. Ano VIII, Jan.Jul.2014, p. 2066-2070. Disponível em: http://linhamestra24wordpress.com/artigos/.

PRÁTICAS DE LEITURA: QUAIS SÃO AS METODOLOGIAS UTILIZADAS PELO PROFESSOR PARA O ENSINO DA LEITURA? RENATA APARECIDA SANTOS DE SOUZA (UFPA)67 LORENA BISCHOFF TRESCASTRO (UFPA)68 RESUMO: Este trabalho apresenta os resultados de um estudo preliminar sobre metodologias utilizadas pelo professor para o ensino da leitura nos anos iniciais do Ensino Fundamental com vistas a contribuir para a reflexão sobre as práticas de leitura na sala de aula. A metodologia da pesquisa, de caráter qualitativo, envolveu: pesquisa bibliográfica, observação na escola e aplicação de questionário a professores de uma escola pública, localizada na região insular de Belém. O estudo está fundamentado em Bakhtin (1992), Freire (1989), Kleiman (1992), Rojo (2000) e Schneuwly e Dolz (1999). Os resultados preliminares da pesquisa sobre as metodologias utilizadas pelo professor para o ensino da leitura em sala de aula apontaram para a necessidade da elaboração de uma proposta didática de leitura, como prática metodológica e rotineira a ser inserida no planejamento docente, com o uso de materiais legítimos, incluindo diferentes gêneros discursivos para o ensino e a aprendizagem da leitura. Palavras-chave: Práticas de leitura; Planejamento docente; Gêneros discursivos. 67

Graduanda do Curso de Licenciatura Integrada em Educação em Ciências Matemática e Linguagem, do Instituto de Educação Matemática e Científica – IEMCI, da Universidade Federal do Pará – UFPA. E- mail: [email protected] 68 2 Mestre e Doutoranda em Letras, no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO A aprendizagem da leitura costuma ser um desafio, tanto para os pais quanto para os professores, por conta das dificuldades que frequentemente as crianças apresentam para compreender o que leem. Pois, normalmente, nos anos iniciais de escolaridade tanto pais quanto professores consideram a leitura apenas como um processo de decodificação do que está escrito, enquanto sabemos que a leitura vai além da decodificação, pois implica também na compreensão leitora. Para Kleiman (1992, p. 26), “o conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento da compreensão”. Isso significa dizer que para ser um leitor proficiente não basta apenas decifrar as palavras é necessário compreendê-las e para isso é necessário levar em consideração esses três conhecimentos para se alcançar a compreensão leitora. No entanto, nas práticas observadas em sala de aula, o que se vê é que as práticas de leitura, quando ocorrem, não focalizam estes três conhecimentos de modo integrado. Em observações feitas no decorrer do estágio, comumente se ouvia os professores comentarem que os alunos não sabiam ler e apresentavam dificuldades de leitura nas atividades escolares. Os professores se queixavam das dificuldades que os alunos têm para compreender os textos, pois o ensino da leitura na alfabetização muitas vezes se limita ao ensino da decodificação do escrito, com ênfase no estudo de letras e sílabas apenas, quando o aluno tem que ler um texto, sua leitura não alcança a compreensão leitora. Dificuldades estas que acabam desmotivando cada vez mais o aluno no ato de ler. Kleiman (2007, p.16) afirma que “ninguém gosta de fazer aquilo que é difícil demais, nem aquilo do qual não consegue extrair o sentido”, ou seja, os alunos precisam ser trabalhados didaticamente para que a leitura se torne uma atividade fácil para as crianças e elas, além da decodificação, possam compreender o texto e construir sentido no ato de leitura. O interesse por este estudo surgiu a partir da observação dos discursos dos professores que têm dificuldades em trabalhar a leitura em sala de aula, pois afirmam que seus alunos não gostam de ler, tais discursos foram registrados em observações e práticas de estágio feitas no decorrer do curso de licenciatura, pela primeira autora deste trabalho. De modo que foi a escuta da palavra do outro, numa perspectiva bakhtiniana, que motivou esta pesquisa numa atitude não de censura, mas, tal como explicou Faraco (2007, p.99), de “ouvir e escutar amorosamente a palavra do outro”. Portanto, o propósito de investigar as práticas pedagógicas dos professores nas escolas, para identificar quais são as metodologias utilizadas em sala de aula que acarretam dificuldades na aprendizagem da leitura, ou ainda, que metodologias de ensino da leitura podem contribuir para o enfrentamento de tal problemática, vem atender a uma demanda observada no interior da escola, a partir da palavra daquele a quem cabe ensinar os alunos a ler, o professor. A escola é a instituição que tem a função social de ensinar a ler e a escrever, a função de alfabetizar em uma abordagem que agregue alfabetização e letramento as crianças nela matriculadas, mas ainda há muitas discussões a respeito do ensino da leitura nas escolas, pois há crianças que frequentam a escola, mas não são ainda proficientes na atividade de leitura. Isso acarreta dificuldades no ensino da língua portuguesa e, em consequência, em outras disciplinas também, pois afeta a compreensão e a interpretação de textos e o acesso ao conhecimento escrito em outras áreas, uma vez que a leitura é prática interdisciplinar. Segundo Kleiman e Moraes (2007, p. 91), “a principal tarefa da escola é ajudar o aluno a desenvolver a capacidade de construir relações e conexões entre os vários nós da imensa rede de conhecimento que nos enreda a todos”. E é, para as autoras, a leitura a prática social para o desenvolvimento dessa capacidade de pensar interdisciplinarmente. No geral, no decorrer da pesquisa, foi perceptível que na escola os alunos são pouco motivados à leitura de textos diversos. Os professores muitas vezes utilizam da leitura apenas

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para responder às práticas didáticas em sala de aula, tendo como fonte textual o livro didático, não havendo uma provocação para um interesse maior para a prática de leitura, sem planejamento de leitura, sem projetos de leitura na escola, sem espaços convidativos à leitura, fazendo com que o aluno fique ainda mais desmotivado e perca cada vez mais o interesse em buscar a compreensão leitora que é de extrema importância não só para as práticas escolares, mas para a vida intelectual e social de todo cidadão. Partindo das condições observadas no contexto escolar, buscou-se investigar a partir do discurso do professor as práticas pedagógicas desenvolvidas em sala de aula quanto às metodologias para o ensino e a aprendizagem da leitura, a fim de contribuir com tais práticas. De modo que a presente pesquisa decorre dos seguintes questionamentos: Quais são os desafios encontrados pelos professores para ensinar a leitura nos anos iniciais do Ensino Fundamental? Quais são os recursos que a escola dispõe para o desenvolvimento de práticas leitoras? Quais são as dificuldades dos alunos para a aprendizagem da leitura? Que práticas docentes são utilizadas para a superação das dificuldades do aluno na aprendizagem da leitura? Quais são as metodologias utilizadas pelo professor para o ensino da leitura nos anos iniciais de escolaridade? O que propor para a melhoria das práticas de leitura na escola? Este estudo de caráter preliminar, ainda que não tenha a pretensão de esgotar os questionamentos feitos anteriormente, tem por objetivo investigar quais são as metodologias utilizadas pelo professor no ensino da leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental com vistas a contribuir com uma reflexão sobre as práticas de leitura na sala de aula. Busca-se compreender com essa pesquisa, as práticas de leitura utilizadas pelo professor em sala de aula nos anos iniciais do Ensino Fundamental, já que, segundo sugerem os discursos dos próprios professores, o ensino de leitura é ainda deficitário. Por fim, pretende-se, diante desta problemática, a partir dessa investigação, sugerir aspectos norteadores para elaboração de um plano de ação que possa superar as dificuldades encontradas em sala de aula, contribuindo com uma reflexão para que o ensino de leitura seja satisfatório nos anos iniciais Ensino Fundamental. Para fins de apresentação, o presente artigo está organizado em quatro seções. A primeira apresenta as discussões teóricas que embasaram o estudo das práticas metodológicas de leitura na sala de aula, fundamentadas em Bakhtin (1992), Freire (1989), Kleiman (1992), Rojo (2000) e Schneuwly e Dolz (1999; 2004). A segunda expõe os procedimentos metodológicos da pesquisa, de caráter qualitativo, realizada no primeiro semestre de 2014, envolvendo pesquisa bibliográfica e aplicação de questionário a professores de uma escola pública, localizada na região insular de Belém. A terceira seção traz a análise dos dados da pesquisa, enfatizando o que dizem os professores sobre as práticas de leitura na sala de aula, a partir dos resultados dos questionários. Por fim, na quarta seção são feitas considerações finais e apresentados a título de sugestão aspectos norteadores para orientar a elaboração de um plano de ação para a inserção e diversificação das práticas de leitura na sala de aula. 2 REFERENCIAL TEÓRICO Em primeiro lugar, para refletir sobre a criança e o professor, enquanto sujeitos participantes das práticas de leitura em sala de aula, o presente estudo buscou nas explicações de Faraco (2007) entender a perspectiva bakhtiniana de homem sócio- histórico, ativo, transformador, criador de significações, enquanto ser de linguagem atuante no processo de interação verbal. Com esse modo de ver, nesta pesquisa, pretende-se encontrar “meios para se compreender não coisas e fragmentos de coisas, mas a própria condição humana” (FARACO, 2007, p.100). De acordo com a arquitetura bakhtiniana, o homem é um ser de linguagem que se constrói e se desenvolve a partir dos signos sociais, nas relações sociointeracionais, agindo

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internamente sob a lógica destas relações, das quais emergem gestos singulares (FARACO, 2007). Esse modo de ver se estrutura a partir de uma concepção radicalmente social do homem. Trata- se de apreender o homem como um ser que se constitui na e pela interação, isto é, sempre em meio à complexa e intrincada rede de relações sociais de que participa permanentemente (FARACO, 2007, p.101).

Entendemos que é a escola e a sala de aula, principais locus deste estudo, um espaço de interação no qual os sujeitos que lá estão vivenciam relações sociais, além de interagirem com diferentes objetos de conhecimento, tais como os livros e os textos, que trazem a palavra de outros sujeitos. Neste sentido, neste estudo, a criança é vista como um sujeito capaz de aprender a ler, compreender e interpretar textos, agir sobre eles e transformá-los, atribuindolhes significações novas e o professor, enquanto sujeito histórico, não é mero reprodutor do antes feito, mas é capaz de refletir sobre suas práticas, ressignificá-las e transformá-las a fim de criar condições novas que levem o aluno a aprender a ler em um sentido mais amplo. Ao nos referirmos à leitura não em sentido restrito de mera decodificação, mas em um sentido mais amplo, nos reportamos à compreensão de leitura de Freire (1989), para o qual a leitura possibilita a ampliação da visão de mundo. Segundo Freire (1989, p.11-12), A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.

Para Freire (1989), a leitura é um instrumento fundamental para que o sujeito construa seu conhecimento e exerça sua cidadania. Isso porque a leitura, além de ampliar o entendimento do mundo que o leitor vem construindo, proporciona o acesso ao conhecimento com autonomia e possibilita a reflexão crítica, o debate e a troca de ideias de modo contextualizado. Desse modo, a leitura é, simultaneamente, objeto de conhecimento, instrumento de aprendizagem, prática social e de cidadania. Neste sentido, o ato de ler se constitui em uma ferramenta essencial ao desenvolvimento do sujeito em um ponto de vista dialógico e social, nas atividades de interação verbal, tal como preconiza a perspectiva bakhtiniana. Embora Bakhtin (1992) não tenha abordado aspectos referentes à leitura propriamente, sua concepção de linguagem se coaduna com a abordagem dada à leitura por Freire (1989), uma vez que para Bakhtin (1992) a realidade fundamental da linguagem é a atividade humana inter-relacionada à sociedade, na qual os indivíduos participam de relações sociais de forma ativa e responsiva. A língua usada em forma de enunciados concretos em diferentes situações comunicativas do cotidiano integra a vida e constitui os sujeitos por meio dos enunciados que evocam. O ato de ler, enquanto experiência concreta de atribuição de significações, presente na sociedade letrada, desenvolve o pensamento reflexivo e crítico de transformação de significados a partir do diálogo e confronto de um sujeito-leitor com um determinado texto escrito, uma vez que a leitura sem compreensão é uma ação mecanizada, desprovida de significações (FREIRE, 1989). No entanto, convém destacar que os sentidos atribuídos a um texto não são os mesmos para toda gente, cada pessoa atribui ao texto significados singulares em razão de seu conhecimento linguístico, textual e de mundo (KLEIMAN, 1992). Além disso, o caráter dialógico da linguagem, numa perspectiva baktiniana, possibilita entender os processos de atribuição de significado a um texto escrito como em parte relativamente estáveis e em parte abertos, porque permite pensar as questões do signo para além dos sistemas formais, dos códigos com regras e definições fixas entre o significante e o

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significado, com uma linguagem fundada na heterogeneidade da vida humana (FARACO, 2007). Segundo Bakhtin (1992, p.280), a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. Cumpre salientar de um modo especial a heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos).

Isso implica dizer que cotidianamente nas situações vividas toda pessoa, umas mais outras menos e de modos por vezes diferentes, está exposta a atividades de linguagem que lhes convoca a receber/trocar (ouvindo ou lendo) e a emitir/produzir (falando ou escrevendo) textos manifestos em diferentes gêneros do discurso sejam eles orais ou escritos, numa dada situação de comunicação. No entanto, essa variedade de gêneros do discurso utilizados socialmente nem sempre adentra aos espaços da escola, nas atividades escolares de oralidade, leitura e escrita, como objetos de ensino e aprendizagem das práticas de linguagem. A esse respeito, Schneuwly e Dolz (1999) contribuem com estudos sobre o trabalho com gêneros textuais na escola, no qual as práticas sociais de linguagem, vivenciadas fora da escola, se constituem como objetos de ensino da linguagem na sala de aula, sendo que os primeiros passam a servir de referência para o ensino e a aprendizagem da língua. Para os autores, “as práticas de linguagem implicam dimensões, por vezes, sociais, cognitivas e linguísticas do funcionamento da linguagem numa situação de comunicação particular” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6). Já “a atividade de linguagem funciona como uma interface entre o sujeito e o meio e responde a um motivo geral de representaçãocomunicação” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6). E os gêneros do discurso servem como um “ponto de comparação que situa as práticas de linguagem” (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p. 6). De modo que o gênero textual, quando utilizado na escola, se constitui como um instrumento que instaura a possibilidade de incluir nos estudos da língua a comunicação. De acordo com Schneuwly e Dolz (1999), há três modos de se abordar os gêneros textuais na escola: (1) Gênero descontextualizado apenas como objeto de estudo, compreendido como sendo somente um conteúdo escolar, para o domínio da forma linguística, no qual há o desaparecimento da comunicação como objeto de estudo; (2) Gênero estudado dentro de uma situação de produção ficcionalizada, em que a escola é tomada como lugar de produção e utilização de textos, no qual a aprendizagem do gênero resulta da própria atividade de linguagem escolar; (3) Gênero estudado numa situação real de comunicação, no qual o gênero não é somente um objeto de estudo, nem resultado de uma simulação apenas, é condição para que a comunicação ocorra. Considera-se esta terceira maneira mais eficaz para se ensinar gêneros, na sala de aula, porque inclui a necessidade do uso social efetivo do gênero, tornando assim a situação de aprendizagem mais significativa. Fundamentada no pressuposto de que as práticas sociais de linguagem podem se constituir em práticas escolares de linguagem enquanto gêneros textuais a serem estudados na sala de aula, Rojo (2000) propõe três formas de organização pedagógica: projeto didático, módulo didático e sequência didática. Entende-se por projeto a organização didática que “tem um objetivo compartilhado por todos os envolvidos, que se expressa em um produto final em função do qual todos trabalham e que terá, necessariamente, destinação, divulgação e circulação social na escola ou fora dela” (ROJO, 2000, p. 36). O ensino baseado em projeto promove o envolvimento dos

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alunos em uma atividade de linguagem organizada para o alcance de um objetivo. Este modo de organização didática focaliza muito mais o processo de aprendizagem do que o produto final alcançado. Algumas das vantagens pedagógicas da organização das atividades em sala de aula por projeto são: flexibilidade do tempo, compromisso e envolvimento dos alunos com as atividades e com a própria aprendizagem, inter-relação necessária entre as práticas de uso da linguagem e de reflexão sobre a linguagem, possibilidade que apresentam de tratamento de temas transversais e da abordagem do conhecimento numa perspectiva interdisciplinar (ROJO, 2000, p. 36). Os módulos didáticos “são definidos como sequências de atividades exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam, progressivamente, apropriar-se das características discursivas e linguísticas dos gêneros estudados” (ROJO, 2000, p. 36). Os exercícios propostos são organizados numa sequência pelo professor tendo em vista a aprendizagem do aluno em aspectos pertinentes aos textos em estudo. Estas atividades propostas podem ser de leitura, escrita, oralidade ou de análise linguística, ou ainda a combinação entre elas, de modo a desenvolver competências linguísticas. A sequência didática é um planejamento proposto a partir de um texto e se constitui em “um conjunto de aulas, organizadas de maneira sistemática em torno de uma atividade de linguagem (seminário, debate público, leitura para os outros, peça teatral), no quadro de um projeto de classe” (ROJO, 2000, p. 36). Do mesmo modo, para Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), “sequência didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. De modo que as sequências didáticas “podem ser elaboradas tanto para módulos didáticos como para projetos, constituindo-se em um material didático de certa extensão, monotemático ou monogenérico, maior e mais aprofundado que unidades de livros didáticos” (ROJO, 2000, p. 36). Além do estudo de determinado gênero textual, pode a sequência didática ser organizada a partir de um texto em função de uma necessidade de aprendizagem dos alunos (TRESCASTRO e SILVA, 2013), tendo em vista o desenvolvimento da compreensão leitora com metodologias de ensino da leitura utilizando diversos gêneros textuais, por exemplo, que é o foco deste estudo. 3 METODOLOGIA A pesquisa, de caráter qualitativo, envolveu: pesquisa bibliográfica, observação na escola e aplicação de questionário a professores de uma escola pública, localizada na região insular de Belém. De modo que a pesquisa compreendeu quatro etapas: (1) pesquisa bibliográfica, fundamentada em Bakhtin (1992), Freire (1989), Kleiman (1992), Rojo (2000), Schneuwly e Dolz (1999; 2004), para buscar os aportes teóricos para o estudo da problemática e a análise dos dados; (2) observação na escola e aplicação de questionário com vinte e três questões, sendo cinco abertas e dezoito fechadas, a cinco professores que atuam do 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental de nove anos, para identificar aspectos relevantes às práticas de leitura na escola; (3) análise dos dados, evidenciando o perfil dos professores, os espaços de leitura da escola e o discurso dos professores acerca das práticas metodológicas de leitura na sala de aula; (4) elaboração de sugestões para orientar a elaboração de um plano de ação produzido para possibilitar ao professor o planejamento de uma rotina que contemple estratégias desafiadoras da aprendizagem da leitura em sala de aula. A pesquisa bibliográfica e a observação na escola foram realizadas no primeiro semestre de 2014, nos meses de abril, maio e junho, já a aplicação do questionário a cinco

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professores do Ensino Fundamental foi feita em junho, com o objetivo de levantar dados sobre o perfil dos professores e as práticas de leitura na escola. Com base na análise dos dados obtidos, fundamentada nos aportes teóricos estudados, foram apontados aspectos norteadores de um plano de ação para o ensino e a aprendizagem da leitura no Ensino Fundamental. 4 ANÁLISE DE DADOS Na coleta de dados mediante a aplicação do questionário, buscou-se primeiramente levantar o perfil dos docentes da escola, quanto à faixa etária, ao gênero masculino e feminino, à formação, ao ano do Ensino Fundamental em que atuam e às práticas docentes de leitura; em segundo lugar buscou-se levantar informações sobre os espaços e projetos de leitura que a escola dispõe; por fim, foram feitas questões abertas e fechadas sobre aspectos relacionados às práticas de leitura na sala de aula. Quanto ao perfil dos professores participantes da pesquisa, a faixa etária destes professores se situa entre 29 a 37 anos de idade. No que se refere ao gênero, dos cinco professores que participaram da pesquisa quatro são do sexo feminino e um do masculino. Quanto à formação, todos têm curso superior, sendo que quatro professores cursaram pósgraduação. Com relação ao tempo de conclusão do curso de graduação, de modo geral informaram que ocorreu no período de 5 a 10 anos. Dentre os professores, três atuam no 5º ano do Ensino Fundamental, um no 4º e outro no 2º ano. Sobre a frequência na qual praticam a leitura, todos disseram que leem frequentemente livros, jornais, revistas, blogs e sites na internet, porém quando solicitados a informar que livro está lendo atualmente apenas dois escreveram o título do livro, três não responderam. No que se refere aos espaços de leitura que a escola dispõe, três informaram que a escola não possui biblioteca e dois disseram que sim. Tal dissonância decorre provavelmente porque a Unidade Pedagógica, propriamente, não conta com uma biblioteca própria, porém a escola-sede a qual está institucionalmente ligada tem esse espaço escolar, portanto acredita-se que os três primeiros responderam tendo em vista sua unidade e os outros dois professores tomaram a escola-sede como referência. De qualquer modo não há uma biblioteca disponível para que o aluno desta unidade a frequente diariamente, ou assim que quiser ou necessitar. Os cinco professores responderam que a escola não dispõe de uma sala de leitura. Dos cinco professores, apenas um informou que há um cantinho de leitura em sua sala de aula. Todos os professores informaram que não há em execução na escola um projeto para a formação de leitores. Como se vê, não há na escola pesquisada um ambiente organizado com livros ou outros materiais de leitura à disposição dos alunos que os motive a prática de leitura a não ser o que o professor proporciona em sala de aula. Daí infere-se a relevância do trabalho docente em sala de aula para a formação de alunos leitores. Considerando os dados obtidos com a aplicação de questionário na coleta de dados serão apresentados na seção seguinte o que disseram os professores sobre as práticas de leitura na sala de aula. 4.1 O QUE DIZEM OS PROFESSORES SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA NA SALA DE AULA Em primeiro lugar buscou-se levantar dados sobre como os professores percebem a participação social dos alunos em atos de leitura fora da escola, ou seja, em seu contexto familiar e comunitário. Quando perguntados se os alunos participam de práticas de leitura fora da escola, todos responderam que não, sendo que uma resposta fez uma observação quanto a possíveis leituras que os alunos possam fazer no ambiente natural no qual convive. De fato é o contexto insular de Belém, por sua singularidade, desprovido de espaços públicos de leitura, como biblioteca, livraria, banca de revista, por exemplo.

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Com referência aos motivos pelos quais os alunos não leem em outros contextos que não o da escola, de modo geral, os professores responderam que porque “não gostam” e “não são motivados à prática de leitura”. Portanto, de suas respostas pode-se dizer que concebem os professores apenas a escola como espaço privilegiado para a formação de leitores. Entendemos que tal concepção amplia a responsabilidade social da instituição escolar frente à formação de leitores, considerando que é a leitura um instrumento fundamental para que a criança tenha acesso ao conhecimento e à cidadania (FREIRE, 1989). Nesta mesma perspectiva, os professores destacaram que a leitura é importante para a vida do aluno, bem como para seu desenvolvimento escolar, quanto a isso justificam que: A leitura é importante para o aluno compreender o mundo, ao redor dele em tudo existe leitura. (Professora 2, 3º e 5º ano) A leitura é a base para uma boa educação e aprendizagem com qualidade. (Professora 3, 5º ano) Possibilita o seu conhecimento do mundo e de si, e o auxilia no desenvolvimento de outras habilidades e competências. (Professor 4, 4º ano) Porque amplia o vocabulário e o conhecimento, contribui para a melhoria da ortografia e estimula a criatividade. (Professora 5, 5º ano)

Em seguida, as questões pretenderam levantar dados sobre as práticas de leitura em sala de aula propriamente. Em suas respostas, de modo geral predominaram os seguintes aspectos: - Os objetivos da leitura são: obter conhecimento, extrair informação, ter prazer; - A escola não executa nenhum projeto voltado para a formação de leitores; - A leitura acontece somente na sala de aula; - Atividades de leitura são realizadas diariamente; - Os alunos apresentam dificuldades nas aulas de leitura; - Predomínio de um processo mecanizado a um processo criativo que desafie a compreensão e a interpretação leitora. Sobre o modo como trabalha com a leitura em sala de aula, os professores responderam que: Leitura livre, de diferentes gêneros e formas. (Professora 1, 2º ano) Através da leitura de textos para os alunos, leitura individual dos alunos, os educandos produzem textos e leem as histórias que escrevem. (Professora 2, 3º e 5º ano). Todos os textos que são propostos para os alunos, eles têm que ler individualmente e depois em conjunto com todos da aula. (Professora 3, 5º ano). Leitura de textos e de livros infantis. As leituras são feitas no início da aula como referência para a realização de atividades (interpretação de textos). (Professor 4, 4º ano) Através da leitura individual e coletiva, interpretação de textos, análise de elementos textuais e diferentes tipos de textos. (Professora 5, 5º ano).

As respostas dos docentes não indicam claramente que há o desenvolvimento de projetos, módulos didáticos ou sequências didáticas (ROJO, 2000), voltado para o ensino e a aprendizagem da leitura. Como se vê, as práticas de leitura que os professores dizem usar parecem se pautar mais em uma expectativa de que a aprendizagem decorre de atividades espontâneas ou que tomam o texto lido como objeto de estudo, para favorecer o acesso ao conteúdo escolar e ao domínio da língua escrita, do que em práticas sociais de uso da linguagem que possibilitem de fato a comunicação. De modo que o gênero textual possa ser estudado a partir de uma situação real de comunicação, não apenas como objeto de estudo ou resultante de uma simulação, mas concebido como um modo mais eficaz para se trabalhar gêneros, na sala de aula, porque inclui a necessidade de seu uso social efetivo, tornando assim a situação de aprendizagem mais significativa (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999). Tal sugestão

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pode ser considerada quando se pretende formar alunos leitores, concebendo que “a leitura é importante para o aluno compreender o mundo” (Professora 2, 3º e 5º ano). Em relação às dificuldades que os alunos apresentam na leitura, os professores disseram que: Na sala do 2º ano temos alunos em níveis diversos, aqueles com dificuldades na identificação de sílabas, decodificação; outros na compreensão; cerca de 40% já tem leitura fluente, mas requer atenção na interpretação dessa leitura. (Professora 1, 2º ano). Os alunos apresentam dificuldades na leitura com palavras com encontros consonantais. Alguns ainda estão na fase pré-silábica e silábica. (Professora 2, 3º e 5º ano) Muitos alunos ainda não conseguem ler corretamente, pois apresentam muita dificuldade na hora de fazer uma leitura completa. (Professora 3, 5º ano) Leem com dificuldade; leem e às vezes não conseguem interpretar. (Professor 4, 4º ano) A falta de concentração, nenhuma fluência na leitura, a segmentação de palavras, erros de ortografia, dificuldade na interpretação do texto. (Professora 5, 5º ano)

Quando perguntados sobre o que fazem para os alunos superarem essas dificuldades, as respostas dos professores foram as seguintes: Abordagem específica aos níveis e acompanhamento individual; inserção da leitura prazerosa e necessária à autonomia de todos. (Professora 1, 2º ano) Utilizo jogos com palavras, bingos de textos com frase ou palavras. (Professora 2, 3º e 5º ano) Trabalho o reconto de histórias com eles e peço para eles lerem o que escreveram. (Professora 3, 5º ano) Possibilito aos alunos contato com a maior quantidade possível de suportes de leitura. (Professor 4, 4º ano) Muito diálogo para promover a conscientização da necessidade de uma mudança na postura sobre a importância da leitura e dos estudos para a sua vida, atividades como a roda de leitura, o contato com diferentes tipos de texto e o empréstimo de livros. (Professora 5, 5º ano).

As dificuldades que os professores apontaram que os alunos apresentam com relação à leitura estão mais ligadas ao conhecimento linguístico, decorrente de uma alfabetização deficitária. No entanto, o que dizem propor em sala de aula não parece direcionado para atender as necessidades de aprendizagem dos alunos e ampliar seu conhecimento acerca da leitura uma vez que para se desenvolver a compreensão leitora, o conhecimento linguístico, o conhecimento textual e o conhecimento de mundo devem ser ativados (KLEIMAN, 1992), porém o que se vê nas práticas que os professores dizem lançar mão para a superação das dificuldades dos alunos em sala de aula é que tais práticas de leitura deveriam focalizar estes três conhecimentos de modo integrado, o que suas respostas ao isolar um destes aspectos parecem não indicar. Outra questão que nos chama atenção é a resposta que indica um trabalho de leitura a partir da leitura do texto do próprio aluno, conforme mencionou a Professora 3 (5º ano), no trecho que segue: “peço para eles lerem o que escreveram”. Considerando que a escrita do aluno, normalmente, apresenta limitações do ponto de vista textual, gramatical e ortográfico, fica difícil o aluno superar suas dificuldades de leitura lendo seu próprio texto, melhor seria ler textos bem escritos e contextualizados, de autores mais experientes, que oferecem repertórios textuais novos, criando condições para o aluno ampliar seu conhecimento linguístico, textual e de mundo. De modo que a leitura deve possibilitar acesso a novos conhecimentos, mas quando se lê apenas seu próprio escrito esse acesso se restringe ao que a criança já sabe, embora a atividade de ler seu próprio escrito seja relevante para a análise linguística e revisão textual, mas não propriamente para a aprendizagem da leitura.

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Diante do exposto, para além do que dissemos aqui e aprendemos com o discurso dos professores, sabemos que muitas coisas não foram ditas e estão a ser refletidas em um entrecruzamento de vozes, sobre as práticas de leitura, nas palavras de Santos (2014, p. 85), para quem a leitura vai além das propostas que privilegiam somente as palavras contidas no texto e ditas/escritas pelo autor. Engloba um processo de reconhecimento e entrecruzamento de vozes influenciadas pelo dialogismo, pelo contexto maior e imediato e pela historicidade dos sujeitos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Das reflexões decorrentes da observação na escola e das respostas dos professores ao questionário, por ora nos cabe elencar aspectos norteadores para a elaboração de um plano de ação escolar para a formação de crianças leitoras. Dentre os possíveis aspectos norteadores de um plano de ação para o ensino e a aprendizagem da leitura no Ensino Fundamental sugerimos que: - o professor elabore um planejamento prevendo o horário semanal para as atividades de leitura criando uma rotina diária para motivar e desenvolver a aprendizagem da leitura nos alunos; - os textos de leitura sejam materiais legítimos, utilizados socialmente, incluindo diferentes gêneros discursivos para o ensino e a aprendizagem da leitura; - os textos a serem trabalhados em sala de aula sejam textos bem escritos que possibilitem a ampliação do conhecimento linguístico, textual e de mundo; - as atividades de leitura sejam envolventes, criativas e provocativas da imaginação e da participação dos alunos; - os atos de ler em sala de aula estejam inseridos em práticas de linguagem e situações de comunicação; - as atividades de leitura devem ser direcionadas para as necessidades de aprendizagem de leitura dos alunos; - o espaço da sala de aula e da escola deve ser organizado a fim de proporcionar uma ambiência de leitura com acervo literário e didático ao alcance das crianças; - a escola, como um todo, deve elaborar e executar um projeto com ações que tenham por objetivo a formação de crianças leitoras; - para além da sala de aula sejam criados na escola outros espaços de leitura, para que os alunos possam frequentar espontaneamente e emprestar livros para serem lidos em ambientes extra-escolares. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 FARACO, C. A. O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C. A. et al. Diálogos com Bakhtin. 4ed. Curitiba: Editora da UFPR, 2007 p. 97-108. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ed. São Paulo: Cortez, 1989. KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 2ed. Campinas: Pontes, 1992 _________ . Oficina de leitura: teoria e prática. 11ed. Campinas: Pontes, 2007.

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KLEIMAN, A.; MORAES, S. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escolar. São Paulo: Mercado de Letras, 2007. ROJO, R. (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: Mercado de Letras, 2000. SANTOS, J. O. C. Uma discussão sobre a produção de sentidos na leitura: entre Bakhtin e Vygotsky. Leitura: Teoria & Prática, Campinas, v.32, n.62, p.75-86, jun. 2014 SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n.11, p.5-16, Maio/Jun./Jul./Ago. 1999. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004 TRESCASTRO, L. B.; SILVA, C.V. Sequências didáticas na formação continuada de professores alfabetizadores. In: Anais do IX Simpósio de Formação e Profissão Docente SIMPOED, Ouro Preto-MG: UFOP, 2013

A IDENTIDADE DOS PROFESSORES DE INGLÊS E A INSERÇÃO DO ESPANHOL NO ENSINO MÉDIO: REPENSANDO O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE BELÉM JOSANE DANIELA FREITAS PINTO (UEPA/SEDUC) RESUMO: A implantação da Lei 11161 (05/08/05) trouxe alterações para a realidade do ensino de língua inglesa ao determinar a obrigatoriedade da inserção do espanhol no ensino médio. Essa pesquisa teve como objetivo principal averiguar como tem ocorrido o acréscimo de mais uma língua estrangeira (LE) nas escolas públicas de ensino médio profissional e investigar o impacto dessa mudança, considerando a questão identitária dos professores de língua inglesa. Assim, através dos autores, como: Santos (2010); Beijaard, Meijer e Verloop (apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011); Mulik (2012), discuti-se as consequências trazidas por essa lei e, por meio da pesquisa de campo realizada em uma escola pública de ensino médio profissionalizante de Belém, procura-se analisar a identidade do profissional de língua inglesa para entender as suas reações diante da quantidade de alunos que optam pelo espanhol, por considerar mais fácil. Dessa forma, observa-se nas aulas de inglês um pequeno número de alunos e um quadro de insatisfação dos professores, diante da realidade atual do ensino público, que historicamente não incentiva o aprendizado de línguas estrangeiras. A ideia de incluir o espanhol é relevante, no entanto, não se deve esquecer a importância do inglês como língua franca. Acredita-se que também seria importante considerar a possibilidade de oferecer ainda outras LEs, por exemplo, francês, alemão, etc. Considerando a opinião dos professores e o número de alunos que escolhem o espanhol, torna-se imperativo a implantação de centros de idiomas nas escolas públicas de ensino médio, oportunizando aos alunos uma formação mais completa para o mercado de trabalho. Palavras-chave: Identidade; Ensino de LE; Ensino Público. INTRODUÇÃO Em agosto de 2005, foi publicada a Lei 11161 que torna a inserção do espanhol obrigatória no ensino médio. Decidiu-se, nessa pesquisa, estudar as consequências dessa medida na formação da identidade profissional do professor de inglês.

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Para entender essa realidade, faz-se um breve histórico do ensino de LE no Brasil e a seguir, conceitua-se a identidade profissional. Depois, apresenta-se a análise dos dados coletados através de entrevista realizada com professores de inglês do ensino médio profissionalizante, com a finalidade de repensar o ensino de LE. 1 DE VOLTA AO PASSADO PARA ENTENDER O PRESENTE: UM PASSEIO PELO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NO BRASIL Os portugueses durante o período do Brasil-colônia objetivavam expandir seu domínio e o catolicismo, para isso as línguas estrangeiras presentes nas escolas eram o grego e o latim. O ensino das línguas modernas valorizou-se com a chegada da família real para o Brasil em 1808 Assim, o inglês e o francês passam a fazer parte do currículo logo no ano seguinte por um decreto do D. João VI, tendo como objetivo principal melhorar a educação pública para atender à abertura do portos ao comércio. Mulik (2012) afirma que o Colégio D. Pedro II no Rio de Janeiro, seguindo os moldes franceses (referência de cultura na época), estabeleceu sete anos de francês, cinco de inglês e três de alemão e em 1931 inseriu o italiano. Por isso, o Colégio D Pedro II foi considerado “uma escola para poucos” (SANTOS, 2010, p.1), organizada para a formação da elite brasileira. Com a Segunda Guerra Mundial, o Ministério da Educação e Saúde privilegiou nos currículos oficiais os conteúdos que valorizavam a História do Brasil e os seus heróis. O governo via nas minorias estrangeiras uma ameaça à homogeneidade social brasileira, ou seja, representava riscos à segurança nacional. E passou a perseguir as minorias, através do fechamento das suas escolas ou da restrição da sua autonomia. O caráter mais patriótico, introduzido no ensino pela Reforma de Capanema, vai também se refletir no ensino de LEs. No ginásio, foi mantido o ensino das LEs, sendo que o francês predominava sobre o inglês e o espanhol foi inserido no lugar do alemão, entretanto, o latim se mantinha como língua clássica. O Estado Novo intensificou com a Reforma de Capanema de 1942 o discurso nacionalista de fortalecimento da identidade nacional. Há, então, um reforço da importância de se aprender a própria língua e não a de um outro país, essa é a mensagem que se pode entender nas entrelinhas das atitudes do governo Vargas. O ensino do espanhol foi introduzido oficialmente no currículo do curso secundário, já que, segundo Mulik (2012), o governo brasileiro acreditava que o povo espanhol representava um modelo de patriotismo e respeito às tradições e à história e não poderia ser considerada uma ameaça ao governo do Estado Novo. Esse é um claro exemplo de como o governo controlava as informações, a educação, a mídia e inclusive o porquê determinada língua estrangeira deveria ou não ser estudada. Já a intensificação do ensino do inglês vai ocorrer a partir da dependência econômica do Brasil em relação aos Estados Unidos. O inglês continuava a ser ofertado, pois era considerado o idioma das transações comerciais, uma língua franca. Desde a década de 50, o ensino foi se tornando cada vez mais profissionalizante, pois o sistema educacional brasileiro considerava como principal meta: formar os alunos da rede pública para o mercado de trabalho. Isso significava aumentar no currículo a carga horária de disciplinas específicas e diminuir a de línguas estrangeiras, que era visto como algo sem utilidade. O mais interessante é constatar que ao se viajar pela história e chegar ao período da ditadura, o quadro educacional é igual ao que agora se vivencia no século XXI. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n. 4064, publicada em 1961, cria os Conselhos Estaduais de Educação. Esses conselhos vão ser os responsáveis por legislar sobre a questão de ensinar ou não línguas estrangeiras. Dentro desse quadro educacional, identificase uma preferência e predominância do inglês em escolas públicas e particulares, devido a

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presença dessa língua em várias áreas profissionais e o fato de ter se tornado uma língua franca. A Lei 5692/71 trouxe a não-obrigação de ensinar a LE, por conta das questões nacionalistas. O argumento usado na época era que a escola não deveria servir de porta de entrada para a subserviência ideológica, cultural a serviço de povos estrangeiros. Já em 1976, há uma valorização do ensino de língua estrangeira, voltando a ser considerada disciplina no ensino médio, mas continuou como caráter de recomendação no ensino fundamental (antigo 1º grau). O Parecer n. 581/76 do Conselho Federal de Educação orienta a oferta de língua estrangeira para as escolas que tivessem condições de fazê-la. Essa decisão levou muitas escolas a não oferecem a LE ou reduzir a carga horária. Na metade da década de 80, com a redemocratização do país, iniciou-se um movimento pela pluralidade de línguas estrangeiras nas escolas públicas. No Paraná, a Secretaria de Estado de Educação criou os Centros de Línguas Estrangeiras Modernas (CELEM), em agosto de 1986, com o objetivo principal de valorizar o plurilinguismo e a diversidade étnica. Há mais de vinte anos estão em funcionamento. Em outros estados, também houve a fundação de centros de idiomas, por exemplo, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Bahia, entre outros. No Art. 36, inciso III da LDB n. 9.394, publicada em 1996, é determinada a oferta de uma língua estrangeira moderna no ensino médio como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar e uma segunda língua opcional, dependendo das disponibilidades da escola. Em 2005, é publicada a Lei 11 161 que determina o espanhol como língua estrangeira obrigatória no ensino médio, com o objetivo de colocar o Brasil em destaque no Mercosul, possibilitando a melhoria das relações comerciais com os países de língua espanhola. As causas da ascensão e declínio do prestígio das línguas estrangeiras residem na relação entre as abordagens de ensino, a estruturação do currículo e a sociedade. Ao longo da história educacional brasileira, percebe-se um descaso com o ensino de língua estrangeira para o aluno da rede pública, salvam-se os estados que propõem os centros de idiomas, democratizando o acesso às línguas estrangeiras modernas, antes apenas restrito às elites. 2 INSERÇÃO DO ESPANHOL E A IDENTIDADE DO PROFESSOR DE INGLÊS Na década de 90, começou o interesse pelos estudos da identidade profissional dos professores. O conceito de identidade aparece de diversas formas na literatura em geral. De acordo com Beijard, Meijer e Verloop (apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011, p.3), Erikson (1968) diz que a “identidade não é algo que alguém tem, mas algo que se desenvolve durante a vida toda de uma pessoa”. É defendida a ideia de que ela é mutável, ou seja, aspectos pessoais e sociais exercem influência direta ou indireta sobre a identidade. Nessa pesquisa, será focalizada a identidade profissional, embora não se pode separar, completamente, a identidade pessoal da profissional, elas se interligam. Assim, a identidade profissional é concebida como “um processo em desenvolvimento de integração de dois lados “pessoal” e “profissional” de se tornar e ser professor” (BEIJARD, MEIJER e VERLOOP, apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011, p.12). Apesar das condições atuais do ensino, especificamente em Belém, vários jovens optam pelo ensino de uma língua estrangeira, no caso, o inglês. Eles vivenciaram o ensino dessa LE e encontram na universidade a teoria, base da sua formação profissional, mas ao serem apresentados ao mercado de trabalho, percebem a completa desvalorização do ensino de inglês na rede pública. Desde o período no qual houve a ênfase pelo nacionalismo, incutiuse na população a ideia de que se não sabem a língua materna, não têm capacidade de aprender mais outra língua. Nas salas de aula, encontra-se a resistência dos alunos em estudar uma LE, por não perceber a importância dela para o seu futuro pessoal e profissional. Os professores de inglês têm a árdua tarefa de convecer seus colegas, direção, pais e alunos,

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enfim, toda a comunidade escolar, que o aprendizado de uma língua estrangeira é relevante para a formação dos alunos, considerando, principalmente, os aspectos sociais e culturais. Gaziel (apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011, p.25) afirma que as melhorias das condições de trabalho influenciam na percepção da identidade profisisonal. Por isso, a busca pela qualidade e uma atitude mais reflexiva de seu fazer profissional têm estado presentes. Reis, Veen e Gimenez (2011) se referem ao processo contínuo, por sua vez dinâmico da formação da identidade profissional. Assim, a identidade profissional de um professor de inglês está completamente atrelada não só aos aspectos pessoais, mas ao contexto em que ele está inserido (alunos, livro didático, colegas, grade curricular, etc). Esses fatores vão ser responsáveis pelo desenvolvimento bem-sucedido ou não da sua identidade profissional. Algumas medidas tomadas desde 2010 foram responsáveis por um entendimento de que estaria havendo uma mudança positiva no quadro de ensino de inglês. Livros didáticos, que antes só eram disponibilizados para as disciplinas de maior prestígio, passaram a ser ofertados para a disciplina de inglês nas escolas da rede pública de Belém. Além disso, outros fatos de cunho nacional contribuíram para reforçar uma visão mais positiva com relação ao ensino de inglês em Belém, como: as bolsas de cursos de aperfeiçoamento nos EUA, oferecida aos professores pela CAPES em convênio com a Fullbright Brasil69; as bolsas para o programa Ciências Sem Fronteiras, oferecido aos alunos de diferentes cursos de graduação; entre outros. Essas medidas suscitaram nos estudantes brasileiros um desejo mais forte de aprender uma língua estrangeira e, consequentemente, os professores de inglês passam a se sentir mais valorizados. Em 2013, os professores de inglês da rede pública começaram a temer o processo da inserção do espanhol e muitos optaram por retornar ao ensino superior para fazer uma graduação em espanhol ou português. O receio principal era o da diminuição da carga horária, que se tornou realidade no ensino profissional para as matrizes curriculares de 2014 Connelly e Clandinin afirmam que: Devido a mudanças no panorama educacional (por exemplo, mudanças em programas e currículos), as identidades dos professores (mas também aquelas de educadores de professores e pesquisadores) mudam também e, parece, isso é frequentemente acompanhado por tensões e dilemas. (CONNELLY e CLANDININ 1999, apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011, p.29).

As mudanças vivenciadas pelos professores de inglês no contexo de Belém, de acordo com os autores acima citados, afetam a sua identidade profissional, ou seja, “ os professores perdem um sentido de si mesmos” (REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011, p. 30). Isso pode influenciar negativamente no exercício da sua profissão, pois sempre se pode identificar a presença de resistências a algo novo. As tensões e dilemas têm feito parte da vida de um professor, mas as alterações recentes ocorridas no ensino médio e mais especificamente na educação profissional têm contribuído para uma necessidade eminente de se repensar o ensino de inglês. 3 EDUCAÇÃO PROFISSIONAL EM BELÉM: ANALISANDO OS DADOS A educação profissional vem sendo oferecida no sistema de redes de escolas tecnológicas e objetiva “proporcionar ao estudante conhecimentos, saberes e competências profissionais necessários ao exercício profissional e da cidadania, com base nos fundamentos científico-tecnológicos, socio-históricos e culturais” (Art. 5º, cap I da Res. nº.6 de 20/09/12). Considerando a realidade da cidade de Belém, ainda há um número reduzido de escolas profissionalizantes da rede estadual, apenas seis, de acordo com os dados do 69

Comissão para Intercâmbio Educacional entre os Estados Unidos e o Brasil.

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SISTEC70. Para esta pesquisa ser viabilizada, foi escolhida a Escola Estadual de Ensino Médio Profissionalizante Francisco da Silva Nunes que oferece cursos técnicos de meio ambiente, enfermagem, nutrição e dietética e podologia. No ano de 2014, houve uma redução no número de alunos matriculados, situação comum em várias escolas da rede pública. Por isso, foram formadas de 4 turmas do 1º ano de enfermagem e de 1 turma do 1º ano de nutrição e dietética. Há ainda as turmas de 2º, 3º e 4º anos que totalizam apenas seis. Foram escolhidas para análise apenas 4 turmas do primeiro ano, em virtude da Coordenação de Educação Profissional (COEP) ter alterado as matrizes de todos os cursos a partir de 2014 Uma das alterações é a carga horária da língua estrangeira que antes eram duas aulas, mas agora passa a ser ministrada uma hora/aula e o aluno deve optar entre inglês e espanhol. Essa mudança afeta diretamente a lotação das professoras de inglês dessa escola e consequentemente afeta a sua identiade profissional .Com base em Connelly e Clandinin, 1999 (apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011), afirmam, como foi apresentado no item anterior, que as alterações interferem na identidade profissional. Quando se trata de diminuição de carga horária, não pode ser considerado como algo positivo. Há quatro professoras de inglês e a coleta de dados foi feita com três professoras que ensinam nas turmas de enfermagem, através de entrevista com 5 perguntas abertas. Será usado para cada sujeito da pesquisa a seguinte nomenclatura: P1 (professora 1), P2 (professora 2) e P3 (professora 3). Foi perguntado às três professoras sobre a sua opinião sobre ser ofertado ao aluno do ensino médio o espanhol. As três professoras apresentam em comum a ideia de que é importante o aluno, principalmente do ensino médio profissional, conheça mais do que uma língua estrangeira. No entanto, quando foi perguntado se as professoras conheciam a Lei 11161 que propõe a inserção do espanhol, a P1 e a P2 responderam que sabiam da lei, mas ainda não tinham lido e a P3 respondeu que conhecia e já havia lido a lei. Um entendimento da mudança proposta imposta pela lei 11161 faz parte de uma postura reflexiva do fazer profissional e isto está relacionado ao processo contínuo da formação da identidade profissional do qual REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011 se referem. Na pergunta seguinte, tratou-se da diminuição da carga horária neste ano, apenas uma hora aula de língua estrangeira e os impactos sobre o conteúdo a ser trabalhado. De forma unânime, elas afirmaram que discordam da diminuição da carga horária determinada pela COEP e demonstram estar muito preocupadas com o comprometimento do trabalho a ser executado e com a qualidade. Para exemplificar, um trecho da fala da P1: “ Apenas uma aula não dá para se fazer nada, mal começo a trabalhar um texto e daqui a pouco já acaba a aula”. Observa-se que ao responder essa pergunta as três entrevistadas, apresentam-se indignadas ou aborrecidas e a demonstração de sentimentos como estes nos remete ao que Connelly e Clandinin, 1999 (apud REIS, VEEN e GIMENEZ, 2011), chamam de tensões e dilemas que acontecem nas mudanças da identidade profissional. A seguir perguntou-se sobre o número de alunos que estão frequentando as aulas de inglês. A P1 afirma que tem apenas uma turma de primeiro ano e dos 45 matriculados, apenas cinco alunos escolheram inglês. E ela acrescenta que os alunos dizem que preferem espanhol por ser mais fácil e não ter prova. Já a P2 tem na sua turma de primeiro ano 35 alunos no total e que apenas 15 alunos decidiram fazer inglês e a P3 informa que há 40 alunos matriculados em cada turma que possui (P3 possui duas turmas) e diz que das duas turmas apenas 20 alunos no total estão frequentando as aulas de inglês. P2 e P3 fazem o mesmo relato da P1 sobre os motivos dos alunos escolherem o espanhol. Há uma perda do sentido de si mesmas, como diz Reis, Veen e Gimenez (2011), o que provoca influências negativas na identidade profissional, principalmente a presença de uma perspectiva negativa diante de um grande 70

SistemaNacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica

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número de alunos escolherem estudar o espanhol em detrimento do inglês, considerando o fato de “ser mais fácil” e não ter prova. A ausência de uma cultura de estudo de línguas estrangeiras é percebida na falta de conhecimento da escolha do aluno. Este nem procura se informar sobre qual/quais língua(s) estrangeira(s) que tem interesse ou curiosidade ou aquela(s) relevante(s) para a sua formação profissional. Essa breve análise tem como objetivo principal levantar a discussão de que é preciso se falar em realmente inserir mais de uma língua estrangeira, no sentido literal. O que está claramente determinado é o espanhol como obrigatório no ensino médio e o inglês passa a constar apenas na parte diversificada das matrizes curriculares do ensino médio profissional. O aspecto opcional que é proposto se torna uma questão utópica, pois não há a disponibilização aos alunos das informações sobre suas áreas profissionais e quais línguas estrangeiras poderão contribuir diretamente na sua formação. Na Lei 11161, no seu artigo 3º prevê a implantação de centros de idiomas nas redes públicas de ensino. Essa medida já se tornou realidade em vários estados brasileiros, mas ainda não na região norte, principalmente em Belém. Resolveria o problema da lotação dos professores, principalmente aqueles do ensino profissional que tiveram a carga horária diminuída e daria a oportunidade dos alunos terem acesso a mais de uma língua estrangeira, de forma gratuita e com mais qualidade. O governo de Belém alega não ter recursos para implantar centros de idiomas. A justificativa não é convinte, pois somente seria necessário um centro de idioma em cada bairro e poderia usar as salas ociosas de uma escola daquele local. Seria de fato uma oportunidade importante aos alunos da rede pública que escolheriam as línguas estrangeiras modernas que desejassem aprender, entre elas, inglês, francês, espanhol, italiano, alemão e até o mandarim, poderia ser ofertado. Esse é um bom exemplo dado pelos governos de outros estados que buscam a formação completa do cidadão, não apenas escolhendo qual LE a ser oferecida com base em questões comerciais, como sempre se fez e continua a se fazer, a exemplo da Lei 11.161 A implantação dos centros de idiomas representaria um grande avanço no ensino de LE na região norte. Belém estaria na vanguarda dessa democratização do ensino de lígnuas estrangeiras, fazendo valer a oportunidade de escolhas do estudante da rede pública, não os interesses comerciais dos governos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa pesquisa teve como objetivo discutir a inserção do espanhol no ensino médio profissionalizante e como essa medida atingiu a formação identitária dos professores de inglês. Com o passeio pela história do ensino de língua estrangeira confirmou-se o descaso e a predominância dos interesses comerciais do governo. Também constatou-se que a partir da década de 30 prevaleceu os ideais nacionalistas e o governo desestimulou o ensino de línguas estrangeiras a fim de não desestabilizar a soberania nacional. Com os teóricos como Reis, Veen e Gimenez (2011), entre outros, procurou-se entender a identidade profissional do professor de inglês e verificar que a ascensão e declínio nas políticas voltadas para o ensino de LE foram responsáveis por tensões e dilemas na construção contínua da identidade desse profissional. Através das entrevistas feitas para três professoras de inglês da Escola Estadual de Ensino Médio Profissionalizante Francisco da Silva Nunes, foi confirmado o quadro de desmotivação diante da diminuição da carga horária e do esvaziamento das salas de aula de língua inglesa, por estudantes que optam por uma “língua mais fácil”. A formação completa do cidadão, conhecendo outras culturas, outras línguas deve ser um direito adquirido dos estudantes da rede pública, através da implantação dos centros de

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idiomas que lhe ofereceriam diversas línguas estrangeiras modernas, promovendo um acesso mais igualitário ao mercado de trabalho e tirando o acesso restrito das elites às línguas estrangeiras. REFERÊNCIAS BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 6, 20 de setembro de 2012 Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional Técnica do Nível Médio. Disponível em: http://portal.mec.gov.br. Acesso em 23 maio de 2014. BRASIL. Presidência da República. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 4064, de 20 de dezembro de 1961 Disponível em: http://portal.mec.gov.br. Acesso em 23 maio de 2014. BRASIL. Presidência da República. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 5692, de 11 de agosto de 1971. Disponível em: http://portal.mec.gov.br. Acesso em 23 maio de 2014. BRASIL. Presidência da República. Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 Disponível em: http://portal.mec.gov.br. Acesso em 23 maio de 2014 BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11161, 05 de agosto de 2005 Dispõe sobre o Ensino da Língua Espanhola. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11161htm. Acesso em 23 maio de 2014. BRASIL. Consulta Pública das Escolas e Cursos Técnicos Regulares nos Sistemas de Ensino e Cadastradas no MEC. Disponível em . Acessado em 24 agosto de 2014. MULIK, K. O ensino de língua estrangeira no contexto brasileiro: um passeio pela história. Revista de Esudos Linguísicos e Literários, UNIPAM, 5: 14-22, 2012 Disponível em: http://www.academia.edu/1506870. Acesso em 24 agosto de 2014. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Língua Estrangeira Moderna. Curitiba: SEED, 2008. REIS, S. ; VEEN, K. ; GIMENEZ, V. (org.). Identidades de Professores de Línguas. Londrina: Eduel, 2011 SANTOS, B. Uma escola para poucos. Revista de História.com.br. 11/8/2010. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/uma-escola-para-poucos. Acessado em 24/08/2014.

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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA SALA DE AULA: A PERSPECTIVA E AS ATITUDES DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA NO COMBATE AO PRECONCEITO LINGUÍSTICO MAYARA ALEXANDRA OLIVEIRA DA CRUZ (UEPA) SUELI PINHEIRO DA SILVA (UEPA) RESUMO: Este trabalho é resultado de um projeto de pesquisa e aborda a variação linguística sob o olhar e as atitudes do professor de língua portuguesa em relação ao combate do preconceito linguístico presente no contexto de sala de aula. Objetiva, sobretudo, apresentar quais são as concepções e as atitudes linguísticas deste professor no combate ao preconceito linguístico, tendo, portanto, o docente como sujeito da pesquisa. As discussões feitas para embasar este trabalho são fundamentadas, principalmente, em Bagno (2007a, 2007b), Bortoni-Ricardo (2004, 2005) e Soares (1993). Os procedimentos metodológicos apresentam abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, pois têm a finalidade de observar, descrever e analisar a prática docente em sala de aula. Logo, utilizaram-se as observações de aulas de língua portuguesa de duas professoras, do Ensino Fundamental, em duas escolas, sendo uma da rede privada e outra da rede pública, além da aplicação de questionários como instrumentos para a coleta de dados. Os resultados obtidos, de maneira geral, apontam para o tratamento superficial destinado à variação linguística, e, consequentemente, às atitudes de combate ao preconceito linguístico, sendo estas discussões de Educação Linguística pouco inseridas às aulas de língua portuguesa, pois observou-se fortemente a presença do ensino tradicional, devido à grande presença de atividades metalinguísticas (nomenclatura, classificação e identificação de termos gramaticais). Dessa forma, é necessário que os docentes se conscientizem da importância da pedagogia da variação linguística, visando à articulação efetiva destas noções às suas práticas em sala de aula. Para tanto, torna-se indispensável que estes docentes tenham uma formação qualificada que leve em consideração tais discussões. Palavras-chave: Variação Linguística; Preconceito Linguístico; Educação Linguística. INTRODUÇÃO Ao iniciarmos este trabalho, devemos mencionar que este é fruto de um projeto de pesquisa. Então, para começo de conversa, iremos destacar a Sociolinguística, área que se consolidou nos Estados Unidos na década de 1960 sob a liderança de William Labov e fundamenta este trabalho. Segundo Martelotta (2011, p. 141), esta área “estuda a língua em seu uso real, levando em consideração as relações entre a estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais da produção linguística”. Ainda de acordo com ele, este campo teórico “parte do princípio de que a variação e a mudança são inerentes às línguas” (Martelotta, 2011, p. 141), demonstrando o caráter mutável das línguas naturais. Entretanto, em que consiste “variação”? Conforme Bagno (2007a, p. 39) “dizer que a língua apresenta variação significa dizer, mais uma vez, que ela é heterogênea”. E o que significa a heterogeneidade da língua? Significa que ela é “múltipla, variável, instável e está sempre em desconstrução e reconstrução” (Bagno, 2007a, p. 36). Desta forma, a variação é algo inerente às línguas, ou seja, estas variam conforme os usos linguísticos dos seus falantes. Já para Bortoni-Ricardo (2005, p. 131), “o principal fator de variação linguística no Brasil é a secular má distribuição de bens materiais e o consequente acesso restrito da população pobre aos bens da cultura dominante”, ou seja, ela atribui, principalmente, aos fatores sociais, históricos e econômicos a responsabilidade pela variação linguística. Outro conceito muito importante na área da Sociolinguística diz respeito ao preconceito linguístico. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, corresponde a:

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Qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p.ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos (BAGNO, 2009, p.16).

Ainda segundo Bagno (2007b, p. 9), este preconceito “está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa”, afinal, muitas pessoas acreditam que a gramática normativa é a língua portuguesa, sendo, na verdade, apenas uma parte. Desta forma, apresentamos os conceitos-chave deste trabalho. Logo, este artigo objetiva apresentar os resultados deste projeto de pesquisa, no qual verificamos, por exemplo, as concepções e atitudes linguísticas do professor para combater o preconceito linguístico; observamos a existência de preconceito linguístico entre alunos e professor, além de ter proporcionado a análise das concepções do professor acerca da diversidade linguística, assim como o tratamento que o docente destina à variação linguística, tendo, portanto, o professor como sujeito da pesquisa. Sobre a metodologia, apresenta caráter qualitativo, descritivo e exploratório. Sendo assim, utilizamos como instrumentos de pesquisa as observações das aulas de língua portuguesa, realizadas em duas escolas, sendo uma da rede pública e outra rede privada, com duas professoras - do Ensino Fundamental - visando à verificação da existência de contraste das suas práticas, além do questionário. Em relação aos resultados, constatou-se um tratamento superficial destinado à variação linguística e, consequentemente, em relação às atitudes de combate ao preconceito linguístico, sobretudo por parte da professora da rede privada. Portanto, as considerações feitas ao longo deste trabalho serão fundamentadas, especialmente, em Antunes (2011); Bagno (2007a, 2007b); Bortoni-Ricardo (2004, 2005); Possenti (1996) e Soares (1993). Este artigo se organiza da seguinte forma: na primeira seção, temos o referencial teórico; na segunda seção, os procedimentos metodológicos; na terceira seção, a análise dos dados; e, por fim, as considerações finais. 1 REFERENCIAL TEÓRICO 1.1 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E A MUDANÇA NA CONCEPÇÃO DO ENSINO DE LÍNGUA A partir da década de 1970, há uma mudança na concepção do ensino de língua. Se antes a língua era vista de acordo com sua estrutura interna, isto é, como um sistema, a partir deste período, passou a ser concebida ligada às relações sociais, ou seja, como um meio de ação, de intenção, considerando os contextos situacional, cultural e histórico das pessoas que a utilizam. É importante destacar que esta mudança é fortemente baseada na consolidação dos estudos da Linguística (Linguística Textual, Sociolinguística, Semântica, Pragmática, etc.) No Brasil, esta mudança é verificada, de forma oficial, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), realizada pelo Ministério da Educação (MEC), no final da década de 90. Estes documentos apresentam propostas para a renovação do ensino em todas as disciplinas, além de orientações à prática docente. No que tange à Língua Portuguesa, adotou, por exemplo, o texto como unidade de ensino, além de introduzir importantes conceitos, que eram poucos conhecidos dos professores (variação linguística, variedades dialetais, letramento, epilinguagem, condições de produção, entre outros). Iremos nos ater, especificamente, aos conceitos relacionados à Sociolinguística. Por meio do trecho abaixo, torna-se evidente a mudança na concepção do ensino de língua, além da introdução de conceitos ligados à Sociolinguística, como falamos anteriormente:

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A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades lingüísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar — a que se parece com a escrita— e o de que a escrita é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico (PCN – 1ª a 4ª série, 1997, p. 31).

Neste trecho, é comentada a relação entre linguagem e escola, responsável - em grande parte - pela reprodução do preconceito linguístico, quando deveria combatê-lo. Esta relação é amplamente discutida em Soares (1993), quando esta afirma, por exemplo, acerca do caráter ideológico da linguagem: A linguagem é também o fator de maior relevância nas explicações do fracasso escolar das camadas populares. É o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminações e fracasso: o uso, pelos alunos provenientes das camadas populares, de variantes linguísticas social e escolarmente estigmatizadas, provoca preconceitos linguísticos e leva a dificuldades de aprendizagem, já que a escola usa e quer ver usada a variante padrão socialmente prestigiada (SOARES, 1993, p. 17).

Além disso, esta autora discute sobre o preconceito linguístico, afirmando que este, na verdade, é um preconceito social, pois é baseado em “atitudes sociais, culturalmente apreendidas, pois se baseiam em valores sociais e culturais, não em conhecimentos linguísticos. Na verdade, são julgamentos sobre os falantes, não sobre sua fala” (Soares, 1993, p. 41). Ainda segundo ela, a escola serve para reproduzir as desigualdades, na medida em que estimula os preconceitos, exercendo violência simbólica sobre os alunos: A função da escola tem sido precisamente esta: manter e perpetuar a estrutura social, suas desigualdades e os privilégios que confere a uns em prejuízo de outros, e não, como se apregoa, promover a igualdade social e a superação das discriminações e da marginalização (...) A escola converte a cultura e a linguagem dos grupos dominantes em saber escolar legítimo e impõe esse saber aos grupos dominados” (SOARES, 1993, p. 54)

1.2 O CÍRCULO VICIOSO DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO Por sua vez, Bagno (2007b, p. 68), afirma que existem três principais elementos responsáveis pela perpetuação do preconceito linguístico, sendo todos relacionados à escola e, consequentemente, à atuação docente: a gramática tradicional, os métodos tradicionais de ensino e os livros didáticos. É o que ele chama de círculo vicioso, onde “a gramática tradicional inspira a prática de ensino, que por sua vez provoca o surgimento da indústria do livro didático, cujos autores — fechando o círculo — recorrem à gramática tradicional como fonte de concepções e teorias sobre a língua” (Bagno, 2007b, p. 68). Logo, torna-se necessária a conscientização, por parte de todos, de que não existem “erros de português”, mas sim diferenças e variações. Adentrando nos principais elementos citados por Bagno (2007b, p.68), afirmamos que a gramática tradicional busca impor a norma-padrão, que, de acordo este autor é um “produto

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sociocultural, vinculado à esfera política, transformado em instrumento de poder, de coerção” (Bagno, 2007a, p. 76), ou seja, é um modelo de língua, que não apresenta uso real e efetivo. Esta gramática tradicional apresenta caráter ideológico, materializado na gramática normativa, responsável pela prescrição de regras que ditam o uso “correto” da língua. Evidentemente, os métodos tradicionais de ensino são baseados na gramática normativa e consistem, por exemplo, na utilização, por parte dos professores, de atividades ligadas à metalinguagem da língua, isto é, relacionadas ao “estudo de frases soltas, descontextualizadas e artificiais, criadas com o fim, apenas, de fazer o aluno reconhecer as unidades gramaticais, suas nomenclaturas e classificações” (Antunes, 2011, p. 123), sendo que estas atividades em nada contribuem para o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno para falar, ler e escrever textos. Já os livros didáticos, embora tenham passado por reformulações nas últimas décadas, ainda ajudam a reproduzir o preconceito linguístico, visto que se utilizam de exercícios que privilegiam a metalinguagem da língua em detrimento da epilinguagem, isto é, de reflexão sobre o uso da língua. Além disso, o tratamento destinado à variação linguística ainda é precário, pois falta uma fundamentação teórica sólida. Um dos principais problemas, segundo Bagno (2007a, p. 120), diz respeito ao tratamento da variação linguística como sinônimo de variedades regionais, rurais ou de pessoas com baixa escolarização. Sendo assim, não se pode limitar a análise das variações linguísticas apenas aos usos de pessoas pobres e analfabetas, por exemplo, visto que a variação ocorre na fala de todas as pessoas. Portanto, é de extrema importância a existência de práticas do ensino de língua portuguesa que explorem os usos sociais e efetivos da língua, tanto no nível oral quanto no nível escrito, além de contribuir para a conscientização das diferenças linguísticas, de forma que professores e alunos tenham plena consciência de que existem diversas formas de dizer a mesma coisa e que a escolha de uma ou outra forma irá depender da situação comunicativa (lugar, interlocutor, finalidade, etc.). 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Os resultados deste trabalho foram obtidos por meio da aplicação de um projeto de iniciação científica, que dá nome a este artigo. Os procedimentos metodológicos apresentam abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, pois visam à observação, descrição e análise das práticas docentes em sala de aula. Logo, foram utilizadas como ferramentas de pesquisa as observações durante as aulas de língua portuguesa, além da aplicação de questionário. 2.1 LÓCUS E SUJEITOS DA PESQUISA A pesquisa se desenvolveu em duas escolas, sendo uma da rede privada e outra da rede pública, como já afirmamos anteriormente. A primeira se localiza em Ananindeua, já a segunda em Belém. Uma característica em comum destas escolas diz respeito ao fato de que ambas possuem apenas o Ensino Fundamental. Já os sujeitos da pesquisa são duas professoras, sendo uma da rede privada (doravante “Professora A”) e a outra da rede pública (doravante “Professora B”). Por meio do questionário, traçamos um pouco dos seus perfis socioeconômicos, além de termos questionado a respeito da concepção de linguagem, de que forma identifica as variações linguísticas em sala de aula e qual a opinião delas a respeito do preconceito linguístico. Os dados são mostrados no quadro abaixo: Professora A Faixa etária: 30 a 40 anos. Tempo de magistério: mais de 10 anos. Especialização: gestão e docência do ensino superior.

Professora B Faixa etária: 40 a 50 anos. Tempo de magistério: mais de 10 anos. Especialização: língua portuguesa.

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Leciona: ensino fundamental, ensino superior (Parfor – Inglês) e curso preparatório para concurso Militar. Concepção de linguagem: interação social. Como identifica as variações linguísticas na sala de aula: por meio das diferenças de classe social, etárias e regionais. O que pensa a respeito do preconceito linguístico: é ainda muito presente, principalmente nas salas de aula, visto que os próprios alunos discriminam uns aos outros e precisa ser trabalhado para que os alunos percebam que não existem erros na oralidade, mas que deve existir adequação.

Leciona: ensino profissionalizante.

fundamental

e

ensino

médio

Concepção de linguagem: interação social. Como identifica as variações linguísticas na sala de aula: por meio de gírias e pronúncias de algumas palavras. O que pensa a respeito do preconceito linguístico: é ainda muito presente na sociedade, mas acredita que a escola tem papel fundamental para orientar e dar visão crítica aos alunos.

3 ANÁLISE DOS DADOS As atividades de observação das aulas de língua portuguesa ocorreram durante três meses, sempre pelo turno da tarde, durante as terças-feiras (rede privada) e nas quartas-feiras (rede pública). As aulas da professora A eram destinadas às turmas do 6º, 7º e 8º ano, além da 8ª série, enquanto as aulas da professora B eram para três turmas de 6ª ano. Em relação às práticas da professora A, notamos, em todas as turmas, a excessiva utilização dos métodos tradicionais de ensino, ligados às atividades relacionadas à metalinguagem da língua portuguesa, ou seja, o texto como pretexto para o ensino de gramática (questões para identificar, classificar e conceituar termos gramaticais – substantivos, objetos direto e indireto, predicativo do sujeito, etc.). Segundo esta professora, aprender análise sintática é questão de treino, o que nos remete às ideias de memorização e repetição, conceitos comuns no ensino tradicional. É importante lembrar que estas práticas não condizem com a concepção de linguagem que esta professora afirmou adotar ao responder o questionário. Para que tenhamos um ensino de língua eficaz, é necessário “que haja uma concepção clara do que seja uma língua” (Possenti, 1996, p. 21). Para tanto, é importante, por exemplo, a leitura de textos especializados. Segundo Kleiman (2002, p.17), um dos motivos que levam os alunos a não gostarem de ler, diz respeito à situação na qual “o professor utiliza o texto para desenvolver uma série de atividades gramaticais, analisando, para isso, a língua enquanto conjunto de classes e funções gramaticais, frases e orações”. Esta prática foi bastante observada durante as aulas de língua portuguesa e realmente não ocorria o estímulo à formação leitora dos alunos, pois existia, por exemplo, grande preocupação para não atrasar o conteúdo programático. Outra situação bastante comum ocorria quando os alunos, ao lerem em voz alta, pronunciavam alguma palavra de forma diferente, cometendo erros de decodificação, algo muito comum em palavras extensas e proparoxítonas, conforme Bortoni-Ricardo (2004, p. 39), sendo imediatamente corrigidos pela professora e às vezes pelos outros alunos. Este comportamento é citado por esta autora, no qual “o professor percebe o uso de regras nãopadrão, não intervém, e apresenta, logo em seguida, o modelo da variante padrão” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 38). Geralmente, quando estes erros de decodificação ocorriam, os outros alunos riam do colega e a professora apenas pedia para que não o fizessem, não apresentando atitudes efetivas para combater o preconceito linguístico. Aliás, este preconceito entre os alunos foi citado pela professora no questionário. Além disso, durante o período de observações, não houve nenhuma aula destinada à variação linguística. A professora A se baseava intensamente no livro didático e raramente ministrava uma aula diferente do conteúdo do livro. Este, intitulado “Português: leitura, produção e gramática”, da editora Moderna, de 2009, ajudava a promover o preconceito

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linguístico, pois se baseava nos conceitos da gramática normativa, que são limitados e incoerentes, além de se utilizar de exercícios ligados à metalinguagem. É algo que faz parte do que Bagno (2007b, p. 68) chama de círculo vicioso do preconceito linguístico. O tratamento destinado à variação linguística era extremamente problemático, resumindo-se em “gírias, estrangeirismos, linguagem formal e informal”, por exemplo. Por fim, considerando as respostas do questionário, ficou claro que a professora possuía conhecimentos sobre variação linguística e preconceito linguístico, entretanto, não articulava estas noções às suas práticas em sala de aula. Já a professora B apresentava práticas completamente diferentes da professora A, sobretudo porque, de fato, como respondeu no questionário, concebia a linguagem como interação social, isto é, a língua como um lugar de ação e interação, baseando suas aulas conforme a abordagem epilinguística da língua, trabalhando a leitura, interpretação e produção textual por meio de diversos gêneros textuais (provérbios, trava-línguas, fábulas, música, etc.). Ao abordar linguagem verbal e não verbal, a professora solicitou a produção de uma história em quadrinhos, que estimulou a criatividade e imaginação dos alunos. Nesta atividade, os alunos dividiam uma cartolina em vários pedaços, formando um livrinho. A partir de então, criariam a sua história, colando imagens ou desenhando, além de colocar as falas dos personagens. Este tipo de atividade contribui para que os alunos tenham domínio da língua, já que este é “o resultado de práticas efetivas, significativas, contextualizadas” (Possenti, 1996, p. 46), ao contrário dos exercícios, que priorizam a repetição. Quanto ao livro didático utilizado por ela, chama-se “Vontade de saber português”, da editora FTD, de 2012 Destacamos que este livro praticamente não trazia atividades envolvendo a gramática normativa, sendo que predominavam atividades que refletiam sobre o uso e funcionamento da linguagem (epilinguagem), como, por exemplo, questões que perguntavam sobre os efeitos de sentido e qual a intenção do autor ao colocar determinada classe de palavra em um gênero textual, além, é claro, de abordar muito bem o assunto variação linguística. Na aula sobre variação linguística, a professora B conscientizou os alunos de que a variação é algo natural às línguas, citando alguns tipos de variação (histórica, regional, social e estilística), sempre elucidando por meio de exemplos, e também explicou o significado do preconceito linguístico, afirmando aos alunos que não se deve menosprezar ou rir da fala do outro, pois não existem formas erradas de falar, mas sim diferentes e adequadas ou não ao contexto comunicativo. Ainda segundo ela, só pode ser considerado erro quando não existe o estabelecimento de comunicação entre as pessoas, ou seja, quando o falante não se faz entender, algo “que só por engano ocorreriam com falantes nativos, ou então na fala de estrangeiros com conhecimento extremamente rudimentar da língua portuguesa” (POSSENTI, 1996, p. 79-80). Portanto, a professora B demonstrou ótimo conhecimento acerca da variação linguística, conscientizando seus alunos a respeito da existência destas variações através de exemplos práticos e cotidianos, além de ter apresentado atitudes efetivas de combate ao preconceito linguístico, integrando os conceitos da Sociolinguística às suas práticas no contexto da sala de aula. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mediante este trabalho, obtivemos uma análise, de maneira geral, sobre as práticas do professor de língua portuguesa, assim como acerca de suas concepções em relação à variação linguística e, principalmente, sobre suas atitudes combativas ao preconceito linguístico, que é muito forte na nossa sociedade e, muitas vezes, passa despercebido.

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Infelizmente, constatamos que o ensino de língua portuguesa vem ocorrendo de maneira equivocada. O tratamento destinado à variação linguística, por exemplo, ainda ocorre de maneira superficial, sem aprofundamento teórico, tanto pela abordagem dos docentes quanto pela abordagem dos livros didáticos. Obviamente, se a variação linguística está sendo tratada desta forma, o preconceito linguístico também está. Logo, torna-se cada vez mais urgente a desconstrução do preconceito linguístico. Para tanto, são necessárias mudanças profundas no sistema educacional brasileiro, que precisa cada vez mais de professores qualificados, com uma formação acadêmica adequada, que promova, por exemplo, discussões acerca dos conceitos da Sociolinguística, visando à efetiva integração destes à prática docente, além de oportunidades para a formação continuada. Desta forma, os professores sempre estarão se aperfeiçoando acerca das suas práticas e estratégias de ensino e, consequentemente, ajudando a criar uma Educação Linguística, que combata o preconceito linguístico e vise “promover a autoestima linguística dos alunos e das alunas e dizer-lhes que eles sabem português e que a escola vai ajudar a desenvolver ainda mais esse saber” (Bagno, 2007a, p. 84), além de inseri-los nas práticas do letramento. REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2011 BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007a. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49 ed. São Paulo: Loyola, 2007b. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?. São Paulo: Parábola Editorial, 2005 BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa (ensino de primeira à quarta série). Brasília: MEC, 1997 KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: Teoria e Prática. 9. ed. São Paulo: Pontes, 2002 MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de linguística. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2011 p. 141-155 POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 1996 SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 10. ed. São Paulo: Ática, 1993

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VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM SALA DE AULA ROMÁRIO DUARTE SANCHES (UFPA)71 CELESTE MARIA DA ROCHA RIBEIRO (UFRJ)72 RESUMO: Este trabalho pretende mostrar o tratamento dado à variação linguística em sala de aula, partindo da prática docente do professor de língua portuguesa. A pesquisa tem como aparato teórico autores que tratam da sociolinguística e que também travam importantes discussões sobre o tratamento da variação linguística em sala de aula, assim, corroboram-se com as concepções de Bortoni-Ricardo (2004), Mattos e Silva (2004) e Antunes (2007). Os procedimentos metodológicos adotados partem da pesquisa bibliográfica e etnográfica. Realizamos algumas observações das aulas de língua portuguesa em uma turma de 1º ano do ensino médio de escola pública. A pesquisa contou com cerca de 20 alunos e 1 professora de língua portuguesa. Utilizamos como instrumentos para coleta de dados questionários semiestruturados; além da elaboração e aplicação de sequências didáticas. Por meio desta pesquisa ratificamos que o ensino de língua portuguesa na escola, principalmente no que diz respeito ao tratamento da variação linguística, é bastante superficial e confuso, o que acaba influenciando a concepção de língua equivocada e preconceituosa que os alunos vão adquirindo durante o percurso escolar. Palavras-chave: Sociolinguística. Variação linguística. Ensino. Língua Portuguesa. INTRODUÇÃO Observamos nas diversas pesquisas em linguísticas desenvolvidas nos Brasil uma forte discussão acerca do ensino de língua portuguesa de forma geral. Somente há alguns anos atrás que começamos a nos vislumbrar com pesquisas sociolinguísticas voltadas para sala de aula. A partir de então, a variação linguística em sala de aula passa a ser assunto recorrente em muitas universidades do Brasil, principalmente aquelas que se propõem a investigar o tema, e que hoje já se encontram com um acervo bibliográfico acessível em periódicos digitais e impressos. O fato interessante que tanto intriga estudiosos dessa área linguística é o distanciamento com que é ensinada a língua portuguesa em muitas escolas, sendo uma realidade mostrada nas pesquisas das professoras Antunes (2007), Bortoni-Ricardo (2004), Mattos e Silva (2004) e tantos outros professores/pesquisadores que se dedicam à pesquisa sociolinguística em sala de aula. Desta forma, propusemos neste artigo investigar como é tratada a variação linguística em sala de aula em uma escola pública do município de Santana - AP. Assim, para chegarmos aos resultados dessa investigação procuramos observar as aulas de língua portuguesa em uma turma de 1º ano do ensino médio, analisando brevemente o livro didático que estava sendo usado em sala com os alunos e como o conteúdo estava sendo ministrado pela professora da turma. Procuramos também fazer um “diagnóstico” sobre o conhecimento que os alunos têm acerca de variação linguística, neste caso, aplicamos um questionário semiestruturado. Ao final de todo esse processo, identificamos que antes da aplicação deste projeto os alunos não sabiam descrever e definir adequadamente o que seria variação linguística, já ao término da pesquisa voltamos a aplicar o mesmo questionário, e os resultados foram satisfatórios, pois agora, os alunos conseguiam ter uma visão mais crítica sobre a língua e acima de tudo conseguiram definir e exemplificar a variação linguística.

71 72

Mestrando em Letras/Linguística, Universidade Federal do Pará – UFPA. Doutoranda em Linguística, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

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CONCEITUANDO SOCIOLINGUÍSTICA Nesta seção, será abordado o conceito de sociolinguística, além de uma breve abordagem da relação da língua e sociedade, ou seja, sua interação com o meio social perpassando por vários processos linguísticos que levaram estudiosos do ramo da ciência da linguagem a admitir que as línguas influenciam e sofrem influências sociais, já que a língua é concebida como uma produção social e histórica, que se transforma com a mudança da sociedade e dos homens. Para que se possa entender o processo dos estudos sociolinguísticos será necessário compreender qual a relação entre a linguística e a sociolinguística. Calvet (2002) trata como um princípio, no qual, não é possível distinguir a linguística geral, que estudaria as línguas, e a sociolinguística, que levaria em conta o aspecto social dessas línguas. Em outros termos para Calvet (2002), a sociolinguística é a linguística. Em relação às discussões do que seria a sociolinguística, ressaltamos que foi nos anos 70 nos Estado Unidos que começaram a surgir pesquisas em torno do assunto, algumas publicadas em revistas e coletâneas de artigos se referindo explicitamente à sociolinguística. Em nível de Brasil, autores brasileiros, como Cezário e Votre (2010), definem a sociolinguística como uma área que estuda a língua em seu uso real, levando em consideração as relações entre a estrutura linguística e os aspectos sociais e culturais da produção linguística, ou seja, a língua é uma instituição social e, portanto, não pode ser estudada como uma estrutura autônoma, independente do contexto situacional, da cultura e da história das pessoas que a utilizam como meio do contexto. Vale ressaltar assim, o método da sociolinguística variacionista ou variação linguística, criada por William Labov (2008) na década de 70. Este autor traz algumas considerações desse método de pesquisa aplicado em seus estudos de variação nos Estados Unidos. Ele Observa, no livro intitulado Padrões sociolinguísticos, que a variação linguística pode ocorrer por diferentes fatores sociais ou extralinguísticos. Assim, de acordo com o contexto social e momento da interação, o locutor usa a língua em adequação com as mudanças sociais, históricas, políticas e culturais. Isso permite afirmar que, de modo contínuo, as línguas sofrem lentas, graduais e parciais mudanças, sem que sejam percebidas pelos indivíduos, devido às acomodações advindas de fatores intra e extralinguísticos. Daí a importância de perceber que em uma mesma comunidade linguística convivem variedades de fala. Logo, é normal que haja conflito entre as formas variantes objetivando atingir a categoria da mudança que, via de regra, buscam parte da variedade considerada culta, aquela comumente usada pela “elite social” que lhe confere poder e prestígio. Mas, como todo signo é social, por consequência ideológica, cabe ao locutor escolher que tipo de linguagem irá utilizar assumindo uma posição na sociedade. A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA De acordo com Mattos e Silva (2004), a escolaridade vem de fato popularizando-se e isso leva para a escola a diversidade de línguas, de dialetos, de normas. A instituição escolar, no entanto, por razões ideológicas tenta impor o padrão idealizado como o “correto”. Assim, Mattos e Silva (2004) afirma que a “crise” ou a “falência” do ensino da língua portuguesa, mencionada por muitos “jornalistas” e “especialistas”, não é apenas de uma consequência da inadequação do objetivo do ensino de língua materna em face a realidade dos sujeitos/alunos, mas vai além disso. Desta forma, com todos esses obstáculos que encontramos em sala de aula referentes ao ensino de língua portuguesa, Bortoni-Ricardo (2004) afirma que até hoje, os professores não sabem muito bem como agir diante dos chamados “erros de português” – destaca-se a expressão “erros de português” considerando inadequada e preconceituosa. Para ela é

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pedagogicamente incorreto usar a incidência do “erro” do educando como uma oportunidade para humilhá-lo. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os professores, que ficam inseguros, sem saber se devem corrigir ou não, que “erros” devem corrigir ou até mesmo se podem falar em “erros”. Assim, Bortoni-Ricardo (2004) identifica alguns padrões principais na conduta do professor perante a realização de uma regra linguística não-padrão pelos alunos. Na primeira atitude, seria de que o professor identifica “erros de leitura”, isto é, erros na decodificação do material que está sendo lido, mas não faz distinção entre diferenças dialetais e erros de decodificação na leitura tratando-os todos da mesma forma. Na segunda, o professor não percebe uso de regras não-padrão ou o não está atento ou não identifica naquela regra uma transgressão porque ele próprio a tem em seu repertório. Na terceira, o professor percebe o uso de regras não-padrão, porém, não intervêm, e apresenta, logo em seguida, o modelo da variante-padrão. Para Antunes (2007), a norma culta não deve ser glorificada com um recurso suficiente ao sucesso da interação, nem tampouco ser rechaçada, como algo que se deve evitar para não parecer pretensioso, por exemplo. Deve, sim, ser usada, adequadamente, quando a situação assim o exigir. É uma opção que está disponível. Somente uma língua idealizada e descontextualizada é uniforme. Neste caso, refere-se à uma língua artificial, inventada, língua para dar exemplos, ou seja, a língua das frases soltas, que continuam a ter lugar nas salas de aula. Língua que não tem como referência uma situação, um sujeito, uma finalidade comunicativa. Antunes (2007) destaca que uma língua contextualizada inclui pessoas, sujeitos. Sujeitos, em muitos pontos, mandantes, com capacidade para tomar decisões. Por isso mesmo é que existe lugar para a variação linguística e, consequentemente, para diferentes normas. A autora ainda ressalta que quanto maior for a capacidade do falante de usar diferentes normas e diferentes registros, mais competente esse falante se tornará. Assim, o que Antunes (2007) pretende com a admissão de uma atitude positiva frente à variação linguística é muito mais do que se faz atualmente na escola. O fato é que não existe língua sem variação. O desafio é ter a competência suficiente para variar conforme as condições de realização da atividade verbal suficiente. Quanto maior o domínio das variedades de uma língua, maior é a capacidade de alguém para usá-la adequadamente em cada circunstância. Contudo, Antunes (2004) propõe algumas implicações para o ensino, no sentido de cultivar o respeito a diversidade linguística dentro e fora da sala de aula. Diversidade esta que está inserida na modalidade de uso da língua, na norma, no registro, nos interlocutores, e em tantos outros aspectos que o professor pode explorar em sala de aula. O convívio com essas diferenças poderia ser uma oportunidade para se abrir o debate em torno da variedade de falares que coexistem no país, sem emprestar qualquer resquício de mais valor a um ou a outro. Seria a oportunidade para que fossem cultivadas noções de respeito ao direito de expressão de todos. E que a escola, junto aos professores, começasse, de fato, a desenvolver a capacidade dos alunos para acolher as diferenças, com o máximo respeito por aqueles que as apresentam, sem o sentimento de que estão fazendo concessões ou sendo compassivos com os diferentes. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa de Iniciação Científica registrado pela Universidade Federal do Amapá. Neste caso, os dados que serviram de base para o projeto de pesquisa também estão sendo utilizados neste artigo. Deste modo, para obtenção dos resultados, seguimos alguns procedimentos metodológicos. A pesquisa é de cunho bibliográfico e etnográfico. No que diz respeito ao âmbito bibliográfico, buscamos aparato teórico em livros e artigos científicos na intenção de

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obter conhecimento de como as pesquisas em sociolinguística educacional estão sendo desenvolvidas no Brasil e quais foram seus resultados. Assim, utilizamos diversos autores, bem como Bortoni-Ricardo (2004), Matos e Silva (2004), Antunes (2007) e outros. Já em relação à pesquisa etnográfica, procuramos observar e acompanhar as aulas de língua portuguesa em uma turma de 20 alunos do 1º ano do ensino médio da Escola Estadual Francisco Walcy Lobato Lima. Tal observação objetivou constatar como a professora, da turma pesquisada, tratava variação linguística com os alunos, além de verificar qual o livro didático utilizado por ela, e como o assunto estava sendo abordado nesse livro. Após algumas semanas de observação, preparamos um questionário semiestruturado com perguntas discursivas, visando identificar o que os alunos conseguiram assimilar sobre o assunto “variedades linguísticas” ministrado pela professora da turma. A partir das respostas dos questionários, montamos algumas aulas sobre variação linguística, partindo da elaboração de uma sequência didática que tratava do gênero textual “tirinha”. Assim, conseguimos fazer com que o tema central da pesquisa fosse também trabalhado em sala em consonância ao assunto que a professora estava ministrando, gênero textual. A partir disso, procuramos fazer com que os alunos pudessem compreender o que é variação linguística e também o que é o gênero textual “tirinha”. A sequência didática elaborada trazia diversos textos de cunho variacionista, no entanto, sempre visando às características do gênero textual em questão e trabalhando com a variação linguística em seus diversos aspectos: fonético, fonológico, semântico, lexical, morfológico, sintático, discursivo, estilístico, etc. Ao final de todo esse processo, voltamos a aplicar o mesmo questionário aplicado no início da intervenção com a turma. A partir das respostas obtidas por esses questionários podemos fazer um comparativo de como os alunos pensavam a respeito da variação linguística antes e depois da aplicação do projeto de pesquisa. ANÁLISE DOS DADOS O resultado final obtido no desenvolvimento desta pesquisa só foi possível mediante aplicação de questionários semiestruturados. A elaboração desse questionário visava compreender o nível de conhecimento dos alunos sobre o português brasileiro e suas variedades. Deste modo, aplicamos o mesmo questionário duas vezes, sendo que a primeira foi no início da intervenção em sala de aula e a segunda foi ao final. Tal questionário continha 6 perguntas, todas discursivas. Ressaltamos para este artigo vamos considerar somente 3 questões: i) o que é variação linguística? ii) há uma língua portuguesa “certa” e outra “errada”? iii) deve haver espaço durante as aulas de língua portuguesa para tratar de variação linguística? GRÁFICO 01 – O que é variação linguística?

37% 63%

Sim Não

O gráfico 01, mostra os resultados da primeira pergunta feita no ínicio do projeto, procuramos saber se os alunos sabem explicar o que é variação linguística. Assim, obtivemos 63% dos alunos que disseram sim e 37% disseram não. Percebemos durante a leitura das

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respostas, que a maioria dos alunos que disseram sim, não conseguiram conceiturar adequadamente e com precisão o fenômeno da variação linguística, pois eles se referiram apenas a variação de aspecto diátopico (variações de região para região), ou como uma forma de se comunicar diferente, o uso de sotaque de pessoas de outras regiões. As respostas estavam muito parecidas com com o conceito que constava no livro didático utilizado pelos alunos. GRÁFICO 02 – O que é variação linguistica? 0% Sim Não 100%

No gráfico 02, mostramos a mesma pergunta feita ao final do projeto, nesta questão obtivemos 100% das respostas dizendo que sabiam explicar o que seria variação linguística, diferentemente das respostas dadas na primeira aplicação do questionário. Agora, os alunos conseguiram atingir o conceito mais alaborado e pertinente, mostravam exemplos que estavam de acordo com o que afirmavam ser variação linguística. Tivemos respostas afirmando que variação linguística seria “fala usada em diversos ambientes dependendo da ocasião, dependendo também da idade, profissão, região, etc.” GRÁFICO 03 – Há uma Língua Portuguesa “correta” e outra “errada”?

correta

26% 0%

errada 74%

não responderam

No gráfico 03, queríamos saber se há na Língua Portuguesa uma forma “correta” e outra “errada”. Assim, os resultados nos mostram que 74% dos alunos acreditam que há uma língua portuguesa “correta”, já os demais 26% não responderam. GRÁFICO 04 – Há uma Língua Portuguesa “correta” e outra “errada”? 0% Sim

Não 100%

No gráfico 04, mostramos a mesma pergunta feita ao final do projeto, nesta obtivemos 100% dos alunos afirmando que não há uma língua “certa ou errada” e ainda justificam, “o

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que há é variação”, “existem vários tipos de variações” e que isso depende do ambiente em que se aprende a língua portuguesa. Alguns completam dizendo que há uma forma adequada de se falar e alguns falam da forma que aprenderam. GRÁFICO 05 – Deve haver espaço nas aulas de língua portuguesa para tratar de variação linguística?

sim

32%

não

63% 5%

não responderam

No gráfico 05, gostaríamos de saber se os alunos acham que durante as aulas de língua portuguesa deveria haver espaço para tratar da variação linguística. Assim, obtivemos os seguintes dados, 63% responderam que sim, 32% responderam não, e 5% não responderam a questão. Aos que disseram que sim, justificaram suas respostas dizendo que tal assunto abordado em sala poderia ajudá-los “a falar correto e melhor”, “ensinaria a usar palavras que não são faladas corretamente”. GRÁFICO 06 – Deve haver espaço nas aulas de língua portuguesa para tratar de variação linguística? 0% sim não 100%

Já no gráfico 06, que também remete a mesma questão do gráfico 05, obtivemos 100% das respostas dos alunos afirmando que sim, deve haver espaço para se discutir variação linguística durante as aulas de língua portuguesa, algumas das justificativas estavam relacionadas ao fato de poder “aprender as várias formas de se comunicar, e que não existe uma forma correta ou errada da língua e sim formas diferentes e variações”. Outros alunos afirmavam que “a língua é o que nós vivemos no dia-a-dia” e com isso eles aprendem “a não debochar de quem fala diferente”. 6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Diante da pesquisa realizada in loco e dos resultados que obtivemos, compreendemos que ainda existem muitos problemas a serem sanados dentro e fora da escola, pois detectamos também problemas na formação dos professores de Língua Portuguesa. Conforme as observações feitas das aulas ministradas pela professora da turma, podemos constatar que o tema abordado em sala de aula a respeito da variação linguística foi muito superficial, pois a professora se limitou apenas ao livro didático, que em uma análise minuciosa traz muitas lacunas sobre o tema, uma delas é apresentação da variação linguística apenas como dialetos,

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no nível diatópico, ou seja, mostra as variações linguísticas de expressões especificas de algumas regiões brasileiras. Com isso, percebemos uma forte influência nas respostas dos questionários aplicados no início do projeto de pesquisa, pois, os dados nos mostraram que os alunos - aqueles que conseguiram conceituar variação linguística - definiram de forma superficial, reproduzindo o que a professora havia falado em aula, que variação linguística “eram os dialetos de cada pessoa e que dependia da região”. Outra questão interessante a ser ressaltada é a respeito da pergunta 02 em que num primeiro momento a resposta da maioria dos alunos foi: “há sim uma forma correta e outra errada da língua portuguesa”, no entanto, com a aplicação do projeto de pesquisa, oficinas e aulas ministradas sobre variação linguística, eles mudaram esse conceito, já que no segundo momento do questionário, todos os alunos responderam que não há uma forma certa e errada, e sim “há formas diferentes de se falar”. A última questão do questionário traz implicações relevantes, já que na primeira resposta dada pelos alunos foi de que é sim importante o ensino de variação linguística, pois o assunto pode ajudá-los a “falar correto e melhor”. Assim, percebemos que tal justificativa contradiz a resposta dada na questão 01, sobre o que é variação linguística, percebendo assim que os alunos até aquele momento não tinham compreendido o que seria de fato a variação na língua. Mas essa situação muda ao final do projeto, pois nas respostas dadas constatamos que agora eles conseguiam definir o que é variação linguística pelo fato das exemplificações e reflexões expostas neste último questionário aplicado. Contudo, esta pesquisa nos mostrou o quanto ainda é preciso melhorar nossas práticas em sala de aula. As experiências adquiridas foram surpreendentes, pois não só nos dispusemos a ajudar os alunos e a professora em sala, mas aprendemos com eles. Os alunos nos mostraram que nós professores não podemos subjugar o conhecimento que o aluno traz para dentro da escola, e que esse conhecimento precisa ser explorado. REFERÊNCIAS ANTUNES, I. Muito Além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007 BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 CALVET, L. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002 LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008 MATTOS E SILVA, R. V. “O Português são dois...” novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo: Parábola Editorial, 2004 VOTRE, S; CEZARIO, M. M. Sociolinguística. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de linguística. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2010.

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O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS PCN: DAS ORIENTAÇÕES ÀS PRÁTICAS EM SALA DE AULA. SILVANA OLIVEIRA BANDEIRA (UFPA) TÂNIA REGINA DO NASCIMENTO MONTEIRO (UFPA) 1 INTRODUÇÃO Desde que foram lançados em 1998 pelo Ministério da Educação (MEC), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – terceiro e quarto ciclos - já foram objeto de estudos de profissionais dos mais diversos campos de ensino, pois o documento veio com a proposta de dar um novo direcionamento à educação básica nas mais diversas áreas do conhecimento, entre elas, a da Linguagem. Embora sem caráter obrigatório, as recomendações dos PCN vieram com o intuito de tentar promover uma quebra no paradigma da Educação que vinha sendo praticada no Brasil, sobretudo nas séries do Ensino Fundamental, nos anos 70/80. Na área da Língua Portuguesa, conforme indica o documento, as práticas pedagógicas eram centradas principalmente no ensino de normas da gramática e no uso de textos como expedientes para ensinar valores morais, culminado em um ensino descontextualizado que apresentava sinais de total fracasso. Então, o MEC, baseado em pesquisas nas áreas da variação linguística, da psicolinguística e de reflexões sobre as práticas de sala de aula, lançou os PCN com propósito de buscar romper um modelo educacional que não considerava a realidade e os interesses dos alunos, uma vez que o trabalho com a leitura e a escrita era utilizado quase sempre apenas como instrumento para decodificação de signos linguísticos. A partir dos novos Parâmetros, a escola deveria ser pensada como um lugar de formação cidadã e com o ensino de língua materna conectado a essa proposta. Práticas pedagógicas antes descontextualizadas deveriam ser substituídas por aulas em que a utilização de textos reais permitisse o uso da fala e da escrita como interlocução efetiva dos discentes em situações apropriadas e bem definidas. O ensino, então, passaria a ter um para quê e um para quem, fazendo da linguagem um instrumento, de fato, de participação social. Como resultado dessas recomendações, os alunos deveriam encerrar o Ensino Fundamental sabendo se posicionar de forma crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando as diferentes linguagens por meio da produção e comunicação de ideias em contextos públicos e privados. Dentro dessa perspectiva, o objetivo do presente artigo é revisitar algumas orientações dos PCN para refletir sobre a adequação e/ou acompanhamento do conteúdo programático da Secretaria Estadual de Educação do Pará (Seduc/Pa) destinado às últimas séries do Ensino Fundamental, 4ª etapa, da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Essa discussão se torna importante porque esta é a fase que antecede o Ensino Médio, quando, portanto, os alunos já deveriam saber fazer uso das diferentes modalidades da língua nos mais diversos contextos comunicativos, como indicam os Parâmetros. A pesquisa possui um caráter bibliográfico de análise documental, com vistas a indagar a adequação dos conteúdos de Língua Portuguesa indicados pela Seduc/Pa às últimas séries do Ensino Fundamental às orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais, bem como apresentar algumas práticas pedagógicas pautadas em nossa vivência como docentes da rede pública de ensino, as quais buscam ir ao encontro das propostas oficiais - sobretudo no que se refere ao uso da língua escrita e falada voltado à participação social e política dos discentes. Os resultados são apresentados ao longo do trabalho. 2 REVISITANDO OS PCN PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA Os PCN foram lançados pelo MEC em 1997, voltados inicialmente ao primeiro e segundo ciclos do Ensino Fundamental. No ano seguinte, 1998, foram lançados os PCN para

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o terceiro e quarto ciclos, com ambos abrangendo diversas áreas do conhecimento, entre elas, a da Linguagem. Os Parâmetros não se propuseram a ser uma espécie de manual a ser seguido pelos professores do Ensino Básico. Ao contrário, o documento indica que todas as práticas pedagógicas devem prever as diversidades regionais e culturais do país e, a partir daí, sugerem rumos para melhorar o ensino. Entre os objetivos elencados estão: - compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; -utilizar as diferentes linguagens-verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e corporal -como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação (BRASIL. MEC, PCN, 1998, p. 78).

Esses objetivos, entre outros, norteiam os caminhos pelos quais os alunos devem percorrer para que ao final do Ensino Fundamental tenham êxito no processo de ensinoaprendizagem. Dessa forma, as orientações organizadas pelos PCN se propõem a abrir espaço para a formação de cidadãos competentes quanto ao uso de diferentes linguagens, favorecendo a construção de sujeitos engajados e participantes da transformação na sociedade. Na área da Língua Portuguesa, os Parâmetros, dedicados ao terceiro e quarto ciclos, definem as linhas gerais da proposta que deveria ser colocada em prática nessas fases de ensino, entre elas, a importância de um ensino voltado para o uso da língua nas mais diversas situações comunicativas de modo a atender as demandas sociais e a responder a diferentes propósitos comunicativos, ou seja, um ensino contextualizado voltado para uma realidade e finalidade específicas, envolvendo uma diversidade de gêneros textuais. Dentre os diferentes direcionamentos difundidos pelos Parâmetros, temos no processo de escuta de textos orais, por exemplo, a proposta de que o aluno possa ampliar o conjunto de conhecimentos envolvidos na construção do sentido do texto, reconhecendo a contribuição complementar dos elementos não verbais e as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir a ou recusar as posições ideológicas sustentadas nos discursos. Quanto às práticas de produção desses textos, a proposta é de que o aluno planeje a fala pública usando a linguagem escrita em função das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos, utilize e valorize o repertório linguístico de sua comunidade na produção de textos, monitore seu desempenho oral, levando em conta a intenção comunicativa e a reação dos interlocutores, reformulando o planejamento prévio, quando necessário, considerando possíveis efeitos de sentido produzidos pela utilização de elementos não-verbais. Já no processo de leitura de textos escritos, o documento sugere que o aluno saiba selecionar textos segundo seu interesse e necessidade e leia de forma autônoma, textos de gêneros e temas com os quais tenha construído familiaridade. No processo de produção de textos escritos, a proposta é de que o aluno redija diferentes tipos de textos, utilizando com propriedade e desenvoltura os padrões da escrita em função das exigências do gênero e das condições de produção, analisando e revisando o próprio texto em função dos objetivos estabelecidos, da intenção comunicativa e do leitor a que se destina, redigindo tantas quantas forem as versões necessárias para considerar o texto produzido bem escrito. Diante dessas orientações, cabe à escola proporcionar aos alunos um ensino de línguas que viabilize o pleno desenvolvimento da competência discursiva desses educandos levando em consideração os processos de leitura e de escrita, bem como escuta e fala para atuação nos contextos comunicativos em geral. Até porque no espaço escolar não há mais lugar para um ensino de língua pautado unicamente no uso da gramática como norma. A escola deve

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preparar o aluno a usar a linguagem de forma proficiente em situações reais e do dia-a-dia, principalmente para fazer valer os seus direitos e deveres, sobretudo nas instâncias públicas de uso de linguagem de modo a facilitar sua inserção no mundo da escrita, potencializando suas possibilidades de participação social na esfera coletiva, com escolha dos gêneros adequados à produção de texto escrito ou oral. Estes, são, portanto alguns dos tópicos do PCN que precisam ser revisitados a fim de que se possa compreender e comparar com os conteúdos programáticos da Seduc/Pa ora em estudo. 3 PCN E CONTEÚDOS OFICIAIS Diante das considerações feitas sobre os PCN de LP, apresentamos o conteúdo programático oficial da Secretaria Estadual de Educação do Pará (Seduc/Pa) destinado às últimas séries do Ensino Fundamental, 4ª etapa, da Educação de Jovens e Adultos (EJA) a fim de que possamos refletir sobre a adequação de tais conteúdos às orientações oficiais propostas pelo MEC. Tal conteúdo pode ser visualizado no site da Seduc/Pa (www.seduc.pa.gov.br) e está organizado da seguinte maneira: Quadro 1 - Conteúdo programático de Língua Portuguesa I - UNIDADE: O TEXTO  Leitura, produção, recriação e estudo de textos nacionais e regionais;  Redação: Carta, ofícios, narração, descrição e dissertação. II - UNIDADE: ORTOGRAFIA E FONÉTICA  Revisão de Fonética;  Revisão do emprego dos sinais e pontuação;  Acentuação gráfica;  Emprego das letras x, ch, ss, sc, etc...;  Homônimo e parônimos;  Dificuldades da língua: Uso dos porquês, mal/mau, mas/mais, há/a etc.;  Emprego da crase. III - UNIDADE: MORFOLOGIA E FORMAÇÃO DAS PALAVRAS  Revisão e formação das palavras;  Radical, vogal temática, tema desinência normal e verbal, afixos, vogal e consoante de ligação;  Derivação e composição;  Verbos irregulares, (anômalos, defectivos e abundantes). IV - UNIDADE: SINTAXE  Sujeito (revisão);  Predicado verbal, nominal e verbo-nominal (revisão);  Predicado do sujeito e do objeto (revisão);  Complemento nominal;  Agente da passiva;  Adjunto: adnominal e adverbial (revisão);  Aposto e vocativo (revisão);  Período composto por coordenação: Orações coordenadas;  Período composto por subordinação: Orações subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais;  Colocação pronominal: Próclise, ênclise e mesóclise;  Concordância nominal e verbal (principais casos). V - UNIDADE: ESTILÍSTICA  Noções de versificação: verso, estrofe e rima;  Diferença entre poesia e poemas;  Linguagem Figurada: (Conotação e Denotação);  Figuras de Linguagem: Metáfora, metonímia, catacrese, perífrase, elipse, zeugma, pleonasmo, silepse, hipérbole, prosopopeia, eufemismo e ironia;  Vícios de Linguagem: barbarismo, cacófato e pleonasmo.

Fonte: PARÁ. Secretaria Estadual de Educação (2013).

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Na análise do conteúdo proposto pela Seduc/Pa, verificamos que os tópicos indicados para o trabalho com os alunos vêm divididos em cinco unidades, a saber: Texto; Ortografia e Fonética; Morfologia e formação de palavras, Sintaxe e Estilística. Esse agrupamento nos sugere, provavelmente, uma espécie de sequência a ser seguida no ano letivo pelos professores, embora isso não apareça de forma explícita na proposta. Percebemos, assim, que tal divisão já difere daquela sugerida pelos PCN, cujos princípios organizadores orientam a seleção de conteúdos baseados no uso da língua oral e da escrita e a reflexão sobre a língua e a linguagem. Na primeira parte, o documento trata do estudo do texto, com leitura, produção e recriação de textos nacionais e regionais, além do indicativo de dois gêneros a serem apresentados aos discentes em sala de aula: carta e ofício. Destaca-se que a seleção desses gêneros é bastante apropriada às séries em questão, já que a EJA contempla a Educação de Jovens e Adultos, com a grande maioria dos alunos estando em busca de uma inserção no mercado de trabalho. O primeiro tópico aborda também os tipos textuais que devem ser estudados nas séries em referência, abrangendo a narração, a descrição e a dissertação, com a compreensão dos três sendo necessária para o processo, sobretudo, de produção de textos. Ressaltamos que a primeira unidade é a única a fazer alguma referência ao trabalho com gênero textual, os quais devem estar voltados às necessidades reais dos alunos. Na segunda unidade, a ênfase é dada ao estudo da Ortografia e da Fonética, com a revisão dos sinais de pontuação, acentuação gráfica, emprego da crase e dificuldades da língua. Nesta unidade já observamos um direcionamento aos estudos de conteúdos voltados às regras gramaticais, situação estendida à terceira unidade, em que o destaque é para o trabalho com a Morfologia e com a formação de palavras. Embora, o ensino da gramática seja obrigação da escola, notamos que a escolha da Seduc/Pa foi por uma por uma prática pedagógica fundamentada na abordagem de um ensino tradicional, em que os conteúdos aparecem fragmentados e descontextualizados, indicando não haver uma articulação entre eles, ou seja, o ensino de: Uma gramática voltada para a nomenclatura e a classificação das unidades [...] uma gramática que não tem como apoio o uso da língua em textos reais, isto é, em manifestações textuais da comunicação funcional e que não chega, por isso, a ser o estudo dos usos comunicativamente relevantes da língua. (ANTUNES, 2003, p. 3233).

Notamos que isso, de alguma forma, compromete o ensino da língua conforme as orientações dos PCN, já que a finalidade desse é a produção/recepção de discursos, o que deixa em segundo plano ou no esquecimento um trabalho embasado em orientações para uma prática de análise linguística, cujos objetivos são claros no documento oficial do MEC (BRASIL. MEC. PCN,1998, p. 60 - 61), como podemos observar a seguir: -Reconhecimento das características dos diferentes gêneros de texto, quanto ao conteúdo temático, construção composicional e ao estilo; -Observação da língua em uso de maneira a dar conta da variação intrínseca ao processo linguístico; -Comparação dos fenômenos linguísticos observados na fala e na escrita nas diferentes variedades; -Realização de operações sintáticas que permitam analisar as implicações discursivas decorrentes de possíveis relações estabelecidas entre forma e sentido, de modo a ampliar os recursos expressivos.

A quarta unidade é dedicada ao estudo da sintaxe, em que estão elencados, entre outros aspectos, o estudo do sujeito e do predicado, das orações coordenadas e das

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subordinadas e os processos de concordâncias verbal e nominal. A quinta e última unidade abrange a estilística com noções de versificação, linguagem figurada, figuras de linguagem e vícios de linguagem, ficando em evidência, novamente, um ensino da Língua Portuguesa fincado em uma pedagogia do século passado. Embora os conteúdos supracitados sejam relevantes em determinados contextos à formação do aluno, observamos que o conteúdo programático em estudo prima por uma proposta de ensino que desconsidera fatores importantes para o aprendizado da referida clientela, como realidade contextual, necessidades imediatas, possibilidades de aprendizagem, entre outros, sugerindo um trabalho por meio de uma “gramática inflexível, petrificada, de uma língua supostamente uniforme e inalterável [...] com se o processo de mudança da língua fosse apenas um fato do passado, algo que já aconteceu e não acontece mais [...]” (ANTUNES, 2003, p. 32). Os conteúdos destinados à EJA propostos pela Seduc/Pa parece que não estão desarticulados somente das orientações do documento oficial do MEC, mas também estão desvinculados da legislação educacional, mais precisamente da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, cujo artigo 27º versa sobre as diretrizes da Educação básica, em que está incluído a EJA. Este artigo (BRASIL, 1996, p. 11) mostra que os conteúdos curriculares da Educação Básica devem observar as seguintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV- promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não formais.

Apenas no tópico que trata dos gêneros textuais, é possível observarmos alguma referência aos incisos acima quando analisamos os conteúdos da EJA, já que a proposta de ensino de Carta e Ofício pode ser inserida como orientação para o trabalho. Nos demais tópicos, o que observamos é que não há uma seleção de conteúdos que vá ao encontro dos objetivos elencados. Desse modo, vemos um certo descompasso entre o conteúdo programático proposto à EJA e as orientações preconizadas nos PCN, uma vez que os conteúdos de LP pouco se adequam as orientações recomendadas, apesar de o documento estar em vigor há mais de quinze anos. Do mesmo modo, os conteúdos sugeridos também pouco se pautam na legislação educacional, haja vista a falta de visualização das diretrizes na maioria dos conteúdos oficiais da Seduc/Pa. Contudo esse fato não impede que práticas pedagógicas consoantes às recomendações dos PCN sejam realizadas no cotidiano escolar. Como o próprio documento alerta, escola e professores são responsáveis por propostas de práticas do uso da linguagem que colaborem para o desenvolvimento da competência discursiva de seus educandos. 4 AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: RELATOS DE EXPERIÊNCIA Embora o conteúdo programático destinado à 4ª Etapa da EJA, da Seduc/Pa, não indique uma conexão mais próxima às orientações dos PCN, apresentamos duas práticas pedagógicas que têm procurado romper com essa realidade, buscando oferecer aos alunos um ensino contextualizado e que caminhe para um objetivo mais real. As experiências foram aplicadas na Escola Estadual de Ensino Fundamental “Maroja Neto”, localizada no bairro da Pedreira, em Belém. Nessa escola, de 2010 a 2013, foi desenvolvido o projeto “Poesia na Escola”, envolvendo a produção de textos escritos e orais. De acordo com o contexto histórico e social de cada ano foi escolhida uma temática, cujo objetivo era sensibilizar os alunos a refletirem sobre temas em evidência em cada época, levando-os a um agir cidadão.

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Em 2010, o tema escolhido foi a “Escola e a Preservação do Meio Ambiente”, cuja a proposta era despertar os alunos para o cuidado com o espaço escolar, uma vez que a escola vinha sendo alvo de pichações e ações como destruição de carteiras, portas e banheiros. A partir de intensos debates utilizando textos sobre Educação Ambiental e o estudo sobre o gênero textual, os alunos produziram uma coletânea de poemas, lançada durante um evento aberto à comunidade escolar. Na ocasião, os alunos recitaram os poemas e ainda participaram de um concurso para a escolha dos três melhores textos que respondiam às demandas da escola, sendo notado que a partir deste trabalho melhorou bastante a relação dos alunos com o espaço escolar, com ações positivas sobre esse meio. No ano seguinte, 2011, a temática escolhida foi “Direitos e deveres das crianças e adolescentes”, com amplo debate sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a fim de levar os alunos a discutirem sobre alguns atos de violência que até então ameaçavam o espaço escolar. A coletânea produzida foi apresentada pelos alunos em evento na escola e, também, na “Feira do Livro”, em Belém. O “Plebiscito para decidir sobre divisão ou não do Estado do Pará” foi o tema em evidência no ano de 2012 Os alunos expuseram as suas opiniões sobre a questão por meio da elaboração de poemas que culminaram novamente em uma coletânea. Os textos foram recitados publicamente, com os discentes usando versos e rimas como um instrumento de persuasão para defender o que acreditavam ser o melhor para o povo paraense, valendo-se de pesquisas e estudos dirigidos realizados em sala sobre o tema e (re)elaboração dos textos em versos para um propósito definido: a discussão sobre a divisão do estado. Em 2013 a temática foi sobre os “40 anos de funcionamento da escola”, com os alunos mais uma vez buscando a melhoria do ambiente escolar. Ainda nessa direção, a escola participou em 2013, do projeto “Câmara Mirim”, da Câmara Federal em que é simulada uma sessão da Câmara dos Deputados com os alunos de escolas de Ensino Fundamental do país vivendo a experiência de ser “deputado por um dia”, em Brasília, debatendo e votando projetos elaborados pelos próprios estudantes. Em 2013, a Escola “Maroja Neto” representou o Pará na capital do país com 11 alunos. Por meio do Câmara Mirim”, a Escola contribuiu para a formação política dos alunos, melhorou o processo de produção de textos escritos e orais a partir do contato deles com uma diversidade de gêneros textuais (pareceres, projetos de lei, discurso político etc) e, ainda, deu a oportunidade de os discentes praticarem o exercício da oralidade, como forma de usar a língua falada para argumentar e defender seus pontos de vista de maneira crítica em uma situação comunicativa real e para além dos muros da escola. Durante todo esse trabalho pedagógico, o ensino caminhou para a formação de leitores e escritores críticos, proficientes e conhecedores dos seus direitos e deveres, selecionando conteúdos de língua e linguagem que não estavam em função da tradição escolar, mas em função das necessidades e possibilidades dos alunos de modo a permitir que eles, em sucessivas aproximações se apropriassem dos instrumentos que ampliassem sua capacidade de ler, escrever, falar e escutar (BRASIL. MEC. PCN, 1998). Conforme foi observado, as atividades docentes realizadas na Escola Estadual “Maroja Neto” vislumbram as orientações preconizadas pelos PCN no que se refere ao uso da língua como prática de escuta e leitura de textos e prática de produção de textos orais e escritos a partir de gêneros textuais, os quais são indicados pelo documento para nortear os conteúdos de Língua Portuguesa. Esses conteúdos devem contribuir para o desenvolvimento da competência discursiva dos alunos a partir do uso variado da língua, da adequação de textos às mais diversas situações comunicativas e da diversidade de gêneros, sempre priorizando os usos públicos de linguagem que levem os discentes a uma reflexão crítica.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao refletirmos sobre o tema proposto, observamos que, mesmo as recomendações dos PCN já tenham completado 15 anos, elas pouco se manifestaram no conteúdo programático indicado pela Seduc/Pa à 4º etapa de ensino da Educação de Jovens e Adultos, situação que não impediu que os docentes da rede estadual procurassem, por iniciativas próprias, romper com as práticas fragmentadas de ensino de LP em troca de um ensino que favorecesse aos alunos o uso da língua oral e escrita em situações reais por meio de uma diversidade de gêneros textuais. Diante desse estudo, compreendemos que embora o documento seja alvo de discussões há mais de uma década, os conteúdos estabelecidos pela Seduc/Pa para essas séries ainda se valem em muito de abordagens tradicionais, mas práticas diferenciadas buscam ir além o espaço físico de sala de aula, proporcionando aos alunos uma maior interação com a sua realidade e com o mundo a sua volta por meio de um ensino contextualizado e do uso da língua como prática social. Entendemos que os PCN de LP abrem um caminho para a reflexão sobre o ensino da língua no espaço escolar, mas é preciso que os órgãos oficiais de Educação, em especial à Seduc/Pa, apropriem-se das orientações contidas no documento e passem a indicá-las nos conteúdos propostos às mais diversas séries de ensino, sobretudo na 4ª etapa do Ensino Fundamental, foco de nossa análise. Logo, acreditamos que essa discussão não se encerre em nossas palavras, haja vista a importância dos conteúdos de Língua Portuguesa na formação discursiva dos alunos do Ensino Fundamental. 6 REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003 BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1989. Disponível em:
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