Anais do VII Seminário Internacional de Políticas Culturais - Fundação Casa de Rui Barbosa

June 2, 2017 | Autor: Sharine Melo | Categoria: Cultural Policy, Creative Economy
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Descrição do Produto

Anais

VII

Seminário Internacional

políticas culturais 17 a 20 de maio de 2016- Rio de Janeiro Organizadores: Lia Calabre Maurício Siqueira Adélia Zimbrão Deborah Rebello Lima

Edição: Fundação Casa de Rui Barbosa ISBN: 978-85-7004-337-5

Anais do VII Seminário Internacional de Políticas Culturais

Organizadores: Lia Calabre Maurício Siqueira Adélia Zimbrão Deborah Rebello Lima

17 a 20 de maio de 2016 – Rio de Janeiro

Seminário Internacional Políticas Culturais (7. : 2016 : Rio de Janeiro, RJ) Anais do VII Seminário Internacional de Políticas Culturais, 17 a 20 de maio de 2016, Rio de Janeiro / Organizadores: Lia Calabre... [et al.] – Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa, 2016. Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World WideWeb: ISBN: 978-85-7004-337-5

1. Política cultural. I. Calabre, Lia, org. II. Siqueira, Mauricio, org. III. Zimbrão, Adélia, org. IV. Lima, Deborah Rebello, org. V. Fundação Casa de Rui Barbosa. VI. Título.

CDD 306

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

17 a 20 de maio de 2016

Índice Geral

Sobre o Evento

Programação Geral

Programação das Comunicações

Índice dos Trabalhos

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VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

17 a 20 de maio de 2016

Sobre o Evento

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O Seminário Internacional de Políticas Culturais é um evento que tem por objetivo promover o encontro de especialistas, estudiosos e interessados nas questões relativas à área de políticas culturais, a fim de divulgar trabalhos e promover debates no campo das ações políticas, das reflexões históricas, teóricas e das práticas.

FICHA TÉCNICA Realização Setor de Pesquisa em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa Comissão Organizadora Lia Calabre Mauricio Siqueira Adélia Zimbrão Deborah Rebello Lima Equipe Técnica Bolsistas do Setor de Estudos em Políticas Culturais: Beatriz Terra Clarissa Semensato Leandro Leal Lígia Arruda Mariana Albinati Pablo Lima Raquel Moreira Taísa Diniz Editoração dos Anais Celeste Matos (miolo) Renata Duarte (capa) Parceria Itaú Cultural e Observatório Itaú Cultural Realizado entre os dias 17 a 20 de maio de 2016, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Botafogo, Rio de Janeiro. Informações [email protected]

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Programação Geral

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

17 de maio terça-feira

8h | Credenciamento 9h – 9h30 | Abertura 9h30 – 11h30 | Conferência - Auditório REORGANIZAR LO COTIDIANO: URGENCIA DE LAS POLÍTICAS CULTURALES

Víctor Vich (Pontificia Universidad Católica do Peru) ¿Cómo discutimos las políticas culturales desde la teoría de la cultura? ¿Cómo podemos evaluarlas desde las herencias pasadas y enriquecerlas desde las discusiones actuales? ¿Cómo articular el saber académico con el activismo social y con proyectos que tengan sostenibilidad en el tiempo? ¿Cómo proponer políticas culturales que se sitúen fuera o más allá de las tecnologías de gobierno y de los paradigmas de saber/ poder que han colonizado el mundo de la vida? ¿Qué es un gestor cultural? ¿Qué debe hacer? Esta conferencia intentará ofrecer algunas respuestas y posibles alternativas para la acción política. 11h30 - 12h | Intervalo 12h – 13h30 | Palestra - Auditório MUNIC/ESTADIC 2014: APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS

Leonardo Athias (IBGE)

13h30 – 14h30 | Almoço 14h30 – 17h | Mesas Comunicações Auditório - Política Cultural: cidade e agentes culturais Sala de cursos - Formação de Público: experiências do audiovisual 17h – 17h30 | Intervalo

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Programação Geral

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17h30 – 20h | Mesa - Auditório OBSERVATÓRIOS CULTURAIS: AÇÕES E PERSPECTIVAS Álvaro Santi (Observatório da Cultura / Prefeitura de Porto Alegre) José Márcio Barros (Observatório da Diversidade Cultural) Jorge Luiz Barbosa (Observatório de Favelas) Luciana Modé (Observatório Itaú Cultural) Mediação: Eliane Costa (FGV)

18 de maio quarta-feira

8h – 13h30 | Painel Política Nacional Cultura Viva - Auditório Política Nacional de Cultura Viva: avaliações e desafios AVALIAÇÃO DO PROGRAMA CULTURA VIVA – UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DOS DOIS MARCOS LÓGICOS APLICADO AO PROGRAMA

Ana Clécia Mesquita de Lima (UFABC)

AFIRMAÇÃO E EXPANSÃO TERRITORIAL EM POLÍTICAS CULTURAIS: UMA ANÁLISE DOS PROGRAMAS CULTURA VIVA E ARTE NA RUA PELA PERSPECTIVA DO TERRITÓRIO

Beatriz Terra Freitas (FCRB)

CONTRIBUIÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NA LUTA POR RECONHECIMENTO

Mirnah Leite Medeiros Mascarenhas Andrade (UFPB)

PERSPECTIVAS SOBRE S DIVERSIDADE CULTURAL NO PROGRAMA CULTURA VIVA

Daniele Sampaio da Silva (UNICAMP)

POLÍTICA CULTURAL E CULTURA DA POLÍTICA: UMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA DO PROGRAMA CULTURA VIVA

Ariel Nunes (UnB)

IVANA BENTES (Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural – MinC) Política Nacional de Cultura Viva: conceitos e reflexões QUANDO A POESIA VIROU POLÍTICA: O PERCURSO DOS PONTOS DE CULTURA NO BRASIL, DE PROGRAMA GOVERNAMENTAL À REDE CULTURA VIVA

José Maria Reis e Souza Junior (UFPA)

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17 a 20 de maio de 2016

Programação Geral

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PONTOS DE CULTURA: O MUNDO QUE VI

Cesar de Mendonça Pereira (Fundaj - Fundação Joaquim Nabuco) Milene Morais Ferreira (UFPE) PONTOS DE CULTURA: POLÍTICAS PÚBLICAS E A PRODUÇÃO DE UMA SUBJETIVIDADE MAIS AUTÔNOMA

Flávia Campos Junqueira (UERJ)

PONTOS DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO: POTENCIALIZAR SINERGISMOS

Marcella Francelina Vieira Camargo (UFRJ)

O RENASCIMENTO DO GRIÔ AFRO-BRASILEIRO

Julio Souto Salom (UFRGS) 8h – 10h30 | Comunicações

Sala de cursos - Institucionalização das Políticas Culturais na América Latina Tenda - Políticas Setoriais: Cultura Afro-brasileira Sala Maria Augusta II - Política Audiovisual e Comunicação I 10h30 – 11h | Intervalo 11h – 13h30 | Comunicações Sala de cursos - Planos Municipais de Cultura Tenda - Cidadania, diversidade e direito no campo da cultura Sala Maria Augusta II - Políticas setoriais: livro e leitura 13h30 – 14h30 | Almoço 14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Financiamento à cultura: da Lei Sarney ao Procultura Sala de cursos - Políticas Setoriais: museus Tenda - Periferias urbanas e políticas culturais 17h00 – 17h30 | Intervalo

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Programação Geral

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17h30 – 20h | Mesa – Auditório QUALIFICAÇÃO DA GESTÃO CULTURAL: DESAFIOS NA ELABORAÇÃO DE PLANOS MUNICIPAIS

Vinícius Wu (Secretaria de Articulação Institucional - MinC) Daniele Canedo (UFRB) Horácio Hastenreiter (UFBA) Ernani Coelho (UFBA) Alcemir Palma (Fundação Cultural de São José dos Campos) 20h | Lançamento de Livros

19 de maio quinta-feira

8h – 10h30 | Comunicações Auditório – Estatísticas culturais Sala de cursos - Políticas Culturais Setoriais: experiências e trocas Tenda - Políticas culturais e participação social Sala Maria Augusta II - Políticas Culturais: experiências em gestão 10h30 - 11h | Intervalo 11h – 13h30 | Comunicações Auditório - Política de fomento: estudos de caso Sala de cursos - Gestão Municipal de Cultura: experiências e trocas Tenda - Políticas Culturais: história e memória Sala Maria Augusta II - Experiências de Mediação Cultural 13h30-14h30 | Intervalo para almoço

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Programação Geral

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Sistemas de Cultura: experiências, avanços e desafios Sala de cursos - Patrimônio Cultural Imaterial Tenda - Mudanças tecnológicas e políticas culturais Sala Maria Augusta II - Preservação de patrimônio material e acervos 17-17h30 | Intervalo 17h30 – 20h | Painel: Políticas Culturais Contemporâneas A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DISCURSIVA DA POLÍTICA CULTURAL

Valéria Viana Labrea (UFRGS)

OS SENTIDOS DO SEM SENTIDO: LEMBRANÇAS DO “REDESENHO”

Frederico Augusto Barbosa da Silva (IPEA)

COMUNIDADES QUILOMBOLAS, CUTURA E DESIGUALDADE: NOTAS SOBRE O PLANO BRASIL SEM MISÉRIA

Tereza Ventura (UERJ)

O MINC E A GESTÃO ANA DE HOLLANDA: MOBILIZAÇÃO E CRISE NA POLÍTICA E NO CAMPO DA CULTURA

Alexandre Barbalho (UECE)

CARAVANAS E POLÍTICAS CULTURAIS

Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA)

20 de maio sexta-feira

8h – 10:30 | Comunicações Auditório - Políticas de Financiamento: Patrocínio e Incentivo Fiscal Sala de cursos - Economia Criativa Tenda - Política Audiovisual e Comunicação II Sala Maria Augusta II - Políticas Culturais: reflexões conceituais 10h30 - 11h | Intervalo

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Programação Geral

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11 – 13h30 | Comunicações Auditório - Cidades Criativas Sala de cursos – Economia da Cultura Tenda - Patrimônio Imaterial e Meio Ambiente Sala Maria Augusta II - Educação patrimonial 13h30-14h30 | Intervalo para almoço 14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Políticas Culturais Setoriais para as artes Sala de cursos - Financiamento à cultura e acesso Tenda - Gestão Cultural: política e formação 17-17h30 | Intervalo 17h30 – 19h30 | Conferência - Auditório ACCESO CULTURAL Y DESIGUALDAD. POLÍTICAS PARA VIEJOS Y NUEVOS ESCENARIOS

Ana Rosas Mantecón (Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM) No es difícil demostrar la relación entre acceso cultural e inequidad. Aquéllos que logran llegar son los vencedores de una larga carrera de obstáculos: equipamiento doméstico, distancias, costos, capital cultural, discriminación de género, social, étnica, religiosa o incluso en términos de capacidades de visión o movilidad. Pero los escenarios del acceso se vienen transformando radicalmente: las innovaciones tecnológicas y la expansión de Internet han catapultado la factura y distribución de películas, discos y software pirata, y también diversos emprendimientos alimentados por la creatividad popular y comunitaria. La conferencia hace un recorrido por experiencias de políticas culturales contemporáneas en torno al acceso en bibliotecas, museos, cines, formación de lectores, proyectos de organizaciones no gubernamentales feministas y jóvenes emprendedores, analizando sus estrategias, contradicciones y retos para forjar nuevas relaciones con los públicos y usuarios, y transformarse en el proceso.

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Programação das Comunicações

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17 de maio terça-feira

14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Política Cultural: cidade e agentes culturais E ... APÓS A INCLUSÃO E O ACESSO

Telma Luzia Pegorelli Olivieri (UFSCar) BRASÍLIA POR PESSOAS: ENVOLVENDO A POPULAÇÃO NAS POLÍTICAS CULTURAIS DA CIDADE

Daniela Pereira Barbosa (UNB)

POLÍTICAS CULTURALES EN LATINOAMÉRICA. ENTRE LOS LÍMITES DE LA DEMOCRATIZACIÓN Y EL ANHELO DE LA DEMOCRACIA CULTURAL, PENSANDO EN “POLÍTICAS DE BIENES COMUNES”

Mónica Lacarrieu (UBA) Mariana Cerdeira (UBA)

PARA SUAVIZAR A CIDADE HOSTIL: ARTE E POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO URBANO

Pablo Gobira (UEMG) Adeilson William da Silva (UEMG) Karla Danitza de Almeida (UEMG)

CULTURA E DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES. POLÍTICAS CULTURAIS PARA QUEM?

Carla Cristina Rosa de Almeida (UFPE) João Policarpo Rodrigues Lima (UFPE) Maria Fernanda Gatto Padilha (UFPE)

Sala de cursos - Formação de Público: experiências do audiovisual POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EXIBIÇÃO CINEMATOGRÁFICA: O CASO DA REDE CINE CARIOCA

Adil Giovanni Lepri (UFF)

REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE SUSTENTABILIDADE PARA O CAMPO CULTURAL: PONTO CINE

Carolina Marques Henriques Ficheira (ESPM-RJ)

DO LAZER À CULTURA: AS BASES PARA A POLÍTICA DE CINEMA DO SESC NO BRASIL

Marcelo Costa Lopes (UESB)

CLUBE DE ESPECTADORES: OS SÓCIOS COMO PROTAGONISTAS PARA O DESENVOLVIMENTO CULTURAL

Maria Emília Ribeiro (UFF) Janaína Dias (PPGAd/UFF)

REDE CEUS DE CINECLUBES: CINEMA E ESTADO DEMOCRÁTICO

Paula Priscila Braga (UFABC)

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Programação das Comunicações

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18 de maio quarta-feira

8h – 10h30 | Comunicações Sala de cursos - Institucionalização das Políticas Culturais na América Latina AS POLITICAS CULTURAIS DENTRO DA AGENDA GOVERNAMENTAL DE BOGOTÁ: UMA REFLEXÃO DESDE O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS

Mônica Cristina Moreno-Cubillos (UFMA)

EL PLAN DEPARTAMENTAL DE CULTURAS DE COCHABAMBA: PRIMER INSTRUMENTO PARA LA GESTIÓN DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURALES EN EL ÁMBITO AUTONÓMICO DEL ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA

Franz Cabrera Quispe

POLÍTICA CULTURAL Y CONSTRUCCIÓN DE PAZ EN COLOMBIA

Andrés Tafur Villarreal (UNIANDES)

Tenda - Políticas Setoriais: Cultura Afro-brasileira POLÍTICAS CULTURAIS PARA A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL: O EDITAL DE APOIO À COEDIÇÃO DE LIVROS DE AUTORES NEGROS

Vagner Amaro (UNIRIO) Patrícia Vargas Alencar (UNIRIO)

A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA AFROBRASILEIRA EM SANTA CATARINA: NOTAS SOBRE UM PROCESSO INCIPIENTE

Lisandra Barbosa Macedo Pinheiro (UDESC) Hilton Fernando da Silva Pinheiro (UFSC)

INSTITUTO PRETOS NOVOS: A MÃE ÁFRICA NOS PROVOCA A REPENSAR AS POLÍTICAS CULTURAIS

João Guerreiro (IFRJ)

A PRÁXIS COTIDIANA COMO FATOR CONTRIBUTIVO NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O SETOR AFRO-BRASILERO EM ALAGOAS: DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ESFERA PÚBLICA GOVERNAMENTAL

Igor Luiz Rodrigues da Silva (Sec. Est. Cultura de Alagoas) Claudia Cristina Rezende Puentes (Sec. Est. Cultura de Alagoas / Hibrido-UNIT) Natalia Teles Bezerra (Sec. Est. Cultura de Alagoas)

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Programação das Comunicações

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Sala Maria Augusta II - Política Audiovisual e Comunicação I “FORA DA NOVA ORDEM MUNDIAL?”: O NEOLIBERALISMO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CINEMA NO BRASIL E NA ARGENTINA DOS ANOS 1990

Ana Julia Cury de Brito Cabral (ANCINE)

O FETICHE DAS MERCADORIAS E A PUBLICIDADE INFANTIL

Ricardo Przemyslaw Pessoa (ANCINE)

A VIDEOARTE NO BRASIL: UM PANORAMA ANTES E DEPOIS DA ORIGEM DO FESTIVAL VIDEOBRASIL

Thamara Venâncio de Almeida (UFJF) 10h30 – 11h | Intervalo 11 – 13h30 | Comunicações

Sala de cursos - Planos Municipais de Cultura CONSTRUÇÃO E GESTÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS COMPARTILHADAS

Luiz Augusto Fernandes Rodrigues (UFF) Marcelo Silveira Correia (UERJ)

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PROJETO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP

Sérgio de Azevedo (UNICAMP)

PARTICIPAÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA EM BERTIOGA – APLICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO RÁPIDO PARTICIPATIVO

Elisa Selvo Chaves (Conselho de Pol. Culturais de Bertioga)

BELÉM COMO METRÓPOLE CULTURAL E CRIATIVA DA AMAZÔNIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELÉM

Valcir Bispo Santos (UFPA)

A CONTRUÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SP: ALGUMAS REFLEXÕES

Patricia Oliveira (MIS-SP)

Tenda - Cidadania, diversidade e direito no campo da cultura TRATADO DE MARRAKESH NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: INCLUSÃO CULTURAL E CIDADANIA

Allan Rocha de Souza (UFRJ) Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks (UFRRJ)

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Programação das Comunicações

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A CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE E SEUS PRIMEIROS 10 ANOS: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DOS RELATOS DAS PARTES

José Márcio Barros (Obs. da Diversidade Cultural) Raquel Salomão Utsch de Carvalho (Obs. da Diversidade Cultural)

CIDADANIA NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: PERCEPÇÕES SOBRE PODER E MUDANÇA SOCIAL NAS POLITICAS PÚBLICAS

Leandro Ferreira Barbosa (UERJ)

AÇÃO CULTURAL TRANSFORMA A CIDADE QUE AS PESSOAS VÊEM

Ramon Luiz Zago de Oliveira (USP Leste)

Sala Maria Augusta II - Políticas setoriais: livro e leitura BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO LIVRO, LEITURA E BIBLIOTECA

Camila Rodrigues Leite (PUC-RJ)

POLÍTICAS CULTURAIS PARA O LIVRO, LEITURA E BIBLIOTECAS: DA ERA VARGAS À ERA LULA

Gilvanedja Ferreira Mendes da Silva (Secult-PE)

PERSPECTIVAS E DESAFIOS DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL)

Jailton de Araújo Lira (UFF)

PERSPECTIVAS PARA AS UNIDADES DE CULTURA E INFORMAÇÃO

Marco Antônio de Almeida (USP) Héctor René Mena Méndez (USP) Ieda Pelógia Martins Damian (USP)

REFLEXÕES ACERCA DOS MARCOS LEGAIS PARA AS BIBLIOTECAS PÚBLICAS NO BRASIL

Marília Cossich Ramos (UNIRIO) Elisa Campos Machado (UNIRIO)

DISCUSSÕES SOBRE UMA OBRA UNIVERSITÁRIA – BREVE ENSAIO SOBRE A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA DO INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E OS PROJETOS DA DÉCADA DE 1950

Mariana Rodrigues Tavares (UFF)

13h30 – 14h30 – Intervalo para almoço

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Programação das Comunicações

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14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Financiamento à cultura: da Lei Sarney ao Procultura O PÚBLICO E O PRIVADONA LEI DE INCENTIVO À CULTURA

Ana Lúcia Pardo (UERJ)

ENTRE AVANÇOS E ENTRAVES, UMA DICOTOMIA - DISCUSSÕES SOBRE A POLÍTICA CULTURAL “LEI RUBEM BRAGA”: BREVES ABORDAGENS

Elizangela Rosa de Araújo Juvêncio (UENF) Cristiana Barcelos da Silva (UENF)

QUEM GOVERNA? TRAJETÓRIA DAS POLITICAS CULTURAIS E SEUS PROCESSOS DECISÓRIOS NO FINANCIAMENTO DA CULTURA

Raquel Moreira (FCRB)

LEI SARNEY EM NÚMEROS: PRIMEIRAS ANÁLISES

Renata Duarte (FCRB) Lia Calabre (FCRB)

A COMISSÃO NACIONAL DE INCENTIVO À CULTURA ENTRE OS GOVERNOS LULA E DILMA

Rodrigo Correia do Amaral (USP)

Sala de cursos - Políticas Setoriais: museus MUSEOLOGIA SOCIAL E POLÍTICA CULTURAL: A EXPERIÊNCIA DA REDE DE MUSEOLOGIA SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

Juliana Leite Tavares Veiga (UFF)

CADASTRO CATARINENSE DE MUSEUS: A INICIATIVA DE COLETAR E PRODUZIR INFORMAÇÕES SOBRE O CAMPO MUSEAL NO ESTADO

Maurício Rafael (USP) Renata Cittadin (UNIBAVE)

O PLANO MUSEOLÓGICO E O PROGRAMA DE ARQUITETURA NO CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS

Ricardo Sampaio Pintado (UFPEL) Cláuber Gonçalves dos Santos (UFPEL)

UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO PARA UM ESTUDO COMPARATIVO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA OS MUSEUS NOS PAÍSES DO MERCOSUL

Ana Ramos Rodrigues (UFRGS)

AÇÕES CULTURAIS EM MUSEUS PARA PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE: PROJETO CONSTRUINDO

Christiane Maria Castellen (Fundação Catarinense de Cultura)

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Programação das Comunicações

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Tenda - Periferias urbanas e políticas culturais POR UMA GESTÃO CULTURAL TRANSFORMADORA NOS ESPAÇOS POPULARES DE CULTURA

Álvaro Maciel (Funarte)

POTÊNCIA E EXCLUSÃO: PENSANDO A POLÍTICA CULTURAL DA VIZINHA DO REI

Ana Maria Amorim Correia (Museu Ciência e Vida)

CONEXÃO CULTURA: DIÁLOGO COM A JUVENTUDE DE MANGUINHOS E MARÉ

Hilda da Silva Gomes (Museu da Vida/Fiocruz) Monique Ramos Garcia da Silva (Museu da Vida/Fiocruz) Carmen Evelyn Rodrigues Mourão (Museu da Vida/Fiocruz)

POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A POTENCIALIZAÇÃO DE PRÁTICAS ARTÍSTICOSCULTURAIS PERIFÉRICAS NO ESPAÇO URBANO DO RIO DE JANEIRO

Juliana Lopes (UFRJ)

FUNK! PAUTA PARA POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA?

Pâmella Passos (IFRJ) Sandro Henrique Rosa (IFRJ)

19 de maio quinta-feira

8h – 10h30 | Comunicações Auditório – Estatísticas culturais CLASSIFICAÇÃO DAS ESTATÍSTICAS E CIFRAS CULTURAIS EM GOIÁS

Adriana Parada (PNUD/UNESCO e Casa Brasil Digital) Guilherme Augusto Alcantara Lobo (UFG)

METODOLOGIAS DE MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DAS AÇÕES CULTURAIS DA SECRETARIA MUNICIPAL DA CULTURA DE FORTALEZA

Alênio Carlos Noronha Alencar (Sec. de Cultura de Fortaleza/CE) Aline Silva Lima (Sec. de Cultura de Fortaleza/CE) Daniel Ribeiro Paes de Castro (Observatório da Governança Municipal de Fortaleza/CE) OFERTA CULTURAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE POR ÁREA DE PLANEJAMENTO

Daniele Cristina Dantas (UFRRJ)

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Programação das Comunicações

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DIAGNÓSTICO SITUACIONAL DA CULTURA E POLÍTICA CULTURAL DO MUNICÍPIO DE UIRAMUTÃ – RR

Dayana Soares Araújo Paes (UFRR) Lindinaia Perereira Melquior (Prefeitura de Uiramutã/RR) Omério Cavalcante de Lima (Prefeitura de Uiramutã/RR)

INDICADORES CULTURAIS MUNICIPAIS A PARTIR DOS GASTOS PÚBLICOS

Tiago Costa Martins (UNIPAMPA e OMiCult) Caroline Fernandes da Silva (OMiCult)

Sala de cursos - Políticas Culturais Setoriais: experiências e trocas POLÍTICAS CULTURALES Y COLECTIVOS ARTÍSTICOS COMUNITARIOS: EL CASO DEL PROGRAMA DE TEATRO COMUNITARIO MENDOCINO EN ARGENTINA

Romina Sánchez Salinas ((UNCuyo/Mendoza-Argentina) María José Gadea (Municipalidad/Mendoza-Argentina)

CINEMATECA POTIGUAR E SUA CONTRIBUIÇÃO NA POLÍTICA CULTURAL AUDIOVISUAL

Mary Land Brito (IFF-RN) Vanessa Paula Trigueiro (IFF-RN)

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: A TRAJETÓRIA DO CENTRO DE REFERÊNCIA AUDIOVISUAL DE BELO HORIZONTE

Marcelo Braga de Freitas (PUC-MG)

PARTICIPAR E GERIR: ETNOGRAFIA DO COLEGIADO SETORIAL DE DANÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Emanuelle Maia de Souza (UFRGS)

GESTÃO CULTURAL E TRABALHO TEATRAL NA CIDADE DE SÃO PAULO

Cleiton Alvaredo Paixão (UEP)

Tenda - Políticas culturais e participação social AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS EM ÂMBITO MUNICIPAL

Cláuber Gonçalves dos Santos (UFPEL) Ricardo Luis Sampaio Pintado (UFPEL)

CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL DE BELO HORIZONTE – AVANÇOS E DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA FORMULAÇÃO DA POLÍTICA DE CULTURA

Caroline Craveiro (PUC-MG)

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

PARTICIPAÇÃO SOCIAL EM REDE NA POLÍTICA CULTURAL DO DISTRITO FEDERAL: O CASO DO FÓRUM DE CULTURA

Leandro Antônio Grass Peixoto (UnB) Mayara Souza dos Reis (UnB) Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi (UnB)

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA NA ÁREA DA DANÇA: UMA ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA

Marcella Souza Carvalho (CNPC/MinC)

Sala Maria Augusta II - Políticas Culturais: experiências em gestão A POLÍTICA CULTURAL DO EXÉRCITO

Iracema A. de Alencar (UFRJ)

O AEROCLUBE DO BRASIL E O MUSEU AEROESPACIAL: PERSONAGENS IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA CULTURAL DE AVIAÇÃO CIVIL NO PAÍS

Rejane de Souza Fontes (PUCRS) Claudia Musa Fay (PUCRS)

O MODELO DE GOVERNANÇA PÚBLICA E AS POLÍTICAS CULTURAIS

Gabriela Maria Carvalho Feijó (USP)

POLÍTICAS CULTURALES EN EL PARTIDO DE GENERAL PUEYRREDON: UN ANÁLISIS CUANTITATIVO PARA LA ACCIÓN DESDE LA GESTIÓN CULTURAL

Gabriela Adriana Costaguta (UNMdp)

VISÃO PANOMRÂMICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA NA TRÍPLICE FRONTEIRA BRAZIL-GUYANA-VENEZUELA: VIABILIDADE JURÍDICO-ECONÔMICA

Emanuel Henrique de Sousa Loureto (UFRR) Elói Martins Senhoras (UFRR) 10h30 - 11h | Intervalo 11h – 13h30 | Comunicações

Auditório - Política de fomento: estudos de caso POLÍTICAS CULTURAIS E AUDIOVISUAL: A EXPERIÊNCIA DE REALIZAR UM FILME VIA FUNDO DE CULTURA DO ESTADO DA BAHIA

Calila das Mercês Oliveira (UnB) Raquel Machado Galvão (UNICAMP)

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

O EDITAL NA POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Cleide Vilela (CEAM/UnB) Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi (CEAM/UnB)

EDITAL CARMEN SANTOS: POLÍTICA PÚBLICA E O CINEMA DE MULHERES

Lina Távora (SAV/MinC)

PRESTANDO CONTAS À SOCIEDADE: 10 ANOS DOS EDITAIS DE FOMENTO ÀS ARTES CÊNICAS DA FUNARTE

Marcelo Gruman (Funarte)

Sala de cursos - Gestão Municipal de Cultura: experiências e trocas O LUGAR DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS INTERMUNICIPAIS NA CONSTRUÇÃO DE UMA REDE INTERFEDERATIVA DE CULTURA

Gabriela Martins Durães Brandão (Sec. Est. de Cultura -MG) Cícero Nogueira Marra (Fundação João Pinheiro-MG)

CAMPOS DOS GOYTACAZES NO PALCO DA CULTURA: 2005 A 2014

Kátia Macabu de Sousa Soares (IFFluminense) Denise Cunha Tavares Terra (UCAM/UENF) Lia Calabre de Azevedo (FCRB)

CONSELHO DE POLÍTICA CULTURAL DE VOLTA REDONDA: UM MOVIMENTO ORGÂNICO PARA AS REAIS LIBERDADES POLÍTICO-CULTURAIS

Bárbara Cunha Ferreira de Oliveira (UFF) Marcos Vinícius Araújo Delgado (Pós-Administração-UFF)

SITUAÇÃO DA CULTURA NO MUNICÍPIO DE CARACARAÍ – RR: APROXIMAÇÕES COM O CENÁRIO POLÍTICO E CULTURAL.

Vilso Junior Santi (UFRR) Francilene Cardoso da Silva (UFRR) Leila Adriana Baptagin

Tenda - Políticas Culturais: história e memória OS PRIMEIROS CONGRESSOS NACIONAIS DE MUSEUS NO BRASIL E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DE UMA POLÍTICA NACIONAL MUSEAL

Daniel Campelo de Oliveira (UNIRIO)

INTELECTUAIS E A POLÍTICA CULTURAL NA DÉCADA DE 1930: GUSTAVO CAPANEMA E MÁRIO DE ANDRADE EM MISSÃO

Eduardo Augusto Sena (Fund. Bienal de São Paulo)

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Programação das Comunicações

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O SURGIMENTO DOS CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO UNIVERSITÁRIOS E SUA RELAÇÃO COM A PNC DE 1975

Marcia Teixeira Cavalcanti (Instituto de Engenharia Nuclear - IEN) Sala Maria Augusta II – Experiências de Mediação Cultural

POLÍTICAS CULTURAIS PARA A MUSICALIZAÇÃO EM SÃO PAULO: DIÁLOGOS E CONTRASTES ENTRE O VOCACIONAL MÚSICA E O PROJETO GURI

Inti Anny Queiroz (USP)

MEDIAÇÃO CULTURAL: PROBLEMATIZAÇÕES E CONTEXTO

Cintia Maria da Silva (Univ. Paulista Julio de Mesquita Filho) Renan Ribeiro Beltrame (Memorial da Resistência de São Paulo) A REPRESENTAÇÃO DA CULTURA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE SANTA MARIA: UM ESTUDO SOBRE O PROGRAMA “MAIS CULTURA”

Ângela Sowa (UFSM)

ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO CULTURAL NA BIENAL INTERNACIONAL DE ARTES DE SÃO PAULO: ENTRE A GESTÃO DO PÚBLICO E A MEDIAÇÃO ARTÍSTICA

Jessica Seabra (USP)

TURISMÓLOGOS NO MUSEU: UM PROJETO PARA OS VISITANTES DO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA

Thaís Costa (FCRB) Rômulo Duarte (FCRB)

13h30 - 14h30 | Intervalo para almoço 14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Sistemas de Cultura: experiências, avanços e desafios PARTICIPAÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO: OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ESTADUAL DE CULTURA DO RJ

Juliano Borges (IBMEC-RJ) Simone Amorim (UERJ)

POLÍTICA CULTURAL MILITAR - UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIVERSAS FORMAS DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL MILITAR

Lecinio Alves Tavares (Exército Brasileiro) Giorgio Pizzani Trindade(Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército)

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VII Seminário Internacional

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

DESAFIOS E ESPECIFICIDADES NA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA CULTURAL DO MUNICIPIO DE ALTO ALEGRE/RORAIMA

Leila Adriana Baptaglin (UFRR) Chloé Virginie Marie Bourgy Noleto (Inst. Boa Vista de Música) Edgar Jesus Figueira Borges (UFRR)

O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL PÓS-1988: AS ARQUITETURAS DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA E DO ICMS CULTURAL

Rafael Luiz de Aquino (PUC-MG)

DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS

Simone Luz Ferreira Constante (Cons. Municipal de Política Cultural de Gravataí/RS) Sala de cursos - Patrimônio Cultural Imaterial

IMATERIAL: APROXIMAÇÕES LÉXICO-CONCEITUAIS ENTRE CAPITALISMO E PATRIMÔNIO

Andréa Doyle L.M.D. Aymonin (IBICT/UFRJ)

A REGULAÇÃO DO USO DAS EXPRESSÕES CULTURAIS TRADICIONAIS EM COMPASSO DE ESPERA: ENTRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL E O PATRIMÔNIO IMATERIAL

Carolina Guimarães Starling de Souza (MINC) Everaldo Ferreira da Silva (MINC)

POLÍTICAS DE SALVAGUARDA DA CULTURA IMATERIAL, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DIÁLOGOS ENTRE IPHAN E DETENTORES NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DE REGISTRO DAS CONGADAS MINEIRAS: O CASO DO REINADO DE SANTO ANTONIO DO MONTE E ARAÚJOS, NA REGIÃO CENTRO-OESTE

Francimário Vito dos Santos (UNIFOR-MG)

POLÍTICA E GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS PLANOS DE SALVAGUARDA

Lucieni de Menezes Simão (IUPERJ-UCAM)

MAPEANDO MESTRES E MESTRAS DOS SABERES POPULARES TRADICIONAIS

José Jorge de Carvalho (UNB) Letícia C.R.Vianna (UNB) Flávia S.Salgado (UFF)

Tenda - Mudanças tecnológicas e políticas culturais GESTÃO CULTURAL E DESAFIOS FRENTE ÀS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS

Carla Anéte Berwig (Fund. Cultural de Curitiba/PR)

22

VII Seminário Internacional

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

REDE WEB DE MUSEUS: ACESSO AOS ACERVOS MUSEOLÓGICOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Carlos Henrique Marcondes (UFF) Elenora Nobre Machado (Sec. de Est. de Cultura do Rio de Janeiro) Éricka Madeira (Sec. de Est. de Cultura do Rio de Janeiro)

UM MUSEU NA CONTEMPORANEIDADE: O CASO DO MUSEU DAS COISAS BANAIS NO INSTAGRAM

Juliane Conceição Primon Serres (UFPEL) Ana Ramos Rodrigues (UFRGS) Rafael Teixeira Chaves (UFPEL)

“DESMATERIALIZAÇÃO” E DÉFICIT DE ATENÇÃO NA CULTURA ATUAL

Nina Reis Saroldi (UNIRIO) Andreia Ribeiro Ayres (UNIRIO)

ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA JOGOS DIGITAIS NO BRASIL

Pedro Santoro Zambon (UNESP) Juliano Maurício de Carvalho (UNESP)

Sala Maria Augusta II - Preservação de patrimônio material e acervos POLÍTICAS CULTURAIS SOBRE OS ARQUIVOS, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA FERROVIA NO BRASIL

Frederico Antonio Ferreira (UFRRJ) Rodrigo Pereira (UFRJ)

PATRIMÔNIO PORTUÁRIO EM CIDADES TOMBADAS DO PARANÁ E SANTA CATARINA: ENTRE A PRESERVAÇÃO E A PERDA

Juliana Regina Pereira (UNICAMP)

MÚSICA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: UM DEBATE SOBRE O PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL E A PRESERVAÇÃO DE ACERVOS MUSICAIS

Karina Barra Gomes (UENF e Rede Mun. de Ensino de Campos dos Goytacazes/RJ) Simonne Teixeira (Casa de Cultura Villa Maria/UENF)

PATRIMÔNIO CULTURAL EM PERIGO – A ARTE FUNERÁRIA E O DESCASO COM SUA PROTEÇÃO EM JUIZ DE FORA/MG

Leandro Gracioso de Almeida e Silva (UFPEL) Marlise Buchweitz (UFPEL)

23

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17 a 20 de maio de 2016

Programação das Comunicações

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POLITICAS CULTURAIS NAS SOCIEDADES MODERNAS: UM ESTUDO SOBRE O PAC CIDADES HISTÓRICAS NA PERSPECTIVA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO

Welyza Carla da Anunciação Silva (UFMA) Sarany Rodrigues da Costa (UFMA) Kláutnys Dellene Guedes Cutrim (UFMA)

20 de maio sexta-feira

8h – 10h30 | Comunicações Auditório - Políticas de Financiamento: Patrocínio e Incentivo Fiscal NOTAS SOBRE O FINANCIAMENTO À MÚSICA ATRAVÉS DA LEI ROUANET: UMA POLÍTICA DA OFERTA

Daniela Ribas Ghezzi (CPF-SESC SP)

SOCIOLOGIA DA DIVERSIDADE E DESAFIOS DO PATROCÍNIO À CULTURA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Francis Miszputen (UCAM)

PROJETOS CULTURAIS DE EMPRESAS SUSTENTÁVEIS E AS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA NO BRASIL

Mariana de Barros Souza (FEA-RP/USP) Adriana Cristina Ferreira Caldana (FEA-RP/USP) Lara Bartocci Liboni (FEA-RP/USP)

RENÚNCIA FISCAL PARA A CULTURA: UMA OUTRA VISÃO POSSÍVEL

Ulisses Quadros de Moraes (UNESPAR) Sala de cursos - Economia Criativa

ECONOMIA CRIATIVA: PERSPECTIVAS TEMÁTICAS ABORDADAS E METODOLOGIAS DE INVESTIGAÇÃO ADOTADAS

Luciana Lima Guilherme (UFRJ)

A ECONOMIA CRIATIVA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: O CASO DO ESTADO DO CEARÁ

Francisco Ricardo Calixto de Souza (UECE) Francisco Roberto Pinto (UECE)

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Programação das Comunicações

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ANÁLISIS FESTIVAL ESTÉREO PICNIC: CRECIMIENTO DE LOS FESTIVALES Y LA OFERTA MUSICAL EN COLOMBIA (2010-2015)

Daniela Herrera Dimaté (Museu de Artes Gráficas – Imprensa Nacional de Colômbia)

A ECONOMIA CRIATIVA NO CONTEXTO BRASILEIRO E POLITICAS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: UMA DISCUSSÃO EM ABERTO

Andreza Barreto Leitão (UENF) Marcelo Carlos Gantos (UENF)

Tenda - Política Audiovisual e Comunicação II LEI DA TV PAGA COMO POLÍTICAS CULTURAL DE ACESSO: A NOVA FRONTEIRA DE FOMENTO À DIVERSIDADE NO AUDIOVISUAL

Ana Heloiza Vita Pessotto (UNESP) Pedro Santoro Zambon (UNESP)

INTERFACES ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL DA COMUNICAÇÃO NAS POLÍTICAS DO AUDIOVISUAL

Ligia Machado Arruda (FCRB) João Alcantara de Freitas (CPDOC/FGV)

DA EMBRAFILME À ANCINE: A EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DE FOMENTO AO SETOR AUDIOVISUAL BRASILEIRO APÓS O ADVENTO DA MEDIDA PROVISÓRIA N° 2.228-1/2001

Samara Taiana de Lima Silva (UFRN)

O CINEMA EM TRANSE: DEBATE CULTURAL E POLÍTICA CINEMATOGRÁFICA NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA (1982-1990)

Wolney Vianna Malafaia (CPDOC/FGV)

Sala Maria Augusta II –Políticas Culturais: reflexões conceituais POLÍTICA CULTURAL: CONCEPÇÕES DE CULTURA EM UMA ABORDAGEM CONFIGURACIONAL A UMA ABORDAGEM PROCESSUAL

Marcelo Augusto de Paiva dos Santos (UFRJ) Alessandra Martins Rosalba (UFRJ)

CULTURA E COMPLEXIDADE NOS PROJETOS E NAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS

Maria Beatriz Afflalo Brandão (UFRJ)

POLÍTICAS PARA A CULTURA NO PLURAL: LIMITES E ABERTURAS

Mariana Luscher Albinati (FCRB)

POLÍTICAS CULTURAIS EM TEMPOS DIFÍCEIS: A BUSCA DE UMA ALTERNATIVA SOB A HEGEMONIA DOS PENSAMENTOS NEO-LIBERAL E PÓS-MODERNO.

Paulo Ricardo Berton (UFSC)

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17 a 20 de maio de 2016

Programação das Comunicações

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POLÍTICAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

Renata Rocha (UFBA)

10h30 - 11h | Intervalo 11h – 13h30 | Comunicações Auditório - Cidades Criativas FORTALEZA DA DESIGUALDADE E DA CRIATIVIDADE:REFLEXÕES SOBRE AS CIDADES NO SÉCULO XXI

Claudia Sousa Leitão (UECE) Luciana Lima Guilherme (UFRJ) Raquel Viana Gondim (UTAD-Portugal)

O PAPEL DO PODER PÚBLICO NO CARNAVAL DOS BLOCOS DE RUA: A FORMULAÇÃO DA FESTA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO HOJE

Marina Bay Frydberg (UFF) Alex Kossak (UFF) Gustavo Portella Machado (UFF)

LA “CLASE CREATIVA” CHOLA COMO BASE PARA LA CONSTITUCIÓN DE LA PAZ COMO CIUDAD CREATIVA

Valeria M. Salinas Maceda

A ‘CIDADE CRIATIVA’ COMO UM NOVO PARADIGMA NAS POLÍTICAS URBANO-CULTURAIS

Claudia Seldin (PROURB-FAU-UFRJ)

BAIRRO DO RECIFE: DO COMPLEXO TURÍSTICO-CULTURAL AO CLUSTER DE NEGÓCIOS CRIATIVOS

Carla Lyra (UNIRIO)

Sala de cursos – Economia da Cultura O PAPEL REGULATÓRIO DO ESTADO NA ECONOMIA DA CULTURA

Carlos Alberto Cerqueira dos Santos (UERJ)

ECONOMIA DA CULTURA COMO VETOR DE DESENVOLVIMENTO PARA O ESTADO DA BAHIA: ALGUMAS REFLEXÕES

Carmen Lúcia Castro Lima (UNEB)

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

UMA POLITICA CULTURAL PARA O DESIGN

Cristina Portugal (PUC-RJ) Eliane Jordy (PUC-RJ) Juan Carlos Arañó (Universidade de Sevilha)

ARTE E CRIAÇÃO NA ECONOMIA DOS BENS ABUNDANTES

Sharine Machado Cabral Melo (FUNARTE)

Tenda - Patrimônio Imaterial e Meio Ambiente CONTROVÉRSIAS ACERCA DA CERTIFICAÇÃO DE INDICAÇÃO GEOGRÁFICA DO CAPIM DOURADO DO JALAPÃO. O CASO DA COMUNIDADE MUMBUCA, MATEIROS, TO

Alex Pizzio da Silva (UFT) José Rogério Lopes (UFT)

A CHANCELA DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA

Leonardo Alberto Corá Silva (UNISINOS)

O ARTIGO 231 E A VALIDADE DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Felipe Teixeira Bueno Caixeta (UFF)

MODOS DE VIDA, REFERÊNCIA CULTURAL E AMBIENTE: NARRATIVAS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE PATRIMÔNIO

Claudia Feierabend Baeta Leal (IPHAN) Luciano de Souza e Silva (IPHAN) Mônica Castro de Oliveira (IPHAN)

NECESSIDADE DE POLÍTICAS INSTITUCIONAIS PARA A APLICAÇÃO DE INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Patricia Pereira Peralta(UFRJ)

Sala Maria Augusta II - Educação patrimonial POLÍTICAS CULTURAIS, PATRIMONIALIZAÇÃO E POVOS INDÍGENAS: A CASA TAMIRIKIE O PROTAGONISMO DOS AMERÍNDIOS KATXUYANA

Adriana Russi (UFF) Marcela Endreffy (UFF)

INDICADORES CULTURAIS E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA ABORDAGEM CENTRADA NA EXPERIÊNCIA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES

Erivan da Silva Dantas Filho (UENF) Allana Pessanha de Moraes (UENF) Martha Maria Gonzaléz García (UENF)

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VII Seminário Internacional

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

JAPARATUBA EM REDE: A EXPERIÊNCIA DE UMA METODOLOGIA PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE JOVENS AGENTES CULTURAIS

Marcelo Rangel (Inst. Banese/Museu da Gente Sergipana) Bruna Távora (UFS)

O ENSINO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E A INTERFACE COM AS POLÍTICAS PÚBICAS NO BRASIL: UM DEBATE EM CONSTRUÇÃO

Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues (UTAD/PT e Inst. Olho D´água) Pedro Diniz Coelho de Souza (Inst. Olho D´água)

CULTURAS POPULARES E O PROCESSO FORMATIVO PARA ADENTRAR À DINÂMICA PATRIMONIAL: O CASO DA FOLIA DE REIS DE VALENÇA-RJ

Marluce Magno (UNIRIO)

13h30-14h30 | Intervalo para almoço 14h30 – 17h | Comunicações Auditório - Políticas Culturais Setoriais para as artes PORQUE A CULTURA É UMA POLÍTICA SETORIAL?

Irmina Anna Walczak (IPEA) Juliana Veloso Sá (IPEA) Frederico Augusto Barbosa da Silva (IPEA)

O LUGAR DA PERFORMANCE ARTE NO EDITAL PRÊMIO FUNARTE ARTES NA RUA (2011 a 2013)

Charlaine Suelen Rodrigues Souza (SENAC – Lapa Scipão/SP)

MAPEAMENTO NACIONAL DA DANÇA: OS AGENTES DA DANÇA E AS POLÍTICAS SETORIAIS

Lúcia Helena Alfredi de Matos (UFBA) Gisele Marchiori Nussbaumer (UFBA)

TEATRO DE GRUPO NA CENA PORTO-ALEGRENSE: NOVOS PADRÕES DE TRABALHO E DEPENDÊNCIA DE VERBAS PÚBLICAS

Luciene Z. Andrade Lauda (UFRGS)

POLÍTICA NACIONAL DAS ARTES: LIMITES E POSSIBILIDADES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS ARTES

Rodrigo Cazes Costa (UFF)

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VII Seminário Internacional

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Programação das Comunicações

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Sala de cursos - Financiamento à cultura e acesso A PERCEPÇÃO DE TRABALHADORES ITAJAIENSES SOBRE O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR

Ana Clara Ferreira Marques (UNIVALI) Maria Glória Dittrich (UNIVALI)

LEI MUNICIPAL MURILO MENDES: O MODELO PRECURSOR DE INCENTIVO À CULTURA DE JUIZ DE FORA –MG

Fernanda Amaral de Almeida (FUNALFA/Prefeitura de Juiz de Fora/MG) UMA AVALIAÇÃO DO PROGRAMA VALE CULTURA

Victor Hugo Barreto de Sena Sampaio (UnB)

Tenda - Gestão Cultural: política e formação HÁ DIÁLOGO ENTRE A GESTÃO CULTURAL E A POLÍTICA CULTURAL?

Bárbara Heliodora Andrade Ramos (UFF)

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E AS POLÍTICAS CULTURAIS

Patricia Amorim de Paula (UNICAMP)

DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL CULTURAL E GESTÃO SOCIAL: OS TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE DA BAHIA

Janaína dos Santos Dias (UFF) Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves (UFF)

A HETEROGENEIDADE DA POLÍTICA CULTURAL CONTEMPORÂNEA: AS MÚLTIPLAS FORMAS DE GESTÃO DOS EQUIPAMENTOS CULTURAIS PÚBLICOS

Jackson Raymundo (UFRGS)

LA “CUESTIÓN NACIONAL” COMO PROBLEMÁTICA AUSENTE EN LOS PROCESOS DE FORMACIÓN DE GESTORES CULTURALES

Federico Luis Escribal (UNTREF)

FORMAÇÃO EM GESTÃO CULTURAL NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Gabriel Medeiros Chati (UNIPAMPA)

Nestes anais estão contidos todos os artigos que foram apresentados oralmente pelos seus autores durante as comunicações do VII Seminário Internacional de Políticas Culturais. Foram excluídos os trabalhos cujos autores não compareceram.

29

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 44

57

73

87

101

115

128

141

152

166

179

191

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Adil Giovanni Lepri

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EXIBIÇÃO CINEMATOGRÁFICA: O CASO DA REDE CINE CARIOCA

Adriana Parada e Guilherme Augusto Alcantara Lobo

CLASSIFICAÇÃO DAS ESTATÍSTICAS E CIFRAS CULTURAIS EM GOIÁS

Adriana Russi e Marcela Endreffy

POLÍTICAS CULTURAIS, PATRIMONIALIZAÇÃO E POVOS INDÍGENAS: A CASA TAMIRIKI E O PROTAGONISMO DOS AMERÍNDIOS KATXUYANA

Alênio Carlos Noronha Alencar, Aline Silva Lima e Daniel Ribeiro Paes de Castro

METODOLOGIAS DE MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DAS AÇÕES CULTURAIS DA SECRETARIA MUNICIPAL DA CULTURA DE FORTALEZA

Alex Pizzio da Silva e José Rogério Lopes

CONTROVÉRSIAS ACERCA DA CERTIFICAÇÃO DE INDICAÇÃO GEOGRÁFICA DO CAPIM DOURADO DO JALAPÃO.O CASO DA COMUNIDADE MUMBUCA, MATEIROS, TO

Alexandre Barbalho

O MINC E A GESTÃO ANA DE HOLLANDA: MOBILIZAÇÃO E CRISE NA POLITICA E NO CAMPO DA CULTURA

Allan Rocha de Souza e Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks

TRATADO DE MARRAKESH NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: INCLUSÃO CULTURAL E CIDADANIA

Álvaro Maciel

POR UMA GESTÃO CULTURAL TRANSFORMADORA NOS ESPAÇOS POPULARES DE CULTURA

Ana Clara Ferreira Marques e Maria Glória Dittrich

A PERCEPÇÃO DE TRABALHADORES ITAJAIENSES SOBRE O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR

Ana Clécia Mesquita de Lima

AVALIAÇÃO DO PROGRAMA CULTURA VIVA – UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DOS DOIS MARCO LÓGICO APLICADO AO PROGRAMA

Ana Heloiza Vita Pessotto e Pedro Santoro Zambon

LEI DA TV PAGA COMO POLÍTICA CULTURAL DE ACESSO: A NOVA FRONTEIRA DE FOMENTO À DIVERSIDADE NO AUDIOVISUAL

Ana Julia Cury de Brito Cabral

“FORA DA NOVA ORDEM MUNDIAL?”: O NEOLIBERALISMO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CINEMA NO BRASIL E NA ARGENTINA DOS ANOS 1990

30

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 203

222

232

242

252

266

284

298

309

321

334

347

357

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Ana Lúcia Pardo

O PÚBLICO E O PRIVADO NA LEI DE INCENTIVO À CULTURA

Ana Maria Amorim Correia

POTÊNCIA E EXCLUSÃO: PENSANDO A POLÍTICA CULTURAL DA VIZINHA DO REI

Ana Ramos Rodrigues

UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO PARA UM ESTUDO COMPARATIVO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA OS MUSEUS NOS PAÍSES DO MERCOSUL

Andréa Doyle

MATERIAL: APROXIMAÇÕES LÉXICO-CONCEITUAIS ENTRE CAPITALISMO E PATRIMÔNIO

Andrés Tafur Villarreal

POLÍTICA CULTURAL Y CONSTRUCCIÓN DE PAZ EN COLOMBIA

Andreza Barreto Leitão e Marcelo Carlos Gantos

A ECONOMIA CRIATIVA NO CONTEXTO BRASILEIRO E POLITICAS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: UMA DISCUSSÃO EM ABERTO

Antonio Albino Canelas Rubim

CARAVANAS E POLÍTICAS CULTURAIS

Ariel Nunes

POLÍTICA CULTURAL E CULTURA DA POLÍTICA: UMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA DO PROGRAMA CULTURA VIVA

Bárbara Cunha Ferreira de Oliveira e Marcos Vinícius Araújo Delgado

CONSELHO DE POLÍTICA CULTURAL DE VOLTA REDONDA: UM MOVIMENTO ORGÂNICO PARA AS REAIS LIBERDADES POLÍTICO-CULTURAIS

Bárbara Heliodora Andrade Ramos

HÁ DIÁLOGO ENTRE A GESTÃO CULTURAL E A POLÍTICA CULTURAL?

Beatriz Terra Freitas

AFIRMAÇÃO E EXPANSÃO TERRITORIAL EM POLÍTICAS CULTURAIS: UMA ANÁLISE DOS PROGRAMAS CULTURA VIVA E ARTE NA RUA PELA PERSPECTIVA DO TERRITÓRIO

Calila das Mercês Oliveira e Raquel Machado Galvão

POLÍTICAS CULTURAIS E AUDIOVISUAL: A EXPERIÊNCIA DE REALIZAR UM FILME VIA FUNDO DE CULTURA DO ESTADO DA BAHIA

Camila Rodrigues Leite

BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO LIVRO, LEITURA E BIBLIOTECA

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VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 368

377



392

405

417

429

439

448

458

468

482

495

509

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Carla Anéte Berwig

GESTÃO CULTURAL E DESAFIOS FRENTE ÀS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS

Carla Cristina Rosa de Almeida, João Policarpo Rodrigues Lima e Maria Fernanda Gatto Padilha

CULTURA E DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES. POLÍTICAS CULTURAIS PARA QUEM?

Carla Lyra

BAIRRO DO RECIFE: DO COMPLEXO TURÍSTICO-CULTURAL AO CLUSTER DE NEGÓCIOS CRIATIVOS

Carlos Alberto Cerqueira dos Santos

O PAPEL REGULATÓRIO DO ESTADO NA ECONOMIA DA CULTURA.

Carlos Henrique Marcondes, Elenora Nobre Machado e Éricka Madeira

REDE WEB DE MUSEUS: ACESSO AOS ACERVOS MUSEOLÓGICOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Carmen Lúcia Castro Lima

ECONOMIA DA CULTURA COMO VETOR DE DESENVOLVIMENTO PARA O ESTADO DA BAHIA: ALGUMAS REFLEXÕES.

Carolina Guimarães Starling de Souza e Everaldo Ferreira da Silva

REGULAÇÃO DO USO DAS EXPRESSÕES CULTURAIS TRADICIONAIS EM COMPASSO DE ESPERA: ENTRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL E O PATRIMÔNIO IMATERIAL

Carolina Marques Henriques Ficheira

REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE SUSTENTABILIDADE PARA O CAMPO CULTURAL: PONTO CINE.

Caroline Craveiro

CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL DE BELO HORIZONTE – AVANÇOS E DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA FORMULAÇÃO DA POLÍTICA DE CULTURA

Cesar de Mendonça Pereira e Milene Morais Ferreira

PONTOS DE CULTURA: O MUNDO QUE VI

Charlaine Suelen Rodrigues Souza

O LUGAR DA PERFORMANCE ARTE NO EDITAL PRÊMIO FUNARTE ARTES NA RUA (2011 a 2013)

Christiane Maria Castellen

AÇÕES CULTURAIS EM MUSEUS PARA PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE: PROJETO CONSTRUINDO

Cintia Maria da Silva e Renan Ribeiro Beltrame

MEDIAÇÃO CULTURAL: PROBLEMATIZAÇÕES E CONTEXTO

32

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

17 a 20 de maio de 2016

Índice dos Trabalhos 521

533

547

560

576

587

598

608

621

633

647

662

676

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Cláuber Gonçalves dos Santos e Ricardo Luis Sampaio Pintado

AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS EM ÂMBITO MUNICIPAL

Claudia Feierabend Baeta Leal, Luciano de Souza e Silva e Mônica Castro de Oliveira

MODOS DE VIDA, REFERÊNCIA CULTURAL E AMBIENTE: NARRATIVAS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE PATRIMÔNIO

Claudia Seldin

A ‘CIDADE CRIATIVA’ COMO UM NOVO PARADIGMA NAS POLÍTICAS URBANO-CULTURAIS

Claudia Sousa Leitão, Luciana Lima Guilherme e Raquel Viana Gondim

FORTALEZA DA DESIGUALDADE E DA CRIATIVIDADE: REFLEXÕES SOBRE AS CIDADES NO SÉCULO XXI

Cleide Vilela e Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi

O EDITAL NA POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Cristina Portugal, Eliane Jordy e Juan Carlos Arañó

UMA POLITICA CULTURAL PARA O DESIGN

Daniel Campelo de Oliveira

OS PRIMEIROS CONGRESSOS NACIONAIS DE MUSEUS NO BRASIL E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DE UMA POLÍTICA NACIONAL MUSEAL

Daniela Herrera Dimaté

ANÁLISIS FESTIVAL ESTÉREO PICNIC: CRECIMIENTO DE LOS FESTIVALES Y LA OFERTA MUSICAL EN COLOMBIA (2010-2015)

Daniela Pereira Barbosa

BRASÍLIA POR PESSOAS: ENVOLVENDO A POPULAÇÃO NAS POLÍTICAS CULTURAIS DA CIDADE

Daniela Ribas Ghezzi

NOTAS SOBRE O FINANCIAMENTO À MÚSICA ATRAVÉS DA LEI ROUANET: UMA POLÍTICA DA OFERTA

Daniele Cristina Dantas

OFERTA CULTURAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE POR ÁREA DE PLANEJAMENTO

Daniele Sampaio da Silva

PERSPECTIVAS SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL NO PROGRAMA CULTURA VIVA

Dayana Soares Araújo Paes, Lindinaia Perereira Melquior e Omério Cavalcante de lima

DIAGNÓSTICO SITUACIONAL DA CULTURA E POLÍTICA CULTURAL DO MUNICÍPIO DE UIRAMUTÃ – RR

33

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

17 a 20 de maio de 2016

Índice dos Trabalhos 691

703

715

726

736

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Eduardo Augusto Sena

INTELECTUAIS E A POLÍTICA CULTURAL NA DÉCADA DE 1930: GUSTAVO CAPANEMA E MÁRIO DE ANDRADE EM MISSÃO

Elisa Selvo Chaves

PARTICIPAÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA EM BERTIOGA – APLICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO RÁPIDO PARTICIPATIVO

Emanuel Henrique de Sousa Loureto e Elói Martins Senhoras

VISÃO PANOMRÂMICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA NA TRÍPLICE FRONTEIRA BRAZIL-GUYANA-VENEZUELA: VIABILIDADE JURÍDICO-ECONÔMICA

Emanuelle Maia de Souza

PARTICIPAR E GERIR: ETNOGRAFIA DO COLEGIADO SETORIAL DE DANÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Erivan da Silva Dantas Filho, Allana Pessanha de Moraes e Martha Maria Gonzaléz García

INDICADORES CULTURAIS E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA ABORDAGEM CENTRADA NA EXPERIÊNCIA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES 747

755

764

773

782

796

Federico Escribal

LA “CUESTIÓN NACIONAL” COMO PROBLEMÁTICA AUSENTE EN LOS PROCESOS DE FORMACIÓN DE GESTORES CULTURALES

Felipe Teixeira Bueno Caixeta

O ARTIGO 231 E A VALIDADE DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Fernanda Amaral de Almeida

LEI MUNICIPAL MURILO MENDES: O MODELO PRECURSOR DE INCENTIVO À CULTURA DE JUIZ DE FORA – MG

Flávia Junqueira

PONTOS DE CULTURA: POLÍTICAS PÚBLICAS E A PRODUÇÃO DE UMA SUBJETIVIDADE MAIS AUTÔNOMA

Francimário Vito dos Santos

POLÍTICAS DE SALVAGUARDA DA CULTURA IMATERIAL, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DIÁLOGOS ENTRE IPHAN E DETENTORES NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DE REGISTRO DAS CONGADAS MINEIRAS: O CASO DO REINADO DE SANTO ANTONIO DO MONTE E ARAÚJOS, NA REGIÃO CENTRO-OESTE

Francis Miszputen

SOCIOLOGIA DA DIVERSIDADE E DESAFIOS DO PATROCÍNIO À CULTURA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

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VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 802

816

830

843

858

872

881

894

907



915

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Francisco Ricardo Calixto de Souza e Francisco Roberto Pinto

A ECONOMIA CRIATIVA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: O CASO DO ESTADO DO CEARÁ.

Franz Cabrera Quispe

EL PLAN DEPARTAMENTAL DE CULTURAS DE COCHABAMBA: PRIMER INSTRUMENTO PARA LA GESTIÓN DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURALES EN EL ÁMBITO AUTONÓMICO DEL ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA

Frederico Antonio Ferreira e Rodrigo Pereira

POLÍTICAS CULTURAIS SOBRE OS ARQUIVOS, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA FERROVIA NO BRASIL.

Frederico Augusto Barbosa da Silva

OS SENTIDOS DO SEM SENTIDO: LEMBRANÇAS DO “REDESENHO”

Gabriel Medeiros Chati

FORMAÇÃO EM GESTÃO CULTURAL NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Gabriela Adriana Costaguta

POLÍTICAS CULTURALES EN EL MUNICIPIO DE GENERAL PUEYRREDON: UN ANÁLISIS CUANTITATIVO PARA LA ACCIÓN DESDE LA GESTIÓN CULTURAL

Gabriela Maria Carvalho Feijó

O MODELO DE GOVERNANÇA PÚBLICA E AS POLÍTICAS CULTURAIS

Gabriela Martins Durães Brandão e Cícero Nogueira Marra

O LUGAR DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS INTERMUNICIPAIS NA CONSTRUÇÃO DA REDE INTERFEDERATIVA DE CULTURA

Hilda da Silva Gomes, Monique Ramos Garcia da Silva e Carmen Evelyn Rodrigues Mourão

CONEXÃO CULTURA: DIÁLOGO COM A JUVENTUDE DE MANGUINHOS E MARÉ

Igor Luiz Rodrigues Da Silva, Claudia Cristina Rezende Puentes e Natalia Teles Bezerra

A PRÁXIS COTIDIANA COMO FATOR CONTRIBUTIVO NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O SETOR AFRO-BRASILERO EM ALAGOAS: DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ESFERA PÚBLICA GOVERNAMENTAL. 928

939

Inti Anny Queiroz

POLÍTICAS CULTURAIS PARA A MUSICALIZAÇÃO EM SÃO PAULO: DIÁLOGOS E CONTRASTES ENTRE O VOCAL MUSICAL E O PROJETO GURI.

Iracema A de Alencar

A POLÍTICA CULTURAL DO EXÉRCITO

35

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 949

965

975

986

1002

1015

1029

1039

1048

1062

1074

1089

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Irmina Anna Walczak, Frederico Augusto Barbosa da Silva e Juliana Veloso Sá

PORQUE A CULTURA É UMA POLÍTICA SETORIAL?

Jackson Raymundo

A HETEROGENEIDADE DA POLÍTICA CULTURAL CONTEMPORÂNEA: AS MÚLTIPLAS FORMAS DE GESTÃO DOS EQUIPAMENTOS CULTURAIS PÚBLICOS

Jailton de Araújo Lira

PERSPECTIVAS E DESAFIOS DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL)

Janaína Santos Dias e Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves

DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL CULTURAL E GESTÃO SOCIAL: OS TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE DA BAHIA

Jessica Seabra

ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO CULTURAL NA BIENAL INTERNACIONAL DE ARTES DE SÃO PAULO: ENTRE A GESTÃO DO PÚBLICO E A MEDIAÇÃO ARTÍSTICA

João Guerreiro

INSTITUTO PRETOS NOVOS: A MÃE ÁFRICA NOS PROVOCA A REPENSAR AS POLÍTICAS CULTURAIS

José Jorge de Carvalho, Letícia C.R.Vianna e Flávia S.Salgado

MAPEANDO MESTRES E MESTRAS DOS SABERES POPULARES TRADICIONAIS

José Márcio Barros e Raquel Salomão Utsch de Carvalho

A CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE E SEUS PRIMEIROS 10 ANOS: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DOS RELATOS DAS PARTES

José Maria Reis e Souza Junior

QUANDO A POESIA VIROU POLÍTICA: O PERCURSO DOS PONTOS DE CULTURA NO BRASIL, DE PROGRAMA GOVERNAMENTAL À REDE CULTURA VIVA.

Juliana Leite Tavares Veiga

MUSEOLOGIA SOCIAL E POLÍTICA CULTURAL: A EXPERIÊNCIA DA REDE DE MUSEOLOGIA SOCIAL DO RIO DE JANEIRO

Juliana Lopes

POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A POTENCIALIZAÇÃO DE PRÁTICAS ARTÍSTICOS-CULTURAIS PERIFÉRICAS NO ESPAÇO URBANO DO RIO DE JANEIRO

Juliana Regina Pereira

PATRIMÔNIO PORTUÁRIO EM CIDADES TOMBADAS DO PARANÁ E SANTA CATARINA: ENTRE A PRESERVAÇÃO E A PERDA

36

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 1101

1111

1123

1135

1148

1161

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Juliane Conceição Primon Serres, Ana Ramos Rodrigues e Rafael Teixeira Chaves

UM MUSEU NA CONTEMPORANEIDADE: O CASO DO MUSEU DAS COISAS BANAIS NO INSTAGRAM

Juliano Borges e Simone Amorim

PARTICIPAÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO: OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ESTADUAL DE CULTURA DO RJ

Julio Souto Salom

O RENASCIMENTO DO GRIÔ AFRO-BRASILEIRO

Karina Barra Gomes e Simonne Teixeira

MÚSICA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: UM DEBATE SOBRE O PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL E A PRESERVAÇÃO DE ACERVOS MUSICAIS

Kátia Macabu de Sousa Soares, Denise Cunha TavaresTerra e Lia Calabre de Azevedo

CAMPOS DOS GOYTACAZES NO PALCO DA CULTURA: 2005 A 2014

Leandro Antônio Grass Peixoto, Mayara Souza dos Reis e Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi

PARTICIPAÇÃO SOCIAL EM REDE NA POLÍTICA CULTURAL DO DISTRITO FEDERAL: O CASO DO FÓRUM DE CULTURA 1173

1184

1195

1210

Leandro Ferreira Barbosa

CIDADANIA NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: PERCEPÇÕES SOBRE PODER E MUDANÇA SOCIAL NAS POLITICAS PÚBLICAS.

Leandro Gracioso de Almeida e Silva e Marlise Buchweitz

PATRIMÔNIO CULTURAL EM PERIGO – A ARTE FUNERÁRIA E O DESCASO COM SUA PROTEÇÃO EM JUIZ DE FORA/MG

Lecinio Alves Tavares e Giorgio Pizzani Trindade

POLÍTICA CULTURAL MILITAR - UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIVERSAS FORMAS DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL MILITAR

Leila Adriana Baptaglin, Chloé Virginie Marie Bourgy Noleto e Edgar Jesus Figueira Borges

DESAFIOS E ESPECIFICIDADES NA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA CULTURAL DO MUNICIPIO DE ALTO ALEGRE/RORAIMA 1223

1235

Leonardo Alberto Corá Silva

A CHANCELA DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA

Ligia Machado Arruda e João Alcantara de Freitas

INTERFACES ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL DA COMUNICAÇÃO NAS POLÍTICAS DO AUDIOVISUAL

37

VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 1245

1261

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1350

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1390

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Lina Rocha Fernandes Távora

EDITAL CARMEN SANTOS: POLÍTICA PÚBLICA E O CINEMA DE MULHERES

Lisandra Barbosa Macedo Pinheiro e Hilton Fernando da Silva Pinheiro

A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA AFRO-BRASILEIRA EM SANTA CATARINA: NOTAS SOBRE UM PROCESSO INCIPIENTE

Lúcia Helena Alfredi de Matos e Gisele Marchiori Nussbaumer

MAPEAMENTO NACIONAL DA DANÇA: OS AGENTES DA DANÇA E AS POLÍTICAS SETORIAIS

Luciana Lima Guilherme

ECONOMIA CRIATIVA: PERSPECTIVAS TEMÁTICAS ABORDADAS E METODOLOGIAS DE INVESTIGAÇÃO ADOTADAS

Luciene Z. Andrade Lauda

TEATRO DE GRUPO NA CENA PORTO-ALEGRENSE: NOVOS PADRÕES DE TRABALHO E DEPENDÊNCIA DE VERBAS PÚBLICAS

Lucieni de Menezes Simão

POLÍTICA E GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE SALVAGUARDA.

Luiz Augusto Fernandes Rodrigues e Marcelo Silveira Correia

CONSTRUÇÃO E GESTÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS COMPARTILHADAS

Marcella Francelina Vieira Camargo

PONTOS DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO: POTENCIALIZAR SINERGISMOS

Marcella Souza Carvalho

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA NA ÁREA DA DANÇA: UMA ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA

Marcelo Augusto de Paiva dos Santos e Alessandra Martins Rosalba

POLÍTICA CULTURAL: CONCEPÇÕES DE CULTURA EM UMA ABORDAGEM CONFIGURACIONAL À UMA ABORDAGEM PROCESSUAL

Marcelo Braga de Freitas

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: A TRAJETÓRIA DO CENTRO DE REFERÊNCIA AUDIOVISUAL DE BELO HORIZONTE

Marcelo Costa Lopes

DO LAZER À CULTURA: AS BASES PARA A POLÍTICA DE CINEMA DO SESC NO BRASIL

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VII Seminário Internacional

políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 1404

1419

1432

1445

1461

1475

1487

1499

1517

1529

1538

1551

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Marcelo Gruman

PRESTANDO CONTAS À SOCIEDADE: 10 ANOS DOS EDITAIS DE FOMENTO ÀS ARTES CÊNICAS DA FUNARTE

Marcelo Rangel e Bruna Távora

JAPARATUBA EM REDE: A EXPERIÊNCIA DE UMA METODOLOGIA PARA A EDUCAÇÃO ROFISSIONAL DE JOVENS AGENTES CULTURAIS

Márcia T. Cavalcanti

O SURGIMENTO DOS CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO UNIVERSITÁRIOS E SUA RELAÇÃO COM A PNC DE 1975

Marco Antônio de Almeida, Héctor René Mena Méndez e Ieda Pelógia Martins Damian

PERSPECTIVAS PARA AS UNIDADES DE CULTURA E INFORMAÇÃO

Maria Beatriz Afflalo Brandão

CULTURA E COMPLEXIDADE NOS PROJETOS E NAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS

Maria Emília Ribeiro e Janaína Dias

CLUBE DE ESPECTADORES: OS SÓCIOS COMO PROTAGONISTAS PARA O DESENVOLVIMENTO CULTURAL

Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues e Pedro Diniz Coelho de Souza

O ENSINO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E A INTERFACE COM AS POLÍTICAS PÚBICAS NO BRASIL: UM DEBATE EM CONSTRUÇÃO.

Mariana de Barros Souza, Adriana Cristina Ferreira Caldana e Lara Bartocci Liboni

PROJETOS CULTURAIS DE EMPRESAS SUSTENTÁVEIS E AS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA NO BRASIL

Mariana Luscher Albinati

POLÍTICAS PARA A CULTURA NO PLURAL: LIMITES E ABERTURAS

Mariana Rodrigues Tavares

DISCUSSÕES SOBRE UMA OBRA UNIVERSITÁRIA – BREVE ENSAIO SOBRE A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA DO INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E OS PROJETOS DA DÉCADA DE 1950

Marília Cossich Ramos e Elisa Campos Machado

REFLEXÕES ACERCA DOS MARCOS LEGAIS PARA AS BIBLIOTECAS PÚBLICAS NO BRASIL

Marina Bay Frydberg, Alex Kossak e Gustavo Portella Machado

O PAPEL DO PODER PÚBLICO NO CARNAVAL DOS BLOCOS DE RUA: A FORMULAÇÃO DA FESTA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO HOJE

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Índice dos Trabalhos 1565

1576

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1602

1615

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1716

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Marluce Magno

CULTURAS POPULARES E O PROCESSO FORMATIVO PARA ADENTRAR À DINÂMICA PATRIMONIAL: O CASO DA FOLIA DE REIS DE VALENÇA-RJ

Mary Land Brito e Vanessa Paula Trigueiro

CINEMATECA POTIGUAR E SUA CONTRIBUIÇÃO NA POLÍTICA CULTURAL AUDIOVISUAL

Maurício Rafael e Renata Cittadin

CADASTRO CATARINENSE DE MUSEUS: A INICIATIVA DE COLETAR E PRODUZIR INFORMAÇÕES SOBRE O CAMPO MUSEAL NO ESTADO

Mirnah Leite Medeiros Mascarenhas Andrade

CONTRIBUIÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NA LUTA POR RECONHECIMENTO

Mônica Cristina Moreno-Cubillos

AS POLITICAS CULTURAIS DENTRO DA AGENDA GOVERNAMENTAL DE BOGOTÁ: UMA REFLEXÃO DESDE O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS

Mónica Lacarrieu e Mariana Cerdeira

POLÍTICAS CULTURALES EN LATINOAMÉRICA. ENTRE LOS LÍMITES DE LA DEMOCRATIZACIÓN Y EL ANHELO DE LA DEMOCRACIA CULTURAL, PENSANDO EN “POLÍTICAS DE BIENES COMUNES”.

Nina Reis Saroldi e Andreia Ribeiro Ayres

“DESMATERIALIZAÇÃO” E DÉFICIT DE ATENÇÃO NA CULTURA ATUAL

Pablo Gobira, Adeilson William da Silva e Karla Danitza de Almeida

PARA SUAVIZAR A CIDADE HOSTIL: ARTE E POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO URBANO

Pâmella Passos e Sandro Henrique Rosa

FUNK! PAUTA PARA POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA?

Patricia Amorim de Paula

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E AS POLÍTICAS CULTURAIS

Patricia Oliveira

A CONSTRUÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SP: ALGUMAS REFLEXÕES

Patricia Pereira Peralta

NECESSIDADE DE POLÍTICAS INSTITUCIONAIS PARA A APLICAÇÃO DE INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Paula Priscila Braga

REDE CEUS DE CINECLUBES: CINEMA E ESTADO DEMOCRÁTICO

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políticas culturais Fundação Casa de Rui Barbosa

Índice dos Trabalhos 1726

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17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Paulo Ricardo Berton

POLÍTICAS CULTURAIS EM TEMPOS DIFÍCEIS: A BUSCA DE UMA ALTERNATIVA SOB A HEGEMONIA DOS PENSAMENTOS NEO-LIBERAL E PÓS-MODERNO.

Pedro Santoro Zambon e Juliano Maurício de Carvalho

ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA JOGOS DIGITAIS NO BRASIL

Rafael Luiz de Aquino

O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL PÓS-1988: AS ARQUITETURAS DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA E DO ICMS CULTURAL

Ramon Luiz Zago de Oliveira

AÇÃO CULTURAL TRANSFORMA A CIDADE QUE AS PESSOAS VÊEM

Raquel Moreira

QUEM GOVERNA? TRAJETÓRIA DAS POLITICAS CULTURAIS E SEUS PROCESSOS DECISÓRIOS NO FINANCIAMENTO DA CULTURA

Rejane de Souza Fontes e Claudia Musa Fay

O AEROCLUBE DO BRASIL E O MUSEU AEROESPACIAL: PERSONAGENS IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA CULTURAL DE AVIAÇÃO CIVIL NO PAÍS

Renata Duarte e Lia Calabre

LEI SARNEY EM NÚMEROS: PRIMEIRAS ANÁLISES

Renata Rocha

POLÍTICAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

Ricardo Przemyslaw Pessoa

O FETICHE DAS MERCADORIAS E A PUBLICIDADE INFANTIL

Ricardo Sampaio Pintado e Cláuber Gonçalves dos Santos

O PLANO MUSEOLÓGICO E O PROGRAMA DE ARQUITETURA NO CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS

Rodrigo Cazes Costa

POLÍTICA NACIONAL DAS ARTES: LIMITES E POSSIBILIDADES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS ARTES.

Rodrigo Correia do Amaral

A COMISSÃO NACIONAL DE INCENTIVO À CULTURA ENTRE OS GOVERNOS LULA E DILMA

Romina Sánchez Salinas e María José Gadea

POLÍTICAS CULTURALES Y COLECTIVOS ARTÍSTICOS COMUNITARIOS: EL CASO DEL PROGRAMA DE TEATRO COMUNITARIO MENDOCINO EN ARGENTINA

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17 a 20 de maio de 2016

Índice dos Trabalhos 1903

1917

1931

1944

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1971

1984

1994

2007

2021

2033

2046

2062

Voltar ao Índice Geral

Samara Taiana de Lima Silva

DA EMBRAFILME À ANCINE: A EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DE FOMENTO AO SETOR AUDIOVISUAL BRASILEIRO APÓS O ADVENTO DA MEDIDA PROVISÓRIA N° 2.228-1/2001

Sérgio de Azevedo

O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PROJETO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP

Sharine Machado Cabral Melo

ARTE E CRIAÇÃO NA ECONOMIA DOS BENS ABUNDANTES

Simone Luz Ferreira Constante

DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS

Telma Luzia Pegorelli Olivieri

E ... APÓS A INCLUSÃO E O ACESSO

Tereza Ventura

COMUNIDADES QUILOMBOLAS, CULTURA E DESIGUALDADE: NOTAS SOBRE O BRASIL SEM MISÉRIA

Thaís Costa e Rômulo Duarte

TURISMÓLOGOS NO MUSEU: UM PROJETO PARA OS VISITANTES DO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA

Thamara Venâncio de Almeida

A VIDEOARTE NO BRASIL: UM PANORAMA ANTES E DEPOIS DA ORIGEM DO FESTIVAL VIDEOBRASIL

Tiago Costa Martins e Caroline Fernandes da Silva

INDICADORES CULTURAIS MUNICIPAIS A PARTIR DOS GASTOS PÚBLICOS

Ulisses Quadros de Moraes

RENÚNCIA FISCAL PARA A CULTURA: UMA OUTRA VISÃO POSSÍVEL

Vagner Amaro e Patrícia Vargas Alencar

POLÍTICAS CULTURAIS PARA A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL: O EDITAL DE APOIO À COEDIÇÃO DE LIVROS DE AUTORES NEGROS

Valcir Bispo Santos

BELÉM COMO METRÓPOLE CULTURAL E CRIATIVA DA AMAZÔNIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELÉM

Valeria M. Salinas Maceda

LA “CLASE CREATIVA” CHOLA COMO BASE PARA LA CONSTITUCIÓN DE LA PAZ COMO CIUDAD CREATIVA

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Índice dos Trabalhos 2074

2087

2099

2111

17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice Geral

Valéria Viana Labrea

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DICURSIVA DA POLÍTICA CULTURAL

Victor Hugo Barreto de Sena Sampaio

UMA AVALIAÇÃO DO PROGRAMA VALE CULTURA

Vilso Junior Santi, Leila Adriana Baptaglin e Francilene Cardoso da Silva

DIAGNÓSTICO RÁPIDO DA SITUAÇÃO DA CULTURA NO MUNICÍPIO DE CARACARAÍ – RR

Welyza Carla da Anunciação Silva, Sarany Rodrigues da Costa e Kláutnys Dellene Guedes Cutrim POLITICAS CULTURAIS NAS SOCIEDADES MODERNAS: UM ESTUDO SOBRE O PAC CIDADES HISTÓRICAS NA PERSPECTIVA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO

2122

Wolney Vianna Malafaia

O CINEMA EM TRANSE: DEBATE CULTURAL E POLÍTICA CINEMATOGRÁFICA NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA (1982-1990)

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EXIBIÇÃO CINEMATOGRÁFICA: O CASO DA REDE CINE CARIOCA Adil Giovanni Lepri1

RESUMO: Este artigo deseja fazer uma reflexão acerca do campo das políticas públicas para exibição cinematográfica, através do diálogo com autores como Marilena Chauí, Celso Furtado, Durval Muniz Albuquerque Jr., Nestor Garcia-Canclini, Ana Rosas Montecón e Antonio Gramsci. A partir das discussões teóricas pretende-se produzir uma análise do caso da Rede Cine Carioca, rede de cinemas que conta com dois complexos na cidade do Rio de Janeiro, de iniciativa da RioFilme, empresa pública da prefeitura carioca. PALAVRAS-CHAVE: Exibição, Rio de Janeiro, Rede Cine Carioca, Políticas Públicas.

1. INTRODUÇÃO O presente artigo pretende fazer uma discussão sobre a questão das políticas públicas para a exibição cinematográfica na cidade do Rio de Janeiro, estudando o caso da Rede Cine Carioca, rede de cinemas de iniciativa da RioFilme. Em um primeiro momento é necessário discutir os conceitos e pressupostos do campo das políticas culturais e a relação Estado e sociedade civil. Em seguida faz-se um breve histórico da formação da Rede Cine Carioca e da atuação da RioFilme e de outros atores no processo e trabalha-se com a questão da pacificação como política de segurança nas áreas estudadas. Por fim deseja-se fazer uma análise do funcionamento da política do Cine Carioca Nova Brasília, o primeiro complexo da rede, destacando sua programação, a formação de plateias e a relação da comunidade do entorno com a iniciativa. Esta análise segue um método que, de acordo com a reflexão da autora Elizabeth Ponte, não seja apenas comparativo, mas “(...) uma avaliação com foco nas fragilidades e nos riscos versus vantagens e benefícios trazidos para a gestão da atividade cultural na esfera pública.” (PONTE, 2012, p. 120-121).

Graduado em Cinema e Audiovisual, Mestre em Comunicação e doutorando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected]

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2. POLÍTICA E CONSUMO CULTURAL A princípio é preciso estabelecer pressupostos no que tange a relação entre sociedade civil e Estado, a injustiça social, a opressão e dominação, conforme definidas pela autora Iris Young, em seu livro “Inclusion and Democracy” (2000). Dominação consiste em condições institucionais que inibem ou impedem a participação de pessoas em decisões e processos que determinação suas ações e as condições das suas ações. O aspecto de justiça social que a dominação nega é a auto-determinação. Opressão, o segundo aspecto da injustiça, consiste em processos institucionais sistemáticos que impedem algumas pessoas de aprender e usar de habilidades satisfatórias e expansivas em ambientes socialmente reconhecidos, ou que inibem a habilidade de pessoas de jogar e se comunicar com outros ou expressar seus sentimentos e perspectivas da vida social em contextos onde outros podem ouvir. O aspecto de justiça social que a opressão nega é o auto-desenvolvimento.2 (YOUNG, 2000, p. 156)

É fundamental então pensar nessas questões quando se discute as políticas culturais, o consumo de cultura e o jogo entre sociedade civil e Estado. Organização e engajamento público, então, podem ser pensados como processos pelos quais a sociedade comunica-se consigo sobre as suas necessidades, problemas, e ideias criativas sobre como resolvê-los. A legitimidade democrática da política pública, ademais, depende parcialmente das instituições estatais serem sensíveis a este processo comunicativo. 3 (ibidem, p. 179)

É preciso então sempre levar em conta as tensões fundamentais que estão presentes na relação entre sociedade civil, Estado e economia. Dito isso, é interessante apontar algumas questões sobre o consumo cultural e as especificidades dos bens culturais. Françoise Benhamou, em seu livro “A economia da cultura” (2007), destaca algumas reflexões sobre o tema. O bem cultural, para Benhamou, em um certo sentido é um bem coletivo: “(...) seu consumo por parte de um indivíduo não exclui o consumo da mesma quantidade do mesmo bem por outro indivíduo (não-rivalidade).” (BENHAMOU, 2007, p. 141). Isso é de fato verdadeiro quando falamos do cinema, nosso objeto de análise, pois a sua reprodutibilidade é sua própria força e particularidade enquanto meio de comunicação e obra de arte. Mas a autora aprofunda a reflexão ao que se refere à coletividade dos bens culturais, pois

“Domination consists in institutional conditions which inhibit or prevent people from participation in decisions and processes that determine their actions and the conditions of their actions. The aspect of social justice that domination denies is self-determination. Oppression, the second aspect of injustice, consists in systematic institutional processes which prevent some people from learning and using satisfying or expansive skills in socially recognized settings, or which inhibit people’s ability to play and communicate with others or to express their feelings and perspective on social life in contexts where others can listen. The aspect of social justice that oppression denies is self-development.” 3 “Public organizing and engagement, then, can be thought of as processes by which the society communicates to itself about its needs, problems, and creative ideas for how to solve them. The democratic legitimacy of public policy, moreover, depends partly on the state institutions being sensitive to that communication process.” 2

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O bem coletivo não é tanto o bem cultural em si quanto o conjunto das normas e valores, o capital de valores estéticos comuns que rege o reconhecimento do caráter cultural do bem. É assim que se pode interpretar o financiamento indireto da informação via televisão pública, via recompensas oficiais etc. (ibidem, p. 155)

Celso Furtado, em sua coleção de textos “Ensaios sobre a cultura e o Ministério da Cultura” (2012), partilha dessa visão, chamando atenção para o fato da cultura não estar sob a análise econômica tradicional pois é preciso olhar para a (...) especificidade do fenômeno cultural, cuja dimensão qualitativa é determinante. As técnicas correntes de análise a ele não se aplicam, pois, graças a fenômenos de sinergia, o todo quase sempre supera a adição das partes. (FURTADO, 2012, p. 65)

Nesse sentido consumo cultural e de aplicação das políticas culturais, está ligado a um sistema onde as partes e o todo têm relação complexa e múltipla. Celso Furtado então, esclarece a discussão, quando propõe a questão: “que somos?”, sustentando que É dessa interrogação que se deve partir para formular uma política cultural, que outra coisa não é senão um estímulo organizado a formas de criatividade que enriquecem a vida dos membros da coletividade. (FURTADO, 2012, p.41)

As reflexões do marxista italiano Antonio Gramsci acerca da teoria do Estado são importantes para a discussão, acreditando que as questões sobre a superestrutura e a organização do Estado no conceito marxista tem muito a contribuir para nossa reflexão. Na concepção gramsciana, que constrói e amplia as noções já estabelecidas anteriormente no marxismo: (...) o Estado em sentido amplo, “com novas determinações”, comporta duas esferas principais: a sociedade política ( que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência (...) e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc. (COUTINHO, 1989, p. 76-77)

Então o Estado é sociedade civil e sociedade política, é o conjunto das forças sociais que atuam na disputa da hegemonia. O Estado em sentido estrito, para o autor, compreende os aparelhos repressivos do Estado (o poder de polícia, a burocracia executiva). Já os aparelhos privados de hegemonia, que são instituições da sociedade civil, fazem parte da noção de Estado ampliado defendida pelo autor. (COUTINHO, 1989). Para detalhar as concepções de política cultural é preciso recorrer à Marilena Chauí (2006), que diz que as políticas culturais podem ser pensadas, historicamente, em três concepções no que se refere ao papel do Estado: a do poder público como produtor e agente cultural que reforça e legitima sua ideologia através da cultura, central no Estado Novo e na ditadura ci-

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vil-militar inaugurada no golpe de 1964. Outra, categorizada por ela como populista e forte nos anos 1950 e 60, que vê o papel estatal como pedagógico, que apropria-se da “cultura popular” com intuito de educar as massas. Por fim, a concepção de tradição neoliberal, que se estabelece a partir do final dos anos 1980 e coloca o Estado como serviçal da indústria e do mercado cultural através principalmente do mecenato e incentivos fiscais. (CHAUÍ, 2006, p. 67-68). Contrariando as três vertentes apresentadas, a autora lida com a cultura como um conceito amplo, para além das belas artes, ou do folclore (ibidem, p. 68), e apontando, para nortear o papel estatal, o conceito de Cidadania Cultural: “(...) a cultura como direito dos cidadãos, sem confundi-los com as figuras do consumidor e do contribuinte” (ibidem, p. 69). Para Celso Furtado, essa noção compreende um campo complexo de relações: Não se trata de adotar uma visão antropológica e submergir no conceito de que cultural é tudo que resulta da ação do homem sobre a natureza. Nossa preocupação é com a dimensão espiritual, em sentido lato, dessa ação, a qual não deve ser dividida em esferas autônomas, e sim observada em suas múltiplas dimensões. (FURTADO, 2012, p. 94)

Durval Muniz de Albuquerque Jr. em seu artigo “Gestão ou gestação pública da Cultura: algumas reflexões sobre o papel do Estado na produção cultural contemporânea” (2007) detalha essa camada espiritual, e sua complexa relação com o Estado por conta da sua própria constituição plural, da seguinte forma: (...) cultura no fundo não existe, existem trajetórias culturais, fluxos culturais, que só se tornam culturas quando sedentarizados, territorializados, domados, mas que nunca deixam de trazer em si o potencial de desterritorialização, nomadismo, rebeldia, por isso sempre será difícil, embora desafiadora, a relação entre Estado, como agente da territorialização, da sedentarização, da domestificação das pessoas e coisas, e as matérias e formas de expressão culturais, que ameaçam sempre escaparem de seus dedos, de seus controles e que, por outro lado, podem, uma vez apoiadas na máquina do Estado, adquirir novos potenciais desafiadores. (ALBUQUERQUE JR. In RUBIM, 2007, p. 78)

Por fim, deve se notar o fato das políticas culturais terem sido em grande parte, até recentemente, em sua maioria ligadas ao financiamento da produção e das artes “cultas”. Para Ana Rosas Montecón

As políticas culturais no século XX se acostumaram a pensar mais na criação que na recepção, mais nos criadores do que no público, mais na produção que na distribuição, mais na arte do que na comunicação.4 (MONTECÓN, 2009, p. 95)

As políticas empreendidas pelo Estado no campo do cinema e do audiovisual historicamente, focam no fomento à produção, mesmo havendo episódios de políticas voltadas para outros

“Las políticas culturales en el siglo XX se acostumbraron a pensar más en la creación que en la recepción, más en los creadores que en el público, más en la producción que en la distribución, más en el arte que en la comunicación.”

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elos da cadeia produtiva do audiovisual. Porém, políticas que visam a circulação das obras são ainda minoria dentro das iniciativas do Estado para o setor. 3. A REDE CINE CARIOCA A Rede Cine Carioca é uma iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro, que, através da RioFilme construiu dois complexos de salas de exibição na cidade. A primeira foi inaugurada em 2010: o Cine Carioca Nova Brasília, na comunidade Nova Brasília, que está inserida no Complexo do Alemão (complexo de favelas na Zona Oeste do Rio) contando com uma sala de 90 lugares. A segunda é inaugurada em 2012, no Méier (bairro da Zona Norte da cidade), no Centro Cultural João Nogueira, antigo Cinema Imperator que foi reformado pela prefeitura, contando com três salas de cinema que somam 389 assentos. A construção do Cine Carioca Nova Brasília, ocorre fruto de uma série de fatores nos quais se inserem a questão da pacificação enquanto projeto político central em convergência do governo a nível estadual, com o governador Sergio Cabral, e municipal, com o prefeito Eduardo Paes ambos do PMDB e a todo momento gozando de uma relação de aliança política com o governo federal primeiro com Lula e depois com Dilma Rousseff. Não apenas em projetos políticos comuns se materializam nesta aliança, mas também há grande transferência de recursos, principalmente do governo federal. Segundo gestores da RioFilme a política de pacificação à época empreendida pelo governo do estado do Rio, e que tinha no Complexo do Alemão sua maior conquista desde o seu início, se relaciona com o Cine Carioca da seguinte forma: A ideia surgiu da prefeitura, o Nova Brasília, o programa Cine Carioca. O projeto Cine Carioca nasceu como um projeto da prefeitura que integrava o programa Morar Carioca, esse programa ele abrangia várias atividades e iniciativas para comunidades do Rio de Janeiro. Então, a instalação das UPPs fazia parte desse programa, era um programa de revitalização das comunidades assim, das favelas. Então o Cine Carioca nasceu junto com a praça do conhecimento, que é numa área de Nova Brasília né, e a Praça do Conhecimento também é da prefeitura, os dois equipamentos são da prefeitura, e aí a Cine Carioca por ter a expertise de cinema, foi convidada pela prefeitura para administrar o cinema, a responsabilidade do cinema passou a ser da Cine Carioca. (GONDIM, 2015)

A construção da Praça do Conhecimento era uma iniciativa ligada ao projeto Morar Carioca, financiado com recursos do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), como diz Ana Louback, à época responsável na RioFilme pela implantação do Cine Carioca: A construção da sala aconteceu num contexto de contrapartida de uma obra do PAC na região e, portanto, foi gerida pela Secretaria de Habitação do Município, com acompanhamento da Riofilme. Ou seja, a ideia surgiu não só como uma política de ampliação do acesso à cultura, mas também como uma estratégia de inserção urbana, que visa prover de serviços uma região urbanisticamente excluída, promovendo assim a inserção daquele território na vida urbana. (LOUBACK, 2015)

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Por fim, entre esses arranjos político-institucionais se apresenta uma demanda dos moradores do entorno da antiga Praça do Terço na Nova Brasília, detalhada pelo gerente do Cine Carioca, Wellington Cardoso: O que eu fiquei sabendo é que na década de 1970 tinham apresentações de filmes, tipo filme na praça, aí mediante a essa tese surgiu a ideia de fazer um cinema fixo. A secretaria de habitação ficou sabendo dessa história e comentou com a Riofilmes [sic] e a Riofilmes comprou a ideia, a secretaria de habitação fez o prédio, passou a administração pra Riofilmes que passou a administração pra uma empresa privada pra tá administrando o cinema, a parte operacional. (CARDOSO, 2015)

Existe uma ampla articulação de fatores para a instalação do cinema naquele local. O que se destaca, no entanto, é a demanda da sociedade civil que surge em momento oportuno e se concretiza. Os dois complexos da Rede Cine Carioca seguem o mesmo modelo de gestão, que é o da licitação destes espaços, que permanecem de posse da prefeitura, mas são operados por empresas privadas. No caso do Nova Brasília especificamente, a empresa Cine Magic (agora com nome modificado para Planet Cinemas) recebe um subsídio mensal da RioFilme a fim de manter o preço do ingresso abaixo da média. Mas também, segundo a gestora Walerie Gondim “o subsídio é pro ingresso e para as despesas administrativas, pagamento de pessoal.” (GONDIM, 2015). O Imperator tem sua operação a cargo do Grupo Severiano Ribeiro (GSR), que não recebe subsídios e tem liberdade sobre o preço do ingresso. Este modelo é ao mesmo tempo uma vantagem e um risco, pois simplifica a gestão para o Estado fazendo a parceria com a empresa privada, mas delega a gestão de um espaço público a uma instituição privada com fins lucrativos. O Cine Carioca Méier é o espaço que mais se aproxima de uma concepção para o mercado de fato, a partir do número de salas e quantidade de assentos, possui verdadeiramente viabilidade econômica. Com a programação delegada ao GSR aquele complexo é praticamente idêntico a outras salas do grupo fora de espaços da prefeitura. Nesse sentido, o simples fato de se inserir em um local de conflito e de baixo poder aquisitivo dá condições para o cinema praticar preços mais próximos à média nacional. O Cine Carioca Nova Brasília foi durante anos, segundo a RioFilme, a sala com maior taxa de ocupação da cidade, de 52%, o dobro da média de 25%.5 Ela precisa ser problematizada no entanto, por conta de possuir apenas 90 assentos. Sobre este cinema precisamos pontuar algumas questões que chamam a atenção, particulares da comunidade onde ele se insere. A começar por sua repercussão na imprensa local e pelas formas diversas de divulgação de programação, nas palavras de Cardoso: “Temos a rádio, temos um carro de som, temos a página do Facebook e também grupos no WhatsApp do jornal “A Voz da Comunidade” que a gente divulga lá a programação.” (CARDOSO, 2015). Fica claro

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também que a relação da comunidade com a política da Rede Cine Carioca é mais complexa do que os a ocupação da sala, ou a análise da programação e modelo de gestão pode esclarecer. É uma relação íntima, um claro benefício da política como destaca Cardoso. Então, é uma situação pra dentro do Complexo do Alemão pros moradores é maravilhosa né, o cinema ele faz parte da sua casa, é mais um cômodo. Você ter uma sala de cinema dentro da sua casa, uma de estar né, vamos dizer assim, uma sala de vídeo. Tivemos duas vezes a maior bilheteria do país [sic] a maior taxa de ocupação do país, aliás, duas vezes foi a maior taxa de ocupação da América latina e várias vezes a maior taxa de ocupação do Brasil. Hoje, com a violência que tá acontecendo a gente perdeu um pouco isso, mas a gente acredita sempre numa melhora, é isso que nos mantém de pé. (CARDOSO, 2015)

Em termos de categoria de política cultural o Cine Carioca está de alguma forma inserido na concepção neoliberal definida por Chauí, mesmo seja uma ação de governo com intuito de estabelecer um equipamento cultural em um território onde não seria possível sua existência através do mercado. 4. A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO E O CINE CARIOCA NOVA BRASÍLIA Os obstáculos colocados no caminho para a oferta cultural podem ser objetivos e materiais, mas também simbólicos e no caso estudado perpassar ambos. Marcos Rodrigues Alves Barreira argumenta.

É grande o sentimento, entre os moradores das favelas ocupadas, de que o policiamento permanente não muda imediatamente a cultura e as práticas policiais. Por outro lado, a diminuição dos conflitos e incursões policiais violentas se reflete, na opinião majoritária dos moradores, em aprovação, e gera expectativas favoráveis nos locais onde o programa não foi implantado. (BARREIRA, 2013, p. 130)

Segundo o autor a diminuição dos conflitos facção criminosa/polícia repercute como um resultado positivo da ocupação policial, para os moradores. O autor também argumenta que a política da pacificação entretanto pode se valer de uma leitura diversa: Uma atitude inversa, que se coloca em inequívoca oposição à militarização, pode ser observada nos comentários mais diretamente identificados com posições de “esquerda”, que tendem a enxergar as UPPs como instrumentos de criminalização da pobreza e ampliação das formas de controle social. Longe de representar um “desvio” ou um efeito colateral das políticas oficiais, a “policialização” da vida cotidiana e dos conflitos no interior das áreas ocupadas seria a própria finalidade das operações estatais. (BARREIRA, 2013, p. p.127)

Essa “policialização da vida cotidiana” é destacada em outra pesquisa, afetando em especial os mais jovens: Alguns jovens relatam que, mesmo depois de dois anos de ocupação, percorrer pela comunidade é problemático. Relatos de abordagens violentas por parte de policiais foram comuns nas narrativas. (HEILBORN et al, 2014, p. 111)

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Os autores trazem o depoimento de uma jovem moradora, Helena de 16 anos, que serve de exemplo: (...) Aí to eu descendo com o telefone falando com meu namorado, aí o cara [policial] pegou no meu braço: “Espera aqui”. Aí eu: “Que que foi?” ...o policial: “abre essa carteira aí”...“ta indo pra onde?”, gritando. Aí eu: “To saindo.”. Aí ele: “Tá saindo da favela por quê?” e segurando no meu braço... eu: “Tá machucando, moço. Tá me machucando.” Aí ele: “Abre essa carteira aí.”. Aí eu abri a carteira, aí fui, mostrei meus documentos. Ele olhou, tal, tava com a minha certidão, original da minha identidade e, se eu não me engano, com comprovante de residência. Aí ele: “Ta saindo da favela com todos os teus documentos?”. Aí eu: “Tem algum problema?”. [Ele diz:] “Não responde a autoridade!”. Aí eu: “Tá bom” (...) aí a policial falou: “libera ela,”. Aí ele me liberou (...). (ibidem)

Mesmo não discutindo o mérito da política da UPP do ponto de vista de assegurar direitos dos moradores das comunidades, é possível perceber uma problemática que se apresenta no fim de 2014 e principalmente nos primeiros meses de 2015. Com confrontos cada vez mais constantes repercutindo na imprensa local6, percebe-se o Complexo do Alemão mais distante de um possível deslocamento da fruição cultural para o espaço público e coletivo, com indícios de diminuição da taxa de ocupação do Cine Carioca Nova Brasília em um momento onde o público de cinema no Brasil cresce como um todo.7 Mesmo na fala dos gestores da RioFilme com relação à formação de plateias com as escolas próximas é possível notar essa percepção: No Cine Carioca Nova Brasília agora, tá sendo um pouco mais complicado por conta disso [a violência], as escolas tão um pouco temerosas de levar as crianças pro cinema e tal, um pouco com medo.” (GONDIM, 2015).

A onda de conflitos no Complexo do Alemão vem subindo a níveis parecidos com o momento anterior à ocupação pelas forças de segurança desde 2014. Em notícias dos dias 11 de setembro de 2014 (disponível em: http://www. vozdascomunidades.com.br/casos-de-policia/comandante-da-upp-nova-brasilia-morre-durante-confronto-no-complexo-do-alemao/acesso em 23/06/2015) em que se noticia a morte do comandante da UPP Nova Brasília em confronto na localidade; no dia 07 de janeiro de 2015 (disponível em: http://www.vozdascomunidades.com.br/opiniao/complexo-do-alemao-tem-o-ano-de-2014-mais-violento-desde-a-ocupacao-de-2010/ acesso em 23/06/2015) divulga-se notícia em que afirma-se que o ano de 2014 foi o mais violento desde a ocupação em que “cerca de 27 moradores foram baleados nas favelas do Alemão, dentre elas, treze ficaram feridas, atendidas em hospitais, pontos médicos e liberadas em seguidas, e quatorze delas morreram.”; e notícia do dia 13 de abril de 2015 (disponível em: http://www.vozdascomunidades.com.br/complexo-do-alemao/complexo-do-alemao-vive-a-cada-dia-a-esperanca-de-nao-conviver-mais-ao-som-de-tiros/acesso em 23/06/2014) em que se dá nota para as diversas mortes decorrentes de conflitos que “Em apenas 81 dias, o Complexo do Alemão já somava 28 feridos entre policiais e moradores do conjunto de favelas. Destes, 18são moradores (7 mortos) e 11 são policiais(1morto).” Entre eles Eduardo de Jesus, de apenas 10 anos, que foi baleado na porta de casa. 7 Segundo dados da própria RioFilme a taxa de ocupação do Cine Carioca Nova Brasília vem continuamente diminuindo, de 51% em 2011 (primeiro ano de funcionamento), para 35% em 2014. Com dados da BoxOffice Brasil/ Filme B de março a novembro de 2015 chegamos à conclusão de que, supondo que em um dia há no mínimo quatro e no máximo cinco sessões, podemos afirmar que a taxa de ocupação de encontra no intervalo de 25,54% a 31,92%, ou seja, mais uma vez diminuindo. 6

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Cardoso também identifica o conflito e a violência no entorno do Cine Carioca como um empecilho para o público: Você acha que a violência tem voltado a crescer no entrona da N. Brasília? Esse quadro de violência afeta a ida das pessoas ao cinema? Com certeza né, isso é fato, o que é mostrado na televisão é isso, infelizmente são os dados, que a gente percebe lá, que vive lá. Triste né, mas é verdade, é pura verdade isso, as pessoas ficam com medo de saírem de suas casas. (CARDOSO, 2015)

Recentemente no Complexo do Alemão, há um certo ressurgimento do conflito que aqui é percebido por depoimentos e repercussão na imprensa e não por uma investigação científica de fato, mas mesmo assim relevante ainda que não comprovado estatisticamente. Não é possível afirmar que fim leva este processo, mas esta é uma fragilidade digna de nota da política do Cine Carioca, que tem seu funcionamento ligado a questão violência urbana. Assim, não é possível tomar parte nem do discurso governamental da pacificação como resolução de conflito que abre espaço para políticas culturais estruturadas e nem que essas políticas são desprovidas de valor social real, pois é preciso compreender a capacidade de pensamento crítico e independente dos atores na fruição dessas iniciativas. 5. A PROGRAMAÇÃO E A FORMAÇÃO DE PLATEIAS Com o Cine Carioca Nova Brasília, se estabeleceu uma política cultural de acesso a experiência coletiva cinematográfica e isso é fundamental, de acordo com Montecón: Certamente atender as condições sociais de acesso e favorecer uma distribuição mais estendida dos bens culturais – assim como garantir que não haja obstáculos econômicos que impeçam seu desfrute – é um dos primeiros passos que devem ser dados para democratizar seu consumo. (MONTECÓN, 2009, p. 97)8

A autora traz um apontamento importante e que está em consonância com a política do Cine Carioca: a questão básica é diluir os obstáculos. Os gestores esclarecem essa noção: (...) o testemunho das pessoas falando que antes iam no cinema no shopping, no Norte Shopping. Mas assim, é longe, é caro, não é acessível pra maioria das pessoas, a diferença é ter um cinema ali do lado, principalmente criança que nunca foi ao cinema, então pra gente é super importante, pra gente o que puder fazer pra expandir o projeto vai ser estudado. (GONDIM, 2015)

Porém, o que parece claro é que não basta apenas isso: O problema com focalizar exclusivamente no acesso é que isso só ataca a primeira parte do problema, a do contato com os bens e ofertas culturais, que não é suficiente por si só para gerar um aproveitamento pleno das potencialidades da oferta e nem para fundar uma inclinação duradoura sobre a prática cultural. Tradução livre de: “Ciertamente, atender las condiciones sociales de acceso y favorecer una distribución más extendida de los bienes culturales –así como garantizar que no haya obstáculos económicos que impidan su disfrute– es uno de los primeros pasos que deben darse para democratizar su consumo.”

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(...) Para passar da camada primária dos sentidos que podemos discernir sobre a base da nossa experiência existencial, precisamos contar com a competência artística, um conjunto de códigos que nos permite decifrar e desfrutar as mensagens da obra e situar cada elemento no jogo das divisões e subdivisões de gêneros, épocas, maneiras, autores, etc. (MONTECÓN, 2009, p. 97)9

A reflexão é bem precisa, porém decifrar o conjunto de códigos de uma obra de arte não serve somente para percebê-la em suas questões intrínsecas, estéticas, mas para compreender sua mensagem, o que está por trás do espetáculo. Celso Furtado faz uma reflexão interessante sobre o fomento apenas ao consumo cultural: A política cultural que se limita a facilitar o consumo de bens culturais tende a ser inibitória de atividades criativas e a impor barreiras à inovação. Em nossa época de intensa comercialização de todas as dimensões da vida social o objetivo central de uma política cultural deveria ser a liberação das forças criativas da sociedade. (...) Trata-se, em síntese, de defender a liberdade de criar, certamente a mais vigiada e coatada de todas as formas de liberdade. Portanto, uma verdadeira política cultural terá de ser conquistada e preservada pelo esforço e vigilância daqueles que creem no gênio criativo de nossa cultura. (FURTADO, 2012, p. 41)

Assim, é importante lembrar Chauí e o cidadão que não deve ser confundido com o contribuinte ou consumidor, mas sim como um ator cujo direito à cultura deve ser assegurado a fim de realizar sua potencialidade estética, política e social. Nos termos de Iris Young (2000), seu auto-desenvolvimento garantindo justiça e inclusão social. É fundamental quando se fala de audiovisual, uma linguagem que está presente no dia a dia não só como arte, mas principalmente como modo de comunicação de notícias, visões de mundo, posições políticas. Há então a possibilidade de avançar mais no ciclo de desenvolvimento da política, com atenção para a formação de plateias. (...) o projeto escola é uma contrapartida nossa, a gente também subsidia o projeto mas tem que ter um projeto de formação de plateias lá. A gente fez em 2012 um e agora a gente começou no ano passado e tá acontecendo ainda esse ano. E esse ano a gente começou a fazer no Cine Carioca Meier, não tinha acontecido até então, e também tá dando bastante resultado. (GONDIM, 2015)

Esta faceta do projeto é composta por sessões especiais para alunos da rede municipal (ensino fundamental apenas) e é feita de forma contínua somente no cinema da Nova Brasília, são: (...) sessões em horários alternativos, são duas sessões por dia normalmente, com os filmes da programação do cinema preferencialmente nacionais, mas a gente não tem muita ingerência sobre isso, como eles já tem uma programação Tradução livre de: “El problema con focalizarse exclusivamente en el acceso es que esto sólo ataca la primera parte del problema, la del contacto con los bienes y ofertas culturales, que no es suficiente por sí solo para generar un aprovechamiento pleno de las potencialidades de la oferta ni para fundar una inclinación duradera hacia la práctica cultural. (...) Para pasar de la capa primaria de los sentidos que podemos discernir sobre la base de nuestra experiencia existencial, necesitamos contar con la competencia artística, un conjunto de códigos que nos permiten descifrar y disfrutar los mensajes de la obra y situar cada elemento en el juego de las divisiones y subdivisiones de géneros, épocas, maneras, autores, etc.”

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específica, mas filmes que correspondam a faixa etária das crianças, porque é só pra escolas municipais. E aí o filme é exibido, o cinema dá pipoca e refrigerante pras (sic) crianças e depois o conteúdo do filme é trabalhado em sala de aula. (ibidem)

Quando questionada sobre uma possível influência da comunidade ao redor sobre a programação semanal do cinema Gondim responde: Não, não existe, como o cinema é operado por uma empresa terceirizada – a Cine Magic – eles, uma das exigências da licitação para essa empresa ocupar o cinema era que a programação fosse comercial, porque tem um apelo mais popular e etc. (ibidem)

Louback no entanto esclarece o processo decisório para esta exigência: “Nos primeiros seis meses, trabalhamos com pesquisas de público constantes e a programação foi fundamentalmente pautada por elas.” (LOUBACK, 2015). Cardoso destaca também as preferências que percebe no público, a relação com o filme dublado e a alta procura de comédias, principalmente as brasileiras mais recentes. (...) a gente na verdade já teve experiência com filme legendado e não é a cultura do lugar ver filme legendado. E a preferência é ver filmes infantis e filmes de comedia. Um recorde de bilheteria lá é “De Pernas Pro Ar”, né, filme nacional, então é muito maravilhoso. Filmes infantis blockbuster né, 3D, também são sucesso. (CARDOSO, 2015)

Nesse, não é uma questão de proibir o último blockbuster de Hollywood, o audiovisual ultrapassa e deve ultrapassar fronteiras, o que talvez deveria se procurar é uma equalização dos produtos estrangeiros e nacionais, pensando também na aproximação de cinematografias latino-americanas em lugar das já hegemônicas estadunidenses. Louback faz um apontamento interessante em que identifica uma fragilidade na política e aponta um possível risco a se tomar Em relação ao Cine Carioca Nova Brasília, especificamente, vejo o projeto como uma iniciativa importante em relação ao acesso, contudo frágil enquanto formação de público. E esses dois pontos acabam se encontrando: o fato da sala contar hoje com uma programação exclusivamente “comercial” faz com que, por um lado, se ofereça um cinema semelhante ao cinema do shopping; contudo, por outro, não se oferece o cinema dito “de arte”, e este acaba sendo exclusivo às áreas centrais. Quando falei das pesquisas de público, de fato elas demonstravam forte demanda pela programação que se tem hoje nesta sala, inclusive com grande rejeição, por exemplo, a conteúdos legendados. No entanto, neste sentido, entendo que seja também papel da política pública estimular o acesso da população a conteúdos de qualidade que não são promovidos pela mídia e pelas grandes distribuidoras, insistindo numa formação cultural mais ampla. (LOUBACK, 2015)

Então o papel de uma política cultural talvez seja aquele de desafiar os espectadores e deixar correr suas potencialidades criativas: Mas o essencial da atividade cultural está na criatividade, que se alimenta de ruptura com o estabelecido. Neste caso, o papel do Estado tem de ser de outra

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ordem, pois toda a pretensão de monitoramento pode produzir resultados inversos aos que se buscam. (FURTADO, 2012, p. 65)

A política da Rede Cine Carioca traz apontamentos importantes no que se refere à questão do acesso. No entanto pode se perceber na questão da formação de plateias a possibilidade de fazer florescer a potencialidade crítica se realizar-se uma ação estruturada que problematize o audiovisual. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A política do Cine Carioca na comunidade Nova Brasília já se torna uma ferramenta que talvez possibilite uma agregação social dos moradores daquele território. Arrisca-se a apontar essa potencialidade, mesmo que lenta e gradual, frente as questões de segurança pública enfrentados ainda por aquela população. O Estado então, e os agentes da sociedade civil, têm um grande desafio, “(...) que é o de gerir a diferença e conflito, a dissensão e a discórdia, sem querer reduzi-los ou apagá-los, mas aceitá-los como índice de potência e de pujança.” (ALBUQUERQUE JR In RUBIM, 2007 p. 77). Nesse sentido, a política cultural pode ser mesmo o sustentáculo do desenvolvimento social A política cultural consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo central é contribuir para que o desenvolvimento assegure a progressiva realização das potencialidades dos membros da coletividade. Ela pressupõe um clima de liberdade e a existência e de um ação abrangente dos poderes públicos que dê prioridade ao social. Essas são condições necessárias para que a atividade cultural brote da própria sociedade, para que se manifeste e desabroche o gênio criativo dos indivíduos. (FURTADO, 2012, p. 64)

Principalmente, no desencadeamento da categoria da inclusão social proposta por Young de auto-desenvolvimento, potencialidade negada no processo de opressão e fundamental aos seres humanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARREIRA, Marcos. Para além da ocupação do território: Notas Sobre o Discurso da “Pacificação” e Seus Críticos. Revista Continentes (UFRRJ), ano 2, n.2, p. 124-146, 2013. BENHAMOU, Françoise. A economia da cultura. Cotia: Ateliê Cultural Editorial, 2007. CARDOSO, Wellington. Entrevista [dez. 2015]. Entrevistador: Adil Giovanni Lepri. Rio de Janeiro, 2015. 1 arquivo .aac (15 min.). CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o direito a cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

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COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989. FURTADO, Celso.  Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Organização: Rosa Freire d’Aguiar Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2012. GONDIM, Walerie e SILVA, Ana Letícia Leite da. Entrevista. [mai. 2015]. Entrevistador: Adil Giovanni Lepri. Rio de Janeiro, 2015. 1 arquivo .aac (26 min.). GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. HEILBORN, Maria Luiza; FAYA, Alfonsina e SOUZA, Josué Ferreira de. Juventude e Sociabilidade em um “território pacificado” no Rio de Janeiro. Diversidade de experiências e seus marcadores sociais In Revista ACENO, Vol. 1, N. 1, p. 102-122. Jan. a Jul. de 2014. LOUBACK, Ana. Entrevista [jun. 2015]. Entrevistador: Adil Giovanni Lepri. Rio de Janeiro, 2015. Entrevista por escrito. MONTECÓN, Ana Rosas. Consumos. In MERGIER, Anne Marie (org) Consumos culturales y ciudadanía en tiempos de globalización., 2009, p. 90-99. RUBIM, Antonio Albino Canelas (org). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.

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CLASSIFICAÇÃO DAS ESTATÍSTICAS E CIFRAS CULTURAIS EM GOIÁS Adriana Parada1 Guilherme Augusto Alcantara Lobo2 RESUMO: Este artigo propõe uma metodologia de monitoramento e avaliação de políticas públicas a partir da classificação das estatísticas e cifras culturais em Goiás, pautada em aspectos considerados fundamentais para a compreensão do setor cultural no estado. O estudo é produto de uma pesquisa mais ampla com ênfase no monitoramento e avaliação de políticas públicas que permitam a compreensão da cultura como um insumo dentro de um processo dinâmico de causa e efeito. Trata-se de um esforço de traçar um panorama inicial sobre a realidade cultural de Goiás, municiando a sociedade civil e os gestores culturais com informações que possibilitarão a avaliação dos resultados de suas políticas, programas e ações culturais. Para tanto reúne informações coletadas no período de 2012 a 2015, a partir de duas dimensões: Gestão Pública da Cultura e Financiamento da Cultura. PALAVRAS-CHAVE: indicadores culturais, políticas públicas culturais, monitoramento.

1. INTRODUÇÃO O campo da cultura movimenta gradativamente a economia brasileira e recebe investimentos públicos para a construção e manutenção de equipamentos culturais (recursos físicos e humanos) e para o fomento de atividades populares, eventos, gestão e proteção do patrimônio cultural. Já os projetos culturais trabalham, basicamente, com financiamentos gerados por meio de leis ou fundos de incentivo fiscal. Tais investimentos e incentivos são fomentados a partir de três fontes distintas e complementares: as dotações orçamentárias à cultura (gastos públicos), o investimento social privado (repasses voluntários de recursos) e o patrocínio empresarial.

Pedagoga, Especialista em Gestão do Desenvolvimento Local e Mestre em Fundamentos dos Processos Educativos. De 2010 a 2015 integrou o Banco de Pareceristas do Ministério da Cultura (MinC). Atualmente trabalha como consultora em indicadores educacionais e culturais (PNUD/UNESCO), desenvolve pesquisas e análises das políticas públicas culturais de base comunitária e é membro da Rede Casa Brasil Digital. Email: casa.brasil. [email protected]. 2 Produtor Cultural, músico e formando em Ciências Econômicas na Universidade Federal de Goiás. Desenvolve pesquisa na área de Economia da Cultura: Análise do Mercado de Música Independente de Goiânia a partir das Leis de Incentivo à Cultura. Email: [email protected]. 1

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Os planos, programas, ações e atividades propostas pelo estado são norteados por objetivos específicos e devem gerar produtos concretos para a população. Sendo assim, a participação social no acompanhamento das políticas de cultura promove a transparência das ações e dos investimentos culturais e permite a interação do cidadão com o Estado (Cultura em números, 2010, pg. 33). Este artigo propõe uma metodologia de monitoramento e avaliação de políticas públicas a partir da classificação das estatísticas e cifras culturais em Goiás, com o objetivo de mensurar o desenvolvimento cultural do setor no período compreendido entre 2012 e 2015. Apresenta resultados parciais de uma pesquisa independente realizada por pesquisadores vinculados à Rede de Diálogos Casa Brasil Digital (Goiânia). A rede promove a conexão de grupos, produtores culturais e instituições formativas com o objetivo de desenvolver produtos, serviços e processos formativos que possibilitem o desenvolvimento local sustentável. Para tanto reúne profissionais que, a partir de uma estrutura de produção, realizam serviços e promovem saberes culturais de forma colaborativa em nível local e regional. 2. METODOLOGIA Adota-se como premissa a classificação e o cruzamento dos dados entre as bases dos Sistemas de Informação Governamentais, delimitando o setor da cultura no Estado de Goiás. Em relação à confiabilidade, os dados disponibilizados nas bases são de inteira responsabilidade dos órgãos das quais são originadas. Observa-se que todas as análises realizadas a partir das bases pressupõem a veracidade e confiabilidade das informações públicas. A metodologia da pesquisa consiste na apropriação de dados abertos governamentais; na sua articulação e integração a partir do cruzamento com outros dados de diferentes fontes; na sistematização e reutilização das informações contextualizadas; e na disponibilização dos resultados por meio de visualizações interessantes e esclarecedoras. Os dados relativos à Gestão Pública da Cultura no estado de Goiás foram sistematizados a fim de possibilitar a categorização dos indicadores de resultado das ações desenvolvidas e sua interpretação adequada (foco no poder público). Na sequência o Financiamento da Cultura em Goiás foi levantado de modo a observar a evolução da captação de recursos para projetos culturais no estado. O produto gerado no formato de artigo traça um panorama do setor cultural de Goiás por meio de representações gráficas. Fontes de Dados: As fontes de dados utilizadas foram Sistemas de Informações Governamentais que permitem filtros de cruzamentos de dados dos três âmbitos de governo – federal, estadual e municipal. Para a dimensão da Gestão Pública da Cultura foi utilizada a base de dados do IBGE, que permite o acompanhamento de informações relativas à oferta da cultura e à gestão da Política de Cultura (Suplemento de cultura do perfil dos estados e municípios

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brasileiros 2014). Para a dimensão relativa ao Financiamento da Cultura foram utilizados sistemas de informação que permitem o acompanhamento da evolução (2012 a 2015) do apoio a projetos culturais via captação de recursos no âmbito da renúncia fiscal e captação de recursos oriundos do orçamento público (SALICNET, PORTAL DA TRANSPARÊNCIA E SICONV). Quadro 1: Fontes de dados

3. GESTÃO PÚBLICA DA CULTURA A política pública em Goiás reúne programas, recursos, ações e atividades desenvolvidas a partir das três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal). Para a materialização das estratégias de políticas públicas para a cultura, o Programa de Ações Integradas de Desenvolvimento do PPA 2012-2015 destacou entre suas prioridades o Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana, a partir da Unidade Orçamentária da Secretaria de Estado da Cultura (SEDUCE) e do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás (FAC). O fundo é destinado a apoiar a pesquisa, a criação e a circulação de obras de arte e a realização de atividades artísticas e/ou culturais por meio de financiamento a programas e projetos. Parte-se do pressuposto de que para planejar, elaborar e avaliar as políticas públicas são necessários subsídios e orientações que indiquem rumos tanto para a gestão pública como para as ações dos demais setores da sociedade (Cultura em números 2010, pg.32). Nesse sentido buscase revelar o panorama da infraestrutura cultural do estado de Goiás a partir da categorização de indicadores do Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana. O

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primeiro indicador de desempenho da Gestão Pública da Cultura é a execução orçamentária por programa/ação declarada pelo Estado, tendo como fonte de dados a plataforma Portal Goiás Transparente. O segundo indicador é a oferta da cultura no Estado, sistematizando dados sobre a existência de equipamentos culturais, meios de comunicação, pontos de cultura; gestão da Política de Cultura; instâncias de participação; além de existência e funcionamento de Fundos de Cultura. A fonte de dados pesquisada foi: a plataforma do IBGE (Perfil dos Municípios Brasileiros 2014). 4. ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS 4.1 Execução Orçamentária A avaliação dos resultados da gestão da cultura, em especial quanto ao cumprimento dos objetivos e metas (físicas e financeiras) planejados ou pactuados para o exercício de 2012 a 2015, demandou o levantamento de informações sobre ações pelas quais a SEDUCE realizou as atividades de sua competência. De acordo com os dados de execução orçamentária, entre os anos de 2012 e 2015 o Estado de Goiás pagou o valor aproximado de R$ 50.3 milhões a ações do Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana. Gráfico 1: Recursos da execução orçamentária do Estado de Goiás destinados ao Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana:

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Tabela 1: Recursos da Execução Orçamentária do Estado de Goiás destinados ao Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana:

Fonte: Execução Orçamentária - Portal “Transparência Goiás”

Os dados da Tabela 1 demonstram que os recursos destinados ao programa de cultura foram ampliados ano a ano. Entretanto os dados disponibilizados na aba de Execução Orçamentária do portal “Transparência Goiás” (13/03/2016) revelam que do valor liquidado correspondente ao ano de 2015 do Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana, menos de 15% foi efetivamente pago. Gráfico 2: Execução orçamentária do Programa (valores pagos):

Fonte: Execução Orçamentária - Portal “Transparência Goiás”. Gráfico: elaboração própria.

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Analisando os dados do Gráfico 2 observa-se que as ações “Apoio e promoção da música” e “Consolidação do FICA” recebem os maiores recursos, de forma sistemática. Nos 2012, 2013 e 2014 a maior parte dos recursos pagos (acima de 4 milhões/ano) é direcionada à “Ação de Consolidação do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – FICA”, distribuídos respectivamente: 2012 = 44,7% do total de recursos; 2013 = 37,72% do total de recursos; 2014 = 15,9% do total de recursos. Em 2015 observa-se uma redução drástica, tanto na quantidade das ações apoiadas, quanto no montante dos valores pagos. Ainda assim, as ações “Apoio e promoção da música” e “Consolidação do FICA”, lideram lista de recepção dos maiores recursos. O Gráfico 3 ilustra a distribuição dos recursos pagos entre os anos 2012 e 2014 representando, de forma unificada, as duas ações com maior recepção de recursos (FICA e Música). Gráfico 3: Representação gráfica dos recursos pagos por ano:

Fonte: Execução Orçamentária - Portal “Transparência Goiás”. Gráfico: elaboração própria.

Com o objetivo de revelar, de forma sintética, se o Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana está ou não funcionando, foi realizado um levantamento dos recursos destinados e efetivamente pagos às ações (indicador de desempenho). Em 2014 os recursos destinados ao Fundo de Arte e Cultura do estado sofreram diminuição de 20% dos valores previamente estipulados e, ainda, atrasos nos repasses. Dos recursos destinados à cultura para o

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ano de 2015 (empenhados e liquidados pelo estado), mais de 85% não foram repassados para as ações e projetos culturais. Em 15 de março de 2016 o governo do estado propôs o parcelamento dos repasses remanescentes (24.5 milhões) em sete prestações consecutivas, pagas a partir de março de 2016. Ainda assim, o governo do estado avalia positivamente o programa e apresenta Relatórios de Consolidação das Ações formulados pelo Tribunal de Contas do Estado de Goiás. 4.2 Oferta da Cultura no Estado O segundo indicador de desempenho apresentado é a oferta da Cultura no Estado, sistematizando dados sobre a existência de equipamentos culturais, meios de comunicação, pontos de cultura, gestão da Política de Cultura, instâncias de participação, além de existência e funcionamento de Fundos Municipais de Cultura. A fonte de dados pesquisada foi a plataforma do IBGE (Perfil dos Municípios Brasileiros 2014), cujas informações foram inseridas pelos órgãos originários de gestão estadual. A seguir apresenta-se dados indicativos de participação social e de gestão pública da cultura: Gráfico 4: Municípios com pontos de cultura, gestão da política de cultura; instâncias de participação; além de existência e funcionamento de fundos de cultura (total de mun.: 246)

Fonte: plataforma do IBGE (Perfil dos Municípios Brasileiros 2014). Gráfico: elaboração própria.

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O Gráfico 4 demonstra o percentual dos 246 municípios goianos que possuem gestão, promoção de políticas públicas de cultura e instâncias de participação popular . Em relação à existência de equipamentos culturais, os dados revelam que o estado de Goiás possui 269 Bibliotecas públicas, 404 Estádios ou ginásios poliesportivos, 68 Centros culturais, 45 Museus, 37 Arquivos públicos e/ou centros de documentação, 39 Teatros ou salas de espetáculos e 38 Centros de artesanato, sendo a grande maioria mantida pelos municípios. No gráfico 5, a seguir, constata-se que a grande maioria dos municípios possui pelo menos uma biblioteca pública e um teatro ou sala de espetáculos, enquanto os outros equipamentos culturais estão presentes em menos de 30% dos municípios goianos. Gráfico 5: Quantidade de municípios com existência de equipamentos culturais e a quantidade dos mantidos pelo poder público municipal:

Fonte: plataforma do IBGE (Perfil dos Municípios Brasileiros 2014). Gráfico: elaboração própria.

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Gráfico 6: Municípios, por tipo de meios de comunicação existentes:

Fonte: plataforma do IBGE (Perfil dos Municípios Brasileiros 2014). Gráfico: elaboração própria.

O Gráfico 6 revela que entre os setores de serviços de comunicação existe uma representatividade marcante das rádios: Rádio Comunitária presente em 60,56% dos municípios, Rádio FM local em 51,62% dos municípios e Rádio AM Local presente em 21,13% dos municípios goianos. Na sequência as “Provedoras de Internet” estão presentes em quase 50% dos municípios. 4.3 Síntese da dimensão da Gestão Pública da Cultura Foram apresentados dados que permitem avaliar o Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana, a partir de indicadores de desempenho e de oferta cultural. O governo do estado afirma que as ações propostas foram consolidadas apesar da proposta de parcelamento dos repasses de 2015, fato que compromete e/ou inviabiliza a execução de grande parte das ações previstas. Os dados de oferta cultural apresentados pelo estado indicam uma estruturação organizada da cultura nos municípios, em regime de colaboração. 5. FINANCIAMENTO DA CULTURA 5.1 Modalidades de Financiamento UNIÃO: Atualmente no Brasil o maior mecanismo para a realização de um projeto cultural é o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), implementado pela Lei Rouanet

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(Lei 8.313/1991) a partir dos mecanismos: Fundo Nacional da Cultura (FNC) e Incentivo Fiscal. Os projetos que buscam financiamento passam inicialmente por uma seleção do governo federal, para então buscarem seus investidores. ESTADO: O Governo de Goiás financia projetos culturais por meio dos mecanismos: Fundo de Arte e Cultura de Goiás (FAC) e de renúncia fiscal do ICMS (Lei Goyazes). O Fundo de Arte e Cultura de Goiás foi criado para incentivar e estimular as produções artístico-culturais realizadas em Goiás, custeando projetos estritamente culturais de iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, sem que o proponente precise buscar diretamente patrocinador para os seus projetos. Na Lei Goyazes o produtor aprovado recebe uma carta de crédito que o autoriza a buscar empresas interessadas em financiar seu projeto. O valor investido pela empresa será descontado no ICMS pago ao governo. O programa é mantido pelo Governo do Estado e gerido pela Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE). Os projetos são avaliados e aprovados pelo Conselho Estadual de Cultura. 5.2 Financiamento da União: Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) Neste item foram incluídos todos os projetos aprovados pelo Ministério da Cultura para captação de recursos por meio dos mecanismos Mecenato, Fundo Nacional de Cultura e Recursos do Tesouro. Especificamente no âmbito da renúncia fiscal foram incluídos dados relativos à aprovação e captação, apresentando quantidades e valores dos projetos durante o período de 2012 a 2015. Na sequência os dados referentes à captação foram divididos por segmentos culturais. Gráfico 7: Montante de projetos do estado de Goiás apresentados ao MinC entre 2012 e 2015, por mecanismos de incentivo:

Fonte de dados: SalicNet. Gráfico: elaboração própria. 66

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Verifica-se que, nos anos de 2012 e 2013, os projetos apresentados no âmbito da renúncia fiscal superam os montantes de projetos apresentados ao Fundo Nacional de Cultura e aos Recursos do Tesouro. Já nos anos 2014 e 2015, os projetos apresentados visando captar recursos via Fundo Nacional de Cultura superam os montantes de projetos apresentados para os outros mecanismos. Esse resultado coincide cronologicamente com a proposta de redesenho do Programa Cultura Viva do MinC3, que a partir de 2013 amplia a oferta de editais para implementação de pontos de cultura e editais de prêmios para pessoas físicas que tenham vocação para formação e implementação das redes articuladas aos pontões. 5.3 Captação por Mecenato No âmbito da renúncia fiscal o Gráfico 8 apresenta a evolução, da quantidade dos projetos culturais de Goiás aprovados pelo MinC e captados pelos proponentes. Gráfico 8: Montante de projetos Culturais (GO) aprovados e captados entre 2012 e 2015, por mecanismos de incentivo:

Fonte de dados: SalicNet. Gráfico: elaboração própria.

Já a Tabela 2 apresenta os valores aprovados e efetivamente captados.

Relatório Redesenho do Programa Cultura Viva, GT Cultura Viva, Brasília, novembro de 2012.

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Tabela 2: Montante de projetos de Goiás aprovados pelo MinC e valores captados pelos proponentes entre 2012 e 2015:

Fonte: SalicNet - projetos do estado de Goiás aprovados entre 01/12/2012 e 31/12/2015

A partir da Tabela 2 é possível observar que dos 342 projetos de Goiás apresentados entre 2012 e 2015 ao MinC, apenas 21,34% tiveram alguma captação de recursos. A soma do volume de recursos aprovados ultrapassa os R$ 205,6 milhões, entretanto a soma do volume de recursos captados não alcança nem 10% do valor aprovado. Estudos que tratam da relação entre os incentivos fiscais e a gestão dos recursos públicos atribuem o cenário da baixa captação de recursos ao fato de que a iniciativa privada passou a ser o principal agente de captação de recursos do setor cultural. Outro ponto que deve ser destacado é a compreensão de que a captação de recursos requer a atuação de profissionais capacitados e qualificados em cultura. Gráfico 9: Montante de projetos aprovados e efetivamente captados, ano a ano:

Fonte de dados: SalicNet. Gráfico: elaboração própria.

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Gráfico 10: Montante de projetos aprovados por segmento cultural, ano a ano:

Fonte de dados: SalicNet. Gráfico: elaboração própria.

A evolução ano a ano, dos projetos culturais é ilustrada no Gráfico 9. Já evolução dos projetos aprovados por segmento cultural (Gráfico 10) revela que a maior parte dos recursos é destinada aos segmentos da Música e das Artes Cênicas. Corroborando com esse resultado, o estudo sobre a Cadeia Produtiva dos Festivais de Música Alternativa em Goiânia (LOBO, 2016) indica que a área da música alternativa em Goiânia depende, em sua grande maioria, de recursos públicos via mecanismos de incentivo oriundos de renúncia fiscal. Sendo assim, as verbas de fomento à cultura destinadas à área musical deveriam alcançar todos os elos de sua cadeia produtiva, gerando empregos, renda e impostos. Entretanto os resultados desse estudo revelam uma contradição: a maior parte das bandas e artistas da música independente em Goiânia – não consegue se manter com recursos advindos da comercialização de seus shows e merchandising. 5.4 Financiamento Estadual Nessa etapa foram incluídos todos os projetos aprovados pela Lei Goyazes para captação de recursos especificamente no âmbito da renúncia fiscal no período entre 2012 e 2015, com teto permitido para liberação, por meio de mecenato fiscal, de R$ 5 milhões em 2012 e R$ 10 milhões nos anos subsequentes. Não foi possível mensurar os dados referentes à captação de recursos por não haver no Estado de Goiás mecanismos de consulta pública sistematizados, nem relatórios

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estruturados sobre os projetos apoiados e captados. As informações disponibilizadas se resumem à relação dos projetos aprovados disponibilizadas no site da Secretaria de Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE). Quanto aos projetos aprovados para captação de recursos, chama-se a atenção para a falta de fiscalização em relação à captação e a falta de monitoramento da execução dos projetos, que se reflete no alto índice de inadimplência na prestação de contas. 5.5 Fundo de Arte e Cultura de Goiás (FAC) Este item inclui projetos culturais inscritos e aprovados para receber recursos do Fundo de Arte e Cultura de Goiás, que concede apoio financeiro às propostas provenientes do Estado e dos segmentos artístico-culturais. O FAC/Goiás lançou em 2014 seu primeiro edital concedendo apoio financeiro às propostas do segmento do Audiovisual nas áreas de cinema e vídeo. Foram inscritos 684 projetos e selecionados 205 para receber um total de R$ 6.120.000. Em 2015 foram lançados 11 editais do Fundo de Arte e Cultura com previsão de repasse de R$ 27,5 milhões de reais para os segmentos: música, artes integradas, audiovisual, teatro, circo, dança, literatura, patrimônio cultural, museus, bibliotecas e arquivos. Foram inscritos 1.200 projetos dos quais 269 foram selecionados. Síntese: Ao analisar as ações do Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana, foi constatado que, por restrições orçamentárias, a área da cultura em Goiás esteve sistematicamente prejudicada em seus mecanismos de fomento nos últimos anos. Tetos da Lei Goyazes (mecenato) sofreram cortes e atrasos em seus repasses. Já o Fundo Estadual de Cultura (recursos diretos) atrasou o primeiro repasse por falta de caixa e o repasse dos recursos de 2015 foram parcelados com previsão de pagamento distribuído ao longo de 2016. 6. CONSIDERAÇÕES Este artigo se propôs a traçar um panorama inicial sobre a realidade do campo da cultura em Goiás, a fim de criar condições de possibilidade para a avaliação dos resultados de suas políticas, programas e ações, buscando ampliar a participação social nos mecanismos de gestão e potencializar a produção de indicadores e informações culturais de Goiás. O acesso aberto aos dados governamentais permite o acompanhamento da distribuição dos recursos e a verificação dos repasses. Entretanto a insuficiência de mecanismos específicos de controle social interdita a efetiva participação da sociedade no planejamento e na seleção das ações que serão beneficiadas. Tal síntese revela a necessidade de desenvolvimento de estratégias de informação e intervenção, a exemplo dos sistemas de informação cultural disponíveis em outros estados, que possibilitem o monitoramento e a garantia, para a população, de uma prestação de serviços com eficiência.

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Em relação à transferência de recursos para projetos, o estudo revelou que a SEDUCE possui deficiências de controle nas etapas de formalização, acompanhamento e prestação de contas das transferências financeiras voluntárias, o que consiste em risco administrativo, especialmente quanto à ausência de mensuração dos resultados obtidos por suas políticas públicas. Tendo em vista que a prestação de contas se destina a avaliar a regularidade da aplicação dos recursos públicos, a ausência de análise técnica que indique um acompanhamento sistemático da execução dos projetos evidencia uma lacuna administrativa no que se refere ao acompanhamento dos resultados. Sendo assim, identifica-se a necessidade de instalação de controles administrativos nesses processos de transferências voluntárias, com especial atenção às etapas de formalização, acompanhamento e avaliação do cumprimento do objeto dos projetos aprovados. Os resultados obtidos apontam para a necessidade de observação de todo o processo de desenvolvimento do Programa de Apoio, Promoção e Fortalecimento da Cultura Goiana, desde os objetivos da política pública em questão, como as ações foram e vêm sendo implementadas, quem são os atores sociais envolvidos e como as cadeias produtivas de cada setor vêm sendo beneficiadas. Nesse sentido, o próximo passo para a compreensão da realidade cultural de Goiás consiste na espacialização dos investimentos públicos em ações culturais, a fim de analisar a distribuição dos recursos no estado. Esta etapa da pesquisa (em andamento) incluirá o mapeamento dos Indicadores Culturais de Goiás a partir da Plataforma Mapa da Cultura – ferramenta de monitoramento, gestão e avaliação das políticas públicas de cultura (informados pela sociedade civil). Essa mesma base de dados será utilizada para a dimensão dos Indicadores Culturais, permitindo o acompanhamento de informações relativas à distribuição dos locais, agentes e projetos culturais com dados georreferenciados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GOVERNO DE GOIÁS. Consolidação das Ações e Programas dos Órgãos e Entidades (exercícios de 2012, 2013, 2014; Disponível em: http://www.transparencia.goias.gov.br/pagina.php?id=18 GOVERNO DE GOIÁS - Programa de Ações Integradas de Desenvolvimento do PPA 2012-2015 Disponível em: http://www.transparencia.go.gov.br/index.php IBGE. Perfil dos estados e dos municípios brasileiros : cultura : 2014 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. - Rio de Janeiro : IBGE, 2015; Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/livros/liv95013.pdf LEI Nº 15.633, DE 30 DE MARÇO DE 2006. Dispõe sobre a criação do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás-FUNDO CULTURAL e dá outras providências. Disponível em: http://www. gabinetecivil.goias.gov.br/leis_ordinarias/2006/lei_15633.htm

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LEI Nº 13.613, DE 11 DE MAIO DE 2000. Institui o Programa Estadual de Incentivo à Cultura – GOYAZES e dá outras providências. Disponível em: http://www.gabinetecivil.go.gov.br/pagina_leis. php?id=2526 LOBO, GUILHERME AUGUSTO ALCANTARA. Estudo da Cadeia Produtiva dos Festivais de Música Alternativa em Goiânia. Koskatl, 2016. Disponível em: http://culturadigital.br/mapagoias/ MINISTÉRIO DA CULTURA. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais 2010. Brasília: MinC, 2010 Disponível em: http://www.marketingcultural.com.br/115/pdf/cultura-em-numeros-2010.pdf PLATAFORMA PORTAL GOIÁS TRANSPARENTE; Disponível em: http://www.transparencia.goias. gov.br/ SISTEMA DE APOIO ÀS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA Disponível em: http://sistemas.cultura. gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php SISTEMA DE GESTÃO DE CONVÊNIOS E CONTRATOS DE REPASSE DO GOVERNO FEDERAL (SICONV) Disponível em: https://www.convenios.gov.br/portal/

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POLÍTICAS CULTURAIS, PATRIMONIALIZAÇÃO E POVOS INDÍGENAS: A CASA TAMIRIKI E O PROTAGONISMO DOS AMERÍNDIOS KATXUYANA Adriana Russi1 Marcela Endreffy2 RESUMO: A partir das recentes políticas culturais voltadas aos povos indígenas e ao patrimônio cultural, percebemos que a construção da casa tamiriki entre os Katxuyana materializa a articulação entre diferentes agentes sociais. Se por um lado a construção desta casa resultou do Prêmio Culturas Indígenas, por outro remete ao protagonismo dos próprios Katxuyana na valorização de sua cultura. A reconstrução desta casa, por eles abandonada por décadas enquanto viveram longe de seu território, funcionou como mediadora de seu patrimônio ao acionar saberes tradicionais. Assim, esta análise se apoia em uma leitura contextualizada das políticas culturais para os ameríndios ao considerar os avanços destas políticas articulados a conceitos como a participação de “novos sujeitos de direito” e a dialogia indígena com o Estado, aspectos importantes nesta reflexão. PALAVRAS-CHAVE: Katxuyana. Patrimônio cultural. Política cultural.

Neste artigo, abordamos a reconstrução de um tipo de casa – a tamiriki – como importante elemento que ilustra os desdobramentos das recentes políticas culturais no Brasil, voltadas aos povos indígenas. O complexo processo de valorização cultural investigado entre os ameríndios Katxuyana (RUSSI, 2014) aponta que inúmeros fatores se articulam: as políticas culturais para os povos indígenas no Brasil; a dialogia entre os povos indígenas e o Estado, observada nas últimas décadas (OLIVEIRA, 2002) e a participação em diferentes projetos dos “novos sujeitos de direito” (ABREU, 2005, 2012). A terra tradicional dos Katxuyana se localiza às margens do rio Cachorro, no município paraense de Oriximiná, Brasil. Durante um longo período, eles viveram fora dela, tendo habitado territórios de outros ameríndios com os quais se misturaram. Desde que regressaram para sua Doutora em Memória Social (Unirio), docente da Universidade Federal Fluminense (UFF/Rio das Ostras) onde coordena o Programa Educação Patrimonial em Oriximiná-PA (www.patrimoniocultural.uff.br). E-mail: [email protected]. 2 Discente do curso de Produção Cultural da UFF/Rio das Ostras, bolsista PIBIC no projeto Dos museus aos sujeitos: levantamento das coleções etnográficas dos Katxuyana, sob orientação da Profª. Drª. Adriana Russi. Email: [email protected]. 1

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terra natal, no final dos anos de 1990, os Katxuyana têm se mobilizado para assegurar aos seus descendentes o aprendizado do kwe’tohkumu (“nosso jeito de ser” katxuyana). Valorizar sua própria cultura, neste caso, implica também no fortalecimento da figura do chefe da aldeia, o pata yotono, e na retomada do modo de organização social em uma aldeia katxuyana. Para conseguir apoio para a construção desta casa o grupo submeteu o projeto “Tamiriki: construindo uma casa e reconstruindo uma cultura” ao edital Prêmio Culturas Indígenas (SESC-SP, 2008). Nesse sentido, a reconstrução da tamiriki materializa esse exercício “patrimonial”, em grande medida favorecido pelas recentes políticas culturais no Brasil e revela, ainda, a importância de um lugar construído para a sociabilidade aldeã, sinalizando o protagonismo indígena nesse processo. 1. UM POUCO SOBRE OS KATXUYANA Atualmente, parte dos ameríndios Katxuyana habita o oeste do Estado do Pará, na mesorregião do Baixo Amazonas. Tradicionalmente, habitam as regiões do rio Cachorro e Trombetas (FRIKEL, 1970)3; linguisticamente fazem parte do grupo karib e falam o katxuyana (MEIRA, 2006). Espalhados em cerca de nove aldeias, esse povo está assim distribuído geograficamente: na região dos rios Cachorro e Trombetas (nos limites da Terra Indígena Trombetas-Mapuera), no rio Nhamundá (na fronteira entre os estados do Amazonas e do Pará, nos limites da Terra Indígena Nhamundá-Mapuera) e no rio Paru de Oeste (na fronteira entre os estados do Pará e Amapá, na Terra Indígena Parque do Tumucumaque). O processo de depopulação dos Katxuyana, assim como de outros indígenas da região do rio Trombetas, decorreu em grande medida dos contatos com grupos não autóctones e foi registrado a partir de meados do século XIX. Segundo Frikel (1970), esses contatos teriam suscitado o desenvolvimento de graves doenças. Assim, muito adoentados e com reduzidas alternativas de casamento, segundo seu sistema de organização social, os Katxuyana viveram um difícil período. O ano de 1968 é indicado na bibliografia como o momento em que o reduzido grupo de pouco mais de 60 indivíduos vivenciou um dramático processo de separação em duas frentes migratórias. Uma desceu sentido sul (para o rio Nhamumdá, no Amazonas) e lá viveu com outro povo karib – os Hixkaryana; a outra frente subiu em sentido leste (para a Terra Indígena Parque do Tumucumaque, na fronteira entre o Pará e o Amapá), onde conviveu com os Tiriyó, também outro povo karib4. Neste artigo tratamos das políticas culturais voltadas aos povos indígenas e de um processo de “patrimonialização” observado entre os Katxuyana que decidiram reocupar seu território. Nesse caso, a cultura materializada na reconstrução da casa tamiriki foi usada pelos Katxuyana como um dos dispositivos para acionar e reivindicar seus direitos. Sobre a formação do povo Katxuyana ver: Frikel (1970), Kruse (1955) e Grupioni (2010, 2011). Sobre o processo migratório, ver: Frikel (1970) e Caixeta de Queiroz e Gonçalves Girardi (2012).

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Os Kaxuyana do Paru, como ficaram conhecidos aqueles migrados para o Tumucumaque (GALLOIS; RICARDO, 1983), conviveram com os Tiriyó por mais de 30 anos e com eles se misturaram, se casaram e tiveram filhos. Apesar disso, sempre se sentiram como exilados, habitando um território de ocupação Tiriyó. Assim, por exemplo, a língua ensinada na escola e muitas práticas culturais naquele lugar eram tiriyó. Os Katxuyana relatam suas dificuldades de adaptação, sobretudo, quanto à forma de organização da aldeia, ao sistema de trabalho coletivo, bem como as relações de parentesco. Apesar dessas dificuldades, os Katxuyana insistiam em evidenciar suas características e diferenças com os Tiriyó e alguns nunca desistiram do sonho de regressar ao seu território. Enquanto viveram no Tumucumaque um dos principais tipos de habitação coletiva usada pelos Katxuyana – a tamiriki – deixou de ser construída. A casa tamiriki tem seu significado atrelado à figura do chefe, já que era a habitação tradicional dele e de sua família extensa. É à figura do chefe5 que se vinculam a organização da aldeia e o sistema de trabalho coletivo. No final dos anos de 1990 parte dos Katxuyana voltou a reocupar o rio Cachorro. Eles procuraram6 e encontraram uma antiga aldeia onde seus antepassados viveram por mais de uma década sob a chefia de um importante líder, Juventino Matxuwaya. Foi assim que, em 2003, filhos e parentes deste líder fundaram a aldeia Warahatxa Yowkuru no lugar da antiga aldeia Santidade. Naquela velha aldeia, antes de migrar, a família extensa de Juventino Matxuwaya vivia numa tamiriki e passado quase meio século, foi nesse lugar que os Katxuyana decidiram reconstruir essa casa. 2. POLÍTICAS CULTURAIS PARA OS POVOS INDÍGENAS Durante a investigação de pesquisa de doutoramento (RUSSI, 2014) vimos em plena construção uma grande casa circular de telhado cônico – a tamiriki. Foi na própria aldeia que encontramos o texto do projeto “Tamiriki: construindo uma casa e reconstruindo uma cultura” (APITIKATXI, 2008), contemplado pelo Prêmio Culturas Indígenas. Ações como a desse prêmio podem ser compreendidas como desdobramentos de políticas públicas voltadas para a preservação do que se convencionou denominar “patrimônio cultural”. O termo em katxuyana é pata yotono. Pata = lugar, aldeia, Yotono = dono, formando, então, dono do lugar, dono da aldeia. O termo se refere muitas vezes àquele responsável pela abertura e instalação da aldeia que depois assume a função de líder político do grupo e, em inúmeros casos, também líder religioso. 6 Como muitos adultos responsáveis pelo processo de regresso dos Katxuyana ao rio Cachorro nasceram no Tumucumaque, eles conheciam as terras de seus ancestrais apenas por suas narrativas. Dessa forma, eles pediram auxílio aos quilombolas moradores da comunidade de Cachoeira Porteira para localizar suas antigas aldeias. Neste caso, negros e indígenas se reconhecem como parentes – sobre isso, ver: Girardi (2011). Depois da abertura da aldeia Santidade, em 2003, alguns velhos nascidos lá, que a deixaram quando eram bem jovens para migrar para o Tumucumaque, puderam então, regressar para Santidade. De volta à sua antiga aldeia, os velhos, incentivados por alguns homens maduros, voltaram a falar sobre o “tempo dos antigos”, como dizem (RUSSI, 2014). 5

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A reflexão sobre o caso katxuyana levou em consideração o fato de que processos denominados por Sahlins (1997a, 1997b) como “autoconsciência cultural” não ocorrem de forma isolada, como iniciativa exclusiva de um grupo social. Para entender o contexto sócio-histórico de ações, editais e prêmios promovidos pelo governo brasileiro, em prol da valorização das tradições indígenas, é necessário compreender seus vínculos com o que se denomina política indigenista. Apesar de essa expressão ser utilizada como sinônimo de toda e qualquer ação política governamental voltada às populações indígenas, existem diferentes agentes envolvidos nessa complexa tarefa. Inúmeros são os autores brasileiros que se dedicam a analisar os percursos da política e legislação indigenista, bem como as ações governamentais e de outros agentes na defesa dos índios, desde o período do Brasil Colonial até a atualidade. Historicamente, missões religiosas, inicialmente católicas e depois também protestantes se encarregavam do trabalho de assistência junto aos índios. As bases da política indigenista no Brasil datam da primeira década do século XX com a criação do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, que tinha entre suas finalidades proteger os índios. Entretanto, somente na Constituição de 1934 é que os direitos dos povos indígenas foram tratados em texto constitucional, cabendo à União a responsabilidade pela promoção da política indigenista. Indigenistas e antropólogos tiveram grande importância no Brasil no que diz respeito à defesa dos povos indígenas e seus direitos, sobretudo a partir dos anos 1950, quando se constituiu, por exemplo, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Nesse processo, defensores dos direitos dos povos indígenas, como os antropólogos Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e muitos outros, cada qual à sua maneira, trilharam o que ficou conhecido como uma antropologia militante, uma “antropologia da ação”7. Durante a ditadura militar, o SPI foi extinto e em 1967 foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai). Contudo, somente depois do processo de democratização do Estado brasileiro, nos anos de 1980, é que houve ampla discussão da questão indígena pela sociedade civil e pelos próprios índios que começaram a se conscientizar e organizar politicamente, participando cada vez mais das discussões de seus interesses. Somam-se a eles, organizações não governamentais (ONGs) e organizações religiosas. A Constituição de 1988 mudou concepções ideológicas acerca dos povos indígenas e reconheceu a diversidade e especificidade dos milhares de índios que ocupam o território nacional. Segundo Oliveira (2002), a política indigenista no Brasil do século XXI sofreu mudanças em razão da fragmentação do indigenismo estatal e sua disseminação por vários órgãos públicos, ONGs e outras instituições. Conforme expõe o autor, o que marca o indigenismo atual é sua pulverização e sua transformação em uma série de iniciativas semiautônomas. Simultaneamente, Peirano (1999) faz uma interessante análise sobre a antropologia no Brasil e Abreu (2008) destaca a militância dos antropólogos no Brasil, na chamada “antropologia da ação”.

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houve uma ascensão da autonomia indígena na forma de dialogia, forçada pelos próprios índios sobre o Estado e a sociedade nacional e internacional, por meio de seu acesso à mídia, entre outros canais de comunicação. Para Oliveira (2002, p.10 9-110), cada vez mais as ações dos povos indígenas procuram estabelecer sua qualidade de “interlocutores indispensáveis à formulação, gestão e avaliação das políticas públicas indigenistas.” Contemporaneamente, se por um lado existe a política indigenista oficial (formulada e executada pelo Estado), por outro, muitas ações vêm ocorrendo a partir de parcerias estabelecidas entre setores governamentais, organizações indígenas, ONGs e missões religiosas. Como consequência dessa longa e difícil luta em prol da causa indígena, uma série de políticas públicas foram criadas com esse propósito. O Prêmio Culturas Indígenas é apenas um entre inúmeros outros desdobramentos dessa trajetória. Processos como esse que vem ocorrendo entre os Kaxuyana, não podem ser compreendidos como ação isolada desse contexto. 3. PRÊMIO CULTURAS INDÍGENAS Por que os Katxuyana decidiram erguer um tipo de casa que não construíam há quase 40 anos? O que a construção dessa tamiriki poderia revelar? A reflexão sobre este processo mostrou que a tamiriki é “boa para pensar”. A análise da reconstrução da tamiriki revelou que estávamos diante de um processo deliberado e levado adiante pelos próprios Katxuyana, e não só por eles, não por eles de forma isolada, mas, sobretudo, por eles. No caso da casa tamiriki, os Katxuyana se apropriaram de uma oportunidade – o Prêmio Culturas Indígenas, apenas para citar este exemplo – para materializar parte de seu intento, ou seja, levar adiante o processo de defesa e valorização de seu kwe’tohkumu que não teria ocorrido não fossem as articulações que eles também estabeleceram com uma série de agentes, instituições e profissionais. Por isso, não se pode compreender a mobilização katxuyana em torno de sua “cultura” sem deixar de considerar que essas articulações também ocorreram e continuam ocorrendo, tampouco desconsiderar o contexto das políticas de cultura para os povos indígenas. O Prêmio Culturas Indígenas está atrelado a um conjunto de ações voltadas à preservação do patrimônio cultural e às políticas públicas de cultura no Brasil. O prêmio decorre em grande medida dos desdobramentos da política cultural que começou a ser implementada no Brasil a partir de 2003, apoiado e financiado institucionalmente pelo Ministério da Cultura. João Domingues (2010) aponta a ruptura implementada na política pública para a área da cultura, a partir da entrada de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura (MinC), em 2003. Além das ideias de Domingues, destacamos ainda as contribuições de Lia Calabre (2010) acerca das discussões nesse mesmo período sobre as propostas voltadas ao patrimônio cultural. Segundo Domingues (2010), o Programa de Políticas Públicas de Cultura, idealizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e sintetizado no documento “A imaginação a serviço

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do Brasil” (2003), abrangia propostas de políticas públicas voltadas à inclusão social. Além disso, propunha “[...] a regionalização do planejamento das políticas públicas de cultura e a reorganização do planejamento cultural, pela implantação de um Sistema Nacional de Política Cultural [...].” (p. 228). A novidade implementada decorreu de uma nova abordagem epistemológica para a área da cultura que começou a ser interpretada em seu sentido antropológico. A defesa da importância da diversidade cultural para a humanidade, discutida internacionalmente em convenções e conferências, como as promovidas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a partir dos anos de 1970 e 1980, parte do reconhecimento da cultura como singular, dotada de estrutura própria e com valores únicos e insubstituíveis. Certamente, as discussões internacionais tiveram eco no Brasil e o debate sobre os povos indígenas e sua importante participação na formação da diversidade do povo brasileiro foi reconhecido e, em 1988, ganhou contorno. Seus direitos e a forma de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições foram assegurados. Dessa forma, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 trazem um importante avanço nesse sentido. Da mesma maneira, as discussões sobre o entendimento acerca do que se denomina “patrimônio cultural brasileiro” também ganharam destaque na Carta Magna, nos artigos 215 e 216. Assim, quase duas décadas depois da promulgação da Constituição, como bem analisou Domingues (2010), balizado pelo reconhecimento da pluralidade cultural brasileira, o projeto empreendido pelo MinC atribuiu ainda à cultura fator de inclusão social. Para tanto, um dos papéis atribuídos à cultura recaiu sobre a redução das desigualdades, a superação de desníveis sociais numa espécie de “do-in antropológico” que visava mobilizar e atender pontos vitais do corpo cultural do país, tradicionalmente desprezados ou adormecidos. Para viabilizar a implantação de formas de governo mais participativas, o MinC organizou, em 2005, a I Conferência Nacional de Cultura. Lia Calabre (2010)8 esquematizou dados das discussões sobre políticas culturais, voltadas ao patrimônio cultural, ocorridas durante essa conferência. Entre os aspectos que a autora apontou, destacamos a necessidade, naquele momento, da implementação de ações no campo da educação patrimonial. Além disso, a autora sintetizou as propostas da área nos seguintes subeixos: educação patrimonial; identificação e preservação do patrimônio; financiamento e gestão do patrimônio cultural. A proposta do subeixo de identificação e preservação do patrimônio, com ênfase às ações de proteção e revitalização Calabre (2010, p. 12) considera que na gestão pública brasileira de cultura a área de patrimônio possuiu melhor conjunto de definições legais, longe do ideal. Historicamente, segundo a autora, no Brasil, desde início dos anos 1930, intelectuais atuaram junto ao governo de Getúlio Vargas para implementar uma legislação voltada à área de preservação do patrimônio nacional. O decreto-lei nº 25, de 30/11/1937, bem como as ações que então visavam à proteção de um patrimônio material, especialmente o edificado, ficaram conhecidos na literatura como de “pedra e cal”.

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merece destaque, pois se destina a apoiar iniciativas de resgate de tradições locais, um dos objetivos do Prêmio Culturas Indígenas. Para atender ao modelo de ruptura na política cultural foi fundamental alterar o próprio organograma do MinC, criando diretorias e secretarias setoriais, como por exemplo a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural (SID), que entre os anos de 2011 e 2012 foi fundida com a Secretaria de Cidadania Cultural (SCC), criando-se a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC). Ainda no âmbito da SID, foram constituídos grupos de trabalho que tinham como incumbência, entre outras, o diagnóstico de demandas específicas. Assim, o Prêmio Culturas Indígenas, idealizado para ser concedido anualmente, resultou de propostas identificadas pelo Grupo de Trabalho para as Culturas Indígenas9. A concepção do prêmio, em 2006, foi uma das estratégias criadas para inserir pela primeira vez na política pública de cultura uma ação voltada à preservação das culturas indígenas. O prêmio tem sido viabilizado com recursos da Petrobras, através da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) e recebe apoio de inúmeros parceiros. O Prêmio Culturas Indígenas estimula a rede de saberes e práticas culturais dos indígenas e suas comunidades, dando visibilidade às etnias indígenas do Brasil, reforçando a grande contribuição desses povos para o patrimônio cultural. Os contemplados dos editais do prêmio têm seus projetos financiados e apoiados institucionalmente pelo MinC. Estes são alguns objetivos do prêmio: valorizar iniciativas culturais dos povos indígenas; fortalecer expressões culturais e a identidade cultural como forma de contribuir para a continuidade de suas tradições; promover intercâmbio com as culturas não indígenas numa perspectiva indígena; estimular a participação efetiva dos indígenas na elaboração e desenvolvimento de projetos e ações. Dessa maneira, no âmbito desse prêmio, bem como de muitas outras ações que acontecem no Brasil, o protagonismo dos sujeitos envolvidos tem sido cada vez mais enfatizado. Nesse sentido, convém salientar que mesmo que tenham recebido acompanhamento de uma antropóloga, a concepção do projeto da tamiriki apenas explicitou um desejo latente dos Katxuyana. Num reconhecimento da importância do trabalho empreendido por diferentes lideranças indígenas, cada edição do prêmio fez uma homenagem. Até 2013 foram realizadas quatro edições, com as seguintes denominações e datas: 1a edição: Angelo Cretã (2006); 2ª edição: Xicão Xucuru (2007 –edição em que o projeto da tamiriki dos Kaxuyana foi contemplado); 3a edição: Marçal Tupã (2010 – com formato distinto das anteriores, pois premiou projetos selecionados, mas não contemplados na edição de 2007); e, por fim, a 4ª edição: Raoni Metuktire (2012)10. No ano de 2015, o edital contemplou Pontos de Cultura, com 70 ações premiadas Grupo de trabalho instituído através da Portaria nº 62, de 18/04/2005, do MinC. Dados coletados no site oficial do prêmio, disponível em: http://www.premioculturasindigenas.org.br.

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em 40 mil reais, distribuídas em duas categorias: a primeira contemplava 50 prêmios para a Iniciativa Cultural Indígena, destinada a organizações e comunidades indígenas que vivem em aldeias ou áreas urbanas, e a segunda contemplava 20 prêmios voltados exclusivamente para ações desenvolvidas no campo do audiovisual. Timóteo Verá Popygua (SESC, 2008)11 avalia que, no Brasil, há um grande movimento dos povos indígenas em busca de um “fortalecimento” de seus modos de vida. Para ele: “[...] os povos indígenas necessitam de políticas públicas para preservar os seus modos de vida. Precisamos de uma política pública que garanta o registro, a preservação e a divulgação de nossas expressões culturais.”. Popygua (2008) faz uma defesa da necessidade de políticas públicas para garantir a preservação de expressões culturais entre os povos indígenas. O texto do projeto apresentado pelos Katxuyana seguiu a estrutura sugerida pelo edital do prêmio, respondendo a uma série de questões ali indicadas. Para os proponentes do projeto, os Katxuyana da aldeia Santidade, essa era uma iniciativa vinculada à retomada de um “território de ocupação tradicional”, cuja ênfase recaía, conforme o texto do projeto, numa retomada de sua cultura (APITIKATXI, 2008, p. 4). Com o objetivo de desburocratizar e facilitar as várias formas de participação dos povos indígenas, o formulário de inscrição nas últimas edições do prêmio passou a ser respondido também oralmente, em gravações de áudio ou vídeo. Além disso, os organizadores do prêmio passaram a promover oficinas para a elaboração de projetos, bem como para sua divulgação junto aos inúmeros povos indígenas. Mas a lógica de elaboração de projetos nestes termos, mesmo que mais acessíveis aos povos que são majoritariamente de tradições orais, parece aludir ao que Abreu (2012) discorre sobre a participação de “novos sujeitos de direitos coletivos no Brasil”. Passados alguns anos depois da implementação do prêmio, em 2012 foi divulgado o Plano Setorial para as Culturas Indígenas do Ministério da Cultura/Secretaria da Identidade e da Diversidade (PSCI/SID), criado no contexto das políticas públicas para os povos indígenas. Esta ação do MinC tem por objetivo colaborar para concretizar os direitos dos povos indígenas e criar condições para o exercício da “cidadania cultural” desses povos. As ações do plano se voltam à proteção, promoção, fortalecimento e a valorização das culturas indígenas. Concebido para ser executado ao longo de 10 anos, o plano prevê a avaliação sistemática e a intensa participação dos povos indígenas em sua concepção e implementação. O PSCI foi organizado em três macroprogramas: a) Memórias, identidades e fortalecimento das culturas; b) Cultura, sustentabilidade e economia criativa; c) Gestão e participação social. O PSCI (BRASIL, 2012, p. 20) denomina como “agência criativa” a capacidade de ação e de decisão, nos processos de “revitalização, manutenção e atualização das culturas indígenas”. Timóteo Verá Popygua, Guarani, cacique da aldeia Tenonde Porã, coordenador geral da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPIN-Sudeste).

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Conforme o PSCI (BRASIL, 2012), a cultura indígena poderá ser usada como discursivo estratégico na luta por sua “sobrevivência cultural” e efetivação dos direitos indígenas. Os marcos legais que constam no documento embasam a proteção, preservação e a promoção das culturas indígenas em diferentes esferas administrativas com vistas a garantir os direitos culturais dos povos indígenas. A ênfase que se dá aos textos legais relativos à preservação da diversidade cultural (quer sejam diretrizes nacionais ou internacionais) está voltada não mais a um contexto de “multiculturalidade”, mas de “interculturalidade”12. Nessa perspectiva, a tônica deixou de ser a da tolerância (que muitas vezes supunha distanciamento) e passou a ser aquela ancorada na ideia de confluência, interação entre culturas diversas, que subentende a “incorporação recíproca e convivência ativa”, sendo essa a ideia de “interculturalidade” presente no documento do PSCI. Outros programas importantes do MinC foram analisados por outros autores como Rocha (2014), que versa sobre o Programa Mais Cultura (2007), e Domingues (2010), que aborda o Programa Cultura Viva (2004). As proposições de políticas culturais voltadas à diversidade cultural evidenciam uma ação política de incluir no formato de programas e/ou diretrizes o fato de que no Brasil existem 270 diferentes povos indígenas, falantes de 180 línguas. Isso por si permitirá pesquisas futuras em diferentes perspectivas. Se por um lado existe um esforço do governo em implementar políticas culturais voltadas aos povos indígenas, por outro, há o incentivo, ou melhor, a prerrogativa de que o plano e suas ações estejam calcados na intensa participação social dos povos indígenas. A noção de “patrimônio” – termo ocidental empregado na antiguidade – vem da ideia de “propriedade herdada” que de um âmbito privado assumiu significado público com a formação das nações modernas. Segundo Abreu (2005, p. 39): “O tema do patrimônio emerge assim como um lugar de construção de valores e, como tal, extremamente plástico e variável.” Entretanto, Abreu (2012) tende a concluir que talvez inexista, entre os povos ameríndios, uma categoria similar à noção de propriedade, tal como ela existe na sociedade ocidental e chama a atenção para fato de que nas últimas décadas, diversos grupos sociais passaram a lidar com Projeto s nos quais precisaram escrever e/ou descrever seus “patrimônios culturais”, fazendo lembrar a reflexão de Sahlins (1997b, p. 127): “Por muito e muito tempo os seres humanos falaram cultura sem falar em cultura – não era preciso sabê-lo, pois bastava vivê-la. E eis que de repente a cultura se tornou um valor objetivado [...].” Cabe salientar que alguns autores brasileiros, especialmente antropólogos e cientistas sociais, vêm apontando, desde meados da década de 1980, as limitações do conceito de patrimônio A proposição da “interculturalidade” segue o conceito do antropólogo Néstor García Canclini (2009), um dos autores referenciados na elaboração do PSCI.

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circunscrito quase exclusivamente àquele voltado aos bens materiais, edificados. Muitas foram também as críticas endereçadas às políticas públicas nacionais de preservação do patrimônio que decorriam dessa conceituação. Assim, muitos trabalhos revelaram as necessárias mudanças no campo do patrimônio, quer no âmbito teórico e conceitual, quer em suas implicações políticas (VELHO, 1984; PELEGRINI, 2006; LIMA FILHO; BELTRÃO; ECKERT, 2007). Se, por um lado, vemos os antropólogos entrarem nesse “cenário” (ABREU, 2005), por outro é cada vez mais ativa a participação de novos grupos sociais, as “populações tradicionais”. Abreu (2012) analisa os processos de patrimonialização ocorridos contemporaneamente em um contexto ampliado. A autora observa que os inúmeros processos de patrimonialização decorrem, em parte, dos efeitos das políticas internacionais e nacionais voltadas à preservação da diversidade cultural. Para ela, ainda que os “processos de patrimonialização” sejam próprios do Ocidente moderno, diferentes grupos sociais como aqueles das camadas populares e as chamadas sociedades tradicionais começaram também a participar desses processos. Assim, em suas palavras: A nova configuração social e política que se produziu no Brasil no final dos anos oitenta, e que se consolidou com a promulgação de uma nova Constituição em 1988, afetou diversos campos, entre eles, o campo do patrimônio, principalmente por tornar possível a entrada em cena de novos sujeitos de direito coletivo, defendendo seus próprios interesses e trazendo suas próprias demandas de patrimonialização e preservação de suas tradições. (ABREU, 2012, p. 22). Sobre o texto constitucional a autora apontou seu discurso fundador, desencadeador de novas perspectivas para as identidades coletivas emergentes. Sua análise recai sobre os efeitos que as recentes políticas preservacionistas têm surtido entre alguns grupos sociais. Abreu (2012) também identificou a década de 1980 como o momento em que se começou a implantar uma tendência daquilo que denominou como “patrimonialização das diferenças”. Conforme Abreu (2012), atualmente, o campo do patrimônio é paradoxal – de um lado um excesso de patrimonialização motivado pela política da patrimonialização das diferenças para combater a homogeneização neoliberal e, de outro, o fortalecimento de ações de “distinção patrimonial”, como selos de “patrimônio mundial” e outros. Outra consequência são as “falas” nos processos de patrimonialização que não partem exclusivamente de sujeitos autorizados e legitimados no aparelho do Estado. São “falas plurais tecidas em rede onde interagem diversos agentes” (ABREU, 2012, p. 6). Para tanto, integrantes das sociedades tradicionais, como das sociedades indígenas, “tiveram que se relacionar com a lógica da patrimonialização aprendendo que manifestações culturais praticadas milenarmente pelo grupo poderiam ganhar novos significados no contato com a sociedade nacional.” (ABREU, 2012, p. 6).

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS De certa forma, o caso Katxuyana, a partir da tamiriki, ilustra a rede de agentes envolvidos em ações de preservação da cultura indígena. Aqui, enfatizamos o contexto e as políticas que favoreceram empreendimentos, como o observado entre os Katxuyana da aldeia Santidade. O exemplo da reconstrução da casa tamiriki entre os Katxuyana corrobora aquilo que Abreu (2012) apontara, ou seja, os Katxuyana tais quais inúmeros outros grupos das chamadas culturas tradicionais, se apropriaram de aspectos da política pública voltada ao patrimônio para conduzirem seu processo de valorização cultural, voltado ao seu kwe’tohkumu. Isso exemplifica ainda uma “autoconsciência cultural” por parte dos Katxuyana. Vale destacar, por fim, como os Katxuyana deram continuidade a esse projeto, ao experimentarem, entre outras iniciativas, participar de um programa de extensão universitária voltado à formação continuada de docentes, como professores/pesquisadores em etnoeducação. Trata-se do Programa em Educação Patrimonial, promovido pela UFF, do qual participam de forma direta o chefe da aldeia, na qualidade de professor em formação e os jovens da escola do 2º segmento do ensino básico. Ao que parece, essa oportunidade tem possibilitado, em certa medida, um espaço formal de experimentação e pesquisa “etnográfica” por parte desses Katxuyana sobre seus saberes tradicionais. Textos sobre essas experiências que começaram a acontecer em 2011, e mais sistematicamente em 2012, foram produzidos em katxuyana e em português e publicados em livro (RUSSI; ALVAREZ; MACIEL, 2012). Os jovens alunos e também Mauro Makaho, professor e pata yotono da aldeia foram incentivados a registrar as etapas da pesquisa através do uso dos recursos de novas mídias. Esse material é assistido e compartilhado também com os demais moradores da aldeia. Talvez seja ainda muito cedo para comentar quais os possíveis desdobramentos que o registro da memória e da cultura katxuyana poderá ter com o uso dessas novas mídias e o que isso poderá trazer a esse grupo. Contudo, diante de uma rede complexa de projetos e sujeitos, vimos e observamos, ao longo de quatro anos, despontar o protagonismo dos Katxuyana. Por fim, é importante destacar os desdobramentos das atuais políticas de cultura voltadas aos povos indígenas, bem como o protagonismo Katxuyana em suas histórias. Eles interagem com as políticas públicas no contexto de seus anseios e projetos. Como sujeitos de seus processos, os Katxuyana se apropriam legitimamente dos instrumentos que têm à sua disposição, atuando assim, como agentes de sua própria história.

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METODOLOGIAS DE MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DAS AÇÕES CULTURAIS DA SECRETARIA MUNICIPAL DA CULTURA DE FORTALEZA Alênio Carlos Noronha Alencar1 Aline Silva Lima2 Daniel Ribeiro Paes de Castro3 RESUMO: Neste trabalho buscamos analisar o processo de construção de metodologias de monitoramento e avaliação das políticas culturais da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza. O estudo foi realizado com base nos instrumentos (formulários), informações (banco de dados) e ferramentas (sistemas) que foram elaborados ao longo dos anos de 2013 a 2015. Buscamos reconhecer a importância da consolidação de bancos de dados e produção de indicadores culturais, a fim de garantir uma metodologia comum para a construção de instrumentos voltados à formulação de programas e ações que garantam o amplo acesso aos bens culturais. PALAVRAS-CHAVE: Gestão Cultural, Monitoramento de Ações, Business Intelligence, Secultfor, Fortaleza.

Mestre em História Social - PUC/SP e Especialista em Gestão e Políticas Culturais – Observatório Itaú Cultural e Universidade de Girona/Espanha. Trabalha atualmente na Assessoria de Planejamento da Secretaria de Cultura de Fortaleza. E-mail: [email protected] 2 Graduada em Comunicação Social/Publicidade pela Faculdade 7 de Setembro. Trabalha atualmente na Assessoria de Políticas Culturais da Secretaria de Cultura de Fortaleza. E-mail: [email protected] 3 Graduado em Ciências Sociais pela UFC e Mestrado em Sociologia pela UNB. Trabalha atualmente como Gerente do Observatório da Governança Municipal do Instituto de Planejamento de Fortaleza / Prefeitura Municipal de Fortaleza. E-mail: [email protected] 1

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1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas temos assistido em nosso país a um aumento considerável de debates em torno da centralidade da cultura4 nas políticas públicas, nos diversos âmbitos (internacional5, federal, estadual e municipal). Muitas dessas conquistas ganharam fôlego, principalmente, no período de redemocratização, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, instituindo a cultura6 como um direito fundamental, assim como educação, saúde, entre outros, apontando a necessidade de elaboração de um Plano Nacional de Cultura (PNC), que se tornará um dos principais instrumentos de governança. Com isso, têm-se estabelecido nas décadas seguintes (1990 e 2000) uma discussão abrangendo vários segmentos sociais como gestores, empresários, intelectuais, escolas, ONGs, dirigentes políticos, cientistas, sociedade civil, etc., sobre uma consciência acerca da importância da cultura como vetor de transformação da sociedade, em especial, na relação cultura e economia. Novos contextos, oportunidades de trabalho e agentes culturais foram surgindo nas últimas décadas, mediante a oferta e demanda de emprego e formação, citemos o gestor de patrimônio cultural que “han recibido el encargo de desarrollar e institucionalizar estos nuevos servicios de la sociedade, como um anhelo a um reconoimiento social de sua función”7. Um dos seus encargos é produzir sistemas integrados de conhecimento e gestão, possibilitando balizar as políticas culturais pela regionalização/territorialização da cidade, tendo como razão os planos municipais de cultura, numa busca constante de fortalecimento das políticas de inclusão e maior participação popular.

Para Daniele Canedo, existe uma dificuldade para definir o que é cultura. Isso porque “a cultura evoca interesses multidisciplinares, sendo estudada em áreas como sociologia, antropologia, história, comunicação, administração, economia, entre outras. Em cada uma dessas áreas, é trabalhada a partir de distintos enfoques e usos”. In: CANEDO, DANIELE. “Cultura é o quê?” - Reflexões sobre o conceito de cultura e a atuação dos poderes públicos. Anais do V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Salvador-Bahia: Faculdade de Comunicação/UFBa, 2009, p.1. 5 Muito desse avanço se deve quando observamos da evolução histórica dos instrumentos de proteção dos Direitos Humanos (Culturais) adotados pela ONU na década de 1960, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), percebemos, ao longo do seu texto, um enfoque na cultura como direito básico. Não se trata de apontar uma origem desse avanço, mas entender o seu processo de constituição, a partir de uma série de ações que ocorreram com a promulgação dos Direitos Humanos, apropriados pelos movimentos sociais que passaram nas décadas seguintes, a lutar e exigir a garantia, reconhecimento e proteção de suas manifestações culturais. Ver Declaração dos Direitos Humanos. Site: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf. Acesso em 22/01/2016. 6 Adotaremos nesse trabalho o conceito de cultura definido pela UNESCO: “o conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”. In: UNESCO. Relatório Mundial da UNESCO. Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural. 2009. p.4. 7 MARTINELL, Alfons. La gestión cultural: singularidad profesional y perspectivas de futuro (Recopilación de textos). Cátedra UNESCO de Políticas Culturales y Cooperación. 2001, p.03. 4

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Citemos o caso dos Festejos Juninos de Fortaleza8, que a partir do ano de 2014 trouxe uma nova proposta de “viabilizar a ampla participação de agentes culturais que se situem nos diversos territórios da cidade, promovendo a descentralização territorial da gestão e das ações culturais do município”9. O objetivo do evento foi selecionar projetos culturais10 que pudessem promover a territorialização11 da festa, com uma programação diversificada que pudesse dar conta das inúmeras ações que aconteciam ao longo do período e nos diferentes espaços da cidade. Contudo, faltaram dados sobre os processos de criação, produção e difusão dessas expressões culturais que pudessem subsidiar as políticas culturais, dificultando o desenvolvimento cultural e criativo da festa. Segundo o Plano da Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, “a produção de dados estatísticos acerca da economia criativa brasileira é escassa e, em geral, os poucos estudos existentes adotam metodologias e categorizações absolutamente dispares”12, prejudicando uma visão mais ampla dos impactos da área cultural nas políticas públicas. Os Festejos Juninos de Fortaleza demonstram essa lacuna. Temos uma carência de dados em todos os campos da produção, sejam econômicos (com exceção do investimento), sociais ou culturais. As informações são coletadas no período da execução dos Editais, por meio dos documentos de inscrição que não são, necessariamente, os instrumentos legais para construção de indicadores culturais. Pouco se sabe do volume de riquezas que os Festejos Juninos produzem e movimentam, o que impede “o desenvolvimento de análises aprofundadas quanto à natureza e ao impacto dos setores criativos na economia brasileira”13. Dessa forma, entendemos que o (re)conhecimento dos setores criativos traria a possibilidade de gerar transversalidade entre eles, como também uma intersetorialidade entre os órgãos públicos gestores da festa.

É considerada uma das expressões culturais mais mobilizadoras da cidade de Fortaleza, que já tem uma longa tradição e nos últimos anos vem modificando sua forma de atuação como política pública de cultura. 9 FORTALEZA. Prefeitura Municipal de Fortaleza. Secretaria de Cultura de Fortaleza - SECULTFOR). EDITAL Nº 02 / 2014 - Seleção Pública de Apoio aos Festejos Juninos de Fortaleza 2014. Fortaleza: Secretaria de Cultura de Fortaleza, 2014, p.05. 10 Foram selecionados 70 (setenta) projetos, sendo 40 (quarenta) projetos de Grupos de Quadrilha Junina Adulta, 10 (dez) projetos de Grupos de Quadrilha Junina Infantil, 10 (dez) projetos de Festival Junino de Grande Porte e 10 (dez) projetos de Festival Junino de Médio Porte. 11 O significado de territorialização nesse caso se refere ao processo de descentralização das ações culturais da Secretaria na cidade de Fortaleza, previsto no Plano Municipal de Cultura. 12 PLANO DA SECRETARIA DE ECONOMIA CRIATIVA: políticas, diretrizes e ações, 2011 – 2014. Brasília: Ministério da Cultura, 2012, p.31. 13 Idem, p.36. 8

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Como se modifica uma política cultural14 que garanta o amplo acesso da população aos bens culturais? Podemos pensar na mudança se grande parte da sociedade não tem acesso às informações sobre os indicadores culturais das ações promovidas pelos órgãos de gestão da cultura? Muitos são as questões sem resposta, embora saibamos os caminhos para essa transformação. Pretendemos ao longo deste texto discorrer sobre um dos principais instrumentos presentes nos debates das políticas culturais, que são as metodologias e ferramentas de monitoramento e avaliação das políticas culturais, compreendidos como “instrumento de gestão de médio e longo prazo, no qual o Poder Público assume a responsabilidade de implantar políticas culturais de Estado”15. Segundo Canclini, se “quisermos ser eficazes para reunir estatísticas culturais e situálas nas políticas de desenvolvimento nacional e continental teremos que considerar as novas articulações entre economia e cultura”16. Dessa forma, a economia da cultura nasce com a difícil tarefa de gerar essa articulação e balizar as políticas culturais, tanto pela diversidade cultural como pela sustentabilidade, inovação e inclusão social. Mas como aferir as políticas públicas de cultura? Para isso, fez-se necessário a criação de estrutura governamental, subsidiada por instrumentos que possam monitorar e avaliar as políticas de cultura. 2. UMA EFETIVA POLÍTICA CULTURAL Em 2013 a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza – SECULTFOR criou a Assessoria Especial de Políticas Culturais - ASESP com a demanda de executar e avaliar as políticas públicas através do gerenciamento do seu Sistema Municipal de Fomento à Cultura17. Este, por sua vez, tem como uma de suas atividades, o monitoramento da execução das 28 (vinte e oito) metas, distribuídas em 229 (duzentas e vinte e nove) ações do Plano Municipal de Cultura de Fortaleza18. O Plano traz como uma de suas diretrizes principais a “democratização e garantia do amplo acesso aos bens culturais”19 para a população da cidade. Fortaleza possui hoje uma área No que se refere as políticas culturais, escolhemos a definição de Nestor Canclinie, para fundamentar o texto: “El conjunto de intervenciones realizadas por el estados, las instituiciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social. Pero esta manera necesita ser ampliada teniendo en cuenta el carácter transnacional de los procesos simbólicos y materiales en la actualidad”. In: CANCLINI, Nestor Garcia. Definiciones em transición. In: MATO, Daniel (org.) Estudios latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales em tiempos de globalización. Buenos Aires, Clacso, 2001, p.65. 15 PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE FORTALEZA – 2012. Fortaleza: Secretaria de Cultural de Fortaleza, 2013. 16 CANCLINI, Nestor G. “Reconstruir políticas de inclusão na América Latina”. In: Políticas Culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003, p. 21. 17 SISTEMA MUNICIPAL DE FOMENTO A CULTURA (SMF) - LEI Nº 9904, de 10 de abril de 2012. 18 O Plano Municipal de Cultura é Lei, de n° 9989, de 28 de dezembro de 2012, e tem duração decenal. Ver: PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE FORTALEZA – 2012. Fortaleza: Secretaria de Cultural de Fortaleza, 2013. 19 Plano Municipal de Cultura, p. 9. 14

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territorial de 314,930 km², com uma população em cerca de 2,5 milhões de pessoas20, com 119 (cento e dezenove) bairros distribuídos em 7 (sete) Territórios Regionais. Se somarmos a população de Fortaleza com a da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), esse número chega a 3.818.38021 milhões de pessoas que, para alguns, pode ser considerada uma “megalópole”22, o que torna um grande desafio para as políticas públicas e, em particular, de cultura. É de responsabilidade da Secretaria de Cultural de Fortaleza fazer a execução do Plano Municipal de Cultura, contando com a ajuda de suas Coordenadorias: Ação Cultural; Patrimônio Histórico e Cultural; Criação e Fomento. Para o monitoramento e avaliação do Plano coube a Assessoria Especial de Políticas Culturais produzir uma metodologia23 que pudesse ser aplicada à realidade de Fortaleza. Havia carências de modelos que pudessem dar conta dessa realidade. Conforme apontado por Ziviane e Moura24, “a dificuldade maior se apresenta justamente na ausência de um modelo conceitual único, que permita desenvolver um conjunto congruente e sistemático de indicadores culturais”. A Assessoria realizou diversas reuniões com as Coordenadoria com o objetivo de elaborar uma metodologia que pudesse construir instrumentos (formulários) necessários para responder às questões pertinentes a Secretaria, o que levou um tempo considerável para sua aprovação. Também foram necessárias novas pesquisa e vários testes para viabilizar a ferramenta. Quanto ao formulário, ele se dividiu da seguinte forma: Informações gerais sobre o projeto/ação (nome, local data de realização); Metas do Plano Municipal de Cultura de Fortaleza contempladas pelas atividades; Área cultural/ linguagem artística das ações realizadas; Fonte de recursos; Abrangência regional25; Público (quantidade, perfil etário, recursos de acessibilidade e participação de movimentos sociais organizados); Indicadores econômicos (recursos previstos e executados, geração de oportunidades de emprego no setor cultural e em setores diversos); Breve avaliação sobre a ação realizada. Contudo, no formulário utilizado em 2014 e 2015 foram acrescidas as seguintes questões: A ação do Plano Municipal de Cultura de Fortaleza (PMC) que cada atividade proposta correspondia; Secretarias/ Instituições envolvidas na realização da Revista Fortaleza 2040. V.4., n.2. Fortaleza: IPLANFOR, 2015, p.11 21 Idem, p.7 22 Megalópole é uma zona urbana vasta e com grande concentração populacional, que corresponde ao território ocupado por várias áreas metropolitanas interligadas. “Megalópole”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/megal%C3%B3pole [consultado em 12-02-2016]. 23 A Metodologia de Monitoramento do Plano Municipal de Cultura de Fortaleza (PMC) se deu por meio da criação de Formulário, que foi construído em 2 (dois) meses, levando em conta o estudo de metas, pesquisa de modelos e construção da ferramenta em plataforma Google. Contou com a participação de todas as coordenações da SECULTFOR que contribuíram com perguntas, melhorias no texto e disponibilização de técnicos para treinamento do preenchimento do banco de dados. 24 ZIAVINI; MOURA, A CONSOLIDAÇÃO DOS INDICADORES CULTURAIS NO BRASIL: Uma abordagem informacional, SÃO PAULO, 2008, p. 4. 25 Em 1997, a cidade de Fortaleza possui seis Regionais (Regional I, II, III, IV, V, IV) criadas pela Lei nº 8.000 de 1 de janeiro, e somente em 2007 foi instituída a Regional Centro, totalizando sete territórios administrativos. 20

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atividade (aqui listamos as Secretarias que pactuaram ações junto a SECULTFOR no período de elaboração do PMC); Bairros beneficiados (o formulário de 2013 só perguntou sobre o território Regional e foi percebido a necessidade de informação de bairros atingidos). O formulário contou inicialmente com 28 (vinte e oito) questões consideradas essenciais, selecionadas em comum acordo com as Coordenadorias envolvidas. Paralelo a criação da ferramenta, as Coordenadorias e a Assessoria Especial de Políticas Culturais realizaram um diagnóstico do Plano Municipal de Cultural - PMC que passou por identificar e dividir quais metas e ações eram de suas responsabilidades dentro do mesmo. Chama atenção que o processo de diagnóstico, formulação e alimentação do formulário contribuiu para que coordenadores e técnicos, a maioria deles recém-contratados pela Prefeitura de Fortaleza, se apropriassem do Plano. Contudo, sensibilizar as equipes sobre a importância de responder o formulário de forma clara e sistemática foi um desafio constante. Muitos do corpo técnico da Secretaria pareciam entender a etapa de avaliação de resultados como menos importante do que planejamento e execução das atividades. Outra observação pertinente é que os gestores precisam dar maior atenção a produção e sistematização de banco de dados26, pois eles são importantes instrumentos de avaliação e orientação das ações da Secretaria para com as políticas públicas de cultura. A importância de um banco de dados corrobora “na medida em que torna possível ou facilita a resposta e a negociação dos diversos interesses que se movem e se entrelaçam no campo da cultura transformando-os e dando-nos múltiplos sentidos na diversidade”27. Os gestores necessitam reconhecer o significado dos bancos de dados, não somente como informações registradas em planilhas, mas utilizá-los tais: recortes da realidade, repletos de significados, trazendo a possibilidade de produção de informações e indicadores culturais, necessários para orientar a gestão da política cultural na formulação de programas e ações que garantam o amplo acesso aos bens culturais. Devemos ter clareza que os indicadores não são uma cartilha na qual todos os problemas da cultura serão resolvidos, mas eles “podem apontar com clareza os avanços ou retrocessos de determinadas políticas ou programas comparando seus resultados com os objetivos específicos previamente definidos”28. Eles devem ser entendidos como “vetores do

Segundo Elmasri e Navathe, um banco de dados possui determinadas características: “representa alguns aspectos do mundo real, sendo chamado, às vezes, de minimundo ou de universo de discurso (UoD). As mudanças no minimundo são refletidas em um banco de dados... uma coleção lógica e coerente de dados com algum significado inerente. Uma organização de dados ao acaso (randômica) não pode ser corretamente interpretada como um banco de dados... um banco de dados é projetado, construído e povoado por dados, atendendo a uma proposta específica. Possui um grupo de usuários definido e algumas aplicações preconcebidas, de acordo com o interesse desse grupo de usuários.” (Ramez Elmasri e Shamkant B. Navathe. Sistemas de banco de dados. São Paulo: Pearson Addison Wesley, 2005, p.4) 27 POLÍTICAS CULTURAIS PARA O DESENVOLVIMENTO: Uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003, p. 186. 28 REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL / OIC, n.4 (jan/mar.2008). São Paulo: Itaú Cultural, 2008, p.10. 26

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conhecimento, como capazes de explicitar valores e ideias que poderão, ou não, ser incorporados pelos gestores culturais na elaboração de políticas, programa e projetos culturais”29. Para a alimentação do banco de dados foram indicados técnicos de cada coordenação para o trabalho de recolhimento e informação dos dados e realizados treinamentos para familiarização dos mesmos com a ferramenta. Após um ano de funcionamento a Coordenação de Ação Cultural optou por produzir um formulário impresso e distribuí-lo aos coordenadores dos equipamentos culturais sob sua responsabilidade – Biblioteca Dollor Barreira, Estoril, Mercado dos Pinhões e Passeio Público. Esse formulário impresso contém, além das informações que o monitoramento necessita, dados diversos de interesse exclusivo da Coordenação, funcionando desta forma até os dias de hoje. Essa decisão partiu da dificuldade que seus técnicos possuíam para alimentar o Formulário de Monitoramento das Metas, uma vez que seria impossível acompanhar pessoalmente a programação desenvolvida nos equipamentos diariamente. Ao delegar o acompanhamento aos respectivos coordenadores dos equipamentos o problema inicial foi sanado, sendo esta coordenação a que desenvolveu a melhor relação com a ferramenta. As outras coordenações seguem alimentando o banco como foram orientadas. A alimentação das informações acontece mensalmente e por ação realizada desde 2013. A ferramenta pensada inicialmente amadureceu e conforme sua utilização foi apresentando necessidades. Do início até aqui esteve sempre em movimento. As informações ficam internas na Secretaria, sendo anualmente apresentadas em resumo ao Conselho Municipal de Política Cultural – CMPC. No começo de 2014, após publicação do Plano Nacional de Cultura - Relatório 2013 de Acompanhamento das Metas, elaborado pelo Ministério da Cultura (MINC), foi identificada a necessidade de implementar melhorias na ferramenta de monitoramento e avaliação das Metas do Plano Municipal de Cultura de Fortaleza. Durante o ano de 2015, surge a necessidade de alinhamento dessas políticas com outros órgãos da Prefeitura de Fortaleza, que vinham construindo novas ferramentas de governança. 3. NA SALA SETORIAL DA CULTURA É justamente como solução para essa demanda que surge a parceria com a Diretoria do Observatório da Governança (Instituto de Planejamento de Fortaleza - IPLANFOR), configurando como elemento relevante para a consolidação de uma política de monitoramento e avaliação das políticas culturais, através da Sala Situacional da Governança30.

Idem. Sabemos da importância das informações já produzidas pela SECULTFOR como um ativo essencial para os processos de planejamento e avaliação. Contudo, elas representavam um desafio para a consolidação de um sistema integrado de alimentação, armazenamento e análise de informações.

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Idealizado e desenvolvido pelo Observatório da Governança (Diretoria que compõe o Instituto de Planejamento de Fortaleza/IPLANFOR), a Sala Situacional da Governança31 é um ambiente físico e virtual que serve para dar suporte ao Chefe do Executivo Municipal e seu Secretariado no processo de tomada de decisão. O ambiente virtual da Sala Situacional corresponde a todo um sistema que compreende o processo de captação, armazenagem, análise e apresentação das informações analisadas ao Prefeito e Secretariado. Imagem 1: Imagem da Sala Situacional da Governança

Na Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF), o desenvolvimento de uma Sala Situacional da Governança se dá no contexto mais amplo de implementação de uma política de Gestão de Dados pela Diretoria do Observatório da Governança (DIOBS). A partir da própria experiência junto aos órgãos setoriais da PMF, foram observados três desafios fundamentais para o gerenciamento dos dados utilizados pelos gestores municipais no processo de tomada de decisão, são eles: I – Informações armazenadas apenas em arquivos físicos (papéis), tornando ineficiente o processamento e análise de dados; II – Perda de informação estratégica devido a mudanças no quadro de servidores na gestão municipal; III – Falta de confiabilidade nos dados devido a questões relacionadas aos instrumentos de captação e atualização dos dados. Para superar esses desafios, a Sala Situacional da Governança foi desenvolvida segundo uma abordagem de Business Inteligence (BI). O BI compreende uma série de metodologias relacionadas a ferramentas da área de tecnologia da informação, fundamentadas no princípio A criação e gestão da Sala Situacional da Governança são definidas como atribuição do Instituto de Planejamento de Fortaleza na Lei Complementar Nº 0184 de 19 de dezembro de 2014. O ambiente físico da Sala Situacional da Governança é uma sala climatizada com seis monitores de vídeo, servidor próprio com capacidade de armazenamento de 22 TB (terabytes), localizada no Paço Municipal, ao lado do gabinete do Prefeito.

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de que as informações gerenciadas dentro de uma organização, seja ela pública ou privada, representam ativo essencial para o seu processo decisório (Shim et al., 2002)32. O sucesso da implantação de um BI compreende a construção e consolidação de uma base de dados unificada, através da qual seja possível o acesso rápido e qualificado a informações uniformizadas e confiáveis (Kimball et al, 1998)33. No caso da Sala Situacional da Governança, essa base de dados se dá por meio da consolidação de um Data Warehouse. Um Data Warehouse consiste na organização dos dados de forma integrada, com uma visão única e consolidada. Seu enfoque deve englobar vários temas e assuntos, sendo cada um desses temas organizado em um Data Mart. De forma simplificada, é possível definir um Data Mart como um pequeno Data Warehouse, ou seja, suas propriedades são as mesmas (dados integrados, de fácil consulta, a fim de produzir uma visão unificada das informações relevantes de uma organização), mas sua abrangência compreende uma temática ou assunto específico (Bruzaros, Castoldi e Pacheco, 2000)34. O banco de dados para o Data Warehouse é construído seguindo o padrão de modelagem dimensional. O principal elemento de uma modelagem dimensional é a definição de uma tabela de fatos, ou seja, uma tabela indicativa dos componentes centrais a serem descritos por um conjunto de atributos, as dimensões do fato analisado. As tabelas de dimensão, portanto, são constituídas pelos atributos que descrevem o fato (Bruzaros, Castoldi e Pacheco, 2000). Dessa forma, no caso específico da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, por exemplo, poderíamos pensar “Eventos culturais realizados” como o fato, que deve ser descrito pelas dimensões “Número de participantes”, “Bairro de realização”, “Orçamento Previsto”, “Orçamento executado” etc.

SHIM, J. P.; WARKENTIN, M.; COURTNEY, J.; POWER, D. J.; SHARDA, R.; CARLSSON, C. Past, present, and future of decision support technology. Decision Support System, v. 33, n. 2, p. 111-126, 2002. 33 KIMBAL, R. et al. The Data Warehouse Lifecycle Toolkit: Expert Methods for Designing, Developing, and Deploying Data Warehouses. John Wiley & Sons, New York, 1998. 34 BRUZAROSCO, D.; CASTOLDI, A. V.; PACHECO, R. C. . Criando data warehouse com o modelo dimensional. In: Acta Scientiarum (UEM), Maringá - Pr. v. 22, n. 5, p. 1389-1397, 2000. 32

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Figura 1: Exemplo de Modelagem Dimensional

A preferência pela modelagem35 dimensional se dá pelas vantagens associadas à simplicidade na forma de organizar os dados, o que facilita o entendimento da modelagem pelos usuários finais, e ao desempenho elevado na geração de consultas e relatórios (Rocha, Sampaio e Schiel, 2000)36. Como produto final é disponibilizado aos órgãos setoriais da Prefeitura a consulta, em painéis dinâmicos e mapas georreferenciados, das informações estratégicas que servem de suporte à tomada de decisão. Além de todo o sistema de BI, a Sala Situacional da Governança também compreende o aplicativo Sala Setorial. O desenvolvimento do aplicativo se deu como necessidade para o avanço da Sala Situacional da Governança, devido ao fato de que, no caso da PMF, é mais a regra do que a exceção, que os órgãos setoriais não disponham ou estejam ainda em fase preliminar de estruturação de um banco de dados próprio e consolidado. Dessa forma, o aplicativo Sala Setorial foi desenvolvido com enfoque na inserção, armazenamento e monitoramento de dados, oferecendo a funcionalidade de inserir dados, assim como de construir componentes gráficos de maneira simplificada.

Modelagem se refere ao esquema explicativo para a caracterização dos dados armazenados em um determinado banco de dados. A modelagem de dados estabelece as entidades (os objetos de significância sobre os quais as informações necessitam ser mantidas), os relacionamentos (como os objetos de significância são relacionados) e os atributos (a informação específica a qual necessita ser mantida) de um banco de dados. 36 ROCHA, A. B.; SAMPAIO, M. C.; SCHIEL, U. Guardando Histórico de Dimensões em Data Warehouse. In: Semana de Informática da Bahia. Salvador, 2000, p. 212-230. 35

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Especificamente, a Sala Setorial foi desenvolvida para ofertar aos órgãos setoriais da Prefeitura a possibilidade de: Possuírem um repositório único, digital e seguro para os dados e informações produzidos pelos órgãos internamente; Facilitar aos gerentes, coordenadores e funcionários, o manejo dos dados e informações produzidas pelos órgãos; Melhorar a eficiência no processo de reportagem de resultados dos órgãos setoriais da Prefeitura para os gestores (Secretários, Coordenadores Especiais, Superintendentes etc.) das áreas Setoriais e o Chefe do Executivo; Facilitar o processamento de dados produzidos e manejados pelos órgãos setoriais para a Sala Situacional da Governança. Imagem 2 - Imagem da Sala Setorial da SECULTFOR

No caso específico da Secretaria Municipal da Cultura - SECULTFOR, inicialmente, a Sala Setorial está orientada para o armazenamento de informações produzidas pelas diversas Coordenadorias e Diretorias que compõem o órgão, no que se refere as ações de Eventos, Projetos, Formações e Publicações. A proposta vislumbra o acompanhamento periódico dos resultados relativos ao público atendido pelas ações da Secretaria, e execução orçamentária e monitoramento das metas do Plano Municipal de Cultura. Dessa forma, através da inserção de dados pelas Coordenadorias e Diretorias na Sala Setorial, objetiva-se disponibilizar, na Sala Situacional da Governança, painéis de visualização e informações georreferenciadas para acompanhamento e avaliação das ações desenvolvidas pela Secretaria. A inserção dos dados é feita a partir de formulários criados pelos próprios usuários dos órgãos setoriais. Isso significa que a inserção de dados depende do acordo interno dentro do órgão setorial sobre a definição dos dados prioritários a serem armazenados, o modelo de armazenamento dos dados e o estabelecimento de responsabilidades. Anterior a definição desse

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processo, porém, é realizado todo um trabalho de apresentação, convencimento e capacitação liderado pela DIOBS. O primeiro contato em relação a integração da SECULTFOR nesse processo se deu através de uma reunião de apresentação provocada pela DIOBS junto à Assessoria de Planejamento (ASPLAN) e Assessoria de Políticas Culturais (ASESP), realizada no dia 06 de outubro de 2015. Na ocasião, foi apresentado à equipe da ASPLAN e da ASESP o aplicativo Sala Setorial e sua finalidade de servir como ponto para a construção de painéis na Sala Situacional da Governança. Acordada a contribuição da SECULTFOR no processo, a equipe da ASPLAN e da ASESP participou de treinamento para o uso do aplicativo Sala Setorial nos dias 14 e 16 de outubro de 2015, a fim de serem capacitados para a inserção dos dados no aplicativo. Ao longo do mês de novembro do corrente ano foram produzidos pela equipe capacitada da SECULTFOR os formulários de entrada de dados37, de acordo com a modelagem do instrumental já consolidado pela equipe da ASPLAN e da ASESP, juntamente às coordenadorias da SECULTFOR. Concluído todo o processo de apresentação do aplicativo, treinamento da equipe da SECULTFOR e criação dos formulários de entrada de dados, o estágio seguinte do trabalho compreendeu o acompanhamento da evolução na usabilidade da Sala Setorial da SECULTFOR pelas Coordenadorias responsáveis por inserir as informações. É nesse estágio em que nos encontramos atualmente, sendo possível, por enquanto, traçarmos apenas expectativas e projetar o fluxo de trabalho desejado. A primeira decisão a será a definição de uma periodicidade comum a todas as Coordenadorias para inserção na Sala Setorial das informações produzidas acerca das políticas culturais realizadas. Inicialmente, essa inserção será realizada mensalmente, sendo responsabilidade da ASPLAN e da ASESP o acompanhamento direto com as Coordenadorias. Para a SECULTFOR, dois produtos são desejados a partir desse processo: (i) a atualização sistemática da Sala Situacional da Governança com as informações estratégicas das políticas públicas de cultura para visualização pelo Prefeito e pelo Secretário da SECULTFOR; (ii) a disponibilização de um ponto único de informações centralizadas e estruturadas para o processo de avaliação interno em conjunto entre as Coordenadorias e a ASPLAN. Ao Observatório da Governança o produto esperado se dá pela possibilidade de cruzar informações relativas a execução de políticas culturais, com as informações de políticas para a educação, segurança, juventude, assistência social, urbanismo, dentre outras, disponibilizadas pelos demais órgãos setoriais da PMF através de cooperações similares à estabelecida com a SECULTFOR.

Os formulários de entrada de dados são planilhas construídas e personalizadas pelo próprio órgão setorial para receber da melhor forma possível os dados armazenados.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para o monitoramento, avaliação e, conseqüentemente, melhoria das políticas de cultura, faz-se necessário combinar a aplicação de instrumentos para captação de dados e informações, assim como a utilização de metodologias e ferramentas adequadas para o armazenamento e análise das informações e dados coletados. No caso da experiência realizada na SECULTFOR, o instrumental aplicado correspondeu ao questionário desenvolvido pela ASPLAN e pela ASESP em conjunto com as Coordenadorias da Secretaria. A produção desse questionário compreendeu o trabalho de interlocução com todas as Coordenadorias, o mapeamento das ações realizadas pelas Coordenadorias, a identificação das informações estratégicas referentes a cada Coordenadoria e a adaptação constante da redação do questionário até a conclusão da versão final do questionário, assim como a validação dessa versão final juntamente com todas as Coordenadorias. Pelo lado da utilização de metodologias e ferramentas adequadas, a SECULTFOR contou com uma contribuição relevante da Diretoria do Observatório da Governança, mais especificamente, através do Business Inteligence (BI) da Sala Situacional e do aplicativo Sala Setorial. Para o gerenciamento dos dados e informações da SECULTFOR, ambas as tecnologias servem como ferramentas importantes para a estruturação, armazenamento e análise da informação produzida internamente pela Secretaria. No caso da Sala Setorial, o enfoque principal serve ao armazenamento dos dados e informações, sanando um problema muito sério para a continuidade das políticas culturais, que é a preservação e a segurança das informações. Já no caso da Sala Situacional, a contribuição reside na apresentação de painéis gráficos, informações georreferenciadas e no cruzamento de informações com outras fontes de dados, subsidiando a tomada de decisão baseada em evidência pelo gestor. Estamos cientes que a operacionalização contínua da abordagem aqui proposta não é uma iniciativa fácil, pois os desafios são muitos. Contudo, é preciso que reconheçamos a existência de boas ações, projetos, programas de política de preservação, formação e difusão cultural e, mais do que isso, desenvolver metodologias e instrumentos efetivos para o monitoramento e avaliação dessas políticas culturais. A realização efetiva do monitoramento e avaliação das políticas culturais são importantes instrumentos de transparência e inovação, remetendo à importância efetiva da participação dos diferentes grupos interessados (artistas, gestores, pesquisadores, estudantes etc.) na construção de uma sociedade realmente democrática, que possibilite aos seus cidadãos o direito de terem acesso aos bens culturais, ou seja, a vida cultural.

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CONTROVÉRSIAS ACERCA DA CERTIFICAÇÃO DE INDICAÇÃO GEOGRÁFICA DO CAPIM DOURADO DO JALAPÃO. O CASO DA COMUNIDADE MUMBUCA, MATEIROS, TO1. Alex Pizzio da Silva2 José Rogério Lopes3

RESUMO: O texto descreve o contexto de produção de artefatos culturais em Capim Dourado, na região do Jalapão, TO, com foco na trajetória da Comunidade Quilombola Extrativista do Mumbuca, localizada no município de Mateiros, e sua correspondência com as políticas culturais. Nesse contexto, as descrições da trajetória da associação local de artesãos e suas parcerias evidenciam condicionantes institucionais e ambientais que afetaram suas técnicas de produção e impuseram dificuldades atuais aos atores. Os processos descritos convergem para a discussão sobre a certificação de indicação geográfica do Capim Dourado, ocorrida na VII Festa da Colheita do Capim Dourado, promovida por aquela comunidade, em 2015, e suas repercussões. PALAVRAS-CHAVE: Comunidade Mumbuca, Capim Dourado, Certificação de Indicação Geográfica, Políticas culturais.

1. LOCALIZAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO GERAL DO PROJETO A Comunidade do Mumbuca está localizada na zona rural do município de Mateiros, estado do Tocantins, Brasil, cerca de 360 km a leste da capital do estado, Palmas. Há duas rotas comuns de acesso à Comunidade: por Ponte Alta e por Novo Acordo. Na incursão que realizamos em 2015, optamos por Novo Acordo, pelas informações que dispúnhamos sobre a condição das estradas. Até Novo Acordo, percorremos 130 km por estrada asfaltada, os demais 230 km foram percorridos em estrada de terra. A localidade do Mumbuca está inserida no Parque Estadual do Jalapão e é ligada à cidade de Mateiros por estrada de terra, distante 30 km. Apesar da beleza da paisagem local, a estrada é pouco conservada e tem vários trechos de areal, dificultando a O caso aqui descrito é um recorte do projeto “Políticas culturais e ambientais, coletividades e patrimônios no Brasil: algumas questões epistêmicas”, coordenado pelo Prof. Dr. José Rogério Lopes, com financiamento da FAPERGS. 2 Doutor em Ciências Sociais pela UNISINOS, Prof. Adjunto do PPG em Desenvolvimento Regional da UFT-Universidade Feral do Tocantins. E-mail: [email protected] 3 Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, Prof. dos PPGs em Ciências Sociais da UNISINOS, RS, e em Desenvolvimento Regional da UFT. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected] 1

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locomoção, feita geralmente por veículos robustos, pick-ups com tração nas quatro rodas, além de motocicletas e cavalos. A comunidade está situada no Parque Estadual do Jalapão, que é uma área de Proteção Ambiental caracterizada pelo bioma do Cerrado, com várias fontes de água e rios caudalosos, como o Rio Sono, que atravessa a região. No Jalapão, estão localizadas também dez comunidades quilombolas, nas quais se inclui a do Mumbuca. Trata-se de uma comunidade quilombola extrativista que se dedica à produção de artefatos culturais confeccionados com Capim Dourado (Syngonanthus nitens), além de agricultura de subsistência e criação de galinhas. O Capim Dourado é matéria prima que compõe o bioma do Jalapão, caracterizado pela vegetação de cerrado. O Capim divide a paisagem com Pequis, Palmeiras de Babaçu e Miriti, além de outras espécies, como a Tecla (árvore que produz madeira para indústria naval, desenvolvida na região para comércio); nasce em áreas de veredas (campos úmidos do cerrado) e floresce entre os meses de julho e agosto. A colheita do Capim é feita nos meses de setembro e outubro, quando o mesmo amadurece e assume sua cor dourada característica. Na colheita, as flores no topo dos talos de Capim são retiradas e deixadas nas veredas, para renascer. Após a colheita, os talos do Capim Dourado são enrolados em cordas finas que, costuradas manualmente com fibra de miriti, vão assumindo formas diversas: as originais são baús e chapéus; as tradicionais são cestas, sacolas, bolsas e potes, mais recentemente acrescidas das inovações, como bijuterias (brincos, pulseiras, colares), souplats, enfeites de mesa, imãs de geladeira, acessórios de vestuário, porta-canetas, chaveiros e mandalas de vários tamanhos, que podem ser associados a pedras, talos e folhas de miriti, e sementes da flora local. O ciclo do Capim Dourado é anual e a sua reprodução depende do depósito das flores no solo, durante a colheita, e do corte dos talos, sem retirar suas raízes. Espalhado pelas veredas localizadas no bioma do cerrado, o Capim é colhido manualmente em áreas relativamente próximas à comunidade. A interação das famílias da Comunidade (23 residências no núcleo da comunidade e 11 mais distantes, espalhadas pela área da terra quilombola) com o Capim Dourado (assim como com outras espécies do bioma local) é tradicional, segundo os critérios que também definiram o território quilombola onde a comunidade está localizada, quais sejam: reprodução de um modo de vida associado com os ciclos renováveis da natureza, o que inclui conhecimentos acerca desses ciclos e elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais, transferidos intergeracionalmente pela oralidade, ou pela experiência; ocupação territorial por gerações, com noção de território ou espaço; reprodução de modelo de unidade familiar ou comunal, e relações de parentesco, no exercício das atividades de produção, atividades sociais e culturais; atividades de subsistência, mesmo em relação com atividades de mercado (DIEGUES, apud CARVALHO, 2014, p. 57).

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2. OS ESPAÇOS FÍSICOS DO PROJETO, AS TÉCNICAS DE TRABALHO AS TECNOLOGIAS UTILIZADAS A colheita do Capim Dourado é feita individualmente ou em grupo, variando com a demanda de produção de cada artesão, ou família de artesãos. Os espaços de armazenamento são as próprias residências, todas elas produzidas com tijolos de adobe, sem reboco ou pintura, com telhado de palha, geralmente possuindo um rancho contíguo, onde os artesãos produzem os artefatos de Capim Dourado. As exceções são as construções da igreja evangélica Assembleia de Deus (Ministério de Madureira) e da escola municipal local. A igreja está localizada atrás da loja de artesanato e do galpão comunitário e é pintada de azul; a escola está localizada em um arruamento secundário e é pintada de branco. A distribuição das casas segue um padrão de arruamentos, na comunidade, estando todas próximas. Há quatro arruamentos: um principal, da entrada até os limites da comunidade, definidos pela mata e um riacho; um secundário e paralelo, à esquerda de quem entra, e dois perpendiculares, do meio da principal à direita e ao final, seguindo a margem do riacho. A comunidade é atendida por rede pública de eletricidade e tem captação de água potável no riacho que corre à sua margem. Além da igreja e da escola municipal, no local, há uma pousada (Pousada da Tonha) e um bar-restaurante. A comunidade está organizada em uma Associação dos Artesãos da Comunidade do Mumbuca, desde 2002, que orienta as atividades de extração, produção e venda do Capim Dourado. A Associação construiu uma loja para venda dos artefatos, que é contígua a um galpão comunitário aberto, ambos localizados no final do arruamento de entrada, à esquerda. Na loja, além dos artefatos expostos em motivos variados, estão expostos também os registros históricos da Comunidade: uma faixa que descreve a árvore genealógica das famílias, livros sobre a Comunidade ou o trabalho com Capim Dourado, vídeos documentários, catálogos produzidos por órgãos governamentais e CDs de músicos da comunidade ou músicos da região, que compõem temas relacionados com a vida local. As técnicas de trabalho se dividem em três etapas distintas e complementares da produção dos artefatos: a colheita e o armazenamento do Capim Dourado, a produção dos artefatos e a organização das vendas. Aspectos dessas etapas estão descritos nos demais tópicos desta apresentação. Como não tivemos oportunidade de acompanhar mais detidamente esses processos, pois o foco da incursão era a Roda de conversa sobre o selo de origem do Capim Dourado, ficamos impossibilitados de observar minúcias dos mesmos. Entretanto, as conversas que estabelecemos com alguns líderes da comunidade e com jovens que seriam monitoras nas demonstrações da colheita do Capim Dourado, durante a festa, possibilitaram definir algumas situações que merecem detalhamento: as parcerias estabelecidas na colheita e na produção, em reconhecimento da experiência das pessoas; esses processos servem para situar relações de aprendizagem entre as

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gerações; os interditos na introdução de tecnologias que segmentem a produção e as estratégias de produção coletiva em períodos de alta demanda (de encomendas); a duração da matéria-prima em armazenamento e a organização física, familiar e associativa em torno da mesma; as lógicas de avaliação individual e coletiva das inovações introduzidas na produção e no formato dos artefatos; a organização da logística de venda e distribuição dos artefatos. 3. HISTÓRICO DO PROJETO E AS QUESTÕES CULTURAIS E AMBIENTAIS QUE O CONDICIONAM Há duas versões para a formação da Comunidade do Mumbuca: uma que remete ao período de escravidão, sendo a comunidade formada por negros fugidos de fazendas de plantação do litoral da Bahia, e outra, que a configura pelos processos de mobilidade populacional, em final de século XIX, com a migração de famílias vindas da Bahia, fugindo de fatores climáticos desfavoráveis, como a seca (CARVALHO, 2014, p. 55). A convergência geográfica das duas versões indica que o povoamento da Comunidade seguiu um padrão familiar, com três matrizes (os Beato, os Bento e os Pereira Gonçalves) que se reproduziram até a atualidade com ocupações em lotes familiares dispersos na área e dedicados à agricultura de subsistência. A atual forma de ocupação, em um núcleo central, deu-se na década de 1990, motivada pela construção de uma escola municipal no local. Nessa atual ocupação, também se reproduz o padrão familiar original. Como a população da comunidade se reproduziu, basicamente, através de casamentos entre primos, as famílias estão distribuídas na Comunidade segundo duas linhagens básicas: ao lado direito da rua central estão os familiares de dona Miúda (matriarca famosa da Comunidade, já falecida), enquanto ao lado esquerdo estão os familiares de dona Laurentina, senhora de mais de cem anos que ainda reside na Comunidade. Sobre a origem do ofício artesanal com Capim Dourado também há duas versões: uma narrativa comunitária e uma acadêmica. A narrativa comunitária foi exposta por dona Santinha, matriarca da comunidade, durante a “Roda de Conversa sobre o Selo de Origem do Capim Dourado” (realizada na VII Festa da Colheita do Capim Dourado, em Mumbuca), da qual participamos, em 18/09/2015. Nessa narrativa, Dona Laurentina, antiga matriarca, encontrou o Capim Dourado nas veredas do cerrado e, extasiada com a sua cor dourada, o apresentou à família, anunciando que faria bonitos artefatos com o mesmo. Após a difusão do Capim pela Comunidade, teria sido dona Miúda quem deu forma e conteúdo estético (artístico, segundo ela) ao Capim, iniciando o ciclo de produtores artesãos, na comunidade. Já a narrativa acadêmica (BELAS, 2008; SCHMIDT, 2005; SOUZA, 2012) identifica o modo de fazer dos artefatos da comunidade com a herança indígena, provavelmente apropriada em intercâmbios das primeiras gerações de quilombolas locais com a etnia Xerente, na região. Segundo os autores, há registros de uso do

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Capim Dourado entre a etnia Xerente, assim como a “costura do Capim”, ainda realizada na Comunidade, seria uma técnica cultural indígena que utiliza a seda do buriti. Aqui, importa situar que as duas versões convergem para a figura histórica de dona Miúda (Guilhermina Ribeiro da Silva), uma vez que essa mulher, nascida em 1928, é filha de indígena com afrodescendente. Embora haja registros da produção de artefatos com Capim Dourado, desde a década de 1930 (época em que os artefatos eram trocados por gêneros alimentícios e querosene, em mercados na Bahia), foi somente na década de 1990 que esses artefatos e o ofício artesanal de produção do Capim Dourado, na Comunidade, ganharam notoriedade. Os fatores que convergiram para sua divulgação foram: a construção de uma ponte ligando os municípios de Mateiros e Ponte Alta (rompendo o relativo isolamento da região), uma matéria divulgada no Programa Globo Repórter, em 1990, e o crescente advento do turismo na região do Jalapão (SOUZA, 2009; CARVALHO, 2014). A crescente demanda comercial dos artefatos disseminou a sua produção no cotidiano e entre as famílias, até que, em 2002, as mesmas criaram a Associação dos Artesãos da Comunidade do Mumbuca, visando formalizar as vendas. De lá para cá, a Associação manteve-se ativa na produção e reprodução dos modos tradicionais de fazer artefatos com Capim Dourado. Na década de 2000, alguns acontecimentos ampliaram a difusão da produção dos artefatos, e a legitimaram, para além da Comunidade Mumbuca: em 2004, parcerias entre a Associação de Artesãos do Mumbuca, a Fundação Naturatins, a Secretaria de Estado da Cultura do TO e o SEBRAE, promoveram cursos e oficinas de artesanato com Capim Dourado, na Comunidade do Mumbuca, atraindo designers e outros especialistas4; no mesmo ano, essas parcerias também promoveram a difusão do ofício artesanal com Capim Dourado para outros municípios do Jalapão, através de cursos e oficinas ministradas por uma artesã da Comunidade do Mumbuca (Rosa); em 20 de janeiro de 2006, a Comunidade foi reconhecida como Território de remanescentes quilombolas – contudo, a demora na titulação das terras tem gerado conflitos. Em 2009, o governo do Estado do Tocantins declarou o Artesanato em Capim Dourado como Patrimônio Histórico do Estado (Lei nº 2.186 de 14 de julho de 2009). Em 2010, por intermédio do Movimento Estadual dos Quilombolas e do Ministério Público Federal, foi criado o Fórum Permanente de Acompanhamento da Questão Quilombola no estado do Tocantins. Segundo relatos de sujeitos da Comunidade, essas parcerias tiveram trajetórias e resultados distintos, gerando tensões comunitárias pelas inovações inseridas na produção dos artefatos Segundo Carvalho (2014, p. 65), “Destaca-se a oficina “Designer em capim dourado” que foi ministrada pelo designer Renato Imbroisi, em 2004, tecelão e designer de moda conhecido nacionalmente por atuar em aproximadamente 40 projetos de inovação e artesanato”. Segundo relatos de moradores locais, as inovações nos artefatos produzidos na Comunidade surgem da confluência dessas oficinas e das demandas de turistas.

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e pela difusão das técnicas de trabalho a outros municípios. A primeira tensão deu-se em torno das propostas do SEBRAE de segmentar a produção artesanal, recusada pelas artesãs, com o argumento de manter a tradição e as relações familiares de produção. A segunda refere-se a dois fatores: a difusão da técnica de trabalho aumentou a demanda pelo Capim Dourado, que passou a ser colhido de maneira clandestina e insustentável; complementar a isso, a disseminação crescente da produção, em outras localidades (algumas mais acessíveis a comerciantes e turistas, como Ponte Alta) gerou um mercado que descaracteriza a origem comunitária do ofício artesanal e dos artefatos, atribuindo-lhe referências relacionadas à região do Jalapão, como indicação geográfica (SCHMIDT, 2005) da matéria-prima. Na tentativa de garantir a sustentabilidade ambiental da região e buscando ordenar a exploração do Capim Dourado, o governo estadual estabeleceu a Portaria nº 362/2007, conferindo regras para a colheita e manejo do vegetal, proibindo a colheita do mesmo fora do período de 20 a 30 de setembro, e determinando que a colheita só poderia ser realizada por associados devidamente credenciados, entidades comunitárias de artesãos e extrativistas residentes nos municípios tocantinenses. Destaque-se que, embora as ações estatais tivessem a intenção de regular a extração e manejo do Capim Dourado, bem como garantir a sustentabilidade do mesmo, tais ações foram insuficientes e não surtiram o efeito desejado. Ao contrário, na região, a cada ciclo extrativista centenas de pessoas entram nas zonas de produção e extraem o Capim Dourado, muitas vezes, de forma ilegal. O que se tem observado ao longo desses anos é um aumento de tensões em torno de questões que gravitam entre a sustentabilidade do vegetal e a ampliação de novos mercados, que surgem a partir da expansão do comércio do artesanato de Capim Dourado. Tendo esse cenário como pano de fundo, o governo do estado do Tocantins, em parceria com a Associação de Artesãos em Capim Dourado da Região do Jalapão (Areja), protocolou, ainda no ano de 2009, um pedido de certificação do artesanato local, por meio da Indicação Geográfica, junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Processo esse que se consolidou no ano de 2011, com a indicação de Procedência da matéria prima à região do Jalapão. Essas tensões se evidenciaram na Roda de Conversa sobre o Selo de Origem do Capim Dourado, que presenciamos na Comunidade, e estão em correspondência com os relatos descritos por Rodrigo M. Leistner, acerca de suas investigações junto a artesãos e comerciantes de Capim Dourado, na cidade de Ponte Alta, no quadro do LaPCAB5. Nesta cidade, as parcerias com o SEBRAE se desenvolveram e estão vigentes, assim como as propostas do mesmo para a incrementação da produção dos artefatos. Essas relações, embora ocorrendo distantes de Mumbuca, passaram a servir de “espelho invertido” para a Comunidade e são criticadas pelos mais velhos, sobretudo. Rodrigo M. Leistner. Relatório de pesquisa em Ponte Alta, TO. LapCAB-Laboratório de Políticas Culturais e Ambientais no Brasil: gestão e inovação. Unisinos, agosto de 2015, 23 p. 5

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Neste reflexo invertido, as pessoas da Comunidade do Mumbuca identificam três fatores que consideram negativos, ou que descaracterizam a “autenticidade” do ofício artesanal com Capim Dourado: 1. O agenciamento do SEBRAE incentiva a segmentação da produção e torna o artesão ora montador dos artefatos, ora administrador do trabalho de outros; 2. A segmentação e as mudanças no ofício quebram os vínculos de reciprocidade comunitários ou associativos; 3. As inovações inseridas na produção ou nos artefatos tendem a orientar a produção para a demanda do consumo, reforçando os fatores anteriores. Assim, a maior valorização da relação entre artesão e mercado tende a produzir tensões na relação entre o artesão e o quadro associativo ao qual pertence, pelo acirramento da concorrência pelo mercado, em Ponte Alta e outras localidades. Essas tensões e concorrência, por outro lado, tornam os artesãos mais sensíveis às inovações nos processos de trabalho e nos produtos. Contrários a essa situação, as pessoas mais velhas da Comunidade do Mumbuca evocam regularmente uma expressão de dona Laurentina, que dizia “Isso aí é para colocar comida na mesa de todo mundo”. Essa exposição de um princípio ou valor comunitário se complementa, na Comunidade, por um sentimento de que o ofício que eles ensinaram para outras pessoas e comunidades está se desvirtuando, e implica em posicionamentos que impactam o desenvolvimento do projeto, discutido adiante. Além das questões relacionadas às tensões produzidas pelas parcerias iniciais da Comunidade com o SEBRAE e outros órgãos governamentais, estão em evidência, atualmente, três outros fatores: as relações intergeracionais (isolamento x perspectivas ou expectativas de futuro para os jovens); a crescente extração ilegal ou insustentável de Capim Dourado, na região, para atender a demanda por matéria-prima nas outras cidades onde se produzem os artefatos; e a relação entre a reivindicação comunitária pelo reconhecimento de autenticidade do ofício artesanal com Capim Dourado x os modelos de inserção nas esferas institucionais e de mercado que certificam a produção dos artefatos. No arranjo desses fatores em desenvolvimento na Comunidade é possível reconhecer que os artesãos mais velhos do Mumbuca expõem regularmente uma “afirmação de si” (ANDACHT, 2004) em correspondência com seu ofício artesanal (o que inclui o território, o Capim Dourado e os bens produzidos), conformando um modelo identitário que reforça e confirma seu pertencimento comunitário (o que inclui a trajetória histórica e os traços contemporâneos de quilombolas). Esse arranjo se projeta em um tipo ideal de trabalho relacionado a valores, na Comunidade e se contrapõe, nas narrativas dos mesmos, aos arranjos de trabalho relacionado a fins que reconhecem no ofício artesanal desvirtuado, em outras localidades.

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4. AS FORMAS DE VINCULAÇÃO DOS ATORES, DE COLETIVIZAÇÃO E DE DISTRIBUIÇÃO DA PRODUÇÃO Os atores (artesãos) estão organizados na Associação, mas os vínculos familiares produzem “pesos” diferenciados nas decisões da mesma. Soma-se a isso o fato de que os jovens podem aprender o ofício artesanal (e são estimulados a isso) e auxiliar na produção familiar, mas são impedidos de se associar e, assim, de participar nas decisões da Associação. Os argumentos dos mais velhos para esse impedimento referem-se à imaturidade dos jovens e à tendência que apresentam para querer mudar os procedimentos de trabalho. Porém, essa tensão permanece implícita no vínculo dos jovens e projeta preocupações nos mais velhos sobre o futuro da atividade e da comunidade. Em conversa com sêo Juraci, este nos expôs que a estratégia adotada pelas lideranças da comunidade é inserir os jovens primeiro no ofício, para que aprendam a dar valor ao mesmo, e depois, permitir a inserção na Associação e nas decisões, “para dar continuidade à tradição da comunidade”. A produção é realizada por indivíduos, ou grupos familiares, mas não há segmentação do trabalho. O que ocorre e é verificável pela exposição dos artefatos, é uma regularidade na reprodução da técnica (maior ou menor refinamento técnico) e nos artefatos (produtos), entre os artesãos de uma mesma família. A coletivização da produção não se manifesta, na Comunidade. O que ocorre é a disseminação de um princípio de reciprocidade na coleta do Capim, que é ritualizado em um período mais intenso de atividades coletivas (a realização da Festa da Colheita é um exemplo) e na distribuição de demandas, por ocasiões em que ocorrem grandes encomendas de artefatos. Já a distribuição de recursos é realizada primeiro comunitariamente e, quando necessário, para atender alguma demanda familiar. No primeiro caso, a percentagem na venda dos produtos que cada artesão contribui para a Associação forma um fundo que é gerido para atender as prioridades definidas coletivamente. No segundo caso, o fundo pode ser utilizado para atender demandas ocasionais de famílias, em situações não especificadas. 5. A INCURSÃO NO JALAPÃO E NA COMUNIDADE MUMBUCA A viagem ao Tocantins compreendeu três momentos, entre 15 e 20/09/2015: o primeiro foi o reconhecimento da disseminação dos artefatos de Capim Dourado na cidade de Palmas e em suas regiões contíguas; o segundo foi o reconhecimento da região onde se situa a Comunidade do Mumbuca, no município de Mateiros; o terceiro foi a visita à Comunidade do Mumbuca, durante a realização da VII Festa da Colheita do Capim Dourado6. A viagem a Mateiros e Mumbuca foi realizada em parceria com o PPG em Ciências do Ambiente, da UFT, na companhia do Prof. Dr. Heber Rogério Gracio, e a Secretaria de Estado da Cultura do Tocantins, na companhia da técnica Gilceia Medeiros.

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Nos dois primeiros momentos, produzimos imagens em vídeos e fotos: da estrada, de paisagens características do bioma do cerrado e de aspectos das cidades por onde passamos, com destaque para Mateiros. No terceiro momento, produzimos imagens em vídeos e fotos da Comunidade do Mumbuca, com destaque para a “Roda de Conversa sobre o Selo de Origem do Capim Dourado” e as discussões que estavam em pauta nesse encontro, além de registros sobre agenciamentos turísticos e culturais operados por alguns moradores da região. O primeiro momento possibilitou perceber a referência dos artefatos de Capim Dourado como traço central do artesanato tocantinense, em correspondência com a região do Jalapão. Há vários locais de venda na cidade de Palmas, com destaque para algumas lojas de artesanato, nas avenidas centrais da cidade. Um deslocamento até a cidade de Taquaruçú, a 35 km de Palmas, permitiu constatar que essa disseminação está fortemente associada ao desenvolvimento dos agenciamentos turísticos e culturais, na região. Na pequena cidade de Taquaruçú, onde se expande um modelo de empreendimento turístico ambiental e cultural, com forte presença do SEBRAE, reconhecemos três estabelecimentos de venda de artesanato, com artefatos produzidos com Capim Dourado. Na praça central da cidade, onde se localiza a Casa da Cultura do município (Mutum), um cartaz na parede anunciava uma oficina de produção de artesanato com Capim Dourado, para jovens. Seguindo alguns quilômetros além de Taquaruçú, por uma estrada asfaltada, chegamos à entrada da Cachoeira da Roncadeira, onde se localiza uma casa que abriga o Ponto de Cultura Casa de Caboclo e a sede da ONG de Educação Ambiental Instituto Semeadores das Artes. Nessa sede, em uma mesa, estavam expostos vários artefatos artesanais de Capim Dourado para venda. Em conversa com um jovem da ONG que estava na sede, ele nos informou que os artefatos foram produzidos no Jalapão, sem saber de qual cidade eles vieram. O segundo momento refere-se às viagens de ida e retorno a Mateiros, na qual passamos por três cidades: Aparecida do Rio Negro, Novo Acordo e São Félix. Nas três, percebemos pontos de venda de artefatos de Capim Dourado, com destaque para um estabelecimento na estrada, próximo de São Félix, e três lojas, uma em Novo Acordo e duas em São Félix. O terceiro momento refere-se à estadia em Mateiros e no Mumbuca. Nesse contexto, priorizamos dois roteiros: visitas a dois fervedouros7 da localidade e à Cachoeira do Formiga, para conhecer os empreendimentos que se formavam em torno dos mesmos, e à Comunidade Mumbuca, no dia de abertura oficial da Festa da Colheita do Capim Dourado. Fervedouro é o nome dado a um fenômeno natural da região do Jalapão, no qual uma fonte de água subterrânea se eleva até a superfície, formando pequenos lagos (o menor tinha em torno de 7 metros de diâmetro e o maior em torno de 15 metros) com fundo geralmente raso, arenoso e claro. O fenômeno se complementa com constantes aberturas que se formam na base arenosa do lago para canais profundos, mas com efeitos de correntes ascendentes da água, impedindo que as pessoas afundem. Essas aberturas e correntes produzem constantes movimentos da areia na base dos lagos, gerando formas concêntricas de movimentação da água em efeitos visuais diversos.

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Os fervedouros atraem turistas e as movimentações destes incentivaram alguns moradores e proprietários de terras onde o fenômeno ocorre a investirem em empreendimentos de infraestrutura turística. Nos dois fervedouros visitados (e depois, em um terceiro, visitado nos arredores de São Felix, quando voltamos) esses empreendimentos estavam funcionando, em arranjos de galpões ou ranchos construídos de adobe, em contiguidade às residências dos indivíduos, com um paisagismo de espécies nativas (Babaçu e Miriti, geralmente) que se estendia entre os mesmos e os fervedouros. Os galpões e ranchos possuíam mesas e bancos para servir comida (sob encomenda) e redes penduradas nos pilares de madeira que os sustentavam, para descanso dos visitantes. Os fervedouros visitados localizam-se em estradas que levam à comunidade do Mumbuca, formando referenciais de um circuito turístico em desenvolvimento, na região. Embora esses empreendimentos ainda sejam recentes e estejam em fase de construção, é possível constatar que os mesmos se inserem em redes de difusão de roteiros turísticos, como ficou evidenciado por um totem de adesivos de grupos turísticos, no centro do rancho de sêo Martins e família. As características desses empreendimentos se repetem no entorno da Cachoeira do Formiga. E aqui, tanto quanto nos empreendimentos anteriores, há que se destacar que é cobrada uma “taxa de permanência” aos visitantes. A incursão na comunidade do Mumbuca ocorreu no dia 18/9. Nessa atividade, percorremos toda a comunidade, registrando imagens e alguns depoimentos de moradores, acerca da vida no local, do ofício e da produção com Capim Dourado. O foco desta incursão foi o registro em vídeo da Roda de Conversa sobre o Selo de Origem do Capim Dourado. A roda de conversa estava integrada na programação da Festa e ocorreu no Galpão comunitário. Desde as primeiras tentativas de agrupar as pessoas para a atividade já se notava uma falta de motivação das lideranças locais para participar, que chegavam e saíam do local alternadamente. Após meia hora de tentativas, Ângela e Regina, jovens lideranças locais, conseguiram convencer as lideranças da Associação a juntarem-se para iniciar a conversa. A atividade iniciou com uma apresentação dos participantes. Estavam presentes lideranças da Associação e da Comunidade, representantes das Secretarias de Estado da Cultura, do Turismo e Desenvolvimento e da Ação Social (a própria Secretária de Estado da Ação Social chegou, durante a atividade, e ficou até o final), pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins e alunos, agentes culturais locais e alguns jovens que visitavam a comunidade. Após a apresentação, Gilcéia Medeiros, técnica da Secretaria de Estado da Cultura, fez uma exposição sobre o desenvolvimento dos trabalhos para a produção e implementação do Selo de Origem do

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Capim Dourado, que resulta de estudo conjunto da Secretaria com a Universidade Federal do Tocantins8 (exposição gravada em vídeo). A sua exposição descreveu a origem da iniciativa, com o SEBRAE e a Fundação Naturatins, passando por um período de produção e distribuição do Selo que, após questionado por vários atores da região, foi interrompido. Os Selos impressos sumiram. Esse processo teria recomeçado recentemente, por convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Cultura e a Universidade Federal do Tocantins. Foi formado um grupo de trabalho que visitou comunidades e Associações de produtores do Jalapão, e apresentou um estudo de produção gráfica do Selo de Origem do Capim Dourado (exposto na atividade) e dos procedimentos de sua atribuição e distribuição, que implicavam algumas mudanças na produção e na circulação dos artefatos produzidos com o Capim, para assegurar sua certificação de qualidade. Antes de encerrar a exposição de Gilcéia, já iniciaram os questionamentos sobre a pertinência do Selo pelas lideranças da Comunidade, que se alternavam entre perguntas sobre a origem da iniciativa, a sua serventia para a Comunidade, as mudanças que ele implicava nos processos de trabalho artesanais pela imposição de um padrão de qualidade definido por atores exógenos à comunidade, o reconhecimento da autenticidade e da originalidade do ofício desenvolvido pela Comunidade, a extensão da indicação geográfica ou regional que o Selo cobria, se ele implicava na criação de dispositivos institucionais de fiscalização da colheita do Capim e da produção dos artefatos, entre outras. A insatisfação das lideranças com as explicações era visível, ora expondo expressões faciais ou verbais de ausência de entendimento acerca de alguma exposição dos propósitos que justificavam o Selo, ora formando rodas de conversa paralelas para discutir algum ponto questionável da exposição. Entre essas manifestações, algumas lideranças expunham depoimentos memorialistas sobre a origem da Comunidade e do ofício com o Capim Dourado, reivindicando recursivamente o reconhecimento da tradição (autenticidade e originalidade) deste último, e recorrendo à legitimidade de lideranças cujas biografias atestariam tal reconhecimento. Eram evocados os nomes e as trajetórias de matriarcas como dona Miúda, dona Laurentina, Doutora e dona Santinha, geralmente associadas a domínios dos modos de saber e de fazer relacionados com o Capim Dourado. Em abril de 2015, a Secretária de Estado da Cultura do Tocantins (SECULT) e a Universidade Federal do Tocantins (UFT) assinaram um termo de Cooperação Técnica, visando o fortalecimento da Associação dos Artesãos em Capim Dourado da Região do Jalapão (Areja). O ponto central dessa cooperação é a elaboração de um Selo de Indicação Geográfica (IG) a ser utilizado pelos artesãos da região, valorizando os produtos lá produzidos, de forma que sejam reconhecidos em mercados nacionais e internacionais. A parceria tem por objetivo orientar e capacitar os artesãos no uso do selo, bem como visa apoiar a reestruturação da Areja, que no momento conta com baixa participação dos artesãos, em decorrência de processos de desarticulação e não reconhecimento da legitimidade da diretoria atual por parte das comunidades envolvidas. Esta ação também conta com o apoio do SEBRAE-TO, que disponibilizou um consultor para apoiar a realização das capacitações.

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As perguntas e as exposições das lideranças complementavam-se no questionamento geral da extensão da indicação geográfica coberta e legitimada pela proposta do Selo, que correspondia à região do Jalapão. Nos argumentos expostos pelas lideranças, essa identidade presumida subsumia a tradição da Comunidade e a nivelava com a produção difundida e desvirtuada do ofício em outros municípios do Jalapão. Nesse estágio da discussão, um impasse foi estabelecido na identificação da forma de inserção do ofício e da Comunidade nos processos de certificação dos artefatos. Boa parte desse impasse foi incentivado pelas intervenções do técnico da Secretaria de Estado do Turismo e do Desenvolvimento, que se apresentou como artista também. Em suas intervenções ele alternava questionamentos à colega da Secretaria de Estado da Cultura (gerando constrangimentos à representação governamental de ambos) com aconselhamentos de manutenção da tradição às lideranças da Comunidade. A manutenção do impasse gerou outra intervenção, com a alternativa apresentada pelo Prof. Alex Pizzio da Silva (UFT), de que a comunidade poderia encaminhar um processo de registro de marca dos artefatos produzidos com Capim Dourado, este melhor aceito pelas lideranças ali presentes. A discussão se encaminhou para um encerramento sem decisões, mas com a definição coletiva de se elaborar um documento da Roda de Conversa, que sistematizasse os pontos principais debatidos no encontro e algumas reivindicações consensuais estabelecidas, como a necessidade de criar um grupo de fiscalização da colheita do Capim Dourado, nas veredas da região, de forma a garantir a sustentabilidade do mesmo e da produção das Comunidades e Associações locais9. Após a Roda de Conversa, mantivemos algumas conversas residuais com lideranças da Comunidade e percorremos outras áreas do lugar, para registrar os preparativos e movimentos da festa. Neste momento, chegou o Secretário de Estado da Cultura, que representava o Governador na Cerimônia de Abertura da Festa da Colheita. Antes da cerimônia, um jogo de futebol já havia esvaziado o local, restando ali somente os atores envolvidos nos preparativos de um jantar e de um culto evangélico, que ocorreriam na sequência. O restante da programação envolvia apresentação de danças de grupos indígenas (havia um grupo da etnia Xerente no local), de grupos quilombolas, de cantigas de roda entoadas por dona Santinha, encerrando as atividades às 22 horas, com a apresentação da dupla de violeiros Arnon & Maurício, da Comunidade, em torno de uma “Fogueira do acolhimento, com danças e jogos tradicionais”.

A redação final desse documento encontra-se disponível em www.facebook.com/lapcab. Na sequência da divulgação do documento, uma parceria entre a Secretaria de Estado da Cultura de Tocantins e duas ONGs resultou em três audiências públicas no estado, visando discutir estratégias para a sustentabilidade do Capim Dourado, na região do Jalapão.

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6. ANOTAÇÕES CONCLUSIVAS O processo de certificação da indicação geográfica do Capim Dourado, no Jalapão, expõe alguns condicionamentos que afetam o contexto de produção de artefatos culturais com essa matéria prima e influenciam a trajetória da Comunidade do Mumbuca, e da sua associação de artesãos, na interação com atores e instituições que agenciam as políticas culturais, no estado do Tocantins. Nesse contexto, a mediação da matéria prima torna difusa a negociação da realidade que aí se estabelece, na forma de um embate dos propósitos que fundamentam os projetos dos atores envolvidos. No encalço desse embate, supomos ser apropriado seguir a orientação de Chanquía (1998, p. 9), que se apropria da noção de “contratos de visibilidade”, de Jean-Claude Passeron, para expressar “aquello que guía la recepción de una imagen por parte de un público, proveyendo a los sujetos, atrapados en dichos contratos, de un ver y un decir que marca su recepción de una obra determinada”. A centralidade que o processo de indicação geográfica do Capim Dourado vem assumindo, na região do Jalapão, de um lado descola a imagem dos artefatos culturais de sua origem comunitária e a desloca para uma indicação geográfica mais ampla, legitimando uma cadeia de produtores na região e imprimindo procedimentos para sua certificação; de outro lado, os atores da Comunidade do Mumbuca, ressentidos com esse deslocamento e afetados pelos condicionamentos da certificação em curso, agenciam suas tradições em narrativas e tecnologias patrimoniais que imprimem autenticidade aos artefatos produzidos pela associação de artesãos local. Nesse embate, o Capim Dourado torna-se um bem disputado e apropriado, muitas vezes, por indivíduos despreocupados com sua sustentabilidade ambiental. E isso pode gerar uma situação futura na qual os propósitos dos atores aqui descritos percam importância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDACHT, Fernando. A representação do self na obra de Goffman; sociosemiótica da identidade. In: GASTALDO, Edison (org.). Erving Goffman: desbravador do cotidiano. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2004, p. 125-146. BELAS, Carla Arouca. Capim dourado: costuras e trançados do Jalapão. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2008. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/pdf/CatalogoSAP/cat_sap145.pdf . Acesso em: 24/09/2015. CARVALHO, Sabrina Silva. A construção social do mercado de artesanato com capim dourado: um estudo sobre a atuação institucional. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Palmas: UFT, 2014, 116 f. CASTRO, Eliane; PEREIRA, Luciano. Capim Dourado: trançado e tradição. Palmas: FCT, 2010, 85 p.

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CHANQUÍA, Diana. Lo enunciable y lo visible. México: Conaculta, 1998, 86 p. DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. 2001, 211 p. FREDRYCH, Thelma Valentina de Oliveira. Comunidade Mumbuca: vivendo os entraves e desafios por ter seu território incorporado ao Parque Estadual do Jalapão – TO. Dissertação de Mestrado em Ciências do Ambiente. Palmas: UFT, 2009, 146 f. MARINHO, Thais Alves. Conflitos sociais e desenvolvimento local: a produção artesanal de Capim Dourado. In: Ruscheinsky, Aloísio; Mélo, José Luiz B.; López, Laura C. (orgs). Atores sociais, conflitos ambientais e políticas públicas. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2014, p. 203-222. PIERROT, Alain. Aprendizagem e representação. Os antropólogos e as aprendizagens. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, Ano 21, nº 44, p. 49-80, jul./dez. 2015. SHIMIDT, I. B. Etnobotânica, ecologia populacional e syngonanthus nitens: sempre-viva utilizada para artesanato no Jalapão, Tocantins. Dissertação de Mestrado em Ecologia. Brasília: UNB, 2005, 91 f. SOUSA. A.T. Gênero e Empoderamento: um Estudo a Partir das Associações de Artesanato no Jalapão. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Palmas, UFT, 2012, 104 f. SOUSA, Ruberval R. Tradição, Artesanato de Capim Dourado e Desenvolvimento Local no Povoado do Mumbuca do Jalapão em Mateiros – TO. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Local. Campo Grande: UCDB – Universidade Católica Dom Bosco, 2009, 82 f.

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O MINC E A GESTÃO ANA DE HOLLANDA: MOBILIZAÇÃO E CRISE NA POLITICA E NO CAMPO DA CULTURA Alexandre Barbalho1

RESUMO: O que se propõe nesse artigo é analisar o período da política cultural brasileira que corresponde à gestão de Ana de Hollanda à frente do Ministério da Cultura. O que se defende nesse artigo é que tal gestão configurou-se como um momento de crise. Para a análise, recorrerei às reflexões sobre o Estado feitas por Pierre Bourdieu e à proposta analítica das crises políticas elaborada por Michel Dobry. PALAVRAS-CHAVE: Estado; Ministério da Cultura; Crise Política

Os governos Lula (2003-2010) imprimiram um novo patamar nas relações entre o governo federal e a cultura, ampliando e, principalmente, transformando a atuação do Ministério da Cultura (MinC), sob a gestão dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, sucessivamente. Contrapondose à lógica vigente desde a criação do MinC em 1985, na qual predominou um viés de menor participação do Estado, Gil e Ferreira investiram na institucionalização das políticas culturais. Tal processo se revela na reestruturação do Ministério e do Conselho Nacional de Cultura, na realização das conferências nacionais, estaduais e municipais de cultura, na elaboração do Plano Nacional e na implantação do Sistema Nacional de Cultura, entre outros programas e ações que visam superar a descontinuidade das políticas culturais, transformandoas, minimamente, em políticas de Estado (RUBIM, 2010; 2011). Claro que esse projeto foi alvo de posições contrárias, em especial de agentes culturais atuantes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, principais centros da economia cultural brasileira, que se ressentiam do fato de ter que dividir a atenção e as parcas verbas do setor com agentes oriundos de outras cidades e regiões do país, bem como de outros estratos sociais. Se esse grupo não perdeu de todo o seu poder de barganha e de influência nos rumos das políticas culturais federais, como exemplificam a derrota do governo no que se refere à Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA e pós-doutorado em Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor dos PPGs em Políticas Públicas da UECE e em Comunicação da UFC. Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas de Comunicação e de Cultura. E-mail: alexandrealmeidabarbalho!gmail.com 1

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criação de uma nova agência para o audiovisual (MOREIRA; BEZERRA; ROCHA, 2010) e à postergação da reforma das leis de incentivo (SALGADO; PEDRA; CALDAS, 2010), não chegou, por sua vez, a colocar em xeque o projeto político-cultural da era Lula – projeto este fixado no documento do então candidato nas eleições de 2002, intitulado “A imaginação a serviço do Brasil” (PARTIDO DOS TRABALHADORES, 2002). Talvez, os momentos de embate mais críticos tenham ocorrido no interior do próprio MinC, em um rearranjo das posições políticas próprio à lógica do Estado, como revelam as disputas em torno do Sistema Nacional de Cultura (BARBALHO, 2014). Contudo, o primeiro governo Dilma (2011-2014), ainda que representando uma continuidade do projeto político capitaneado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), trouxe mudanças significativas no que se refere às políticas culturais. Não cedendo à pressão de vários setores, inclusive de seu próprio partido, pela permanência de Juca Ferreira no Ministério, a presidenta nomeou, em janeiro de 2011, a artista Ana de Hollanda como ministra da Cultura. Reconfigurando a composição das forças políticas no interior do MinC, propondo novas pautas, dando continuidade a programas anteriores e enfraquecendo ou mesmo extinguindo outros, Hollanda provocou um forte movimento de oposição, inclusive interna, à sua gestão que terminou por afastá-la do cargo em setembro de 2012. Para Doug McAdam, Sidney Tarrow e Charles Tilly, o confronto politico, que “depende da mobilização, da criação de meios e de capacidades para a interação coletiva”, se inicia quando “as pessoas fazem reivindicações a outras pessoas cujos interesses seriam afetados se elas fossem atendidas” (MCADAM; TARROW; TILLY, 2009, p. 11-12). Ora, o que se observa entre 2011 e 2012 é um acúmulo de mobilizações e confrontos no e em torno do MinC, relativos a interesses distintos e que se estendem para além do campo cultural, envolvendo outros agentes e reverberando fortemente na mídia nacional e nas redes sociais. Diante desse contexto, é possível entender a breve passagem de Hollanda pelo Ministério como uma crise? Uma crise2 pode ser entendida como “momento de ruptura no funcionamento de um sistema” (PASQUINO, 2000, p. 303); ou como “situação-limite, na qual se explicitaria um quadro de particular gravidade” (NOGUEIRA, 2015, p. 216). O que se defende nesse artigo é que a gestão Ana de Hollanda configurou-se como uma situação-limite que resultou em uma ruptura, mas também de continuidade das disputas que vinham desde o início da década. O que se propõe, portanto, é analisar esse período da política cultural brasileira, a partir de seu entendimento como um momento de crise, estabelecendo, ao mesmo tempo, as suas especificidades. Para tanto, recorrerei às reflexões sobre o Estado feitas por Pierre Bourdieu e Do grego krísis, significa “alteração, desequilíbrio repentino; estado de dúvida e incerteza; tensão, conflito” (CUNHA, 2010, p. 190).

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à proposta analítica das crises políticas elaborada por Michel Dobry, sobre as quais discorro a seguir. 1. CAMPO CULTURAL, ESTADO E CRISE POLÍTICA. Para compreender como se dão as disputas em torno das políticas culturais nos governos Lula e Dilma, é preciso levar em consideração não apenas os agentes, seus respectivos interesses e investimentos de capital no campo cultural (BOURDIEU, 1989; 1992), mas também perceber suas inter-relações com o Estado - entendido este como uma espécie de meta-campo, para onde convergem todos os tipos de capital, que por sua vez gera um meta-capital, “un capital qui a la propriété particulière d’execer du pouvoir sur le capital” (BOURDIEU, 2012, p. 311). O Estado, portanto, é “meta”, um poder acima dos outros poderes. O Estado, continua Bourdieu, “fonde l’intégracion logique et l’intégracion morale du monde social et, par là, le consensus fondamental sur le sens du monde social qui est la condition même des conflits à propôs du monde social (BOURDIEU, 2012, p. 15). Ou seja, lugar da integração, o Estado é o fiador dos conflitos sociais, dos dissensos, incluso daqueles de base cultural. Nesse sentido, o Estado não pode ser entendido como um bloco monolítico. Na medida que detém meta-capital, “est un champ à l’intérieur duquel les agentes luttent pour posséder un capital qui donne pouvoir sur les autres champs” (BOURDIEU, 2012, p. 312). O laço entre o campo do poder e o Estado se dá pelo fato dos agentes do primeiro disputarem o controle sobre o segundo, sobre seu meta-capital que permite conservar e reproduzir diferentes tipos de capital. Assim, tal como os outros campos, o Estado se estrutura a partir de oposições e interesses diferentes associados, inclusive, a capitais distintos, para impor o ponto de vista dos pontos de vista, que é o estatal. A relação do campo estatal com o campo cultural, inserido na sociedade civil, se dá por meio das políticas governamentais de cultura, posto que, como defende Bourdieu, entre ambos, campo estatal/campo cultural, ou dito de outra forma, Estado/sociedade civil (mais especificamente intelectuais e artistas, ou seja, os agentes culturais) existe um continuum, “une distribution continue de l’accès aux ressources collectives, publiques, matérielles ou symboliques, auxquelles on associe le nom d’État” (BOURDIEU, 2012, p. 66). O controle de tal distribuição, como toda aquela que se dá no socius, fundamenta e ocasiona lutas permanentes no interior dos campos estatal e cultural. O Estado, portanto, se apresenta como “une sorte de réserve de ressources symboliques, de capital symbolique, qui est à la fois un instrument pour un certain type d’agents et l’enjeu de luttes entre ces agentes” (BOURDIEU, 2012, p. 110); como um processo de concentração de recursos e de disputa por monopolizar esses recursos. Um momento de crise política, portanto, é

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aquele de acirramento dessas lutas em torno desse poder simbólico, onde cada agente, individual e/ou coletivo, reivindica para si o poder de nomeação, que é próprio ao Estado3. Por sua vez, pensando na especificidade do objeto de análise, ou seja, a crise da gestão da ministra Ana de Hollanda e de suas políticas, faz-se necessário levar em consideração exatamente esse dado: é preciso observar a estrutura de espaço onde se desenvolveram tais políticas; suas particularidades, as propriedades de seus agentes, as interseções dos campos nas quais se constroem (campo estatal, campo cultural, mas também campo midiático, como irei propor adiante). Para dar conta metodologicamente desse objeto, e levando em consideração a compreensão de Estado exposta acima, recorro à análise das crises políticas proposta por Michel Dobry. Dobry propõe uma abordagem próxima àquela da “mobilização” ou da “gestão de recursos” e na inserção no processo analítico da atividade tática dos agentes protagonistas. Tal perspectiva é acionada para que possa defender sua hipótese de continuidade, no sentido de que as molas que movem as crises políticas não se radicam apenas, nem principalmente, nos desequilíbrios, mas nas “mobilizações que esses protagonistas realizam no curso das competições e dos enfrentamentos que constituem a trama das relações políticas” (DOBRY, 2014, p. 26-27). Nesse sentido, o foco analítico sobre a crise recairá sobre o que está “em jogo” e nos “deferimentos das jogadas” que ocorrem. Em relação às mobilizações, interessa perceber as relações com os contextos estruturais, estendidos estes como variáveis, exatamente porque sensíveis às mobilizações. O que implica compreender os diversos tipos de conjuntura, incluindo as de crise, como estados particulares do sistema político analisado. Por mobilização deve-se entender a inserção de recursos (capitais) em uma jogada (linha de ação), entendendo que tais recursos não são “coisas em si”, mas relacionais, ou seja, inseridos em contextos sociais nos quais operam, portanto não podem ser facilmente transferidos de um lugar social para outro. Com isso, a atividade tática dos agentes dos conflitos assume posição central na análise. O que se pretende ao analisar as jogadas é identificar como os atos (individuais ou coletivos) afetam tanto o comportamento dos outros agentes protagonistas, quanto a relação entre estes e o seu ambiente, ou a ambos, simultaneamente, posto que “a modificação dessa situação existencial se acompanha quase sempre de uma transformação das expectativas e das representações que os diferentes atores [agentes] têm a respeito da situação (DOBRY, 2014, p. 32). É importante, para essa perspectiva, entender que existe uma quantidade de recursos que não são utilizados ou colocados em jogo, recursos latentes ou em potencial, e atentar para Para Bourdieu (2012), em termos epistemológicos, ou seja, da compreensão do funcionamento do Estado, os momentos de crises são momentos propícios, como os de gênese, pois as imposições simbólicas se tornam evidentes. No caso dos segundos, porque ainda estão se constituindo, no caso dos primeiros, porque são reveladas pelos heterodoxos que as colocam em xeque.

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os “modos de fazer-valer” tais recursos nas jogadas ou atividades táticas postas nos jogos de interesses. Outra recomendação metodológica é fugir de uma visão demasiadamente teleológica a orientar tais jogadas, pois, como observa Dobry (2014), há interações entre elas, típicas da dinâmica própria do conflito, que abalam de diversas formas os motivos e fins primeiros dos agentes envolvidos na crise. Há, portanto, uma “evolução” do jogo ou do conflito, o que explica, muitas vezes, a perda de um centro decisor de determinada mobilização, como veremos adiante. Dobry (2014) adverte sobre a necessidade de não recair no erro de ver na crise apenas a oposição entre os “agentes de controle social” e as “mobilizações”, sem perceber também as similitudes entre os dois, ainda que reconhecendo as diferenças no capital de recursos e ações de ambos. Isso é fundamental por permitir outra compreensão, a de que os movimentos de mobilização não emergem necessariamente nas zonas pouco estruturadas do socius, mas podem surgir nas próprias agências de controle. As mobilizações não podem ser entendidas como necessariamente centralizadas, onde uma “direção” mobiliza os recursos com o propósito de atender certos fins coletivos. Se de fato isso ocorre, tal concepção não pode inviabilizar o entendimento do caráter muitas vezes disperso dos processos mobilizadores. Nesses processos, vários agentes, individual e coletivamente, aderem ao jogo e trazem consigo seus recursos e interesses, de modo que, mesmo participando de uma mesma jogada, há uma diversidade de pautas, objetivos e estratégias mobilizadas. É possível, então, estabelecer os elementos centrais da abordagem proposta por Dobry. Primeiro, uma crise deve ser entendida “a um só tempo” como mobilizações e transformações de estado dos sistemas sociais. O que leva em consideração o fato de que as instituições são sensíveis às jogadas e às atividades táticas dos agentes das crises. Mas, por sua vez, trata-se também de analisar as “lógicas de situação que, em tais contextos, tendem a se impor a esses atores e tendem a estruturar suas percepções, seus cálculos e seus comportamentos” (DOBRY, 2014, p. 46). A partir dessa premissa, Dobry fixa os elementos de sua terminologia. Por “sistemas sociais complexos”, entende-se aqueles “diferenciados em esferas sociais autônomas, fortemente institucionalizadas e dotadas de lógicas sociais específicas” (DOBRY, 2014, p. 46), definição de esfera social muito próxima daquela de campo em Bourdieu. Por “setores”, entende-se as “esferas sociais autônomas”. Por “mobilizações multissetoriais”, aquelas que se localizam ao mesmo tempo em várias esferas e de “restritas” aquelas mobilizações que atinge apenas uma esfera. E por “conjunturas políticas fluidas”, aquelas que correspondem a “transformações de estado dos sistemas complexos quando esses sistemas estão submetidos às mobilizações multissetoriais” (DOBRY, 2014, p. 47). Para dar conta empiricamente do objeto de análise, ou seja, a crise política da gestão Ana de Hollanda, a partir do constructo teórico-metodológico exposto acima, irei estabelecer os

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agentes dessa conjuntura política fluida, bem como seus recursos, jogadas e mobilizações, por meio das informações proporcionadas pelo campo midiático e pelo material divulgado nas redes sociais. Essa escolha se justifica pela forte relação entre os dois campos, o político e o midiático, sendo este uma espécie de mediador entre os campos sociais (RODRIGUES, 1990)4. 2. DO CREATIVE COMMONS À “CARTA DOS INTELECTUAIS”: A DINÂMICA DA CRISE Antes mesmo de iniciar sua gestão, Ana de Hollanda provocou polêmicas na imprensa por defender o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) e se posicionar contrária às mudanças sobre as leis autorais encaminhadas pelo MinC, sinalizando que elas deveriam ser revistas. Na sequência desse episódio, já como ministra, um de seus primeiros atos foi retirar o site do Ministério da licença Creative Commons (CC). Com esses atos, de pouco alcance prático, mas de forte simbologia, pois revelava seu poder de nomeação5, Hollanda se indispôs com os ativistas que tinham se mobilizado nas gestões anteriores e pautado a política no que diz respeito às culturas digitais e livres6. A jornalista Tatiana Dias situa os dois lados em disputa, copyleft versus copyright, a partir de posições, interesses e capitais distintos: de um lado, os “ativistas da internet, blogueiros, bibliotecas digitais e artistas independentes”, do outro, as “associações de proteção aos direitos autorais e alguns artistas, que criticam o MinC [na gestões Gil e Juca] de ‘estatização de um direito privado e de não tê-los ouvido na elaboração da reforma” 7. Para os ativistas, a postura da nova ministra não apenas sinalizava a sua perspectiva conservadora, como ia contra o incentivo ao desenvolvimento de “modelos solidários de licenciamento de conteúdos culturais”, previsto nas metas do Plano Nacional de Cultura, instituído em dezembro de 20108. O que se percebe é que a gestão Hollanda é mais um momento da disputa entre esses dois lados do campo cultural, que ocorre, no mínimo, desde o início do governo Lula, e cujos agentes vinham competindo e se enfrentando, antes de chegar a esse momento crítico.

Ao elaborar um conjunto de subsídios para uma teoria das crises políticas, António Mendes (2005) destaca como fundamental o entrecruzamento entre esses dois campos (o político e o midiático) e, portanto, a relevância da cobertura midiática dos fenômenos políticos disruptivos. 5 Dobry observa que a mobilização coincidirá sempre com uma jogada, uma atividade tática por partes dos agentes envolvidos na crise, ainda que tal jogada possa ser apenas simbólica, “no sentido de que certos atos podem simbolizar outros atos, por exemplo, mais ‘duros’” (DOBRY, 2014, p. 33). 6 A esse respeito, ver a coletânea de entrevistas Cultura digital.br, publicada com apoio do MinC e que tem entre seus entrevistados vários agentes ligados ao Ministério, inclusive o ministro Juca Ferreira (SAVAZONI; COHN, 2009). 7 Disponível em http://blogs.estadao.com.br/link/copyright-a-batalha/. Acesso: 02.out.2015. 8 Ver http://blogs.estadao.com.br/link/minc-na-contramao/. Acesso: 02.out.2015. 4

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Nesse sentido, a jogada seguinte de Hollanda foi demitir Marcos Souza, então coordenador-geral de direitos autorais do MinC e defensor da flexibilização destes direitos, e nomear Marcia Regina Barbosa, ligada ao Conselho Nacional de Direito Autoral e à Hidelbrando Pontes, advogado do ECAD e um dos interlocutores da ministra. Em declarações à imprensa, Hollanda reafirmou sua posição de rever o texto da Reforma da Lei de Direitos Autorais, declarando que a “democratização da cultura” não poderia “passar por cima do direito autoral”. Tal postura foi apoiada pelas entidades defensoras destes direitos, como a Associação Brasileira de Música e Artes. Por outro lado, a ministra sinalizou o diálogo com os ativistas do copyleft, propondo se reunir com “consultores e artistas” para chegar a uma “proposta que atenda à demanda da área criativa, que é a que mais se mostrou insatisfeita com as mudanças apresentadas”9. Hollanda, como se observa, inseria os recursos de sey metacapital estatal para tentar mobilizar ambos os grupos de agentes. No entanto, como visto, tais recursos são relacionados a contextos sociais e não podem ser facilmente transferidos de um lugar para outro. Assim, a reação contrária dos ativistas foi imediata e se intensificou a campanha contra a posição da ministra, inclusive dentro do Ministério, ou, nas palavras de Dobry, na própria “agência de controle”, com a criação no Twitter das hashtags #foraana e #foraanadehollanda. Os participantes do movimento Transparência HackDay, por sua vez, criaram a página “Dá licença, MinC?”, listando os sites governamentais que adotavam as licenças de uso livre. As referidas hashtags foram criadas em fevereiro. Dois meses depois, segundo Kelly Prudencio e Weslley Leite (2013), o seu número de usuários aumentou 223%. Em março, surgiu o blog Fora Ana de Hollanda que se dizia sem filiação partidária e sem ligação com coletivos organizados, inclusive com aqueles ligados às gestões de Gil e Juca. Contrário não à “pessoa” Ana de Holanda, e sim ao “conjunto das diretrizes e ações de sua gestão” que se configurava como uma “política desastrosa e conservadora”, o blog não se assumia como “movimento organizado”. Mas é possível entendê-lo como uma esfera civil digital (ALEXANDER, 2008; GOMES, 2011; MAIA, 2011), que agrega e difunde diversas críticas e reflexões sobre a política cultural vigente. Na avaliação do Fora Ana de Hollanda, a omissão de Dilma “com relação ao retrocesso no #Minc seria (...) uma traição do projeto de governo eleito democraticamente”10. Em abril foi criado o blog Mobiliza Cultura, com sua hashtag #mobilizacultura, que, ao contrário da campanha implementada pelo Fora Ana de Hollanda, se assumiu como uma organização reunindo instituições e grupos formais e informais (pontos de cultura, coletivos, fóruns etc) para atuação tanto virtual, quanto presencial. O Mobiliza Cultura pode ser 9 10

Disponível em http://blogs.estadao.com.br/link/mudancas-no-ministerio-da-cultura/. Acesso: 02.out.2015. Disponívl em http://foraanadehollanda.blogspot.com.br/. Acesso em 28.out.2015.

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compreendido como uma “mobilização na esfera pública”, um dos três níveis identificados por Ilse Scherer-Warren de organização da sociedade civil (de seus interesses e valores de cidadania) “para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais, manifestações simbólicas e pressões políticas” (SCHERER-WARREN, 2006, p. 110). Este tipo de mobilizações, mais abrangentes e conjunturais e menos institucionalizadas, resulta da articulação dos participantes de movimentos sociais, ONGs, redes etc e a realização de manifestações objetivando a visibilidade midiática e os “efeitos simbólicos para os próprios manifestantes (no sentido político-pedagógico) e para a sociedade em geral, como uma forma de pressão política das mais expressivas no espaço público contemporâneo” (SCHERERWARREN, 2006, p. 112). Na análise de Prudencio e Leite, a partir do Mobiliza Cultura, a mobilização anterior, voltada “principalmente para a queixa de rompimento da ação cultura digital e da reforma dos direitos autorais sofre novo processo de enquadramento, para se adaptar a esse novo momento, ganhar mais adesão e expansão” (PRUDENCIO; LEITE, 2013, p. 451). O movimento elaborou uma “Carta Aberta à Presidenta Dilma” que obteve grande repercussão, pois amplamente divulgada na grande mídia, bem como nas redes sociais. O documento reivindicava a continuidade das políticas culturais implementadas nos governos Lula, o que significava maior participação da sociedade civil na formulação das políticas, especialmente a reforma da Lei dos Direitos Culturais; efetivação do Plano Nacional de Cultura; retorno das políticas voltadas à cultura digital; e fortalecimento do Programa Cultura Viva e, consequentemente, dos Pontos de Cultura, uma das principais ações das gestões Gil e Juca11. Ou seja, a agenda que vinha mobilizando os agentes desde o início do governo. Para Prudencio e Leite, a campanha contra a gestão Ana de Hollanda se configurou como um “confronto politico construído a partir da oportunidade aberta por uma série de acontecimentos” (PRUDENCIO; LEITE, 2013, p. 454), como os listados acima, bem como outros que ocorreram na sequência. As autoras destacam ainda a importância da formação de um capital comunicacional que foi resignificando o repertório de ação dos agentes envolvidos na mobilização. Assim, ao quadro interpretativo inicial, de descontinuidade e incompetência na gestão da política cultural, soma-se outro, o da “conduta incompatível”, que agrega mais um elemento à crise política, a do escândalo. Outro desgaste sofrido pela gestão Ana de Hollanda ainda no início de seu mandato foi com o sociólogo e professor da UERJ Emir Sader, incialmente indicado para a presidência da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em entrevista à Folha de São Paulo, Sader, antes mesmo de assumir, chamou a ministra de “meio autista” por não reagir ao contexto político desfavorável Sobre o papel relevante do Programa Cultura Viva e mais especificamente dos Pontos de Cultura no âmbito da política cultural nas gestões Gil e Juca ver DOMINGUES (2010).

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ao MinC que incluía cortes no orçamento, paralisação dos Pontos de Cultura, e as já citadas manifestações contra sua gestão12. O sociólogo acabou perdendo a nomeação, sendo substituído pelo cientista político Wanderley dos Santos. A relação problemática com os Pontos de Cultura também foi um dos momentos fortes da crise, como se observa na reverberação dessa temática nas mensagens postadas no blog Fora Ana de Hollanda. A gestão do Programa Cultura Viva, que engloba a ação Pontos de Cultura, ficou sob responsabilidade da secretária de Diversidade e Cidadania, Marta Porto. Ainda que compreendendo a importância do Programa, Porto avaliava que ele sofria das “dores do crescimento”, pois não contava com recursos humanos, tanto para a sua gestão, quanto para o seu acompanhamento, o que tinha causado problemas com órgãos de controle do Estado. Além disso, a secretária defendia a renovação dos projetos e a inclusão de outras iniciativas13. Contudo, talvez por estarem inseridas em um contexto turbulento, as declarações e primeiras medidas tomadas por Porto no sentido de diminuir o ritmo do Programa foram vistas com desconfiança pela rede dos Pontos de Cultura provocando forte oposição a essa nova orientação. A secretária acabou saindo do MinC em setembro mas, em entrevista concedida alguns meses depois, ainda durante a gestão de Hollanda, credita sua saída a diferenças no interior do Ministério, no que ela denominou de “falta de compatibilidade política e de confiança mútua”. Segundo a ex-secretária, suas posições e compromissos públicos não se alinhavam com as posições tomadas pela gestão em relação a vários temas que tensionaram o campo políticocultural. Não havia, na sua avaliação, vontade política em relação à sua secretaria, pois a aposta era na recém-criada Secretaria de Economia Criativa. Com esse investimento, o MinC perdeu a “chance de propor uma política de cultura sintonizada com os principais desafios da sociedade brasileira para além da economia: a democracia e todos os valores culturais que ela exige para ser mais do que um regime político”. A aposta que Porto fez no interior do MinC na cidadania e na diversidade foi uma “tese derrotada” e perder, como reconhece, fez “parte do jogo”14. Em maio de 2011, a ministra tentou romper seu isolamento e se articular com diversos agentes do campo cultural, em especial com aqueles atuantes em São Paulo, bem como com os parlamentares da base governamental. No mesmo período, a presidenta Dilma nomeou Morgana Eneile, então secretária nacional de Cultura do PT, assessora de Hollanda, como forma de ajudar nas articulações políticas. Mas essa nova dupla jogada foi vista com ceticismo pela imprensa e pelos ativistas culturais. Segundo avaliou Jotabê Medeiros, colunista de O Estado de São Paulo, Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2011/02/881609-ana-de-hollanda-e-meio-autista-diz-emir-sader.shtml. Acesso em 08.dez.2015 13 Disponível em http://www.culturaemercado.com.br/site/entrevistas/marta-porto-cultura-viva-e-um-dos-grandes-legados-que-recebemos/. Acesso em 08.dez.2015. 14 Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/marta-porto-cultura-ainda-nao-se-tornou-prioridade-4294248. Acesso em 08.dez.2015. 12

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a situação crítica da gestão Ana de Hollanda era “incontornável”, como sinalizaria o movimento Mobiliza Brasil que reuniu 2,5 mil adesões15. Outros eventos alimentaram a crise ao longo dos anos de 2011 e 2012, pautando a “trajetória turbulenta” da ministra Hollanda, como qualificou o site de notícias da UOL16, que não se restringiram à lógica da política cultural, mas atingiram a lisura da ministra: a aprovação de um projeto de R$ 1,3 milhão para criar um blog de Maria Bethânia, amiga de Hollanda; pagamento de diárias indevidas à ministra em fins de semana no Rio de Janeiro; captação de R$ 1,9 milhão para a primeira turnê da cantora Bebel Gilberto, sua sobrinha; recebimento de brindes da escola de samba Império Serrano após o MinC zerar a inadimplência da agremiação carioca e desbloquear o CNPJ da escola; vazamento na imprensa de sua carta enviada à ministra do Planejamento Miriam Belchior reclamando da falta de recursos para a pasta. Em março de 2012, um grupo de intelectuais, alguns ligados ao PT, lança uma carta onde cobra da presidenta Dilma um Ministério à altura dos desafios e programas apresentados nas gestões de Gil e Juca, posto que estaria ocorrendo uma “decadência do protagonismo” do MinC17. Para os signatários, o primeiro ano de Hollanda no MinC, incapaz de “gerar consensos mínimos”, foi marcado por “hesitações, conflitos e por mudanças de rumo”. Assim, a nova gestão frustrou os “inúmeros grupos envolvidos no processo de emancipação cultural” iniciado em 2003 e que resultou no “acolhimento entusiástico de uma vasta gama de manifestações antropológicas, tradicionais como modernas, regionais como nacionais, locais como globais, deu direito de cidadania e densidade politica a vários conceitos novos” 18. Além da condução equivocada da política cultural, a ministra e sua equipe, segundo avalia o documento, seriam inábeis na sua relação com os agentes culturais, despreparadas para o embate e o diálogo, vistos como algo pessoal e não como um processo inerente ao exercício da democracia. Para esses intelectuais, houve perda de visibilidade e de nitidez na política cultural, tendo preponderado a pauta negativa alimentada por meio do noticiário, levando à constatação, por parte da opinião pública, da falta de comprometimento com as conquistas recentes. O resultado teria sido um “perigoso isolamento” do MinC. Diante desse contexto, o documento reivindica que a presidenta, detentora do poder de nomear seus ministros e com um governo com alto índice de aprovação, não se submeta aos jogos de acomodação partidária e retome o “projeto de país” traçado anteriormente pelo MinC. Disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bastidores-uma-ministra-isolada-e-em-busca-de-apoio-na-classe-cultural,716244. Acesso em 05.ago.2015. 16 Disponível em http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2012/09/11/apos-serie-de-desgastes-ana-de-hollanda-deixa-ministerio-da-cultura.htm . Acesso em 05.agosto.2015 17 Assinam o documento Marilena Chauí, Eduardo Viveiros de Castro, Suely Rolnik, Laymert Garcia dos Santos, Gabriel Cohn, Manuela Carneiro da Cunha e Moacir dos Anjos. 18 Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,despreparo-e-dolorosamente-evidente-dizem-intelectuais-sobre-gestao-do-minc,850226#. Acesso em 28.10.2015. 15

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É premente, portanto, que ela indique “um ministro da cultura à altura do que requer este cargo, em vista da importância do Brasil no cenário mundial contemporâneo”. O seu perfil é o de uma “liderança suprapartidária e democrática”, capaz de “garantir um pulso firme e uma capacidade de gestão dinâmica”. O documento encerra afirmando a responsabilidade não apenas dos autores do documento, mas de os agentes culturais do país, em apoiar o “futuro portador desta inteligência de qualidade cultural” 19. O capital político e cultural dos que assinam a carta, bem como as argumentações expostas qualificam o documento como uma importante jogada da oposição e intensificam o sentimento de crise. Ao mesmo tempo, apontam para a sua solução: a nomeação de um novo ministro. O que de fato ocorreria sete meses depois com a nomeação da senadora Marta Suplicy20. 3. CONCLUSÃO Segundo Pasquino (2000), é, em geral, o nível da relação entre governo e sociedade o elemento determinante da crise do primeiro, o que resulta da sua falta de representatividade e de sua legitimidade, posto que é rejeitado por fortes setores sociais; e da ineficácia em responder a esse contexto de perda, levando ao imobilismo. Como se observou, a gestão Ana de Hollanda gerou um déficit de representatividade e legitimidade, ao contrário do que ocorreu nas gestões anteriores, e não teve a capacidade de dar respostas eficazes, gerando uma insatisfação que se generalizou, configurando-se, portanto, como uma “crise governamental” Quando falo em “crise governamental” certamente não estou me referindo ao governo como um todo, mas a um de seus subcampos, no caso, o da cultura. Mas, ainda que restrita a um setor, foi sentida em outros subcampos do Estado e gerada tanto por fatores internos, quanto pela interação do Ministério com a sociedade. Os primeiros se referem à heterogeneidade de posições no interior do governo Dilma e, mais especificamente, no MinC na composição da crise. No caso da interação, aconteceu que Hollanda não conseguiu dar um retorno satisfatório aos inúmeros questionamentos feitos pelos agentes politico-culturais e midiáticos. O que resultou em uma crise multissetorial inserida em uma conjuntura política fluida. Em outras palavras, ainda que detentora de meta-capital e do poder de nomeação, a ministra não soube avaliar o que estava em jogo e as disputas internas ao Estado e ao campo cultural e suas relações daí decorrentes. Dessa forma, não pôde exercer o papel de mediadora Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,despreparo-e-dolorosamente-evidente-dizem-intelectuais-sobre-gestao-do-minc,850226#. Acesso em 28.10.2015. 20 Este último movimento no que diz respeito ao processo crítico vivenciado pelo MinC procurou também solucionar outros embates, estes no plano da política eleitoral. Segundo noticia a imprensa, a ida da senadora para o Ministério ocorreria em troca de seu apoio à candidatura do PT do ex-ministro de Educação do governo Dilma, Fernando Haddad, para a cidade de São Paulo. Isso porque Suplicy também postulou ocupar esse espaço e perdeu a disputa interna ao partido. A esse respeito ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/2012/09/1151790-marta-nega-que-ministerio-seja-compensacao-por-ajuda-a-haddad.shtml 19

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dos dissensos. Pelo contrário, suas jogadas só fizeram acirrar os conflitos e as mobilizações de oposição, muitas vezes tornando adversários certos agentes que, em um primeiro momento, não possuíam tal posição. A “carta dos intelectuais”, nesse sentido, foi decisiva, pois assinada por agentes que, se não faziam parte do MinC, eram reconhecidos pelo núcleo central do poder estatal, a exemplo de Marilena Chaui. E nem participaram da primeira onda de mobilização formada pelos ativistas da cultura digital e das redes socais, de modo que, e ao aderirem ao jogo, trouxeram novos recursos e interesses. No entanto, como poderia se supor, este período não significou a desorganização de “antigos interesses, posições de status e convicções gastas pelo tempo”, encastelados há muito no poder e em choque com “novos interesses, novas postulações e ideias, criando um clima de confusão e reorganização”, contexto típico dos momentos críticos (NOGUEIRA, 2015, p. 217). O que se deu foi justamente o contrário: nos governos Lula, o MinC foi gerido por novas ideias e postulações e a gestão de Hollanda teria sido uma tentativa de retorno a antigos interesses, status e convicções, o que provocou a reação de setores renovadores do campo cultural brasileira e a consequente crise governamental. Essa foi a principal especificidade da crise da gestão Ana de Hollanda.

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TRATADO DE MARRAKESH NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: INCLUSÃO CULTURAL E CIDADANIA Allan Rocha de Souza1 Alexandre de Serpa Pinto Fairbanks2

RESUMO: A efetivação do direito de acesso à cultura em suas diversas manifestações, nos planos nacional e internacional, é uma das finalidades do Plano Nacional de Cultura, conforme expresso em vários dos objetivos específicos. O Tratado de Marrakesh foi uma bem sucedida iniciativa liderada pelo Brasil junto à Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Seu objetivo é estabelecer limitações mandatórias aos direitos autorais a fim de prover acesso à leitura aos portadores de deficiência visual. Sua efetivação no ordenamento jurídico nacional foi concluída em novembro de 2015, quando recebeu o status de Emenda Constitucional. Analisar preliminarmente a reverberação de seus efeitos no sistema jurídico nacional, na Lei de Direitos Autorais e na interpretação das limitações e exceções são os objetivos deste estudo. PALAVRAS-CHAVE: Acesso à Cultura, Direito Autoral, Tratado de Marrakesh, Limitações.

1. INTRODUÇÃO O Tratado de Marraqueche tem por finalidade estabelecer limitações obrigatórias aos direitos autorais para fins de garantir o acesso à cultura das pessoas portadoras de deficiências visuais. Ratificado pelo Brasil no final de 2015 e internalizado com status de Emenda Constitucional, passa a fazer parte do núcleo central de direitos fundamentais submetidos à proibição de retrocesso expressa pela sua caracterização como cláusula pétrea da Constituição Federal. Sua conclusão representa o cumprimento bem sucedido de algumas das ações referentes aos direitos autorais incluídas no Plano Nacional de Cultura. Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Adjunto e Pesquisador de Direito Civil e Propriedade Intelectual no Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/Instituto Três Rios. Professor Permanente e Pesquisador de Políticas Culturais e Direitos Autorais no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento na UFRJ (PPED/IE/UFRJ). Coordenador do Núcleo de Pesquisas em Direito, Artes e Políticas Culturais (NEDAC). E-mail: [email protected] . CV Lattes: http:// lattes.cnpq.br/5178459691896082 2 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/Instituto Três Rios. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Direito, Artes e Políticas Culturais (NEDAC). E-mail: [email protected] . CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8954789495709084 1

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Por ser o Tratado ainda muito recente, seus efeitos ainda estão por ser concretizados nas práticas, porém já podem vislumbrados, projetados e até mesmo demandados, em especial no que concerne às políticas públicas e institucionais de acessibilidade cultural, notadamente às pessoas portadoras de deficiências. Em que pese a finalidade do Tratado de Marraqueche de atender especificamente os portadores de deficiências visuais, portadores de outros tipos de deficiência – como auditivas, por exemplo - encontram-se amparados pelo Tratado da ONU para inclusão dessas pessoas em todos os níveis, inclusive culturalmente. Explorar seus efeitos no ordenamento jurídico é o objetivo principal deste trabalho. E a questão-chave a ser enfrentada é como a internalização deste tratado pode impactar legislação de direitos autorais brasileira e a interpretação das limitações. Para isso, em primeiro lugar é enfrentado o problema dos direitos culturais e sua vinculação com o acesso à cultura e os direitos fundamentais e seu reflexo no Plano Nacional de Cultura. A seguir, são apresentados os trâmites e procedimentos do processo legislativo de internalização do Tratado, bem como seu status no ordenamento jurídico nacional. Ao final, são discutidos os efetitos sobre os direitos autorais e a interpretação das limitações, tendo como base teórica os paradigmas da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. 2. OS DIREITOS CULTURAIS E OS VALORES CONSTITUCIONAIS 3 A experiência cultural é um dos pilares formadores da pessoa e conditio sine qua non para o desenvolvimento integral de sua personalidade, pois, a partir destas, são elaboradas e reelaboradas as visões e construídos os universos simbólicos com os quais o mundo é apreendido. O caráter constitutivo das experiências culturais remete ao princípio da dignidade da pessoa humana. O sentimento de pertencimento a uma comunidade, consequência das experiências culturais comuns, e de valoração positiva deste vínculo são pressupostos reconhecidos para a plena cidadania. Os direitos culturais promovem o desenvolvimento pessoal para uma existência digna, a construção das identidades, a inclusão e exercício da cidadania cultural, a capacitação para o diálogo intercultural e o crescimento socialmente sustentável. Todas estas circunstâncias interagem na justificação e informam o conteúdo dos direitos culturais. A amplitude dos efeitos pessoais e sociais dos direitos culturais indica que não há como cumprir os objetivos fundamentais da República de edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, de assegurar o desenvolvimento inclusivo e promoção do bem geral sem a sua máxima concreção. Por este motivo, na identificação de seu conteúdo normativo, parte-se de dois Para aprofundamento nos contornos e conteúdo dos direitos culturais, permita-nos indicar a apreciação direta do trabalho original: SOUZA, Allan Rocha de. Os direitos autorais e as obras audiovisuais cinematográficas: entre a proteção e o acesso. Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, 2010. Ou ainda SOUZA, Allan Rocha de. Direitos Culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2012.

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pressupostos básicos: (i) os direitos culturais são direitos fundamentais; e (ii) são normatizados e dotados de efetividade no ordenamento jurídico brasileiro. E, a partir da análise dos dispositivos da Constituição Federal do Brasil de 1988 e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, complementada pela apreciação das motivações expostas nas decisões judiciais destacadas e pelo exame das contribuições da doutrina especializada, identificou-se que os direitos culturais são constituídos, em primeiro lugar, do direito à livre participação na vida cultural e objetivem, principalmente, assegurar a todos o seu pleno exercício. Mas são também nuclearmente compostos pelos direitos de acesso e fruição das fontes, bens e patrimônio culturais; à identidade, pluralidade e diversidade cultural; a um patrimônio cultural rico, valorizado e protegido. Estes são os direitos culturais stricto sensu, conforme estabelecido no trabalho mencionado, e formam um conjunto de direitos interdependentes, vinculados ao objetivo maior de assegurar a livre participação na vida cultural e garantir o seu pleno exercício. Seus sentidos se complementam e suas aplicações se entrelaçam, reproduzem em sua normatização a dinâmica particular de seu objeto, projetam-se por todo o ordenamento e refletem todas as dimensões dos direitos fundamentais, mas enraízam-se no direito de igualdade. E a igualdade cultural é condição para o diálogo e convivência harmoniosa e o diálogo efetivamente livre é essencial em uma sociedade plural. O direito de todos ao pleno exercício dos direitos culturais, objetivo máximo de sua efetividade, implica, por ser informado pelas disposições dos tratados internacionais, no direito à livre participação na vida cultural, pois só diante desta possibilidade é possível exercê-los plenamente. A participação deve ser livre em razão do próprio pluralismo, assegurado constitucionalmente, e da diversidade, amparada internacionalmente. O principal efeito participação na vida cultural é impedir a exclusão involuntária da própria participação. O aspecto negativo da participação só pode ser exercido pela recusa voluntária em participar ativamente da vida cultural, e jamais pode ser imposta a participação, por quaisquer poderes, sejam públicos ou privados. Deve-se notar que esta recusa em si, por implicar em uma decisão individual relacionada à cultura, é uma participação na vida cultural. Pela sua essencialidade, a restrição à participação só excepcionalmente e justificadamente pode ser efetuada. Assegurar materialmente a todos o direito de livre participação e o pleno exercício garante as condições para a emancipação e formação cultural, com efeitos cumulativos positivos sobre a formação pessoal e social, condições para o exercício da cidadania, democracia e inclusão culturais, conforme estabelecido nos fundamentos e objetivos da República. A porta de entrada para o exercício dos direitos culturais e livre participação na vida cultural é o direito de acesso à cultura. Mas, para garantir o livre acesso, é necessária a preservação

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de espaços e condições existentes, além da constituição de novos, que permitam a livre e plena manifestação, criação e circulação dos bens culturais. Estes são de natureza material (e.g.: equipamentos e financiamento) e imaterial (e.g.: conhecimento, viabilidade técnica ou possibilidade jurídica), e necessariamente implicam na preservação e ampliação do espaço jurídico necessário para que, de fato, seja assegurada a livre participação cultural, condição para o pleno exercício dos direitos culturais. Impõe-se, portanto, a democratização das condições econômicas, jurídicas e sociais para a livre prática cultural. A ampla acessibilidade aos bens culturais corrobora, ainda, para permitir a livre construção das identidades, elemento de constituição da existência social da pessoa, caracterizando-se os direitos culturais como um verdadeiro direito existencial social. Deste modo, o direito à identidade integra corporifica-se como justificativa principal das garantias de livre participação e pleno exercício destes direitos. O direito à identidade cultural é um importante elemento da dignidade humana. O direito a um patrimônio cultural rico, valorizado e protegido corrobora a noção de participação cultural e justifica os investimentos públicos na sua conservação, promoção e os incentivos à produção de bens que venham a integrar-lhe. Este direito é complementar ao direito de acesso e seu contínuo robustecimento consubstancia a livre participação cultural, e, consequentemente, o pleno exercício destes direitos. A construção deste patrimônio coletivo deve obedecer à pluralidade e diversidade, tendo por referência os vários grupos participantes da nação, e respeitar as várias formas brasileiras de ser e se expressar. O acesso livre serve também para garantir a liberdade de participação nas diversas manifestações culturais e o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. A pluralidade é um elemento determinante dos direitos culturais. A convivência social e o diálogo, em vista ao progressivo entendimento e mesmo integração, viabilizam e reforçam a diversidade de formas de ser e se manifestar. Neste cenário, não há espaços para a exclusão. A discriminação afeta diretamente o direito à pluralidade e diversidade, ofende frontalmente os direitos culturais e atinge, também, o direito à identidade, na medida da rejeição à forma particular de ser e viver. O direito à igualdade prepondera na rejeição e criminalização da discriminação, mas é reforçado pelos direitos culturais ao pluralismo e à identidade. E sendo o patrimônio constituído também pelas expressões artísticas e científicas e o acesso a ponte para a participação na vida cultural e o efetivo exercício dos direitos culturais, não parece razoável imaginar os direitos autorais separados dos direitos e fundamentação cultural – nem nos aspectos pessoais, ou mesmo a proteção empresarial e até transmutação digital, com seus novos objetos e interesses distintos, como nos alertou Ascensão (ASCENSÃO, 2006, passim). O teor dos direitos culturais informa e fundamenta o conteúdo dos direitos autorais, e influencia os direitos de liberdade de expressão e manifestação, comunicação e não discrimina-

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ção. Às vezes contrapõem-se, em outras se complementam. Ora reforçando, ora limitando, mas sempre legitimando o exercício e as limitações destes direitos. Em 2005, com a Emenda Constitucional 48, foi acrescido o parágrafo 3º ao artigo 215 da Constituição Federal, estabelecendo a criação de um Plano Nacional de Cultura, com a finalidade de integrar as ações e políticas governamentais e visando o desenvolvimento cultural do país. Em parte, o conteúdo do Plano Nacional de Cultura4 (PNC) foi o resultado das Conferências Nacionais de Cultura ocorridas no decorrer da primeira década do século XXI. Foi promulgado em dezembro de 2010, com o objetivo de direcionar as ações do Estado pelos 10 anos subsequentes, sendo o Ministério da Cultura a principal - mas não única - instituição responsável por transformar tais objetivos em ações. O PNC institui princípios5 e objetivos6 que afetam diretamente a normatização dos direitos autorais, além de, dentre as estratégias e ações, estabelecer diversas ações diretamente ligadas aos direitos autorais. Quatro disposições do PNC são particularmente relevantes para os objetivos deste trabalho: 1.97; 1.9.48; 1.9.149; 1.9.1510. Este conjunto pode ser dividido em dois grandes comandos normativos: (a) equilibrar os interesses entre a exclusividade atribuída aos titulares de direitos autorais e o direito de acesso à cultura pelos cidadãos; (b) projetar os interesses nacionais nos organismos internacionais e promover a revisão das regras internacionais a fim de reduzir as desigualdades entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. A conclusão e ratificação do Tratado de Marraqueche alcançam, em conjunto, estes dois objetivos, ao promover o equilíbrio entre os interesses econômicos privados dos titulares e o público, sejam coletivos ou difusos, tanto nos planos nacional como internacional. E ainda promove o acesso à cultura como direito fundamental, no caso como representação do princípio da igualdade substancial. E o processo de internalização do Tratado de Marraqueche na ordem jurídica nacional será esmiuçado logo a seguir. BRASIL. Lei n. 12.343, de 02 de dezembro de 2010. Plano Nacional de Cultura. Disponível em: http://www. cultura.gov.br/documents/10907/963783/Lei+12.343++PNC.pdf/e9882c97-f62a-40de-bc74-8dc694fe777a Acesso em 10 fev. 2015. 5 Ibid. Art. 1º: Fica aprovado o Plano Nacional de Cultura, em conformidade com o § 3º do art. 215 da Constituição Federal, constante do Anexo, com duração de 10 (dez) anos e regido pelos seguintes princípios: I - liberdade de expressão, criação e fruição; IV - direito de todos à arte e à cultura. 6 Ibid. Art. 2º: São objetivos do Plano Nacional de Cultura: V - universalizar o acesso à arte e à cultura. 7 Ibid. 1.9 Fortalecer a gestão pública dos direitos autorais, por meio da expansão e modernização dos órgãos competentes e da promoção do equilíbrio entre o respeito a esses direitos e a ampliação do acesso à cultura. 8 Ibid. 1.9.4 Adequar a regulação dos direitos autorais, suas limitações e exceções, ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação. 9 Ibid. 1.9.14 Promover os interesses nacionais relativos à cultura nos organismos internacionais de governança sobre o Sistema de Propriedade Intelectual e outros foros internacionais de negociação sobre o comércio de bens e serviços. 10 Ibid. 1.9.15 Qualificar os debates sobre revisão e atualização das regras internacionais de propriedade intelectual, com vistas em compensar as condições de desigualdade dos países em desenvolvimento em relação aos países desenvolvidos. 4

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3. A RATIFICAÇÃO DO TRATADO DE MARRAQUECHE NO BRASIL E A INCLUSÃO CULTURAL DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIAS O Tratado de Marraqueche, primeiro a estabelecer limitações mandatórias, entrará em vigor três meses após o depósito dos instrumentos de ratificação ou adesão de 20 países elegíveis. Até o fim do ano de 2015, treze países o fizeram. O Brasil, que foi um dos principais proponentes e negociadores deste Tratado, depositou sua ratificação em 11 de Dezembro de 2015, após processo legislativo interno de um ano. Relevante e interessante neste processo é o fato de ter sido ratificado com status de Emenda Constitucional, em consonância com o estabelecido na Constituição Federal após 2004. A Emenda Constitucional número 45 de dezembro de 2004 (EC 45/04), com intuito de sanar a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da hierarquia dos tratados internacionais de Direitos Humanos no ordenamento brasileiro (CANOTILHO [et al.], 2013, p.519), acrescentou, dentre outros dispositivos, o § 3º ao art. 5º11 da Constituição Federal de 1988, que estabelece o procedimento necessário para estes tratados obterem o status de direitos fundamentais constitucionais. Desde então, equivalem a emendas constitucionais aqueles tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que internalizados de acordo com os seguintes trâmites: (1) celebração pelo Presidente da República (art. 84, VIII12 da Constituição Federal de 1988); (2) aprovação pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, em dois turnos, em cada Casa, por três quintos dos votos da totalidade dos respectivos membros, com a edição do correspondente decreto legislativo (art. 5º, § 3º 13, c/c art. 49, I14 da Constituição Federal de 1988), (3) ratificação pela Presidência da República; e, por último, (4) a promulgação e publicação de seu texto via decreto do Presidente da República. Ocorre que, segundo algumas correntes doutrinárias, o referido § 3º do artigo 5º acrescenta apenas eficácia formal a esses tratados, uma vez que o art. 5º, § 2º 15 da Constituição Federal de 1988 estabelece a abertura para o “Bloco de Constitucionalidade”, isto é, não se pode considerar que os Direitos e Garantias Fundamentais devem estar taxativamente enumerados BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 5º § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 12 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: “VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. 13 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 5º § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 14 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 49: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. 15 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 5º § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 11

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no título II da Constituição para que possuam eficácia (CANOTILHO [et al.], 2013, pp. 513523). Deste modo, os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil têm status materialmente constitucional independente de quórum, posto que, como são corolários da própria à dignidade da pessoa humana, “em vista da sua importância, não podem ser deixados à disponibilidade do legislador ordinário” (MENDES, 2012, p. 195). Cabe afirmar, que, há poucos anos atrás, todos os tratados ratificados e internalizados no ordenamento jurídico brasileiro estavam em mesmo grau hierárquico da legislação ordinária, fazendo com que os tratados de direitos humanos não possuíssem primazia quando comparados à legislação infraconstitucional16. O marco teórico para a mudança de paradigma foi o Recurso Extraordinário 466.343 impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF) em 12 de março de 2008, de relatoria do então Ministro Cezar Peluso e capitaneado pelos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, que considerou, majoritariamente17, revertendo a jurisprudência anteriormente estabelecida por este mesmo Tribunal, que os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil antes da EC 45/04, que versam sobre direitos humanos, têm eficácia supralegal. Cabe por bem ressaltar, que há quatro propostas teóricas divergentes acerca do status dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico nacional. A primeira reconhece a natureza supraconstitucional destes tratados, atribuindo-lhes valor hierárquico acima da Constituição; a segunda proposição reconhece estes instrumentos como constitucionais, independente dos procedimentos para sua ratificação; uma terceira proposta atribui-lhes o caráter de lei ordinária; e, por fim, a posição que considera o status supralegal destes tratados, que embora abaixo da Constituição encontram-se acima das normas infraconstitucionais. Para resolver o conflito, que consistia em decidir com base em qual das teorias supracitadas o Pacto de San Jose da Costa Rica e demais Tratados de Direitos Humanos deveriam ser internalizados no ordenamento jurídico pátrio, duas delas se sobressaíram: a proposta de supralegalidade baseada no voto do Min. Gilmar Mendes, e a proposta de equivalência constitucional, defendida no voto do Min. Celso de Mello. A primeira afirmando o caráter hierárquico supralegal e a segunda o caráter constitucional. O STF, então, reconheceu que, por versar sobre direitos e garantias fundamentais, este tratado (assim como os demais da mesma Até então, a jurisprudência dominante previa que os tratados internacionais que fossem incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro continham o mesmo nível hierárquico das leis federais comuns. O caso paradigmático foi o Recurso Extraordinário n. 80.004, julgado em 01 de junho de1977. Esta posição – de equivalência entre os tratados internacionais em geral e as leis federais ordinárias - fora reiterada após o advento da Constituição de 1988, na ADI nº 1.480-3-MC/DF de 18 de maio de 2001, de relatoria do Min. Celso de Mello. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 17 Em decisão apertada, por cinco votos a favor, quatro contrários e uma abstenção, a maioria decidiu votar pela supralegalidade dos tratados que versam sobre direitos humanos, acompanharam o votos do Mininstro Gilmar Mendes os Ministros: Carlos Ayres Britto; Carmén Lúcia; Menezes Direito e o Ricardo Lewandowski. Do outro lado, acompanhando o Ministro Celso de Mello, sustentaram a tese da qualificação constitucional destes tratados os Ministros: Cesar Peluso; Ellen Gracie e Eros Grau. Votação disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 16

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natureza) encontra-se em posição hierarquicamente superior à legislação infraconstitucional, mas não no mesmo nível da constituição18, em razão dos procedimentos estabelecidos pela EC 45/04. A decisão, ao final, foi no sentido da incompatibilidade da norma que estabelece a prisão do depositário infiel com o sistema jurídico brasileiro por inconstitucionalidade. Nas palavras do relator para o Acórdão, Min. Gilmar Mendes, Diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.19 E conclui que Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).20 Em síntese, o Decreto Federal nº 67821 de novembro de 1992, de incorporação ao ordenamento pátrio o Pacto de San Jose da Costa Rica, não permitia a prisão do depositário infiel, conflitando, então, com o art. 65222 do Código Civil vigente. E, em decorrência desta decisão, foi editada a Súmula Vinculante n. 2523, entendendo, no caso em questão, que a liberdade e a dignidade da pessoa humana são valores que normativamente se sobrepõem à garantia de crédito, paralisando, com isso, a eficácia jurídica da norma ordinária e tornando inócuo a previsão do art. 5º, LXVII24, da Constituição Federal.

O Ministro Gilmar Mendes ressaltou em seu voto que os tratados não poderiam ser equiparados às emendas enquanto não fossem aprovados nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, já o Ministro Celso de Mello, no voto vencido, afirmava, que, devido ao fato do tratado versar sobre garantia de direitos humanos, este deveria ser equiparado materialmente, em seu conteúdo, independente do quórum de votação, aos Direitos Fundamentais em decorrência do§ 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988. 19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343/SP. Tribunal Pleno. Relator: Min. Cezar Peluso, Brasília, 12 de março de 2008, pg. 55. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 20 Ibid. 21 BRASIL. Decreto n. 678 de 1992. Ratifica o Pacto de San Jose da Costa Rica. Disponível em: < http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016. 22 BRASIL. Código Civil. Art. 652. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos. 23 BRASIL. Súmula 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 24 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 5º LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. 18

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No ano de 2008, o Brasil ratificou o Tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência25, bem como seu protocolo facultativo, que reconhece o direito do indivíduo ou grupo de indivíduos apresentarem queixa ao Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Por versar sobre direitos humanos com aprovação de três quintos dos membros de cada casa do Congresso Nacional, conforme procedimento estabelecido pela EC 45/04, este tratado foi internalizado com status de emenda constitucional, sendo incorporado como cláusula pétrea, isto é, devido a sua importância no Estado Democrático de Direito, limitam o legislador ordinário “assegurando a imutabilidade de certos valores” (MENDES, 2012, p. 139), tendo por base legal o art. 60 § 4º26 da Constituição Federal de 1988. Relacionado ao Tratado de Marraqueche em razão de seu conteúdo, o Tratado da ONU estabelece em seu artigo 30 a obrigação de garantir a disponibilidade de bens culturais em formatos acessíveis, e, nesse sentido, estabelece deveres que vão além das metas restritas do Tratado de Marraqueche, uma vez que não se limita nem ao material impresso nem em benefício unicamente das pessoas com deficiência visual, mas alcança, basicamente, pessoas portadoras de qualquer deficiência e todos os tipos de expressões culturais. Após a aprovação do Tratado da ONU, sua efetivação ocorreu com a promulgação de lei federal para a ampla inclusão de pessoas com deficiência, que entrou em vigor a partir de 04 de janeiro de 2016, atingindo os domínios cultural e tecnológico. A Lei n. 13.146 27 estabelece, em seu artigo 42, garantias com relação ao direito de acesso aos produtos culturais em formatos acessíveis. E, ainda mais interessante, em seu parágrafo 1o, afirma que “é vedada a recusa de oferta de obras intelectuais em formatos acessíveis às pessoas com deficiência, sob qualquer argumento, incluindo a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual”. Em 04 de novembro de 2014, logo após as eleições presidenciais, assegurando o segundo mandato da Presidenta Dilma Roussef, foi enviado o texto do Tratado de Marraqueche ao Congresso Nacional para apreciação. Na Câmara dos Deputados (513 assentos) o tratado foi apresentado às Comissões de Relações Exteriores; Pessoas com deficiência; Cultura; e de Constituição e Cidadania, onde recebeu recomendação de aprovação como Emenda Constitucional. Na primeira das duas rodadas de votação, em 20 de Agosto, 2015, alcançou 341 votos BRASIL. Decreto Federal nº 6.949. Ratifica o Tratado da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm >. Acesso em: 13 fev. 2016. 26 BRASIL. Constituição Federal da República do Brasil. Art. 60: “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais”. 27 BRASIL. Lei n. 13.146, de 06 de julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Lei/L13146.htm Acesso em: 13 fev. 2016. 25

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a favor e apenas um contra. Ele foi finalmente aprovado por unanimidade pelos 452 representantes em 08 de setembro, na segunda rodada de votação28. Uma vez no Senado (81) assentos, foi enviado à Comissão de Relações Exteriores, cujo parecer foi aprovado. Em 24 de novembro, 2015, o Tratado foi aprovado por unanimidade na primeira rodada por 57 senadores e por 52 no segundo turno29. Em primeiro de dezembro de 2015, o presidente assinou a ratificação do Tratado, com o estatuto de Emenda Constitucional. Este é um importante passo no respeito e na valorização da dignidade, liberdade e autonomia individual, pois, intentando a máxima inclusão dos deficientes, acaba por forçar os entes federativos a criar políticas públicas capazes de repreender a discriminação e fomentar um progresso social isonômico que permita, não de forma meramente formal, o pleno desenvolvimento de todos. 4. O TRATADO DE MARRAQUECHE E OS DIREITOS AUTORAIS: CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos fundamentais compõem o núcleo central e irrevogável da Constituição Federal de 1988, espraiando seus efeitos por todo o ordenamento jurídico nacional, afetando a interpretação e aplicação de todas as demais normas jurídicas, afetando seus significados, e pautando as ações e políticas públicas e institucionais. Incorporados como Emendas Constitucionais, tanto o Tratado de Marraqueche como o Tratado da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, passam então a fazer parte deste núcleo essencial e, necessariamente seus efeitos irão reverberar por todo o ordenamento. Dentre os efeitos principais relacionados ao objeto deste trabalho estão seus efeitos sobre a lei de direitos autorais, em especial no que diz respeito às limitações a estes direitos que determinam os usos livres que podem ser feitos de obras protegidas sem necessidade de autorização prévia ou remuneração. As limitações aos direitos autorais são um ponto de equilíbrio entre os interesses dos titulares, sejam autores ou organizações empresariais, e o interesse público, da sociedade e dos cidadãos. Elas representam a ponderação entre os diversos direitos fundamentais. São essenciais para a viabilidade e saúde do sistema. Exemplo claro desta posição é o julgamento do Recurso Especial n. 964.404 30 em 2011 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que enfrentou a questão Para uma visão mais detalhada de todo o processo legislativo na Câmara dos Deputados ver: http://www. camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao;jsessionid=08E717E21A4E2AEEAFBD274F67703651.proposicoesWeb1?idProposicao=1228455&ord=0 Acesso em 12 fev. 2015. 29 Para uma visão mais detalhada de todo o processo legislativo no Senado Federal ver: http://www25.senado.leg. br/web/atividade/materias/-/materia/123103 Acesso em 12 fev. 2015. 30 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 964.404 – ES. Terceira Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, 15 de março de 2011. Disponível em: . Acesso em 10 fev. 2015. 28

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das limitações dos direitos autorais, firmando uma diretriz para a padronização da interpretação da legislação federal, tendo sustentado sua decisão justamente na necessidade de harmonização entre os direitos fundamentais constitucionais de proteção aos direitos autorais e os demais direitos humanos, em especial os referentes à educação e cultura. Reconheceu o tribunal que a interpretação de qualquer norma deve considerar o conjunto normativo e não as regras especificamente aplicadas e, neste sentido, indicou que o ministro relator reconheceu que a efetividade da proteção do artigo em comento só seria possível após o “reconhecimento das restrições e limitações a ela opostas pela própria lei especial”, pois O âmbito efetivo de proteção do direito à propriedade autoral (art. 5º, XXVII, da CF) surge somente após a consideração das restrições e limitações a ele opostas, devendo ser consideradas, como tais, as resultantes do rol exemplificativo extraído dos enunciados dos artigos 46, 47 e 48 da Lei 9.610⁄98, interpretadas e aplicadas de acordo com os direitos fundamentais. Deste modo, sobre as limitações aos direitos autorais – arts. 46, 47 e 48 da Lei 9.610/98 –, entendeu o Tribunal que essas possuem necessariamente caráter exemplificativo. Aduziu que as limitações são representações da importância e da valorização de direitos e garantias fundamentais pelo legislador ordinário em face dos direitos autorais, pois, afinal, “valores como a cultura, a ciência, a intimidade, a privacidade, a família, o desenvolvimento nacional, a liberdade de imprensa, de religião e de culto devem ser considerados quando da conformação do direito à propriedade autoral”. Nesta perspectiva, as limitações são o “resultado da ponderação destes valores em determinadas situações, não se pode considerá-las a totalidade das limitações existentes” e que a adoção de entendimento contrário ao caráter exemplificativo das limitações aos direitos do autor, conduziria, em determinados casos, à violação de direito ou garantia fundamental e “ao desrespeito do dever de otimização dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, §1º, da CF), que vinculam não só o Poder Legislativo, mas também o Poder Judiciário”. Daí a Necessidade de interpretação sistemática e teleológica do enunciado normativo do art. 46 da Lei n. 9610⁄98 à luz das limitações estabelecidas pela própria lei especial, assegurando a tutela de direitos fundamentais e princípios constitucionais em colisão com os direitos do autor, como a intimidade, a vida privada, a cultura, a educação e a religião. O processo de inclusão cultural é um reflexo do direito à igualdade, sendo instrumento promocional da cidadania e democracia cultural e sustentáculo da dignidade humana. A ampliação e concretização do direito de acesso à cultura é o elemento chave para realização da desejada inclusão cultural. Com a ratificação dos novos tratados, conforme exposto neste artigo, o direito de acesso à cultura adquire um novo e renovado fôlego, demandando que as ações e políticas públicas e legislativas se adequem e correspondam ao status qualificado deste Direito.

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Uma das formas de assegurar a efetividade do acesso à cultura é pela expansão das limitações aos direitos autorais que, como visto, é resultado da ponderação entre os direitos fundamentais em potencial colisão. As limitações são utilizações legais de obras protegidas que não precisam de remuneração nem autorização prévia dos titulares. No sentido de otimização do direito de acesso à cultura são exigidas ações de todos os poderes, pois os deveres te otimização obrigam os poderes executivo, legislativo e judiciário. Aos poderes executivos, em especial o federal, cabe a liderança na efetiva aplicação e perseguição dos objetivos e ações previstos no Plano Nacional de Cultura, mormente (1) a expansão das limitações com vistas ao equilíbrio entre os interesses privados dos autores e titulares; (2) a ampla digitalização e disponibilização do domínio público; (3) a inclusão de licenças abertas nas produções financiadas pelo Poder Público; (4) a exigência de disponibilidade de formatos acessíveis. Ao Poder Legislativo cabe principalmente emendar a legislação pertinente de forma a assegurar a objetivação legislativa do direito de acesso à cultura, com a ampliação das limitações e, principalmente, inclusão de uma cláusula geral de limitações, tão necessária à sustentabilidade do próprio sistema de proteção aos direitos autorais. Por fim, cabe ao Judiciário promover uma interpretação consistente com a necessária ponderação entre a exclusividade autoral e o acesso à cultura, reafirmando a jurisprudência encampada pelo STJ e STF, consolidando a interpretação sistemática e teleológica das limitações e, com isso, solidificando o entendimento de que estas limitações hão de ser interpretadas extensivamente e os usos livres expressos na legislação são apenas exemplos de usos livres, e não a totalidade deles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da internet na sociedade de informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. ASCENSÃO, José de Oliveira. O Direito Intelectual em Metamorfose. In Revista de Direito Autoral, ano II, n. 4. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. ASCENSÃO, José Oliveira. Direito do Autor como Direito da Cultura. In Cadernos de Pós-graduação, ano I, n.1, set., 1995, pp. 57-66. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. BRASIL. Decreto Federal nº 6.049. Ratifica o Tratado da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949. htm >. Acesso em: 13 fev. 2016. BRASIL. Lei n. 12.343, de 02 de dezembro de 2010. Plano Nacional de Cultura. Disponível em: http:// www.cultura.gov.br/documents/10907/963783/Lei+12.343++PNC.pdf/e9882c97-f62a-40de-bc748dc694fe777a Acesso em 10 fev. 2015.

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POR UMA GESTÃO CULTURAL TRANSFORMADORA NOS ESPAÇOS POPULARES DE CULTURA Álvaro Maciel1 RESUMO: O texto pretende trazer novos elementos para os debates e reflexões acerca do desenvolvimento das cidades e suas influências na produção e fruição cultural nos setores mais populares da sociedade, a partir de algumas inflexões a respeito dos formatos da gestão cultural aplicada em espaços ligados ao samba, na Cidade do Rio de Janeiro. A observação realizada no Centro Cultural Cartola – Museu do Samba confirma a importância da Educação Patrimonial para o exercício dos direitos culturais e ressalta os resultados positivos conseguidos junto aos jovens da Mangueira e bairros vizinhos, através de um modelo de gestão cultural contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento, gestão, cultura, patrimônio.

1. UMA GESTÃO CULTURAL TRANSFORMADORA 1.1 Desenvolvimento urbano e gestão dos espaços do samba A vivência em nossas cidades repete cenas tragicômicas de isolamento, interdições, proibições e impedimentos que nos remetem à impossibilidade da realização das ações culturais no formato dos nossos gostos. O metrô lotado, o engarrafamento, a irregularidade dos meios de transportes coletivos, a lei de silêncio, a rigidez burocrática das leis e normas sociais nos fazem tecer críticas diárias à vida urbana contemporânea, embora sem abrirmos mão dela. A intenção mais ampla deste trabalho foi trazer novos elementos para os debates e reflexões acerca do desenvolvimento das cidades, em contraponto à melhoria ou manutenção da qualidade de vida da população de um determinado local, através da gestão cultural de determinados espaços, onde são realizadas ações culturais populares, com destaque para a prática da cultura do samba nos centros urbanos. Foram visitados os seguintes pontos: Roda de Samba da Velha Guarda do Leme, Roda de Samba do Leme, Samba da Confraria (Niteroi), Centro Cultural Cartola, Botequim do Império Serrano e Feijoada do Renascença. As atividades de campo foram fundamentais para a obtenção de informações atualizadas, referentes às recentes movimentações existentes no mundo do samba, que se constituem 1

FUNARTE, 21 999482770/ 999482788, [email protected]

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num excelente material para evidenciar as influências e a pressão do crescimento urbano sobre os espaços pulares de cultura nas cidades. Outro ponto que podemos destacar é a constatação de que há pouco material que aborde a questão da ancestralidade, tão presente nas ações culturais nesses territórios. O processo histórico do surgimento e evolução do samba carioca e suas primeiras contribuições ao campo social, segundo alguns estudiosos, influenciam o presente processo, pois, a memória social se constrói ao longo de muitas gerações de indivíduos mergulhados em relações determinadas por estruturas sociais e sua construção implica na referência ao que não foi presenciado. Se a sociedade atual traz as marcas das estruturas sociais que lhe antecederam e se estas marcas são potencialmente suportes da memória, então é também pela seleção, pela análise e pela interpretação destes suportes que serão construídas a memória, sendo que a construção desta sempre envolve esquecimento. Por uma série de fatores algumas manifestações culturais relevantes para o meio são transmitida e passadas; selecionadas por um processo social natural (ou incentivado em alguns casos); já outras são esquecidas, apagadas pelo próprio processo e fluxo da vida em constante transformação. Portanto, devido a sua continuidade por um logo tempo, pode-se afirmar a importância do samba para essas comunidades. A extinção de algumas agremiações carnavalescas e a criação de outras, faz parte de um processo contínuo e aberto, onde a memória coletiva nesses grupos, construída socialmente, representa um conjunto de ações internas e que se fortalecem quando contribuem para a preservação do samba e de sua própria cultura. Nas pesquisas de campo pode-se observar que a recuperação e a preservação da memória do samba depende da ação de agentes culturais que adquiriram reconhecimento junto à população de sambistas tradicionais, ao longo do tempo, e que hoje se desdobram em empreendedores, gestores e amantes do samba, simultaneamente. Inicialmente o samba não é um produto e sim uma cultura. O processo de fortalecimento da identidade dessas coletividades nos revela, no entanto, certo grau de conflito e de disputa interna por hegemonia política, que é determinante para a definição e organização do processo decisório. Neste caso, os produtores culturais concorrem com os mais velhos, o melhor ritmista, o cantor preferido, as matriarcas e uma série de outros formadores de opinião que participam ativamente das rodas de samba: músicos, compositores, cantores, ex-diretores de agremiações, cozinheiras e outros agentes culturais reconhecidos no bairro, que aos poucos ganharam notoriedade local. A observação de que uma manifestação cultural se transforma e adquire características do grupo que a sustenta, caminha ao lado do fato de que essa manifestação cultural pode ser a

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mesma, mas a forma de fruição e relação afetiva dos seus frequentadores depende da ligação histórica com a vida do individuo participante. É necessário um olhar mais técnico para avaliar as relações existentes entre os espaços culturais e a manutenção de suas atividades e a ação, ou omissão, da esfera pública. É surpreendente como tais movimentos, envolvendo grande número de pessoas, acontecem numa cidade como o Rio de Janeiro e muitas vezes não são percebidos. Há uma interdependência entre o sucesso ou insucesso de eventos com as características de uma roda de samba e os serviços oferecidos pelo município; transporte, segurança, iluminação, banheiros públicos, etc. até água e energia elétrica, que estão ligadas à sociedade como um todo, mas que, em certos casos são determinantes para manutenção desta ou daquela ação cultural. 1.2 Centro Cultural Cartola – Espaço do samba e do social Fundado em janeiro de 2001, o Centro Cultural Cartola é uma organização sem fins lucrativos que reúne a mais variada gama de pessoas devotadas à causa da cultura brasileira e do desenvolvimento social. O complexo cultural possui espaço de exposição, auditório, sala de projeção, teatro, biblioteca, loja, café, bar e restaurante. São desenvolvidas nas dependências do CCC oficinas de teatro, dança, música, rodas de leitura, mostra de vídeos, debates, palestras, depoimentos, shows e exposições. Em média o público direto beneficiado é de 500 pessoas/mês e o indireto de 1500/mês. Intelectuais, artistas, produtores culturais e formadores de opinião se uniram para promover o desenvolvimento cultural e social de nossa gente, proteger as tradições e preservar a memória de nossas manifestações culturais. A base deste empreendimento é a vasta obra de Angenor de Oliveira, também conhecido pelo seu apelido de Cartola, cuja imensa importância para a música popular brasileira é mundialmente reconhecida. A palavra cultura, no entanto, pode significar pouco quando uma população que se encontra sem perspectivas, sem chances, sem oportunidades e sem esperança. Pensando nisso, o Centro Cultural Cartola aliou à sua atuação em defesa da cultura brasileira uma série de iniciativas de cunho social, visando combater a pobreza, a marginalização da população carente, a exclusão social e a falta de esperança no futuro. Em busca de seus ideais, o Centro Cultural Cartola procura atuar junto às parcelas mais desfavorecidas da população, dando especial atenção ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, à inserção do jovem na sociedade e ao amparo ao idoso. Tudo isso em torno da cultura e da música brasileiras, importantes instrumentos para a valorização da identidade nacional. A escolha de Cartola como patrono da instituição se justifica não apenas por sua importância no mundo musical, mas também por sua história de luta, de superação de dificuldades e de inserção ativa do indivíduo na sociedade através da produção cultural. Tendo como referência

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a vida e obra de um grande mestre, morador da Mangueira, poeta sofisticado e um dos maiores ícones da música popular brasileira, o CCC consegue atrair jovens da comunidade para as diversas atividades voltadas à capacitação profissional e artística. O mestre mangueirense se torna, assim, um exemplo a ser seguido pelas crianças e pelos jovens ansiosos por um lugar ao sol, que têm no Centro Cultural Cartola uma fonte de aprendizado, de experiência e de incremento de suas capacidades. A preservação da memória de Cartola e de seu legado cultural requer uma participação ativa da instituição junto à comunidade. A mera disponibilização de sua produção musical não bastaria para traduzir a importância social deste ícone da música popular, deste cidadão que, apesar de todas as dificuldades encontradas em seu caminho, conseguiu imprimir seu nome entre os mais importantes artistas brasileiros. Desta forma, além da criação de um espaço destinado à exposição e à divulgação da produção cultural do Cartola, o Centro Cultural se dedica à educação musical e artística de crianças, jovens, adultos e idosos, em projetos sociais de grande abrangência. Valorizar a cidadania, a liberdade, a participação na sociedade, a assistência social, o trabalho voluntário, o aprendizado musical e a cultura brasileira, são as metas do Centro Cultural Cartola, que teve como primeira presidenta de honra a companheira de nosso Mestre, a incansável Dona Zica, cuja história de luta e sucesso é de todos conhecida. O Centro Cultural Cartola acredita na força da cultura brasileira, na vontade de crescer de nosso povo e na efetiva possibilidade da inclusão social. Dedica-se, assim, à mais nobre das missões: transformar em realidade um ideal. Situado à Rua Visconde de Niterói, 1296 - Mangueira/RJ, o Centro Cultural Cartola se tornou uma referência nacional em termo de gestão e aproveitamento de espaços ociosos para a cultura. Situada numa área pobre, passou a se dedicar à inserção social da juventude local pela arte, educação, construção da cidadania, valorização da cultura e preparação profissional com vista ao resgate da dignidade humana. Pode ser considerado um modelo de excelência no enfrentamento ao risco de perda de memória imposto pelo crescimento urbano. 1.3 O Pontão de Cultura e o Museu Cartola O resultado do trabalho de pesquisa e documentação realizado no CCC contribuiu de forma decisiva para o reconhecimento do Samba como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, que mais tarde, em 2009, por sua força criativa, veio a reconhecê-lo como Pontão de Memória do Samba Carioca. A motivação do reconhecimento deu novo gás ao centro, que continuou a desenvolver o Projeto do Inventário das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, dedicado à documentação do samba e de sua manifestação, seja nas rodas de samba, nas quadras das escolas e outras agremiações carnavalescas, nos terreiros ou na atuação dos seus atores sociais.

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Em 2011, o CCC foi reconhecido como Museu do Samba do Rio de Janeiro e em 2012 começa suas atividades musicais. A área onde funciona possui sete mil metros quadrados e pertence ao IBGE. A missão do Museu do Samba é desenvolver ações de resgate, preservação e difusão dos conhecimentos relativos às matrizes do samba no Rio de Janeiro bens registrados como patrimônio cultural brasileiro, dar suporte ao ensino, pesquisa e extensão e promover a reflexão crítica da realidade histórica, tendo como referência as políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial brasileiro. ( site oficial da instituição). Em 2013 a exposição itinerante “Para Não Perder a Memória – D. Zica 100 Anos” foi um marco na gestão cultural do CCC. O projeto foi uma homenagem a Dona Zica da Mangueira, esposa de Cartola, que nasceu em 06 de fevereiro de 1913 num domingo de Carnaval. Através dele a educação patrimonial consagra o Museu do Samba Carioca, que contou com patrocínio da Petrobras e apoio da Secretaria de Estado de Janeiro. Um grande sucesso de público e crítica. As parcerias com as instituições de ensino e a divulgação de suas atividades nos sites que integram o circuito do samba fazem do espaço expositivo um grande sucesso. Há exposições que recebem mais de cinco mil alunos, com idade entre 9 e 17 anos da rede pública e privada de ensino. No projeto Memória das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro, por exemplo, as escolas que formaram a parceria foram: Escola Municipal Nilo Peçanha, CIEP Nação Mangueirense, Escola Municipal Gonzaga da Gama Filho, FAETEC – Adolpho Bloch, Escola Municipal Uruguai, Escola Municipal Marechal Trompowsky, Escola Municipal Cardeal Leme e finalizando com Escola Tia Neuma. 1.4 Uma gestão com foco na educação patrimonial Umas das principais diretrizes do Centro Cultural Cartola-Museu do Samba Carioca é promover a educação patrimonial. Na prática, significa levar informação e formação cultural ao público a fim de difundir e preservar o samba carioca e suas matrizes, gênero que em 2007 foi alçado à condição de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, por meio de um processo liderado pela instituição. A educação patrimonial nada mais é do que uma proposta interdisciplinar de ensino voltada para questões atinentes ao patrimônio cultural. Compreende desde a inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de temáticas ou de conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a conservação do patrimônio histórico, até a realização de cursos de aperfeiçoamento e extensão para os educadores e a comunidade em geral, a fim de lhes propiciar informações acerca do acervo cultural, de forma a habilitá-los a despertar, nos educandos e na sociedade, o senso de preservação da memória histórica e o consequente interesse pelo tema (ORIÁ, 2005).

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Samba de partido alto, o samba de terreiro e o samba-enredo são bens culturais e a ideia de sua apropriação e preservação pela comunidade perpassa pela Educação. Desde sua fundação, a instituição é dinamizadora de processos educativos em ações sistemáticas, com abordagem interdisciplinar, de proteção e promoção do Samba em que o patrimônio humano também se evidencia. Dessa forma, o espaço contribui na formação de cidadãos críticos, que respeitam e valorizam seu patrimônio cultural, que constroem e compartilham saberes através de vivências integradoras da comunidade escolar e de segmentos da sociedade local. A preservação desse patrimônio possibilita a construção coletiva de conhecimento, seja pela ação educativa direta com crianças e jovens, seja pela vivência entre gerações em eventos e outras iniciativas. No térreo, além de áreas de convivência variadas, há um salão apropriado para cerimônia e, é evidente, realização de rodas de samba de excelentíssima qualidade. Os diversos projetos da instituição estabelecem referenciais de pertencimento e são muitos os exemplos bem-sucedidos no Centro Cultural Cartola na sua realização e nos objetivos. Assim, o perfil do equipamento passou a ser um notável exemplo em educação voltada à compreensão e valorização de nossa diversidade cultural. Preservação é o conceito genérico. Nele podemos compreender toda e qualquer ação do Estado que vise conservar a memória de fatos ou valores culturais de uma Nação. É importante acentuar esse aspecto já que, do ponto de vista normativo, existem várias possibilidades de formas legais de preservação. A par da legislação, há também as atividades administrativas do Estado que, sem restringir ou conformar direitos, se caracterizam como ações de fomento que têm como consequência a preservação da memória. Portanto, o conceito de preservação é genérico, não se restringindo a uma única lei, ou forma de preservação específica. (CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, p.19, 1991). A Educação Patrimonial visa estabelecer um melhor relacionamento da população com estes bens, heranças que fazem parte da sua história de modo a fortalecer a vivência real com a cidadania, num processo de inclusão social. É importante perceber que essas práticas aumentam a responsabilidade pela valorização e preservação do Patrimônio. Uma boa educação faz com que os membros de uma determinada população cobrem essa responsabilidade dos seus membros. A própria natureza do vocábulo Patrimônio pode explicar tal fenômeno: originalmente, à herança paterna ou herança familiar, ou seja, aos bens materiais transmitidos de pai para filho. No Brasil a valorização do Patrimônio Cultural é muito incipiente. Podemos observar o desconhecimento na maior parte da população, que deveria ser muito mais trabalhado nas escolas para fortalecer a relação das pessoas com suas heranças culturais. Isto revela o quanto o assunto está ausente ou distante da sociedade, em particular do cotidiano de uma cidade. Fiquei muito entusiasmado ao perceber no trabalho da equipe coman-

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dada por Nilcemar Nogueira, a neta de Cartola, uma visão diferenciada das muitas instituições do mundo do samba. O uso do termo Patrimônio como herança social aparece na França pós-Revolucionária, quando Estado decide tutelar e proteger as antiguidades nacionais com valor e significado atribuídos como importantes para a história da nação. Patrimônio Histórico passa desde então a ser “o conjunto de bens entendidos como herança do povo de uma nação”. Essa definição já incluía “não apenas os bens imóveis, mas também os bens móveis, tais como acervos de museus e documentos textuais” (TEIXEIRA et alli, 2004, p. 02). Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto desses bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. (HORTA; 1999, p. 06). Seria um equívoco dessa pesquisa a não apresentação de um pequeno histórico sobre a Educação Patrimonial, já que o mais se vê no CCC é a prática da abordagem educacional no trato com as noções e práticas patrimoniais, com participação de jovens da comunidade do Morro da Mangueira e das escolas dos bairros vizinhos. 1.5 Uma experiência de gestão exemplear Da experiência da Mangueira quero destacar os elementos de uma gestão cultural diferenciada, como: 1) a institucionalização da do espaço, 2) a relação deste com o território, e 3) a permanente abertura para formação de novas redes. Tais elementos funcionam como fatores facilitadores ao conhecimento crítico por parte das comunidades e dos indivíduos em relação ao seu Patrimônio Cultural, o que fortalece o sentimento de pertencimento. O formato de gestão implementado no CCC, é sem dúvida uma grande contribuição para os espaços populares de cultura. Um exemplo de Gestão Cultural Transformadora. É um modelo que consagra a importância da Educação Patrimonial para o exercício dos direitos culturais e da cidadania. Infelizmente, tais conceitos configuram-se numa proposta pouquíssimo difundida nos espaços populares de cultura. O conhecimento acadêmico de Nilcemar, somado a sua experiência comunitária, trouxeram excelentes resultados à gestão cultural do CCC. Ela conseguiu fechar parceria com a Ford Foundation, em dezembro de 2004, voltada para uma implementação de um novo formato de gestão cultural, que inclui toda a parte de desenvolvimento organizacional (gestão, governança), marketing, projetos e mobilização

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de recursos. Outra parceria fundamental foi fechada com a Fundação Roberto Marinho, que se dedica a contribuir para que a estrutura física do prédio seja equiparada às instalações dos grandes museus do Rio de Janeiro. A sustentabilidade das instituições culturais se constitui num grande desafio. A principal fonte de recursos advém de convênios com órgãos públicos que obrigam a equipe administrativa a cumprir toda aquela burocracia exigida pelo setor público, que muitas vezes acabam por limitar algumas ações consideradas prioritárias. A nova gestão do Centro Cultural Cartola, com Nilcemar, passou a buscar a ampliação do diálogo com o poder público e com as organizações representativas, a diversificar as fontes de patrocínio, o acompanhamento de editais públicos nas diversas esferas de governo, dar visibilidade as lideranças locais, garantir a execução do plano de educação patrimonial. 1.6 A Gestão o Sujeito e o Território Frente aos desafios impostos pelos ambiente de mudanças das cidades, uma gestão contemporânea no campo da cultura tem o dever de estar atenta às movimentações dos governos e do mercado, a fim distinguir que políticas públicas representam um novo desenho de desenvolvimento, baseando-se em algumas perspectivas que diluam essa contradição. Já que as duas narrativas (mais investimentos à cultura e desenvolvimento) são sensos comuns gerados nos debates do setor nesses últimos doze anos, os projetos desenvolvidos nesses espaços devem apresentar soluções mediadoras a partir de um diálogo direto com os setores de fomento (públicos e privados), da elaboração de bons projetos e do acompanhamento das políticas públicas das secretarias de cultura nos governos. Além da percepção da dimensão da cultua é importante que haja uma visão empreendedora voltada para elaboração de projetos complementares afinados com as politicas que mudaram o pensamento sobre Cultura no país, tais como: Sistema Nacional de Cultura, Cultura Viva, premiações a setores alijados do processo distributivos como as “minorias”: negras, indígenas, populares fortalecendo a visão de diversidade. Estes são ótimos exemplos desenvolvimentistas aplicados ao território e no sujeito. Os projetos e as instituições culturais do campo popular devem estar inseridos num processo de desenvolvimento que passa pela potencialização do território e dos sujeitos incentivando e fomentando arranjos locais. Assim através desta ótica aumentaremos o lastro de participação social (desconcentração). E quando se fala de uma gestão cultural voltada para a os espaços populares é necessário forcar o tempo todo no comportamento coletivo, presente nas relações do cotidiano, sujeito às mudanças e às influencias das novas tendências. A visão crítica da Administração deve seguir em sintonia com a visão comunitária. Esta em momento algum poderá ser desprezada. O termômetro

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social oscila constantemente e indica o grau de satisfação ou insatisfação referente aos serviços prestados, o que em muitos casos será usado como divisor de águas no processo decisório. O conceitos que se relacionam com a Cidadania Cultural estão vinculados aos conceitos de patrimônio cultural, acesso à produção e à fruição cultural, igualdade de oportunidade, acesso às informações em todas as fases dos processos produtivos. A Gestão Transformadora, com foco na Educação Patrimonial, requer o conhecimento profundo dos limites entre o público e o privado e deve estar atenta tanto às questões de preservação das tradições, quanto aberta às novas experiências. Não se transforma uma realidade local de um momento para outro. É um processo longo, com avanços e recuos, que vai depender do grau de conscientização em cada fase do processo de transformação. Será preciso, além de tudo, lidar com as resistências à mudança, no seus patamares mais amplos, envolvendo aspectos sociais, antropológicos e culturais, dentro e fora do Território. Por fim, ela dever orientar que a descoberta dos potenciais talentos artísticos e intelectuais dentre os membros das comunidades deve ser tratada como um resultado esperado nesse caminho transformador, ou seja, quase uma premissa. 2. CONSIDERAÇÕES FINAIS As alterações decorrentes do crescimento urbano e suas movimentações transformadoras geram, muitas vezes, a distorção do carácter público do espaço urbano e passa a servir à exploração econômica e financeira, em detrimento da construção de locais de convivência coletiva e pública. Minhas observações se concentraram nas experiências exitosas que representam a retomada e manutenção de locais públicos como lugar de encontros, políticas, trocas, convívio e realização coletiva, que possibilitem o fortalecimento das ações culturais. A presente pesquisa tentou reunir ações e atores que trabalham para intensificar a dimensão empresarial nos espaços do samba e da cultura como um todo, através de uma gestão cultural contemporânea que age de forma cuidadosa e preocupada com a recuperação e/ou preservação dos traços culturais. No entanto temos que ter a noção de que tais iniciativas são ainda bastante reduzidas em relação ao grande universo das manifestações culturais em todo país. É comum encontrarmos nos espaços populares de cultura formas inadequadas e descontínuas de gestão cultural. As observações aqui realizadas foram amparadas por reflexões acadêmicas que envolvem campos diversos, tais quais antropologia, sociologia, história, arquitetura e urbanismo. Podemos concluir que as ações culturais ligadas ao samba conecta diretamente a manifestação de cultura e arte à dimensão social do território e sugere um grau de relação entre os agentes que atuam nos espaços, ao mesmo tempo de afetividade e responsabilidade. O conceito ampliado de patrimônio cultural consolidado na Constituição Federal de 1988, influenciado pelas convenções internacionais, consagra a noção de bens imateriais, com-

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preendidos pelas manifestações culturais e suas diversas formas de expressão; como componente do Patrimônio Cultural Brasileiro. Mais do que isso, nossa Constituição prevê a participação da comunidade na proteção do patrimônio cultural, principalmente através de dois novos instrumentos jurídicos: o inventário e o registro. Todavia, sabemos que a Constituição não é capaz de implementar sozinha uma política cultural democrática e inclusiva. Tal construção só será alcançada a partir de uma ruptura com as bases ideológicas que influenciam o pensamento conservador do Estado. O discurso dominante ainda é segregacionista e dicotômico. Separa cultura popular de cultura erudita, não valoriza a subjetividade, a dinamicidade e a espontaneidade do processo cultural de todo e qualquer grupo social. Trata processos e bens culturais como produtos e lida com a cultura como instrumento, ora eleitoral, ora para promoção midiática de suas ações; dentre outras posturas incompatíveis com a visão contemporânea de patrimônio cultural. Modelos de gestão como o observado no Centro Cultural Cartola - Museu do Samba podem ser difundidos como exemplos positivos de uma gestão cultural transformadora, que introduziu a busca constante por cidadania num espaço de samba. Espaço este que alcançou o status de museu com e consegue manter um excelente grau de convivência, lazer, formação, fruição artística e preservação. Que democratizou o conceito de Educação Patrimonial e, mesmo diante das dificuldades e problemas aqui expostos, nos apresenta caminhos e tecnologia para um tempo mais promissor para a gestão cultural voltada para os espaços populares. A experiência de Nilcemar, à frente do Centro Cultural Cartola, vem confirmar que a ruptura paradigmática, esperada no campo ideológico para a efetivação das políticas culturais mais democráticas, deve ser acompanhada por novos modelos de gestão cultural contemporânea, que além visar alcançar a sustentabilidade deverá saber bem dimensionar o seu papel social. Enfim, novos caminhos promissores começam a ser desenhados, pois, uma vez comprovada a sua eficiência, haverá a necessidade de um grande esforço por parte dos grupos sociais, políticos e acadêmicos para que esses novos formatos de gestão cultural sejam mais pesquisados, aperfeiçoados e propagados.

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A PERCEPÇÃO DE TRABALHADORES ITAJAIENSES SOBRE O PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR Ana Clara Ferreira Marques1 Maria Glória Dittrich2

RESUMO: A Lei Federal nº 12.761/2012 instituiu o Programa de Cultura do Trabalhador para garantir a implementação de direitos culturais aos trabalhadores e incentivar a cadeia produtiva da cultura. Este artigo é resultante de uma pesquisa com objetivo de perceber como se dá o processo de implantação deste programa, em Itajaí – SC. A pesquisa foi do tipo exploratória, qualiquantitativa, sob a abordagem da hermenêutica fenomenológica. O público alvo foi composto por 8 empresas itajaienses optantes do lucro real. A coleta de dados realizou-se por pesquisa bibliográfica e documental e por entrevistas estruturadas individuais, com três gestores e três trabalhadores. O resultado mostrou que a rede credenciada de recebedoras do Vale Cultura é muito pequena em Itajaí. A percepção dos trabalhadores sobre o programa é positiva e favorável à ampliação do consumo cultural. PALAVRAS-CHAVE: Vale Cultura, Rede Credenciada, Política Pública.

1. INTRODUÇÃO O Programa de Cultura do Trabalhador, conhecido como Vale Cultura, foi estabelecido pela meta 26 do Plano Nacional de Cultura (PNC) do Brasil e visa garantir o exercício dos direitos culturais aos trabalhadores e ao mesmo tempo incentivar a cadeia produtiva da cultura (BRASIL, 2013a, p. 79). Instituído pela Lei Federal nº 12.761 de 27 de dezembro de 2012, o programa está em implementação em todos os estados brasileiros. Suas metas são alcançar até o ano de 2020 a distribuição de 12 milhões de cartões Vale Cultura aos trabalhadores, com renda entre 1 e 5 salários mínimos. (BRASIL, 2012b).

Relações Públicas e Mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade do Vale do Itajaí/SC (2015) vinculada à Uniasselvi – Assevim (Centro Universitário Leonardo da Vinci e Associação Educacional do Vale do Itajaí Mirim) como Professora do Curso de Publicidade e Propaganda; email: [email protected] . 2 Filosofa, Mestre em Educação e Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia (2008). Professora Pesquisadora do Programa de Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas da Universidade do Vale do Itajaí; email: [email protected] . 1

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O IBGE estima que a população itajaiense, em 2015, seja de 205.271 pessoas. A economia do município de Itajaí é baseada no setor de serviços, com foco principal na atividade portuária, da qual deriva às atividades de comércio exterior, logística, construção naval, pesca e comércio local. Os dados mais recentes sobre o PIB são de 2012 e nesse ano era de R$ 19.754.199.000,00. De acordo com o censo de 2010 o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) era de 0,795, o 13º maior entre os 293 municípios de Santa Catarina. No mesmo ano, 87,8% da população economicamente ativa tinha renda de até 5 salários mínimos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Este é o público alvo do Programa de Cultura do Trabalhador, demonstrando que, em termos salariais, a maioria da população trabalhadora de Itajaí tem potencial para receber o cartão Vale Cultura, caso se adequem às demais normativas do programa. O Plano Municipal de Cultura de Itajaí - PMC (ITAJAÍ, 2013) demonstra que a estrutura de gestão da cultura no município é composta pela Fundação Cultural de Itajaí (responsável por fomento, difusão e acesso) e a Fundação Genésio Miranda Lins (patrimônio e memória). O financiamento à cultura se dá por meio de editais, da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e de convênios/parcerias. A participação popular acontece por meio do Conselho Municipal de Políticas Culturais com a inclusão de todos os segmentos artísticos organizados por câmaras setoriais. A produção simbólica existe em todos os segmentos artísticos, entretanto, pela avaliação da programação do Teatro Municipal, percebe-se uma predominância de apresentações nos segmentos de dança, música e teatro (MARQUES, 2013). As artes visuais, produção audiovisual e literatura também contam com artistas atuantes. O Plano Municipal de Cultura alerta para a necessidade de preservação das tradições culturais como Boi de Mamão e Terno de Reis (ITAJAÍ, 2013). A produção é embasada por centros de formação artística como o Conservatório de Música Popular e pela formação universitária em música, artes visuais, letras, produção audiovisual e fotografia. No município não existe curso universitário de artes cênicas (teatro e dança), apenas cursos dos grupos profissionais locais. Diante disso, o objetivo deste artigo é apresentar os resultados da pesquisa sobre o Processo de Implementação do Programa de Cultura do Trabalhador (Vale Cultura), no município de Itajaí, com dois focos principais, a saber: 1) Identificar o nível de implantação e a abrangência da rede credenciada de empresas recebedoras do cartão Vale Cultura em Itajaí; 2) Compreender a percepção dos trabalhadores itajaienses sobre o processo de implantação do Programa de Cultura do Trabalhador, no município. O artigo apresenta primeiro o conceito de cultura que embasa e o contexto de elaboração do Plano Nacional de Cultura. Em seguida apresenta-se a metodologia utilizada, o delineamento geral do Programa de Cultura do Trabalhador e os re-

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sultados apontando a visão de trabalhadores sobre o Vale Cultura em Itajaí. Finaliza-se com as considerações finais. 2. UM OLHAR SOBRE O CONTEXTO DE ELABORAÇÃO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR As metas do Plano Nacional de Cultura e as políticas culturais dela decorrentes foram elaboradas a partir do conceito de cultura, atualmente adotado pelo Ministério da Cultura. “Essa concepção compreende uma perspectiva ampliada da cultura, na qual se articulam três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica” (BRASIL, 2013a, p. 15). O aspecto simbólico da cultura reconhece e valoriza a capacidade humana de criar símbolos e expressá-los por meio do idioma, costumes (gastronomia, vestuário, etc.), tradições e linguagens artísticas (teatro, música, artes visuais, dança, literatura, circo, etc.). Esta dimensão se relaciona às necessidades e ao bem-estar individuais e coletivas do ser humano. Maturana (1997, p.205) tece a relação de significado entre os conceitos de ‘ser humano’, ‘linguagem’ (artística ou não) e ‘cultura’. Para ele “o ser humano é constitutivamente social. Não existe o humano fora do social”. O aspecto externo de interação social entre as pessoas, e o aspecto interno de formação do mundo simbólico de cada indivíduo se retroalimentam a partir das linguagens utilizadas nessa dinâmica. “O central do fenômeno social humano é que ele se dá na linguagem, e o central da linguagem é que apenas nela se dão a reflexão e a autoconsciência” (MATURANA, 1997, p. 205). As linguagens artísticas, por sintetizarem diversos significados objetivos e subjetivos, tangíveis e intangíveis em uma mesma expressão, alimentam de forma vigorosa o mundo simbólico e delineiam a manifestação cultural de um povo. Para Maturana (1997, p. 177), “cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver [...] e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar, e um modo de crescer no atuar e no emocionar”. Esta perspectiva expressa a dimensão simbólica do Plano Nacional de Cultura. A dimensão cidadã interpreta cultura a partir da Constituição Federal Brasileira de 1988, como um direito básico que deve ser garantido, pela democratização do acesso à produção, difusão e fruição cultural. Considera-se aqui que as políticas culturais favoreçam uma maior participação do cidadão como criador e consumidor da cultura, atendendo as demandas de seu contexto social e contribuindo para a percepção da cultura como parte de sua identidade. A dimensão econômica evidencia o potencial da cultura em criar cadeias produtivas, geradoras de emprego e renda, que contribuam para o desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável. Considera-se que o setor cultural será responsável por 4,5% do PIB, até 2020 (BRASIL, 2013a, p. 18, 136). Tal fenômeno poderá se dar devido à diversidade de bens culturais, em todos os segmentos artísticos, cuja produção estimula vários setores econômicos, como o de equipamentos, matérias primas, logística, educação, eventos e turismo.

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Com efeito, a cultura, em sua dimensão econômica, é vista no PNC como um dos pilares para o desenvolvimento econômico local e regional, pelo apoio financeiro à preservação e produção de expressões culturais únicas de cada localidade, definindo territórios criativos (BRASIL, 2013a, p. 16-18). Este conceito ampliado de cultura que abarca o ser humano criativo, cidadão e trabalhador, dentro do seu contexto histórico e social, decorre de um longo processo de reflexão sobre cultura e políticas públicas. Na concepção de Rubim (2007, p. 151) para que uma política seja denominada de ‘política pública’ é necessário que seja “submetida ao debate e crivo público” em sua elaboração e monitoramento, enfatizando assim, a importância da participação social, não apenas como beneficiária, mas como agente de transformação da sociedade. Coelho (1997, p. 292) define política cultural como: “programa de intervenções realizadas pelo Estado, com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas”. O Plano Nacional de Cultura foi elaborado em um extenso processo de participação social. Entre 2003 e 2010 ocorreram diversos momentos de pactuação, como: seminários para discussão e diagnóstico da cultura nacional, a instalação de câmaras setoriais por segmento artístico, a 1ª e 2ª Conferências Nacionais de Cultura, a criação do Conselho Nacional de Políticas Culturais e a aprovação da emenda constitucional EC nº48/2005, que acrescentou o parágrafo 3º no artigo 215, criando o Plano Nacional de Cultura (PNC) (BRASIL, 2012a, p. 57 e 87). Este foi detalhado e instituído pela Lei nº 12.343 de 2 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010). A partir desse momento o Ministério da Cultura (MinC) passou a elaborar as metas para alcançar os objetivos nele determinados. O Programa de Cultura do Trabalhador é a meta nº 26 (BRASIL, 2013a). 3. A METODOLOGIA A pesquisa foi exploratória, qualiquantitativa, o embasamento teórico para a discussão dos conceitos centrais da pesquisa sustenta-se na abordagem fenomenológica com foco na hermenêutica. A fenomenologia é o estudo das essências, é uma filosofia que compreende o homem e o mundo a partir da sua facticidade. Trata-se de descrever e não explicar, nem de analisar (MERLEAU-PONTY, 1999). A compreensão sobre os dados ocorreu desde a hermenêutica fenomenológica, sustentada pelo referencial teórico e percepções sobre os dados levantados na pesquisa bibliográfica e documental, bem como, pelos dados obtidos nas entrevistas realizadas junto às empresas, durante a realização dos objetivos. Segundo Dittrich (2008, p. 63), hermenêutica é “uma maneira de entender e expressar a percepção sobre os dados da investigação teórico-prática, de forma qualitativa. A hermenêutica nasce da busca de respostas do pesquisador para seus questionamentos”.

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A partir do exposto pelos autores acima, a compreensão dos dados da pesquisa se desenvolveu da seguinte forma: Indutivamente foi feita a descrição dos dados coletados na realidade pesquisada junto às empresas itajaienses e na pesquisa documental. A coleta de dados deu-se pela avaliação de documentos legais e alterações normativas ocorridas desde o lançamento do Programa de Cultura do Trabalhador até o presente. As fontes de informação (de acesso público) foram o site do Ministério da Cultura/Vale Cultura (BRASIL, 2015b), o site de cadastramento do Vale Cultura (BRASIL, 2015a) e a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC), além dos sites das empresas operadoras do Vale Cultura. O público alvo foi composto por oito empresas de Itajaí, que representam diferentes áreas de produção no município e que atuam no regime tributário de lucro real3. Em cada empresa foram entrevistados três trabalhadores, com renda até 5 salários mínimos, por empresa. Os critérios de inclusão implicaram na escolha de empresas com tributação por lucro real. Isso se deve ao fato deste tipo de organização ser o único que tem benefícios de isenção fiscal ao aderir ao Programa de Cultura do Trabalhador (Vale Cultura). Responderam à pesquisa os três primeiros funcionários, com renda entre 1 e 5 salários mínimos, que se voluntariaram a participar, em cada empresa num total de 24 pessoas. Foram ouvidos também três gestores em cada empresa (diretor, contador e RH), as respostas destas categorias serão descritas apenas quando auxiliarem na compreensão da percepção dos funcionários sobre a política em estudo e foco deste artigo. Os critérios de exclusão implicaram empresas optantes por regime tributário diverso do lucro real. Excluíram-se também todos os trabalhadores com renda maior de 5 salários mínimos e, na faixa de 1 a 5 salários mínimos, todos que não foram os três primeiros a se voluntariar para participar da pesquisa. Tudo isso para manter a coerência com as normativas do Programa de Cultura do Trabalhador. A identificação das empresas participantes se fez por meio de consulta direta à Secretaria Municipal da Fazenda, bem como a empresas de contabilidade do município, aos sites da Receita Federal e Ministério da Cultura. Como instrumentos de coleta de dados, se utilizou questionário elaborado com perguntas diretivas e não diretivas, qualitativas e quantitativas. A forma de aplicação do questionário foi por entrevista individual, em que ambos, o (a) entrevistado(a) e a pesquisadora, possuíam uma cópia do questionário. Este foi lido pela pesquisadora e respondido verbalmente e por escrito pelo(a) entrevistado(a). As respostas verbais foram gravadas. As perguntas elaboradas para os participantes visavam identificar a percepção dos mesmos sobre o delineamento desta política, suas vantagens e desvantagens para as empresas e seus funcioná-

É a base de cálculo do imposto sobre a renda apurada segundo registros contábeis e fiscais efetuados sistematicamente de acordo com as leis comerciais e fiscais (BRASIL, [201-]).

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rios, bem como, fatores relevantes para sua implementação e a percepção de viabilidade ou não da adesão das empresas ao Programa de Cultura do Trabalhador. As identidades dos entrevistados e das empresas foram nominadas de forma alfanumérica. Os participantes Funcionários foram identificados da seguinte forma: letra ‘F’ para funcionário, seguido do número da empresa e da ordem de entrevista, então, F.4.1 era o participante Funcionário da empresa 4, primeiro entrevistado. O local de realização da pesquisa foi o município de Itajaí. As empresas foram contatadas por telefone para identificar o nome e email dos responsáveis a serem entrevistados. Em seguida, por email, foi introduzida a explicação da pesquisa quanto ao seu tema, objetivos e benefícios aos possíveis participantes, visando agendar uma data para a entrevista, que se realizou no local da empresa. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da UNIVALI mediante o parecer nº1.173.796. Antes do início da entrevista foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ao participante e coletada a assinatura do Consentimento de Participação do Sujeito. 4. O DELINEAMENTO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR EM SEUS ASPECTOS DOCUMENTAIS LEGAIS.4 Diversas legislações delineiam o Programa de Cultura do Trabalhador, que foi instituído pela Lei Federal nº 12.761/2012. Sua execução está regulamentada pelo Decreto Presidencial nº 8.084, de 26 de agosto de 2013. As normas e procedimentos para gestão do Vale Cultura estão definidos nas Instruções Normativas (IN) nº 2 e nº 3 de 2013. Os objetivos do programa são: “possibilitar o acesso e a fruição dos produtos e serviços culturais; estimular a visitação a estabelecimentos culturais e artísticos; e incentivar o acesso a eventos e espetáculos culturais e artísticos” (BRASIL, 2012b). A gestão e monitoramento do Programa de Cultura do Trabalhador competem à Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC), do Ministério da Cultura. O Vale Cultura será confeccionado e comercializado por empresas operadoras e disponibilizado aos usuários pelas empresas beneficiárias para ser utilizado nas empresas recebedoras. As empresas beneficiárias e operadoras devem se cadastrar junto ao Ministério da Cultura e receber certificado de habilitação para participação no programa. As empresas recebedoras serão cadastradas pelas operadoras. Trata-se de um cartão magnético de débito pessoal, no qual as beneficiárias depositarão R$50,00 mensalmente para seus funcionários (BRASIL, 2012b). Esta é uma política pública de cultura executada diretamente do nível federal para o cidadão, sem a intermediação de níveis estaduais e municipais de gestão pública. Mais detalhes sobre as normativas deste programa podem ser encontrados nas referências bibliográficas BRASIL, 2010 até BRASIL, 2015b.

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O cartão Vale Cultura é um benefício opcional “O trabalhador poderá reconsiderar, a qualquer tempo, a sua decisão sobre o recebimento do Vale Cultura” (BRASIL, 2013b, Art. 17). Ao aceitar recebê-lo, o trabalhador está exercendo seus direitos culturais e a autonomia de consumo. O valor do cartão não constitui salário; não sofre desconto de contribuição previdenciária ou do FGTS e é isento de imposto de renda (BRASIL, 2012b e 2013b). No entanto, para trabalhadores entre 1 e 5 salários mínimos, o empregador pode descontar, R$1,00 por salário mínimo recebido. Esta política está em implementação em todos os estados brasileiros. Na cidade de Itajaí não há ainda divulgação de sua efetiva implantação, isso estimula a realização de um estudo para compreender a percepção dos trabalhadores itajaienses sobre o processo de implementação do Programa de Cultura do Trabalhador no município e identificar o nível de implantação e a abrangência da rede credenciada de empresas recebedoras do cartão Vale Cultura. 5. PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR EM ITAJAÍ – REDE CREDENCIADA DE EMPRESAS RECEBEDORAS Estão certificadas pelo Ministério da Cultura e listadas no site de cadastramento do Vale Cultura 42 empresas operadoras (BRASIL, 2015a). Em nove destas, o acesso à rede credenciada só é permitido com login e senha. Portanto, não foi possível saber se atuam em Itajaí. As pesquisas nos sites de cada empresa, identificaram que oito operadoras possuem rede credenciada no Estado de Santa Catarina, sendo que, três atendem as cidades de Blumenau, Camboriú e Florianópolis. Cinco delas tem rede em Itajaí e Balneário Camboriú. Estes são municípios vizinhos e interligados, de modo que a rede credenciada de cada um deles é usufruída pela população das duas cidades. A cidade de Itajaí é atendida pelas seguintes operadoras, por ordem de empresas recebedoras credenciadas: Alelo/Banco do Brasil (que atuam juntas em Itajaí) com 28 credenciadas na região; Ticket com 10 credenciadas; Banrisul com oito credenciadas; Sodexo com sete credenciadas e Brasil Convênios com três empresas credenciadas. Estes dados foram obtidos estudando os sites destas operadoras e identificando a quantidade e localização da rede credenciada. A lista de empresas beneficiárias indica qual a operadora de cartão contratada (BRASIL, 2015a). Desse modo foi possível identificar quantas empresas beneficiárias, em todo país, são atendidas por cada uma das cinco operadoras atuantes em Itajaí. A operadora Alelo atende 1144 beneficiárias em todo país e o Banco do Brasil atende 1061. Estas duas empresas juntas detêm a maior fatia do mercado brasileiro de cartões Vale Cultura, cerca de 23%. A operadora Ticket atende 823 beneficiárias no país, a Sodexo atende 773, o Banrisul 205 e o Brasil Convênios atende 33. Um ponto que chama a atenção é que o Banco do Brasil é ao mesmo tempo, a segunda maior operadora do país e uma das maiores empresas beneficiárias, portanto, seus funcionários

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recebem o cartão Vale Cultura. De acordo com seu próprio site, o Banco do Brasil tem mais de 5 mil agências no país. Sendo operadora de si própria, a taxa de administração do cartão Vale Cultura tende a ser a menor permitida por lei, que é 0%. Os recursos assim investidos retornarão de duas formas, a saber: por um lado, estes gastos entram como despesa operacional, diminuem o lucro líquido e tem direito à isenção de 1% do imposto de renda devido, por ser optante do lucro real. Por outro lado, a distribuição do cartão Vale Cultura torna-se uma nova fonte de receita ao atuar como operadora, com direito a cobrar taxa administrativa das empresas recebedoras credenciadas. Então se observa que, para o setor bancário, o Programa de Cultura do Trabalhador parece muito mais vantajoso do que para empresas de outros segmentos. Quatro das cinco empresas recebedoras credenciadas em Itajaí e Balneário Camboriú cadastraram as redes de cinemas que atuam nas duas cidades, bem como, a rede de livrarias, que atua nos estados da região sul do Brasil. Esta rede credenciada é formada principalmente por empresas do segmento do comércio de livrarias e papelarias. No caso de empresas recebedoras, que formam redes regionais ou nacionais, elas são ao mesmo tempo beneficiárias por distribuir o cartão Vale Cultura aos seus funcionários e recebedoras por comercializarem produtos culturais. De modo que uma parte dos recursos investidos no fornecimento deste benefício retornará com a comercialização de seus produtos aos próprios funcionários. Sendo empresas de grande porte, tendem a ser tributadas com base no lucro real e, portanto, teriam direito à isenção de 1% no imposto de renda devido. A rede de recebedoras credenciadas abrange os seguintes produtos e serviços culturais: instrumentos musicais; espetáculo musical; ingressos pela internet; jornal; cinema; equipamentos; livros; revista; cursos e artesanato. Das 44 credenciadas, 37 são do segmento de comércio e sete são do segmento de serviços (cinemas e cursos). Itajaí tem historicamente grande produção cultural nos segmentos do teatro, música e dança, com muitos artistas e grupos constituídos em pessoas jurídicas, por meio de empresas ou associações (MARQUES, 2013). Mas essa produção local não está representada na rede de credenciadas do Vale Cultura. Portanto, as opções de desenvolvimento da autonomia cultural pela utilização deste cartão são bastante restritas. Enquanto as opções de acesso à cultura forem limitadas por redes credenciadas tão pequenas, dificilmente as empresas se sentirão estimuladas a aderirem ao Programa de Cultura do Trabalhador e beneficiar seus funcionários com o cartão Vale Cultura. A razão disso é que sem uma ampla opção de consumo cultural, o acesso à cultura permanece reduzido, a ampliação da qualidade de vida do trabalhador advinda desse acesso também. Consequentemente diminuem as chances de melhoria no desempenho do trabalhador derivado desse benefício. Deste ponto de vista, o custo econômico do investimento torna-se prioritário para o empresário e a adesão ao Vale Cultura desvantajosa.

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6. A PERCEPÇÃO DOS TRABALHADORES SOBRE O PROCESSO DE IM PLANTAÇÃO DO PROGRAMA DE CULTURA DO TRABALHADOR As entrevistas, para coleta de dados junto às empresas, foram realizadas entre os dias 27 de agosto e 15 de setembro de 2015. Quando perguntado aos 24 participantes da categoria Funcionários sobre o conhecimento do Programa de Cultura do Trabalhador constatou-se que 10 dos 24 Funcionários (41,7%) entrevistados conhecem o programa e 14 (58,3%) desconhecem. Os dados indicam também que a principal fonte de informação dos entrevistados, que dizem conhecer o Programa de Cultura do Trabalhador, foi a ‘imprensa’ em propagandas oficiais (VALE CULTURA, 2014). As informações obtidas por essa via foram introdutórias e parciais. 30% dos trabalhadores, beneficiários finais desta política, buscaram de imediato informações mais aprofundadas no site do MinC/ Vale Cultura. Isso indica um interesse pelo acesso à cultura por parte do cidadão trabalhador. Para Calabre (2007, p. 14), “numa democracia participativa a cultura deve ser encarada como uma expressão de cidadania[...], como força social de interesse coletivo”. Diante da pergunta: Você pode descrever brevemente como funciona o Programa de Cultura do Trabalhador (VALE CULTURA)? Nenhum dos participantes respondentes conseguiu delinear o Programa de Cultura do Trabalhador quanto ao seu conceito, objetivos e normativa de funcionamento. As respostas de todos os participantes apresentaram fragmentos de compreensão sobre esta política. A percepção dos 10 Funcionários que conhecem o programa é de que esta política proporciona simultaneamente um benefício econômico para empresa e para os funcionários. Sem, no entanto, manifestar a compreensão do montante de investimentos e/ ou viabilidade econômica da adesão ao programa. Trazem a ideia incorreta de que os custos da empresa serão totalmente compensados pelo incentivo fiscal. Não foi manifesta a percepção da cultura como um direito constitucional, mas sim como incentivo ao acesso. Em seguida perguntou-se sobre as vantagens e desvantagens do Programa de Cultura do Trabalhador para os funcionários. Os respondentes são unânimes em pontuar que o cartão Vale Cultura possibilita o acesso, a aproximação deles aos bens e serviços culturais. Este benefício estimula e viabiliza um contato que hoje eles não têm ou gostariam de ampliar. Vê-se aqui um interesse pelo pertencimento, por ser reconhecido como indivíduo cultural (dimensão simbólica da cultura). Eis as falas neste sentido: “Incentivo à cultura facilita o acesso aos eventos por não serem baratos.” (F.2.1) “Facilidade ao acesso à cultura do país, como teatro, cinema, livraria, etc.” (F.4.1) Foram levantadas também vantagens intelectuais, sociais e subjetivas que possibilitam o desenvolvimento de autonomia diante da vida. Nas falas abaixo os funcionários participantes

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refletem sobre a relação direta entre a aquisição de conhecimento e a capacidade de expressão do indivíduo, abordam que uma mudança interior de capacidade reflexiva amplia a compreensão do mundo a partir do alargamento do seu mundo simbólico. Indica-se o acesso à cultura como oportunidade de valorização do seu contexto social de origem, a família, e possibilidade de ampliação da qualidade de vida do cidadão. Estas falas estão indicadas a seguir: “[...] Acho que melhoraria muito intelectualmente, a cabeça de muita gente e a aproximação da família [...]. Acho que essa seria a vantagem.” (F.3.3) “Cria novas visões é do mundo pra cada, pra cada um.” (F.3.3) “Pra que a gente possa tomar decisões ou até mesmo saber como é que funciona certo aspecto da nossa vida.” (F.1.1) Se gestores das empresas compreenderem o sentido desta reflexão e o benefício profundo que o contato com a arte proporciona, perceberão também que o valor econômico desse investimento é pequeno em relação ao benefício humano dele derivado. Oito entre dez dos respondentes declararam não perceber nenhuma desvantagem. Não foi citado, o valor que a empresa pode descontar do salário do colaborador pela concessão do cartão Vale Cultura, que seria um real de desconto por cada salário recebido. Aos 24 respondentes Funcionários foram feitas perguntas sobre o seu conhecimento do processo de adesão da empresa ao Programa de Cultura do Trabalhador. A palavra chave que sintetiza as respostas é desinformação. Cabe aqui a pergunta: os funcionários têm direito de acesso à informação sobre as razões que levam os gestores das empresas a adiar a adesão ao Programa de Cultura do Trabalhador? Foram sintetizados os pontos mais importantes sobre o cartão Vale Cultura, da seguinte maneira: No cartão de débito VALE CULTURA será depositado R$50,00 (cinquenta reais) por mês para cada funcionário. Este valor só pode ser gasto em produtos e serviços culturais (cinema, shows, artesanato, revistas, instrumentos, etc.). O valor depositado é acumulativo e não se expira. Pelo cartão, a empresa pode descontar por mês, um real por cada salário mínimo do funcionário. Em seguida foram consultados quanto ao interesse em receber o cartão. Apenas 1 participante (4,2%) não tem interesse no cartão Vale Cultura e expressa o motivo na fala a seguir:. “Porque não tenho interesse nesse negócio de arte” (F.5.2). Nessa fala evidencia-se a percepção da arte como algo alheio a si e de seu contexto sociocultural. É justamente sobre isso que Bourdieu e Darbel (2003, p. 69) se referem ao dizerem “a falta de prática é acompanhada pela ausência do sentimento de privação [...]”. Declararam interesse em receber o cartão Vale Cultura 23 entre os 24 funcionários entrevistados, que equivale a 95,8%. Este índice tão expressivo se opõe contundentemente aos argumentos de entrevistados da categoria Direção de que a implantação do Programa de Cultu-

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ra do Trabalhador não seria sentida como um benefício, pois os funcionários não se interessam por cultura. O Vale Cultura é visto como uma fonte de recursos (salário indireto) que possibilita o acesso à cultura estimula o hábito de consumo cultural, a ampliação dos conhecimentos, a formação de público. O valor de desconto foi considerado pequeno em relação ao depósito mensal no cartão. Ao justificar o interesse pelo cartão Vale Cultura, os entrevistados citaram vários usos em segmentos artísticos, como: cinema, teatro, livros, shows, instrumentos artísticos, revistas, CDs e artesanato, festivais de dança e visitação a museus. Diante dessa manifestação tão diversa de interesse de consumo cultural, cabe questionar por que as empresas operadoras que estão atuantes no município de Itajaí ainda não tem uma rede credenciada capaz de suprir estes produtos e serviços culturais. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Programa de Cultura do Trabalhador é uma política pública de cultura executada do governo federal diretamente para o cidadão, sem a intermediação de níveis estaduais e municipais de gestão pública. A importância de sua implantação no município de Itajaí é justamente o potencial desta política que visa universalizar o acesso à cultura, estimular o financiamento direto da cultura local, regional e nacional pela ampliação do mercado consumidor de cultura e injeção mensal de recursos. Além disso, é importante também pelo estímulo à autonomia de consumo cultural, e, a consequente preservação do patrimônio dos segmentos artísticos escolhidos para serem consumidos, por serem significativos dentro do contexto sociocultural e por integrarem a percepção de qualidade de vida dos trabalhadores itajaienses. Quanto à implantação e a abrangência da rede credenciada de empresas recebedoras do cartão Vale Cultura em Itajaí, constata-se que apenas cinco empresas operadoras atuam no município e formam uma rede muito pequena, com prevalência de cadastramento de conglomerados de cinemas e livrarias. Até o momento, em Itajaí não foram cadastradas as pessoas jurídicas que representam os artistas locais ou regionais nos diversos segmentos artísticos. De modo que os frutos da criação artística local estão sendo preteridos em relação aos produtos da indústria cultural nacional. Portanto, não está ocorrendo o estímulo à cadeia econômica da cultura a nível local. No âmbito nacional, até o momento não há divulgação, no site do Vale Cultura, dos resultados alcançados em termos de estímulo à cadeia econômica da cultura, geração de emprego e renda e ampliação do consumo cultural pelos trabalhadores. Observa-se aqui também que a diminuta rede credenciada, em Itajaí, limita as possibilidades de desenvolvimento da autonomia de consumo cultural pelos trabalhadores. De modo que desestimula a adesão dos empresários itajaienses ao programa, pois os custos para a empresa superam os benefícios práticos aos trabalhadores.

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Quanto à percepção dos trabalhadores itajaienses sobre o processo de implantação do Programa de Cultura do Trabalhador constatou-se que apenas 41,7% tinham conhecimento desta política pública no momento das entrevistas. A fonte de informação principal foi a imprensa. A descrição do Programa de Cultura do Trabalhador, pelos entrevistados, foi superficial e fragmentada. O conceito de cultura enquanto um direito constitucional não foi percebido pelos respondentes. Os funcionários não têm a percepção do custo e da complexidade - em termos de políticas de recursos humanos, planejamento de investimento e de tributação - que a adesão ao Vale Cultura implica para as empresas. Quanto a vantagens e desvantagens, os Funcionários identificam que o acesso à cultura proporciona ampliação dos conhecimentos, da capacidade de expressão do indivíduo, de refletir sobre si e sobre o mundo e proporciona a aproximação da família e valorização do seu contexto sociocultural. A percepção dos Funcionários, como público alvo do programa, reflete a importância de sua implantação e demonstra que o investimento nesta política é pequeno em relação ao benefício humano dele derivado. De maneira geral os Funcionários não percebem desvantagem no Vale Cultura. Quanto ao interesse em receber o cartão Vale Cultura, 95,8% dos participantes Funcionários estão interessados em utilizar o cartão para ampliar suas possibilidades de consumo cultural, numa grande variedade de produtos e serviços. Isso indica que há demanda para uma rede credenciada bastante diversificada e muito mais ampla do que a rede de empresas recebedoras hoje cadastradas em Itajaí. Apesar do interesse dos funcionários, nenhuma empresa entrevistada se decidiu ainda pela adesão ao Vale Cultura, o processo de implantação do Programa de Cultura do Trabalhador em Itajaí está em fase de tomada de consciência e do despertar do interesse empresarial. Portanto, sugere-se como pesquisas futuras para abordar mais completamente o tema, que a realização de pesquisa diretamente com as operadoras atuantes no município pode trazer maior compreensão sobre a formação da rede credenciada nesta região.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre.; DARBEL, Alan. Amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. 1ª ed. São Paulo: EDUSP: Zouk, 2003. 242 p. BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Lucro real. Conceito. [201]. Disponível em . Acesso em: 25 out. 2015. BRASIL. Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário

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MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 662 p. RUBIM, A. A. C. Política culturais: entre o possível & o impossível. In: NUSSBAUMER, G. M. (Org.). Teorias e políticas de cultura: visões multidisciplinares. Salvador: Edufba, 2007. p.139-158. VALE CULTURA comercial. Publicado por Tele Cine Vídeo Store, 31 mar. 2014. (30s). Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2015.

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AVALIAÇÃO DO PROGRAMA CULTURA VIVA – UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO DOS DOIS MARCO LÓGICO APLICADO AO PROGRAMA Ana Clécia Mesquita de Lima1 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise da elaboração dos dois Quadros Lógicos presentes nas avaliações do Programa Cultura Viva feitas pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), no caso, “Cultura Viva – avaliação do programa arte educação e cidadania” (2010) e “Linhas Gerais de um Planejamento Participativo para o Programa Cultura Viva” (2014) em dois tempos distintos de implementação do programa. Para isso será utilizada bibliografia sobre avaliação de políticas públicas (Ala-Harja e Helgason e Januzzi) e bibliografia específica sobre política cultural e cultura viva (Turino, Calabre e Farah e Medeiros). PALAVRAS-CHAVE: política pública, avaliação, cultura, cultura viva, quadro lógico.

1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise das duas avaliações realizadas pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) sobre o Programa Cultura Viva (PVC), do Ministério da Cultura (Minc). As avaliações foram realizadas em períodos diferentes e com objetivos diferentes, no entanto um elemento em comum aparece em ambas as avaliações: a elaboração de um Quadro Lógico. Na primeira avaliação, publicada em 2010, a aplicação do quadro lógico teve como objetivo traçar as linhas gerais de atuação do programa, norteando as ações e indicando caminhos, a principal base de coleta de informações foi a pesquisa de campo, com entrevistas aos gestores dos pontos de cultura. A segunda avaliação foi publicada em dezembro de 2014 e teve como objetivo traçar um planejamento estratégico de execução do programa, a fim de que as metas do Plano Nacional de Cultura (PNC) e os objetivos do Plano Plurianual (PPA) do Governo Federal fossem alcançadas nos prazos determinados nesses dois documentos. A base para a elaboração desse planejamento estratégico é o redesenho do programa, realizado a partir de um Grupo de Trabalho (GTCV) que contou com a coordenação do Mestranda no Programa de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC Gestora Pública (Diretora Assistente no Departamento de Biblioteca Pública e Preservação da Memória – Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Bernardo do Campo. [email protected] [email protected]

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IPEA e tinha entre seus membros representantes do Ministério da Cultura (Minc) e representantes dos Pontos de Cultura (atores do programa). Nesse contexto o marco lógico do programa também foi redesenhado. Para realizar a análise serão utilizados os textos de Ala-Harja e Helgason e Januzzi a fim de embasar teoricamente o campo da avaliação em políticas públicas, e o texto de Pfeiffer sobre as origens e objetivos de aplicação do Quadro Lógico. Para realizar a análise serão utilizados os dois relatórios publicados pelo IPEA (“Cultura Viva – avaliação do programa arte educação e cidadania” (2010) e “Linhas Gerais de um Planejamento Participativo para o Programa Cultura Viva” (2014)), além de bibliografia específica sobre o PCV, como Turino, Calabre e Farah e Medeiros. O presente artigo se dividirá em três partes: A primeira parte será traçado um breve panorama sobre os conceitos e aplicações de avaliações em políticas públicas. A segunda parte contemplará um breve resumo sobre o programa, a descrição das avaliações que serão analisadas e a análise em si, que irá comparar primordialmente três aspectos do Quadro Lógico das duas avaliações: a inserção e importância do QL na avaliação da política; o discurso de construção desse QL; a definição/identificação do problema no QL . A terceira parte serão as considerações finais sobre o debate proposto. 2. AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E QUADRO LÓGICO A avaliação de políticas públicas pode ser entendida como uma das etapas do ciclo de políticas públicas, e estaria inserida como a última etapa de uma política pública, No entanto essa definição não comtempla todo o potência e utilidade dos processos de avaliação para a efetivação de uma política. Segundo Januzzi (2014) as avaliações podem ser usadas em todas as etapas do ciclo de políticas públicas: Avaliação refere-se ao conjunto de procedimentos técnicos para produzir a informação e conhecimento para desenho ex-ante, implementação e validação ex-post, de programas e projetos sociais, por meio das diferentes abordagens metodológicas da Pesquisa Social, com a finalidade de garantir o cumprimento dos objetivos dos programas e projetos (eficácia), seus impactos mais abrangentes em outras dimensões sociais, para além dos públicos-alvo atendidos (efetividade), e a custos condizentes com a escala e complexidade da intervenção (eficiência). (JANUZZI, 2014, p.10) Ou seja, é possível utilizar dos mecanismos, metodologias, instrumentais e resultados de uma avaliação para embasar e justificar as decisões tomadas em uma determinada política pública. Em consonância com o que Januzzi afirma, Ala-Harja e Helgason (2000) destacam o objetivo de uma avaliação: “A avaliação não substitui o processo da tomada de decisão política, mas permite que as decisões sejam tomadas de maneira mais consciente” (ALA-HARJA e HELGASON, 2000, p. 10). 167

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Em seu artigo “Em direção às melhores práticas de avaliação” os autores destacam a importância da avaliação dos programas de políticas públicas, por serem mais complexos. Um programa de política pública pode ser definido como um conjunto de ações com o mesmo objetivo, mas abordagens diferentes. Nesse sentido os autores afirmam que: A avaliação de programa deve ser vista como mecanismo de melhoria no processo de tomada de decisão, a fim de garantir melhores informações aos governantes, sobre as quais eles possam fundamentar suas decisões e melhor prestar contas sobre as políticas e os programas públicos. (ALA-HARJA,2000,p.5). Avaliar políticas públicas é um trabalho complexo pelo próprio caráter das políticas públicas; não há uma receita única a ser aplicada para todos os casos; os processos de intervenção do Estado em uma determinada realidade a fim de transforma-la envolvem diversos atores sociais com interesses distintos. Sobre a identificação desses impactos em determinada realidade, Januzzi (2014) explica que a avaliação desse aspecto da política necessita de investigação mais exaustiva, justamente por possibilitar a identificação de alterações de realidades sociais: Cabe nesse momento avaliar se a intervenção programática formulada conseguiu provocar mudanças na realidade social que a originou, considerando naturalmente a complexidade do seu desenho e dos arranjos operacionais, além da criticidade da questão social enfrentada (JANUZZI, 2014 p.11). O autor reforça ainda a necessidade de se identificar o tempo certo para realizar uma avaliação. Às vezes determinada política não alcançou a maturidade ideal para que seus resultados sejam devidamente identificados e mensurados. Sobre esse aspecto Januzzi afirma que: Identificar o momento adequado de avaliações dessa natureza é um misto de técnica, política e arte: avaliações precoces podem colocar a perder a legitimidade de um programa meritório que ainda não teve tempo de se estruturar, avaliações tardias podem comprometer recursos e esforços que poderiam ser usados de forma mais eficiente e eficaz na mitigação da problemática social em questão. (JANUZZI, 2014p. 11). Januzzi aponta ainda como um dos desafios para a realização de uma avaliação de política pública o fato de que projetos sociais ocupam um campo de ação complexo, estando suscetíveis a ambientes pouco colaborativos, contextos políticos nem sempre favoráveis, ausência de dados primários, tempo adequado para execução da avaliação e recursos disponíveis para alcançar os objetivos da avaliação. São muitas variáveis a serem consideradas para a elaboração e execução de uma avaliação. Nesse sentido, Januzzi afirma: Avaliação de políticas públicas, ou melhor, análise de políticas públicas, termo preferido por Owen, e, pois, uma atividade muito mais ampla que a avaliação de programas. Trata de contexto político-social de surgimento da política, dos atores participantes. Volta-se mais ao esclarecimento de

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seu processo de construção do que de recomendação prática de como aprimora-la, constituindo, na realidade, um campo de investigação mais propriamente acadêmico que a perspectiva técnico-profissional em que se realiza a avaliação de programas. (JANUZZI, 2014, p. 23) São diversos os desafios para a análise de uma política pública, são diversos também os ferramentais para ajudar a estruturar um planejamento estratégico e sistemas de monitoramento de uma política pública. O Quadro Lógico (QL) é um deles. O quadro lógico pode ser definido como um instrumento para organizar e melhorar a visualização de um determinado plano de intervenção, um instrumento para organizar o processo de conceituação, definição de objetivos, estratégias de intervenção, execução e avaliação de projetos. Surgiu nos anos 60 com o intuito de melhorar os problemas de gestão de empresas privadas, mas nos anos 70 os programas de cooperação internacional começaram a utiliza-lo como referência para unificar o planejamento estratégico de ação das políticas em cooperação internacional. Pfeiffer identifica o QL como um mapa geral do percurso de um projeto, e ressalta que: “O que sempre tem que anteceder o planejamento de um projeto é uma análise do que se deseja mudar com a intervenção, de modo geral, uma situação problema” (PFEIFFER, 2000, p. 83). O QL é uma das metodologias utilizadas para compor um planejamento estratégico Uma das funções destacadas por Pfeiffer é o potencial comunicativo desse modelo. A sistematização de informações em categorias bem delimitadas contribui para qualificar a interpretação das ações, evitando assim ruído de comunicação e falta de entendimento sobre as ações a serem executadas. Esse modelo possui duas lógicas, uma vertical e outra horizontal. A vertical busca deixar clara a razão pela qual o projeto foi concebido, o que ele pretende atingir e como será executado. A lógica horizontal explica como os resultados do projeto serão expressos, utilizando-se de indicadores verificáveis e quais os pressupostos que embasam a ação. Abaixo um exemplo de uma matriz básica do Quadro Lógico:

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O objetivo superior diz respeito à visão de futuro do setor para a qual o projeto contribuirá. O objetivo do projeto diz respeito sobre a situação que se visa alcançar com o projeto e que contribuirá para o objetivo superior. Os resultados são os bens e serviços produzidos pelo projeto e que, combinados, ajudarão a atingir seus objetivos. E as atividades principais são as ações que deverão ser desenvolvidas para atingir cada resultado. A lógica horizontal abrange os indicadores objetivamente comprováveis. O foco é garantir que a construção desses indicadores seja confiável e estes possam ser testados e utilizados em diversos momentos da execução do projeto. Para Januzzi “Na elaboração dos diagnósticos para formulação de programas, os indicadores são imprescindíveis para qualificar os públicos-alvo, localizá-los e retratá-los de modo tão amplo e detalhado quanto possível” (JANUZZI, 2014, p.32). Aqui é necessário ampliar esse escopo de atuação e utilidade dos indicadores, destacando além do público-alvo, quantidades, qualidades, período e localidades (territórios). 2.1. Cultura Viva: avaliação, redesenho e marco lógico O Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva foi criado em 2004 dentro de um contexto específico de redirecionamento das políticas culturais no Ministério da Cultura. Para entender de que forma o Programa Cultura Viva entrou na agenda de prioridades do governo federal é importante relatar brevemente a reorientação das políticas culturais a partir de 2003. O modelo de financiamento da cultura adotado pelo Ministro Francisco Weffort priorizou ao longo dos oito anos nos quais ficou a frente do Ministério da Cultura (1994-2002) o mecenato do setor privado, a partir do principal mecanismo de renúncia fiscal para o setor, a Lei Rouanet. “Voltando às leis de incentivo, que possibilitam às empresas (pessoas jurídicas) e cidadãos (pessoas físicas) aplicarem uma parte do Imposto de Renda (IR) devido em ações culturais, elas foram transformadas no carro-chefe do ministro Weffort e do governo FHC” (SILVA, 2013, p.123). Além disso, os investimentos no setor se centravam no fomento às belas artes. Com a mudança de partido político a frente do governo federal a partir de 2003, o Ministério da Cultura passa a ter como ministro Gilberto Gil, que em seu discurso de posse em dois de janeiro de 2003 já sinalizava a reorientação do conceito de cultura defendido e praticado nos anos posteriores. Conceitos como cidadania cultural, autonomia, protagonismo sociocultural, economia da cultura e inclusão cultural passaram a fazer parte dos discursos e dos documentos elaborados e ações realizadas pela pasta. O Programa Cultura Viva foi elaborado dentro desta outra ótica sobre cultura, com especial foco na descentralização dos recursos do Minc, possibilitando que grupos alijados historicamente do acesso às verbas públicas pudessem se beneficiar com o financiamento público e desenvolver seus trabalhos, fortalecendo assim suas comunidades, práticas tradicionais e fazeres e saberes ancestrais. A principal ação do Programa são os Pontos

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de Cultura, que atuam como nós em um sistema maior, com objetivo de articular em rede os demais pontos que participam do programa. O Programa pretendia estabelecer uma nova relação entre sociedade civil e Estado. No entanto esse objetivo encontrou diversos obstáculos para ser cumprido, a maioria de ordem burocrática: Célio Turino, que estava à frente do programa até 2010, narra todas as dificuldades enfrentadas no inicio do programa em seu livro “Pontos de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima”. Começando pela natureza do convênio estabelecido, o Ponto de Cultura precisava ter um perfil jurídico e estar em atividade comprovada há pelo menos dois anos, mas a grande maioria dos ponteiros (nome dado aos gestores dos Pontos de Cultura) nunca haviam estabelecido relações com o Estado, ainda mais diretamente com o Governo Federal. O tipo de convênio estabelecido submetia o uso do dinheiro e a prestação de contas à lei 8.666/92, lei que rege as licitações públicas e que foi criada para regular o setor de grandes obras primordialmente, não orçamentos de pequenos grupos de cultura popular. Os ponteiros não conseguiam realizar a prestação de contas, e as novas parcelas do convênio não podiam ser depositadas sem essa prestação. Além disso, o Programa Cultura Viva fez a cena política de algumas pequenas cidades do país mudar. Muitos prefeitos de pequenos municípios foram à Brasília querer saber por que tal grupo de sua cidade – que nunca havia sido valorizado ou fomentado pela política local – havia conseguido verba diretamente com o Minc. A articulação em rede e o empoderamento desses novos atores políticos fez nascer um novo movimento social, o movimento dos Pontos de Cultura, com fórum, encontros regionais, estaduais e nacionais, grupos de trabalho, e principalmente, começaram a exercer pressão para que passassem a participar das decisões sobre os rumos do Programa. Com esse cenário o programa é reformulado e passa por um processo de descentralização, criando-se assim redes estaduais e municipais, transferindo para os entes federados as responsabilidades de contrapartida financeira, implementação e monitoramento do programa. Em 2010 as redes estaduais e municipais já contavam com 2.500 pontos de cultura. No relatório de reformulação do programa de agosto de 2013 contava-se 3.500 pontos de culturas. Um dos elementos mais importantes do Programa é a organização em rede dos Pontos de Cultura. Os pontões de cultura possuem como pressuposto de sua existência a articulação em rede dos pontos. Em seu documento base, três conceitos são colocados para que a articulação em rede e a gestão compartilhada entre pontos de cultura e poder público sejam alcançadas: autonomia, protagonismo e empoderamento. Esses três elementos, juntos, foram incorporados pelos ponteiros, que colocaram em prática seus novos saberes e formas de se organizar. Depois do levantamento e identificação de todas as problemáticas do Programa, houve dois movimentos distintos de redesenho do programa, mas ambos interligados. Foi nas Teias (encontros dos ponteiros) que o projeto de Lei (PL) 757/2011 começou a ser escrito coletivamente pelos ponteiros. Ficou a cargo da deputada Jandira Feghali (PCdo B/RJ) apresenta-lo.

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Em 27 de julho de 2012, foi aprovado na Comissão de Educação e Cultura o PL nº 757 de 2011, que instituiu legalmente o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, sendo que, em 28 de novembro de 2012, o PL nº 757/2011 foi também aprovado (por unanimidade) na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, e em 16/10/2013 foi apresentado ao Senado Nacional, identificado como PL nº 90/2013 (FARAH e MEDEIROS, 2014, p. 18). No dia 23 de julho de 2014 foi sancionada a lei n 13.018, Lei Cultura Viva, dando perenidade e legitimação às ações do Cultura Viva. O segundo movimento interessante da reelaboração do programa é a criação de um GT de trabalho em 2012 (mesma época de inicio da elaboração da lei pelos ponteiros), sob a coordenação do IPEA e a supervisão do Minc (Portaria nº45 de 19 de abril de 2012) com o objetivo de reelaborar o programa. O resultado foi o lançamento de um documento base em agosto de 2013 no qual situa o Programa Cultura Viva dentro do Sistema Nacional de Cultura. Segundo o documento o Programa está dentro das prioridades do governo na área de inclusão social pela Cultura, e institui o Programa Cultura Viva como a Política de Base Comunitária do Sistema Nacional de Cultura. Sua implementação faz parte do Plano Nacional de Cultura, que conta com 53 metas a serem implementadas até 2020, destas, 25 dizem respeito ao Programa Cultura Viva. (MINC, 2013). 2.2. Cultura Viva – avaliação do programa arte educação e cidadania (2010) A avaliação “Cultura Viva – avaliação do programa arte educação e cidadania” foi solicitada em 2007 pela então Secretaria de Cidadania Cultural (hoje Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural) do Minc. O objetivo era realizar uma avaliação formativa, ou seja, “adotada durante a implementação de um programa (avaliação intermediária) como meio de se adquirir mais conhecimento quanto a um processo de aprendizagem para o qual se deseja contribuir” (ALA-HARJA e HELGASON, 2000, p. 8). O objetivo da pesquisa era entender as formas de funcionamento dos pontos de cultura e suas relações com o Estado. Em especial com o Minc, e com outros agentes culturais e sociais. O Programa Cultura Viva é complexo e abrange uma série de ações que acontecem em tempos diferentes, os pesquisadores optaram por realizar uma avaliação ampla do programa a partir da atuação dos pontos de cultura, principal ação do programa. Os instrumentos utilizados nessa pesquisa foram: modelo lógico, grupo focal, aplicação de questionário e a observação de campo. Aqui é relevante ressaltar o destaque dado à posição do avaliador, na qual o IPEA classifica como mista: (...) levando em consideração o diálogo constante entre coordenadores do programa, a equipe de avaliação, e também a metodologia que procurou estabelecer o foco de interesse tanto dos gestores do programa em nível ministerial quando da sociedade civil / comunidade (IPEA, 2010, p.29).

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O plano de avaliação conta com os seguintes passos: a.) elaboração do modelo lógico (ML); b.) elaboração e desenho de questionário com pesquisadores de diferentes instituições; c.) aplicação dos questionários e realização de entrevistas com gestores dos pontos de cultura; d.) realização de grupo focal com os pesquisadores que participaram da aplicação dos questionários e com a equipe da Secretaria de Programas e Projetos Culturais (SPPC) do Minc; e.) análise dos resultados consolidados dos momentos anteriores. Para fins de análise somente o ferramental modelo lógico será utilizado no presente artigo. No entanto é importante relatar brevemente os demais instrumentos utilizados na pesquisa. Um dos objetivos da pesquisa era visitar e entrevistar todos os pontos de cultura cadastrados na SPPC/Minc até 2007. Eram 544 no total sendo que desses 229 seriam entrevistados pela Fundação Joaquim Nabuco (Funaj) no norte e nordeste e o restante pela equipe do próprio IPEA. O objetivo da aplicação desse questionário era: “conhecer melhor os pontos, suas atividades, atuação, dificuldades, desafios e sugestões dos gestores e, com base nestas informações, criar indicadores de acompanhamento do Programa Cultura Viva” (IPEA, 2010, 35). A aplicação de cada questionário durou de uma a três horas, e foi indicado a todos os entrevistadores que fizessem anotações em cadernos de campo. O grupo focal teve como principal objetivo qualificar as observações tabuladas a partir dos questionários e observadas nas anotações dos entrevistadores. O IPEA utiliza a nomenclatura de modelo lógico para a metodologia desenvolvida no âmbito da Câmara Técnica de Monitoramento e Avaliação (CTMA), composta pela Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI), Secretaria de Gestão (Seges), Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e IPEA. A aplicação do ML foi demandada ao IPEA pela SPPC/Minc com o fito específico de formular indicadores próprios para a avaliação e verificar se o programa estaria pronto para ser avaliado, isto é, se continha os componentes clara e suficientemente elaborados para a sua avaliação. (IPEA, 2010, p. 31). A estruturação do marco lógico iniciou-se da identificação de quatro fatores desfavoráveis e outros quatro favoráveis: PONTOS FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS AO PROGRAMA CULTURA VIVA DESFAVORÁVEIS a. insuficiências do quadro de pessoal envolvido diretamente com a gestão do programa, composto por um número baixo de servidores estáveis, o que gera dificuldades no processo de gestão, tendo em vista que esta característica reforça tendências de alta rotatividade, dada a presença de terceirizados, e dificulta tornar rotineiro o domínio de procedimentos e do processo de qualificação;

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b. dificuldades na celebração de convênios, devidas em especial a interpretações divergentes de normas, situação de inadimplência dos proponentes, ou não apresentação de documentação obrigatória; c. inexistência de norma legal que fundamentasse especificamente o relacionamento do Estado brasileiro com entidades da sociedade civil com baixo nível de organização ou institucionalização; e d. insuficiência e inadequação dos fluxos de recursos e dificuldades com relação à coordenação das ações por parte da administração pública. FAVORÁVEIS a. a legitimidade da qual o programa passou a gozar entre os agentes culturais; b. o surgimento de oportunidades conferidas pelo aparecimento de novas tecnologias, mormente aquelas que favorecem a comunicação e o estabelecimento de redes (educação à distância, troca de experiências e soluções etc.); c. a priorização por parte do governo; e d. a emergência de novos atores no campo cultural que apoiam as ações do programa. 2.3. Linhas Gerais de um Planejamento Participativo para o Programa Cultura Viva (2014) O segundo relatório a ser avaliado não é necessariamente uma avaliação. Ele é fruto de um processo contínuo para qualificar as ações do programa. Esse processo se iniciou com a primeira avaliação do programa, no caso a avaliação descrita acima, e continuou como um grupo de trabalho encabeçado pelo IPEA a fim de redesenhar a política (como descrito no item 3.1). “O redesenho faz parte de uma explicita política de continuidade e aprofundamento das diretrizes centrais do programa, agora readequadas e realinhadas aos princípios orientadores da nova gestão da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC).” (IPEA, 2014, p. 11). Além da necessidade apontada acima sobre o redesenho, este serviu fundamentalmente, segundo os autores, para a elaboração de um novo Modelo Lógico para o programa. A elaboração do ML em 2012 não partiu do zero, mas do ML de 2007. A proposta naquele primeiro momento era esclarecer as expectativas e apostas do programa de forma a consolida-lo e organizá-lo para o PPA. O atual processo dialoga com o redesenho do programa e, desta forma, verticaliza a descrição do programa, procurando desenhar as ações principais e delinear as principais estratégias de implementação (IPEA, 2014, p. 13) Este marco lógico contou com três estratégias: A primeira estratégia diz respeito à coleta de informações sobre o programa, análise da avaliação anterior, produção acadêmica sobre o

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programa, os textos dos editais, delimitação de conceitos de cada uma das ações do programa, mapear fluxos e procedimentos internos da SCDC, desenvolver políticas e diretrizes internas e propor um sistema de monitoramento da política. A segunda estratégia diz respeito à dimensão participativa deste planejamento: o diálogo com o Grupo de Trabalho Cultura Viva (GTCV) para que o redesenho do programa se articulasse com a elaboração do ML, ou seja, há um processo dialógico entre definição do ML e redesenho do Programa. A terceira estratégia também privilegia a participação; o IPEA promoveu algumas oficinas para apresentar os desenhos parciais do ML. É relevante salientar a importância do planejamento estratégico para a área de política cultural. O Cultura Viva conquistou ao longo dessa década de existência marcos jurídicos importantes e uma produção teórica muito relevante (produzida pela academia e pelo Minc) para definir e conceituar o programa, no entanto pouco se constrói para a efetivação de um planejamento estratégico (...) quando se focam os instrumentos de políticas, é possível entender a tradução do discurso em prática e as suas fragilidades, opções e falsas opções. Por instrumento de políticas públicas define-se o conjunto de problemas colocados na agenda das políticas públicas e que implicam uso de ferramentas (orçamentação, técnicas, meios, operações, dispositivos, projetos) que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental (IPEA, 2014, 19). 2.4. Análise dos Modelos Lógicos Para fins metodológicos iremos adotar os termos A1 e A2 para designar, respectivamente, a avaliação publicada em 2010 e 2014. Em primeiro lugar é importante ressaltar a mudança no nome do programa, em A1 era “Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva” e em A2 “Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural – Cultura Viva. A A1 não dá muito destaque para a elaboração do ML, as informações reunidas para o diagnóstico estavam mais calcadas nas percepções das experiências dos gestores envolvidos no programa. O ML é somente um dos instrumentais utilizados para avaliar programa, e mesmo assim, o volume substancial de informações sistematizadas sobre as operações e implementação do programa só surgiram um passo após a elaboração do ML. Já A2 tem o foco específico na construção desse marco lógico. Explicações teóricas e justificativas sobre a importância e os objetivos do ML são mais longas e detalhadas. A partir da leitura das estratégias adotadas percebe-se uma clara preocupação em consubstanciar as escolhas e definições dos problemas, ações. Outro elemento importante sobre A2 é o avanço do ML. O Programa Cultura Viva é descrito no Plano Nacional de Cultura como a política nacional

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de base comunitária, e uma das metas do PNC é que em 2020, quando acaba a cobertura deste plano decenal, o Minc tenha instalado 15.000 pontos de cultura em todo o território nacional. Os objetivos do ML estão de acordo com essa meta, e a A2 avança no sentido de estabelecer uma previsão orçamentária para a concretização desta meta. Sobre os discursos adotados nas avaliações. A A1 se preocupa mais em elaborar conceitos e teorias sobre o programa, detendo-se no aprofundamento de conceitos como democracia cultural, cultura como um direito, circuitos culturais e mesmo o próprio conceito sobre o que é política cultural. Já A2 adota linguagem mais técnica e objetiva sobre as análises e sugestões para o programa. Apesar de A2 ressaltar que não foi possível estabelecer uma relação entre o primeiro ML e o segundo, é importante olhar para um dos aspectos desses ML para entendermos essa mudança. Em A1 o problema (e por consequência a exposição da explicação do problema) é definido como “Desvalorização da produção cultural dos grupos e comunidades e sua exclusão dos meios de produção, fruição e difusão cultural”. Em A2 o problema é descrito como “Baixa capacidade de gestão por instrumentos de políticas públicas na execução do Programa Cultura Viva”. O problema é mais preciso em A2, no entanto não há indicativos em nenhum dos dois relatórios que demonstre que o problema de A1 foi resolvido ou se as ações avançaram para que o mesmo seja resolvido. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Realizar análise e avaliações de políticas públicas é campo complexo e diversas variáveis devem se levadas em consideração, como tempo de maturação das ações, recursos disponíveis, modelos metodológicos, atores envolvidos, capacidade dos funcionários em colocar em prática as mudanças sugeridas pela avaliação, entre outros. O Programa Cultura Viva é um programa complexo, com diversas ações acontecendo em tempos diferentes, com atores muito participativos e que interferem em todas as etapas do ciclo da política. Além disso, a área de cultura possui uma problemática específica quando a mensuração de seus resultados. Segundo Calabre “As ações públicas tem que demostrar minimamente coerência entre o que se diz buscar e as ações postas em prática. Não existe relação direta de causa e efeito no campo da ação cultural, o que torna complexa a avaliação”. (CALABRE, 2007, p.100). O entendimento sobre essa limitação é claramente expressada na própria delimitação do problema: em A1 o problema diz respeito à ação cultural em si, ou seja, a conceitos mais filosóficos e subjetivos, apesar de comporem comumente os objetivos a serem alcançados em política cultural. Em A2 o problema muda de foco e passa a abarcar as capacidades estatais de gestão. É evidente a preocupação do IPEA quanto a relevância das observações subjetivas e empíricas nos processos de avaliação. Em A2 podemos identificar a seguinte fala:

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Grupos de discussão com equipes técnicas envolvidas nos programas e, sobretudo, com beneficiários desses permitem levantar rapidamente informações cruciais para aprimoramento de procedimentos e ações dos programas e também para captar dimensões de impacto não facilmente tangíveis (IPEA, 2014, p. 47). Em A1 encontramos o seguinte discurso nas considerações finais Deve-se chamar a atenção para o fato de que a avaliação do desempenho de um programa é sempre contaminada por questões que nada tem a ver com a atuação do próprio programa, dadas as dificuldades em separar causas, consequências e o contexto afetivo e simbólico que envolve as ações. Em linguagem mais clara, as afinidades eletivas fazem parte da reflexão, embora devam ser controladas metodologicamente. (IPEA, 2010, p.104) Mesmo em A2, a importância dos sentidos é ressaltada: Os atores agem produzindo significados e quadros de interpretação do mundo e dos problemas que estão no seu horizonte de preocupações. A perspectiva adotada pelo Ipea na reflexão sobre o Programa Cultura viva é a análise cognitivista de políticas públicas em razão da ênfase que ela dá ao papel das ideias, das representações coletivas e dos mediadores para a construção de sentidos para a ação.” (IPEA, 2014, p. 18). A aplicação do marco lógico, apesar de ter uma importância fundamental para a estruturação e organização do Programa Cultura Viva, e mesmo para a organização do próprio Minc, não dá conta sozinho da dimensão simbólica do programa. Nem mesmo o planejamento estratégico, projetando a ampliação do programa e criando fluxos de trabalho para que ações e orçamento dialoguem e sejam melhor planejados, consegue dimensionar o impacto de transformação social dessa política para milhares de “ponteiros” Brasil a fora. Temos algumas pistas desta transformação, é necessário agora que se avance em questões mais profundas, como desenvolvimento local, melhora na qualidade de vida e rompimento de ciclos de pobreza dos atores dessa política. É preciso avançar na elaboração de metodologias mais sensíveis ao impacto de políticas culturais como o Programa Cultura Viva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALA-HARJA, Marjukka; HELGASON, Sigurdur. Em direção às melhores práticas de avaliação. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 51, n. 4, p. 5-59, out./dez. 2000 CALABRE, Lia. A cultura no âmbito federal: leis, programas e municipalização. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/a-j/FCRB_LiaCalabre_A_cultura_no_ambito_ federal.pdf

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CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanços & perspectivas. IN: Políticas Culturais no Brasil. Antônio Albino Canelas Rubim, Alexandre Barbalho (orgs.). Salvador, Edufba, 2007. FARAH, Marta Ferreira Santos; MEDEIROS, Anny Karine: Implementação e Reformulação de Políticas Públicas: o caso do Programa Cultura Viva. Revista do Serviço Público. Brasília 65 – jan/ mar 2014 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Cultura Viva: Avaliação do Programa Arte Educação e cidadania. Frederico A. Barbosa da Silva, Herton Hellery Araújo (orgs.). Brasília: IPEA, 2010 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, Linhas Gerais de um Planejamento Participativo para o Programa Cultura Viva. Frederico A. Barbosa da Silva, Valéria Viana Labrea (orgs.). Brasília: IPEA, 2014 JANUZZI, Paulo de Martino. Monitoramento e avaliação de programas: uma compilação conceitual e metodológica para orientar a produção de conhecimento aplicado para aprimoramento da gestão pública. In Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Avaliação de políticas públicas: reflexões acadêmicas sobre o desenvolvimento social e o combate à fome, v.1 – Brasília, DF, 2014. MINC – Ministério da Cultura: Catálogo Cultura Viva – Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania. Brasil 2005 MINC – Ministério da Cultura: Programa Cultura Viva – Documento Base. Brasília – Agosto/2013 PFEIFFER, Peter. O Quadro Lógico: um método para planejar e gerenciar mudanças. Revista do Serviço Público, Ano 51, Número 1, Jan-Mar. Brasília: ENAP, 2000 SILVA, Gerardo. Política Cultural no Brasil In: Políticas Públicas em Debate (Vitor Marchetti org.). 1ª Ed. São Bernardo do Campo, SP: MP Editora, 2013. Cap. 6. p. 119–135. TURINO, Célio. Ponto de Cultura: O Brasil de Baixo para Cima. 2ª Ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010

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LEI DA TV PAGA COMO POLÍTICA CULTURAL DE ACESSO: A NOVA FRONTEIRA DE FOMENTO À DIVERSIDADE NO AUDIOVISUAL Ana Heloiza Vita Pessotto 1 Pedro Santoro Zambon 2 RESUMO: Por vários anos a centralidade das discussões sobre políticas culturais se manteve na questão do incentivo à produção de conteúdo. A concentração dos meios de produção era o obstáculo a ser superado. Em dez anos, o setor foi contemplado com inúmeros dispositivos de fomento para ampliar o acesso aos meios de produção aos atores que antes eram excluídos do sistema, principalmente, por falta de recursos financeiros. Agora, o passo seguinte trata de aumentar a abrangência de distribuição e acesso a estes conteúdos. Este artigo tem como objetivo destacar esta crescente centralidade das discussões de políticas culturais para o acesso, destacando a Lei 12.485/11, conhecida como Lei da TV paga. PALAVRAS-CHAVE: Políticas de Fomento, Políticas de Acesso, Lei da TV Paga, Cota de Tela

O centro das discussões sobre políticas culturais se manteve, durante anos, na questão do incentivo - seja ele financeiro, instrumental e /ou técnico - à produção de produtos culturais. A concentração dos meios de produção era o obstáculo a ser superado. O audiovisual, por ter uma estrutura complexa de produção, não era um modelo acessível a todos. O custo para a execução da obra audiovisual, e a necessidade de conhecimentos tecnicamente específicos tornava a produção uma etapa difícil de ser concluída, o que gerava um empecilho ao desenvolvimento de projetos independentes. Em 1993, a Lei do Audiovisual dá início onda de políticas e ações governamentais direcionadas à produção audiovisual. A criação da Agência Nacional do Cinema, em 2002, é outra importante vitória para o audiovisual, que iniciava uma trilha de crescentes ações do Estado a seu favor. Em dez anos, o setor foi contemplado com inúmeros dispositivos de fomento à produção, que visavam ampliar o acesso aos meios de produção aos atores que antes eram excluídos Graduada em Radialismo, mestranda em Comunicação na Unesp, orientada pela Prof. Dra. Maria Teresa Miceli Kerbauy. Email: [email protected] 2 Mestre em Comunicação, doutorando em Comunicação na Unesp, orientado pelo Prof. Dr. Juliano Maurício de Carvalho. Email: [email protected] 1

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do sistema, principalmente, por falta de recursos financeiros. Leis e editais aqueceram o mercado audiovisual nacional com a intenção de promover a cultura nacional e tirar o estigma que o conteúdo brasileiro ao superar os preconceitos com produções brasileiras e superar o fantasma das telenovelas nas obras destinadas á televisão. As ações estão constantemente em atualização para que moldar os dispositivos aos objetivos desejados, conforme são vistos os resultados na prática. As produções aumentaram consideravelmente. Em 2002, a Ancine emitiu 1358 Certificados de Conteúdo Brasileiro - documento apto à comprovação da nacionalidade de obras audiovisuais não publicitárias brasileiras - em 2014 a Agência emitiu 7391 certificados, um crescimento de mais de cinco vezes. Contudo, o fomento à distribuição destes produtos não evoluiu no mesmo ritmo que o incentivo à produção. As obras são realizadas, mas, sem respaldo legislativo sólido para suas exibições, muitas vezes se tornam obras inacessíveis ao público. Duas ações específicas de destaque direcionaram suas preocupações a este obstáculo. A Lei 12.485/11, conhecida como Lei da TV paga. Este artigo tem como objetivo destacar a crescente centralidade das discussões de políticas culturais para o acesso ao conteúdo de modo a demonstrar que este seria o próximo passo na cadeia do fomento à promoção do audiovisual brasileiro. Partindo de uma exposição dos dispositivos de fomento à produção já existentes, buscase demonstrar que um dos grandes gargalos atuais para a consolidação de um setor audiovisual independente não é mais o acesso aos meios de produção, mas a veiculação destes conteúdos ao público. A análise da Lei da TV paga e o decreto da cota de tela, por meio de análise de documento, permite observar quais as alterativas que o Estado encontrou, nesse momento, para superar o obstáculo da exibição na intenção de promover a cultura nacional e a produção brasileira através do audiovisual. 1. DISTRIBUIÇÃO, ACESSO E DIVERSIDADE CULTURAL A democratização da comunicação é um dos alicerce das políticas públicas culturais e de comunicação, ela pressupões aqui o acesso aos meios de produção e distribuição de obras audiovisuais, possibilitando uma multiplicidade de atores envolvidos no processo, com a intenção de tornar as estruturas mais acessíveis, ampliando a produção regional, independente e a diversidade cultural, em uma busca por um equilíbrio mais justo de forças entre os grandes conglomerados de comunicação e os agentes culturais independentes. A TV e os meios de comunicação digitais tem se tornado cada vez mais protagonistas no cenário da cultura. Canclini questiona a antiga tendência das políticas públicas culturais a se concentrarem no que se chamava de “alta” cultura e nos museus e elementos históricos, trazendo à tona os novos meios de disseminação de cultura no contexto da globalização, dentro do qual o audiovisual tem papel de destaque.

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Que eficácia podem alcançar as políticas culturais de integração se continuam a limitadas à preservação de monumentos e do patrimônio folclórico, às artes cultas que estão perdendo espectadores? Não é a menor, entre as questões que cabe fazer à globalização, a que indaga se os acordos de livre comércio serão úteis ao desenvolvimento endógeno das indústrias culturais (cinema, televisão e vídeo), onde hoje se formam os gostos de massa e a cidadania. (CANCLINI, 1999, p.63-64) Dentro do mercado dos meios de comunicação, promover a diversidade é uma tarefa desafiadora por se tratar de um setor econômico que prevê o lucro. Como considerar uma diversidade cultural quando os atores responsáveis pelos produtos culturais são os mesmos, que usam seu poder hegemônico para a “representação”, muitas vezes leviana, dessas diversidades? A diversidade cultural pressupõe, portanto, também a diversidade de fontes de produção. Faz parte do papel do Estado lutar pelo desenvolvimento das diversas comunidades e culturas, assim como buscar ferramentas que possibilitem o acesso de todos aos bens de produção, na tentativa de alcançar um parâmetro igualitário de oportunidades. Ao promover a diversidade, o que se faz é permitir que grupos de diferentes regiões, diferentes crenças e culturas possam comunicar suas ideias e dialogar com culturas e crenças de outras regiões. Essa troca é o combustível da cultura nacional – na verdade, das culturas nacionais – dentro do mundo globalizado. Esse arranjo em que a troca não tem como intenção “catequisar” o “outro” e sim de conhecer e promover o desenvolvimento ambos a partir desse “encontro”. Abre-se assim a possibilidade de uma descentralização do conhecimento, possibilitando uma ampliação de acesso e divulgação de modos, estilos e estéticas diferentes (CANCLINI, 1999, p.46 – 191 – 192). O que acontece com frequência na influência dos modelos norte-americanos nas narrativas audiovisuais é que a concepção estética brasileira está contaminada com o padrão que assimilou das obras norte-americanas que consumiu por muitos anos e ainda consome, tanto pelo cinema quanto pela televisão. Consequentemente, ao consumir o produto brasileiro, o espectador o analisa a partir do juízo estético que apreendeu, ou seja, o norte-americano. A presença de uma diversidade cultural na TV paga pode ser um mecanismo de transformação dessa concepção estética, libertandose da tediosa, limitada e limitadora uniformidade. As questões da cultura nacional e da estética são importantes nessa discussão, mas Canclini (1999, p.221) eleva a importância da diversidade até a noção de democracia, “A diversificação dos gostos pode ter algo a ver com a formação cultural de uma cidadania democrática. ”. A diversidade se torna uma possibilidade de articular o global com o local. A resistência ao hegemônico e nacional unificado em forma de produções heterogêneas ampliam a visão do que é nacional e quais são as múltiplas facetas de uma nação complexa. Para que a diversidade seja promovida é preciso também promover a descontração da produção, incentivando a produção regional e a abertura do mercado para novos atores, novas

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estéticas e novas narrativas, que podem ser alcançadas ao impulsionar a produção independente de obras audiovisuais. Em um setor baseado no lucro e controlado, em sua maioria, por grandes conglomerados de comunicação, este panorama de desconcentração e produções diversas precisa de políticas públicas que possibilitem oportunidades mais equilibradas de produção e, mais do que isso, dar uma atenção mais que especial a exibição. Canclini (1999) defende a importância do papel das políticas públicas nesse cenário: [...] penso que a firmação da diferença deve estar unida a uma luta pela reforma do Estado, não apenas para que aceito o desenvolvimento autônomo de ‘comunidades’ diversas, mas também para assegurar iguais possibilidades de acesso aos bens da globalização. (CANCLINI, 1999, 46) O incentivo aos conteúdos está sendo bem sucedido, mas sem um canal de distribuição dessas obras, o sistema de funcionamento do setor fica repleto de produções não veiculadas e este procedimento entrava a possibilidade de uma maior ampliação na produção. Alguns dispositivos normativos já estão se concentrando ultrapassar esse obstáculo, ao prever em seus textos as possibilidades e obrigatoriedades de exibição do conteúdo brasileiro. 2. DISPOSITIVOS DE FOMENTO AO SETOR DO AUDIOVISUAL Contemplam hoje o audiovisual a Lei do Audiovisual, a medida provisória que deu origem à Ancine - na qual são estabelecidos a CONDECINE e o fundo setorial do audiovisual a Lei da TV paga e o Decreto de cota de telas. A Lei do Audiovisual (Lei 8.685/1993), que cria incentivos fiscais para pessoas jurídicas e físicas interessadas em investir em projetos de cunho exclusivamente audiovisual. O Artigo 1º se refere à aquisição dos chamados Certificados de Investimento Audiovisual, títulos representativos de cotas de participação em obras cinematográficas, cujo investimento é até 100% dedutível do Imposto de Renda, limitado a 4% do IR devido. O investidor torna-se cotista da produção a fundo perdido, com participação nos lucros gerados pela obra audiovisual na proporção de seu investimento no projeto. A Lei do Audiovisual também substitui a Lei Rouanet para o investimento em Cinema de longa-metragem desde de 2007 (Artigo 1ºA, incluído pela Lei nº11.437/2006). Diante da dificuldade apresentada pelos projetos de jogos digitais para a captação de recursos pelo artigo 26 da Lei Rouanet, a inclusão destes no dispositivo da Lei do Audiovisual tornaria o investimento mais atrativo, principalmente ao oferecer cotas de participação nos lucros gerados. Outro dispositivo é o descrito pelo Artigo 3º, destinado ao investimento de empresas estrangeiras distribuidoras de obras audiovisuais no mercado brasileiro. As produtoras internacionais, que

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exploram obras audiovisuais em território nacional, podem abater até 70% do imposto de renda devido em contrato de coprodução com produtoras brasileiras. A Lei do Audiovisual é gerida pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), agência reguladora criada em 2001 pela Medida Provisória 228-1, que tem como atribuições o fomento, a regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. A agência foi criada no fim do governo Fernando Henrique e estava vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), passando a ser subordinada ao Ministério da Cultura (MinC) no governo Lula em 2003. A MP 228-1 também cria o CONDECINE (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), que incide sobre as obras cinematográficas e videofonográficas com fins comerciais. Caso os jogos digitais sejam incluídos no espectro da legislação, duas modalidades do CONDECINE poderiam ser aplicadas. O CONDECINE Título incidiria sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado (salas de exibição, vídeo doméstico, TV por assinatura, TV aberta e outros mercados), com o valor da contribuição variando conforme o tipo da obra (publicitária ou não), o segmento de mercado e, no caso das obras não publicitárias, a duração (curta, média ou longa-metragem) e, ainda, a forma de organização da obra (seriada, na qual a cobrança se dá por capítulos ou episódios). Já a modalidade do CONDECINE Remessa constitui uma alíquota de 11% que incide sobre a remessa ao exterior de importâncias relativas a rendimentos decorrentes da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas, ou por sua aquisição ou importação. Estarão isentas do pagamento da CONDECINE as produtoras que optarem por aplicar o valor correspondente a 3% da remessa em projetos de produção de conteúdo audiovisual independente em território nacional, aprovados pela ANCINE. A ação colaborativa do Estado com os agentes do setor de TV paga gerou uma abertura e ampliação do conteúdo nacional no país, com um crescimento nas produções nacionais exibidas no serviço. Neste cenário, a HBO foi um dos canais que acolheu a proposta e no período realizou no Brasil produções como Filhos do Carnaval, de 2006, e o drama intitulado Alice, de 2008, além de ter criado projetos que viriam a ser utilizados por causa das cotas estabelecidas pela lei que seria sancionada em 2011. Mas deve-se atentar ao fato de que a isenção está direcionada ao incentivo à produção de obras brasileiras, não sendo requerida a sua exibição. A movimentação em relação às políticas culturais direcionadas ao audiovisual teve destaque no governo do presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva (2003-2011). O ministro da Cultura do primeiro mandato de Lula foi o músico Gilberto Gil (2003-2008). Este foi um período marcado por uma busca pela abrangência e a articulação da amplitude das atividades culturais que foram abarcadas. Buscou-se dar, o que Rubim (2008, p.197-198), considerou como, uma

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contemporaneidade ao Ministério, com a preocupação em colocar o Estado em uma posição de protagonismo com a promoção e financiamento da cultura nacional e nesse cenário também explorou o incentivo aos modelos de culturas digitais e audiovisuais. O objetivo era consolidar institucionalmente o Ministério e fomentar as políticas públicas culturais, dentre as quais se incluem os produtos audiovisuais. A partir da aprovação da Lei nº 11.437/2006 as receitas da taxa CONDECINE são voltadas para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), e o recolhimento por parte dos jogos digitais possibilitaria eventuais editais voltados especificamente para o setor, por meio do fundo. Regulamentado pelo Decreto nº 6.299/2007, ele é destinado ao desenvolvimento articulado da cadeia produtiva do audiovisual, incluindo produção, distribuição/comercialização, exibição, e infraestrutura de serviços. O FSA possui diversos programas voltados aos segmentos da indústria do audiovisual. Na área de produção e distribuição, há linhas de ação voltadas à produção cinematográfica (PRODECINE), produção de conteúdos audiovisuais independentes (PRODAV), além de uma linha dedicada para comercialização de obras cinematográficas (Programa Cinema Perto de Você). Tabela 1: Orçamento Fundo Setorial do Audiovisual

Fonte: Ancine

Os editais da linha são lançados por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria Audiovisual, PRODAV, voltado ao incentivo a projetos audiovisuais independentes em formatos variados, constando, como objetivo específico do desenvolvimento de projetos do Regulamento Geral do Programa, “incentivar a aproximação dos desenvolvedores de jogos eletrônicos com as cadeias produtivas de conteúdos para cinema e televisão, financiando

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o desenvolvimento de projetos integrados” (ANCINE, 2014, p.8), colocando entre os beneficiários “as empresas brasileiras desenvolvedoras de jogos eletrônicos ou para outras obras audiovisuais” (p.11). São cinco linhas de editais do PRODAV, sendo os dois primeiros voltados para projetos e conteúdos para o mercado da televisão e os demais voltados para o desenvolvimento de audiovisual. Os editais visam o desenvolvimento de projetos e obras audiovisuais destinados à TV paga e aberta, salas de exibição e vídeos por demanda (VOD) podendo prever a realização de episódios-pilotos, ‘webisódios’ e demos jogáveis, e realização de pesquisas qualitativas elaboradas por institutos de pesquisa, visando a contratação para apoio financeiro. São três linhas, uma voltada para o desenvolvimento por meio de Núcleos Criativos (BRDE/FSA PRODAV 03/2013 e 03/2014), outra para o desenvolvimento por meio de Laboratórios de Desenvolvimento (BRDE/FSA PRODAV 04/2013 e 04/2014) e outra individual (BRDE/FSA PRODAV 05/2013 e 05/2014). Somam-se os eixos de “Capacitação e formação profissional” (que inclui o PRONATEC Audiovisual); a “Produção e difusão de conteúdos brasileiros” (que envolve 700 milhões de reais investidos para produzir uma meta de 2 mil horas de conteúdo nacional); e o “Programa Cinema Perto de Você” (que envolve 350 milhões de reais para a abertura e modernização de salas de cinema em todo o Brasil). O principal programa do governo federal que se vale dos fundos do FSA é o Brasil de Todas as Telas, instituído pelo decreto nº 8.281/14 e formulado com base nos Planos de Diretrizes e Metas para o Audiovisual (ANCINE, 2013). Ele concede à Ancine poderes para adotar medidas que visam a desburocratização e a simplificação de procedimentos de fomento ao audiovisual. O primeiro dos quatro eixos do programa é o “Desenvolvimento de projetos, roteiros, marcas e formatos”, que recebeu 94 milhões de reais em investimento para três linhas de ‘Núcleos Criativos’, de ‘Desenvolvimento de Projetos’ e de ‘Laboratórios de Desenvolvimento’. Um dos seus objetivos é a democratização do acesso aos produtos e direciona seus investimentos também em distribuição. Um de seus eixos é a linha de produção de conteúdos para TV pública, o que permite uma relação entre agentes econômicos privados e públicos, com meta de produção duas mil obras. A exibição fica por conta das TVs públicas de todo o território nacional. A Lei da TV paga foi elaborada a partir de um projeto de lei encaminhado em 2007 à Câmara dos Deputados pelo deputado estadual por Santa Catarina Paulo Roberto Barreto Bornhausen, no período em questão filiado ao Partido da Frente Liberal (PFL). Depois de mais de dez anos de desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação e de mudanças políticas e econômicas no Brasil, o projeto de lei voltado para a “organização e exploração das atividades de comunicação social eletrônica” pretendia revogar a Lei do Cabo.

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O principal objetivo era de atualizar a lei quanto às novas tecnologias, em um panorama de convergência das mídias (JENKINS, 2008), além da ampliação das fontes de informação para os cidadãos brasileiros, ao visar uma democratização do acesso à informação. A consciência de uma determinada comunidade é em grande parte derivada das noções contidas na variedade da cadeia de valores culturais e sociais dessa sociedade, manifestando-se pelas produções culturais, artísticas, literárias, econômicas, e outras, que fomentam as relações e integrações entre as pessoas. Com isso, este Projeto de Lei tem o escopo de buscar, dentro do aparato constitucional, legal e regulatório já existente, a construção de um modelo social, inclusivo e eficiente que possibilite a democratização do acesso à informação pelos meios de comunicação social eletrônica, facultando a multiplicidade de fontes, e de meios de distribuição, de informação, lazer e entretenimento para a população brasileira. (PROJETO DE LEI 29/2007) O Projeto de Lei numerado na Câmara 29/2007, propunha inicialmente a convergência de uma lei para toda a variedade de processos de veiculação de - o que ele chama, “comunicação social eletrônica”. Art. 5º A distribuição de conteúdo eletrônico é inerente aos seguintes serviços de telecomunicações: I - Serviço de radiodifusão sonora; II - Serviço de radiodifusão de sons e imagens; III - Serviço de TV a Cabo; IV - Serviço de Distribuição de Sinais de Televisão e de Áudio por Assinatura via Satélite (DTH); V - Serviço de Distribuição de Sinais Multiponto Multicanal (MMDS); VI - Outros serviços, conforme disposição da Anatel. (PROJETO DE LEI 29/2007) Ao acoplar em uma mesma legislação os serviços de radiodifusão, TV paga e internet, o projeto propunha uma legislação de comunicação pautada na natureza do conteúdo e não mais na tecnologia de transmissão de informações e dispositivos de recepção, apesar de não criar normas voltadas à regulamentação do conteúdo em si. Contudo, a concentração de todas as tecnologias de transmissão de “conteúdo eletrônico” em um único texto exigiria uma elaboração muito detalhada, focada em estudos sobre a natureza de cada meio. A radiodifusão trata-se de um serviço privado, mas que utiliza concessões públicas para o uso do espectro de onda, que pertence à União, o que não acontece com os outros meios citados. As especificidades de cada meio dificultam a elaboração de uma legislação que incorpore todos eles.

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O projeto de Lei sofreu muitas emendas em seu texto, antes de, em 2011, se transformar na Lei 12.485, Lei da TV paga. A lei inovou com um artigo inteiro direcionado ao conteúdo nacional e focado na exibição destes conteúdos. O conteúdo nacional e suas especificações estão concentrados no capítulo V, intitulado Do Conteúdo Brasileiro. Este capítulo versa sobre as obrigações de veiculação de conteúdo brasileiro nos canais de TV paga. Para a lei, os canais de espaço qualificado, ou seja, os que exibirem prioritariamente programas que [...] não são conteúdos religiosos ou políticos, manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos eletrônicos, propaganda política obrigatória, conteúdo audiovisual veiculado em horário eleitoral gratuito, conteúdos jornalísticos e programas de auditório ancorados por apresentador (LEI 12.485/2011). Deverão ter 3h30 (três horas e trinta minutos) de programação nacional semanal exibida durante o horário nobre, metade dessa cota deverá ser produzida por produtora brasileira independente. A cada três canais de espaço qualificado ofertado no pacote do serviço de acesso condicionado, um deve ser brasileiro de espaço qualificado. A operadora é obrigada a cumprir a porcentagem até um limite de 12 canais brasileiros, são considerados canais brasileiros de espaço qualificados os que veicularem 12 horas de conteúdo brasileiro independente, 03 delas no horário nobre. No caso de o pacote ofertado possuir um canal gerado por programadora brasileira com predomínio de produções jornalísticas, “deverá ser ofertado pelo menos um canal adicional de programação com as mesmas características no mesmo pacote ou na modalidade avulsa de programação” (BRASIL, Lei 12.485/2011, 2011). Canais de operação do Poder público, exibidos em radiodifusão, canais que não tem seu conteúdo adaptado para o Brasil, como legendas e dublagens, canais de modalidade avulsa e canais de cunho erótico estão liberados das obrigatoriedades de cota de veiculação de conteúdo nacional. Os conteúdos, para se encaixarem nas cotas, precisam ter sido produzidos nos sete anos anteriores a sua veiculação. O horário nobre será delimitado pela Ancine, não podendo extrapolar sete horas para os canais infanto-juvenis e seis horas para os demais. Impõem-se o limite de exibição de publicidade igual ao do serviço de radiodifusão, que equivale a 25% da programação. O capítulo VI Do Estímulo à Produção Audiovisual estabelece acréscimo e uma mudança na redação da Medida Provisória 2.228-1 de 2001, nos artigos que versam sobre a CONDECINE (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional). São decretados os detalhes sobre o recolhimento da CONDECINE, e incluem entre as obras cinematográficas e videográficas as obras disponibilizadas no serviço de acesso condicionado. Há também anexos à Lei 11.437 de 2006, que discorre especificamente sobre a contribuição, estabelecendo uma divisão percentual dos recursos, para que haja um investimento nas áreas menos desenvolvidas

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no setor audiovisual, como a Região Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as quais se destinarão 30% dos recursos. O mercado de TV paga no Brasil já está mais desenvolvido e conta com a participação de grandes empresas e conglomerados de comunicação o que dificulta a adaptação desse mercado às mudanças estabelecidas pela lei de 2011. Durante entrevista para o grupo Folha, Fernando Meirelles, diretor de cinema e sócio da produtora O2 filmes, que convive com os dois setores, tanto o cinema quanto à TV, onde começou sua carreira, comparou o impacto que a Lei do Audiovisual teve sobre a indústria do cinema brasileiro com um possível impacto da Lei do Acesso condicionado no mercado audiovisual. 2. PRODUÇÃO AUDIOVISUAL BRASILEIRA: QUEM TE VIU E QUEM TE VÊ Gráfico 01: Evolução Quantidade de Horas de programação brasileira/estrangeira – 2014

Fonte: Ancine

As cotas obrigatórias de exibição da TV paga já têm transformado o cenário e a participação do conteúdo brasileiro na TV paga. O gráfico abaixo mostra o aumento de horas de exibição de produtos audiovisuais nacionais no setor desde a implementação da lei até 2014. Apesar de o aumento ser considerável, o crescimento não é tão grande se for observado o número em comparação com as horas de conteúdo estrangeiro. A quantidade de produção não se compara a quantidade de exibição.

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Tabela 02: quantidade de horas de programação Brasileira – estrangeira

Fonte: Ancine

Cabe aos agentes de políticas públicas aterem-se a pauta da exibição para que a diversidade cultural e a promoção da cultura nacional sejam alcançadas com êxito pelo audiovisual. O caminho sugerido pelas leis descritas é a ampliação do acesso por meio do estabelecimento de cotas de transmissão. Este entendimento é o início de um processo que percebe a importância da regulação dos meios de transmissão de conteúdo como parte da consolidação de uma cadeia de produção de conteúdo cultural nacional. Com o acesso ao fomento e linhas de investimento crescentes, a fronteira a ser vencida ainda é o monopólio dos meios de comunicação, que dominam a transmissão de conteúdos audiovisuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCINE. Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual. Rio de Janeiro, 2013. ANCINE. Relatório anual de gestão do Fundo Setorial do Audiovisual. Rio de janeiro, 2014. BRASIL. As Agências Reguladoras fiscalizam a prestação de serviços públicos. 2014.

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BRASIL. Lei nº 12.485, de 12 de setembro de 2011. Lei Da TV paga. BRASIL. Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006. Condecine. BRASIL. Medida Provisória nº 2.228-1, de 06 de setembro de 2001. BRASIL. Lei nº 8.977, de 06 de janeiro de 1995. Lei do Cabo. BRITTOS, V. C. – Comunicação e cultura: o processo de recepção. Cultura e comunicação. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2003. BRITTOS, Valério Cruz. A participação do Estado no mercado de TV por assinatura. Verso e Reverso, 28, p. 65-92-1, 1. São Leopoldo. 1999. BRITTOS, Valério Cruz. Capitalismo contemporâneo, mercado brasileiro de TV por assinatura e expansão transnacinal. 2001. 425 f. Tese (Doutorado) - Curso de Comunicação e Culturas Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, 2001. BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; ROSA, Ana Maria Oliveira. O GT “Economia Política e Políticas de Comunicação” da COMPÓS e a construção de uma epistemologia crítica da Comunicação. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 19, 2010, Rio de Janeiro. Anais ... Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. 1 CD. PIERANTE, Octavio Penna. O Estado e as Comunicações no Brasil: Construção e reconstrução da administração pública. Brasília: Abras/Lecotec, 2011. POSSEBON, Samuel.TV por Assinatura: 20 anos de evolução. São Paulo, Sp: Save Produção, 2009. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Políticas culturais do governo Lula / Gil: desafios e enfrentamentos. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação 186 São Paulo, v.31, n.1, p. 183-203, jan./ jun. 2008.

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“FORA DA NOVA ORDEM MUNDIAL?”: O NEOLIBERALISMO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CINEMA NO BRASIL E NA ARGENTINA DOS ANOS 1990 Ana Julia Cury de Brito Cabral1 RESUMO: Este artigo aborda as mudanças nas políticas públicas cinematográficas do Brasil e da Argentina a partir de início dos anos 1990, no contexto de ascensão de governos de orientação neoliberal em ambos os países. Eleitos em 1989, tanto Fernando Collor de Mello, no Brasil, como o argentino Carlos Menem promoveram mudanças imediatas nas políticas econômicas de seus países, bem como especificamente nas políticas públicas destinadas ao cinema nacional. Neste trabalho, buscou-se compreender em que medida essas novas políticas refletiram o ideário neoliberal em voga — e quais grupos de interesse influenciaram, em cada país, a sua conformação. A metodologia adotada consistiu em análise da legislação pertinente e em revisão bibliográfica, a partir do enquadramento teórico do debate no campo da Economia Política da Comunicação. PALAVRAS-CHAVE: Cinema, Economia política, Neoliberalismo, Brasil, Argentina.

1. INTRODUÇÃO Este artigo é uma síntese da tese de doutorado em que se propôs uma reflexão abrangente sobre as transformações dos mercados cinematográficos do Brasil e da Argentina no contexto de ascensão, a partir dos anos 1990, de governos neoliberais nesses países. Naquele momento histórico, houve mudanças importantes nas políticas públicas para o cinema, tanto no Brasil de Fernando Collor/Itamar Franco quanto na Argentina de Carlos Menem, as quais impactaram os mercados de cinema locais. Neste artigo, a proposta é compreender em que medida as diretrizes neoliberais hegemônicas inspiraram as novas políticas públicas para o cinema — e quais grupos de interesse influenciaram, em cada país, a conformação dessas políticas.

Ana Julia Cury de Brito Cabral é Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do grupo de pesquisa PEIC (Políticas e Economia da Informação e da Comunicação), na mesma instituição. Atualmente, exerce o cargo de Coordenadora de Programas Internacionais de Cooperação e Intercâmbio na Agência Nacional do Cinema, onde é servidora do quadro efetivo desde 2010. E-mail de contato: [email protected]. 1

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Por um lado, a opção por realizar um estudo comparado com a Argentina se deu pela proximidade geográfica, política, econômica e cultural — estas últimas incentivadas pelo processo de integração regional via Mercosul —, que facilitou o acesso a dados e pesquisas sobre o cinema argentino. A segunda razão consistiu no fato de que a cadeia produtiva do cinema argentino, ao contrário de países menores da região,2 como Uruguai e Paraguai, tem uma trajetória similar à brasileira porque já viveu períodos de relativo desenvolvimento e autonomia com relação à Hollywood, como mostram estudos de pesquisadores lá e cá (Autran, 2004; Getino, 2003). A hegemonia do filme de Hollywood nos mercados cinematográficos dos países latino-americanos ao longo do século XX gerou debates teóricos diversos. A historiografia brasileira, por exemplo, refletiu sobre a condição de “subdesenvolvimento” (Gomes, 1996) do cinema nacional, mas os estudos dedicados a investigar a relação entre economia, política e cinema no Brasil ainda são coadjuvantes num cenário acadêmico em que prevalecem abordagens de ordem estética ou análises de conteúdo. Tomando como referência estudos seminais desenvolvidos desde os anos 1960 (Mattelart, 1999), sob o ângulo da Economia Política da Comunicação, este artigo propõe uma abordagem crítica de um momento histórico crucial para a conformação atual dos mercados de cinema brasileiro e argentino. Os estudos sobre a hegemonia de Hollywood em mercados estrangeiros têm mostrado como a indústria estadunidense representou (e ainda representa) um obstáculo às possibilidades de desenvolvimento de outras cinematografias ao redor do mundo (Aksoy e Robins, 1992; Guback, 1969; Pendakur, 1990; Wasko, 1982, 1994, 2003). Dados reunidos por pesquisadores latino-americanos ao longo das últimas décadas revelaram um aprofundamento do desequilíbrio nas trocas entre os cinemas nacionais e Hollywood a partir dos anos 1990. Embora a história do cinema latino-americano mostre que, em épocas distintas, algumas cinematografias nacionais se destacaram — por exemplo, a argentina nos anos 1930 e a brasileira nos anos 1940 —, não se constituiu no continente uma indústria cinematográfica estabilizada. No início do século XXI, a situação dos intercâmbios regionais era de desequilíbrio flagrante: em 2002, enquanto em qualquer país da América Latina a proporção de filmes hollywoodianos oscilava entre 70% e quase 100%, apenas 6,1% dos filmes em cartaz nos EUA vinham de fora (4,6% da Europa e 1,5% do “resto do mundo”) (Bolaño, Santos e Dominguez, 2006; Ruiz, 2006). A hegemonia de Hollywood inspirou movimentos de resistência em diversos países — por exemplo, o Cinema Novo no Brasil e o Terceiro Cinema na Argentina, nos anos 1960, se construíram em reação ao domínio econômico e cultural do cinema estadunidense. No caso do Como explica Getino (2003), a maior capacidade produtiva no campo das indústrias culturais e da comunicação do Mercosul se concentra, como se sucede com as outras indústrias em geral, no Brasil e na Argentina, os países que representam a maior dimensão territorial e populacional e os índices mais elevados de produção e consumo dos meios de comunicação e dos bens e serviços culturais. 2

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Cinema Novo, a postura crítica radical do início deu lugar a uma aproximação efetiva com o Estado, em pleno regime militar, após a criação da Embrafilme em 1969 — empresa pública responsável pelo maior market share do cinema brasileiro em toda a sua história. Na Argentina do início dos anos 1990, a mobilização e o apelo político da corporação cinematográfica resultaram, por sua vez, num paradoxo: na contracorrente das medidas neoliberais aplicadas a diversos setores da economia do país, inclusive no da televisão paga, o governo Menem aprovou a Ley de Cine em 1994, fortalecendo as políticas públicas de apoio e proteção ao cinema nacional (Amancio, 2000; Marino, 2012). Como revelam as pesquisas supracitadas, a centralidade do Estado marcou a história do cinema no Brasil e na Argentina — e não foi diferente no início dos anos 1990, quando a disputa de grupos de interesse pela formulação das políticas do setor se organizou em torno do poder público. Do Estado, tanto o brasileiro quanto o argentino, dependeram e partiram as adaptações legislativas e os novos regulamentos criados a fim de estabelecer um paradigma para o fomento ao cinema no contexto de implantação de diretrizes de política econômica neoliberal em ambos os países a partir do início dos anos 1990. Portanto, as políticas públicas dos Estados brasileiro e argentino (ou a ausência delas) determinaram, em grande parte, a forma de inserção da cinematografia desses países na nova ordem neoliberal (Getino, 2005). Algumas perguntas se impuseram como ponto de partida para a reflexão proposta: quais foram as mudanças nas políticas públicas para o cinema no Brasil e na Argentina a partir do início dos anos 1990, no contexto de adoção de políticas econômicas de cunho neoliberal em ambos os países? Quais interesses em disputa convergiram para essas mudanças? Por que, em ambos os casos, o núcleo dessas políticas foi o fomento à produção cinematográfica, deixando de lado os outros dois elos da cadeia produtiva do cinema (a distribuição e a exibição)? E qual interpretação histórica desse processo se pode construir? Para realizar essa tarefa, adotou-se como metodologia a revisão bibliográfica e a análise documental da legislação pertinente, além do levantamento de dados estruturais do setor. No que diz respeito à bibliografia relevante, pode ser dividida em dois grandes grupos: de um lado, os estudos seminais na área da economia política da comunicação e do cinema, que inauguram o campo teórico em que este trabalho se insere, dentre os quais o livro de Guback (1969). De outro lado, as pesquisas recentes sobre a economia e a política do cinema latino-americano, e mais especificamente dos cinemas brasileiro e argentino, como no caso da tese de Marino (2012). A legislação analisada refere-se ao período histórico delimitado, ou seja, inclui não apenas as leis que instituíram as políticas públicas para o cinema, mas também que promoveram alterações nas estruturas dos Estados brasileiro e argentino, bem como em suas economias. Dentre os normativos analisados, é possível destacar a lei 8.029/90, de reforma geral do Estado brasileiro, a lei 8.313/91 e a lei 8.685/93, que criaram o modelo de incentivos fiscais para o fi-

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nanciamento da cultura; e, no caso argentino, a lei 23.696/89 de Reforma do Estado, bem como a lei 24.377/94, mais conhecida como Ley de Cine. 2. “FORA DA NOVA ORDEM MUNDIAL?”: AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CINEMA NO BRASIL E NA ARGENTINA DOS ANOS 1990 No início dos anos 1990, o contexto histórico em que se instituíram as novas políticas públicas cinematográficas do Brasil e da Argentina foi marcado pelo fim do mundo bipolar e pela expansão da globalização neoliberal capitalista. A chegada da era neoliberal3 pressupôs a disseminação de uma série de diretrizes políticas e econômicas da nova ordem mundial, conhecida como Consenso de Washington. Dentre elas, a de um Estado mínimo, que interviesse apenas o indispensável na economia, e cuja regulação deveria ser feita segundo a lógica do mercado. Desregulamentações e privatizações ratificaram a entrada de ambos os países num novo mundo globalizado, simbolizado pelas infovias e novas tecnologias da comunicação (Harvey, 2008; Santos, 2004). Os impactos da nova ordem mundial foram, contudo, diferentes em cada país, e os graus de adesão de cada Estado nacional ao modelo neoliberal também divergiram. Para os diferentes setores da economia, a adoção de políticas neoliberais não foi homogênea. Por isso, não é possível oferecer uma resposta única e simples à pergunta central: as políticas públicas do cinema brasileiro e argentino estiveram dentro ou fora da nova ordem mundial? Diante de uma realidade complexa, é preciso construir uma análise dialética. Assim, a escolha da Economia Política da Comunicação como olhar teórico balizador deste trabalho justifica-se pela perspectiva historicista do campo e sua contextualização do universo da comunicação e da cultura aos sistemas político-econômicos hegemônicos. 3. O MODELO DE INCENTIVO FISCAL BRASILEIRO E A ADESÃO AO DISCURSO NEOLIBERAL Em 15 de março de 1990, Fernando Collor de Mello assumiu oficialmente o cargo de presidente da República Federativa do Brasil ao vencer a primeira eleição direta realizada no país após vinte e cinco anos de regime de exceção. Em seu discurso de posse, dirigido aos congressistas, Collor relembrou os grandes temas de seu programa de governo, dentre os quais o combate à inflação, a urgência de realizar a reforma do Estado e a modernização econômica do país, e a preocupação com a posição do Brasil no mundo contemporâneo. Sobre o último ponto, ele afirmou: Alguns teóricos apontam as origens do neoliberalismo na virada dos anos 1970-1980; contudo, a importância da segunda virada, entre 1989 e 1991, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, é notável — e constitui o marco histórico de interesse deste trabalho (Harvey, 2008). 3

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Antes de tudo, é preciso registrar impressionante mudança no cenário internacional. O perfil de uma nova Europa Oriental faz ver como encerrada uma fase na história das relações internacionais, dominada pelo confronto ideológico Leste-Oeste. Fica definitivamente sepultada a guerra fria. Repensam-se alianças. Cancelam-se alinhamentos. Enquanto isso, novas áreas se preparam para adotar as leis da economia de mercado, com democracia, respeito pelos direitos humanos e cultura da liberdade, que são hoje tendências universais.4 No exato dia da posse, Collor deu início à prometida reforma do Estado e pôs fim, dentre outras, à política cultural vigente, extinguindo a Lei Sarney e editando a Medida Provisória 151/90, em seguida convertida na Lei 8.029/90, que dispunha sobre a extinção e a dissolução de diversas entidades da administração pública federal. A nova lei extinguiu autarquias, fundações e empresas públicas federais como a FCB (Fundação do Cinema Brasileiro), a Embrafilme (Distribuidora de Filmes S.A.) e o Concine (Conselho Nacional do Cinema), além de ter autorizado a privatização de outras entidades. Naquele momento, Collor também extinguiu o próprio Ministério da Cultura, transformando-o em Secretaria e, além de pôr fim aos órgãos públicos de apoio ao cinema, promoveu a desregulamentação da atividade, eliminando a norma que estabelecia a cota de tela para o cinema nacional e abrindo as fronteiras de forma irrestrita para as importações, tanto de insumos técnicos quanto, inclusive, do próprio filme estrangeiro. Essa série de medidas, tomada num curto espaço de tempo, resultou num colapso do cinema brasileiro, que dependia diretamente da política pública de fomento (Marson, 2006). Por outro lado, a Embrafilme e seu modelo de financiamento do cinema nacional vinham sofrendo um desgaste crescente, que assumiu ao longo dos anos 1980 a forma de um questionamento social difundido sobre a utilização de recursos públicos na produção cinematográfica. Números insatisfatórios de desempenho comercial dos filmes nacionais, privilégios de um grupo seleto de cineastas que se beneficiava das políticas estatais e até acusações de desvios de recursos públicos eram combustível que inflamava o discurso contrário à atuação do Estado como fomentador da produção cultural nacional, ao menos naquele modelo vigente. Desde 1986, o crescimento da hegemonia de Hollywood se notava com clareza no mercado brasileiro de salas de exibição, com exceção do filme pornográfico e dos infantis de Xuxa e dos Trapalhões, que seguravam parte do público do cinema nacional (Amancio, 2000; Autran, 2009). A crise enfrentada pelo filme nacional a partir de meados da década de 1980 tinha também relação com uma série de outros fatores, como a chegada do videocassete ao mercado audiovisual brasileiro, a penetração definitiva da televisão na totalidade do território continental O discurso de posse de Collor pode ser acessado na biblioteca da Presidência da República em http://www. biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/fernando-collor/discurso-de-posse/posse-collor.pdf/view (Acesso em 22 de abril de 2014).

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do país e o aumento generalizado do preço médio do ingresso de cinema, que, segundo dados do Ministério da Cultura, passou de U$S 0,50 em 1979 a U$S 2,62 em meados dos anos 1980.5 Essa conjuntura contribuiu, certamente, para agravar a crise do modelo de apoio promovido pela Embrafilme. Assim, quando em 1990 foi anunciada a extinção da empresa, o setor não chegou a se espantar com a notícia. O susto veio, no entanto, pela ausência de uma contraproposta que fosse imediatamente colocada em vigor pelo governo: (...) depois de quase cinco anos de crise, o meio cinematográfico aceitou, sem maiores discussões, a extinção da Embrafilme, da reserva do mercado e o fim do nacionalismo protecionista. Collor não inventou nada; o áulico paraibano só atendeu aquilo que Hector Babenco, Silvio Back, Carlos Reichenbach, Chico Botelho, Carlos Augusto Calil, Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos e a crítica na imprensa liberal pediram. Depois de cinco anos de crise todos carimbaram seu passaporte para o mercado neoliberal, e sem bilhete de volta. Só houve frustração quando o avião decolou. Aí, todos perceberam que tinham ido pro espaço, literalmente. De Deus, Collor passou a ser o Diabo na Terra do Sol (Souza apud Marson, 2006, p. 23). A adesão da corporação cinematográfica ao discurso liberal segundo o qual a cultura deveria ser tratada como um “problema de mercado” — conforme defendia o então Secretário da Cultura de Collor, o cineasta Ipojuca Pontes — esteve relacionada, assim, ao quadro de crise terminal da Embrafilme. Por outro lado, a própria história de disputa entre o “cinemão” e o “cineminha”,6 que permeou o ciclo Embrafilme, já revelava a cisão da corporação cinematográfica perante o Estado e a sociedade. Ou seja, a dissolução da Embrafilme, da cota de tela e da regulamentação do setor contou com o aval de parte do grupo que apoiara a sua criação. A opção pela “abertura do mercado” se consolidou com a criação da Lei 8.313 de 1991, conhecida como Lei Rouanet, que previa a captação de investimentos no setor privado para a promoção da cultura nacional, por meio de renúncia fiscal. O modelo de incentivos fiscais foi reforçado dois anos depois com a Lei do Audiovisual (lei 8.685/93), destinada a estimular o financiamento da produção de filmes em longa-metragem (Amancio, 2000; Ikeda, 2011). Dados obtidos em Cinema Brasileiro: Um Balanço dos 5 Anos da Retomada do Cinema Nacional. Brasília: SAV/MinC, 1999, p. 253-255. 6 Embora a Embrafilme fosse a maior produtora e distribuidora do cinema brasileiro durante seu período de existência, ela não era a única. Havia também os produtores independentes, isto é, os que faziam seus filmes sem o financiamento do Estado. As pornochanchadas na década de 1970 e depois os filmes pornográficos nos anos 1980, produzidos no Rio de Janeiro e principalmente na Boca do Lixo, em São Paulo, são exemplos dessa produção que existiu à margem da Embrafilme, graças a um mecanismo próprio de produção, distribuição e exibição desenvolvido por seus realizadores. Como explica Marson (2006, p. 16): “De certa forma, o cinema da Boca conseguiu realizar a tão sonhada integração vertical no cinema brasileiro, aliando produção, distribuição e exibição. Essa modalidade de produção cinematográfica ficou conhecida como ‘cineminha’, em contraposição ao ‘cinemão’, herdeiro da tradição do Cinema Novo, mais ‘culto’ e financiado através da Embrafilme.” 5

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Ainda que não pudesse ser caracterizado propriamente como neoliberal, o modelo de incentivo fiscal esteve mais próximo de uma concepção privatista de defesa do “livre mercado” do que a Ley de Cine argentina. Primeiramente, a lógica da renúncia fiscal foi a de transferir às empresas e seus respectivos departamentos de marketing a decisão sobre em quais filmes investir os recursos advindos da dedução de imposto de renda. Instaurou-se, na expressão de Autran (2009, p. 122), “um modo privado de gerir os recursos públicos”, justificado pela tentativa de aproximar a iniciativa privada dos cineastas a fim de convencê-la de que investir em cinema brasileiro era um bom negócio. Ao longo dos anos 1990, alterações na Lei do Audiovisual, como a inclusão do artigo 3º, foram promovidas a fim de atrair a televisão aberta e as majors a investirem também no cinema nacional — com a garantia do abatimento do imposto de renda devido, fosse sobre suas atividades regulares ou o envio de remessas para o exterior. As disputas entre esses três grupos de interesse (a corporação cinematográfica, a televisão aberta e as majors) marcaram as negociações em torno do modelo de incentivo fiscal ao longo da década, culminando na criação da Ancine (Agência Nacional do Cinema) em 2001. Sob o paradigma das agências reguladoras autônomas, características do Estado neoliberal, a criação da Ancine encerrou o ciclo da Retomada, com a reinstitucionalização da política pública voltada ao setor. A centralidade da TV aberta no setor, que constituiu historicamente um obstáculo para a integração do cinema com a televisão, tem sido um elemento crucial do cenário audiovisual brasileiro. Embora a corporação cinematográfica tenha reivindicado a regulamentação dessa integração em momentos de crise, como no fim dos anos 1990 por ocasião do III Congresso Brasileiro de Cinema, a TV conseguiu manter-se absoluta no cenário audiovisual do país. Essencial à manutenção de uma elite política oligárquica, proprietária das concessões de rádio e TV, a radiodifusão permanece regulada pelo Código Brasileiro de Televisão de 1962 e não sofreu mudanças derivadas diretamente da ascensão de um governo de orientação neoliberal nos anos 1990 (Santos, 2004). Em 1998, a criação da Globo Filmes, braço cinematográfico das Organizações Globo, constituiu um exemplo ilustrativo e didático dessa lógica: a empresa logo adquiriu o primeiro lugar dentre as produtoras dos sucessos de bilheteria do ciclo da Retomada, respaldada por vantagens competitivas que lhe garantiram associações com as produtoras independentes mais bem-sucedidas comercialmente, por um lado, e com grandes distribuidoras estrangeiras por outro. Reproduzindo a lógica geral de concentração, a Globo Filmes reforçou o domínio da TV Globo no audiovisual brasileiro. O resultado foi uma configuração específica, em que a empresa se associou às majors estrangeiras, por meio de mecanismos da Lei do Audiovisual, para garantir a distribuição de blockbusters nacionais.

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Dessa forma, é interessante notar que a suposta contradição da política cinematográfica iniciada em 1991, apontada por pesquisadores do período, talvez seja mais uma síntese dos conflitos entre os grupos de interesse constituídos. Apesar do discurso liberal e hegemônico da época tratar o cinema eminentemente como produto de mercado, o fato de não se ter garantido naquele momento a circulação do filme brasileiro através do estímulo à sua distribuição e à exibição comercial, ou através da integração com a televisão, é um pseudo-paradoxo, visto que, na verdade, foi a solução encontrada para contemplar as reivindicações da corporação cinematográfica sem perturbar os privilégios das emissoras de TV aberta (em especial da TV Globo), por um lado, e das majors, hegemônicas no elo da distribuição, no outro extremo. 4. A LEY DE CINE E A FORÇA DA CORPORAÇÃO CINEMATOGRÁFICA ARGENTINA Na Argentina, diferentemente de Collor, ao ser eleito presidente Menem encontrou um cenário promissor no setor do cinema. A corporação cinematográfica estava fortalecida, em grande parte pelo bem-sucedido desempenho dos filmes argentinos de fins dos anos 1980, que angariaram prêmios nos maiores festivais do mundo, impulsionados pelas políticas promovidas pelo INC (Instituto Nacional de Cinematografía) sob a direção de Manuel Antín. Também o crescimento do número de estudantes, faculdades e publicações especializadas em cinema nos anos 1980 resultara que, em princípio da década de 1990, havia um grupo ampliado e bem articulado de interessados em pressionar o novo governo por políticas protecionistas de apoio ao cinema nacional. Em seu discurso de campanha, Menem garantira promover melhoras para os setores populares, tais como um aumento salarial significativo batizado de “salariazo” ou “revolución productiva”, a fim de reativar o consumo. Sua agenda preconizava uma ilusão de retorno ao Estado de bem-estar, ou pelo menos a algumas de suas principais diretrizes, que naquele momento histórico perdiam força no mundo. Ao assumir a presidência, porém, suas primeiras medidas tornaram evidente que as promessas de campanha não seriam cumpridas, uma vez que a saída apontada para a crise — cujo núcleo a ser combatido era a inflação, assim como no caso brasileiro — baseava-se nos dois pilares do choque institucional neoliberal: a abertura comercial ampla para atrair os capitais estrangeiros e o desmonte do Estado em benefício da hegemonia do mercado (Marino, 2012). A mudança estrutural começou em agosto de 1989, com a edição da Lei nº 23.696 de Reforma do Estado, conhecida como Lei Dromi, sobrenome de seu mentor, que era à época ministro de Obras e Serviços Públicos. Logo em seguida, foi aprovada a Lei de Emergência Econômica, sob a tutela do então ministro da Economia, Domingo Cavallo, que permitiu ao governo promover a privatização de toda empresa pública deficitária e estabeleceu alterações na

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lei 22.285/80 para redefinir as características das companhias que manteriam o direito sobre as licenças dos canais de TV aberta, os primeiros a serem privatizados. A despeito de suas promessas de campanha, Menem executou políticas de orientação neoliberal em praticamente todos os setores da economia argentina, inclusive na televisão por assinatura. O cinema, pelo prestígio que angariara nos anos 1980, e talvez também por uma preferência pessoal do presidente — as idiossincrasias de lideranças políticas personalistas são elementos importantes, afinal —, constituiu-se na exceção das políticas públicas do governo Menem. Enquanto a indústria nacional declinava, no início dos anos 1990, o conjunto das entidades do cinema pressionou o governo para a aprovação de uma legislação que se constituiu na mais protecionista da América Latina, a Ley de Fomento y Regulación de la Actividad Cinematográfica, sancionada em 1994 (Getino, 2003; Marino, 2012). O conceito de Espacio Audiovisual Nacional foi incorporado à Constituição Nacional de 1994 e o INC foi transformado em Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA) — órgão responsável por convocar concursos para a outorga de prêmios para novos realizadores, filmes do interior do país, telefilmes e curtas-metragens, cuja ação ampliou o número de títulos argentinos produzidos nos anos 1990. A Ley de Cine aumentou o orçamento do INCAA, distribuiu mais recursos para a produção por meio de créditos e subsídios e regulamentou novamente a cota de tela, instaurando também o mecanismo conhecido como “média de continuidade”, que garantiu aos filmes argentinos o direito de permanecerem sendo exibidos conforme seu desempenho de bilheteria nas primeiras semanas em cartaz (Mastrini, 2005). Outra diferença fundamental entre os dois processos foi que, ao contrário do Brasil, a legislação argentina conquistou um grau de integração mínimo entre o cinema e a televisão, ao garantir que se destinasse ao Fundo de Fomento Cinematográfico o total de 25% da taxa já arrecadada pelo Comitê Federal de Radiodifusão (COMFER) sobre a renda das emissoras. Com esses recursos, a nova lei criou um sistema de créditos e subsídios para o fomento à produção cinematográfica. Cada mecanismo funciona de uma forma: os créditos são empréstimos concedidos a taxas mais baixas que as de mercado, outorgados ao produtor que deseja realizar um filme nacional de longa-metragem e que já possui um projeto concreto da obra. O montante do empréstimo é definido de acordo com o orçamento total do filme e não pode exceder o Custo Médio (CM), um valor referencial estabelecido anualmente pelo INCAA com base nas previsões de custo apresentadas pelos produtores em seus projetos (Perelman e Seivach, 2003). Já os subsídios são aportes não retornáveis, aos quais têm direito de acesso todo filme, com ou sem crédito do INCAA na composição de suas fontes de financiamento. O objetivo do subsídio é permitir ao produtor recuperar parte do investimento feito no filme, impulsionando desse modo, ao menos em tese, a continuidade da indústria. O mecanismo do subsídio é destinado aos filmes que — se assim julgar o INCAA — contribuam para o desenvolvimento cinematográfico nacional

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nos âmbitos cultural, artístico, técnico e industrial. Conforme explica Marino (2012), o subsídio pode ser entendido como uma tentativa de compensar a competição desleal e desigual com as majors no mercado argentino, uma vez que a comercialização das grandes produções estadunidenses no país tem efeitos similares ao dumping, proibido em acordos transnacionais aos quais subscrevem os Estados Unidos, como os da Organização Mundial do Comércio (OMC). Do ponto de vista do cinema argentino e das políticas públicas para o seu financiamento, a década de 1990 constituiu, portanto, uma grande exceção: um protecionismo que contrastou com a orientação neoliberal aplicada em outros setores da economia, mas que não foi suficiente para gerar consenso entre a corporação cinematográfica a respeito do seu sucesso. O século XXI começaria com reivindicações pela real autonomia do INCAA e pelo cumprimento integral da Ley de Cine — e, por outro lado, pela polarização da corporação cinematográfica em torno de demandas históricas de uma maior intervenção estatal em benefício do cinema não comercial e não vinculado ao capital concentrado internacional e nacional. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise comparada permitiu concluir que o modelo de incentivo fiscal produzido no Brasil a partir de 1991 foi diferente daquele promovido pela Ley de Cine argentina em 1994 — e essa diferença derivou, em parte, da forma como a corporação cinematográfica local se posicionou em meio ao processo de consolidação de governos de orientação neoliberal nesses países. No Brasil, a eleição de Collor para a presidência em 1989 foi seguida por ampla reforma liberal do Estado, que extinguiu uma série de órgãos públicos, dentre eles a Embrafilme. O processo de desgaste da empresa pública responsável pelo apoio ao cinema desde meados dos anos 1980 (Embrafilme) derivou num discurso crítico e de oposição ao seu modelo de funcionamento. Com o apoio de parte relevante do núcleo da corporação cinematográfica brasileira, o governo Collor/Itamar desenhou o novo modelo do incentivo fiscal, aderente ao ideário do livre-mercado dominante naquele momento histórico, que prometia promover a autossustentabilidade da “indústria de cinema” no Brasil atraindo o setor privado para o fomento à produção. Na Argentina, a reação da corporação cinematográfica à chegada ao governo de Carlos Menem, naquele mesmo ano de 1989, foi diferente. Diante do choque de medidas neoliberais executadas pelo novo presidente, contrariamente ao que fora previsto em seu programa político, os profissionais do setor argentino se mobilizaram em busca de garantir à atividade uma legislação protecionista, que contrariava a cartilha amplamente aplicada para a economia nacional. Fortalecida em parte pelo sucesso internacional do cinema argentino ao longo da segunda metade dos anos 1980, a corporação cinematográfica foi capaz de se mobilizar para reivindicar o que veio a ser a Ley de Cine de 1994, uma legislação atipicamente protecionista em meio à conjuntura político-econômica da Argentina na época.

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Embora o trabalho de obtenção, processamento e sistematização da informação seja complexo e desafiador, a dimensão econômica e social das indústrias culturais lhe dá uma importância vital para o desenho de políticas públicas, a gestão social, a participação cidadã e o desenvolvimento da democracia. Como afirma Getino (2003), a informação não determina as políticas (já que estas, com muita frequência, dispensam a consideração daquela), mas a sua existência é indispensável quando se pretendem definir planos de desenvolvimento e de integração numa escala nacional e regional. Assim, compreender a dinâmica da economia política das cinematografias do Brasil e da Argentina se justifica não só por sua importância tangível (ou seja, a econômica, que se pode medir por números e dados), mas também, e principalmente, por sua importância intangível e cultural — sua capacidade de incidir sócio e culturalmente nos imaginários coletivos e individuais, produzindo e reproduzindo valores que atuam na manutenção ou na transformação da ordem social. É evidente, portanto, a necessidade de cultivar tanto uma reflexão crítica a respeito da hegemonia de Hollywood — e suas implicações econômicas, políticas e culturais — quanto uma visão autocrítica a respeito do papel desempenhado por grupos sociais dos próprios países no processo de configuração dessa hegemonia.

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O PÚBLICO E O PRIVADO NA LEI DE INCENTIVO À CULTURA Ana Lúcia Pardo1 RESUMO: Este trabalho pretende analisar os impactos e possíveis desdobramentos ocorridos a partir da recente determinação, aprovada pelo TCU (Tribunal de Contas da União), no dia 3 de fevereiro de 2016, ao considerar que eventos culturais com “potencial lucrativo” ou que “possam atrair investimento privado” serão proibidos de receber incentivos fiscais através da Lei Federal de Incentivo à Cultural. Para isso, propõe tomar por base entrevistas, matérias e artigos, a partir das declarações do Ministro da Cultura Juca Ferreira, concedidas nesse período, além das reações de produtores culturais e opiniões de gestores e especialistas em relação à matéria em questão. Com base nos dados das principais distorções da Lei Rouanet, já em vigor há 25 anos, interessa discutir que caminhos estão sendo propostos para corrigi-las, uma vez que se trata de um assunto de interesse público e de uma política de Estado. PALAVRAS-CHAVE: Lei Rouanet, incentivos fiscais, distorções, interesse público, Estado.

Este artigo pretende fazer uma rápida abordagem sobre a recente determinação, aprovada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), no dia 3 de fevereiro de 2016, ao considerar que eventos culturais com “potencial lucrativo” ou que “possam atrair investimento privado” serão proibidos de receber incentivos fiscais, através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida por Lei Rouanet. Embora sem previsão de entrar em vigor e ainda caibam recursos à referida proibição, buscaremos fazer uma análise crítica, a partir de matérias e artigos publicados neste curto período, que expõem não somente a decisão do TCU, mas também, a opinião do Ministro da Cultura Juca Ferreira, sobre o tema, bem como, a reação de produtores brasileiros a esta determinação, e de ações relevantes do Ministério da Cultura (MinC) nessa direção. Com base nas informações veiculadas na página Ilustrada do jornal Folha de São Paulo, no dia 04/02/2016, por Dimmi Amora, esta decisão do TCU foi tomada ao analisar a regularidade do incentivo fiscal ao “Rock in Rio” e a outros eventos culturais com cobrança de ingresso, patrocínio e outras fontes de receitas. Segundo essa matéria, só o festival de rock de 2011 teria captado R$ 6 milhões provenientes de empresas, que depois puderam abater 30% desse valor do Imposto de Renda. Pela decisão, os valores já captados poderão ser mantidos e não haverá Doutoranda e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana UERJ. Gestora cultural, atriz, jornalista. Professora da Pós Graduação em Produção Cultural da Universidade Cândido Mendes e do Curso de Formação de Gestores e Agentes Culturais SEC/MinC. E-mail: [email protected]

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punição para os gestores que autorizaram patrocínios a esses eventos. O percentual de desconto do Imposto de Renda pode variar de 30% a 100%. A investigação do TCU começou em 2011 após denúncia do Ministério Público, ao entender que a Lei Rouanet (1991) proíbe que esse tipo de evento receba incentivo fiscal. Sobre isso, o Ministro Augusto Sherman, relator do processo se pronuncia: “Não consigo vislumbrar interesse público a justificar a renúncia de R$ 2 milhões de receita do Imposto de Renda em benefício da realização de um projeto com altíssimo potencial lucrativo, como o ‘Rock in Rio” (In: Folha de São Paulo digital, 04/12/2016). É importante ressaltar que essa decisão do TCU não impede todos os projetos comerciais de receber incentivos fiscais. Segundo a decisão, devem ser vetados somente os que se mostrarem capazes de se autossustentar ou que não necessitarem do mecenato para ocorrer. Segundo o TCU, o próprio Ministério da Cultura tem normas internas capazes de fazer essa distinção. Quando uma empresa pede que seu projeto cultural seja enquadrado na lei, ela tem que informar ao governo os valores que serão arrecadados, a relação custo/benefício e o impacto do incentivo na realização do evento, entre outros dados. No caso do “Rock in Rio” (AMORA, 2016, p. 1), por exemplo, havia R$ 34 milhões de reais em receita prevista pelos organizadores do evento. Além disso, os técnicos do MinC têm que dar parecer dizendo se o projeto se enquadra na lei e pode receber incentivo fiscal. De acordo com a decisão, este Ministério não poderá aceitar contrapartidas do empreendedor (como doação de ingressos, por exemplo) para justificar a permissão para a captação de recursos. A renúncia de receitas do governo federal para a cultura foi de mais de R$ 5 bilhões, nos últimos quatro anos, segundo dados do MinC. Os técnicos do tribunal que analisaram a questão e elaboraram parecer sobre o caso entenderam que, apesar de serem moralmente inaceitáveis, os incentivos fiscais não são ilegais. Mas os ministros, que têm a palavra final sobre os processos, concordaram com a tese dos procuradores. Para eles, o projeto para ser incentivado tem que ter interesse público. Segundo Sherman, a lei determina que os Fundos de Investimentos Culturais e Artísticos (o FICART) deveriam incentivar projetos com fins meramente comerciais. Como o FICART nunca foi criado, o MinC acaba usando o Fundo Nacional de Cultura, voltado para projetos com menor possibilidade de captar recursos, para todos os projetos. O MinC, responsável pela autorização dos projetos culturais, também apresentou argumento no processo pela concessão do benefício, alegando que não poderia negar o subsídio para projetos comerciais lucrativos. Em nota, afirma que tecnicamente todos os projetos que captam recursos pela Lei Rouanet são capazes de atrair investimentos e ser potencialmente lucrativos, por isso “não há uma classificação a respeito do assunto”. Neste documento, o MinC defende uma mudança na lei para acabar com o que considera “distorções” e permitir “a oferta de apoios financeiros diversos e tendo o incentivo fiscal, afeito ao mercado, como mecanismo complementar”. O

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relatório do TCU aponta que o patrocínio distorce os objetivos do MinC, como o incentivo à cultura regional, já que o dinheiro prioriza as estratégias de marketing das empresas patrocinadoras. Para auxiliar em nossa análise, apresentamos abaixo os dados do MinC (Salic Net), acerca da distribuição da renúncia fiscal por categoria, onde se percebe que as áreas de maior renúncia fiscal são as Artes Cênicas, com 25,37%, e a Música, com 21,82%. O que chama atenção nos dados, é o valor total que foi arrecadado, de R$11,3 bilhões em isenções para apenas 33 mil projetos, o que equivale a 1 projeto apoiado para 3,53 apresentados.

Aqui neste outro mapa, podemos observar que há assimetrias regionais, se compararmos, por exemplo, os dados da Região Norte em relação à Região Sudeste.

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Mapa 1: Distribuição de Recursos por região geográfica

Essa distorção entre as regiões é apontada pelo Ministro da Cultura, Juca Ferreira, durante entrevista concedida ao jornal O Globo (ÉBOLI, 04/02/2016), mostrando que tudo o que foi aplicado, via Lei Rouanet, nas regiões Norte e Nordeste de 1993 até 2014 é menor do que foi aplicado somente na Região Sudeste em 2014. “Esses já estão inseridos no sistema”. São vulgarmente chamados de “consagrados”. “Não tenho nada contra os consagrados. Fazem arte de qualidade e é sinal que são bem aceitos, mas a distribuição (dos benefícios) tem que respeitar o interesse público. Os beneficiados (pela Lei Rouanet) são sempre os mesmos”. No gráfico seguinte, apresentamos os dados, disponibilizados pelo MinC (http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php), com os principais proponentes e os valores captados em milhões no ano de 2015. Podemos observar que a Aventura Entretenimento Ltda. encabeça a lista, realizadora de musicais, como “O mágico de Oz”, “Um violinista no telhado”, “A borralheira”, “A noviça rebelde”, “Vamp”, o musical, (em que obteve aprovação para captar R$ 12.912.280,00), “Hair”, “Turnê Chacrinha, o Musical”, entre outros, e projetos como: o “Rock in Rio 30 Anos Box Brasil”, que captou 5,5 milhões via Lei Rouanet.

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Gráfico 1: Dez maiores proponentes em Captação - Milhões de Reais em 2015

Fonte: Salicnet/Minc

Na tabela abaixo, observamos que os bancos encabeçam a lista dos dez maiores incentivadores através da Lei Rouanet no ano de 2015. Tabela 1: Dez maiores incentivadores e valor do incentivo em 2015

Neste outro gráfico, vemos que as Artes Cênicas, seguidas pela Música, são principais áreas incentivadas.

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Gráfico 1: Série Temporal das principais áreas incentivadas pela Lei - Milhões de Reais 1992/2015

Fonte: Salicnet/Minc

Após a Lei Rouanet, a segunda lei de incentivo à atividade audiovisual foi criada em 1993. De fato, enquanto a Lei Rouanet era comum a todos os segmentos culturais, a Lei nº 8.685/93 é específica da atividade audiovisual. Por isso, ela ficou conhecida como “Lei do Audiovisual”, o único segmento que possui uma lei de incentivo específica. Ou seja, as demais categorias artísticas, como o teatro, a dança e as artes plásticas podem captar recursos federais via renúncia fiscal apenas, através da Lei Rouanet. Na verdade, a Lei do Audiovisual representou um “plano de urgência” para a recuperação do cinema brasileiro, em intensa crise no início dos anos noventa, com uma participação de mercado inferior a 1%. No gráfico a seguir podemos ver os principais investidores e incentivadores e montantes aprovados em 2011.

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A principal diferença entre a Lei Rouanet e o Art. 1º da Lei do Audiovisual reside no fato de que os valores aportados por meio deste mecanismo não são meramente um patrocínio ou uma doação, como era o caso na Lei Rouanet, mas agora passam a ser contabilizados como um investimento (IKEDA, 2006, p. 4). Dessa forma, de acordo com a pesquisa de Ikeda, o agente que aporta recursos não é meramente um “incentivador”, como na Lei Rouanet, e sim um “investidor”. Os valores investidos por meio desse mecanismo são abatidos no imposto de renda a pagar em 100%. Ou seja, os valores aportados são integralmente abatidos na Declaração do Imposto de Renda do investidor, aos moldes do Art. 18 da Lei Rouanet. No entanto, o Art. 1º da Lei do Audiovisual possui uma vantagem fiscal adicional em relação a este último mecanismo: além do abatimento de 100%, o investidor pode incluir os valores aportados como despesa operacional, nos mesmos moldes do Art. 25 da Lei Rouanet. Ou seja, é como se o Art. 1º da Lei Audiovisual conjugasse os dois tipos de dedução fiscal da Lei Rouanet, beneficiando-se seja do abatimento integral, como no Art. 18, e possibilitando o lançamento desses valores como despesa operacional, como no Art. 25. Esse fato torna o percentual de abatimento real no imposto de renda a pagar superior a 100%. Ou ainda, o abatimento no imposto de renda a pagar, decorrente de investimento pelo mecanismo, é superior à quantia efetivamente investida. O consultor de empresas, Yacoff Sarkovas, especialista na área de imagem corporativa e projetos culturais, sociais, ambientais e esportivos, é um crítico mordaz da legislação que, segundo ele, trata cultura como objeto de renúncia e até lucro fiscal. Na entrevista que concedeu à Carta Maior (WANDER, 28/04/2006), Sarkovas afirmou que é um sistema perdulário e

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injusto porque cria uma cadeia desnecessária de intermediação, que, ao invés de o dinheiro sair em linha direta do caixa público para a ação cultural, cria-se uma cadeia de intermediação desse recurso em meio a milhares de empresas, exige-se uma série de captadores e é injusto porque ele não estabelece uma relação entre dinheiro público e interesse público. Mas a maior distorção está na Lei do Audiovisual e explica os motivos. Você sabia que, quando você entra no cinema e vê aquela marca na abertura dos filmes, você está pagando para aquela empresa usar aquela marca naquele filme? O desconto via lei, nestes casos, chega a 132%, ou seja, aquela marca que abre o filme pegou R$ 1 milhão de reais do dinheiro público - porque ela não pegou um centavo do bolso dela - e deu para aquele filme acontecer. Em troca, pediu uma série de benefícios, inclusive aquele benefício de imagem. Além de ela deduzir do imposto o R$ 1 milhão que ela “deu”, ela deduz também R$ 320 mil porque lança como despesa, aquilo se abate sobre o lucro e, na incidência, vira lucro. O poder público, o Estado brasileiro, paga para que empresas privadas decidam onde se vai colocar o dinheiro público em forma de incentivo cultural, é assim que tem que ser vista a Lei do Audiovisual. A população brasileira não sabe disso, o cidadão brasileiro não sabe disso e precisaria saber (WANDER, Carta Maior digital, 2006).  Como vimos, esse sistema de leis de incentivo baseadas em renúncia fiscal é uma noção que cresce de maneira assustadora, além de demonstrar uma grande concentração de grandes empresas e bancos, de projetos, de proponentes de maior porte, de volumosos recursos, de segmentos e de regiões, em geral, Sudeste e Sul e, em seguida, Nordeste, em detrimento das regiões Norte e Centro-Oeste. Em função disso, o Ministro da Cultura Juca Ferreira considerou positiva esta decisão do Tribunal de Contas da União, de que projetos culturais lucrativos não se beneficiem da Lei Rouanet. Ferreira diz que há distorções na lei, que beneficiaria apenas “consagrados” e não atenderia aos interesses públicos, e que, hoje, não há como evitar que isso ocorra. A solução, para ele, está em aprovar o Pró-Cultura, em tramitação no Congresso Nacional. Para o Ministro, a determinação tem um aspecto positivo por mostrar sensibilidade com as distorções da Lei Rouanet na medida em que a lei, de fato, transgride o princípio do interesse público, deixa de atender e apresenta múltiplas distorções. Segundo Juca Ferreira, a lei representa 80% do que o governo aplica em fomento à cultura e o critério não é o da necessidade de uma política pública de cultura. No entanto, essas declarações do Ministro da Cultura Juca Ferreira, dadas após a decisão do TCU proibindo o MinC de autorizar a captação de recursos, via Lei Rouanet, a projetos financeiramente viáveis, não foram bem recebidas pelo meio artístico (O Globo, 04/02/2016). Na entrevista concedida ao jornal O Globo, o ativista cultural Júnior Perim, do “Circo Crescer e Viver”, diz que fechar a torneira da Lei Rouanet cria desafios ao setor: Corrigir distorções da Lei, com a aprovação do Pró-Cultura, sou favorável. Mas antes disso impedir o uso do mecanismo, num contexto em que

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o Governo vem reduzindo substancialmente os investimentos diretos em projetos culturais, é “matar a vaca para tirar o carrapato”. Gostaria de ver publicada a posição do Ministro sobre os incentivos do Governo Federal à indústria automotiva — disse. A reação, nesta mesma matéria do jornal O Globo, concedida pelo Presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Eduardo Barata, foi ainda maior, fazendo duras críticas àquele Ministro. Em tempos de calote dos editais da Funarte, de total inoperância do MinC em formular novas políticas públicas de cultura e de crise econômica com contingenciamentos e redução do orçamento do ministério, a Rouanet continua intacta, com distorções que podem e devem ser corrigidas, porém, para isso não é necessário acabar com uma lei blindada pelas oscilações administrativas e financeiras de governos. Além de criticar a política da nova gestão e a redução no orçamento da pasta, Barata chamou a decisão do TCU de “política” e pediu mais transparência ao Ministério da Cultura: Até hoje o Fundo Nacional de Cultura é um cheque em branco na mão do Ministro e de difícil transparência. Por que não aproveitarmos o momento para dar visibilidade ao destino desta verba? A decisão do Tribunal de Contas da União de que projetos com potencial lucrativo não devem se beneficiar da Rouanet, me parece muito mais uma decisão política, discutida em concordância com o posicionamento da atual gestão do Ministério da Cultura, do que uma parecer técnico. Já o advogado Fábio Cesnik, especializado no setor cultural e com publicações na área, se manifestou com surpresa sobre a notícia veiculada pelos jornais, alardeando a proibição do uso da Lei Rouanet para projetos com fins lucrativos ou autossustentáveis, ao admitir que, embora a notícia tenha causado pânico no mercado cultural, é preciso ter muita calma uma vez que nada mudou que justifique o temor imediato do setor. No artigo (http://www.conjur.com. br/2016-fev-11/fabio-cesnik-decisao-tcu-lei-rouanet-reformada), que foi publicado no dia 11 de fevereiro deste ano, Cesnik reconhece que o TCU é órgão assessor do Poder Legislativo e tem competência, atribuída pela Constituição, de fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos públicos, sejam oriundos de incentivo ou de apoio direto. Além disso, deve assinar prazos para que os órgãos do Poder Executivo (o MinC, no caso) adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade. Embora sobre a decisão, como em todo processo, caibam recurso nos limites legais. Nesse caso em questão, o TCU emitiu uma primeira opinião, que ainda não foi divulgada na íntegra, afirmando que a Lei Rouanet, em vigor há 25 anos, não poderia permitir o apoio a projetos lucrativos ou autossustentáveis. Porém, Cesnik aponta o que considera um equívoco na interpretação do TCU que não deve prosperar. Para isso, ele explica que a criação pela Lei Rouanet do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) institui três mecanismos de captação e canalização de recursos ao setor:

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o fundo de cultura, o Ficart e o mecenato. O fundo, que repassa recurso público direto para ações culturais, tem claramente fundamentos bem sociais, na sua gênese. Segundo ele, isto significa dizer que sua distribuição deve se preocupar em ser regionalmente equitativa e destinada aos projetos e produtores que emulem ações aos menos favorecidos. O Ficart é uma estrutura permitida pela lei para que empresas possam constituir e operar fundos no mercado de valores mobiliários. Cesnik considera que, ao contrário do que diz a decisão do TCU, de que o Ficart nunca foi criado, não há aqui, portanto, nenhuma falha do Poder Executivo. A constituição dos fundos se encontra regulamentado por decreto, pela CVM e aberto para instituições financeiras que queiram estruturá-los. Aqui estariam contempladas atividades comerciais e industriais exclusivamente. Não há nada por fazer, a não ser propor uma mudança de lei criando incentivos fiscais, como nos Fundos de Cinema (Funcines), para que as instituições financeiras se interessem por constituir fundos desse tipo. E, por fim, menciona que o mecenato contempla ações sociais e também comerciais, “tanto que autoriza empresas com finalidade lucrativa de propor projetos” (Cultura e Mercado,2016:www.culturaemercado.com.br/site/pontos-de-vista/sobre-tcu-e-lei-rouanet) Afinal, qual seria o objetivo de uma empresa comercial se não a de obter lucro? A canalização de recurso como forma de desenvolvimento de mercado acontece em outras áreas onde já se criou incentivo: linha branca, automóveis, audiovisual etc.. Imagine como seria no caso do audiovisual: fazemos um filme sem saber quanto ele trará de público; se levar muita gente ao cinema, não poderia ter havido incentivo. Mas me explique: como descobrir isso previamente? Para Cesnik, a decisão do TCU parece fundar-se numa perspectiva muito mais moralista do que com base na lei e seus preceitos. O advogado considera que o Poder Legislativo, órgão ao qual o TCU está vinculado, editou a Lei Rouanet para que se fomentasse o mercado, a indústria e estimulasse a geração de emprego, renda e, por que não dizer, desse lucro aos agentes do setor. Ele reconhece que o Poder Executivo tem agido, de forma cuidadosa ao longo dos últimos anos, para criar mecanismos de democratização, acessibilidade, sempre de maneira responsável e respeitando os ditames legais. Mas, nesse caso, propõe que a decisão seja reformulada e considera que o setor cultural avançou bastante com a Lei Rouanet durante esses anos, devendo agora apoiar o MinC nesse recurso junto ao TCU e acalmar o mercado. A decisão do tribunal, com o devido respeito, deve ser reformada sob pena de subverter o comando da lei e criar um conceito, na minha visão, insustentável do ponto de vista técnico: como prever de antemão, sem juízo de valor, que um produto cultural vai ser lucrativo? A Lei Rouanet traz comandos vinculantes e pouco discricionários que estão permitindo o meio cultural se desenvolver e muito nos últimos 25 anos. Não

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podemos abrir mão de apoiar o Ministério nesse recurso ao tribunal e pacificar essa pontual preocupação do mercado; Tudo isso, é claro, sem prejuízo das melhorias que o Legislativo possa fazer na própria Lei Rouanet e que estão em discussão nesse momento no Congresso Nacional. É interessante observar as diferentes reações no setor, enquanto o advogado Fábio Cesnik recebeu a notícia da determinação do TCU com surpresa, propondo reformar essa proibição para acalmar o mercado, o professor de Economia da Cultura, Leandro Valiati, considerou uma novidade esse debate estar se institucionalizando e sendo feito por outras instâncias que não o próprio Ministério da Cultura e o setor cultural que, segundo ele, já vêm discutindo há bastante tempo, inclusive no que diz respeito à verificação do problema que é o sistema de subsídio à cultura, via renúncia fiscal no Brasil. Ele considera que os megaeventos não devem ser subsidiados pela Lei Rouanet. E defende uma revisão urgente da lei que nesses 25 anos não conseguiu acompanhar o processo de mudanças ocorridas no setor cultural. Acho que a Lei Rouanet tem que ter um objetivo associado a projetos que o mercado não pode viabilizar. Quando a Lei Rouanet foi criada, no governo Collor, era a salvação do setor cultural brasileiro do ponto de vista econômico porque era um ambiente de profunda recessão orçamentária para a cultura. A Lei Rouanet, nesse caso, apareceu como um caminho para que o dinheiro do setor privado entrasse no setor cultural. Nesses quase 25 anos de Lei Rouanet, todo o contexto de viabilização financeira do setor cultural mudou, e a lei não acompanhou essa mudança. Isso gera uma enorme concentração, na medida em que esse tipo de mecanismo de financiamento, na sua constituição, não é adequado para gerar diversidade na perspectiva do financiamento cultural. No fundo, é o marketing que guia o mecanismo de decisão das empresas; não é se tem maior ou menor valor cultural. A forma como a lei está redigida e como é utilizada pelo mercado leva a isso. O MinC só pode endurecer mais a sua relação com a lei de incentivo, ou seja, aprovar projetos que tenham uma dimensão mais de valor cultural, mas isso não é suficiente. Precisamos de uma revisão urgente da lei. À pergunta do jornalista (ZERO HORA, 04/02/2016) sobre os pontos que precisam ser revistos na Lei Rouanet, Valiati propõe esclarecer a diferença entre patrocínio, participação e mecenato. Primeiro, tem que se criar categorias de investimento na cultura. Eu tenho que entender a diferença entre patrocínio, participação e mecenato. Está claro na lei, mas a diferença na prática é muito pequena. Hoje, a diferença é o percentual em relação ao imposto que posso descontar ao participar dessas três categorias. Isso tem que ser aprofundado. Os outros pontos sugeridos pelo professor que precisam ser revistos na Lei Rouanet são: a participação das pequenas e médias empresas e da pessoa física. E reforça novamente a importância de se aprovar o projeto da nova lei que está no Congresso.

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Precisamos que o Congresso aprove uma nova lei. Há um projeto em circulação, a lei do Programa Nacional de Apoio à Cultura, que ainda está em tramitação e precisa de aprimoramento. Outro ponto: hoje, a Rouanet só permite que empresas com lucro real participem do processo. Isso é um problema porque, em geral, no Brasil, pequenas e médias empresas operam pelo lucro presumido. Também é necessário um esclarecimento maior sobre a possibilidade de participação da pessoa física. Já existe essa possibilidade, mas ela é pouco explorada. O debate continua na imprensa, como vimos, com diferentes repercussões e encaminhamentos. Interessante considerar também a opinião do arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, que assumiu a gestão da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, no lugar do atual Ministro Juca Ferreira. Após contextualizar que o Ministro tem criticado a Lei Rouanet, cobrando mais da iniciativa privada e sugerindo a revisão dos 100% de renúncia fiscal, num ano de PIB baixo, previsão de inflação alta, o jornal Valor Econômico entrevistou Bonduki perguntando se essas sugestões seriam viáveis no atual momento da economia? O Secretário responde que a lei municipal está sendo revista, se diz contra o dirigismo cultural e que essas distorções de serem mantidos eventos com recursos públicos só podem ser evitadas com a definição de uma política cultural. Temos um modelo em São Paulo, a antiga lei de incentivo municipal – que está sendo revista porque foi aprovado projeto do Andrea Matarazzo que regula a lei -, cujo modelo era de 70% [de renúncia fiscal], no máximo. O recurso é público e as leis de incentivo, muitas vezes, transferem para os diretores de marketing das empresas a decisão sobre o que pode e não pode ser financiado. Isso procede, uma limitação para não termos 100%, ou apenas em situações muito excepcionais, e, sobretudo, que a gente tenha mais rigor para que o apoio seja feito de modo coerente. Sou totalmente contra dirigismo cultural, mas deve-se ter alguma compatibilidade com uma política cultural, para não termos eventos que nada têm de interesse público sendo financiados com recurso público. Como então evitar essas distorções se essa seleção é feita pelo MinC?, pergunta o jornalista Evandro Éboli ao ministro Juca Ferreira (O Globo, 04/02/2016). Ao que ele responde que não é bem assim, uma vez que a CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, formada pela classe artística, sociedade civil, empresários e governo), é uma instância autônoma e é quem tem a última palavra. Tenho mecanismo ad referendum (de aceitar ou não decisões do Cnic), mas não posso tirar toda hora sua autonomia. (Os responsáveis pelos projetos) Foram aprovados com parecer técnico e saem com os certificados (de aprovação na lei) atrás de quem verdadeiramente define, que são as empresas, que vão se associar. E as empresas escolhem o que melhor dá retorno de imagem. Não é crítica às empresas, mas à lei. E

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apenas 20% conseguem algum apoio. O resto se frustra. Não tem interesse público nisso. Para Juca Ferreira, a Lei Rouanet é uma “injustiça federativa”, por beneficiar segmentos que não são os que mais precisam de apoio público. Segundo ele, 80% dos projetos liberados para captação pela Comissão Nacional de Investimento Cultura (CNIC) são dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, com o agravante de estarem centralizados em poucas empresas. “Um artista que esteja contrariando o senso comum não interessa. É uma seleção perversa, feita com dinheiro público. É importante perceber isso para termos uma posição clara sobre o assunto”, afirmou (ÉBOLI, 2016). Segundo ele, essa sua visão determinada foi construída a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), além de sua prática diária no MinC. “Não culpo as empresas, culpo a lei que refletiu um momento determinado do processo de amadurecimento do país, na redemocratização. Mas já estamos muito adiante”. Para o Ministro, além da luta pelo orçamento na área cultural, é preciso qualificar esse gasto e garantir a descentralização e a democratização dos repasses. Ele ressaltou que, apesar de as empresas poderem receber 100% do valor investido em projetos culturais via Lei Rouanet, o índice está caindo “velozmente”, criando um “caos” na área porque não há outras fontes de recursos disponíveis no momento. Na verdade, desde a gestão de Gilberto Gil, no MinC, em que Juca Ferreira exerceu naquele período a função de Secretário Executivo, com início em 2003, houve um amplo debate pelo país, através do Seminário Cultura para Todos – Financiamento público da cultura e leis de incentivo, que teve o objetivo de debater e recolher subsídios para a formulação de uma política pública de cultura para o país. Dirigido a artistas, produtores culturais e empresários, a iniciativa do MinC com este Seminário visava também discutir as Leis Rouanet e do Audiovisual, procurando inseri-las dentro de uma visão mais ampla, buscando caminhos mais abrangentes para o fomento à cultura. O Seminário foi realizado em todas as principais capitais do Brasil e embora tenha centralizado o debate no ponto mais polêmico, que é o patrocínio, foram discutidos os temas: os objetivos da legislação, os mecanismos da legislação, a regulamentação das leis e a operacionalização da legislação. De 2003 pra cá, a Lei Rouanet já passou por algumas mudanças. Uma das medidas foi através da Portaria nº 54, assinada pelo Ministro Juca Ferreira e publicada em 5 de setembro de 2008, no Diário Oficial da União, conforme foi publicado pelo jornal Gazeta do Povo, no dia 17/09/2008 O jornal Gazeta do Povo (http://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/o-que-mudou-na-lei-rouanet/ ). De prático, a nova portaria elimina algumas exigências como, por exemplo, a apresentação de documentos de cessão de direitos autorais, no ato de inscrição dos projetos, sendo necessária apenas a apresentação de carta de anuência (consentimento) do proprietário ou detentor de direitos. Outra novidade é que passaram a não serem mais exigidos os termos de

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anuência dos artistas ou grupos culturais envolvidos, com a proposta e também o termo de compromisso ou confirmação da pauta dos teatros ou espaços que abrigarão os espetáculos e eventos. “Esta é uma medida de racionalização, simplificação e atendimento à demanda dos produtores”, segundo o Ministro. Segundo pesquisa da FASFIL (Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos– ABONG, GIFE, IBGE e IPEA), que levantou a quantidade e perfil das associações e fundações brasileiras, existiriam 11.995 organizações sem fins lucrativos na área da cultura e arte no Brasil, representando 4,1% do total das quase 291 mil existentes no país. Além das pessoas jurídicas, a área cultural também reúne inúmeros produtores culturais e artistas, que realizam ações no campo da cultura. Há várias fontes para o financiamento de projetos culturais, públicas ou privadas, nacionais e até internacionais. Dentre elas, entretanto, a Lei Rouanet é uma das mais utilizadas. O MinC publicou, no dia 1º de julho, a Instrução Normativa nº 1, de 24 de junho de 2013, que estabelece procedimentos para a apresentação, recebimento, análise, aprovação, execução, acompanhamento e prestação de contas de propostas culturais, com relação ao mecanismo de incentivos fiscais do Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC e traz importantes mudanças. A Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) difundiu as mudanças na lei (http://captacao.org/recursos/artigos/986-ministerio-da-cultura-publica-nova-instrucao-normativa-para-a-lei-rouanet/ ) 1. Caiu o limite que fixava a autorremuneração do proponente em 10% do total do projeto até o teto de R$ 100 mil. A partir de agora, o proponente não terá mais essa limitação e continuará podendo ser remunerado dentro de seu projeto, desde que o mesmo preste serviços dentro do projeto, discriminando no orçamento analítico quais serão suas rubricas. É importante dizer que o proponente deverá apresentar mais 2 orçamentos, comprovando que seu preço é o mais econômico. 2. Apesar de possuir um CNPJ, o microempreendedor individual foi equiparado à pessoa física na Lei Rouanet e terá os mesmos direitos e deveres da mesma, inclusive as limitações (números de projetos ativos e total permitido para os projetos). 3. Tornar-se-á obrigatório, no plano de distribuição dos projetos, em que haja previsão de público pagante ou comercialização de produtos culturais: mínimo de 10% para distribuição gratuita à população de baixa renda; até 10% para distribuição gratuita promocional pelos patrocinadores; até 10% para distribuição gratuita promocional em ações de divulgação do projeto. Além disso, o custo unitário dos ingressos ou produtos culturais deve observar os critérios: mínimo de 20% para comercialização a preços populares e não superiores ao teto do vale cultura (que hoje é R$ 50,00); até 50% para comercialização a critério do proponente. 4. O Plano Anual de Atividades poderá ser apresentado por entidades sem fins lucrativos podendo contemplar, além dos projetos e ações anuais, a manutenção da entidade. Este tipo de projeto deve ter caráter permanente e continuado. No entanto, mesmo com o esforço do Ministro Gilberto Gil, desde o ano de 2003, realizando uma ampla escuta pelo país ao promover o Seminário Cultura Para Todos, e nas duas

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gestões do Ministro Juca Ferreira, de fazer algumas mudanças na lei, o fato é que o sistema de financiamento precisa passar por uma mudança estrutural. Segundo Mônica Drummond, proprietária da Cultural Office, empresa que, desde 1997, viabiliza projetos por meio do mecanismo federal, o difícil não é aprovar o projeto na lei (SANTOS, Gazeta do Povo, 17/09/2008: http:// www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/o-que-mudou-na-lei-rouanet/ ). “Aprovar um projeto na Rouanet não é um ‘bicho de sete cabeças’. O difícil é, uma vez aprovado, captar os recursos para viabilizar o projeto”, critica. No entendimento de Mônica, o MinC deveria tomar duas medidas: “Primeiro, fazer uma campanha nacional para incentivar empresários a renunciar aos impostos e apoiar a lei. Depois, é preciso criar mecanismos para que empresas que atuam no Paraná apoiem projetos locais.” Mônica diz que as empresas instaladas ali até renunciam impostos, mas “gostam” (ou preferem) investir em empreendimentos culturais do eixo São Paulo-Rio. Uma outra distorção da Lei Rouanet, apontada pelos produtores culturais (BORDONI, 14/09/2015), as políticas e investimentos do Estado em cultura contemplam apenas o universo artístico e excluem um campo vasto da expressão e diversidade cultural no país. Para isso, o Estado deve adotar um conceito que entenda os fazeres das pessoas e da coletividade como manifestação cultural, expressa a pesquisa realizada na Faculdade de Direito da USP, por Danilo Júnior de Oliveira (http://www.usp.br/aun/exibir.php/ ). Este pesquisador defende que as políticas de incentivo à cultura devem ser aplicadas a todos os cidadãos, e não apenas aos artistas e intelectuais. “As políticas públicas de saúde não são feitas para os médicos, as políticas públicas de educação não são feitas para os professores, são feitas para a população toda, então para a cultura também precisa desse entendimento”, argumenta o pesquisador, em citação à fala do Ministro da Cultura, Juca Ferreira. Ainda segundo Oliveira, a lei é positiva para o desenvolvimento da cultura, porém a destinação dos recursos não pode ser feita majoritariamente a ela, e sim ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), que não envolve a iniciativa privada. Segundo ele, com a distribuição de verba atual – de R$ 1 bilhão para a Lei Rouanet e, após os cortes de orçamento desse ano, de R$ 100 milhões ao FNC – a cultura popular, da periferia e produzida no interior do país não tem lugar para crescer e ganhar reconhecimento. O pesquisador defende o aumento na verba destinada à cultura, e a sua distribuição, no mínimo igualitária, entre a Lei Rouanet e o FNC. A proposta é contemplada por projeto de lei que pretende criar o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura). O Projeto de Lei nº 6.772/2010, que institui o ProCultura, prevê que o FNC seja o principal mecanismo de financiamento federal à cultura. O programa, previsto para substituir a Lei Rouanet, propõe um novo modelo de financiamento federal à cultura e mudanças substanciais no mecanismo de incentivo cultural, por meio de renúncia fiscal. Para isso, o FNC será transformado em um fundo de natureza contábil e financeira e também poderá receber recursos por

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meio de doações e patrocínios. Na prática, isso tornará possível repassar recursos não utilizados em um exercício para o ano seguinte. Hoje, como o fundo é apenas contábil, o saldo anual precisa ser devolvido ao Tesouro Nacional. O ProCultura também estabelece mecanismos de regionalização dos recursos, que serão destinados em parte a fundos estaduais e municipais, com vistas a financiar políticas públicas dos entes federados. Juca Ferreira está otimista com a possível aprovação do PróCultura, pois já passou na Câmara e no Senado e, segundo ele, já está no Congresso. No Pró-Cultura, a renúncia fiscal deixa de ser o principal mecanismo de fomento e incentivo. Não acabamos com ela, mas vamos dar racionalidade. Se tem potencial de lucro, em vez de dar dinheiro de graça, seremos (o governo) co-financiadores e vamos participar do lucro com o que investimos. E esse recurso seria disponibilizado para o Fundo Nacional de Cultura. O Ministro esteve na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, para expor aos senadores as políticas e diretrizes do MinC para os anos 2015 e 2016 e aguarda ansiosamente por esta aprovação por parte do Congresso.  ALGUMAS CONCLUSÕES É possível perceber, da trajetória cumprida pela Lei Rouanet, nesses 25 anos de criação, muito mais do que um grande volume de eventos e ações culturais, principalmente de médio e grande porte, promovidos, em geral, na centralidade das grandes capitais brasileiras. Seus entraves e distorções, assim como o debate acalorado entre produtores e gestores, nessa questão, expressa, da mesma forma, um Brasil de profundas desigualdades, contraditoriamente, sustentadas com dinheiro público. De um lado, temos um perfil de proponente que dispõe de estrutura bastante profissionalizada, de projetos bem elaborados e consequentes portfólios que impressionam resultando em grandiosos espetáculos, shows, exposições e demais eventos, a reforçar a grande arte e a celebridade do artista, que parecíamos ter ultrapassado no contemporâneo; expressa o mesmo padrão e forte tendência de promover os megaeventos que são replicados nas grandes e também nas pequenas e precárias cidades. Revela a hegemonia dos musicais, na maior parte americanos e que, anualmente, captam milhões, encenados em grandes teatros privados com caros ingressos, atividades com ousados planos de comunicação para difundirem a marca das empresas que são atraídas a patrocinar. Este é um pequeno nicho de grandes e médios produtores no mercado, mas que consomem a maior parte dos recursos disponíveis. Do lado de fora da porta, porém, nos deparamos com uma massa gigantesca de agentes culturais, individuais, grupos e coletivos, que, embora realizem ações diárias em arte e cultura, seus projetos não costumam ser apoiados. Ou seja, mais do que uma concentração de recursos

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em determinados proponentes, projetos e empresas, revelando um forte abismo entre as classes de produtores culturais, pode-se captar, também, a hegemonia de uma determinada linguagem, uma espécie de fórmula de sucesso que se repete e, reincidentemente, recebe volumosos patrocínios. Em geral, são projetos espetaculares e glamorosos, que costumam trazer retorno de mídia, imagem, publicidade e grande público, em detrimento de outros segmentos e áreas de expressão que ficam de fora. Estamos falando da grande maioria dos agentes culturais, que podem até ter seus projetos aprovados na lei, mas ao baterem nas portas dos departamentos de marketing das empresas, costumam não ser contemplados por não atraírem o interesse de grande parte dessas empresas. E o mais grave, como disse o Ministro Juca Ferreira, os apoiados são os mesmos. Assim como são os mesmos produtores, de médio ou grande porte, que são procurados pelos veículos de imprensa para dar entrevistas nos casos de mudanças da lei. Dificilmente a mídia procura ouvir um pequeno produtor que não esteja nesse perfil de patrocínio. E ai do gestor que tente mudar essa lógica; o mesmo costuma sofrer um forte desgaste na imprensa, como vivenciou o Ministro Gilberto Gil em 2003, mesmo depois de fazer uma ampla escuta pelas regiões do país com o Seminário Cultura Para Todos. Ou as críticas que enfrenta o Ministro Juca Ferreira, nas tentativas que vem fazendo para mudar o sistema de incentivo à cultura, desde a sua posse em janeiro de 2014. O desafio é enfrentar os interesses de uma forte cadeia que envolve as instâncias executiva, legislativa, judiciária, empresarial e comunicacional. Embora a Lei do Audiovisual não seja aqui o foco de análise, não podemos deixar de observar que, se a lei do ProCultura até agora não saiu do papel; previa potencializar o Fundo Nacional de Cultura e se desmembrar em fundos setoriais, mas o único fundo que deslanchou, e com grande recurso, foi o Fundo do Audiovisual. Ou seja, além de uma lei bem mais generosa ao empresariado do que a Lei Rouanet, e que ninguém ousa criticar, tem uma agência reguladora, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e um volumoso fundo. Estamos, portanto, com a manutenção deste sistema de financiamento, não só deixando de ser democráticos e acirrando a exclusão, do ponto de vista econômico, se olharmos as grandes cifras para um pequeno e reincidente grupo e os parcos ou nulos recursos para a grande maioria. Estamos também enfraquecendo o papel do Estado, de uma política pública cujo acesso deveria ser igual para todos, que justifique o grande investimento na estrutura funcional e pessoal, de uma secretaria, equipamentos, servidores e pareceristas do Ministério da Cultura, para dar conta de enorme volume de projetos. Como disse o Ministro Juca Ferreira: o ministério tem em torno de 300 funcionários para analisar projetos “que disputam o direito de captar recursos junto a empresas que pretendam investir em cultura via renúncia fiscal”. Há uma quantidade astronômica de propostas todos os anos, e muitas recebem aval para captar o benefício. Só que apenas 20% conseguem, ficando concentrado em apenas dois estados. Oitenta por cento do total renunciado vai para os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Sessenta por cento,

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para duas cidades (as capitais), e são sempre os mesmos proponentes que recebem: os que dão retorno de imagem às empresas. Segundo o Ministro, não é culpa da empresa se criamos um mecanismo para isso, ele pode ser usado. Mas não é parceria público-privada.  Mais do que isso, que cultura e arte estamos ajudando a se perpetuar? Aparece aí uma clara oposição entre arte e entretenimento numa luta inglória, injusta, desigual, hegemônica e pobre de criação, se quisermos espelhar a tal diversidade cultural e os diferentes potenciais de invenção. Ao fazermos essa escolha e mantermos o modelo estamos deixando de lado a experimentação de projetos mais ousados que apontem noutra direção, uma vez que todo o processo de criação implica enfrentar os riscos.

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POTÊNCIA E EXCLUSÃO: PENSANDO A POLÍTICA CULTURAL DA VIZINHA DO REI Ana Maria Amorim Correia1 RESUMO: Muitos avanços aconteceram na forma de pensar e agir das políticas culturais no Brasil. Este artigo buscar um olhar para a maleabilidade dessas conquistas, trazendo o exemplo da cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, com questões sobre instabilidade e ausência – adjetivos já tanto usados na análise nacional da cultura – e também sobre territorialização e desenvolvimento – o debate urgente e contemporâneo das cidades e do papel da cultura em suas estratégias. PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Territorialização da Cultura, Duque de Caxias.

A cidade de Duque de Caxias tem uma história com fincos intensos de violência. A existência da cidade, na atual configuração, foi formalizada na metade do século XX, entre as décadas de 1940 e 1950, e é fruto e cúmplice do nascimento das demais cidades do entorno, tendo assim sua existência em forte vínculo social, político e cultural dentro deste guarda-chuva que as embarca: a Baixada Fluminense. Trata-se, portanto, de uma configuração recente do território e sua institucionalidade, em uma região que hoje compreende os seguintes municípios: Duque de Caxias, São João de Meriti, Seropédica, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados, Mesquita, Belford Roxo, Magé, Japeri, Paracambi, Guapimirim e Itaguaí. Para chegar à discussão da política cultural, é essencial passar por um entendimento do contexto político da cidade. A cidade ainda luta contra o estigma histórico que carrega de ser a cidade de políticos aliados ao banditismo social, milícias e personalismos, como na emblemática figura de Tenório Cavalcanti, imortalizado como “O Homem da Capa Preta” no clássico do cinema brasileiro da década de 1980 (SOUZA, 2014). Tenório antecede a formalização dos municípios e representa a fragilidade da figura do Estado de Direito na região, sendo até hoje presente nos símbolos da cultura local, muitas vezes ressignificado. Estudos de representação da Baixada Fluminense na imprensa, no recorte das décadas de 1950 a 2000, também destacam essa chaga: a violência era a editoria mais recorrente, com pouca expressividade nas demais Jornalista (UFV), especialista em Mídia, Informação e Cultura (USP) e mestra em Cultura e Sociedade (UFBA). Divulgadora científica do Museu Ciência e Vida, da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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abordagens (ENNE, 2004). A violência também é simbólica, pois negada de sua identidade. Duque de Caxias e os demais municípios sofrem, principalmente até a década de 1980, a intensa compreensão de cidade-dormitório, classificação que a limita como uma dependência da capital, Rio de Janeiro, e enfatiza o olhar masculino para a cidade, que desconsidera as donas de casa que permaneciam na cidade e nela construíam suas histórias. Outra marca conhecida da cidade está no fato de ter recebido toneladas de lixo das cidades da Baixada Fluminense e da capital, Rio de Janeiro, no Jardim Gramacho. À beira da Baía de Guanabara, o lixão funcionou por mais de três décadas, sendo fechado somente em 2012, em um escandaloso capítulo de crime ambiental e morosidade do Estado com a região. Ao mesmo tempo, é importante trazer à memória a resistência como uma ideia de resignificação, de construção dos espaços de cultura e cidadania. É deste mesmo chão, do município que seria Duque de Caxias, que foi fundada, na década de 1920, a Escola Proletária de Meriti, voltada para uma comunidade rural carente, renomeada posteriormente como Escola Regional de Meriti e mais conhecida como Mate com Angu, referência à merenda escolar servida - uma das primeiras da América Latina a dar esta assistência aos alunos. Aqui fica, portanto, o retrato de outra personalidade local: Armanda Álvaro Alberto, educadora e militante que também é presente nas referências locais, como no próprio nome do cineclube Mate com Angu, uma das maiores referências de produção cultural da cidade. A retomada desses dois símbolos, obviamente, não busca uma delimitação exaustiva da cidade, mas fornece uma síntese - de forma passageira, mas não intencionalmente binária - de um pensar sobre a cidade e suas possibilidades. Isso em suas diversas esferas, aqui incluindo a cultura. Pois essa é uma das balanças em que vive Duque de Caxias: potência e exclusão. 1. VOLTANDO AO FUTURO: E A CULTURA? Décadas se passaram e o Brasil se envolveu na tarefa de pensar as políticas culturais. Isso é fruto de uma história que vem desde os armistícios mundiais, passando pela criação da Unesco e seus encontros reflexivos sobre patrimônio e diversidade cultural. Além das diretrizes para se pensar as políticas culturais através da visão da identidade e diversidade cultural, tais encontros também traziam a reflexão sobre a dimensão cultural do desenvolvimento, ponto marcante do Mondiacult, realizado na década de 1980. (UNESCO, 1982). Cada vez mais debatida, a política cultural vai ganhando definições, como a aqui utilizada de Canclini (2001) que a define como: Al conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necessidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social. Pero esta manera de caracterizar el ámbito de las políticas culturales necesita

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ser ampliada teniendo em cuenta el carácter transnacional de los procesos simbólicos y materiales em la actualidad (CANCLINI, 2001, p.78) Para fins desta reflexão, neste momento nos limitaremos às políticas culturais através do poder público. É interessante observar que, ao estudar as experiências brasileiras, no âmbito federal, Rubim evidencia a existência de três tristes tradições: a ausência, o autoritarismo e a instabilidade (RUBIM, 2007). Vamos nos deter na última característica: Esta marca é bem forte no período de abertura democrática do Brasil, após 1984. O Ministério da Cultura é criado, mas sofre a troca constante de ministro, com dez nomes sucedendo-se no período de nove anos - entre os governos de José Sarney (1985-1989), Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994). (AMORIM, 2011, p.44) Também no período delimitado pela instabilidade, a existência das instituições culturais reflete o mesmo mal. Collor, por exemplo, encerrou o ministério, reduzindo-o a uma secretaria e extinguiu inúmeros órgãos, a exemplo da Funarte, Embrafilme, Pró-Memória, Fundacem e Concine (RUBIM, 2007). Dito isso, é interessante observar a recente história de política cultural realizada pelo poder público municipal em Duque de Caxias. A cidade criou a Secretaria Municipal de Cultura em 1991, quando foi desvinculada da educação, e, em 2009, passa a agregar também a pasta de Turismo. Em 2014, completam-se 10 anos dos ecos da administração dos Ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira na cultura municipal. Nesta década a secretaria foi ocupada por 7 secretários que, na falta de um plano municipal de cultura e de uma classe artística politicamente organizada, imprimiram sua visão de cultura na cidade.(MARQUES, 2014a)2. Também nesse recorte de tempo, não faltou a apreensão sobre a existência da secretaria, com a mudança da gestão municipal. Em 2013, um clima de incerteza sobre a continuidade da pasta e as políticas que seriam estabelecidas para o setor tomou conta da cidade, visto a demora de indicação de um nome para ocupar o cargo. No início de 2013, no meio desse silêncio sobre a gestão, a secretaria fora transformada, via portaria, passando a ser vinculada à Secretaria de Educação. Contudo, ela foi retomada posteriormente devido às mobilizações. É interessante observar o período ao qual a citação contempla: justamente quando o país passa por uma estruturação da cultura de forma diferente, com o fim do mandato de Fernando Henrique Cardoso, que imprimiu a ideia de cultura como mercadoria, em uma tônica neoliberal, e a gestão da cultura do Governo Lula, com Gilberto Gil e, posteriormente, Juca Ferreira à frente da pasta. Neste período, portanto, podemos realçar mudanças em relação a forma e conteúdos das políticas culturais, a exemplo do conceito de cultura adotado pelo Ministério da Cultura, vista agora de forma antropológica, o papel do Estado diante de tais políticas e a compreensão MARQUES, Alexandre. [Políticas de Cultura em Duque de Caxias] Os Secretários Municipais. Disponível em: < http://lurdinha.org/site/politicas-de-cultura-em-duque-de-caxias-os-secretarios-municipais/>. Acesso em 10/02/2016. 2

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da identidade e diversidade cultural brasileira. No paralelo acima citado, Duque de Caxias ainda demonstra a fragilidade institucional da pasta, o que, mesmo que não representando nenhuma visão específica da cultura, reflete na descontinuidade de processos, tornando o processo de efetivar políticas culturais mais moroso. Porque não linear e sujeita a diversas vozes, essa delimitação da política cultural caxiense em semelhança à instabilidade não significa, contudo, que não tenha existido nenhum esforço que dialogue com as premissas que o governo federal desenvolvia para a cultura. Uma das pautas presentes na pasta esteve em consonância com os avanços do debate de política cultural nacional, tal qual o plano municipal de cultura (aprovado em 2015), o conselho de cultura (que se tornou órgão deliberativo) e as conferências de cultura (foram realizadas, por exemplo, seis conferências municipais de cultura, entre 2005 e 2015) - isto não significa que todos estes processos sejam isentos de ressalvas em suas formas, mas representam o esforço da institucionalidade, mesmo em uma pasta tão frágil, que sequer conta com um quadro de servidores estatutários. Ainda sobre a estruturação, é válido ressaltar que no relatório da V Conferência Municipal de Cultura, realizada em 2013, consta que, conforme fala do então secretário Jesus Chadiak, o orçamento da cultura da cidade era de 0,16%. Para continuar com os números, é importante ressaltar que, apesar de sempre associada a imagens de violência e pobreza, estamos falando de um dos municípios mais ricos do país, presente entre as melhores economias municipais do Brasil. Em 2013, por exemplo, para seguir a mesma data anteriormente citada, Duque de Caxias registrava um dos maiores Produto Interno Bruto (PIB) do país, com a marca de mais de 25 bilhões de reais, número semelhante do PIB de capitais de estados, como Goiânia (GO) e Vitória (ES). Já foram citadas as instabilidades da gestão e da existência da secretaria. Os espaços culturais também são afetados, ainda dentro do recorte recente: A Secretaria possuía, através de leis municipais, a Companhia Municipal de Dança e a Escola de Artes Barbosa Leite [criada por lei municipal em 1992] que oferecia vários cursos de formação artística na cidade. A primeira foi desativada na gestão de Carmen Miguellis [2005-2008] e a de Artes foi extinta na gestão de Guttemberg Cardoso. Havia o Centro de Tradições Populares instalado por Dalva Lazaronni na segundo andar do restaurante popular. Este espaço abrigava a Liga Municipal de Capoeira, a Associação do Expositores da Feira de Artesanato, a Folia de Reis Flor do Oriente e a Associação Carnavalesca de Duque de Caxias. O Centro de Tradições foi desativado na administração de Jesus Chediak e o espaço é ocupado pela Secretaria Estadual de Diversidade Sexual. (MARQUES, 2014b.).3 MARQUES, Alexandre. [Políticas de Cultura em Duque de Caxias – 2] Os Aparelhos Municipais. Disponível em: . Acesso em 10/02/2016. 3

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Todos esses apontamentos ainda trazem uma questão às políticas culturais em Duque de Caxias, que remonta a outra triste tradição apontada por Rubim (2007): a ausência. Isso será destrinchado em dois olhares: o dos “grupos comunitarios organizados”, retomando o conceito inicial de Canclini, e o do Estado. Em uma relação de afastamentos, falta de recursos e de fragilidade institucional, é visível o reflexo na organização dos coletivos de cultura de Duque de Caxias. Um exemplo recente desse incômodo está na visita do ministro Juca Ferreira à cidade com a pauta de conversar sobre cultura na Baixada Fluminense, em agosto de 2015. O local escolhido para receber o ministro foi um ponto de cultura, Lira de Ouro, espaço referência dos coletivos culturais da cidade. Sem fala institucional da administração local, a escolha do lugar em detrimento do equipamento municipal, o Teatro Raul Cortez, distante apenas 600 metros do local, foi simbólico desta relação. Este mesmo encontro também simbolizou o afastamento da escuta das demais administrações (estadual e federal) na cidade: os pontos de cultura representam a presença do Ministério da Cultura na cidade e, estadualmente, não há nenhum equipamento da pasta da cultura em funcionamento na cidade, o terceiro mais populoso do Rio de Janeiro. Podemos tomar como exemplo os museus. Existem três espaços identificados como museus na cidade de Duque de Caxias: Museu Vivo do São Bento, um museu com a proposta de percurso, ligado à Secretaria Municipal de Educação; o Museu da Taquara e do Duque de Caxias; e o Museu Ciência e Vida, vinculado à Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia. Ainda podemos acrescentar o Instituto Histórico, da Câmara Municipal, e o CEPEMHEd - Centro de Pesquisa, Memória e Hstória da Educação de Duque de Caxias e Baixada Fluminense, da Secretaria Municipal de Cultura. Ou seja, o único equipamento estadual que também pode atender a demandas culturais, mais por sua estrutura do que por sua constituição, não tem vínculo direto com a Secretaria Estadual de Cultura, e sim com a Ciência e Tecnologia. Aliás, no sistema de busca de espaços culturais, disponível no site desta secretaria, ao ser selecionado o município de Duque de Caxias, há apenas um resultado apontado: a Biblioteca Comunitária Solano Trindade, que, apesar de contemplado pelo edital Pontos de Leitura, no Ministério da Cultura, é uma iniciativa de moradores. Falando em bibliotecas, pode-se pensar na existência de uma interessante política cultural que o governo do Rio de Janeiro aplicou em seu território inspirado nas ações de Medellín, na Colômbia, as Bibliotecas Parque:    En el marco del Plan de Desarrollo 2004-2007, la Alcaldía de Medellín desarrolla el proyecto estratégico Parques Biblioteca, cuyo objetivo es dotar a la ciudad de espacios públicos de calidad que tengan funciones culturales, recreativas, educativas, de esparcimiento, formación y apoyo a las comunidades menos favorecidas de la ciudad. En este sentido de reequilibrio social y territorial, se planifica la construcción en Medellín

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de cinco Parques Biblioteca en comunas desfavorecidas. Los Parques Biblioteca no son concebidos como meros contenedores de libros sino como centros culturales, a manera de centralidades zonales, que además están conectados con la realidad social y que ofrecen oportunidades de desarrollo a la comunidad en función de las necesidades de ésta. Con la construcción de estos espacios la Alcaldía de Medellín pretende mejorar la calidad de vida de su ciudadanía.(PORTAL CÁTEDRA MEDELLÍN BARCELONA, 2007, p.252)4 Foram instaladas quatro unidades: a central, na avenida Presidente Vargas, na capital; a da Rocinha e de Manguinhos, também na capital; e a de Niterói. Nenhum município da Baixada Fluminense foi contemplado por essa ação, mesmo com a urgente necessidade de se pensar a territorialização da cultura na cidade do Rio de Janeiro e suas cidades vizinhas. Em cidades como Duque de Caxias, que constroem o sentido de identidade nas últimas décadas, as ações de instabilidades e ausências dos poderes acabam resultando no que a Secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural do MinC, Ivana Bentes, no encontro com Juca Ferreira em Duque de Caxias, ressaltou como “disputa de narrativa”, ressaltando que não se tratava de uma “demanda vitimizante”, mas “potente” do que já é desenvolvido na cidade. 2. DISPUTANDO A NARRATIVA: A CULTURA E CIDADE A chamada disputa de narrativa, apontada por Ivana Bentes, tinha um paralelo expresso. A disputa é realizada com a cidade do Rio de Janeiro, conurbada com a cidade de Duque de Caxias. Não se trata de uma infantilizada competição, mas de um exercício democrático que passa, necessariamente, por um pensar político sobre as cidades. Isto pode ser melhor expressado se considerar o próprio território do Rio de Janeiro, apenas. Desenhada dentro de um zoneamento classista, a configuração do espaço urbano na capital organiza as ações dos governos tal qual na visão ampliada, incluindo assim os municípios da Baixada Fluminense. Isto porque a concentração de equipamentos culturais também seguirá a lógica do preço do metro quadrado, deixando na zona sul e centro, por exemplo, a sua concentração. Importante dizer que até mesmo as políticas de segurança pública (aqui sem juízo de valor), como as Unidades de Polícia Pacificadora, seguirão a lógica do zoneamento, com as unidades buscando estabelecer a “paz” nos bairros nobres (MELO; PERES, 2007). Por outro lado, para além dessas desigualdades, a disputa de narrativa apresenta seus frutos quando uma comitiva do Ministério da Cultura aparece em Duque de Caxias para um microfone aberto com os grupos culturais. Acontece também quando o jornal “O Globo”, no suplemento de “Cultura”, e não no caderno específico para a Baixada, destaca o “momento Portal Cátedra Medellín Barcelona. Parques Biblioteca - Ficha de Presentación. Disponível em: . Acesso em 10/02/2016. 4

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fértil” da produção cultura, ainda que, corretamente, destacando que esse cenário é “é movido a um ‘faça-você-mesmo’ colaborativo, pelo fortalecimento da tradição local (e suas histórias e personagens) e pela ocupação de espaços públicos ou alternativos”5(LICHOTE; GOULD, 2015). Também quando, na mesma conjuntura, a Empresa Brasil de Comunicação abre espaço da programação para falar sobre a Baixada, incluindo reuniões com os produtores locais para pensar a forma e conteúdo dos materiais6 (OLIVEIRA, 2015). Mérito da produção cultural de Duque de Caxias, o reconhecimento desta cidade pela cultura deve ser um dos recursos de problematização das políticas culturais e para a cidade. A tal disputa é realizada, portanto, há décadas pelos moradores. É necessário que a expressão saia, portanto, do etéreo - que se pensem as narrativas, mas que se concretizem políticas e sujeitos. Em outras palavras: que entre em campo a institucionalidade. Na esfera municipal, estadual e federal, o poder público não responde à cidade como um protagonista. Parece que a disputa de narrativa está na execução de políticas por parte da administração, e não um exercício comunitário. Assim, como reforça Milton Santos na sua ideia de território, Duque de Caxias precisa de um ponto de inflexão na forma como seu território tem tratamento político. Cada homem vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território. Seu valor vai mudando, incessantemente, para melhor ou para pior, em função das diferenças de acessibilidade (tempo, frequência, preço), independentes de sua própria condição. Pessoas com as mesmas virtualidades, a mesma formação, até mesmo o mesmo salário têm valor diferente segundo o lugar em que vivem: as oportunidades não são as mesmas. Por isso, a possibilidade de ser mais, ou menos, cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde está. (SANTOS, 2007, p.81). Não observar as políticas culturais na cidade de Duque de Caxias, principalmente em um caráter estruturante das ações, significa destoar com a política federal de avanços na cultura, com suas diretrizes e com os discursos que as sustentam. Trata-se, portanto, da necessidade urgente de relacionar a cultura, localmente e em diálogo com os demais poderes, com as pastas de desenvolvimento. Assim, as políticas culturais passam a participar dos processos de municipalização, com o objetivo de resgatar, através do fomento à diversidade cultural, a capacidade de autodeterminação dessas comunidades, trabalhando essa diversidade a favor do desenvolvimento territorial susLICHOTE, Leonardo; GOULD, Luiza. Na Baixada, momento fértil da cultura urbana culmina com encontro do ministro Juca Ferreira e artistas locais. Disponível em: . Acesso em 09/02/2016. 6 OLIVEIRA, André de. EBC realiza encontro com a Cultura da Baixada Fluminense. Disponível em: . Acesso em: 09/02/2016. 5

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tentável, local e regional. O grande papel das políticas culturais, nesse processo de (re)construção das bases locais, será o de valorizar os imaginários locais, a partir do fomento das expressões culturais tradicionalmente descartadas e excluídas, compreendendo-as como produtoras de sinergias e estimuladoras de solidariedades comunitárias. (LEITÃO, 2009, p.35) A necessidade urgente de a política cultural ser colocada em prática de forma estruturante, como demonstrado nas reflexões sobre a cidade e sua territorialização, é sentida, portanto, na ideia de desenvolvimento e de cidadania. Este último conceito, também agregado pela ideia da cultura nas últimas gestões federais da cultura no país, “exige a consolidação e a distribuição equitativa de uma infraestrutura cultural em todo o território, bem como a garantia de acesso aos meios de fruição cultural, além da valorização e da difusão das manifestações culturais”. (ARAÚJO, 2014). Se ficar só no discurso parabenizador das ações locais, a gestão pública da cultura não apenas perde a chance de estabelecer um diálogo profícuo como também se exime de sua responsabilidade, possivelmente abandonando o barco das conquistas da área. 3. CONCLUSÃO Instabilidade, autoritarismos e ausência não são palavras de poder absoluto e determinadas cronologicamente quando as pensamos como adjetivações das políticas culturais. Isso por uma questão simples: as políticas, culturais ou não, em termos estritos, não são indestituíveis, perenes, pétreas por si só - e nem deveriam. O que o olhar reflexivo que nos propomos busca trazer é a evidência da concomitância entre agendas de cultura progressistas e entraves (para manter as tais tradições, ausências e instabilidades) que se percebem em outras experiências. Assusta, ao pensar na situação específica de Duque de Caxias, pois ela se avizinha da segunda maior cidade do país, cuidada, em termos estruturantes e pragmáticos, pelas gestões estadual e federal que compartilha com aquela cidade. Demonstra que o desafio de pensar as cidades e o seu espaço é uma demanda urgente se quisermos falar de políticas culturais para a cidadania e, ao menos nos discursos, é pra isso que se tem pautado as mudanças na gestão cultural nacionalmente desde o início deste século. Na área da cultura, essa é uma construção que vem marcada de desafios. Principalmente se pensarmos que as próprias instituições demandam entendimento amplo nas diretrizes políticas para simplesmente existirem dentro das gestões. Por exemplo, no ano de 2014, na cidade de São João de Meriti, a Secretaria de Cultura foi extinta7, absorvida pela Secretaria de Educação, Portal RJ Notícias. Prefeito de São João de Meriti extinguiu onze secretarias e demitiu três mil funcionários. Disponível em: . Acesso em 09/02/2016

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com projetos culturais encerrados ou reduzidos. Até mesmo o Ministério da Cultura foi colocado na amargura da dúvida, durante os boatos que corriam da reforma ministerial, em 2015. Isso sem falar na comum ausência de concursos públicos, em todas as esferas, e o orçamento que, apesar de ter crescido, nacionalmente, não alcança 2%. Visualizar a política cultural, na parte que cabe ao poder público, através desse espectro-cidade chamado Duque de Caxias expõe a nudez famélica da cultura quando setorializada na estratégia política. Torna-se evidente a necessidade que a disputa seja um verbo conjugado pela administração pública, seja pela “dívida” já histórica com a cidade ou pelo risco de assistir, apenas, o esvaziamento da cidadania cultural. Duque de Caxias, centrada nela mesma, escancara a ausência e a instabilidade em políticas, tal como sentido na cultura.  Mostra, de uma forma alarmante, devido ao seu contexto, furos em discursos e políticas para a cultura, pelos três poderes da federação e evidencia a necessidade de um “do-in” na forma de pensar a fazer a política cultural nos municípios, nas lacunas que persistem de forma desastrosa para cidades de tanta potência. Tem suas produções culturais vivas, mas o enobrecimento da “cultura de resistência” nao pode virar um motivo para a não-institucionalização da cultura nem jogar o conceito de diversidade cultural como uma maquiagem para a aceitação da ineficiência do estado, pois certamente não foi este o propósito nas tantas conferências que o Brasil, inclusive, teve papel protagonista. Uma cidadania cultural exige a institucionalização de instâncias regionais de formulação, implementação e compartilhamento das políticas e da gestão cultural, bem como a institucionalização de equipamentos culturais (museus, teatros, cinemas  etc.), além da participação das instituições científicas. (ARAÚJO, 2014, p.138) As “monarquias culturais” criadas por ausências de territorializações da cultura são entraves para a consolidação de uma economia da cultura plural, para a valorização do fazer cultural e sua diversidade, para a circulação da cultura e para um desenvolvimento que não seja anacrônico e se integre ao envolvimento social e cultural, assumindo estas questões como centrais. Duque de Caxias não precisa ser vizinha do rei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Henrique Barros Neves de; BORGES, Sérgio Silva. A Territorialização da Cultura e a “Nova” Política Cultural do Estado da Bahia. Disponível em < http://web.ua.es/es/revista-geographosgiecryal/volumen-5-2014/revista-geographos-grupo-interdisciplinario-de-estudios-criticos-y-deamerica-latina-giecryal.html>. Acesso em: 07/02/2016. CANCLINI, Nestor Garcia. Definiciones en transición. In: MATO, Daniel (org.) Estudios latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales em tiempos de globalización. Buenos Aires: Clacso, 2001, p.69-81.

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ENNE, Ana Lucia. “A favela tá atuando e dispensando dublês”: a construção, consolidação e expansão de múltiplas redes culturais e comunicacionais a partir de favelas e periferias do Rio de Janeiro. In: FERNANDES, Cíntia Sanmartin; MAIA, João; HERSCHMANN, Micael (Orgs.). Comunicação e Territorialidades: Rio de Janeiro em Cena. Guararema: Anadarco (Coleção Comunicações e Culturas), 2012, p.25-47. LEITÃO, C. S. Cultura e Municipalização. In: Coleção Cultura é o quê?. Salvador, BA: Secretaria de Cultura - Fundação Pedro Calmon, 2009. v. III. 71 p. LICHOTE, Leonardo; GOULD, Luiza. Na Baixada, momento fértil da cultura urbana culmina com encontro do ministro Juca Ferreira e artistas locais. Disponível em: . Acesso em 09/02/2016 MARQUES, Alexandre. [Políticas de Cultura em Duque de Caxias] Os Secretários Municipais. Disponível em: . Acesso em 10/02/2016. ______. [Políticas de Cultura em Duque de Caxias – 2] Os Aparelhos Municipais. Disponível em: . Acesso em 10/02/2016. MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. A cidade e o lazer: as desigualdades sócio-espaciais na distribuição dos equipamentos culturais na cidade do Rio de Janeiro e a construção de um indicador que oriente as ações em políticas públicas. Movimento (ESEF/UFRGS), Porto Alegre, v. 11, n. 3, p. 127-151, dez. 2007. ISSN 1982-8918. Disponível em: . Acesso em: 07/02/2016. OLIVEIRA, André de. EBC realiza encontro com a Cultura da Baixada Fluminense. Disponível em: . Acesso em: 09/02/2016. Portal Cátedra Medellín Barcelona. Parques Biblioteca - Ficha de Presentación. Disponível em: . Acesso em 10/02/2016. Portal RJ Notícias. Prefeito se São João de Meriti extinguiu onze secretarias e demitiu três mil funcionários. Disponível em: . Acesso em 09/02/2016 RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre (orgs.). Políticas Culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007, 179p. SANTOS, M. O Espaço do Cidadão. São Paulo: EDUSP, 2007. 169 p. SOUZA, Marlúcia Santos. Escavando o passado da cidade: história política da cidade de Duque de Caxias. APPH-CLIO: Duque de Caxias, RJ, 2014, 209 p.

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UMA PROPOSTA DE REFLEXÃO PARA UM ESTUDO COMPARATIVO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA OS MUSEUS NOS PAÍSES DO MERCOSUL Ana Ramos Rodrigues1

RESUMO: O texto tem como propósito abordar algumas questões sobre a legislação dos museus nos países embrionários do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). Este artigo pretende contribuir com algumas reflexões para a construção de um estudo comparativo sobre as políticas públicas para reunir informações sobre os museus do Mercosul, no sentido de fortalecer o papel dos museus como instituições centrais para a promoção de políticas para a cultura e a memória. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Museus, Legislação para Museus, Mercosul

1. INTRODUÇÃO Ainda que muito países do Mercosul tenham suas políticas nacionais museológicas bem definidas, este artigo abordará as políticas públicas para o setor dos países ‘embrionários’ do Mercosul, ou seja, Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai. Buscando consolidar a integração política, econômica e social, fortalecer os vínculos entre os cidadãos e contribuir para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes, estes países ‘embrionários’ assinaram, em 26 de março de 1991, o Tratado de Assunção com o objetivo de criar o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Três anos mais tarde, firmou-se o Protocolo de Ouro Preto, configurando-se o marco institucional atual do Mercosul2. Tendo como meta a integração dos países signatários nos mais diferentes níveis, o tema das políticas públicas para a cultura ingressou de forma mais significativa na agenda de discussões no final dos anos 1990. Entendendo a cultura como elemento fundamental para a integração regional, as nações do bloco criaram, em 1998, o Mercosul Cultural. Com o objetivo de Doutoranda em Políticas Públicas (UFRGS). Professora substituta do Curso de Museologia do Departamento de Ciências da Informação da UFRGS. E-mail: [email protected] 2 Para consultar os documentos de criação do Mercosul na íntegra ver: e 1

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estimular o debate e fortalecer a área, os pontos destacados nesse encontro visaram estimular o intercâmbio de políticas culturais, o desenvolvimento de estudos, a integração de sistemas de informação e estatística, a promoção de intercâmbios técnicos e artísticos, a gestão do patrimônio cultural e a valorização da memória social e da diversidade cultural.3 O Mercosul Cultural é constituído pela Reunião dos Ministros da Cultura de cada país (RMC), entidade máxima do setor, e conta com uma Secretaria, um Comitê Coordenador Regional (CCR), onde se reúnem representantes dos Ministérios de Cultura para articular a agenda do setor e três Comissões especializadas, entre elas, a de Patrimônio Cultural (CPC); a de Diversidade Cultural (CDC); e a de Economia Criativa e Indústrias Culturais (CECIC).4 Embora definidas as diretrizes culturais gerais do Mercosul, somente anos mais tarde se discutiu um plano político para o setor museológico. Em 19 de setembro de 2005, em Buenos Aires, Argentina, ocorreu a Jornada Los Museos y la Política del Mercosur, onde se ressaltou a dimensão dada à política de museus dos países do bloco5. Com o objetivo de aprovar uma agenda de trabalho para articular um plano estratégico para a integração dos museus da região, a “Declaração de Buenos Aires para os Museus do Mercosul” apresentou os aspectos essenciais a serem trabalhados: os museus do século XXI; Governabilidade e Gestão; Interpretação e Proteção dos Bens Culturais: Prevenção contra o tráfego ilícito de Bens Culturais; Circulação de Bens Culturais; Comunicação e Acessibilidade ao Patrimônio; e Política(s) Nacional(ais) de Museus. Em 23 de novembro de 2012, ocorreu em Brasília a XXXV Reunião de Ministros de Cultura do Mercosul. Neste encontro foi apresentada a proposta da criação do Programa MercoMuseus, o qual propôs a reunião das instituições e profissionais de museus dos países do Mercosul em um esforço continuado para o aperfeiçoamento de suas ações e o desenvolvimento de políticas públicas para a cultura, com vistas a estimular a integração sul-americana pela aproximação entre culturas.6 No sentido de expor outras ações culturais realizadas no âmbito do Mercosul, em 26 de novembro de 2014 foi realizado um encontro com os ministros de Cultura dos países integrantes do Mercosul, também em Buenos Aires. Após discutirem os principais pontos para avançar a integração entre os países da região, foi definido a implementação do “Selo Mercosul Cultural”, uma certificação para facilitar a circulação de bens culturais entre os países membros do Mercosul.

Fonte: Acesso em 02/02/2015. 4 Fonte Acesso em 10/09/2015 5 Além dos países membros, este encontro contou com a presença do Chile, país associado ao Mercosul. 6 Fonte: Acesso em: 20/09/2015 3

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Em tal reunião decidiu-se a aprovação das regras para a criação do Fundo do Mercosul Cultural, visando financiar iniciativas culturais de pessoas físicas ou jurídicas dos países do bloco. Também foi acordado que cada país do bloco deverá ainda aprovar a criação do fundo em seus respectivos parlamentos, com o objetivo de estimular projetos conjuntos de dois ou mais países em diversos segmentos culturais.7 Dando prosseguimento ao estreitamento das políticas públicas culturais no Mercosul, em maio de 2015 ocorreu a XI Reunião da Comissão de Patrimônio Cultural do Mercosul8, em Jaguarão, Rio Grande do Sul, Brasil, onde concluíram-se os procedimentos de reconhecimento do primeiro bem cultural como Patrimônio Cultural do Mercosul: a Ponte Internacional Barão de Mauá, localizada na fronteira do Brasil com o Uruguai. Embora ainda seja um fato recente, estas aproximações das políticas preenche uma lacuna na história dos países sul-americanos. Segundo Celina Souza (2006), a maioria dos países de democracia recente, em especial os da América Latina, ainda não formaram coalizões políticas capazes de equacionar minimamente a questão de como desenhar políticas públicas capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico e de promover a inclusão social de grande parte de sua população. Mas, as reuniões realizadas desde 1998 através do Mercosul Cultural, revelam um esforço de entender a cultura como uma variável que pode favorecer o diálogo e a integração. Nesse contexto, em cada temática da política pública voltada para integração regional, cabe a cada país na presidência pro tempore empreender e responder pelos esforços em áreas de sua competência institucional. 2. O ESTÁGIO ATUAL DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO MERCOSUL NO CAMPO DOS MUSEUS De todos os países da América do Sul que participam do Mercosul, seja como Estado Parte, seja como Estado Associado9, somente seis dispõem de uma Política Nacional de Museus explícita (Brasil, Colômbia, Cuba, Equador, República Dominicana e Uruguai)10 e 7 Participaram deste encontro representante da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Chile, Peru, Equador e Colômbia. Fonte: Acesso em 02/09/2015 8 A Reunião da CPC do Mercosul ocorre em presidências temporárias, que se revezam a cada seis meses entre os países membros plenos do bloco, cada o país fica responsável por empreender ações que favoreçam o esforço de convergência e de integração regional. 9 Estados Partes são: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai (desde 26 de março de 1991) e Venezuela (desde 12 de agosto de 2012). Estado Parte em Processo de Adesão são: Bolívia (desde 7 de dezembro de 2012). Estados Associados: Chile (desde 1996), Peru (desde 2003), Colômbia, Equador (desde 2004), Guiana e Suriname (ambos desde 2013). 10 Os Planos Nacionais de Museus dos países são documentos de elaboração recente, sendo o mais antigo o do Brasil (2003), seguido pela Colômbia e por Cuba (2009), Equador e Uruguai (2012). Já a República Dominicana criou seu plano estratégico para ser posto em prática entre os anos de 2012 e 2016.

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para os demais, as políticas públicas para museus estão inseridas dentro de um plano político cultural geral. Neste sentido será apresentado um panorama sobre a legislação dos museus nestes países e em quais órgãos institucionais estes se encontram subordinados11. Embora a Argentina não possua uma legislação específica, existe uma lei de patrimônio que regulamenta o âmbito dos museus denominado de Dirección Nacional de Patrimonio y Museos12, vinculada à Secretaria de Cultura da Nação, criada no ano de 2002. Trata-se de uma Secretaria de Estado com status de ministério, subordinada diretamente à Secretaria Geral da Presidência. Mesmo que seja uma política que regulamenta o campo museal, o grande entrave para a implementação de uma Política Nacional de Museus reside no fato de que a Argentina não possui a definição legal do termo museu. No Brasil, em 2003, com a entrada de Gilberto Gil13 no Ministério da Cultura (Minc), foi criada a Política Nacional de Museus (PNM)14. Compreendendo a renovação e a importância dos museus na vida cultural e social brasileira, a etapa seguinte foi a criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), por meio do Decreto nº 5.264, de 5 de novembro de 200415. Dando continuidade à implementação da política no setor, em 2009, foi criado o Instituto Brasileiro

Maiores dados podem ser consultados no site do SICSUR (Sistema de informação cultural do Mercosul), através da publicação “Os Estados da Cultura – Estudo sobre a instituicionalização cultural públicas dos países membros do SICSUR” (2012). Disponível em Acesso em 15/09/2015. 12 Tem a responsabilidade de entender, conduzir e planejar estratégias para a investigação, promoção, resgate, preservação, estímulo, melhoramento, acrescentamento e difusão, no âmbito nacional e internacional, do patrimônio cultural da nação, tangível e intangível, imaterial e oral, em todos os campos em que se desenvolve. 13 Gilberto Gil — Músico brasileiro e ministro (1942). Conhecido pela sua atuação como cantor-compositor no desempenho da qual figurou nos principais movimentos culturais brasileiros como o Tropicalismo e Doces Bárbaros, Gilberto Gil entrou para a história do país, também, na qualidade de Ministro da Cultura do Governo Lula, protagonizando uma nova proposta política para a cultura, entendida agora como um elemento central para a inclusão social e o desenvolvimento humano. (CARVALHO, 2014). 14 Tem como objetivo geral promover a valorização e a fruição do patrimônio cultural brasileiro, considerado como um dos dispositivos de inclusão social e cidadania, por meio do desenvolvimento e da revitalização das instituições museológicas existentes e pelo fomento a criação de novos processos de produção e institucionalização de memórias constitutivas da diversidade social, étnica e cultural do País. 15 Constituindo um marco na atuação das políticas públicas voltadas para o setor museológico. Tinha como proposta o aperfeiçoamento de instrumentos legais para o melhor desempenho e desenvolvimento das instituições museológicas no Brasil Disponível em < http://www.museus.gov.br/sistemas/ >. Acesso em 22 mar. 2015. 11

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de Museus (IBRAM)16 (Lei nº 11.906, de 20 de janeiro). Diferentemente da Argentina, o Brasil apresenta uma definição legal de museu17. O Paraguai possui a Direção Geral de Arquivos, Bibliotecas e Museus e um Sistema de Museus Nacionais, vinculado à Secretaria Nacional de Cultura da República (SNC), criada em abril de 2007. A Direção Geral de Arquivos, Bibliotecas e Museus é o órgão estatal encarregado de administrar os assuntos culturais do país e, tal qual a Argentina, o país não possui a definição legal do termo museu. No Uruguai a legislação criada para os museus foi assinada durante o governo de José Mujica, com a Lei nº 19.037 de 28 de dezembro de 2012, denominada de Lei de Museus do Sistema Nacional de Museus18, e o respectivo Decreto de Regulamentação nº 295/014, de 14 outubro de 2014. O Sistema Nacional de Museus está vinculado ao Departamento Nacional de Cultura, criado em 2007, que, por sua vez, está subordinado ao Ministério de Educação e Cultura (MEC). Assim como o Brasil, o Uruguai possui uma definição legal do termo museu19, aplicada tanto para os museus do Estado como para os museus privados (Lei Nº 19.037/2012)20. 3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DO MERCOSUL NA ÁREA CULTURAL O museu é um instrumento com potencial para fortalecer a percepção crítica e reflexiva da realidade social de cada país, e constituí-se como uma ferramenta política e social utilizada para inclusão de identidade e cidadania para garantir o direito à memória dos grupos e movimentos sociais. A partir da importância apresentada sobre os museus, este texto pretende apresentar algumas reflexões a partir de duas questões chaves para traçar um estudo comparativo entre os países do Mercosul em relação as políticas culturais no campo dos museus.: primeiro, como Este órgão foi um marco de uma política pública no setor. As ações propostas pelo IBRAM buscaram (e buscam) qualificar e modernizar os espaços museológicos existentes, garantindo o processo de preservação da memória nacional sob a guarda destas instituições. 17 Art. 1º Consideram-se museus, para os efeitos desta lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. Parágrafo único. Enquadrar-se-ão nesta lei as instituições e os processos museológicos voltados para o trabalho com o patrimônio cultural e o território visando ao desenvolvimento cultural e socioeconômico e à participação das comunidades (Lei Nº 11.904/2009). 18 O sistema Nacional de Museus foi criado com o objetivo de conformar um sistema nacional que fortaleça a institucionalidade, promova a cooperação e a otimização de recursos humanos e econômicos dos museus no Uruguai. Acesso disponível em < http://www.museos.gub.uy/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=287&Itemid=60> Acesso em 11/09/2015. 19 Artigo 2. São museus a efeitos da presente lei, aquelas instituições sem fins lucrativos, criadas a partir de um conjunto de bens culturais ou naturais considerados de interesse patrimonial, documentados, estudados e expostos, com a finalidade de promover a produção e a divulgação de conhecimentos, com fins educativos e de deleite da população. 20 Fonte:Acesso em 10/09/2015. 16

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estes países estão organizando a gestão de seus museus, como planejam o orçamento para a área e como executam as ações sociais? e, por fim, e não menos importante, como estão sendo empregadas e planejadas as políticas nacionais de Museus como estratégia de integração entre os países do Mercosul? Os museus são instituições que atualmente crescem cada vez mais como um espaço de afirmação de segmentos sociais, podendo se perceber isto através das diferentes tipologias de museus existentes, tais como comunitários, populares, étnicos, temáticos, além dos museus tradicionais. Este aumento demonstra uma nova perspectiva dos museus em reivindicar uma afirmação da diversidade cultural e fortalecer a identidade cultural com a ideia de pertencimento a uma determinada coletividade. Neste sentido, o campo das Políticas Públicas tem como desafio construir indicadores que consistam em avaliar sua abrangência e desenvolvimento. No caso da gestão cultural existe pouca tradição na construção de números que demonstrem sua importância para o desenvolvimento humano. No entanto, este panorama vem sofrendo alterações. Embora de uma forma ainda tímida, a partir do momento em que dados consistentes estão sendo apresentados pode-se realizar parâmetros e auxiliar onde os recursos públicos podem ser investidos. Como, por exemplo, em 2011, quando o IBRAM publicou Museus em Números, material produzido através da coleta de informações geradas pelos museus a partir do questionário “Cadastro Nacional de Museus”. Esta publicação possibilitou ao campo museológico do Brasil conhecer as fortalezas e as fragilidades desta área, contribuindo, assim, para o aperfeiçoamento da gestão das políticas públicas culturais. Nesta perspectiva, e discorrendo sobre os poucos indicadores existentes sobre os museus do Mercosul, este texto se justifica no sentido de apresentar algumas questões para a produção de novos dados sobre as políticas públicas e para reunir informações sobre os museus do Mercosul. Dessa forma, pretende-se avaliar o desenvolvimento simbólico, social, cultural e econômico que os museus produzem na sociedade, e assim visualizar a construção de uma articulação política do setor cultural dos países do Mercosul para fortalecer o papel dos museus como instituições centrais para a promoção de políticas para a cultura e a memória. Visto que este texto tende a analisar de forma comparativa as políticas públicas de cultura e a criação de mecanismos de cooperação e desenvolvimento de ações conjuntas no campo dos museus existentes nos países do Mercosul, e entendendo que o museu se apresenta como uma instituição a serviço da sociedade, vinculados na sua maioria a órgãos públicos, faz-se necessário conhecer o funcionamento da parte administrativo- burocrática destes museus nos países do Mercosul.

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Assim sendo, é importante trabalhar na perspectiva do pensamento teórico da Museologia latino-americana, através dos estudos de autores e teóricos do Subcomitê Regional do Comitê Internacional do ICOFOM21 para a América Latina e o Caribe (ICOFOM LAM). Dessa forma a gestão cultural está presente nesta discussão, abordando as transformações contemporâneas associadas às novas dimensões atribuídas ao campo da cultura e trazendo a gestão em museus como um dos processos estratégicos e de planejamento gerais das atividades do museu. A gestão dos museus está sendo apresentada nos termos propostos pelo Código de Ética do ICOM para Museus22, que apresenta uma norma mínima para museus, lembrando a necessidade de cada instituição museológica estipular claramente o seu estatuto jurídico, sua missão, sua permanência, seu caráter não lucrativo, e recomendando a elaboração de um texto legal que defina sua missão, seus objetivos e suas políticas, assim como seu próprio papel e composição. A política cultural abordada aqui apresenta como base Antônio Albino Canelas Rubim (para o caso brasileiro), que em 2010 analisou a gestão cultural do governo Lula, pois, segundo o autor, houve um enfrentamento às três tristes tradições no tratamento da cultura no Brasil: ausências, autoritarismos e instabilidades. As ausências aparecem pela inexistência de políticas públicas articuladas pelo Estado e depois pela substituição do poder de deliberação do Estado pelo mercado através das leis de incentivo. O autoritarismo, por sua vez, se expressou ao longo dos anos pela falta de interlocução dos governos com a sociedade. Finalmente, a instabilidade se expressa pela falta de políticas continuadas e consistentes, com mecanismos claros de coordenação que pudessem manter a consistência diante das transições de governo. (RUBIM, 2010 p.11-18). Estes três pontos refletem a forma como a cultura foi conduzida através de seu contexto político. As ausências de políticas públicas marcam o modelo neoliberal iniciado no governo Collor e estendido até o final do governo Fernando Henrique. O autoritarismo reflete a falta de diálogo do governo com a sociedade, o que na gestão do Ministro da Cultura Gilberto Gil e Juca A teoria da Museologia no campo internacional está ligada a criação do Comitê Internacional de Museologia (ICOFOM) em 1977, que encontra-se dentro do Conselho Internacional de Museus (ICOM) fundado em 1946. Para saber mais ver CARVALHO, Luciana Menezes de. Em direção à Museologia latino-americana: o papel do ICOFOM LAM no fortalecimento da Museologia como campo disciplinar. 2008. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST, Rio de Janeiro, 2008. 107 p. Disponível em . Acesso em 10/09/2015. 22 O Código de Ética do ICOM foi aprovado por unanimidade pela 15ª Assembleia Geral do ICOM realizada em Buenos Aires, Argentina, em 4 de Novembro de 1986, modificado na 20ª Assembleia Geral em Barcelona, Espanha, em 6 de julho de 2001, sob o título Código de Ética do ICOM para os Museus e revisto pela 21ª Assembleia Geral realizada em Seul, Coreia do Sul, em 8 de outubro de 2004. O documento principal do ICOM é o Código de Ética para Museus. Estabelece normas mínimas para a prática profissional e atuação dos museus e seu pessoal. Ao aderir à organização, os membros do ICOM adotam as provisões deste Código. 21

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Ferreira, tornaram-se diferente, pois, priorizou-se o diálogo na formulação de políticas públicas, de forma que proliferaram seminários, câmaras setoriais, consultas públicas, conferências municipais, estaduais e nacionais. Já a instabilidade marca a falta de continuidade de políticas públicas. No governo Lula criou-se o Sistema Nacional de Cultura, o Plano Nacional de Cultura e a construção de um Sistema Nacional de Indicadores e Informações Culturais (SNIIC), bem como os investimentos na área de Economia da Cultura em ação conjunta com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), representando um avanço importante para a gestão da cultura, numa perspectiva democrática e popular. Conforme Souza (2006, p. 24) o conceito de políticas públicas é polissêmico, no qual as políticas públicas são formas adotadas pelo Estado de como deve ser empregado o dinheiro público; estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real. Para a autora, as “[...] decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz” (2006). Da mesma forma a autora Anita Simis (2007, p.133), que aborda a política pública como uma escolha de diretrizes gerais, que tem uma ação e que estão direcionadas para o futuro, cuja responsabilidade é predominantemente de órgãos governamentais, os quais agem almejando o alcance do interesse público pelos melhores meios possíveis, que no caso de uma política cultural é a difusão e o acesso à cultura pelo cidadão. Néstor Garcia Canclini, um dos principais representantes dos estudos culturais latino-americanos, apresenta discussões, questões teóricas e metodológicas relacionadas a movimentos sociais e políticas nacionais e transnacionais para a cultura. Canclini conceitua política cultural como: um conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, as instituições e os grupos comunitários organizados a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social” (CANCLINI,1987, p.26). Para Canclini a política cultural não está somente vinculada ao governo, mas também a outras instituições. Este projeto trabalha com a perspectiva que as Políticas Públicas são vistas como posturas do poder frente às demandas sociais e o conceito política pública para a cultura, como objetivo de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e contribuir para algum tipo de ordem ou transformação social. Neste sentido o autor Cris Shore (2010), em “La antropolgía y el estúdio de la Política Pública: Reflexiones sobre las “formulación” de las políticas”, aborda como a antropologia pode prover uma perspectiva crítica para compreender a maneira em que as políticas funcionam: como símbolos, estatutos de legitimidade, tecnologias políticas, formas de governabilidade e

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instrumentos de poder que muitas vezes ocultam os seus mecanismos de funcionamento. Este autor apresenta várias questões importantes no sentido de avaliar as políticas públicas e seus impactos: como devemos estudar o trabalho da formulação das políticas públicas? E qual é exatamente o objeto de investigação quando decidimos a estudar quem elaborou estas políticas e o funcionamento desta elaboração? Estas questões levantadas por este autor são relevantes para o desenvolvimento deste artigo e para problematizar as instituições que formulam estas políticas. O autor Hugo Achugar (1994) em seus texto “A política cultural no acordo Mercosul”, apresenta problematizações a cerca  da formulação de uma política cultural no âmbito do Mercosul. Conforme Achugar (1994) “Nem bem se começa a falar de integração, e em especial de políticas culturais, vários personagens aparecem. Nação, Identidade, Tradição, Modernização e Mercado surgem quase que imediatamente, porém também surgem outros, talvez mais abstratos: a Homogeneidade e a Heterogeneidade”. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este texto termina trazendo questões para refletirmos sobre a importância de compreendermos como estes países estão trabalhando suas políticas culturais no campo dos museus. Primeiramente, é importante que seja realizado um mapeamento sobre a legislação referente aos museus, às ações, às publicações produzidas pelas instituições, enquanto diretrizes na construção de políticas públicas na área dos museus. Para isto, duas perguntas são norteadoras: Qual a legislação de cada país do Mercosul sobre o setor museológico? Quais instituições públicas são responsáveis pela política e gestão dos museus nos governos nacionais dos países do Mercosul? Em seguida, é relevante a identificação das instituições e o mecanismo utilizado pelos governos dos países do Mercosul para a implantação de políticas voltadas para o sistema nacional de museus. Quais são as estratégias políticas de participação para a aplicação das políticas culturais nestes países? Quais são os acordos e convênios existentes entre os países do Mercosul em relação a cultura e museus? Através, desta proposta de reflexões e questionamentos será possível entendermos o processo dessas políticas culturais nesta área e como estes programas influenciam na própria característica da cultura destes países do Mercosul. Um estudo comparativo referente aos interesses comuns que se expressam em práticas, serviços e bens artísticos e culturais determinantes para o exercício da cidadania, possibilitará promover o conhecimento e a compreensão da diversidade museal do Mercosul.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHUGAR, Hugo. A política cultural no acordo Mercosul. Estudos Avançados. São Paulo, v. 08, n.20, 1994. p. 215-2009 BRASIL. Lei nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009. Institui o Estatuto de Museu. Brasília, DF, 14 de janeiro de 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. CARVALHO, Cristina Amélia Pereira de. Políticas públicas da cultura e administração participativa / Cristina Amélia Pereira de. - Porto Alegre: Ministério da Cultura/UFRGS/ EA, 2014. 54 p. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS (IBRAM). Disponível em < http://www.museus.gov.br/ > Acesso em: 22 mar. 2015 Instituto Brasileiro de Museus. Museus em Números - Instituto Brasileiro de Museus Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. Vol. 1 e 2 Museus e a dimensão econômica: da cadeia produtiva à gestão sustentável. Instituto Brasileiro de Museus – Brasília, DF: Ibram, 2014 - (Coleção Museu, Economia e Sustentabilidade, 2) 142 p NASCIMENTO JÚNIOR, José do; CHAGAS, Mário de Souza. Política Nacional de Museus. Brasília: MinC, 2007. 184 p. NASCIMENTO JÚNIOR, José do; CHAGAS, Mário de Souza. IBERMUSEUS 1. Panoramas Museológicos da Ibero-américa. Brasília DF. IPHAN/DEMU. 2008. 288 p. NASCIMENTO JÚNIOR, José do; CHAGAS, Mário de Souza. IBERMUSEUS 2. Reflexões e Comunicações Brasília DF. IPHAN/DEMU. 2008. 288 p. Nestor G. Canclini - CANCLINI, Néstor Garcia. Políticas Culturales en América Latina. México, Grijalbo, 1987. 188 p. PLANALTO. Plano Nacional de Cultura. Lei Federal nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Disponível em: Acesso em: 05 nov. 2014. RUBIM, Antonio Albino Canelas. (Org.) Políticas culturais no governo Lula. Salvador: Edufba, 2010. 308 p. SHORE, Cris. La antropologia y el estudio de la política pública: reflexiones sobre la formulación de las política. Antipoda - Revista de Antropologia y Arqueologia, Bogotá, n. 10, jan. 2010, p. 21-49, SILVA, Frederico Barbosa da. Encontros com o futuro: prospecções do campo museal brasileiro no início do século XXI – Brasília, DF: Ibram, 2014 - (Coleção Museu, economia e sustentabilidade, 1) 142p SIMIS, Anita. A política cultural como política pública. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre (Org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007, p. 133-155. SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, v. 8, n. 16, 2006. p. 20-45.

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IMATERIAL: APROXIMAÇÕES LÉXICO-CONCEITUAIS ENTRE CAPITALISMO E PATRIMÔNIO Andréa Doyle1 RESUMO: O artigo aproxima as noções de capitalismo contemporâneo e de patrimônio cultural a partir de um ponto comum: sua característica imaterial. Mostra-se a visão de importantes pensadores do capitalismo atual que percebem uma virada nas formas de produção a partir da entrada das TICs na economia. Discute-se o conceito de patrimônio imaterial através da análise das orientações da Unesco adotadas pelo Iphan, usando como exemplo o recente registro do Ofício das Cuias do Baixo Amazonas. Percebe-se que tanto capitalismo quanto o patrimônio imaterial têm como características comuns o fato de serem coletivos, utilizarem recursos ilimitados e serem passíveis de serem materializados. Conclui-se, usando o caso do Japão, que quando o capitalismo começa a usar os saberes vivos na produção, começa-se a valorizar o patrimônio imaterial. PALAVRAS-CHAVE: imaterial, capitalismo, patrimônio, Ofício das Cuias, cultura popular

A virada do milênio, como já seria esperado, trouxe questionamentos sobre o nosso modo de vida. Quando dizemos nosso, pensamos urbano, metropolitano, consumista, conectado, globalizado. Mesmo que o temido bug do ano 2000 não tenha destruído todos os sistemas de informação (parece piada, mas foi uma preocupação real2), o intento de fechar um ciclo, fazer o balanço e começar outro, ainda que pela simples sequência do calendário, existe e é válido. Nossa investigação se situa nesse contexto: entre os anos 90 do século passado e a primeira década do novo milênio. Muitos pensadores investigaram as mudanças no mundo, no sistema capitalista, na organização do trabalho e, o que nos interessa particularmente, nos usos e nos fluxos da informação. Aqui, o foco vai para alguns economistas e filósofos que se dedicaram ao estudo do impacto da informação e da comunicação no sistema capitalista, como Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Christian Marazzi e André Gorz. Andréa Doyle é Engenheira-Mestre em Informação e Comunicação pela Universidade de Metz (França) e mestranda em Ciência da Informação no PPGCI do IBICT/UFRJ. Contatos: (21) 98037-0909 | email: andrea@hibrida. art.br . Por favor, citar: DOYLE, Andréa. 2 Leia em: http://www.tecmundo.com.br/historia/8795-2038-o-bug-do-milenio-atacara-novamente.htm Acesso em: 25 de julho de 2015 1

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Cada um tem seu ângulo de análise para perceber as transformações e definir o momento atual: para Marazzi, que olha principalmente para os processos fabris, o capitalismo hoje é pós-fordista (MARAZZI, 2009), para Lazzarato & Negri, que partem do operário e da exploração pelo capital da sua subjetividade, o capitalismo é pós-industrial (LAZZARATO & NEGRI, 2001) e para André Gorz, que vê a captura de todo o ser, de tudo o que ele tem de intangível, o capitalismo é imaterial (GORZ, 2005). Qualquer que seja o ponto de vista, todos concordam que há uma mudança, que se vem desenvolvendo desde os anos 70 do século passado, e que se consolida na virada do milênio. O elemento central dessa transformação é a informação: sua entrada nos processos de produção, através das tecnologias da informação e da comunicação (TICs) e a consequente mudança na natureza do trabalho e no perfil do trabalhador. Por volta da mesma época, ou seja, com origens no pós-guerra e consolidação nos anos 2000, houve igualmente uma mudança na percepção internacional do conceito de patrimônio cultural. Ao passo que anteriormente se cuidava apenas de preservar prédios e monumentos, a saber, o que se considera patrimônio material, hoje há um olhar para os saberes, ritos e processos populares e tradicionais, ou seja, para o patrimônio cultural imaterial. No dia em que começamos a pensar neste artigo, a notícia principal no site do Ministério da Cultura (MinC) era a do registro, na qualidade de patrimônio cultural imaterial brasileiro, do Ofício das Cuias do baixo amazonas. Trata-se de um saber tradicional, principalmente de mulheres das comunidades ribeirinhas, que aprendem e transmitem o processo de produção artesanal das cuias de geração em geração. Esta prática foi considerada culturalmente importante pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e assim, digna de proteção, logo de registro. O processo de registro do Ofício das Cuias, que levou quase 10 anos para ser concluído3, consiste em uma descrição exaustivamente detalhada da produção: com textos altamente detalhados, fotografias, áudios e vídeos. A maneira que se encontrou para proteger um patrimônio imaterial foi transformá-lo em documento, foi materializá-lo sob a forma de informação passível de ser indexada e recuperada, divulgada e estudada, foi fazê-lo virar objeto de estudo de várias ciências, em particular da Ciência da Informação (CI). Além do registro, diz Raimunda Santana Azevedo, integrante da Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém (COELHO, 2015), o processo do Iphan também representa a valorização dessa comunidade: por um lado o reconhecimento de que elas fazem um trabalho importante para todos, e por outro a expecta-tiva de um aumento nas vendas das cuias. Intangível e material lado a lado, assim como nas considerações sobre o capitalismo. Segundo notícia no site do Minc, disponível em: http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/ OiKX3xlR9iTn/content/id/1270277 Acesso em: 12 de junho de 2015. 3

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O que se pretende aqui é perceber se, para além da cronologia, o termo imaterial indica mais similaridades entre os dois conceitos/fenômenos e se eles se afetam de alguma forma. 1. INFORMAÇÃO, SUBJETIVIDADE E CONTROLE DO ACESSO Para Christian Marazzi, a entrada das tecnologias de informação e de comunicação (TIC) na produção fabril representa uma “virada linguística” (MARAZZI, 2009). O autor explica que a linha de produção perfeita, no fordismo, era silenciosa. Qualquer comunicação significava erro e interrupção do trabalho. No sistema pós-fordista, a comunicação não só faz parte, como é imprescindível ao processo de produção. Marazzi entende que com as mudanças na otimização da produção (produção enxuta, estoque mínimo), na relação com o consumidor (customização de produtos, ao contrário da padronização da época fordista) e nas vendas (idealmente, no pós-fordismo, se vende antes de produzir), a informação e a capacidade de recebê-la, processá-la, usá-la e transmiti-la, tanto das pessoas quando das máquinas, perpassa todas as etapas de fabricação de qualquer indústria, serviço e até das atividades do setor primário, hoje altamente informatizados. As capacidades de comunicação, de auto-gestão, de decisão, para André Gorz (2005), são algumas das faces de um saber vivo - ao contrário do saber morto4, aquele cristalizado sob a forma de máquinas e processos fechados - que a pessoa desenvolve ao longo da vida, da educação, das experiências, do tempo livre. Esse saber vivo é adquirido no cotidiano e não pode ser ensinado nem treinado no âmbito do trabalho. Porém, o trabalho não só se utiliza desses saberes dentro de sua produção, como depende deles para se desenvolver apropriadamente. Lazzarato & Negri (2001) também partem das redes informáticas para explicar a integração do trabalho imaterial com o trabalho industrial e terciário. Mas seu foco é o operário5 e como a nova organização da empresa captura sua subjetividade. “Como prescreve o novo management hoje, é a alma do operário que deve descer na oficina. É a sua personalidade, a sua subjetividade que deve ser organizada e comandada.” (LAZZARATO & NEGRI, 2001, p. 25). Mas eles também entendem que não se trata apenas de um indivíduo, de uma subjetividade. Como as pessoas vivem em sociedade e dependem das relações sociais para se desenvolverem, os autores concluem que “o trabalho imaterial se constitui em formas imediatamente coletivas e não existe, por assim dizer, senão sob a forma de rede e fluxo.” (Lazzarato & Negri, 2001, p. 50). A relação entre produção e consumo, entre criador e público, também pode nos ser útil para entender as novas relações de trabalho. Os conceitos de saber vivo x saber morto são uma releitura dos conceitos marxianos de trabalho vivo e trabalho morto, segundo Albagli (2013, p.108). Lazzarato & Negri falam muito de trabalho vivo e trabalho morto, mas não usam os termos saber vivo e saber morto. 5 Antonio Negri foi um dos fundadores do movimento operaísta italiano dos anos 70, formado por pensadores neomarxistas que começaram a discutir o operário social e o trabalho imaterial (Cocco, 2001). 4

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É o trabalho imaterial que inova continuamente as formas e as condições da comunicação (e portanto, do trabalho e do consumo). Dá forma e materializa as necessidades, o imaginário e os gostos do consumidor. E esses produtos devem, por sua vez, serem potentes produtores de necessidades, do imaginário, dos gostos. (LAZZARATO & NEGRI, 2001, p. 44). Se o trabalho imaterial produz ao mesmo tempo subjetividade e valor econômico, por outro lado, tal trabalho de criação de subjetividades, ainda que para sua transformação em mercadoria, tem duas características interessantes. A primeira é que a relação de criação entre autor e público não se esgota pela venda, ela se mantém viva. A segunda é que o produto imaterial “ideológico” não se esgota com o uso, mas, ao contrário, se multiplica. (LAZZARATO & NEGRI, 2001). Assim, a questão que se apresenta é como definir o valor do produto final desse trabalho, que fez uso de saberes que não podem ser mensurados em quantidade, nem em valor de aquisição ou em tempo? Isso é o que Gorz (2005, p. 29) chama de “crise do conceito de valor”. Quando se inclui na produção saberes diversos, heterogêneos, sem medida comum, que não fazem parte do sistema de mercado, a atribuição de valor é obrigatoriamente arbitrária. Falando sobre elementos fundamentais que não fazem parte do sistema de mercado, ou que não tem “valor” no sentido econômico, Gorz diz: É o caso, por exemplo, das riquezas naturais que, como o sol, a chuva, não se podem produzir, nem deles pode-se apropriar; é principalmente o caso dos bens comuns a todos e que não podem ser divididos, nem trocados por nada, como o patrimônio cultural. No entanto é verdade que, se não podem ser apropriadas ou “valorizadas”, as riquezas naturais e os bens comuns podem ser confiscados pelo viés das barreiras artificiais que reservam o usufruto delas aos que puderem pagar o direito de acesso. (GORZ, 2005, p. 31) Lazzarato & Negri explicam a mesma coisa, de outro modo: a cooperação social que define a produção hoje “não pode em nenhum caso ser predeterminada pelo econômico, porque se trata da própria vida da sociedade” (2001, p. 52). Nem a iniciativa, nem o processo de produção são controláveis pelo capital. A ele só resta a gestão dessa atividade e a criação dos dispositivos de controle. 2. O CONCEITO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL Desde sua criação em 1946, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) se atribui o papel de discutir a educação, a cultura e a ciência de forma global e propor aos estados-membros a adoção de algumas recomendações com o objetivo de estimular a paz entre as nações. O impacto de suas resoluções e convenções é muito grande, especialmente no Brasil, influenciando diretamente a política pública cultural do país.

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Com a Convenção para proteção do patrimônio mundial, cultural e natural de 1972, a Unesco começa um processo de definição pela afirmação que há necessidade de se proteger as culturas (que ainda não trata do imaterial). Mais tarde, em 1989, vem a Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular, que não usa o termo imaterial - usa o termo cultura viva - mas já inclui elementos intangíveis nas definições. Finalmente a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, estabelece a definição de patrimônio imaterial que usamos hoje, a saber: Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (Unesco, 2003, p. 4) Regina Abreu (2015) ressalta que a grande novidade da Convenção de 2003 foi a inclusão da sociedade civil, especialmente as comunidades detentoras do patrimônio a ser considerado, no processo de patrimonialização, com o papel mais fundamental: a iniciativa ou, no mínimo, a co-participação na demanda de registro. Assim, para que o processo se inicie, é preciso que haja intenção de registrar um saber, festa, lugar ou expressão (esses são os 4 tipos de registro de que dispõe o Iphan) e que isso seja uma decisão do grupo, junto com os técnicos do Iphan. Nessa conceituação há o entendimento que as práticas tradicionais são associadas a ítens materiais, assunto ao qual voltaremos mais adiante, e que elas são constantemente recriadas, de geração em geração. Este é o traço característico da oralidade que, em comparação com a escrita (uma vez escrito, o conteúdo se fixa e passa a ter valor de verdade oficial), precisa ser lembrado pelos indivíduos e recriado pelo grupo, sempre dependendo das subjetividades e das relações sociais naquele momento. Este tema foi maestralmente tratado em “O Narrador” de Walter Benjamin (1996, p. 197221), assim como em “O mito do Bagré”, relato da experiência antropológica de Jack Goody (1972, apud Jeanneret, 2011). O primeiro destaca o papel único da subjetividade do narrador e de sua relação com o ouvinte, que poderá vir a ser o futuro narrador. O segundo sublinha a importância da coletividade para a execução de um rito, em que cada membro lembra um pouco e que somente juntos conseguem reconstituir a tradição, atualizando-a a cada vez. Ambos constatam a impossibilidade da escrita dar conta dessa relação frágil e fluida.

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Voltando à Convenção da Unesco, além de definir o que se considera imaterial, enumera as ações para proteção desse patrimônio que incluem a identificação, a documentação, a pesquisa e a divulgação, entre outras. Todas as ações sugeridas para a proteção do patrimônio imaterial, passam obrigatoriamente pela sua materialização, pela sua transformação em informação gravada em algum suporte. A cada bem imaterial registrado pelo Iphan, se faz um vídeo sobre o processo e se publica um livro com as descrições detalhadas e belas fotografias. Infelizmente, até a finalização deste artigo, nem o filme, nem o livro sobre o Ofício das Cuias estavam disponíveis para consulta6. A publicação do dossiê é o final de um longo caminho, ou de etapas de materialização, que incluem: a identificação dos bens imateriais, o inventário desses bens - que funciona como um pré-registro - seguido, para alguns, do registro, e finalmente da divulgação do patrimônio. Para além da documentação, que como já vimos, é uma forma de materializar o patrimônio, existem também “os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais” (Unesco, 2003, p. 4). Vera Dodebei já concluiu que não é possível separar material de imaterial no momento de preservar os bens: A falta aparente de um corpo material na condição efêmera de produção não exclui a materialidade do imaterial, nem a imaterialidade do material. Preservar uma construção religiosa sem a liturgia, uma língua sem o falante, é observar uma única face ou natureza do objeto. Mesmo com a criação de leis, normas e procedimentos para a proteção dos bens patrimoniais de natureza intangível ou imaterial é necessário compreender o caráter de virtualidade desses bens e a impossibilidade prática de separar o material do imaterial. (DODEBEI, 2007, p. 76) No caso específico das cuias: o saber-fazer é intangível, a produção das cuias é material, sua venda é a entrada do material feito a partir do imaterial em um mercado. É claro que não há comparação possível desse processo de venda das cuias nem com a indústria fordista (que não usava o saber vivo), nem com a pós-fordista (que estuda/cria subjetividades/desejos para então desenvolver produtos que respondam a eles, enquanto que as cuias são a expressão de uma tradição). Porém não se pode deixar de compreender que sempre que há produto, relação comercial e venda, há inserção no sistema capitalista. 3. COLETIVO, ILIMITADO E MATERIALIZADO As principais aproximações entre a idéia de imaterial, tanto pelo ponto de vista dos estudos sobre o capitalismo, quanto através daqueles sobre o patrimônio, o que justamente foi nosso objetivo com esta pesquisa, se apresentam para nós da seguinte forma: o imaterial é coletivo, é ilimitado e é materializado. Ver dossiês dos outros bens registrados no site: http://portal.iphan.gov.br/publicacoes/lista?categoria=22&busca= Acesso em: 15 de julho de 2015.

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Tanto Regina Abreu (2015) quanto Lazzarato & Negri (2001) enfatizam, cada um a respeito do seu assunto, patrimônio e trabalho respectivamente, a dimensão social, a dependência do grupo, ou seja, a face coletiva do imaterial. A característica ilimitada do imaterial é melhor entendida quando se compara um livro a uma batata, por exemplo. Quando uma pessoa lê um livro, alguma parte desse conteúdo fica com ela, mas o livro não se esgota por isso: ele pode ser lido novamente por outras pessoas, sem tirar nada daquela primeira pessoa que o leu. Não é o caso da batata, que ao ser comida, acaba. Sobre esse ponto, tanto Lazzarato & Negri (2001) quanto Gorz (2005) são enfáticos: a única forma que o capital tem para exercer algum papel nesse ciclo de produção totalmente externo a ele é através da limitação do acesso, da escassez artificial. Interessantemente, não encontramos tais considerações nos estudos sobre o patrimônio. Talvez por que o patrimônio imaterial dependa muito mais diretamente da dimensão viva, dos coletivos que os recriam, ou ainda por que não há necessidade/ tentativa de controle de acesso. Já quanto à sua materialidade, ficamos com os dossiês do Iphan, as considerações de Dodebei (2007), que pondera sobre a dificuldade de se pensar a patrimonialização do material e do imaterial separadamente, assim como com a consideração de Marazzi (2009, p. 65) quando fala da mudança de foco dos contratos e acordos comerciais. “De agora em diante, patentes, copyrights, trade-marks e trade-secrets serão os verdadeiros objetos das contendas nas negociações internacionais”. 4. JAPÃO, 1950 Curiosamente, é no ano de 1950, no Japão, que encontramos a principal aproximação entre os estudos sobre o capitalismo e o patrimônio, a partir das observações de Christian Marazzi (2009) e de Regina Abreu (2015). O primeiro localiza o início da transformação industrial no Japão dos anos 50, que, por conta principalmente da crise financeira e da Guerra da Coréia, tinha um mercado restrito e não podia aplicar a produção em massa. Assim, iniciou-se a técnica da “produção enxuta” na fábrica da Toyota, que ficou conhecida como toyotismo (em contraponto ao fordismo) e que significa redução de empregados e produção just-in-time (só se produz o que já está vendido), com funcionários altamente dedicados e fiéis aos valores da empresa (começo da mobilização total do ser de que fala Gorz). Essas técnicas começaram a ser introduzidas em empresas ocidentais a partir dos anos 70 e 80, depois de crises financeiras e outras mudanças sócio-culturais. Ao mesmo tempo, segundo Abreu (2015), o Japão foi o primeiro país a ter uma legislação de preservação do patrimônio imaterial, enquanto ainda não se falava sobre isso no ocidente. Mais interessante ainda é a forma que o país encontrou para preservar sua cultura imaterial: ao contrário do modelo ocidental de documentação e registro das práticas, as leis japonesas fomen-

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taram a transmissão viva das técnicas (tão diversas quanto fazer arranjos florais, caligrafia ou a cerimônia do chá, para só citar alguns), através de incentivos financeiros para mestres e aprendizes. Assim, a preservação integral da prática e da filosofia por trás dela, de seus gestos e rituais, de seus tempos e espaços, fica garantida. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS É nossa convicção que, a partir do momento em que se começa a usar os saberes vivos dentro do sistema capitalista, como recurso, processo e produto final, se começa a valorizar o patrimônio cultural imaterial. A coincidência cronológica tanto no Japão quanto no Ocidente nos levam a crer que a preocupação global com o patrimônio imaterial está intimamente ligada com a percepção que a indústria tem do seu valor. Ao mesmo tempo, também observamos que, enquanto o saber vivo pode e tem sido cada vez mais capturado como matéria-prima para a produção fabril, a valorização do patrimônio imaterial também se apresenta como forma de resistência de culturas periféricas ou marginalizadas. Entendemos ser esse o caso das produtoras das cuias amazonenses, que recuperam estima e sustento a partir da patrimonialização e que assim, podem seguir com seu modo de vida, sem serem obrigadas ao êxodo ou a se submeterem à exploração do emprego formal. Para ampliar a questão, e contando ainda com coincidências cronológicas, no momento em que fomos concluir o artigo, a leitura de uma notícia nos despertou novos questionamentos sobre a relação do patrimônio com o capitalismo no que se refere ao imaterial. A matéria publicada na Folha de São Paulo intitulada “Regra para baianas do acarajé deixa evangélicas apreensivas em Salvador”, de 02 de dezembro de 2015, levanta a questão da religiosidade e da vestimenta das baianas de acarajé em Salvador, município que regulamentou a profissão. Primeiro patrimônio imaterial brasileiro, registrado em 2005, o ofício de baiana do acarajé completa 10 anos - que é justamente o prazo definido para a revisão do registro do patrimônio (o Iphan entende que uma prática viva se transforma com o tempo e portanto seu registro precisa ser atualizado) - e traz novas contradições. Trata-se (entre outras regras como tamanho de tabuleiro, normas da vigilância sanitária, etc.) da obrigatoriedade de uso de vestimentas tradicionais. Algumas baianas, que exercem o ofício há muitos anos, se converteram a igrejas evangélicas e tem a orientação de não usar as roupas tradicionais que, segundo seus pastores, remetem às religiões afro-brasileiras. Então se coloca o problema: o acarajé é um patrimônio religioso? Ou melhor: se a origem de uma cultura é religiosa mas ela transborda ao longo dos anos para a vida profana, a religião original ainda tem que ser a opção de fé de todos os seus praticantes? As vestimentas são religiosas? É justo que alguém, seja um pastor ou uma secretária da Ordem Pública, interfira no modo de vestir das baianas? Se ela não usa as roupas, a baiana do acarajé é menos detentora/

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propagadora do seu patrimônio tradicional transmitido de geração em geração? A preocupação da prefeitura é com o patrimônio ou com o apelo visual das baianas para o turismo cultural? Será que são poucos casos e a questão seria tão minoritária que não vale ser considerada, ou será que a avaliação do Iphan vai levar em conta essas mudanças nas práticas vestimentares das baianas? Por qualquer ângulo que se olhe a questão, a estreita relação entre valorização do patrimônio e exploração comercial está sempre em jogo e apresenta potencialidades, tanto para o surgimento de conflitos quanto de soluções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Regina. Patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil. In: TARDY, Cécile e DODEBEI, Vera (Orgs.) Memória e Novos Patrimônios. Marseille: Open Edition Press, 2015. P. ALBAGLI, Sarita. Informação, saber vivo e trabalho imaterial. In: ALBAGLI, Sarita (Org.) Fronteiras da Ciência da Informação. Brasília: Ibict, 2013. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996. 10ª reimpressão. BEZERRA, Arthur. Cultura Ilegal: fronteiras morais da pirataria. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014 COCCO, Guiseppe. Introducão. In: LAZZARATO, Maurizio e NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividades. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001. DODEBEI, Vera. Museu e memória virtual. In: BITTENCOURT, José Neves; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sarah Fassa. (Orgs.). Museus, ciência e tecnologia. 1ed. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2007, v. 1, p. 71-80. GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. JEANNERET, Jean. Les harmoniques du Web : espaces d’inscription et mémoire des pratiques. Mémoire & Internet. [Publicado na revista] MEI Médiation & Information. Revue Internationale de Communication, n. 32. Paris: Harmattan, 2011. p. 31-40. LAZZARATO, Maurizio e NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividades. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001. MARAZZI, Christian. O lugar das meias: a virada linguística da economia e seus efeitos sobre a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. COELHO, Cecília. Ofício das cuias, jardins de Burle Marx no Recife e Campo de Santana são declarados Patrimônios Culturais do Brasil. Brasília, 2015. Disponível em: http://www.cultura.gov. br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/id/1270277 Acesso em: Jun/2015 TEC-MUNDO. 2038: o bug do milênio atacará novamente. Disponível em: http://www.tecmundo. com.br/historia/8795-2038-o-bug-do-milenio-atacara-novamente.htm Acesso em: Jul/2015

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UNESCO, Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972. Online. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001333/133369por.pdf Acesso em: Jun/2015 UNESCO. Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore de 1989. Online. Disponível em: http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13141&URL_DO=DO_ TOPIC&URL_SECTION=201.html Acesso em: Junho de 2015 UNESCO, Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003. Online. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf Acesso em: Junho de 2015

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POLÍTICA CULTURAL Y CONSTRUCCIÓN DE PAZ EN COLOMBIA Andrés Tafur Villarreal1

RESUMO: Esta ponencia presenta los antecedentes de una investigación cuyo objetivo principal es explorar sobre la relación entre políticas culturales y construcción de paz. Se argumenta que esta relación puede indagarse productivamente mediante la exploración de la naturaleza de la politica cultural puesta en marcha por distintos agentes, y por medio del examen del potencial de dicha política cultural para promover la paz. En el caso colombiano, esta relación puede rastrearse a través de la movilización cultural de dos agentes: el Estado, cuya política cultural (cultural policy) estuvo dirigida durante la década de 1990 a la construcción de paz, y las víctimas del conflicto armado, cuya política cultural (cultural politics) ha estado en el centro de su resistencia por la verdad, la memoria y la reparación simbólica. En adelante se desarrollan estos dos ámbitos de relación, para concluir con una reflexión sobre la reparación de la sociedad a través de las políticas culturales. PALAVRAS-CHAVE: construcción de paz, política cultural, víctima, memoria, reparación simbólica.

1. INTRODUCCIÓN: ACLARACIONES CONCEPTUALES 1.1 La construcción de paz Se entiende en un sentido amplio como las “acciones dirigidas a identificar y apoyar estructuras tendientes a fortalecer y solidificar la paz para evitar una recaída al conflicto” (Boutros-Ghali, 1992). Esta definición ha sido reelaborada por Rettberg (2012), quien la comprende como “un proceso dinámico, no secuencial, con altibajos y que implica diversos retos y frentes de acción paralelos”, que “ocurre en múltiples ámbitos (internacional, nacional y local) e involucra a actores de diferente naturaleza (domésticos e internacionales, públicos y privados, independientes y colectivos)” (2012, p. 4). En tanto que sobrepasa a los actores armados en contienda y no ampara su actividad a la resolución de los conflictos (por la vía de la negociación o por la vía militar), su dimensión temporal puede ser más amplia que la de una guerra o la de una eventual negociación política. Comunicador social periodista y filósofo. Estudiante de maestría en ciencia política, Universidad de los Andes, Colombia. [email protected]

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1.2 Las políticas culturales Se entienden como “la movilización de la cultura llevada a cabo por diferentes tipos de agentes - el Estado, los movimientos sociales, las industrias culturales, las instituciones tales como museos y organizaciones turísticas, asociaciones de artistas y otros - con fines de transformación estética, organizativa, política, económica y/o social” (Ochoa, 2003, p. 20). Por el lado del Estado, el Ministerio de Cultura de Colombia construyó su propia definición, desde la cual ha recopilado, discutido y validado socialmente las políticas culturales nacionales vigentes, cuya primera fase fue publicada en la publicación del Compendio de las políticas culturales nacionales (Ministerio de Cultura, 2010). De acuerdo con esta definición, Las políticas culturales son las grandes nociones que asume el país para orientar los procesos y acciones en el campo cultural, mediante la concertación y la activa participación del Estado, las entidades privadas, las organizaciones de la sociedad civil y los grupos comunitarios, para de esta manera responder con creatividad a los requerimientos culturales de la sociedad. (Rey, 2009, p. 32) Álvarez, Dagnino y Escobar (1999, 2001) han elaborado una definición de política cultural que se distancia de ésta perspectiva — que “normalmente designa acciones del Estado o de otras instituciones con respecto a la cultura, vista como un terreno autónomo separado de la política, y muy frecuentemente reducido a la producción y consumo de bienes culturales” (Álvarez et al, 1999, p.135) — para centrarse en el “proceso que se desata cuando entran en conflicto conjuntos de actores sociales que a la vez que encarnan diferentes significados y prácticas culturales, han sido moldeados por ellos” (Escobar et al, 2001, p.25, 26). Esta definición de política cultural asume que las prácticas y los significados, “especialmente aquellos que, en virtud de la teoría, se han considerado marginales, de oposición, minoritarios, residuales, emergentes, alternativos, disidentes y similares, todos en relación con un orden cultural predominantemente determinado” (2001, p.26), pueden ser la fuente de procesos que deben ser aceptados como políticos. Estas son las coordenadas en las que gravitan las víctimas. 2. LA CULTURIZACIÓN DE LA VIOLENCIA Los límites entre diferentes formas de violencia han dejado de ser evidentes. En términos de sus efectos, no se pueden separar tajantemente aquellos producidos por los conflictos político militares de aquellos producidos por prácticas generalizadas de criminalidad. En Colombia esto puede resultar indicativo, si se considera que el 81 por ciento de los muertos de su conflicto interno son civiles (Centro Nacional de Memoria Histórica, 2013).2 Lo anterior ha llevado a Según datos del informe Basta Ya, del Centro Nacional de Memoria Histórica (CNMH), de las 220 mil personas que murieron a causa del conflicto desde 1958 hasta el 2012, 180 mil eran no combatientes. Ver estadísticas: http:// www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/estadisticas.html

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algunos autores a definir la guerra colombiana como una “guerra contra la sociedad” (Pecaut, 2001), argumentando que la heterogeneidad de los fenómenos violentos, su dispersión y fragmentación, y el emborronamiento de las fronteras entre terror organizado y desorganizado, hace que parezca presuntuoso “trazar líneas claras entre la violencia política y aquella que no lo es”, puesto que “lo seguro es que ya nadie está al abrigo del impacto de los fenómenos de la violencia” (2001, p. 90). Este proceso de “banalización de la violencia”, por una parte, impacta profundamente las estructuras del orden social y cultural, provocando irreparables daños emocionales, morales y políticos (Centro Nacional de Memoria Histórica, 2013); y, por la otra, instaura “ciudadanías del miedo” (Rotker, 2000, p. 5), ciudadanías en las que “uno de los factores determinantes en la mediación de lo social es la angustia cultural” (Martín-Barbero, 2000). Fenómenos como las masacres3, la desaparición forzada4, el homicidio5, la violencia sexual6, el desplazamiento7, las

Según datos del informe Basta ya, del Centro Nacional de Memoria Histórica (CNMH), entre 1985 y 2012, se presentaron 1982 masacres, dejando como saldo un total de 11751 víctimas. Ver bases de datos: http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/basesDatos.html 4 Las cifras sobre desaparición forzada no están construidas y se encuentran fragmentadas en distintas instituciones, razón por la cual no son confiables. Medicina Legal habla de un histórico de 21 mil casos (1970 - 2013), la Fiscalía de 26 mil, el CNMH de 25 mil (1985 - 2012), mientras que en la Unidad de Víctimas hay denunciados unos 31 mil. Las organizaciones de víctimas sugieren que los casos pueden sobre pasar los 50 mil en un período de 40 años (1970 - 2010). 5 De acuerdo con datos de la Policía Nacional, procesados por el Observatorio del Programa Presidencial de Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario, la tasa de homicidios en Colombia en promedio durante el período 1990 - 2013 fue de 32,33 por cada 100 mil habitantes. En total fueron asesinadas 532.474 personas, de las cuáles, para la Policía, el 80% fueron causados por ‘casos de intolerancia’, los cuales obedecen a riñas, soluciones de conflictos entre vecinos o los llamados líos pasionales. De acuerdo con el portal Verdad Abierta (verdadabierta. com) dentro del conflicto, los homicidios han sido utilizados por los grupos armados ilegales como una forma de sembrar terror en los territorios que controlan, una de las prácticas más usadas fue la de los asesinatos selectivos, con los que se buscaba ocultar la magnitud de otras prácticas (como las masacres) pero causando miedo en las comunidades o el enemigo. Ver cifras en página del Observatorio http://historico.derechoshumanos.gov.co/Observatorio/Paginas/Observatorio.aspx 6 En Colombia se presentan, en promedio, 38 casos diarios de violencia sexual contra las mujeres, según la Defensoría del Pueblo. Según los exámenes médicos legales realizados en 2014 por violencias de pareja, de 43.807 mujeres y hombres, 37.881 correspondieron a mujeres, es decir el 86,5 % del total, y 5.926 para varones, es decir el 13,5 %. Tomado de http://www.eltiempo.com/carrusel/violencia-sexual-en-colombia-numero-de-casos-diarios/15828716 7 Según el informe de ACNUR de 2014 Tendencias Globales del Desplazamiento Forzado Colombia es, después de Siria, el segundo país del mundo con más desplazados internos, con un total de 6’044.151 personas. Ver. http:// www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/Publicaciones/2015/10072.pdf?view=1 3

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ejecuciones extrajudiciales8, la impunidad9, la corrupción10, o el secuestro11, se superponen unos a otros generando una “ética del desencanto” que atraviesa el sinsentido de lo social y de lo personal. Es en el contexto de estas prácticas de inseguridad, ciudadanías del miedo y “éticas del desencanto” en el que la cultura es invocada y “aparece como el hilo que podría suturar las heridas sociales y restaurar el tejido de la vida común” (Ochoa, 2004, p. 22). 3. LA VIOLENCIA, LA CULTURA Y LA PAZ Durante las últimas décadas en Colombia la idea de “cultura” ha pasado a nombrar un anhelo de resolución no bélica del conflicto armado o del estado exacerbado de violencias, representándosela como el escenario que haría posible generar un nuevo estado de convivencia. Dicha propuesta ha aparecido reiterada, por un lado, desde el ámbito gubernamental y, por otro, en los discursos de grupos de artes populares en diversas ciudades y regiones del país, intelectuales y artistas, y movimientos sociales (indígenas, campesinos, víctimas, etc). Esta interpelación a la cultura como “campo crucial de intervención social y político” en los discursos del Estado y de la sociedad civil, se explica por la transformación de las fronteras entre arte, cultura y política (Ochoa, 2003)12, y las metamorfosis en el sentido de las artes y la cultura a nivel global (Miller & Yúdice, 2004). Pero, en un contexto de guerra y de violencia generalizada, no atribuible exclusivamente al conflicto armado, ¿Qué implica pedirle a “la cultura” que restaure ámbitos de convivencia? ¿Qué entendemos por “políticas culturales” en estos contextos? Según Ochoa (2004), la idea de cultura como un ámbito desde el cual es posible construir la paz se traduce de distintos modos: La dirección de Derechos Humanos de la Fiscalía General de la Nación habla de cinco mil casos de ejecuciones extrajudiciales, o “falsos positivos”, que no son otra cosa que asesinatos a sangre fría por parte de efectivos del ejército nacional, para hacer pasar civiles por guerrilleros muertos en combate. En su informe del año pasado, Human Rights Watch identificó a más de 180 batallones y unidades tácticas que cometieron ejecuciones extrajudiciales entre 2002 y 2008. Ver. https://www.hrw.org/es/report/2015/06/23/el-rol-de-los-altos-mandos-en-falsos-positivos/ evidencias-de-responsabilidad-de 9 En Colombia, nueve de cada diez asesinatos quedan impunes. Estadísticas muestran que sólo es 20 por ciento de los casos llegan a ser judicializados. Tomado de: http://www.eltiempo.com/politica/justicia/impunidad-en-colombia/16115768 10 Colombia aparece en el puesto 83 en el ranking de corrupción de Transparencia Internacional entre 168 países, ver https://www.transparency.org/cpi2015 11 Según datos del CNMH, desde 1970 hasta 2010, fueron secuestradas en Colombia más de 27 mil personas. Ver bases de datos: http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/micrositios/informeGeneral/basesDatos.html 12 Con “transformación de las fronteras”, se quieren significar dos cosas: 1. La pluralización de lo que se considera válido como texto cultural (desde las telenovelas, pasando por el rock, las sinfonías clásicas y el folclor), lo cual tiene que ver tanto con las transformaciones en el campo de las comunicaciones (segunda mitad del siglo XX) como con el surgimiento de la diversidad como paradigma social. Y 2. La manera en que tanto diferentes grupos (de la sociedad civil) como instituciones (del Estado) “reclaman la cultura como un campo crucial de intervención en el orden social y político”. A este propósito, todo el campo cultural, no sólo las artes, se constituye en pre-texto para la búsqueda de alternativas. “Así, todo el campo de lo simbólico se consolida hoy como objeto de la política cultural.” (Ochoa, 2003, p.17). 8

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La cultura sería aquello que permitiría “reconstruir la convivencia” o “el tejido social”; crear una “zona de distensión” en medio de la violencia; darle una ruta diferente a los históricos hábitos de la venganza que llevan a la persistencia infinita de la guerra; permitir la presencia del duelo o transformar el sentido mismo de la política; deconstruir la historia de exclusiones para transformarla en procesos de inclusión (Ochoa, 2004, pp. 18,19) Pero una cosa es proponer que “la cultura” permite un proceso de reconstrucción social hacia “la paz”, y otra, sin embargo, es traducir ese ideal en prácticas concretas. Transitar de las definiciones ideales al ámbito de la transformación real implica, por una parte, comprender la manera como las diversas formas de la violencia han afectado el ámbito de lo que nombramos como cultura y, por otra, caracterizar en rigor la idea de paz que se invoca a través de la cultura y el campo de acción de las políticas culturales. Según De Zubiría (2015), uno de los peligros que subyace a esta relación es identificar la cultura y el Ministerio de Cultura con la paz, emulando el discurso institucional. Este “artificio”, parte de las premisas falsas de que: (…) cultura es paz, violencia es no-cultura; todo conflicto es violencia, hay que abolir el conflicto para ser culturales; hay que silenciar la violencia y el conflicto en nombre de la tolerancia. Pretendiendo ocultar y olvidar la persistente relación entre cultura y violencia en la historia de nuestro país y a nivel de la cultura occidental. (De Zubiría, 2015, p. 94). El punto central a este respecto radica no tanto en equiparar la “cultura” con la “convivencia pacífica” sino en dar espacio a las manifestaciones culturales como campos en los que sea posible escuchar las contradicciones, las dificultades y los duelos, asumiendo la contradicción y el conflicto no violento como lugar fundamental desde el cual pensarse, en el entendido de que “la paz no es la resolución de un conflicto armado, sino la construcción de un nuevo contrato social y la institucionalización de un orden democrático no excluyente en lo político, lo económico, lo social y lo cultural” (Salazar, 2000, p. 178). 4. LA PAZ EN EL PANORAMA DE LAS POLÍTICAS CULTURALES Las políticas culturales están lejos de ser cuestiones puramente estatales. Los discursos y la movilización de la sociedad civil en torno a la cultura, constituyen otras maneras de concebir y hacer política (s) en el sector cultural. Esto tiene que ver con la progresiva centralidad que ocupa la exigencia que tanto el Estado como la sociedad civil hacen de la cultura, al postularla como sustituto de la política (politics). La paz ha estado en el prisma tanto de las políticas culturales formuladas desde la institucionalidad del Estado (Colcultura, Ministerio de Cultura) como desde el seno de las comunidades organizadas, ya sea de artistas, intelectuales, jóvenes y mujeres, o de base social, como los movimientos étnicos y los sectores campesinos y más recientemente, las víctimas. Para el caso colombiano, se puede afirmar que durante la década

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de 1990 e inicio de la del 2000, existió una tradición oficial que nombró la cultura como eje de la política nacional de paz, a través de diversos documentos tales como planes institucionales, discursos y cartas presidenciales, manifiestos, ponencias de foros nacionales y regionales, artículos de prensa, editoriales, entrevistas, declaraciones públicas, entre otros materiales recogidos y publicados por la Presidencia de la República, que hicieron parte del debate nacional en torno a la Ley General de Cultura (397/1997) y la creación del Ministerio, denominado (no gratuitamente) para la época, “el Ministerio de la Paz” (Presidencia de la República, 1997).13 Por otra parte, las manifestaciones culturales también han constituido una herramienta muy útil para las organizaciones de víctimas del conflicto armado. En la brega por denunciar las violaciones a sus derechos civiles, económicos, sociales y culturales las víctimas han hecho uso de diversas técnicas y narrativas propias de las artes, que les han dado visibilidad en la esfera pública. Se puede decir que los más importantes esfuerzos en Colombia por “hacer memoria” y “contar la verdad” de las atrocidades de la guerra, han sido fundamentalmente una iniciativa de las víctimas, muchas veces re-victimizadas por los actores implicados en la confrontación incluyendo los actores estatales -, más que del mismo Estado. Es desde estas dos perspectivas - la del Estado y la de las víctimas - que podemos hablar de relaciones entre políticas culturales y construcción de paz. 4.1 La cultura en la política nacional de paz14 Hasta la década de 1990, Colombia no había contado con una Política Nacional de Cultura, sino con un conjunto de planes atomizados que, como señalan Herrera y Mena (1994), representan a lo sumo un conjunto de propuestas viables, que no alcanzaron su implementación completa ni la debida sanción presidencial (1994, p. 141)15. Desde 1930, la cultura había sido vista como un subsector de la educación, desarrollada por una oficina de extensión del Ministerio del ramo, hecho que no varió con la creación del Instituto Colombiano de Cultura, Colcultura, en 1968: “(…) como bien ha sido afirmado por Juan Luis Mejía Arango, era para el Ministro de Educación de turno un instituto descentralizado más al que no podía dedicarle, si acaso, más del 3% de su tiempo al año, especialmente debido a la creciente y compleja problemática del sector educativo” (Morales, 2001, pp. 22,23). Esta situación cambió, por lo menos formalmente, tras la reforma institucional de 1991, con la entrada en vigencia de un nuevo pacto constitucional. La transición produjo cambios sustanciales tanto en el diseño y materialización de las políticas como en la institucionalidad cultural, lo cual llevó a la progresiva “autonomización” del sector que desembocaría finalmente Sobre la “política nacional de paz” a través de la cultura, puede verse (Colcultura, 1992, 1997), (Presidencia de la República, 1994, 1995a, 1995b, 1996, 1997), (Ministerio de Cultura, 1998, 2001a., 2001b, 2001c). 14 Se anexa consolidado 15 Los planes de cultura anteriores a la transición de 1991 fueron los de1972-76, 1974, 1976, 1983-85 y 1990. 13

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en la aprobación de la Ley General de Cultura y en la creación del Ministerio. El optimismo que vivía el país de la mano del desarme y la desmovilización de distintas organizaciones guerrilleras, pronto colocó la cultura en las coordenadas de la gestión pública y a la paz como uno de sus objetivos centrales. El Departamento Nacional de Planeación (1991) trazó tres desafíos para la “nueva concepción de la actividad cultural” en los “tiempos de transición”: el primero era la consolidación de la democracia, de acuerdo con el régimen participativo señalado por la nueva Carta: “Para lograrlo, se propiciarán nuevos espacios para la participación ciudadana, procurando que ella sea cada vez mas [sic] amplia y mejor. El campo de la cultura favorece ese proceso participativo de los ciudadanos que está en el centro del protagonismo de la sociedad civil.”(1991, p. 1). El segundo era la apertura, que sería asumida como el “desafío” de entrar en interrelación con otras sociedades, economías y culturas. El reto a esta parte, según el criterio de los planificadores, era doble: “de un lado, afirmar y preservar la identidad cultural, múltiple y diversa, y de otro, asimilar y aprovechar la riqueza de otras expresiones culturales.” (1991, p. 1). El tercer “desafío” en ciernes era la descentralización político-administrativa de su gestión, una tarea inconclusa desde 1974. Las recomendaciones del DNP fueron consignadas en el Plan Nacional de Cultura 1992 - 1994, “Colombia: El camino de la paz, el desarrollo y la cultura hacia el siglo XXI”, que orientó sus políticas, estrategias y programas sobre la base de un planteamiento rector: el rol de la cultura en la formación para la paz. El plan reconoce que en el momento que atraviesa Colombia, se precisa del “robustecemiento de los valores democráticos y la recuperación del sentido de la convivencia pacífica y tolerante” (Colcultura, 1992, p. 1), para lo cual el papel de la cultura “cobra una importancia sin precedentes.” Aquello comprometía definir los criterios globales acerca de la cultura y su papel en la vida nacional, los objetivos del Estado y de la sociedad civil en el sector, en el marco de las “trascendentales innovaciones de la Constitución de 1991”, esto es: una política cultural centrada menos en los productos culturales que en el reconocimiento de las tradiciones y las prácticas significativas de las comunidades que habitan el territorio. El programa “CREA: Una expedición por la cultura colombiana” (1992 - 1998)16, nació con el doble propósito subyacente a los planes: “rescatar, valorar, promover y difundir nuestras manifestaciones culturales a lo largo y ancho de todo el territorio nacional” (Colcultura, 1997, p. 1), y, paralelamente, “reafirmar la cultura como una estrategia valiosa en la búsqueda Consistió principalmente en una serie de ‘encuentros culturales’ con muestras de cultura local y regional que tenían lugar a nivel municipal, departamental, regional y, finalmente, nacional, de manera consecutiva. Se llevó a cabo entre 1992 y 1998. Su desarrollo concretó del grandes procesos. “El primero culmina con un Encuentro Nacional en Bogotá en 1995, con la presencia de 1.687 artistas de las regiones en la capital; el segundo, en agosto de 1998, justo antes del cambio de gobierno, con una muestra de 2.235 artistas. Previo a cada Encuentro Nacional se habían realizado, en el primer caso, 102 encuentros intermunicipales, 29 departamentales, 6 regionales; y en el segundo, 15 encuentros intermunicipales, 26 departamentales, 4 regionales. (Ochoa, 2003, p. 31)

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de la paz, la reconciliación nacional, la convivencia, el respeto por la diferencia, el diálogo y la libre expresión de ideas” (1997, p. 2). La creación del Ministerio de Cultura fue motivada por la presidencia de Ernesto Samper por la supuesta capacidad intrínseca de la cultura para aportar a la paz. De manera posterior a su creación, en el gobierno de Andrés Pastrana, el ministerio fue defendido ante sus potenciales detractores como un ministerio necesario para la superación de la violencia. En una misiva a los alcaldes y gobernadores del país, la entonces ministra Aracely Morales, suscribía que su Ministerio compartía con los colombianos, “la confianza en el poder de la cultura para construir la paz” (2002, p.25). En 2001, el gobierno nacional citó a intelectuales, artistas, y gestores culturales de todo el país a suscribir el Manifiesto por la Paz desde la creatividad y la diversidad (2001a.), que pretendió sentar “líneas de acción en diversos planos para hacer efectivo el compromiso de los promotores de la cultura con los imperativos de la paz” (VV.AA, 2001d., p.8). Ochoa al igual que Araújo (2003) polemizaron con la retórica de la paz que se gestó en las políticas culturales a partir de la década de 1990, sobre la base de dos planteamientos que se suscriben en esta ponencia: 1. imaginar la paz como ausencia de conflicto, esto es, la dificultad de asumir los dilemas y conflictos de la diversidad, lo que se traduce en un “lenguaje que niega lo conflictivo en la movilización de lo cultural desde el estado” (Ochoa, 2003, p. 126), y 2. en esa misma dirección, “la supuesta capacidad intrínseca de la cultura para aportar a la paz” (Araújo, p. 28). A este respecto, se pueden señalar otras tres situaciones igualmente críticas en el propósito institucional de lograr la paz a través de la política cultural, que fueron saldadas parcialmente en la formulación del Plan Nacional de Cultura 2001 - 2010, “Hacia una ciudadanía democrática cultural.”17 Estas son: (3) la dinámica intervencionista que impedía consolidar procesos de largo plazo, (4) la ausencia de participación ciudadana en la construcción de los planes y programas, y (5), finalmente, el logro relativo en la tarea de la descentralización. 4.2 La política cultural de las víctimas: un repertorio de memorias18 La política cultural de las víctimas no es tanto una policy como una dimensión de político (politics). Lo correspondiente a las prácticas políticas concretas de diseño e implementación de programas y proyectos específicamente relacionados con la movilización de lo simbólico pensado como expresiones artísticas (sea éste desde la “alta cultura”, desde “la cultura popular” o desde “las industrias culturales”), patrimoniales, de difusión cultural, etc., sería algo parecido Este plan se construyó colectivamente a través de consultas, foros regionales y encuentros nacionales, al tanto que se presentó no como un plan de Estado sino de la sociedad. Su duración lo vinculó más a una política de Estado que a un plan de gobierno, lo cual pretendió consolidar las políticas culturales como políticas públicas, (estas dos características no estaban en planes anteriores). Por último, instaló lo cultural en el espacio de lo político, en un diálogo entre política cultural y cultura política. 18 Se anexa consolidado 17

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a lo que en inglés se llama cultural policy. Con Álvarez, Dagnino y Escobar, utilizamos el concepto de cultural politics para llamar la atención sobre el vínculo constitutivo entre cultura y política y sobre la redefinición de la política que esta visión implica. Este lazo constitutivo significa que la cultura, entendida como concepción del mundo y conjunto de significados que integran prácticas sociales, no puede ser comprendida adecuadamente sin la consideración de las relaciones de poder imbricadas con dichas prácticas. Por otro lado, la comprensión de la configuración de esas relaciones de poder no es posible sin el reconocimiento de su carácter “cultural” activo, en la medida que expresan, producen y comunican significados. Con la expresión política cultural nos referimos, entonces, al proceso por el cual lo cultural deviene en hechos políticos (Álvarez et al, 1999, p. 135). Ochoa prefiere hablar de “lo político de lo cultural”, para comprender la perspectiva de estos autores, dado que se construye sobre todo desde “prácticas teorizadas como marginales”, tanto por los estudios culturales, preocupados por el textualismo, como por la ciencia política y la sociología política, preocupadas por la política formal, institucional. Esto es “prácticas culturales históricamente pensadas como marginales, ahora analizadas como prácticas de poder” (2003, p. 74), por oposición también a la noción iberoamericana (que ellos consideran una noción dominante) de políticas culturales como un campo de mediación entre obra artística y producción19. La noción de repertorio refiere fundamentalmente a una práctica cultural. Taylor la define, en oposición a la noción de archivo, como los gestos, la performatividad, la oralidad, el movimiento, la danza y el canto, entre otras manifestaciones de las comunidades, y dice que son un tesoro de inventiva que les permite participar en la producción y reproducción de conocimiento por el solo hecho de hacer parte de su transmisión. Respecto del caso colombiano, citando a Taylor, el Grupo de Memoria Histórica (GMH) afirma que el “repertorio” da cuenta de “los relatos de los sobrevivientes, de la observación de sus prácticas y gestos, del reconocimiento de los traumas, de las reiteraciones y de los silencios, formas efímeras de conocimiento y de evidencia” (Grupo de Memoria Histórica, 2009, p.23). El archivo, por el contrario, sería aquello referido a la política oficial del recuerdo, aquello que se encuentra al servicio del poder, materializado en sofisticados soportes textuales. Siguiendo con Ochoa, esta expansión de la noción de políticas culturales, para incluir todas las dimensiones simbólicas de la cultura, “es precisamente uno de los procesos a través de los cuales están cambiando las fronteras entre arte y cultura y es una de las dinámicas desde las cuales la noción estética de lo cultural está siendo absorbida por el sentido social de la simbolización de lo cultural a través de las políticas culturales. No sólo se pluralizan los textos de la cultura reconocidos como objeto de política cultural; se transforma la relación de valor entre el sentido de lo cultural como dimensión estética o como dimensión social. Esta polémica sobre cómo definir el valor de las políticas culturales se hace especialmente visible en el frágil juego de las traducciones no sólo de las palabras sino entre campos de pensamiento sobre cultura”, (2003, p. 75).

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La unidad de análisis de las iniciativas de memoria de las víctimas en el trabajo del GMH son los discursos, representaciones, prácticas y significados que construyen las comunidades y organizaciones afectadas por la violencia con el fin de hacer público su dolor y denunciar las injusticias de las que han sido objeto. Citando a Veena Das, estos discursos, representaciones, prácticas y significados, son asumidos como “juegos de lenguaje” que constituyen formas de vida, “donde se definen los repertorios de posibles enunciados y acciones, mediante los cuales las personas enfrentan la diversidad” (2009, p.19). Esto supone, como se sabe, una comunidad de lenguaje y significación, una cultura compartida. Los medios de expresión equivalen a lo que Elizabeth Jelin llama “vehículos de la memoria”: “memoria que se produce en tanto haya sujetos que comparten una cultura” (p.19). Los “vehículos de la memoria” pueden ser tanto libros como archivos u objetos conmemorativos, pero también expresiones y actuaciones “que antes que re-presentar el pasado, lo incorporan performativamente” (p.19). Esto nos saca de la esfera exclusiva de los textos culturales, y nos instala en las coordenadas de las prácticas de los sujetos y de los movimientos sociales, lo que de paso amplía el concepto de política cultural. Como señalan Escobar y compañía, la política cultural que ponen en marcha los movimientos, y léase dentro de ese espectro a las organizaciones de víctimas, no es prerrogativa de aquellos que plantean exigencias basadas en la cultura, sino que compromete a todos “cuando intentan otorgar nuevos significado a las interpretaciones culturales dominantes de la política, o cuando desafían prácticas políticas predominantes” (2001, p.25). La política cultural de los movimientos de derechos humanos, por ejemplo, “debe trabajar para otorgar nuevos significados (y transformar) conceptos culturales dominantes sobre los derechos y el cuerpo” (p. 34). La oposición entre repertorios y archivos da cuenta de esta disputa por los significados y las representaciones en el terreno de la memoria. El Centro Internacional para la Justicia Transicional (ICTJ), habla de “iniciativas no oficiales de memoria” para referirse a los repertorios a través de los cuales se “visibilizan otras formas de hacer justicia y reparación, y además de construir verdad y memoria: una fórmula “desde abajo” que permite que las víctimas interpelen al Estado y exijan el cumplimiento de estos derechos, partiendo de las particularidades regionales” (Briceño-Donn et al, 2009, p. 6). Esto supone de entrada que la Ley de Justicia y Paz (975/2005) - y podríamos decir hoy que la Ley de Víctimas y Restitución de Tierras (1448/2011)- “no es el único y tampoco el más importante escenario de justicia transicional en Colombia.” Por el contrario, algunas de estas memorias funcionan como “prácticas de reparación” que inciden en la recuperación de la autoestima, la confianza y los lazos sociales; y como “prácticas de resistencia” que denuncian las injusticias a la vez que sirven como antídoto contra la impunidad y el olvido. Se trata, en todo caso, de “prácticas materiales mediadas por la cultura”, en tanto son memorias que han quedado “ancladas en cuerpos y en los sentidos”, que “no se pueden confinar a esferas mentales o subjetivas únicamente” (GMH, 2009, p.24).

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5. CONCLUSIÓN: ¿SIRVEN LAS POLÍTICAS CULTURALES PARA REPARAR LA SOCIEDAD? Posterior a la aprobación de la Ley de Víctimas, el Ministerio de Cultura produjo un documento que pretendió (o pretende) sentar las bases de lo que sería una política pública desde la cultura y el arte en el marco de las víctimas del conflicto armado colombiano (Ministerio de Cultura, 2011). El objetivo es buscar que la institucionalidad cultural opere sobre la base de la normatividad transicional, ligada a una comprensión profunda de los derechos de las víctimas. Se suscribe que la política pública quiere llegar a posibilitar escenarios tendientes a formas simbólicas de reparación, o por lo menos, a convertirse en posibilidad de construcción de memoria y puesta en público de sentidos, ligados a la violencia y a las condiciones de actualización del pasado marcado por el conflicto. Es decir: inscribir de lleno el arte y la cultura en la construcción de memoria sobre la violencia y el conflicto armado. Esta iniciativa empieza a tender puentes entre las dos nociones de política cultural descritas hasta acá en dirección de la construcción de paz en Colombia, no obstante que su centro son las víctimas del conflicto armado definidas por la Ley 1448 de 201120, lo cual excluiría tanto a las personas victimizadas con ocasión del conflicto antes de 1985, como a la población no víctima (por lo menos directamente). Si bien se propone la reconstrucción de la memoria, “desde abajo”, a través de expresiones culturales y artísticas como un cohesionante de los tejidos sociales fragmentados, tanto a nivel local como regional y nacional, y como garante de no repetición; los sujetos de derechos en la construcción de memoria, en el marco del conflicto armado y, desde la cultura para este proyecto, son afro-palenqueros y raizales, indígenas, jóvenes, niñas y niños, victimizados; LGTBI, desplazados, población urbana marginalizada y campesina, mujeres, opositores políticos y defensores de derechos humanos, es decir, aquellos que caben dentro de la categoría de víctima, definida por la ley, y que gozan del “enfoque diferencial” de derechos. La iniciativa, siendo loable dado que se propone incluir a población tradicionalmente excluida, concentra la política en un sector de la población, perdiendo de vista el imperativo de la reconciliación nacional, máxime cuando nos encontramos ad portas de cerrar el capítulo de la guerra interna por la vía de la negociación política. Por otro lado, tampoco considera las distintas tipologías de daño con ocasión del conflicto, ni sus impactos diferenciados sobre los cuerpos, las relaciones y los imaginarios de la sociedad colombiana. Caracterizar los daños individuales y colectivos, los materiales e inmateriales, podrían facilitar el campo de acción de una política que se proponga reparar, ya no las víctimas del conflicto armado, sino la sociedad colombiana, herida de muerte por todo tipo de violencias. Derechos como la verdad y la memoria, objeto Artículo 3. Víctimas. Se consideran víctimas, para los efectos de esta ley, aquellas personas que individual o colectivamente hayan sufrido un daño por hechos ocurridos a partir del 1º de enero de 1985, como consecuencia de infracciones al Derecho Internacional Humanitario o de violaciones graves y manifiestas a las normas internacionales de Derechos Humanos, ocurridas con ocasión del conflicto armado interno.

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de la reparación simbólica, deben ser asumidos en su doble titularidad: como derechos de los afectados pero también como derechos de la sociedad en general.

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Anexo 1 Documento La cultura en los tiempos en transición 1991 - 1994

Entidad Departamento Nacional de Planeación

Plan Nacional de Cultura 1992 - 1994 Colombia: el camino de la paz, el desarrollo y la cultura hacia el siglo XXI

Instituto Colombiano de Cultura, Colcultura

CREA: una expedición por la cultura colombiana 1992 - 1998

Instituto Colombiano de Cultura, Colcultura

Crear es vivir (1994)

Presidencia de la República, Colcultura

Debate cultural (1995a)

Presidencia de la República, Colcultura

Materiales para una cultura (1995b)

Presidencia de la República, Colcultura

El trabajo cultural en Colombia

Presidencia de la República, Colcultura

Ministerio de Cultura, ministerio de la paz (1997)

Presidencia de la República, Colcultura

Plan Nacional de Cultura 1998 - 2000 Construir el país que queremos

Ministerio de Cultura

Manifiesto por la paz desde la creatividad y la diversidad. La Presidencia de la República cultura le declara la paz a Colombia (2001) Cultura para construir la paz. El Ministerio de Cultura a los Alcaldes y Gobernadores de Colombia (2001)

Ministerio de Cultura

Cátedra para la cultura de paz desde la diversidad y la creatividad Plan Nacional de Cultura 2001 - 2010 Hacia una ciudadanía democrática cultural

Presidencia de la República, Ministerio de Cultura, Departamento Nacional de Planeación

Hacia una política pública desde la cultura y el arte en el marco de las víctimas del conflicto armado colombiano (2011)

Ministerio de Cultura

Recomendaciones desde la cultura para el postconflicto en Colombia (2014). Borrador

Consejo Nacional de Cultura

Ministerio de Cultura

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A ECONOMIA CRIATIVA NO CONTEXTO BRASILEIRO E POLITICAS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL: UMA DISCUSSÃO EM ABERTO Andreza Barreto Leitão1 Marcelo Carlos Gantos2

RESUMO: No presente artigo, busco compreender o debate que associa cultura e desenvolvimento, tendo como foco a institucionalização da Economia Criativa como política pública no Brasil. O propósito foi entender o que explica a entrada deste conceito nas políticas culturais no Brasil e quais as suas implicações com políticas de propriedade intelectual. Através de pesquisa de campo, entrevistas, pesquisa bibliográfica e documental, compreendeu-se que a Economia Criativa é uma política pública de tipo multicêntrica, sendo implementada por atores estatais e privados e que o uso do conceito é por vezes arbitrário, podendo ser associado a discursos de globalização hegemônica e de globalização contra-hegemônica. A institucionalização dessas políticas no Brasil é associada ao neo-desenvolvimentismo dos governos PT e à promoção do Soft Power em tempos de megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). PALAVRAS-CHAVE: Economia Criativa, Políticas Públicas, Globalização Hegemônica, Globalização Contra-hegemônica, Propriedade Intelectual.

Recentemente, o conceito de Economia Criativa ganhou e perdeu espaço institucional no Ministério da Cultura Brasileiro. Em linhas gerais, podemos entender a Economia Criativa como o ciclo que envolve a criação, produção e distribuição de produtos e serviços que incorporam o conhecimento, o patrimônio cultural, a criatividade e o capital imaterial como principais recursos produtivos. A Economia Criativa tenta, portanto, conjugar as noções de Cultura e de Desenvolvimento sócio-econômico. O papel da cultura como propulsora de um tipo de desenvolvimento contra-hegemônico tem sido observado desde a “Década Mundial do Desenvolvimento Cultural” (DMCD) da Graduada em Ciências Sociais (CCH/UENF), mestre em Políticas Sociais (PPGPS/LEEA/UENF); E-mail: [email protected] 2 Doutor em História Social da América (UFF), Professor associado do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA/UENF); E-mail: [email protected] 1

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UNESCO, que ocorreu entre 1988 e 1997 (CUELAR, 1997), sendo que entre os anos de 1992 e 1995, o economista e ex-ministro da cultura, Celso Furtado integrou a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento daquele mesmo organismo internacional. Adiante veremos que seu nome será evocado na busca pela construção de uma Economia Criativa com um “selo” brasileiro. Paralelamente, nos anos de 1994 na Austrália, com o “Creative Nation”, e de 1997 no Reino Unido, com as “Indústrias Criativas”, ocorrem experiências no campo das políticas públicas que seriam marcos do que mais tarde se convencionou chamar “Economia Criativa”. Ana Carla Fonseca Reis (2011) observa que no contexto de globalização há um aumento da demanda por serviços criativos no setor de turismo: a valorização da cultura ofstream, das identidades locais, da experiência, do único, do singular. Passemos a analisar as mudanças concernentes ao fenômeno da globalização, que vem se desenhando desde o final da Segunda Guerra Mundial, unida à expansão do capital multinacional. Boaventura de Sousa Santos (2002) afirma que longe de cumprir a expectativa de homogeneização e uniformização, a globalização das últimas três décadas “parece combinar, a universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro.” (ibid., p. 26). Sousa Santos entende o fenômeno como um campo de conflitos entre grupos sociais, estados e interesses hegemônicos frente a grupos sociais, estados e interesses subalternos, ou contra-hegemônicos. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2002), existe uma globalização hegemônica, pautada no Consenso de Washington (também chamado de “consenso neoliberal”) que, na metade dos anos 80, conteria as prescrições sobre o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento e o papel do Estado, sendo assinado pelos Estados centrais do sistema mundial. Contudo, por mais que todas as dimensões do que se entende por globalização tenham sido afetadas por esse consenso, nem todas são parte da cartilha. Nesse sentido, Boaventura vislumbra a possibilidade da emergência de uma globalização contra-hegemônica. As manifestações da globalização contra-hegemônica são denominadas pelo autor como fenômenos de “localização”, uma vez que passam pela reterritorialização enquanto redescoberta do sentido do lugar e da comunidade, frente a uma economia e uma cultura cada vez mais desterritorializadas. Tais iniciativas teriam a função de proteger as populações e o meio ambiente dos excessos do comércio livre. Em suas palavras: Entendo por localização o conjunto de iniciativas que visam criar ou manter espaços de sociabilidade de pequena escala, comunitários, assentes em relações face-a-face, orientados para a auto-sustentabilidade e regidos por lógicas cooperativas e participativas. As propostas de localização incluem iniciativas de pequena agricultura familiar […], pequeno comércio local […], sistemas de trocas locais baseados em moedas locais […] formas participativas de auto-governo […]. Muitas destas

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iniciativas se assentam na ideia de que a cultura, a comunidade e a economia estão incorporados e enraizados nos lugares geográficos concretos […]. (SOUSA SANTOS, 2002, p. 72) Vale lembrar que Sousa Santos (2002) situará como inerentes à globalização hegemônica do consenso neoliberal os novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores, suscetíveis de serem objeto de propriedade intelectual (SOUSA SANTOS, 2002, p. 31), além da subordinação dos estados nacionais às agências multilaterais como o Banco Mundial, FMI e OMC. Os direitos de propriedade intelectual são um dos baluartes da globalização hegemônica. No livro “Economia Criativa – como ganhar dinheiro com ideias criativas”, de John Howkins (2013) ( autor que em 2001 cunhou o conceito de “Economia Criativa” que discutimos aqui), alguns dos capítulos versam especificamente sobre propriedade intelectual e podemos constatar a centralidade desse tema: Próximo ao final do século XX, a natureza do trabalho mudou. Em 1997, os Estados Unidos produziram US$414 bilhões em livros, filmes, música e outros produtos ligados a direitos autorais. Os direitos autorais se transformaram no seu produto de exportação mais importante, superando artigos de vestuário, produtos químicos, automóveis, computadores e aviões. A revista Fortune disse que o valor econômico do jogador de basquete Michael Jordan, obtido através de direitos autorais e merchandizing, superou o PIB da Jordânia. (HOWKINS, 2013, p. 11) Richard Florida, outro autor de destaque na área, aponta que deve haver problematização nos usos da criatividade como valor econômico, principalmente no que diz respeito às políticas de propriedade intelectual. Embora conceba como inegável a riqueza gerada pelo potencial criativo humano, o autor traz à luz o caráter empobrecedor e limitador em tais políticas: Muitos analistas, por exemplo, apregoam que a “propriedade intelectual” [...]hoje é mais valiosa do que qualquer tipo de propriedade física. [...] No entanto, como bem afirma Lawrence Lessing [...], nossa tendência à superproteção e à disputa exacerbada no que se refere à propriedade intelectual pode acabar restringindo e limitando o impulso criativo. (FLORIDA, 2011, p. 37) O conceito de Economia Criativa traria o estigma da relação com recrudescimento das políticas de propriedade intelectual posto que na experiência britânica as “Indústrias Criativas” se definiam como “indústrias que tem sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que apresentam um potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual” 3.

REIS,2008. Também Disponível em: http://www.culture.gov.uk/about_us/creativeindustries/default.html

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A nova política cultural britânica recebeu críticas em função de sua abordagem economicista da cultura, que favorecia a competitividade em detrimento do acesso democrático aos bens culturais, situando a gestão de Blair como uma reprogramação da mesma agenda neoliberal do thatcherismo (GARNHAM, 2005, apud De Marchi, 2012). De Marchi (2012) cita como “mais cuidadosa” a análise de David Hesmondhalgh(2005), que situa New Labour de Tony Blair como um “hibrido de neoliberalismo, conservadorismo e social-democracia”, essa classificação aparentemente esdrúxula traduziria que por um lado, os novos trabalhistas mantiveram-se fieis aos princípios básicos da agenda do partido, em especial, a defesa dos serviços públicos, mas, por outro, “implementaram certas medidas que, na prática, assumiam uma postura liberalizante, defendendo as leis de mercado [...].” (ibid., p.8) Mais tarde, a UNCTAD4 definiria as indústrias criativas em quatro categorias amplas: 1) Patrimônio Cultural (incluindo artesanato, festivais e expressões da cultura tradicional), 2) Artes (artes visuais: pintura, escultura e fotografia/ artes dramáticas: teatro, dança, ópera, circo, música) , 3) Mídia (edição e mídia impressa, audiovisual, cinema e rádio) e 4) Criações Funcionais (design de moda e de interiores, arquitetura, conteúdos digitais, jogos), os quais são apresentados como setores intrinsecamente inovadores e privilegiados na geração de emprego e renda. ( DUISEMBERG, 2008, p. 61) Sobre a implementação dessas políticas, é importante ponderarmos as perspectivas dos trabalhos de Yúdice (2006) que critica a instrumentalização da cultura para fins políticos, sociais ou econômicos. Para o autor, é como se tal instrumentalização esvaziasse o sentido das culturas, que deveriam ser entendidas como um sistema fechado, autoreferenciado. Ainda acerca da discussão sobre cultura e desenvolvimento, Garcia Canclini (2012) assevera que, na prática, a respeito do desenvolvimento cultural nos países latino-americanos observam-se contradições entre os discursos progressistas e as medidas regressivas. As principais críticas, segundo Canclini (2012) se fundamentam na observação de que por mais que estejam presentes nos discursos e declarações as afirmações de que a cultura e as artes tenham grande potencialidade para a atração de investimentos, geração de empregos, dinamização do turismo e elevação do PIB, os programas orçamentários fixados pela dívida tendem à austeridade, cortando fundos destinados à cultura, promovendo demissões, o que acaba reduzindo a potencialidade criativa, bem como o consumo e o acesso aos bens culturais.

“A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) foi estabelecida em 1964, em Genebra, Suíça, atendendo às reclamações do países subdesenvolvidos, que entendiam que as negociações realizadas no GATT não abordavam os produtos por eles exportados, os produtos primários. A UNCTAD é Órgão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), mas suas decisões não são obrigatórias. Ela tem sido utilizada pelos países subdesenvolvidos como um grupo de pressão.” Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Confer%C3%AAncia_das_Na%C3%A7%C3%B5es_Unidas_sobre_Com%C3%A9rcio_e_Desenvolvimento

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No Brasil, o conceito de Economia Criativa chega a partir de 2004, com a XI Reunião Ministerial da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), isto é, o tema é introduzido por um organismo supranacional. Percebe-se que o conceito de “Economia Criativa” já começava a ser introduzido no país, desde a primeira gestão de Lula, seja por meio de ações, projetos ou debates em que diversos atores o colocariam na pauta da agenda das políticas públicas. A categoria “atores de políticas públicas” designa tanto indivíduos (pessoas), quanto grupos (atores coletivos), que agem intencionalmente em uma arena política. Os atores também podem ser governamentais ou não governamentais. Dentre os governamentais estão os políticos eleitos, ou os designados (indicados) politicamente para determinado cargo e o corpo de funcionários públicos (burocratas). Já dentre os atores não governamentais, podemos encontrar grupos de interesse, partidos políticos, meios de comunicação, Think tanks (que são organizações de pesquisa e aconselhamento em políticas públicas), policytakers (os destinatários das políticas públicas) as organizações do terceiro setor (ONGs, OSCIPs, Associações da Sociedade Civil Organizada), e outros stakeholders (interessados nas atividades ou impactos de uma política pública), tais como organismos internacionais, comunidades epistêmicas, financiadores, especialistas, etc., que podem inclusive formar redes de políticas públicas (SECCHI, 2013). Em 2005 ocorre, em Salvador, o I Forum Internacional de Indústrias Criativas, organizado por iniciativa do embaixador Rubens Ricupero (então secretário-geral da UNCTAD) e do ex-Ministro Gilberto Gil. Em 2006, é lançada uma pesquisa da FIRJAN5, com base em dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indica a participação com indicadores dos setores criativos para o PIB nacional nesse mesmo ano em que, além disso, o módulo “Economia Criativa” é inserido no Fórum Cultural Mundial do Rio de Janeiro (REIS & DEHEINZELIN, 2008). A FIRJAN neste caso atuou como grupo de interesse (por representar uma organização do setor da indústria e comércio) e como Think tank (por atuar na produção e disseminação de conhecimento para a formulação de políticas públicas). Outro ator relevante é o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). De acordo com Heliana Marinho, em 2006 o SEBRAE Nacional cria uma gerência específica para trabalhar a Economia Criativa: [...] o SEBRAE nacional, pensando nessa direção, criou uma coordenação própria pra trabalhar a Economia Criativa, é uma coordenação que começa a fazer as conexões necessárias dentro do sistema SEBRAE, desse sistema fazem parte 27 estados e essa coordenação passa a entender o que os diversos estados fazem nesse ambiente da Economia Criativa, e também passa a prospectar, a sistematizar e a definir novos 5

Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro no Rio de Janeiro

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métodos de trabalho. (Heliana Marinho da Silva6 - Gerente da Área de Economia Criativa do SEBRAE-RJ.) Em 2007, ocorrem dois Seminários Internacionais no Ceará e São Paulo. (REIS, 2008, p.21). Isso demarcará focos de grupos de onde surgem alguns dos policymakers ou “empreendedores políticos” das políticas da Economia Criativa no país: no Ceará, ligados primeira à secretária da pasta no MinC, Claudia Leitão e em São Paulo, ligados à Ana Carla Fonseca Reis. No ano de 2008 são editados trabalhos pelo SEBRAE & SECULT de Vitória e pela Fundação Itaú Cultural, de São Paulo, que sistematizam experiências e possibilidades acerca do tema (2008, p. 13). Buscaremos entender as políticas relativas à Economia Criativa como políticas públicas multicêntricas (SECCHI, 2013), isto é, políticas que podem ser formuladas tanto por organizações privadas, organizações não governamentais, organismos multilaterais, redes de políticas públicas (policy networks), que, paralelamente aos atores governamentais/estatais, apresentam-se na função de formular ações e gerar agenda, tendo em vista questões de interesse público (neste caso, o argumento do desenvolvimento através da cultura). Cabe analisarmos que antes da institucionalização da Economia Criativa no Ministério da Cultura, através da criação da secretaria, o tema da articulação entre cultura e desenvolvimento já vinha sendo desenvolvido institucionalmente no MinC, chancelado pelo termo “Economia da Cultura”. Em 2006, o MinC cria o Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec)7 . Havia, neste período, contudo, uma resistência no âmbito do MinC à abordagem da Economia Criativa, ou Indústrias Criativas, pois, desde a experiência britânica, as políticas da Economia Criativa têm sido associadas a governos de tendência neoliberal e particupalmente ao recrudescimento de políticas de proteção à propriedade intelectual: Trabalhamos com o termo Economia da Cultura8 ao invés de Economia Criativa ou Indústria Criativa por entendermos que o primeiro, ao invés de delimitar o campo, o alarga, pois abrange outros setores como ciência e tecnologia. Já o conceito de indústrias criativas circunscreve o campo aos setores regidos por patente e propriedade intelectual [...]9. Transcrição da fala durante a cerimônia de abertura do Cultura Brasil II, em 10 de dezembro de 2012. O escopo dos setores do PRODEC já era bastante amplo, envolvendo: Todos os segmentos artísticos (música, audiovisual, artes cênicas, artes visuais); Telecomunicações e radiodifusão (conteúdo); Editorial (livros e revistas); Arte popular e artesanato; Festas populares;Patrimônio Histórico Material e Imaterial (suas formas de utilização e difusão); Software de lazer; Design; Moda; Arquitetura; Propaganda (criação). Neste artigo, aponta-se como os pólos mais dinâmicos da Economia da Cultura no Brasil: Música (produtos e espetáculos); Audiovisual (em especial conteúdo de tv, animação, conteúdo de Internet e jogos eletrônicos); Festas e expressões populares (onde se destacam o Carnaval, o São João, a capoeira e o artesanato). 8 Percebe-se que os setores eram próximos aos atualmente adotados pela Secretaria da Economia Criativa, sendo que nesta abordagem é explicitado o não-uso da expressão “Economia Criativa” ou “Industrias Criativas” para se evitar a alusão ao modelo inglês, que é relacionado às políticas de propriedade Intelectual. (PORTA, 2008) Disponível em: http://www2.cultura.gov.br/site/2008/04/01/economia-da-cultura-um-setor-estrategico-para-o-pais/ 9 Disponível em: http://www2.cultura.gov.br/site/2008/04/01/economia-da-cultura-um-setor-estrategico-para-o-pais/ 6

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É importante percebermos como o modelo de arenas sociais de políticas públicas se enquadra para uma identificação da advocacy, ou processo de defesa de pautas para a formação de agenda das políticas da Economia Criativa no Brasil, com a atuação paralela de diversos atores e, sobretudo, partindo da iniciativa de especialistas, de acordo com Celina Souza, denominados “empreendedores políticos” ou “empreendedores de políticas públicas” que formam a “policy community”. Para a autora, tais empreendedores “ [...] são cruciais para a sobrevivência e o sucesso de uma idéia e para colocar o problema na agenda pública. Esses empreendedores podem constituir, e em geral constituem, redes sociais”(SOUZA, 2006, p. 32). Assim, evidencia-se a ação tanto de organismos supranacionais (UNCTAD, PNUD e UNESCO), Forum Cultural Mundial, bem como na esfera nacional a Firjan e o Sistema “S” (SESI, SENAI, SEBRAE, SENAC), Institutos Culturais, Fundação Itaú Cultural e de organismos estatais (Secretarias de Estado e Cultura do Rio de Janeiro, do Ceará, do Espirito Santo) são alguns dos atores institucionais – ou “empreendedores políticos” (SOUZA, 2006) –, que pude identificar, envolvidos na introdução do tema na agenda de políticas públicas nacionais, antes mesmo da criação da SEC/MinC, propriamente dita. No que tange às Políticas Culturais brasileiras, a entrada do presidente Lula, com as gestões dos Ministros Juca Ferreira e Gilberto Gil, constituiu um marco em termos de avanços. Para Rubim (2010), as políticas culturais no Brasil possuiriam três tradições: “ausências, autoritarismos e instabilidades”. Porém, a entrada do PT, enquanto “esquerda no poder” deu lugar ao tema da inclusão de minorias por via da construção de políticas públicas participativas; estas teriam ressonância também na esfera da cultura. Até o ano de 2003 não existiam políticas culturais no governo federal voltadas para povos indígenas, culturas populares, quilombolas, ciganos, entre outros segmentos dos quais se constitui a diversidade cultural brasileira. Antes de iniciativas como o Programa Cultura Viva de 200410, com a identificação dos Pontos de Cultura, por exemplo, os investimentos em Cultura, subsidiados em peso via lei Rouanet11 eram aplicados majoritariamente ao eixo Rio – São Paulo e os recursos públicos beneficiavam preferencialmente setores da produção artística ali circunscritos. Veremos que quando da eleição da Presidenta Dilma Rousseff e indicação de Ana de Hollanda à pasta da cultura, ocorrerão tensões. Tensões estas em termos de descontinuidades Criado em 2004, por Célio Turino, na Secretaria da Cidadania Cultural/MinC, “o Programa Cultura Viva incentiva, preserva e promove a diversidade cultural brasileira, contemplando iniciativas culturais que envolvem a comunidade em atividades de arte, cultura, cidadania e ecnomia solidária. Além dos pontos de cultura, o programa abrange quatro ações: agente cultura viva, cultura digital, escola viva e Griô.” 11 A Lei Rouanet consiste numa política de incentivos fiscais que possibilita às empresas (Pessoas Jurídicas) e aos cidadãos (Pessoas Físicas) aplicarem uma parte do Imposto de Renda devido à União (sendo 4% para o IRPJ e 6% para o IRPF) em ações culturais. Tal legislação resultou numa espécie de estímulo à propaganda gratuita por parte das empresas e corroborou para a perpetuação de desigualdades, uma vez que estando boa parte da classe empresarial do país situada no sudeste, seus investimentos, consequentemente, concentraram-se nessa região. 10

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com relação à abertura democrática das gestões de Juca Ferreira e Gilberto Gil. Tal fato coincidiria com o anúncio da criação da pasta “Economia Criativa”. A sucessão no MinC, pela ministra Ana de Hollanda, então indicada pela presidenta Dilma Rousseff, frustra algumas expectativas de continuidade ao tratamento dado à Cultura, principalmente para os entusiastas da fase anterior. As críticas à gestão da ministra já no início de seu mandato foram constantes, chegando a ser esboçado um movimento “fora Ana de Hollanda” em listas de discussões sobre culturas populares. No momento em que se estruturava a criação desta nova pasta denominada Secretaria da Economia Criativa (SEC) no MinC, a Secretaria de Cidadania Cultural (SCC) e a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) haviam se fundido em uma única nova pasta, a saber, a Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC). O MinC, desde a gestão do ministro Gilberto Gil, adotara um conceito de Cultura subdividido em 3 dimensões: simbólica, política e econômica. Dentre os posicionamentos contrários à entrada do conceito de Economia Criativa no Ministério da Cultura brasileiro, apresenta-se um quadro em que o tratamento das dimensões simbólica (diversidade cultural) e política (cidadania cultural) passa a ser articulado a uma pasta, ao passo que a dimensão econômica receberia uma autarquia própria, o que poderia sugerir uma posição privilegiada a esta última. Ana de Hollanda em seu discurso de posse enfatiza a conexão da atuação do MinC ao programa de governo da presidenta Dilma, em consonância com “as grandes metas nacionais de erradicar a miséria, garantir e expandir a ascensão social, melhorar a qualidade de vida nas cidades brasileiras, promover a imagem, a presença e a atuação do Brasil no mundo.” (HOLLANDA, 2011). As políticas da Secretaria da Economia Criativa, de acordo a então ministra da Cultura Ana de Hollanda no texto de abertura do Plano da SEC/MinC, seriam estratégicas para o Governo Federal, pois significariam ainda um compromisso do Ministério da Cultura com o “Plano Brasil sem Miséria”, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), por meio das ações de inclusão produtiva, e com o “Plano Brasil Maior”, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) através da promoção da “competitividade e inovação dos empreendedores criativos brasileiros”. O plano da Secretaria da Economia Criativa em sua fase de formulação contou com o “Questionário de Levantamento de Demanda para os Setores Criativos”. Tratava-se de uma primeira coleta de dados voltada para os trabalhadores criativos. É um momento de busca de articulações de interesses e de coleta de informações sobre as demandas dos setores. Nesta fase, a consulta popular através da web aparentemente favoreceu o acesso de produtores culturais a este questionário. O planejamento visou à consolidação de um modelo próprio de Economia Criativa, alinhado à nossa realidade, com diretrizes e ações a se efetuarem até 2014. No texto de abertura da secretária, lê-se que:

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Trata-se de [...] levar em conta o que historicamente descartamos e excluímos [...]. O plano da Economia Criativa (2011 – 2014) representa o desejo e o compromisso do Ministério da Cultura, no Governo Dilma Rousseff, de resgatar o que a economia tradicional e os arautos do desenvolvimento moderno descartaram: a criatividade do povo brasileiro. (Claudia Leitão, Plano da SEC/MinC, 2011) O conceito de Economia Criativa do modelo brasileiro não traz exatamente a mesma definição britânica, mas tem como foco os processos: [...] definimos Economia Criativa a partir das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica. (Plano da SEC/MinC, 2011, p. 23) Diferente do modelo inglês, excluiu-se o pressuposto da geração de propriedade intelectual como definição dos setores criativos que compõem a Economia Criativa brasileira: Considerar que os setores criativos são aqueles cuja geração de valor econômico se dá basicamente em função da exploração da propriedade intelectual expressa uma percepção bastante restritiva, posto que a propriedade intelectual não corresponde a um elemento obrigatório nem definidor único de valor dos bens e serviços criativos. Desta forma, conclui-se que a distinção mais significativa para a economia criativa deveria se dar a partir da análise dos processos de criação e de produção ao invés dos insumos e/ou da propriedade intelectual do bem ou serviço criativo. (Plano da SEC/MinC, 2011, p. 22) De Marchi (2012) situa a Economia Criativa propagada pela SEC/MinC como neodesenvolvimentista, que mais que uma abordagem economicista, pautaria-se em “valores éticos”: “[...] equalizando demandas de equidade social, com as de sustentabilidade ambiental-econômica visando ao bem-estar coletivo”(DINIZ, 2010, apud DE MARCHI, p. 5). Além disso, têm-se a ampliação das economias de exportação, em que, junto ao agronegócio, a cultura passa a configurar, visando à competitividade internacional. Outra caracterização seria o compromisso dos estados com a democracia, absorvendo, organizando e orientando as novas demandas sociais das recentes sociedades pluralistas. Dentro dessa leitura de De Marchi, poderíamos associar os processos implementados pela SEC/MinC como propulsores do fenômeno que Sousa Santos denominou como “localização”, isto é, uma possível face contra-hegemônica da globalização. Percebi que, além do neodesenvolvimentismo que De Marchi (2012) aponta como característico do governo PT, o conceito de Economia Criativa deveria ser associado à noção de Soft Power. De acordo com Suplicy (2013), o conceito de Soft Power foi criado por Joseph Nye, professor da Universidade Harvard, contrapondo-se ao poder bélico ou meramente econômico, chamado “hard power”. Sua definição seria: “a capacidade de um país influenciar relações in-

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ternacionais, exercer um papel de encantamento e sedução através de qualidades “softs”, em especial manifestações culturais fortes e diversas.” E prossegue: Isso se chama “soft power”. Se for suficientemente atraente, funcionará como uma luz que conquistará visitantes, investidores e sonhadores. Quando o conjunto é de tal monta consistente, pode exercer extraordinário poder (soft power) como Hollywood em relação aos EUA, a moda e a gastronomia na França, os monumentos históricos da humanidade na Itália e na Grécia... Trata-se, porém, muito mais que cinema, comida ou monumentos. São valores, posições históricas, políticas externas e autoridade moral que, no conjunto, geram admirações e sonhos. (SUPLICY, 2013) Gastronomia, moda, cinema, monumentos... o escopo das atividades que estimulam o soft power de uma nação coincide com o das indústrias criativas. Percebe-se uma relação direta entre as políticas da economia criativa, os megaeventos esportivos (que foram temas exaustivamente debatidos em mesas de encontros, seminários e congressos sobre economia criativa recentemente no Brasil12) e esse conceito de soft power, estabelecendo-se como políticas de promoção de um poder simbólico a partir da construção da imagem dos países no contexto global. Marta Suplicy ainda comenta: Londres conseguiu, no período da Olimpíada, construir uma imagem bastante positiva da Inglaterra. Trabalha agora para manter e ampliar esta conquista. Foca nas parcerias e presença cultural que possam gerar este tipo de dividendo no mundo. (SUPLICY, 2013) É nesse contexto que deve ser compreendido o planejamento estratégico da SEC/ MinC, que teve sua primeira etapa delimitada entre os anos de 2011 e 2014, isto é, visando a projetar o Brasil no mercado global de bens simbólicos. Vale analisar as palavras da secretária Claudia Leitão: [...] A gente produz mas não distribui!! Não é?! [...] nós precisamos de exportar, de sermos exportadores dessa economia! Por que que a China tem que ser o grande exportador dos bens e dos serviços criativos do mundo? Onde está o Brasil? Qual é a marca do Brasil no mundo? Nós agregamos valor aos nossos produtos e serviços?? O John Howkins, pai do conceito de Economia Criativa, diz que o Brasil faz sonhar enquanto país, mas não tem produtos onde esse valor agregado se coloque, se anexe, então nós temos que trabalhar para que esses produtos tenham a nossa cara, “as caras brasileiras” como dizem no SEBRAE (Claudia Leitão13, então secretária da SEC/MinC). Citando alguns eventos em que o tema da Economia Criativa se cruzou com o do “legado dos megaeventos”: “I Seminário Internacional Economia Criativa: novas perspectivas”, realizado pela FGV e Iniciativa Cultural – Instituto das Indústrias Criativas em 20 e 21 do mês de setembro de 2011; “I Encontro Funarte de Políticas para as Artes” nos dias 8 à 10 de novembro de 2011; “Seminário Internacional de Economia Criativa do SESI-SP” de 17 a 18 de abril de 2012; “Encontro Nacional de Empreendedorismo Cultural - Cultura Brasil II”, dias 10 e 11 de dezembro de 2012. 13 Durante a palestra de abertura do Cultura Brasil II, que ocorreu no 10 de dezembro de 2012 12

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Vimos que o papel da cultura como propulsora de um tipo de desenvolvimento contra-hegemônico tem sido observado desde a “Década Mundial do Desenvolvimento Cultural” (DMCD) da UNESCO, que ocorreu entre 1988 e 1997 (CUELAR, 1997), sendo que entre os anos de 1992 e 1995, Celso Furtado integrou a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO e aparentemente esse histórico vem sendo evocado pela SEC/MinC, isto é, pelos atores governamentais que neste momento passam a formular as políticas públicas da Economia Criativa. No texto de abertura do Plano da SEC/MinC, a então secretária ressaltava: Celso Furtado lutou durante toda a sua vida por um desenvolvimento desconcentrador, fundamentado na diversidade cultural regional brasileira. E por isso, foi um crítico inclemente das sociedades capitalistas e “de sua forma sofisticada de controle da criatividade e de manipulação da informação”. O que afligia Furtado era a consciência de que a estabilidade das estruturas sociais não igualitárias estaria diretamente relacionada ao controle por grupos privados dos bens de produção da criatividade artística, científica e tecnológica. (Claudia Leitão, Plano da SEC/MinC, 2011) Para Furtado, os problemas do país são problemas de formação. Essa é uma sociedade de origem colonial que ainda não resolveu seus problemas de formação, sendo que os dois impasses principais são a dependência externa e a exclusão social. O Brasil e demais países periféricos estariam perdendo em todos os campos, principalmente no campo cultural, porque nessa área prevalece o mimetismo, a imitação da cultura estrangeira e a auto-desvalorização da própria cultura. De nada adiantaria pensar apenas em desenvolver tecnologia e maquinário, se a população continuasse a privilegiar os padrões de consumo externos. Esse é o fator que radicaliza o grau de subdesenvolvimento e dependência. Nesse sentido, segundo Celso Furtado, a saída dos países periféricos para romperem com a condição de dominação seria o estimulo à criatividade. No dia 10 de maio de 2013, consegui marcar uma entrevista com Luciana Guilherme (então Diretora de Empreendedorismo, Gestão e Inovação da SEC/MinC). Perguntei a ela o que muda na passagem do tratamento da Economia da Cultura para a Economia Criativa: Muda bastante coisa. Primeiro tem uma base que nasce: nasce da Economia da Cultura; mas se amplia, porque a Economia Criativa não trata da economia apenas gerada a partir dos setores da cultura, mas ela se amplia para outros setores de base cultural, de base simbólica, mas que se encontram em outras esferas, em outras dinâmicas... Então a gente começa a falar do design... a gente começa a falar da moda... o próprio artesanato passa a ser incluído no Ministério. Mas mesmo assim hoje, o Ministério tem um recorte... a Economia Criativa se você for pensar hoje toda a Economia Criativa digital, existe aquela que usa de suporte digital fortemente, seja no próprio processo de criação, seja no suporte de outras áreas, que não são digitais. O artesanato, por exemplo: as plataformas de comércio eletrônico hoje são serviços de apoio ao processo

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de comercialização e distribuição, que é o elo mais frágil da cadeia do artesanato... Então, na verdade, o que a gente começa a discutir com a Economia Criativa são processos de inovação, tecnologias sociais, novos modelos de negócios... (Luciana Guilherme. Diretora na SEC/MinC) Conforme já analisado, no Plano da SEC/MinC a questão da geração de propriedade intelectual não aparece como fator determinante do valor, mas vemos que paralelamente à estruturação da secretaria, no país, o debate sobre propriedade intelectual torna-se mais acirrado. Esse foi um tema que vi emergir nos eventos que presenciei sobre Economia Criativa. Ao mesmo tempo, setores da indústria cultural internacional também passam a se movimentar nesse período. Em abril de 2011, Greg Frazier, vice-presidente executivo da Associação Cinematográfica dos EUA (MPAA, no original), visitou São Paulo e Brasília com o objetivo de pressionar autoridades locais por maior atenção no combate à pirataria. Na ocasião, Frazier chegou a se encontrar com equipes ministeriais da Cultura e Justiça. Em entrevista à Folha de São Paulo, ele fez comentários sobre a reforma dos Direitos Autorais no Brasil e afirmou que “a democratização do acesso à cultura não esta[va] na agenda de interesses da associação”14. Percebe-se que havia todo um aparato de conformidade aos ditames da OMC e da OMPI tomando forma a nível nacional, coincidindo com o período de gestão da então Ministra da Cultura Ana de Hollanda. Desde o primeiro mês de gestão, a ministra demonstrou que estaria em direção oposta aos seus antecessores, Gilberto Gil e Juca Ferreira, defensores da flexibilização da lei de direitos autorais e da manutenção de políticas de cultura digital no MinC: em janeiro de 2011, uma de suas primeiras ações ao assumir a pasta foi remover as licenças Creative Commons do site do Ministério da Cultura15. Em função desta conduta, percebi um mal estar por parte de representantes de setores da cultura e das políticas culturais, que associavam a criação da SEC/MinC a esta tendência da ministra Ana. Com a baixa popularidade, Ana de Hollanda é destituída do cargo de ministra da Cultura em 11 de setembro de 2012, entrando em seu lugar a então senadora Marta Suplicy. Feita a leitura do Plano da SEC/MinC, eu já havia percebido o desejo dos policymakers da Secretaria em afastar a definição da Economia Criativa proposta pelas políticas governamentais do Estado brasileiro da ideia de propriedade intelectual, isto é, gerar propriedade intelectual não é o que define os setores criativos. Porém, a preocupação com questões de direitos autorais Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/903278-democratizar-a-cultura-nao-e-nosso-interesse-diz-vice-presidente-da-mpaa.shtml Acesso em 30 de julho de 2011. 15 “Na prática, aquilo significou apenas que o conteúdo do site (os textos e vídeos) não estaria mais disponível para ser usado e reproduzido pelos usuários nos termos da licença. Mas, em um contexto mais amplo, sinalizou que a ministra não compartilhava da visão de seus antecessores em promover a cultura livre e a circulação de ideias, sobretudo no ambiente online. Sua atitude foi aplaudida por membros das entidades que representam a indústria cultural.” Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/link/ana-de-hollanda-sai-do-ministerio-da-cultura/, Acesso em 11 de setembro de 2012. 14

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aparece num dos objetivos do plano, que diz respeito aos “marcos legais” (Plano da SEC/MinC, 2011, p. 39). Perguntei diretamente à Luciana Guilherme, então diretora neste órgão, como a SEC/MinC tem se posicionado com relação às políticas de propriedade intelectual: Olha, a gente acredita que deve haver um equilíbrio entre o direito do autor e o acesso. Eu acho que não dá pra gente ter uma posição fechada, hermética e inflexível no que se refere aos direitos autorais. Essa discussão está posta e no Brasil o debate tem sido bem forte, bem amplo, e a gente sabe que a acessibilidade precisa ser pensada. No que se refere à propriedade intelectual, a gente tem uma visão onde é preciso tratar o direito de propriedade intelectual, o direito autoral, de uma forma que promova o acesso, mas que garanta o direito, sem polarizar. Há uma discussão no que se refere à flexibilização dos direitos, seja por parte do próprio autor, ou seja ele ter o direito de dizer o que ele cede e o que ele não cede, até às questões ligadas à educação... hoje há um grande debate, quer dizer, em termos de educação sobre qual o nível de acesso que se dá. Então, a resposta não é fechada, mas o que a gente acredita é que deve haver um equilíbrio entre o apoio ao autor mas também o acesso, que promova desenvolvimento. Porque o acesso à informação, o acesso á criação gera possibilidade de novos processos criativos, de novos processos de desenvolvimento e de formação dos profissionais desses setores, então isso pra gente é fundamental . [...] Fala-se inclusive de “direitos coletivos”, não é? Então, é um universo bastante amplo, mas que sempre o que a gente coloca é o “caminho do meio”, (Luciana Guilherme – então Diretora de Empreendedorismo, Gestão e Inovação da Secretaria da Economia Criativa, MinC.) Em evento realizado pela ITEP/UENF, em novembro de 2012, também pude fazer registro da fala de Afonso Luz ( ex-diretor do Museu da Cidade de São Paulo, curador de arte e consultor em projetos) acerca da posição da ex-ministra Ana de Hollanda, quanto à criação da SEC/MinC e quanto a sua postura no que diz respeito aos direitos autorais: Eu estou atuando na câmara dos deputados, lá estamos mantendo um programa [...] que se chama culturas urbanas e cidades criativas. [...] Quando a Dilma assumiu, ela indicou uma pessoa muito polêmica para a pasta da Cultura, a minha vontade no começo era ajudar com que ela fizesse uma boa gestão. De fato essa coisa da Economia Criativa foi uma boa gestão; malgrado ela. Porque até ela começou a boicotar a situação, porque ela tinha uma mentalidade muito atrasada de modelo econômico de o que que era rentabilidade da criatividade, ligado ainda ao modelo de arrecadação da antiga luta sindical dos autores... e que a gente sabe, isso, no Brasil, o último a receber é o criador. E ela ainda achava que estava nos anos 60, na luta pelo reconhecimento de direito de autor... que é uma coisa legítima, mas que tem que ter uma visão social contemporânea, mudar e sair dessa lógica policialesca e arrecadatória de fiscal. O modelo dos antigos fiscais que passavam lá vendo as notinhas

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e pedindo suborno pra não autuar. E a gente baniu isso... eu e a frente parlamentar toda que estava lá nos opusemos frontalmente à ministra, e apoiamos essa parte da Economia Criativa que fizemos dentro do orçamento. (Afonso Luz – crítico, curador de arte e consultor em projetos) A mudança do termo “Economia da Cultura” para “Economia Criativa”, apesar das controvérsias não envolvia relação direta com recrudescimento às politicas de propriedade intelectual, nas palavras da ex-secretária: Quando analisamos as definições de indústrias criativas no resto do mundo, o primeiro ponto que aparece é o copyright. E nós, propositalmente, retiramos a palavra copyright do Plano da Secretaria da Economia Criativa. A visão de propriedade é ainda muito marcada por um direito civil do século XX, onde a função social não está presente. 16 (Claudia Leitão, então secretaria da economia criativa) No caso brasileiro, no que tange aos argumentos quanto ao desenvolvimento da dimensão econômica da cultura e a reflexão sobre os marcos regulatórios, durante o evento “Cultura Brasil”, presenciei na palestra de abertura a explanação da então secretária Claudia, em que ela citava um exemplo curioso. Ela relata que levou até um evento do BNDES uma estatueta do “Padre Cicero” e que também já presenteou à ministra Marta Suplicy com uma dessas. O detalhe é que o Padre Cicero era “chinês” (sic). Segundo a secretária, ele ainda possuía um chip eletrônico que reproduzia a gravação do “bendito da mãe das Candeias”, muito cantado nas romarias: Então eu mostrei o Padre Cícero, tirei da caixa – do “made in China” – e apertei então o botãozinho do chip e o padre Cícero canta benditos!!!! [...] ele simplesmente levou gravado os benditos que as crianças cantam no horto onde fica a estatua do Padre na cidade de Juazeiro do Norte, então você aperta o botão e o padre Cícero canta os benditos que são cantados no horto... e isso então, quer dizer que agora nós estamos ‘importando’ Padre Cícero! [...] eu fiz essa provocação em Recife, e eu fico aqui pensando com vocês... vocês todos já estão muito convencidos da importância desses setores, vocês não precisam de convencimento, mas o nosso trabalho é imenso ... Eu fiz questão de comprar o Padre Cícero e já entreguei pra ministra Marta Suplicy, porque penso que nós temos que exatamente nos dar conta do que significa isso [...] .17(Claudia Leitão – Secretária da Economia Criativa18) Ou seja, a intensificação da comercialização de bens culturais trata-se de um fenômeno que já está em curso. Dentro dessa perspectiva acerca da globalização cultural, enquanto estaríamos a manter pudores com respeito à ideia de desenvolver a dimensão econômica da cultura Disponível em http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/noticias/entrevista-com-claudia-leitao Este caso também foi noticiado em páginas como: http://www.tribunadoceara.com.br/blogs/nonato-albuquerque/religiao/a-fama-de-padre-cicero-foi-parar-na-china/ 18 Durante a palestra de abertura do Cultura Brasil II, que ocorreu no 10 de dezembro de 2012 16 17

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brasileira, agentes estrangeiros lucram com ela. Todavia, pergunto à Luciana Guilherme se de fato é possível promover a dimensão econômica da cultura sem prejudicar suas dimensões política e simbólica: Olha, eu acho que é possível, sim. Só que não é uma solução única. Quando a gente fala aqui de economia, a gente não está falando de uma economia “predatória” e capitalista, a gente está falando de uma economia onde a diversidade cultural é um valor principal, e para isso, ela precisa ser resguardada. Se você trata isso de qualquer forma, de uma forma massificada e destrutiva, a gente não concorda com isso. Mas por exemplo, hoje a gente percebe como o design vai beber da fonte da cultura popular, das matrizes culturais brasileiras... o Brasil tem uma riqueza, uma pluralidade, que se o avanço econômico for agressivo no sentido de destrutivo, ele vai perder sua maior fonte! Quer dizer, acaba sendo muito burro (risos) atuar dessa forma! Não temos respostas para todos os setores, a gente está construindo isso. A gente quer trabalhar sempre o valor da diversidade cultural como um princípio norteador, e ao mesmo tempo casando isso com o processo de inovação.(Luciana Guilherme – Diretora da SEC/MinC.) Analisando o plano da SEC/MinC (2011-2014), percebe-se que o projeto de articulação interministerial é deveras ambicioso, abrangendo 14 ministérios. Levando-se em conta que a definição de Economia Criativa evoca desafios financeiros, políticos e estruturais que estão acima da capacidade do MinC de lidar no presente período, percebe-se o quanto tal projeto de implementação das políticas da Economia Criativa necessariamente ampliaria o escopo de um Ministério destinado à área da cultura. Na articulação com os demais ministérios e secretarias considera-se o grau de prioridade da política em pauta nas agendas, os recursos que cada um deles controla e onde seriam distribuídos nessa articulação. Em setembro de 2013, a secretária Claudia Leitão é substituída por Marcos André Carvalho, que atuava como superintendente na Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro. Marcos André era responsável pela coordenadoria da Economia Criativa criada em 2009 no Estado do Rio de Janeiro. Em março de 2015 chega a ser anunciado em coluna de O Globo19 , de Ancelmo Gois, o fim da Secretaria da Economia Criativa e a dispensa do secretário. O fato, contudo, é esclarecido no mesmo dia no site do MinC20, onde afirmou-se que não houve demissão do secretário, mas que o mesmo pediu desligamento para assumir a coordenação do programa de promoção da economia criativa das Olimpiadas 2016, a convite do governo do Rio de Janeiro. Na mesma matéria, lê-se que o MinC, em dialogo com a pauta prioritária do governo federal, que é a educação, irá fortalecer ações entre educação e cultura. E que o ministério continua discutindo a http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/ministerio-da-cultura-acaba-com-secretaria-de-economia-criativa-562106.html 20 http://cultura.gov.br 19

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melhor maneira de dar transversalidade ao tema da “Economia da Cultura” – que reaparece – e da “Economia Criativa”. No link que leva à Secretaria da Economia Criativa no site oficial do MinC, lê-se a apresentação da Secretaria da Educação e Formação Artistica e Cultural (Sefac). Aparentemente, por estar ligada ao soft power que a visibilidade que o país passaria a desenvolver em função dos megaeventos (Copa do Mundo e Olimpiadas) e haja vista a baixa que os mesmos sofreram no que tange à opinião pública, a institucionalidade da SEC/MinC foi fragilizada. Creio que restrições orçamentárias do próprio MinC, particularmente as que vem ocorrendo no segundo governo de Dilma, também tenham pesado na interrupção das ações da pasta. As relações intersetoriais da SEC/MinC também eram bastante amplas, envolvendo articulações com parceiros institucionais, agências de fomento e desenvolvimento e órgãos bilaterais e multilaterais. O planejamento mostrou-se bastante articulado, mas conforme analisado, exigiria uma pactuação intensiva. A implementação trataria, dentre outras coisas, do funcionamento de tais políticas em si, e isso implica em uma série de outras questões (e interesses) que envolvem o custeio dessas políticas. Cabe ressaltar que em políticas novas essas questões ganham peso maior, em virtude da pouca institucionalização. Percebi no decorrer da investigação que o tema “Economia Criativa” é bastante controverso e, inicialmente, eu mesma tive dificuldades de direcionar minha argumentação. Como pano de fundo da recepção das políticas da Economia Criativa no país, pude notar embates cognitivos que situavam tais políticas como hegemônicas ou contra-hegemônicas. As noções de hegemonia e contra-hegemonia das políticas de tempos de globalização que aqui utilizo vem do trabalho de Boaventura de Sousa Santos (2002). A expressão de um discurso contra-hegemônico reside em associações dos membros das SEC/MinC ao pensamento de Celso Furtado (1978), autor que afirma que “implícito na criatividade existe um elemento de poder”, e aponta que países periféricos só superariam a dependência quando passassem a criar suas próprias soluções, suas próprias inovações e abandonassem o mimetismo cultural. Também convergente com uma leitura contra-hegemônica é a abordagem de De Marchi (2013) ao apontar o neodesenvolvimentismo da gestão do PT com características democráticas e inclusivas. Por outro lado, temos as leituras que situam tais políticas como concernentes à globalização hegemônica, tais como a de Yúdice (2006), que critica o uso da cultura para fins políticos ou econômicos e Canclini (2012), que faz observações sobre medidas regressivas a partir de politicas para a Economia Criativa na América Latina. Admitiu-se que, geralmente, quando assume caráter conservador, isto é, não adaptado às novas tecnologias e sem compromisso com os direitos de acesso (software livre, copyleft, etc), a implementação da Economia Criativa servirá à globalização hegemônica, que não favorecerá

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aos produtores, mas sim aos reprodutores e difusores destes conteúdos: grandes editoras, gravadoras, as ‘majors’, as multinacionais no âmbito da indústria cultural. A principio, a posição oficial da primeira equipe da SEC/MinC foi de não priorizar as industrias culturais e de optar pela flexibilização dos direitos autorais. Porém o título “Economia Criativa” continua sendo trabalhado por diversos atores governamentais e não-governamentais, visto que ele tem facilidade em ser assumido por políticas públicas multicêntricas, desse modo, as projeções da primeira equipe da SEC/MinC não delimitam todas as ações que envolvem o termo. No curto espaço de tempo em que realizei a pesquisa não termino por optar por uma dessas abordagens, mas procurei organizar nas leituras feitas e nas observações do campo e das entrevistas quais os argumentos pertinentes a cada posicionamento contrário ou favorável e de que modo eles fazem sentido numa percepção geral que a Economia Criativa é um conceito arbitrário, posto que pode ser adaptado a diversos grupos de interesses, setores do campo da cultura, atores governamentais ou não governamentais, e, desse modo, assumindo ainda conotação hegemônica ou contra-hegemônica, dependendo de como e por quem é evocado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA. Plano da Secretaria de Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações 2011-2014. Brasília: Minc, 2011. CUÉLLAR, Javiér Perez de. Nossa Diversidade Criadora: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Tradução: Alessandro Warkley Candeas. Campinas, SP: Papirus, Brasília: Unesco, 1997. DEHEINZELIN, Lala. “Economia Criativa, Sustentabilidade e Desenvolvimento Local”. In: DEHEINZELIN, Lala; REIS, Ana Carla Fonseca (orgs.). Cadernos de Economia Criativa: Economia Criativa e Desenvolvimento Local. Vitória: SEBRAE & SECULT, 2008. DE MARCHI, Leonardo. “Construindo o conceito de Economia Criativa no Brasil”. Política Cultural no contexto neodesenvolvimentista brasileiro. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares em Comunicação. XXXV Congresso Brasileiro de Ciência e Comunicação. Fortaleza, CE – 03 a 07/09/2012. DUISENBERG, Edna dos Santos. “Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável?” In: REIS, Ana Carla Fonseca (org.), 2008. FLORIDA, Richard L. A ascensão da classe criativa. In:___. Tradução: Ana Luiza Lopes. Porto Alegre – RS: LP&M, 2011. FURTADO, Celso. “Poder e espaço numa economia que se globaliza”. In: Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Cultura y desarollo: una visión distinta desde los jóvenes. In:_____. Nestor Garcia Canclini y Mariza Urtega orgs. 1ª ed. Buenos Aires : Paidós 2012.

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HOWKINS, John. Economia Criativa – como ganhar dinheiro com ideias criativas. São Paulo: M Books, 2013. REIS, Ana Carla Fonseca (org). Economia Criativa como estratégia de Desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento. São Paulo: Itaú cultural, 2008 REIS, Ana Carla Fonseca. “O Desenvolvimento de uma Economia Criativa”. In.: Rio: A hora da virada. André Urani & Fábio Giambiagi (orgs). Rio de Janeiro, Elsevier, 2011. SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, Esquemas de Análise, Casos Práticos. 2 ed. São Paulo: Cengage Learning, 2013. SOUSA SANTOS, Boaventura de. A Globalização e as Ciências Sociais. Boaventura de Sousa Santos (org). São Paulo: Cortês, 2002. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias. Porto Alegre, ano 8, nº 16, p. 20-45, jul./dez. 2006. SUPLICY, Marta. “O soft power brasileiro”. Folha de S. Paulo Opinião. 24 de fevereiro de 2013. YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

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CARAVANAS E POLÍTICAS CULTURAIS Antonio Albino Canelas Rubim1 RESUMO: O texto percorre as trajetórias da relação entre caravanas e políticas culturais na Bahia entre 2011 e 2014. Partindo da premissa que tais expedições culturais não são novidade em termos de procedimentos, realiza-se, de início, uma visitação a algumas marcantes experiências internacionais e nacionais. Através do recurso a teoria da viagem e ao tratamento das viagens na literatura, busca-se conformar um panorama de possíveis funções das caravanas. Com base neste desenho analítico, as caravanas da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, são estudadas e avaliadas, sempre em sua relação com a política de territorialização da cultura, assumida pela secretaria entre 2007 e 20014. PALAVRAS-CHAVE: Caravanas culturais; políticas culturais na Bahia; Bahia 2011-2014; gestão cultural; políticas públicas de cultura.

Caravanas culturais existem há muito tempo. Difícil delimitar com precisão seu instante de inauguração. Os acontecimentos históricos, na maioria das vezes, não possuem datas e fronteiras bem delimitadas. Como processos, eles se tecem no cotidiano para explodir em momentos, quase sempre, imprecisos. Improvável saber quando se iniciou o deslocamento territorial de grupos e/ou instituições com finalidades culturais. Alguns exemplos podem ser tomados para expressar esta já longa e diferenciada história. Eles servem de introdução ao estudo dos experimentos das caravanas culturais realizadas pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia entre os anos de 2011 e 2014. No contexto ibero-americano aparecem com destaque as famosas missões pedagógicas mobilizadas pela república espanhola na década de 30 (SOCIEDAD ESTATAL DE CONMEMORACIONES CULTURALES, 2006). Anos surpreendentes para Espanha pelo leque de possibilidades abertas em horizonte centralmente contemporâneo. Revoluções sociais como as acontecidas nas Astúrias quando o proletariado, com os mineiros na vanguarda, tomou o poder (NOSTY, 1974 e DÍAZ, 2012). Guerra civil, na qual se defrontam democracia, republica e brigadas internacionais contra o facismo de Franco, a intervenção nazista e a grave omissão do Ocidente. A Guernica de Pablo Picasso grita a dor desta tragédia mundial e espanhola. 1

Doutor, pesquisador do CNPq e professor da UFBA. E-mail: [email protected]

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As Missões Pedagógicas, criadas em 20 de maio de 1931, organizadas pelo Instituto de Livre Ensino, conforme Carmen Calvo Poyato, ex-ministra da Cultura da Espanha, na apresentação do livro Las misiones pedagógicas 1931-1936, visavam: “...paliar el injusto desnivel que existía entre la vida cultural de que disfrutaban las ciudades (...) y un mundo rural que permanecía al margen, dedicado al duro trabajo del campo”. De acordo com a ex-ministra: “El acceso a la cultura se había convertido en un derecho, y asegurar su democratización era un deber esencial para el Gobierno”. O projeto, que acolheu jovens intelectuais de variadas tendências democráticas, “…se fundamentaba en un intercambio de conocimientos y saberes”, no dizer de Carmen Calvo Poyato. As populações rurais recebiam uma mostra da “gran cultura española”, através do Museo del Pueblo, do Servicio de Cine, das Bibliotecas Circulantes, do Servicio de Música, do Coro e do Teatro del Pueblo. Os jovens intelectuais se encontravam com “...una cultura popular que desconocían y que incorporaron a sus personales estilos creativos a través de nuevos temas y enfoques”. Não por acaso, Xan Bouzadas Fernández propõe que as iniciativas culturais da República Espanhola estejam, juntamente com o Conselho das Artes inglês e o Ministério dos Assuntos Culturais francês, entre os atos inauguradores das políticas culturais no mundo ocidental (FERNÁNDEZ, 2007). Atravessando o oceano Atlântico, três outros exemplos de experimentos de expedições culturais se destacam. Logo depois da Revolução Mexicana, a recém-criada Secretaría de Educación Pública desenvolveu o projeto de missões culturais para levar a cultura aos rincões do país (OROZCO,2007). A Casa da Cultura Equatoriana, fundada em 1944, nos anos 60 e 70 movimenta caravanas culturais, que buscavam “...acercar la cultura del pueblo mediante la difusión de las artes por los territorios y la instalación de núcleos provinciales de la Casa de la Cultura, pretendiendo descentralizar de esta forma la actividad cultural” (COLOMA, 2012). Entre 1992 e 1998, o Conselho Nacional de Cultura (COLCULTURA) da Colômbia, depois transformado em Ministério da Cultura, implantou um programa chamado CREA: Una expedición por la cultura colombiana, que pretendia: “...rescatar, valorar, promover y difundir nuestras manifestaciones culturales a lo largo y ancho de todo territorio cultural” (COLCULTURA apud GAUTIER, 2003, p.30). O programa consistiu principalmente na realização uma série de “encuentros culturales” em todo país - em níveis municipais; departamentais; regionais e, finalmente, nacional - com o objetivo de inverter o tradicional fluxo cultural da capital para a periferia (GAUTIER, 2003, p.31). Em seu livro, Ana María Ochoa Gautier analisa com apuro este processo de expedições e festivais culturais. No Brasil, alguns exemplos se impõem. O mais famoso intitula-se Missão de Pesquisas Folclóricas, desenvolvida por iniciativa do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, sob a gestão de Mário de Andrade, um dos inventores das políticas culturais no Brasil nos anos 30. A expedição, inspirada na perspectiva de certo Modernismo pós-1924, que buscou redesco-

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brir o Brasil, teve como antecedentes a visita dos modernistas a Minas Gerais, acompanhando o poeta francês Blaise Cendrars, e, especialmente, as viagens de Mário de Andrade à Amazônia, de maio a agosto de 1927, e ao Nordeste, de dezembro de 1928 a fevereiro de 1929. O seu livro, O turista aprendiz, deriva de suas anotações destas viagens (ANDRADE, 2002). Nelas, Mário de Andrade recolherá vasto material sobre culturas e lendas populares, inclusive através de registros fotográficos. Algumas de suas obras posteriores incorporam tais materiais. Exemplo admirável: o romance Macunaíma, publicado em 1928 (ANDRADE, 1970). A expedição, chefiada por Luis Saia, partiu em 1938 de São Paulo em direção ao Norte e Nordeste, composta de quatro pesquisadores e técnicos “...com a missão de anotar, desenhar, fotografar, filmar, gravar manifestações da nossa cultura profunda e recalcada, além de recolher objetos, instrumentos e artefatos” (CALIL, 2010, p.3). O difícil manuseio e inadequada mobilidade dos equipamentos, então existentes, de gravação da imagem e do som, por certo, tornaram a missão bastante complicada, mas ela conseguiu resultados admiráveis. Nos anos 60 acontecem interessantes experimentos de caravanas culturais. A UNE-Volante aparece como a mais conhecida. Durante três meses, ela excursionou pelas capitais do país, veiculando ampla programação cultural, que envolveu atividades como: teatro, música, artes visuais, fotografia, cinema, debates etc. Nomes como Augusto Boal, Oduvaldo Viana Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Lyra, Carlos Estevam, Francisco de Assis, Nelson Lins de Barros, Armando Costa, Arnaldo Jabor, dentre outros, participaram das viagens ou nelas tiveram suas obras apresentadas (BERLINCK, 1984, p.38 e 39). A UNE-Volante pretendeu levar às massas uma cultura popular revolucionária. Aconteceram duas caravanas até a UNE ser proibida pela ditadura militar em 1964. O Conselho Nacional de Cultura que havia tentado realizar, em 1962, o projeto Trem da Cultura, em conjunto com a Rede Ferroviária Nacional, finalmente conseguiu viabilizar a “Caravana da Cultura”. O projeto, composto por apresentações de espetáculos de música erudita, coral, canto, distribuição de livros e discos de música erudita e popular, além de exposições de artesanato e arte infantil, percorreu os estados de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas. Após o golpe de 1964, com Pascoal Carlos Magno, secretário geral do CNC, afastado, ocorreu a suspensão do projeto (CALABRE, 2009, p.62). Dentre as experiências mais recentes, destaque para o projeto Cultura em Movimento: SECULT Itinerante, desenvolvido pela Secretaria de Cultura do Ceará, na gestão de Cláudia Leitão. O projeto se tornou o “carro-chefe”, em uma cristalina demonstração de sua relevância para secretaria. Ele conjugou um conjunto significativo de frentes: assessoria a prefeituras, cadastro de artistas e ativistas culturais, mapeamento do patrimônio material e imaterial, capacitação de agentes e atores culturais, eventos artístico-culturais, constituição de programas, redes e sistemas culturais, debates, audiências públicas, divulgação da cultura cearense, produção de

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conhecimento acerca da cultura, exposições e mostras culturais, documentação cultural, dentre outros. De agosto de 2005 a julho de 2006, a SECULT Itinerante percorreu o interior do Ceará, enquanto a SECULT nos Bairros movimentou Fortaleza de fevereiro a setembro de 2006. Dez cidades-polo regionais acolheram o projeto. Delas partiram as equipes da secretaria, que visitaram cada uma das dez macrorregiões do Ceará, durante 20 a 25 dias. O projeto conseguiu números expressivos em muitas de suas áreas de atuação (LEITÃO e GUILHERME, 2014). 1. VIAGENS E POSSIBILIDADES As múltiplas denominações, formatos e conteúdos não conseguiram obscurecer alguns traços compartilhados, que caracterizaram tais experiências. A rigor, todas elas se configuraram como viagens empreendidas por coletivos com finalidades culturais. Em sua Teoria da viagem: poética da geografia, Michel Onfray afirma a viagem como “...uma ocasião para ampliar os cinco sentidos. Sentir e ouvir mais vivamente, olhar e ver com mais intensidade, degustar ou tocar com mais atenção”. Para ele, na viagem “...o corpo abalado, tenso e disposto a novas experiências, registra mais dados que de costume” (ONFRAY, 2009, p.49). A abertura de sentidos para o novo propiciado pela viagem, não se atém às paisagens, flora, fauna, territórios e patrimônios tangíveis e intangíveis. Esta disposição corporal, mental, perceptiva abrange os mais diversos registros. De acordo com Onfray, por exemplo: “...a viagem solicita o desejo e o prazer da alteridade” (ONFRAY, 2009, p.60). O viajante aciona a experiência advinda das novas realidades e de alteridades, convidadas ao diálogo. Mas ele vai além. Em suas visitações, ele tece novos achados. Michel Onfray, com evidente exagero, escreve: “Na viagem, descobre-se apenas aquilo que se é portador” (ONFRAY, 2009, p.26). Melhor trocar “apenas” por “também”. A viagem como caminho de autoconhecimento, descobrimentos e transformações do próprio viajante possui vasta presença na literatura. O escritor cubano Alejo Carpentier, em diversos de seus livros, transita neste horizonte. O percurso viajado em Os Passos Perdidos faz o protagonista constatar que: “a selva, com seus homens resolutos, (...) tinham me ensinado muito mais” que arte, textos e livros. Logo depois, ele conclui: “...compreendi que a obra máxima proposta ao ser humano é de forjar seu destino” (CARPENTIER, 1985a, p.237). Em Concerto Barroco, a viagem de um rico índio mexicano à Europa serve para que ele compreenda que “... Às vezes é necessário afastar-se das coisas, por um mar no meio, para ver as coisas de perto” (CARPENTIER, 1985b, p.85). Ele constata que: “...muito se aprende viajando” (CARPENTIER, 1985b, p.88). Com a viagem, ele apreende sua identidade de índio mexicano. Ou seja, a viagem, ao confrontar outro mundo, permite que ele desvelar sua identidade, antes obscurecida. No recente romance de Mia Couto, um dos personagens centrais, o sargento português Germano de Melo, servindo em Moçambique, escreveu: “Foi preciso viver entre gente negra e estranha

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para me entender a mim mesmo” (COUTO, 2015, p.315). Em uma circunstância mais próxima, no tempo e no espaço, o baiano Aleilton Fonseca no livro O Pêndulo de Euclides escreve a viagem, geográfica e subjetiva, de Euclides da Cunha da sua crítica a Canudos até sua admiração ao povo sertanejo: antes de tudo um forte (FONSECA, 2009). As visitações a uma teoria da viagem e do tema viagem na literatura permitem esboçar algumas possibilidades do ato de viajar. Entretanto não se pode esquecer que, como qualquer fato humano, contradições perpassam as viagens. Se aquelas possibilidades existem, impossível esquecer outras viagens terríveis. O trafego de navios negreiros e sua opressão ainda hoje persistem, em especial, nas sociedades de classe em que vivemos, quando, além das contradições humanas, existem heranças e antagonismos de poder dilacerando o ambiente societário. Possível agora, feita esta ressalva, retornar às potencialidades das viagens e elucidar seus acionamentos por políticas culturais. O desenho realizado, ainda que não exaustivo, viabiliza confeccionar uma síntese das potencialidades destes deslocamentos coletivos culturais, em especial, tomando uma perspectiva iluminada por políticas orientadas por culturas cidadãs. Não se trata de construir um quadro em sua plenitude, mas de esboçar um panorama que configure as principais modalidades acionadas por estes empreendimentos coletivos e culturais, com seus potenciais, dilemas e riscos. Duas alternativas de expedições conformam os desenhos mais tradicionais. A caravana que pretende difundir repertórios culturais para populações distantes dos polos culturais. Levar novos repertórios apresenta-se como atitude bastante louvável, pois assegura acesso a modalidades de cultura antes impossíveis para determinadas populações. O risco subjacente a este ato generoso decorre de se imaginar que somente esta tem o status de cultura reconhecida, desprezando outros registros culturais inclusive aqueles existentes nos territórios e compartilhadas pelas populações. Neste caso, as missões se inscrevem no hoje contestado modelo de democratização da cultura, inaugurado por André Malraux: levar Cultura, sempre com C maiúsculo, para populações acusadas de desprovidas de cultura (LEBOVICS, 2000 e FERNANDEZ, 2007b). O segundo se refere às caravanas dedicadas a conhecer e mesmo reconhecer realidades culturais invisibilizadas por circunstâncias, preconceitos e discriminações sociais. Sem dúvida, esta atitude sublime sugere uma perspectiva positiva, pois implica em trabalhar a diversidade cultural, sua preservação e ampliação. O perigo se esconde e se encontra na entronização acrítica de culturas localizadas. Com facilidade este procedimento se traduz em populismo cultural. Tudo proveniente do povo aparece sempre com valoração positiva, olvidando que ele está perpassado de contradições, decorrentes de sua situação de subalternidade em uma sociedade de exploração capitalista. Desde Gramsci a percepção de complexidade está anotada. Existem caravanas que se orientam pela proposição de novos diálogos e intercâmbios. Posteriormente eles podem se estabelecer através da constituição de redes. A rigor, estas expe-

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dições para realizarem seu intento requerem conhecimento prévio dos repertórios culturais a serem trocados. Sem este saber anterior, o potencial de efetiva troca fica seriamente comprometido, quando não se transforma em mero espetáculo subsumido ao desejo de visibilidade. O conhecimento prévio solicitado facilita a conformação de redes mais duradouras. Estimular, criar e fomentar redes de cooperação cultural, dos mais diferenciados tipos, pode ser um dos motores de caravanas, mas quase nunca aparece como dado isolado e não prioritário. Outras expedições têm metas que guardam intimas correlações com as enunciadas. Trata-se de missões voltadas também à identificação de ativistas e instituições culturais. Da mesma maneira, quase sempre, elas não assumem esta busca com exclusividade. Outro tipo possível de missões se associa diretamente à discussão das políticas de cultura, inclusive de financiamento. O advento da atenção com a participação no campo cultural exigiu a abertura de canais para que ela se realize. As caravanas, ao lado de conferências, conselhos, colegiados e eventos, conformaram um destes canais possíveis de ausculta e participação das comunidades culturais. Nesta perspectiva, elas dialogam com a construção da cidadania cultural e sua exigência de debate público das políticas culturais (CHAUI, 2006). Mais que discutir políticas, em casos específicos, elas transmutam-se em instantes e instâncias de elaboração conjunta de políticas culturais para os territórios visitados ou até para regiões maiores: municípios, estados e nação. Uma observação se impõe. Tais alternativas das expedições não se configuram como opções excludentes. Em geral, diversas intenções se conjugam em uma viagem. As diferentes combinações possíveis dão o caráter e o tom destas expedições. Necessário pensar como tais caravanas, que combinam funções distintas, se traduzem em experimentos efetivamente realizados e como elas se articulam, ou não, com as políticas culturais desenvolvidas. 2. POLÍTICA DE TERRITORIALIZAÇÃO E EXPEDIÇÕES CULTURAIS O governo Jaques Wagner, a partir de 2007, (re)pensou a regionalização da Bahia através da noção de territórios de identidade. Ela agregou os 417 municípios baianos em 26 e depois 27 regiões. O processo de regionalização consiste em impor um princípio de divisão, conhecida e reconhecida, do mundo que legitima as fronteiras do território, conforme Pierre Bourdieu (1989). No caso da Bahia, a noção esboçada pela Secretaria de Planejamento e assumida pelo governo estadual trouxe inscrita em sua formulação a dimensão cultural, pela via da identidade, diferente de muitas opções que esquecem tal horizonte e acionam, de modo primordial, aspectos de geografia física (como clima, flora, fauna, paisagens, dentre outras) e econômicos (produção predominante etc.). Desde o primeiro momento, a Secretaria de Cultura percebeu esta novidade e trabalhou com afinco e sintonia com esta política de territorialização. Ela se destacou entre as secretarias estaduais por sua decidida inserção nesta política.

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A absorção da perspectiva estadual em singular política cultural se fez através de inúmeras iniciativas. Logo, a secretaria criou a Superintendência de Desenvolvimento Territorial da Cultura, instância responsável por formulações e ações destinadas a esta área. Depois, ela desenvolveu: representantes territoriais; conferências territoriais; circulação por territórios das etapas finais das conferências estaduais de cultura (Feira de Santana, 2007; Ilhéus, 2009; Vitória da Conquista, 2011 e Camaçari, 2013); deslocamento dos centros culturais da secretaria para a estrutura da superintendência, visando alinhar suas iniciativas com o processo de territorialização; descentralização das atividades da secretaria, observando uma lógica territorial em seus registros de atuação (artes, bibliotecas, culturas identitárias e populares, formação, patrimônio material e imaterial etc.); desconcentração do financiamento da cultura, antes voltado quase exclusivamente para Salvador, buscando democratizar o acesso das comunidades culturais aos recursos públicos; reforma do Conselho Estadual de Cultura, com a inclusão de representação territorial, que perfaz metade dos dois terços de membros da sociedade civil. As publicações e os relatórios da secretaria, citados na bibliografia, indicam resultados alcançados nestas e em outras áreas. Diferente do que aconteceu no Ceará, este conjunto de atividades, apesar de estar intimamente vinculado às expedições culturais, por via da política de territorialização, não estava inscrito necessariamente nas excursões culturais e não se circunscreveu a um período datado da gestão. Elas se desenvolveram em rico diálogo com tal política e se configuraram em dois projetos distintos e complementares: a FUNCEB Itinerante e a Caravana Cultural da SECULT-BA. A FUNCEB Itinerante como a denominação indica se constituiu em uma iniciativa da Fundação Cultural do Estado da Bahia, instituição ligada à secretaria e agora voltada ao campo das artes. Lançada em 2011, com periodicidade anual, as expedições visitaram 26 municípios baianos em quatro edições. A perspectiva territorial conformou a escolha de cidades polo em 26 dos 27 territórios de identidade existentes, ficando de fora apenas Salvador. As visitas aconteceram, em cada edição, a seis ou sete municípios, sempre distribuídos em diversas regiões da Bahia. Deste modo, a FUNCEB Itinerante percorreu grandes distâncias. Ela realizou reuniões, extensivas e intensivas, dos diretores, coordenadores e assessores da Fundação com artistas e agentes culturais. Este diálogo direto envolveu mais de mil ativistas culturais. Nele, a equipe da FUNCEB levou informações para as comunidades culturais, apresentou os responsáveis e os programas desenvolvidos, ouviu os artistas e buscou um conhecimento mais apurado da realidade cultural e artística de cada município e território. Tal imersão, quase sempre de duas semanas, permitiu inclusive maior entrosamento da própria equipe da Fundação. Receberam a visita da FUNCEB Itinerante: Alagoinhas, Barreiras, Ilhéus, Itaberaba, Senhor do Bonfim, Vitória da Conquista em 2011; Cruz das Almas, Euclides da Cunha, Jequié, Santa Maria da Vitória, Seabra, Teixeira de Freitas em 2012; Itapetinga, Jacobina, Macaúbas, Paulo Afonso, Porto Seguro,

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Serrinha, Valença em 2013 e Amargosa, Caetité, Feira de Santana, Ibotirama, Irecê, Juazeiro, Pintadas em 2014. O relatório de gestão da Fundação Cultural reconhece que ” ..apenas com a abertura deste olhar, para além da compreensão do estado a partir da realidade da capital, é possível apontar para uma mudança real na política estadual” (FUNCEB, 2014, p.34). De acordo com o relatório, a itinerância da FUNCEB, com seu processo de diálogo, permitiu divulgar políticas públicas de artes; criar, formatar e reformar formulações e ações, a exemplo do Programa de Difusão das Artes, que contemplava artes integradas; do Calendário das Artes, com a implantação de editais simplificados e territorializados para financiar as artes; além de promover a divulgação das atividades artísticas desenvolvidas nos territórios e reestruturar procedimentos de comunicação institucional, visando maior aderência e penetração das mensagens nos territórios de identidade. A FUNCEB Itinerante teve papel relevante também no estímulo à organização do campo das artes, na participação dos artistas nas diferentes etapas das conferências de cultura e, em especial, na construção coletiva de sete colegiados setoriais das artes: artes visuais, audiovisual, circo, dança, literatura, música e teatro. Ela inspirou as caravanas culturais capitaneadas pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, a partir de janeiro de 2012. 3. AS CARAVANAS CULTURAIS DA SECULT-BA A inspiração da FUNCEB Itinerante não fez das caravanas da secretaria uma mera repetição, ainda que mais abrangente em termos temáticos. Em verdade, elas atenderam a uma formulação distinta do projeto da Fundação. Seu propósito se distanciou da meta de visitar todos os territórios de identidade da Bahia. Em uma perspectiva nitidamente complementar ao projeto anterior, as caravanas priorizaram mergulhar em conjuntos de municípios próximos e situados em territórios distantes e desprivilegiados do estado, com exceção da primeira caravana realizada em janeiro de 2012 na Chapada Diamantina. As três expedições seguintes, de modo deliberado, optaram por regiões afastadas e com história de pouca atuação da SECULT: oeste de Bahia (2012), sul da Bahia (2013) e sertão semiárido da Bahia (2014). Para esboçar um breve relato das caravanas e do modelo desenvolvido recorre-se às publicações da secretaria e às observações do autor, como membro das caravanas, às anotações em diários de campo escritos pelo autor, ainda não editados, bem como ao livro publicado pelo autor com textos escritos no período, todos referenciados na bibliografia. A primeira caravana teve contornos bem singulares. Intimamente associada ao trabalho dos circuitos arqueológicos desenvolvido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), órgão vinculado à secretaria, a primeira edição expressou o projeto e a colaboração com a Universidade Federal da Bahia e as prefeituras locais. O IPAC desenhou e organizou a viagem. Sediada em Lençóis, ele acolheu visitas a sítios arqueológicos localizados em Lençóis, Nova

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Redenção e Iraquara, além de percorrer patrimônios materiais, em processo de tombamento, na cidade de Wagner, a exemplo de antigo hospital e centro educacional, instalados por missão presbiteriana no interior da Bahia nos inícios do século XX, e em povoados remanescentes do período da exploração de diamantes na Chapada. Reuniões, em torno do projeto, aconteceram com comunidades envolvidas e prefeituras em Lençóis e Wagner. Em Nova Redenção, meio fora do script, devido a não presença do projeto no município, ao lado da visitação à gruta onde se localizou esqueleto quase completo de uma preguiça gigante, ocorreu um animado encontro, no qual se apresentaram diversas atrações culturais, inclusive seu prefeito, um ativista cultural, que construiu um singelo e movimentado espaço cultural no pequeno município de sete mil habitantes. O conhecimento de algumas expedições culturais, a experiência da FUNCEB Itinerante e as marcantes impressões deixadas pela primeira caravana em todos seus participantes, por certo, criaram os alicerces para a construção do modelo de caravana que passou a ser implantado ainda em 2012 pela secretaria. Tal tessitura vigorou na segunda, terceira e quarta edições, com pequenos e necessários ajustes, derivados das experiências adquiridas. Depois da seleção e do planejamento realizados na esfera da secretaria, equipe de pré-produção percorria os municípios escolhidos contatando responsáveis municipais de cultura, prefeitos e comunidades culturais. Tais diálogos viabilizavam a definição de local, dos horários e da programação. Cada caravana compreendia uma apresentação de atrações culturais locais, por vezes também de municípios aderentes, decidida por cada cidade sem interferência da secretaria. Depois das duas horas, em média, da mostra cultural, acontecia uma exposição sucinta das políticas culturais da secretaria e uma conversa aberta com as autoridades e as comunidades culturais. Além destas atividades, ocorreriam visitas a grupos e instituições culturais dos territórios, inclusive aquelas apoiadas, como pontos de cultura, e aos poucos espaços pertencentes à secretaria, dada sua reduzida estrutura no interior da Bahia. A conformação deste modelo implicou em melhor planejamento e documentação, além de material visual mais elaborado, como cartaz e ônibus plotado. A segunda caravana teve como destino o oeste da Bahia, com suas terras pós e em torno do Rio São Francisco. Território pertencente à Pernambuco até a Confederação do Equador, ele apresenta grande distância do restante da Bahia e de sua capital. Durante muitos anos manteve um isolamento notável. Sua incorporação recente à dinâmica estadual se deu através de zonas exploradas pelo agronegócio, com levas de colonos de outros estados, principalmente gaúchos. Devido à distância e localização nas fronteiras da Bahia, a região mantém forte intercâmbio e presença, inclusive cultural, de outros estados, como Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Piauí. A predominância de cerrados aproxima a região de alguns destes estados, nos quais o cerrado aparece como bioma dominante. A caravana circulou por Ibotirama, Paratinga, Bom Jesus da Lapa, São Felix do Coribe, Santa Maria da Vitória, Correntina, São Desidério e Barreiras. O secretario com uma pequena

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comitiva esteve ainda em Carinhanha e Malhada. Nelas aconteceram encontros com autoridades culturais e visitas a espaços culturais, como em Carinhanha, onde deu para ver o trabalho cultural da prefeita Chica do PT, e reunião na câmara municipal com autoridades e comunidade cultural em Malhada. Destaques para a ativa vida cultural apresentada em Ibotirama; para as polêmicas ensejadas em Santa Vitória da Vitória e em Barreiras; para algumas iniciativas culturais visitadas, a exemplo de pontos de cultura e de leitura, inclusive instalados em acampamentos de sem-terra e para as diversas e muitas vezes surpreendentes manifestações culturais marcantes na região, como a presença da capoeira e da música inspirada pelo Rio São Francisco. Esta potencialidade musical permitiu realizar um espetáculo com músicos desta região na segunda Celebração das Culturas dos Sertões, ocorrida em Juazeiro da Bahia, em 2013. Um interessante diálogo intercultural entre oeste e norte da Bahia, integrados pelas águas encantadas do São Francisco. Da caravana resultou a convicção da urgência de uma política cultural específica para uma região tão singular como o oeste da Bahia. Outro destino distante da capital e de relações mais corriqueiras com o estado: o sul da Bahia, objeto da terceira caravana. Ela transitou por Teixeira de Freitas, Nova Viçosa, Caravelas, Alcobaça, Prado, Itamaraju, Eunapólis, Itapebi, Belmonte, Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, onde se localiza o único centro cultural da secretaria na região. Pequena comissão e o secretário viajaram também à Itanhém para reunião com prefeitos desta cidade e de Vereda, Lamarão e Igaporã, além de um vereador de Medeiros Neto. Comitivas culturais de Guaratinga e de Itagimirim se fizeram presentes nos encontros de Eunapólis e Itapebi, respectivamente. Em suma, dos 21 municípios dos dois territórios de identidade visitados, 17 de algum modo dialogaram com a caravana. No sul emergiu a notável força das culturas negras, em uma feição mais estilizada, turística e copiada de Salvador, como aconteceu principalmente nas litorâneas cidades de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Prado, ou em uma pegada mais de raiz, como ocorreu em Nova Viçosa, Caravelas e Belmonte, mais apartadas do turismo. Em Nova Viçosa, além da visita ao excepcional sítio Natura de Frans Krajcberg, brilharam movimentos de dança e música negras, provenientes do povoado de Helvécia, antigo quilombo. Em Caravelas, a surpreendente presença de duas escolas de samba, com baterias, passistas, porta estandartes, que galvanizam o carnaval da cidade, demonstraram que a Bahia possui escolas de samba, desmentindo a afirmação reiterada de sua inexistência, alimentada por um olhar soteropolitano. Em Belmonte, uma autêntica festa de largo. Lotada pela população a praça São Sebastião acolheu inúmeras atrações culturais: filarmônicas, quase centenárias; manifestações de culturas populares e exuberante presença negra. A constatação da marcante vida da cultura negra na região, para além do Recôncavo da Bahia; a vibrante cena musical semiprofissional quase urbana de Itamaraju; as expressivas danças embalando corpos e as culturas indígenas de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, descontadas suas concessões à lógica do turismo, compõem a cena cultural diversa e rica da região.

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A quarta e última caravana viajou pelas terras semiáridas do sertão baiano. Região mais próxima de Salvador, muitas vezes castigada pela seca e pelo clima difícil, ela também sofria uma frágil atuação da Secretaria de Cultura, inclusive sem nenhum equipamento próprio instalado. Aliás, em muitos dos municípios visitados pelas caravanas nunca o secretário ou a secretaria marcaram presença, como bem observavam seus habitantes. Região debilitada economicamente pelas carências e dificuldades sócio geográficas, ela mostrou sua riqueza na organização comunitária, história de lutas e manifestações culturais. Cabe citar os exemplos mais contundentes. A potente herança do Conselheiro traduz-se em diversificadas cenas culturais: música, teatro, literatura e no emblemático parque e memorial de Canudos, dedicado a manter viva a história dos sertanejos. A cultura musical dos sertões torna-se visível em acontecimentos tão distintos como o ambicioso projeto da Orquestra Santo Antonio, de Conceição de Coité, e a Orquestra Sanfônica de Serrinha. O artesanato de sisal, organizado na cooperativa em Valente, transita no Brasil e no exterior. A imensa presença indígena em Banzaê, com aproximadamente um terço da população do município, mantém e assume com vigor seus traços culturais. Antes de tudo, um forte ambiente identitário, mas organizado e articulado em conexões, por vezes, atualizadas. A caravana trafegou por Nova Soure, Cipó, Ribeira do Pombal, Banzaê, Tucano, Euclides da Cunha, Canudos, Monte Santo, Cansanção, Valente, Conceição do Coité e Serrinha. 4. OBSERVAÇÕES ACERCA DAS CARAVANAS E POLÍTICAS CULTURAIS Dois perigos inerentes às expedições culturais, a visão civilizadora, tipo levar a cultura ao povo, e o olhar populista, de fazer uma apologia a quaisquer produtos da cultura popular, não atingiram as caravanas. Longe de tais riscos, elas se pautaram por uma genuína busca de conhecer as complexas e diversas manifestações culturais existentes na Bahia. Atitude importante, quando se sabe que os quadros dirigentes da Secretaria de Cultura tradicionalmente provêm de Salvador e algumas poucas cidades. Esta educação da equipe, bem como maior conhecimento e coesão alcançados através da participação nas expedições, consolidaram patamares mais qualificados de formulação e de atuação da secretaria. Superar a visão soteropolitana do ambiente cultural baiano constituiu-se em passo fundamental para pensar e realizar uma efetiva política cultural para toda Bahia. Não se tratou só de conhecer a diversidade, mas de reconhecê-la através do aval a atores e atividades, muitas vezes, desconsiderados, discriminados e mesmo perseguidos. O conhecimento / reconhecimento ensejou contatos com agentes e instituições culturais, essenciais para a conformação de redes, formais e informais, que incorporaram a participação de comunidades culturais ao trabalho da secretaria, democratizando sua atuação, em diferentes ambitos, a exemplo da realização e seleção de projetos; da maior presença da secretaria no estado e de melhor equilíbrio na distribuição de recursos financeiros. O fundo de cultura não só foi continuamente

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ampliado entre 2011 e 2014, passando de 24 milhões para 41 milhões neste último ano, como teve sua atuação melhor repartida entre capital e interior, que multiplicou quase por três sua participação percentual. Cabe ressaltar que a formação de redes poderia ser mais potencializada se a caravana tivesse organizado uma estrutura dedicada especificamente a esta relevante tarefa. O aprimoramento dos procedimentos das expedições, constante nestes anos, entretanto não as transformou em processos plenamente eficazes. Elas ainda pecaram em diversos aspectos, em especial, na articulação com as comunidades culturais locais e com outras atividades desenvolvidas pela secretaria. Em alguns municípios as apresentações e os debates, apesar da garantida não formalidade, ganharam um teor por demais oficialista, subordinando uma expressão mais livre e talvez mais crítica das comunidades culturais. Uma articulação mais larga com ativistas e instituições culturais poderia minorar esta ênfase, decorrente da atuação mais incisiva dos dirigentes locais. Em contraponto, cabe registrar que a mobilização das autoridades municipais pelas caravanas mostrou-se positiva para uma maior inserção da cultura na cena política e administrativa do estado. Processo similar ocorreu através da realização de conferências municipais e territoriais de cultura. A (des)articulação que se demonstrou mais problemática derivou da não concretização de medidas que deveriam continuar e complementar as expedições. A constatação da necessidade de políticas culturais específicas para determinadas regiões, como o oeste e o sul, por exemplo, não teve desdobramentos devidos na dimensão exigida. Iniciativas aconteceram, mas nada que configurasse uma política mais continuada e sistemática para tais regiões. A fragilidade da estrutura da secretaria, a dificuldade de recursos humanos e financeiros e outras questões internas se tornaram evidentes, apesar de esforços no sentido de construção das políticas. Com relação ao oeste uma proposta chegou a ser esboçada, mas não discutida, continuada e implantada. Esta desconexão deprimiu o impacto das caravanas em algumas de suas potencialidades, como aprimorar políticas de territorialização, fundamento da existência das expedições. A formulação e implantação de políticas culturais regionais, através de procedimentos dialógicos, fortaleceriam em muito a territorialização da cultura na Bahia. Apesar destas e de outras limitações, as caravanas se converteram em instrumentos nada desprezíveis para as políticas públicas de cultura. Por certo, elas ocuparam e podem continuar ocupando um lugar de destaque no seu desenvolvimento de políticas culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. São Paulo, Martins, 1970. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2002.

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POLÍTICA CULTURAL E CULTURA DA POLÍTICA: UMA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA DO PROGRAMA CULTURA VIVA Ariel Nunes1 RESUMO: Este texto é fruto de algumas reflexões sobre o Cultura Viva, programa nacional que é tema de pesquisa de doutorado em Antropologia Social. Para abordar a formulação e implementação do programa, estou desenvolvendo uma pesquisa de campo (etnografia) com os gestores de cultura, nos espaços onde as ações do Cultura Viva são elaboradas e implementadas. Trago aqui uma perspectiva etnográfica centrada no diálogo com os gestores e idealizadores do programa, que participam ou participaram da elaboração e consolidação do Cultura Viva - inaugurado pelo Ministério da Cultura em 2004. O programa é estruturado por princípios e práticas orientadas para a diversidade cultural e essa particularidade constitui o problema central da pesquisa em andamento. PALAVRAS-CHAVE: política cultural, cultura viva, antropologia política, ministério da cultura.

1. APRESENTAÇÃO A proposta de uma pesquisa com os gestores do Ministério da Cultura implica aqui em uma etnografia “através do estado”2 - compreendido a partir das práticas e narrativas produzidas por uma comunidade institucional que está em relação com coletivos e artistas contemplados pelo Cultura Viva. Procurarei evitar compreender o estado como uma forma de organização política administrativa racional e centralizada. O interesse aqui está nas suas transversalidades, que podem ser observadas a partir das redes de implementação e participação do Cultura Viva. O diálogo com esses interlocutores nos ajuda compreender a relevância da diversidade cultural para implementação desse programa nacional, que recentemente se tornou Lei federal. A noção de gestor será aqui aplicada em um sentido amplo, que estende aos secretários, coordenadores e diretores dos setores internos do Ministério da Cultura que estão direta ou indiretamente envolvidos na implementação do programa. Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). [email protected] Ao invés de utilizar Estado, optei em manter estado em minúsculo como um recurso de escrita para evitar compreendê-lo como uma unidade estável, centralizada ou monolítica. Autores como Veena Das ((2008), John Gledhill (1994); Michel Rolph Trouillot (2001) também optam por manter estado em minúsculo, reforçando o caráter dinâmico de tal categoria. 1 2

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Considero aqui que a formulação, implementação e execução do programa Cultura Viva indicam a participação de diversos agentes (institucionais e não institucionais). No plano propositivo, de formulação do programa, destaco aqui os idealizadores (como Célio Turino, Antônio Augusto Arantes entre outros); na implementação do Cultura Viva estou considerando os ex-gestores que efetivaram o programa em 2004 e os atuais gestores que implementam e sucedem o programa. No que diz respeito à execução do programa considero aqui, como atores chave, os artistas e demais contemplados pelo Cultura Viva. É importante contextualizar o lançamento do programa Cultura Viva, que ocorre dentro de um quadro de mudanças no setor administrativo do MinC e no cenário político brasileiro3. O primeiro edital dos Pontos de Cultura ocorreu em 2004; momento em que a recém-criada Secretaria de Programas e Projetos (SPP) discutia a proposta das BACs – Bases de Apoio à Cultura. As BACs propunham a construção de centros culturais pelo Brasil (Turino, 2009). Estes centros culturais seriam estruturas pré-montadas com teatro, estúdio e salas para oficinas e shows. O projeto das BACs foi formalmente extinto através da portaria nº 156 de 6 de Julho de 2004, momento em que se revogou a portaria nº 525, implementando o Programa Cultura Viva. Junto ao lançamento do Cultura Viva, também foram criados os Pontões de Cultura, responsáveis pela articulação dos Pontos de Cultura e pela capacitação de produtores e gestores culturais. Ainda em 2004, Célio Turino já Secretário da SPP/MinC, relatou que as BACs eram um projeto arquitetônico sem conceito, uma estrutura sem fluxo (Turino, 2009). O Cultura Viva é um programa nacional recente que aponta para um novo paradigma nas políticas públicas culturais. Os Pontos de Cultura são a principal ação do programa e são O primeiro ano do governo do Presidente Luiz Inácio da Silva (2003) marca uma reestruturação do MinC por meio do Decreto 4805/03, que configurou da seguinte forma: uma Secretaria Executiva, com três diretorias (Gestão Estratégica, Gestão Interna e Relações Internacionais). Seis Representações Regionais (em Minas, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo) e seis Secretarias (Secretaria de Políticas Culturais (SPC), a Secretaria de Articulação Institucional (SAI), a Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC), a Secretaria de Programas e Projetos Culturais (SPPC) - atualmente nomeada de Secretaria de Cidadania Cultural (SCC) - a Secretaria do Audiovisual (SAV) e a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural (SID). Pela primeira vez o Ministério da Cultura realizou concursos públicos para cargos administrativos e fez convênios com o IBGE e o IPEA - que promoveram pesquisas, estatísticas e a formulação de indicadores para auxiliar na criação de políticas públicas. A reforma da Lei Rouanet ocorreu junto a seminários intitulados “Cultura para todos” realizados nas seis Representações Regionais. Neste mesmo ano o Ministério promoveu fóruns de discussões entre artistas de diversos segmentos. O Programa Cultura Viva foi inaugurado com cinco ações: Pontos de Cultura, Escola Viva, Ação Griô, Cultura Digital e Agente Cultura Viva. Todas estas ações vinculadas aos Pontos de Cultura e articuladas por eles. Com o desenvolvimento do Programa Cultura Viva, outros prêmios e ações foram concebidos. O Programa se estendeu com a criação do Mais Cultura (2007), que possibilitou que a Secretaria de Cidadania e Cultura (SCC/ MinC) firmasse convênios com estados e municípios. Estes convênios descentralizaram os recursos do Programa e reforçaram as redes dos Pontos de Cultura conveniadas aos estados e municípios. Desde 2007 a seleção de Pontos de Cultura passou a ser realizada com os estados ou os municípios e não mais diretamente ao Ministério da Cultura. Junto ao Mais Cultura, o MinC também estabeleceu parceria com outros Ministérios, com o Congresso Nacional, Bancos Públicos e organismos internacionais. Dentre as parcerias destas ações estão: o Banco do Brasil,a Caixa Econômica Federal, o Banco da Amazônia (BASA), o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDS) O Programa Cultura Viva se estende também aos Pontões e Pontinhos de Cultura. 3

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compostos por artistas, grupos e coletivos culturais contemplados via editais públicos. Operam através do modelo de gestão compartilhada entre MinC, Secretarias estaduais e municipais de Cultura, artistas, produtores e agentes culturais. O Cultura Viva estaria inserido em uma política que propõe o reconhecimento, inclusão e fomento daqueles que não protagonizaram as políticas públicas culturais antecedentes, a dizer: artistas populares, mestres e griôs, artistas circenses, atividades culturais de periferias, de mídias digitais comunitárias, assim como atividades culturais produzidas por comunidades indígenas e de terreiros. O programa descentralizou convênios, criou grupos organizados em redes e veio acompanhado de expectativas de participação de novos atores, mas também encontrou obstáculos na sua execução, como descontinuidades de gestão, dificuldades de lidar com prestações de contas e atrasos no repasse das parcelas dos convênios com os Pontos. Em julho de 2014 foi sancionada a Lei 13.018 (ou a Lei Cultura Viva), que define o programa enquanto “política do Estado Brasileiro” (MinC, 2014), sugerindo perenidade às ações do programa, independente das alternâncias de gestão na administração pública. Por estar incluída em alguns grupos virtuais4 dos Pontos de Cultura de Goiás e região Centro-Oeste, pude acompanhar a elaboração do projeto, a pressão pela aprovação e a consolidação do Cultura Viva enquanto lei, assim como a repercussão desse processo entre os artistas e produtores culturais. Observando e conversando com os coordenadores dos Pontos de Cultura (os ponteiros), pude perceber a existência de campos de forças, que a princípio podem aparentar uma simples dicotomia entre estado e sociedade, ou entre poder público e artistas, mas que se revelam como processos muito mais complexos5. Em 2014, semanas antes da aprovação da Lei Cultura Viva, assim escreviam os ponteiros em um dos seus grupo virtuais: Salve Ponteirada: Socializando informação.... A CARAVANA VAI PARTIR: A pé, de avião, pela estrada, de barco ou bicicleta, tem gente de todo o Brasil se mobilizando para estar em Brasília nos dia 01 e 02 de julho, invadindo o planalto, a esplanada dos ministérios e o congresso nacional com as cores, tambores, demandas e interesses da cultura brasileira, por um país melhor, mais criativo e diverso. Organize o seu ponto, seu grupo, sua trupe e venha participar deste assalto poético à capital Os grupos virtuais competem aqui principalmente, ao pcgoias@googlegroups, pontosdeculturadf@googlegroups, entre outros da região centro oeste nos quais estou incluída. Nesses grupos os coordenadores dos Pontos de Cultura (chamados de ponteiros) organizam suas atividades, compartilham dúvidas de editais e organizam reuniões com os gestores de cultura. Os ponteiros também participam nas redes sociais como Facebook, Twitter e Whatsapp. 5 . Durante o mestrado (Nunes, 2012) observei que a maior parte dos ponteiros realizam a captação de recursos, coordenam as atividades culturais e mediam as relações com os gestores municipais, estaduais e do MinC. No entanto, alguns ponteiros também são gestores (nas secretarias de cultura locais, por exemplo). Ou seja, muitas vezes um artista pode ser gestor, o que constitui uma das complexidades desse campo de estudo. Assim compreendemos que oposições do tipo Estado-sociedade, ou poder público- artistas não se aplicam facilmente ao Cultura Viva. 4

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federal! Tem ônibus saindo do Rio de Janeiro e de outros estados.Para fazer parte desta caravana envie um email para: [email protected] E assim seguiram os ponteiros pela esplanada, em seu assalto poético pela aprovação da lei Cultura Viva. O êxito na demanda dos ponteiros foi comemorada e pulverizada nos seus grupos virtuais. Naquele momento foi recorrente ouvir dos artistas contemplados pelo Cultura Viva que é um dever do estado fomentar as manifestações artísticas e culturais do país, ao passo que seria um direito dos artistas participarem das políticas públicas culturais. De acordo com os ponteiros, a Lei Cultura Viva garantiria esses direitos, desde que a administração das secretarias de cultura (municipais e estaduais) e a própria gestão interna do MinC estejam em um “diálogo harmonizado” (comentou um ponteiro em uma das respostas ao e-mail citado). A postura e comunicação dos gestores com os artistas parece ser um aspecto importante para os conveniados ao Cultura Viva. Tal expectativa pode ser observada na recente nomeação do ministro Juca Ferreira (2015), que em seu discurso de posse sustentou a diversidade cultural como um componente importante para a construção de políticas públicas culturais, “compreendendo a cultura sob a dimensão simbólica, econômica e de direito” (Ferreira, 2015). O discurso e a cerimônia de posse do ministro Juca de Oliveira em 2015 contou com a presença de milhares de artistas e agentes culturais no Teatro Funarte Plínio Marcos, em Brasília. Todos pareciam ansiosos, mas satisfeitos com o retorno do ministro. Em conversas com ponteiros, agentes e produtores culturais pude perceber que os ministérios de Gilberto Gil (2003-2005) e Juca Ferreira6 são apontados como os mais bem sucedidos, especialmente porque esse período corresponde ao lançamento, implementação e desenvolvimento do Cultura Viva. Postura bastante distinta da que pude acompanhar na pesquisa de mestrado (Nunes, 2012), no contexto da gestão da ministra Ana de Hollanda7. O retorno de Juca Ferreira ao MinC (2015) parecia significar para muitos artistas a manutenção do programa (e a garantia de direitos e deveres) com a aprovação da Lei Cultura Viva, que era aguardada pelos ponteiros que conheci, desde 2010. Não somente os artistas contemplados pelo Cultura Viva referenciam as gestões de Gil e Juca. Autores como Barbalho (2007), Botelho (2007), Rubim (2006 e 2007) e Calabre (2007 Juca Ferreira foi ministro entre 2005 e 2009, momento importante (implementação) do Cultura Viva, e retornou ao mesmo cargo recentemente em 2015. 7 Naquele momento, a hipótese de descontinuidade do programa foi reforçada em Junho de 2011, quando ocorreu a Marcha dos Pontos de Cultura que contou com a presença de 284 ponteiros que se deslocaram até Brasília para uma audiência com a Ministra Ana de Hollanda a fim de reivindicarem o fortalecimento do programa e cobrar o cumprimento dos compromissos assumidos pela gestão anterior. As cobranças não diziam respeito apenas aos pagamentos de prêmios e editais, mas também ao posicionamento da ministra em relação à Lei Cultura Viva. Na ocasião foi entregue à Ministra o Manifesto dos Pontos de Cultura, e também foi protocolada uma carta indicando nomes para compor as comissões de acompanhamento dos editais e dos Pontões de Cultura. O encontro marcou um diálogo direto entre ponteiros e a Ministra, mas posteriormente observei que as reivindicações dos ponteiros não foram totalmente acertadas ou resolvidas. Cf: Nunes, 2012. 6

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e 2009) ressaltam mudanças significativas nas gestões desses dois Ministros, ao ampliarem a noção de cultura para além da erudita, reforçando a diversidade cultural como elemento estruturante dessas políticas. Percebemos que os antecedentes e o contexto de implementação do Cultura Viva são simultâneos a diferentes aspectos da política nacional, “desde a mudança na troca de partidos no executivo federal, até os aspectos simbólicos dos personagens envolvidos na esfera pública da cultura na época” (Correia, 2013). Ao mesmo tempo, é importante salientar que a reorientação da noção de cultura e as mudanças ocorridas nos setores administrativos do MinC, não estão isoladas de outras instâncias internacionais e processos multilaterais. Neste sentido, o Cultura Viva indicaria mudanças de paradigmas que por sua vez, ocorrem em níveis que vão além da relação local-nacional. Mas isto não pressupõe uma relação de causa efeito, nem de parte/todo. Compreendo essas relações multilaterais como aspectos inerentes ao atual contexto e processo político-cultural. Em nível internacional e multilateral, observamos um consenso em termos de políticas que contemplem e promovam a diversidade cultural. Em nível nacional temos a formulação de uma política em consonância com esses princípios8. O Cultura Viva pode ser analisado sob várias abordagens e estratégias de pesquisa. Durante o mestrado (Nunes, 2012) realizei uma etnografia com os artistas envolvidos na execução do Cultura Viva, abordando o modo de organização (virtual, inclusive) dos ponteiros conveniados. Para o doutorado estou interessada em compreender como a noção de “cultura” é engendrada na atual agenda política do MinC. Se o programa Cultura Viva indica uma reorientação da ideia de cultura brasileira e uma reformulação no modo de se fazer política pública cultural, a noção de diversidade cultural parece estar no centro dessas mudanças. 2. DIVERSIDADE CULTURAL E CIDADANIA COMO EIXOS DO CULTURA VIVA O Programa Cultura Viva - Programa Nacional de Promoção de Cidadania e da Diversidade Cultural - carrega em seu próprio nome os termos “diversidade cultural” e “cidadania”. Nos discursos dos gestores de cultura e nas ações implementadas pelo MinC desde 2003, percebemos que a temática sobre diversidade cultural não só orienta, mas estrutura as políticas públicas culturais, deslocando a ideia de uma nação homogênea, para heterogênea e diversa; ao mesmo tempo em que amplia a noção de patrimônio material para o imaterial, do erudito ao popular. São nesses deslocamentos que problematizamos a diversidade cultural. Importante lembrar que a diversidade cultural é reforçada como projeto político a partir de dois marcos internacionais: a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001) e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) – ambos documentos elaborados pela UNESCO. A Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001) constitui o primeiro instrumento internacional que centraliza questões referentes à diversidade cultural. Este documento, no qual o Brasil é um dos países signatários, também apontou para o reconhecimento das comunidades tradicionais e sugeriu o desenvolvimento de políticas ligadas a cultura imaterial.. 8

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Quando afirmo “nação homogênea”, me refiro à idéia de construção de uma identidade nacional, que durante a república velha, aparecem as primeiras tentativas de pensar a sociedade brasileira a partir da interação das três raças (Souza, 2000; Oliven, 2006; Barbalho, 2007; Calabre, 2007 e 2009). A proposta de criação de uma “identidade nacional”, marcada principalmente pelo movimento modernista, não contava diretamente com a participação de instituições estatais. Já na república nova, conforme observa Oliven (2006), há uma centralização do poder, o que faz com que as instituições assumam a tarefa de criação da identidade nacional9. Com a redemocratização do país e o fim do regime militar, o tema da “diversidade” toma força nas regionalidades, reforçada em expressões do tipo“cultura gaúcha”, “cultura nordestina” “cultura sertaneja” etc (Oliven, 2006). No contexto desta pesquisa em andamento, observo que a diversidade cultural é um termo operante tanto nas esferas institucionais - secretarias e próprio MinC - como nos espaços participativos dos ponteiros, nas entrevistas com idealizadores do programa, artistas e demais agentes culturais. A diversidade cultural, portanto, pode ser aqui compreendida como o grande problema desta pesquisa, e também, como uma uma categoria analítica e local de uma etnografia transversal. Ou seja, a diversidade cultural é um termo operante tanto nas esferas institucionais dos setores internos do MinC, como para os ideólogos do programa e para os artistas contemplados pelo Cultura Viva. O aspecto mais latente do Cultura Viva é de reconhecer a diversidade cultural nas localidades ou em suas singularidades. De se fazer o “do-in antropológico” (Gil, 2003) nestes pontos que manifestam e produzem cultura: “(...) toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais da Nação, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país (...). Porque a cultura brasileira não pode ser Em meio a esse contexto, em 1936, Mário de Andrade foi solicitado para a criação de uma instituição nacional de serviço ao patrimônio histórico. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi inaugurado em 1937 e indicava a preocupação do Estado com a “memória nacional” - muito embora esta “memória” se concentrasse em uma “história oficial da nação”, ou ou na história dos vencedores (Benjamin, 1987). A noção de cultura brasileira durante este período era marcada pela perspectiva da “mestiçagem das três raças”, de uma “cultura do consenso em torno dos valores da elite brasileira” (Barbalho, 2007). A obra Casa Grande e Senzala, publicada 1933, de Gilberto Freyre, também pode ser observada através do seu discurso positivo sobre a mestiçagem. Nas palavras de Barbalho (2007) este tipo de enfoque nos remete a uma “diversidade harmoniosa”, como se o encontro das três raças fosse um processo sem conflitos. Para mais detalhes conferir Nunes, 2012, capítulo II: breve histórico das políticas públicas culturais. 9

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pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção...” (Gil, 2003, grifos meus, p. 3). Neste trecho do discurso de posse de Gilberto Gil, observamos que através de uma “perspectiva antropológica”, o Ministério da Cultura propunha ampliar as fronteiras - para as culturas populares; afro-brasileiras, indígenas, de orientações sexuais, de periferias, da mídia áudio-visual, das redes informáticas etc. A expressão “massageando pontos vitais da Nação” ou o “do-in antropológico” marcaria uma transformação da noção de “cultura nacional” e do fazer política pública cultural - orientados agora para a diversidade cultural10. Ao mesmo tempo, notamos que a gestão Gilberto Gil reforçava um “Estado presente, democrático, responsável, capaz de apoiar e potencializar a cultura brasileira, por meio de políticas variadas” (Gil, 2013, p. 413). Nessa “perspectiva antropológica” o estado não seria um produtor de cultura, mas garantiria as condições de acesso a bens e manifestações artísticas-culturais. Em várias situações, seja no seu discurso de posse, seja em aulas magnas ou em falas aos deputados e senadores na câmara, Gilberto Gil se preocupava em estabelecer relações entre as noções de diversidade e nação. Mas, como coloca Turino, que nação é esta que o ministro Gil se refere? De certo não é uma massa compacta e estática e muito menos um conjunto de estereótipos e tradições inventadas A Nação para qual olhamos precisa ser vista como um organismo vivo, pulsante, envolvido em contradições e que necessita ser constantemente energizado e equilibrado. Uma acupuntura social que vai direto ao ponto” (Turino, 2004, p.137, 2004). Um dos aspectos mais marcantes desse programa, portanto está na possibilidade de se pensar a cultura nacional em suas singularidades e multiplicidade. Tal perspectiva, por sua vez, aponta para a maneira como a cultura está pautada nas políticas culturais. A “perspectiva antropológica” aponta para uma reorganização a ideia de nação (homogênia para heterogênea e diversa); e de estado (detentor da identidade nacional para um estado que garante direitos de acesso). Caberá verificar etnograficamente como essa perspectiva antropológica se sucede na implementação do programa, como a diversidade cultural se sustenta nessa perspectiva e como orienta políticas nacionais como o Cultura Viva, e como essas questões estão reorientando categorias como nação, estado e sociedade. Percebemos que a medida que aprofundamos o tema da diversidade cultural junto às noções de estado e nação, mais aproximamos de outras categorias, como participação, cidadania e direitos. O desafio aqui será o de operar no “adensamento e na dispersão” desses termos (Teixeira e Souza Lima, 2010), e na possibilidade de verificar etnograficamente como essas noções e categorias se comportam. Neste sentido, novamente, a Esse momento também é marcado pela figura do ministro Gilberto Gil; um artista negro, tropicalista e ativista, que carregava a expectativa de ser capaz de simbolizar a mudança pela qual a pasta deveria passar, como “uma expressão metonímica do próprio governo Lula” (Dias: 123, 2014). 10

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etnografia com os gestores de cultura que implementam o programa são essenciais para dar cabo das questões que estamos levantando. A diversidade cultural é considerada aqui o termo chave para a pesquisa, mas não podemos ignorar o tema da cidadania e direitos culturais na construção do Cultura Viva. Cabe lembrar que a cidadania não só nomeia o programa mas também está alinhada com a noção de diversidade cultural. Segundo o Ministério da Cultura (MinC, 2014), o Cultura Viva assume que o estado deve financiar a produção de conteúdos culturais, reconhecer e proteger culturas orais e o patrimônio cultural imaterial, bem como o fomento à utilização de novas tecnologias como base para a produção de conteúdos e expressão da diversidade cultural brasileira (MinC, 2014). Ainda de acordo com o Ministério da Cultura, a lei Cultura Viva teria como principal objetivo a ampliação do acesso da população brasileira aos seus direitos culturais11, mediante o fortalecimento das ações de grupos culturais já atuantes na comunidade12. Além dos gestores e artistas contemplados pelo Cultura Viva, outros atores não podem ser ignorados na construção, consolidação e implementação do Cultura Viva. Me refiro primeiramente, aos ideólogos do programa, que nem sempre são gestores ou artistas. E às vezes, são os dois. Fazem parte de um contexto específico, mas importante na dinâmica do programa. Atuam direta e indiretamente na formulação do Cultura Viva e ocupam uma posição de referência. Caberá à etnografia em curso, questionar em que medida a noção de diversidade cultural já operava entre esses idealizadores que antecedem o lançamento do programa, quais eram as estratégias e argumentos para a efetivação do Cultura Viva e como essas negociações se sucederam - questões que possivelmente nos direcionaria a outras esferas de articulação que vão além dos setores internos ao MinC. Dentro dessa esfera de atores fronteiriços com a gestão pública há um outro grupo importante na construção do programa, direta ou diretamente naquilo que se refere a submissão de projetos aos editais dos Pontos e de outras captações ou incentivos: os produtores culturais, Cabe destacar que os direitos culturais já estão previstos pela Constituição de 1988, justamente no princípio da cidadania (art. 1º, II), que prevê “pleno exercício de direitos culturais”. Princípio que já operava na agenda internacional - desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 . A Constituição de 1988 define que a proteção das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos são objetivos a serem perseguidos. Mas, conforme apontam Abreu e Barbosa (2011), para além dos dispositivos propriamente constitucionais, vários pactos internacionais estabelecem direitos culturais, que são tratados, no âmbito interno, como direitos sociais (Abreu e Barbosa, 2011). 12 A lei Cultura Viva também operaria como a política de base do Sistema Nacional de Cultura (SNC), reafirmando a gestão compartilhada do programa Cultura Viva entre a União, estados e município. Junto ao SNC, opera o Conselho Nacional de Políticas Públicas Culturais (CNPDC) - instância máxima dos espaços participativos associado ao Ministério da Cultura. Os colegiados setoriais, por sua vez, compõem o CNPDC e estão expressivamente compostos por agentes culturais que coordenam os Pontos de Cultura, também conhecidos como ponteiros. Esses espaços participativos são organizados em grupos e plataformas virtuais protagonizadas por ponteiros e demais artistas e agentes culturais contemplados pelo programa Cultura Viva. Nesses espaços virtuais os artistas compartilham dúvidas, organizam atividades e constroem cartas e manifestos para os gestores do MinC. Este espaço virtual também será explorado na etnografia desta pesquisa. 11

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que também são peças chaves para a tradução da linguagem dos editais para os artistas contemplados pelo Cultura Viva. Essa mediação foi observada durante a pesquisa de mestrado (Nunes, 2012) onde percebi que alguns artistas - como o Seu João, exímio luthier e tocador de violas de Taguatinga que era analfabeto e não tinha CNPJ e que portanto não possuía o conhecimento técnico necessário para construir um projeto, participar do edital dos Pontos de Cultura, fazer as prestações de contas etc. Ao que pude observar, quando o artista não faz a mediação direta com o Cultura Viva, quem faz é o produtor cultural, que algumas vezes opera como um mero captador de recursos e um tradutor da linguagem técnica dos editais. Contudo, também ocorre dos ponteiros serem produtores, artistas e administradores simultaneamente. Há artistas que são administradores, produtores e mesmo gestores de secretarias municipais e estaduais. Muitas vezes os produtores podem fazer a mediação entre artistas e coletivos, enfim são inúmeras as possibilidades. Nessas relações também há outras modalidades de organização como as ONGs, os coletivos, organizações e organismos multilaterais, OEA, UNESCO, Banco Mundial e BNDS - que se articulam junto ao programa Cultura Viva. Quando proponho um trabalho sobre a elaboração e implementação do programa Cultura Viva estou lidando com múltiplas transversalidades que vão desde os interlocutores e demais mediadores envolvidos, como as próprias categorias, conceitos e metáforas que são acionadas por esses atores, em seus diversos segmentos. Se a elaboração do Cultura Viva implicaria em entrevistas com os ideólogos do programa, a implementação e a execução do programa poderia ser observada através da etnografia com os gestores de cultura que, junto aos contemplados do programa- constroem o Cultura Viva. Portanto, quando tratamos especialmente da implementação do programa, estamos dialogando diretamente com aqueles que efetivam e coordenam (institucionalmente ou administrativamente) o Cultura Viva enquanto programa nacional, ou seja, atuam nos espaços onde se efetivam as políticas públicas culturais. Esses agentes são o que aqui chamo de gestores de cultura. A pesquisa de doutorado propõe uma etnografia nos setores internos do MinC (especialmente a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural/SCDC, a Secretaria de Políticas Culturais/SPC e a Secretaria de Assuntos Intitucionais/SAI), junto à análise de documentos que marcam a diversidade cultural como eixo do Cultura Viva, análise dos discursos dos gestores que competem ao programa; e também, a observação e participação nos ambientes virtuais e nos eventos co-presenciais entre gestores, público e artistas (as chamadas Teias). Ao realizar uma etnografia com os gestores do MinC, estamos em um terreno institucional, e que a produção de políticas públicas culturais se faz com o estado. No entanto, proponho trabalhar com essa categoria através de seus efeitos. O efeitos de estado por sua vez, podem ser percebidos nas intencionalidades presentes em documentos, discursos, e até no próprio ato de fala do gestor. Os efeitos de estado podem ser aqui compreendidos como as transversalidades

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das práticas de governo que implicam na formulação e implementação do Cultura Viva, mas que por sua vez, mais uma vez, extrapolam os espaços institucionais. As relações entre cultura e política, portanto, indicam ser muito mais complexas do que uma mera formalidade institucional. Se a pesquisa se concentra no tema de políticas culturais, percebemos no decorrer da etnografia que há uma cultura da política que engendra o saber fazer política cultural; numa outra ponta dos Pontos vamos observando as transversalidades do Programa Cultura Viva.

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CONSELHO DE POLÍTICA CULTURAL DE VOLTA REDONDA: UM MOVIMENTO ORGÂNICO PARA AS REAIS LIBERDADES POLÍTICO-CULTURAIS Bárbara Cunha Ferreira de Oliveira1 Marcos Vinícius Araújo Delgado2 RESUMO: Devido à necessidade de uma instância participativa e da lapidação da democracia deliberativa em nosso espaço político como estratégia de aperfeiçoamento das inúmeras áreas da vida pública é que a conquista de direitos se manifesta de forma empoderada e organizada pelos sujeitos sociais envolvidos que acreditam no teor transformador, democrático e cidadão da cultura. Este trabalho tem como objetivo descrever a atuação do Conselho Municipal de Política Cultural do município de Volta Redonda, considerando o papel das estratégias de mobilização social na redemocratização da política cultural da cidade. PALAVRAS-CHAVE: Conselho; Política Cultural; Participação

1. INTRODUÇÃO Visto que é um direito do cidadão brasileiro participar e conquistar seu espaço politicamente, as instâncias dos conselhos municipais trazem à tona esse solo fértil quando de fato é orgânico e promovido por suas bases. Isto será explicitado pelo presente artigo, em que após uma explanação sobre o que os autores que tratam dos temas conselhos gestores e democracia participativa teorizam e problematizam, pela metodologia de estudo de caso, uma ex-conselheira contará o histórico da formação do Conselho de Política Cultural de Volta Redonda e de forma breve alguns trabalhos realizados pelo conselho durante o mandato de 2015 em que participou. Depois haverá a seção de análise e discussão em que após o relato ter sido feito, se verificará pela lente da teoria convergências, contradições e problematizações.

Graduada em Administração Pública pela UFF (Universidade Federal Fluminense); barbara_infomusic@yahoo. com.br. 2 Mestrando em Administração pela UFF (Universidade Federal Fluminense); [email protected] 1

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2. OS CONSELHOS GESTORES COMO INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO NAS DECISÕES PÚBLICAS A promulgação da Constituição de 1988 marcou o cenário político brasileiro quanto as relações entre o Estado e a sociedade, ampliando o conceito de participação para a participação cidadã, resultado da constante pressão dos movimentos sociais que tiveram seu nascedouro nas décadas de 70 e 80. O rompimento do paradigma centralizado e tecnocrático de gestão das políticas públicas permitiu, nos moldes da descentralização política da gestão pública, o desenvolvimento de um novo conceito a ser institucionalizado – a Participação Cidadã, tendo como base a universalização dos direitos sociais, ampliação do constructo de cidadania e uma nova perspectiva do papel e caráter do Estado (GOHN, 2002). A participação, por sua vez, passa ganhar destaque na formulação, implementação e controle das ações do Estado de políticas públicas, caracterizando a sociedade civil como sociedade política capaz de atuar diretamente, inovar e dinamizar nos novos mecanismos de exercício da democracia participativa (GOHN, 2002). Em meados dos anos de 1990, o processo de redemocratização do país começava a amadurecer fundado nos novos instrumentos formalizados de promoção da vontade coletiva, os quais se destacam os plebiscitos, referendos, ações civis públicas, audiências públicas, leis de iniciativa popular, fóruns temáticos, orçamentos participativos e conselhos gestores. Desta forma, a Constituição legitimou um novo formato institucional. Neste contexto Teixeira considera que (2007, p.1) As políticas sociais sejam desenvolvidas de modo democrático, em que a sociedade, via órgãos representativos, participe dos espaços de deliberações das diretrizes das políticas, do planejamento, da execução, do controle e da supervisão dos planos, programas e projetos. Dado que o art. 204 da Constituição estabelece que a participação da população deve ser viabilizada “por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”, assim como o orçamento participativo, os conselhos gestores se constituíram como protagonistas no processo de descentralização das políticas públicas, tornando-se espaços propícios para o diálogo e novas relações entre o Estado e a sociedade, permitindo o acesso da população às instâncias decisórias (DIEGUES, 2013). Os conselhos gestores como importantes mecanismos de fortalecimento da participação cidadã e controle social das ações governamentais, na visão de Maciel (2010, p. 12) significam espaços privilegiados para o exercício político, uma vez que representam, do ponto de vista da lei, uma iniciativa que possibilita o estabelecimento de novos fóruns de participação e novas formas de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil. Os Conselhos são investidos de prerrogativas deliberativas e fiscalizadoras. Traduzem em “espaços de representação plural, para que a sociedade e o governo possam negociar, disputar e compartilhar responsabilidades na produção de políticas públicas em 310

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áreas específicas” (TATAGIBA, 2004, p.348). Percebe-se que a ideia da concepção dos conselhos gestores como o elo das relações entre a sociedade e o Estado compartilha dos conceitos defendidos por Habermas em sua obra Mudança Estrutural da Esfera Pública onde busca descrever um espaço diferenciado de interação com o Estado, no qual os indivíduos pudessem discutir acerca de questões relacionadas ao bem coletivo e possibilitar presença política nas ações governamentais, assim como é descrito por Avritzer (2000, p. 31) Nesse espaço os indivíduos interagem uns com os outros, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao nível da sociedade e apresentam demandas em relação ao Estado (...). Os indivíduos no interior de uma esfera pública democrática discutem e deliberam sobre questões políticas, adotam estratégias para tornar a autoridade política sensível às suas discussões e deliberações. (...) a ideia aqui presente é de que o uso público da razão estabelece uma relação entre participação e argumentação pública. Assim sendo, os conselhos gestores ainda assumem o papel como instâncias de controles dos negócios estatais por meio da participação políticas dos cidadãos, capazes de estabelecer mecanismos de “formulação de diretrizes, prioridades e programas sociais, e formas de acompanhamento e controle da gestão”, implicando a transparência do poder público quanto ao monitoramento e avaliação das políticas públicas (SANTOS, 2002, p. 104). Nesta lógica, Gohn (2011, p. 7) reforça que os conselhos gestores podem ser entendidos como “canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder público estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos”. Possibilitam a eficiência na alocação justa dos recursos públicos, uma vez que, por meio de canais públicos e plurais, permitem a integração e participação nos processos de planejamento, formulação e controle das ações do governo (DIEGUES, 2013). Em linhas gerais, Gohn (2002, p. 21) conclui a respeitos dos conselhos, esclarecendo que eles podem fazer política publicizando os conflitos; como interlocutores públicos poderão realizar diagnósticos, construir proposições, fazer denúncias de questões que corrompem o sentido e o significado do caráter público das políticas, fundamentar ou reestruturar argumentos segundo uma perspectiva democrática: em suma, eles podem contribuir para a ressignificação da política de forma inovadora. Neste sentido, Tatagiba (2012, p. 82) declara que “podemos compreender os conselhos como instâncias pelas quais passam os variados e muitas vezes conflitantes fluxos de deliberação e de regulação que emanam de pontos distintos do aparelho do Estado e que incidem na sua área de política correspondente”. Dada a definição, a autora ressalta sobre a legitimidade da existência dos conselhos no interior das ações do Estado, sendo este o principal desafio institucional en-

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frentado, uma vez que há a relação de conflito entre a consideração das exigências previamente discutidas por meio das instâncias de participação e a concretização das políticas públicas. A autora ainda propõe uma discussão a respeito do caráter híbrido dos conselhos gestores que revelam a justaposição de competências entre os atores que os compõe. O fato de que estes sejam os mesmos que deliberam, responsáveis pelo controle e, muitas vezes, pela implementação da política, favorecem o potencial de democratização das decisões públicas, no entanto ainda carregam os riscos de que as mesmas possam apresentar maior nível de atendimento a interesses particulares. Desta forma, Teixeira (2000) discute acerca da efetividade dos conselhos para os negócios públicos, afirmando como condição sine qua non para a eficácia política em prol do bem coletivo. O autor destaca três aspectos principais que buscam elucidar essa premissa. Ele destaca que “para o conselho ter efetividade é preciso paridade, representatividade e pressão social para que a deliberação se concretize”. Para a condição de paridade, Teixeira (2000) ressalta que o número de conselheiros eleitos não necessariamente revela nível significativo de igualdade na dinâmica das discussões no interior dos conselhos e ainda sim, o acesso a informação, disponibilidade e formação destes atores sociais mostram-se como elementos fundamentais que fortalecem o princípio de paridade. Assim, “temos uma paridade legal onde percebemos, de fato, uma total assimetria entre os representantes do governo, de um lado, com tempo disponível, assessoria, equipamentos e informações, e os representantes da sociedade, de outro lado, sem nenhuma destas condições ”. (TEIXEIRA, 2000, p. 93) No que se trata da representatividade, o autor coloca que algumas entidades que fazem parte dos conselhos nem sempre desempenham papel de representar o interesse coletivo, uma vez que se fundam em posições ideológicas que dificultam este processo e não garantem a efetividade do conselho. Nesta perspectiva, Fuks e Perssinotto (2006) discutem sobre as relações entre os recursos, decisão e poder na dinâmica do papel dos conselhos como instrumento política argumentando que não basta apenas que tais instituições participativas existam para que a ampliação da participação aconteça. Fatores como constrangimentos socioeconômicos, de natureza simbólica e política podem representar poderosos obstáculos ao caráter de participação e ainda destacar a desigualdade política entre os atores envolvidos. Teixeira (2000) ainda entende que a mobilização social deve ser considerada no âmbito das deliberações nos conselhos como forma de efetivar as decisões coletivas diante do poder público dominante. Ele afirma que as decisões públicas podem ser incompatíveis com os interesses da massa dominante da população, o que faz com que a pressão de movimentos populares, por exemplo, influencie no caráter democrático das deliberações. Assim como, segundo Gohn (2002), os conselhos gestores “são frutos de demandas populares e de pressões da sociedade civil pela redemocratização do país”, de acordo com Teixeira esta mesma lógica de participação

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se atribui ainda ao caráter decisivo das políticas públicas, isto é, no contexto de amadurecimento destes órgãos perante o arcabouço jurídico constituído de amparo legal às decisões. Destaca-se ainda acerca da origem dos conselhos como condição de maior possibilidade de efetividade de suas ações dentro do contexto da democracia participativa, colocando em prática a discussão sobre aqueles constituídos de forma a oportunizar o repasse de recursos, tornando-os apenas consultivos e sem poder de deliberação (GOHN, 2002). Neste sentido, Teixeira (2000) revela que a efetividade dos conselhos pode ser percebida uma vez que eles ganhem respeitabilidade e sejam reconhecidos pela sociedade como órgãos de legítima representatividade dos interesses públicos e quando não são vistos pelo poder público como órgão da sociedade civil desempenhando apenas a função de referendar as iniciativas governamentais e cumprir mínimas exigências legais visando o repasse de recursos federais. Tal como esclarece Gohn (2002) Nos municípios sem tradição organizativa-associativa, os conselhos têm sido apenas uma realidade jurídico-formal, e muitas vezes um instrumento a mais nas mãos dos prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade, como seus representantes oficiais, não atendendo minimamente aos objetivos de mecanismos de controle e fiscalização dos negócios públicos. Teixeira (2000) salienta que a eficácia está relacionada diretamente com a forma de como eles foram constituídos, isto é, se o processo que originou é fruto dos anseios da sociedade tendem a ter maior grau de institucionalização, sucesso e participação nas políticas públicas de nível municipal, assim como afirma Noronha (2000). Cabe citar que a efetividade e eficácia dos conselhos está diretamente relacionada com o papel controlador das atividades do Estado, da forma como aponta Diegues (2013). O autor revela que o controle democrático dos negócios públicos está relacionado a três questões fundamentais que viabilizam tal processo, como o amparo jurídico para as deliberações dos conselhos, a definição clara de uma autonomia decisória e a legitimidade destes órgãos perante a sociedade. Pois, O papel do conselho não se restringe à fiscalização ou ao mero acompanhamento das atividades do poder público, referendando decisões já tomadas, mas envolve uma avaliação dos seus atos e decisões em comparação com parâmetros estabelecidos (TEIXEIRA, 2000, p. 108). Assume-se, portanto que os conselhos gestores, como uma nova relação da sociedade com o Estado “constituem uma das principais experiências de democracia participativa no Brasil contemporâneo” (TATAGIBA, 2004, p. 209). Todavia, cabe citar a consideração da autora a respeito da limitação e conflito dos conselhos na deliberação acerca dos critérios públicos justos de distribuição de recursos para políticas dadas como prioritárias quando é envolvido o sistema de repasse de emendas parlamentares. Tal dispositivo institucional favorece uma política clientelista capaz de constranger a competência deliberativa dos conselhos e impactar negativamente no

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seu papel dentro do cenário político. Ainda em relação às limitações que estes órgãos possuem diante do sistema político vigente, destacam-se os canais de comunicação entre a sociedade, os conselhos e as atividades do Estado, a cultura participativa, a representatividade destes órgãos e a perspectiva do poder público quanto ao seu caráter democrático (CARVALHO & TEIXEIRA, 2000, GOHN, 2002). Sobre os conselhos de gestão pública, na visão de Teixeira (2000, p. 118), O desafio que se apresenta para a sociedade civil é o de torná-los efetivos, ampliando seu impacto não sobre a gestão, mas na elaboração de novas políticas públicas. Para os diversos níveis do Estado, o desafio é garantir recursos para o funcionamento autônomo destas instâncias e para a implantação das políticas nelas formuladas. Por fim, Gohn (2002) abre o debate da democracia participativa viabilizada pelos conselhos quanto às políticas urbanas, por exemplo, ressaltando a importância dos movimentos populares para a formação destes órgãos e os respectivos impactos do mesmo na criação de um arcabouço jurídico de instrumentos capazes de estabelecer a aproximação entre a sociedade e as decisões públicas no contexto urbano. 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A metodologia de pesquisa seguiu a linha qualitativa por um estudo de caso. Segundo Yin (2001), é adequado quando a questão de pesquisa visa desvendar o “como” ou o “por que”, quando não há controle sobre eventos comportamentais por parte do pesquisador ou quando são focalizados acontecimentos contemporâneos. Portanto, o estudo de caso é válido para a compreensão da relação entre entendimento e conhecimento sobre o viés histórico da constituição e consolidação do CMPC VR- Conselho Municipal de Política Cultural de Volta Redonda. Para o estudo de caso, foram coletadas informações e entrevista por uma conselheira do primeiro mandato do CMPC VR ocorrido em 2015, além de ter sido feita uma revisão de literatura. A entrevista direcionada ao sujeito-chave do caso foi gravada e transcrita. A entrevista foi semiestruturada, uma vez que o roteiro foi composto por poucas perguntas abertas, em que foi priorizado certa liberdade para a fala da ex-conselheira. O material coletado foi analisado por meio de elementos da análise do discurso que, segundo Maingueneau (2000, p.13), é a “disciplina que, em vez de proceder a uma análise linguística do texto em si ou a uma análise sociológica ou psicológica de seu ‘contexto’, visa a articular sua enunciação sobre um certo lugar social. No decorrer da exposição do relato, foi utilizada a reprodução de trechos originais das falas da artista e ex-conselheira entrevistada, buscando efetivar maior transparência aos processos interpretativos realizados. As interpretações que se seguem a partir das análises fazem parte

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dos sentidos construídos através do diálogo com os autores, os quais foram refratados por suas subjetividades e visões de mundo (BAKHTIN, 1992). Segue o nome da entrevistada, tendo ela autorizado sua respectiva identificação por nome e segmento em que atua: Bárbara Cunha (representante em 2015 da cadeira de Movimentos Sociais, especificamente pela Economia Solidária e musicista). 4. RELATO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DO CMPC-VR Em meados de 2012 começou a haver uma mobilização por parte de artistas, produtores culturais e demais interessados em fazer com que a ideia de um conselho de cultura passasse a existir e a funcionar no município de Volta Redonda. Tão logo, esse grupo de pessoas interessadas começaram a se reunir em reuniões informais em alguns espaços sede de cultura da cidade, tais quais: auditório de um teatro no centro, na universidade pública, em um bar que tem inúmeras apresentações e intervenções culturais e na sede de uma ONG que trabalha com o contexto sociocultural. Daí foi criado um grupo pelo Facebook denominado “Cultura: Questões e Soluções”, em que serviria de base para postagens de informações e críticas ao Sistema Nacional de Cultura, de mobilizações para o possível futuro conselho de cultura para o município e para avisos de reuniões. Em dezembro de 2012, a secretaria de cultura convocou um fórum, em que os palestrantes e segmentos para comporem os grupos de trabalho foram escolhidos entre quatro paredes pelo próprio poder público. Inclusive, não houve uma pessoa sequer convidada a palestrar que fosse da própria cidade, eis que é uma enorme contradição. Os grupos eram: Artesanato/ Artes Visuais, Literatura, Patrimônio Material e Imaterial, Fotografia e Audiovisual, Música (erudita e popular), Artes Cênicas (dança, circo, teatro) e Produção e Gestão Cultural. Optei por participar deste último e me senti como se aquele fórum fosse um castelo de cartas marcadas. Nós artistas que estávamos engajados em formar um conselho e seguir uma política cultural, organizamos um protesto, em que um manifesto de três páginas foi lido, roupas pretas foram usadas, cartazes colocados ao lado de fora do teatro que sediou o fórum e fita adesiva branca em nossas bocas também, em que na hora da leitura interpretativa do manifesto, foram arrancadas de forma uníssona de nossas bocas. Muito questionado foi o secretário de cultura, a mesa composta em vários momentos por nós artistas organizados durante o fórum. Apesar de haver muitas pessoas presentes que eram favoráveis aos programas atuais da secretaria e elas defenderem em muitos momentos nos grupos de trabalho o próprio secretário de cultura conseguimos nos posicionar e dizer o que queríamos. Aconteceu um absurdo de um dos gestores a nível estadual convidado para falar na mesa dizer que a secretaria de cultura da cidade poderia muito bem fazer o Plano Municipal de Cultura sozinha, mas ela optou por chamar a sociedade para discutir. Falava como se não fosse um

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direito nosso como cidadão decidir a política que a gente quer e colocou a secretaria municipal como benevolente por “permitir” que a gente participasse, ora. Depois desse fórum, um grupo de nove artistas ou demais engajados na causa passaram se reunir às terças-feiras na casa de um dos envolvidos no grupo pra discutirmos o andamento das questões, nosso papel na organização e sugerirmos ações. O nome desse grupo era “Artistas em Movimento”, que de fato virou por um tempo um movimento social. Foram feitas em média sete reuniões na casa de um dos artistas do movimento para se discutir, estudar e elaborar o conselho municipal de cultura que se queria e como iríamos nos organizar como um todo. Em uma reunião até estudamos uma apostila do curso de extensão que foi dado pela Universidade Federal Fluminense chamado “Formação em Política e Cidadania: os conselhos municipais como referência”, baseado nos estudos de Fernando Tenório. Discutimos o conceito de Gestão Social, democracia deliberativa e participação. Além das articulações legais, políticas para a implantação do conselho. Ainda que de forma teórica nestes momentos iniciais. Houve uma conferência de cultura em 2013 em que se elegeram dois delegados. Apenas um foi até a conferência nacional. Por quase um ano o grupo dos “Artistas em Movimento” se desfez e praticamente duas pessoas que não são artistas, entretanto que participaram da constituição do movimento é que foram as responsáveis por fazer a interlocução com o poder público para o conselho estar de acordo com a legislação e entrar em vigor. A briga foi justa e árdua, inclusive para que o conselho fosse composto de 60% da sociedade civil e 40% poder público. O que foi conquistado. No final de 2014 as articulações com a sociedade civil começaram a acontecer para os possíveis conselheiros serem eleitos. Este também não seria atrelado a nenhuma instituição, cada conselheiro teria que comprovar representatividade no segmento que se candidatasse, porém não seria condição mínima representar alguma instituição propriamente dita. Foram nove cadeiras para a sociedade civil e seis para o poder público. Tais quais: Artesanato, Artes Cênicas, Dança, Artes Visuais, Música, Literatura, Cultura Popular, Movimentos Sociais e Associações de Bairro. As secretarias envolvidas foram: Cultura, Planejamento, IPPU- Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano, Educação, Desenvolvimento Econômico e Turismo e secretaria de Ação Comunitária. O primeiro mandato duraria um ano para a “arrumação da casa” com funcionalidades como: estruturar o regimento interno, consolidar reuniões, estratégias e ações, dentre outros. Durante 2015 as reuniões aconteceram às terças-feiras por duas horas. Tivemos a presença em peso dos conselheiros da sociedade civil, entretanto do poder público essa participação foi ínfima. Muitas coisas foram realizadas em apenas um ano de gestão como: acompanhamento com conquistas para os músicos locais de um típico festival de rock da cidade; uma comissão

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de Patrimônio Histórico e Cultural atuante em que uma ida ao INEPAC- Instituto Estadual do Patrimônio Cultural foi realizada para esclarecimento de dúvidas de como se tomba um bem; uma audiência pública sobre patrimônio histórico e cultural e negociação com a empresa e demais envolvidos responsáveis pela restauração do cine 9 de abril; encontros setoriais com cada segmento a parte com convocatória de toda a cidade para compor as propostas o Plano Municipal de Cultura ocorridos em uma instituição de ensino federal; dois encontros setoriais geral para agregar todas as pessoas interessadas; um I seminário de Cultura e Educação voltado para professores, estudantes e artistas, articulado pela comissão Permanente de Educação e Formação do conselho; a conquista de uma sala própria na biblioteca municipal e revisão e ajustes do regimento interno. Cinco comissões foram formadas: Avaliação de projetos, Educação e Formação, Patrimônio Histórico e Cultural, Orçamento e Finanças e Legislação e Normas. Durante a trajetória de um ano de mandato, três conselheiras da sociedade civil saíram. Duas delas por motivos internos, inclusive. Nesse um ano de gestão também foram enviadas ao poder público duas notificações para que eles comparecessem às reuniões com vista de ser encaminhado ao Ministério Público essa negligência por parte deles, senão não seria possível pensar em uma política pública, propriamente dita, entretanto em uma reunião foi deliberado que a secretária de cultura iria dialogar com os outros gestores/técnicos conselheiros pessoalmente, porque senão, através da fala de um dos técnicos do governo que era conselheiro não haveria formas de “acordos” para quaisquer coisas que fizéssemos. Muita coisa foi conquistada em apenas um ano de mandato, mas todos os conselheiros estavam cientes de que muito mais falta conquistar, como uma conferência para validar o PMCPlano Municipal de Cultura e a consolidação do Fundo de Cultura para que os projetos dos artistas dos vários segmentos comecem a vigorar com verbas como uma proposta de política pública municipal. 5. ANÁLISE E DISCUSSÃO A partir do relato coletado, podemos interpretar o movimento de constituição do CMPC-VR como ação estratégica oriunda da sociedade civil e sob uso de mecanismos de mobilização capazes de ampliar a dimensão participativa nas decisões sobre a política cultural do município. Desta forma, considerar o uso de redes sociais, bem como a utilização de espaços diversos que favorecem o diálogo entre os atores sociais configuram o que tem sido discutido acerca da Teoria dos Novos Movimentos Sociais que, além de ter sido o bojo de formação e institucionalização dos conselhos de políticas públicas, nos fornece base para discussão do papel da sociedade civil nos novos arranjos institucionais de participação social. (GOHN, 2002).

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Embora os conselhos possam representar espaços legítimos para promover a discussão da decisão pública, o seu caráter híbrido ainda pode significar o processo ambivalente em que a tomada de decisão dos atores é conduzida (TATAGIBA, 2004). Isto é, a iniciativa do poder público da cidade demonstrado pelo antigo secretário de cultura até meados de 2012 em convocar o fórum - sob o lema da participação cidadã - para definir os rumos do Plano Municipal de Cultura, entendida como forma de reforçar as assimetrias de poder, desqualificando a ação dos atores locais previamente inseridos na dinâmica de democratização da política cultural em Volta Redonda, assim como na fala de um gestor no dia do fórum em que “a secretaria poderia fazer o plano sozinha, mas optou por abrir para a sociedade”. Daí a relevância crucial dos sujeitos artistas envolvidos em se organizarem em movimento, fazerem o protesto e tomarem as rédeas de toda a consolidação do processo para a implantação de um conselho municipal, assim como para a elaboração democrática do PMC. Assim como Teixeira (2000) aborda, a pressão social realizada pela sociedade civil no intuito de horizontalizar os atores a serem escalados, bem como o caráter autônomo daquela em instituir um novo espaço público para as deliberações pode ser entendida como condição para a efetividade da organização em termos de controle social exercido. Da forma como visto por Teixeira (2000), o parâmetro que afirma a efetividade do conselho sob o aspecto da representatividade nos permite compreender a formação do CMPC-VR que acaba sendo constituída por atores oriundos de diversos segmentos culturais da sociedade civil de forma a potencializar a compreensão das principais demandas dos munícipes (AVRITZER, 2000). No entanto, a baixa representatividade do poder público nos encontros pode representar obstáculos à efetividade da atuação do conselho, fragilizando o seu potencial deliberativo, pois não há como consolidar uma política pública de cultura sem as decisões deliberadas também de gestores nas reuniões (GOHN, 2002). Mesmo porque a Cultura é completamente intersetorial, necessitando uma política conjunta com a transversalidade das outras secretarias, inclusive. Por fim, podemos afirmar que as conquistas do primeiro ano de atuação do CMPC-VR refletem a trajetória de mobilizações realizadas para redemocratização da política cultural de Volta Redonda, uma vez que a maturidade das demandas já havia sido previamente levantada antes mesmo do processo de institucionalização do conselho. Sendo assim, o movimento social formado no âmbito das mobilizações de constituição do conselho foi elemento chave que favoreceu sua efetividade do primeiro ano de exercício, porém fatores como a ampliação da participação do poder público deve ser revista para que promova a sustentabilidade das ações perante a sociedade.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante um ano de mandato, principalmente os conselheiros da sociedade civil muito conquistaram, pois, participação é conquista, como diz DEMO (2009). A periodicidade das reuniões em ser uma vez na semana criou uma sequência favorável ao andamento das ações, principalmente com a principal meta, que era mobilizar os cidadãos para elaborarem o Plano Municipal de Cultura, além do ganho de sede própria, que não era dentro de uma secretaria municipal evitando assim cooptações e impedimentos de diversas formas. O aprender a caminhar e compreender a dinâmica política se deu de forma introdutória em 2015. Apesar do reconhecimento perante a cidade ainda ser baixo e muitas pessoas não saberem da existência do CMPC VR, todo o processo de formação do conselho com muitos diálogos, depois de um enorme grupo de engajados no contexto da cultura ter diminuído, ter se tornado um movimento social, fez com que se consolidasse no bojo da democracia participativa como deve ser e por isso é orgânico por si mesmo. Sendo assim, os teóricos nos mostram que o processo de real liberdade dessa conquista de direito e empoderamento da classe de artistas e outros cidadãos envolvidos no conselho só tende a crescer e se aperfeiçoar. Mesmo havendo problemas com a participação da gestão pública nas reuniões, a próxima meta está em tempo, que é a consolidação do Fundo Municipal de Cultura para que então comecem os projetos dos artistas locais acontecerem e serem remunerados, configurando assim de fato uma política pública efetiva, eficiente e eficaz.

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HÁ DIÁLOGO ENTRE A GESTÃO CULTURAL E A POLÍTICA CULTURAL? Bárbara Heliodora Andrade Ramos1 RESUMO: Este artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões referentes ao entendimento dos pesquisadores sobre a definição da gestão cultural. Analisa-se se há diálogo com a política cultural, partindo do exame da possível especificidade da gestão cultural.Com o propósito de proceder a uma análise crítica da produção acadêmica sobre o tema, realizou-se uma reflexão teórico-conceitual baseada na literatura disponível sobre o tema. PALAVRAS-CHAVE: Conceitos, Cultura, Gestão Cultural, Política Cultural.

1. INTRODUÇÃO A produção acadêmica sobre gestão cultural, no Brasil, ainda é relativamente escassa e deficiente quanto à sua construção científica. Para pesquisar a diversidade conceitual, sua complexidade, ambiguidades e contradições, utilizaram-se como principais fontes as bibliografias encontradas na literatura nacional e internacional pertinente, em periódicos científicos e anais de eventos. Realizou-se uma crítica da diversidade conceitual e de sua correspondente complexidade na produção acadêmica sobre gestão cultural, tal como tratada pelos pesquisadores brasileiros. O que existe nesta produção acadêmica limita-se, em última análise, a discutir uma série de assuntos que não constituem o objeto mesmo da gestão cultural. Os conceitos variam de amplitude, de definições restritas até às mais extremamente amplas. A Gestão Cultural, no sentido mais amplo, refere-se à especificidade de um campo. Muitos nomes foram dados à noção de Gestão Cultural, tais como, promoção cultural, gerência da cultura, mediação cultural, administração cultural, gestão das artes e da cultura. Gestão cultural abrange, assim, todos os conhecimentos e práticas de gestão nas áreas de artes e cultura. Da mesma forma, várias são as definições que, ao longo do tempo, têm sido dadas à Gestão Cultural. No entendimento da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Administradora, Especialista em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Mestre em Administração pelo Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF) e-mail: [email protected]

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a Ciência e a Cultura), a Gestão Cultural é apresentada de forma genérica como uma estratégia de discernimento de bens no campo cultural brasileiro e mundial. Cabe aos mediadores e gestores culturais, agentes inseridos neste campo, trabalharem este poder simbólico, do que podem resultar ganhos econômicos e sociais em bases democráticas. Uma aproximação necessária ao objeto aqui estudado consiste no entendimento do termo Gestão Cultural. Ele ganhou vigência em diversos países, a exemplo dos ibero-americanos, justamente pelo ângulo de análise que aqui se adota. Por isto realizou-se um esforço de análise interpretativa do que os pesquisadores brasileiros entendem ser Gestão Cultural. Tal expressão surge com as transformações contemporâneas associadas às novas dimensões atribuídas ao campo da Cultura. Seu uso para identificar uma categoria profissional começa a adquirir maior relevância nos países ibero-americanos somente a partir de meados da década de 1980. Os autores Zubíria, Trujillo e Tabares (2001) apresentam, pelo menos, três diferentes e significativas teses para a compreensão desse universo, no qual já expressam a tensão existente em torno desse tema, contribuindo para delinear o campo ainda conflituoso da gestão cultural. A primeira tese não apresenta grandes discussões em torno da gestão cultural, pois a considera apenas uma nova nomenclatura diante das denominações anteriores para esse campo de trabalho, de modo que não provoca alterações substanciais para o campo. A segunda tese considera pertinente a permanência das denominações anteriores, mas, ao associar a ideia de gestão e cultura, corre-se o risco de permitir uma ingerência excessiva do econômico e do mercado na dimensão cultural. A terceira tese, contrária à anterior, defende que a terminologia gestão cultural está mais próxima das transformações ocorridas nos últimos anos e, portanto, é a denominação que mais reflete a realidade atual do campo cultural. Tais concepções expressam certa tensão em torno do tema, mas, ao mesmo tempo, contribuem para delinear o campo profissional da Gestão Cultural. A partir do trecho acima, deve-se precisar a noção de gestão cultural, que, nas palavras de Andrés (2002): Es un conjunto de herramientas y metodologías empleadas en el diseño, producción, administración y evaluación de proyectos, equipamientos, programas o cualquier otro tipo de intervención que dentro del ámbito de la cultura creativa se realiza [...] con la finalidad de crear públicos, generar riqueza cultural o potenciar su desarrollo cultural en general (ANDRÉS, 2002, p. 8). Já nas palavras do autor Jorge Bernandez López (2003), Gestão Cultural: “Es la administración de los recursos de una organización cultural, con el objetivo de ofrecer un producto o servicio que llegue al mayor número de público o consumidores, procurándoles la máxima satisfacción. ” (LÓPEZ, 2003, p. 3).

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Assim, é preciso compreender que o trabalho em gestão cultural, embora discutido, ainda está em processo de adequação e de utilização de metodologias próprias para que possa haver sustentabilidade e viabilidade econômica da área cultural, o que não significa, de forma alguma, que se deva submetê-lo, como manifestação artística, às regras e lógicas de mercado. A expressão Gestão Cultural também entra nos discursos sobre Cultura na América Latina, na segunda metade da década de 1980, tanto em instituições governamentais como em grupos culturais das comunidades. Busca-se analisar a gestão cultural e apresentar novas perspectivas para seu entendimento que possibilitem compreender as lógicas que determinam as bases teóricas dos processos de gestão no âmbito da cultura. Discutem-se os conceitos apresentados por estudiosos da área, tendo em vista identificar e examinar as dimensões de tais conceitos, a fim de esboçar uma definição que dê conta de suas especificidades. Para tanto, o trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução e das considerações finais. a primeira trata do conceito de cultura e sua definição operacional; a segunda traça um paralelo entre os conceitos de administração, gerência e gestão; a terceira trata das noções pertinentes ao conceito de gestão cultural; a quarta apresenta as terminologias utilizadas; e por último, são feitas algumas distinções conceituais entre a Gestão Cultural e os termos Produção Cultural, Política Cultural e Ação Cultural. 2. CULTURA Procura-se, em primeiro lugar, conceituar cultura e estabelecer uma definição operacional, vale dizer, uma definição que dê conta das diversas formas de intervenção dos gestores no fazer cultural, isto é, a produção, distribuição e consumo de bens culturais. A cultura permeia todas as ações da sociedade e, por consequência, todos os programas de governo. Cultura é comportamento; manifesta-se nas mínimas relações do cotidiano; é postura frente ao mundo. Exemplificando: a organização de um povo para a realização de atividades de interesse coletivo, como a criação de cooperativas, é cultura; a conformidade ou inconformidade em enfrentar filas, sujeira nas ruas, maus cheiros, também podem ser manifestações de cultura; assim como o são todas as formas de resistência, o modo de encarar as adversidades, as lutas, individuais ou coletivas, tudo isto são fenômenos de natureza cultural. A literatura de antropologia, sociologia e ciências humanas em geral oferece centenas de definições de cultura. Não cabe aqui recuperá-las, nem mesmo fazer a sua crítica. Para os fins deste artigo, é conveniente adotar uma definição bastante ampla que contemple a perspectiva antropológica. Nas palavras de Lustosa da Costa (2006):

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A cultura aqui é entendida em sentido amplo, contemplando toda herança não biológica que faz a diferença entre os povos; vale dizer, os diversos processos de designação e simbolização (linguagens), as inúmeras maneiras de lidar com a morte, o desconhecido e o imaginado (religiões e artes), as formas singulares de se relacionar com a natureza (tecnologias), as maneiras particulares de regular as relações sociais (instituições), inclusive, a produção e distribuição de bens (economia), as diferenciadas formas de sociabilidade gratuita (festas, jogos e brincadeiras) e os julgamentos coletivos sobre o bom, o belo, o útil e o verdadeiro (ética, estética e pragmática) (LUSTOSA DA COSTA, 2006, p. 15). Este mesmo autor lembra que nem tudo é cultura, pois: Na verdade, o que caracteriza o trabalho da cultura é sua dinâmica intrínseca, sua interdependência com outras culturas, sua capacidade de renovação. Ela se faz mais pujante quando se atualiza, alimentando-se de suas bases materiais, do mundo da vida, do discurso sobre si mesma e, sem dúvida, da influência externa (LUSTOSA DA COSTA, 2013, p. 374) Para esta discussão convém circunscrever a noção de cultura ao universo da política, da produção e da gestão cultural, de modo a não deixá-la demasiadamente ampla e vaga. No âmbito deste artigo, interessa focalizar o aspecto da funcionalidade da cultura que pode subsidiar a construção de uma definição de gestão cultural. Portanto, pensar em cultura como objeto de gestão cultural requer que se proceda a uma redução ou operacionalização do conceito de cultura, no sentido de estabelecer o escopo da ação dos police makers e gestores. Pois, evidentemente, está fora do alcance de sua intervenção a maioria dos objetos materiais ou simbólicos que pode a imaginação humana criar. Em que pese se possa adotar uma definição ampla de cultura, fundada na perspectiva antropológica, cabe buscar uma operacionalização que inscreva a ação do Estado no domínio da Cultura. Segundo Thiry-Cherques (2012), “cultura é o sistema composto pelos objetos reais e ideais valorizados por uma sociedade”. (THIRY-CHERQUES (2012, p. 21). O autor concebe a cultura como um sistema de valores e objetos, no qual todo objeto cultural compreende uma forma que representa a linguagem e a capacidade de se mover de forma racional e normativa. Tem-se que o objeto cultural é representado por um valor, atribuído segundo os diferentes grupos sociais. Em resumo, são a expressão de sentimentos e conhecimentos, adotados por um grupo social ou pelo criador individual, o artista. Nesse sentido, a política e a gestão cultural apontam para os objetos culturais. 3. ADMINISTRAÇÃO, GERÊNCIA OU GESTÃO Procura-se também apresentar os conceitos de administração (gerência ou gerenciamento) e gestão em suas relações com esse fazer cultural. Isto significa que não se pretende exami-

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nar exaustivamente os conceitos de gestão, mas indicar aquilo que se considera essencial para estabelecer nexos com a produção cultural. Pretende-se ainda apresentar, analisar e discutir as principais definições de gestão cultural, adotadas por estudiosos identificados com a área. Antes de proceder a uma definição de gestão cultural, estabelecendo seu escopo, características e especificidades, é imprescindível analisar e discutir os próprios conceitos de administração, gerência e gestão. Antes de mais nada, cabe verificar se há alguma distinção entre estes termos. Apesar de a literatura referente ao tema ser vasta e crescente, existe muita discordância em relação ao que eles são e como ocorrem. O tema é aqui discutido buscando esclarecer alguns conceitos, tendo em vista a multiplicidade de enfoques, embora, hoje em dia, muitos autores estabeleçam distinções pouco fundamentadas. Como cada autor tem sua própria definição, para evitar envolvimento em discussões filosóficas, pretende-se fornecer definições simples e práticas para o entendimento dos três termos. O termo Administração trata dos problemas típicos das empresas ou organizações, como os recursos financeiros, recursos patrimoniais e recursos (ou talentos) humanos. Ela cria um ambiente favorável para realização dos objetivos. O termo Gerenciamento trata de níveis específicos da organização, como departamentos ou divisões ou projetos. O termo Gestão trata de níveis especializados, tanto no que diz respeito à administração, quanto ao gerenciamento. Para Motta (1991), a gerência é a arte de pensar, de decidir e de agir; a arte de fazer acontecer, de obter resultados. O aprendizado gerencial é o processo pelo qual o indivíduo adquire novos conhecimentos, atitudes e valores e fortalece sua capacidade de análise de problemas, envolvendo quatro dimensões básicas: [...] (1) a cognitiva, habilidade de compreender o particular por meio do conhecimento do geral; (2)a analítica, habilidade de saber a utilidade e a potencialidade das técnicas administrativas e adquirir mais realismo, profundidade e criatividade na solução de problemas; (3) a comportamental, habilidade de adquirir novas maneiras de interação humana, dentre padrões alternativos conhecidos e validados socialmente e; (4) a de ação, denota a capacidade de interferir intencionalmente no sistema organizacional. (MOTTA, 1991, p. 151). 4. GESTÃO CULTURAL Abordou-se a diversidade de olhares, a respeito da gestão cultural, a fim de apresentar as suas convergências e divergências. Acerca do conceito de gestão cultural, apresenta-se um breve mapeamento de caráter epistemológico e se elencam algumas sugestões para interpretação e usos do conceito. Desse modo, colocaram-se alguns desafios para dar início às reflexões. O tema da Gestão Cultural tem sido estudado, nos últimos dez anos, por pesquisadores de origens diversas, identificados com a “Cultura” ou com os “Estudos Culturais”, com contri-

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buições pontuais sobre o que acreditam ser a “Gestão Cultural”. Nesse sentido, a literatura sobre “Gestão Cultural” contempla temas os mais diversos: Política Cultural, Produção Cultural, Ação Cultural, Direitos Culturais e até Diversidade e Multiculturalismo. Mas a maioria dos autores diz muito pouco, especificamente, sobre Gestão Cultural, ainda que se aceite uma definição ampla do termo. A Gestão cultural, apesar de ser um termo recente, é associada a múltiplos significados e nomenclaturas: promoção cultural, gestão de cultura, mediação cultural, administração cultural, gestão da cultura, gestão das artes ou gestão da cultura. Vista dessa perspectiva, a Gestão Cultural incorpora uma amplitude conceitual extensa, o que implica no fato de a falta de especificidade ser um dos seus principais impasses teóricos. Daí ser deficiente quanto à sua construção científica. Os conceitos variam de amplitude: de definições restritas até às extremamente amplas que, a rigor, extrapolam o objeto da Gestão Cultural. A este respeito, Rubens Bayardo (2007) observa que “lo que está en el centro del debate no es la gestión, sino los modos y las conceptualizaciones que la orientan en tanto que fenomeno cultural. Lo imprescindible y central es lo que se entienda por gestión y cómo se le conciba”. (BAYARDO, 2007, p. 16). Decorre do entendimento deste autor que a gestão cultural como uma profissão comporta várias definições. Em contrapartida, os usos e perspectivas para a sua abordagem estão dados pelo contexto social e das disciplinas de que emergiu. Alfons Martinell (2008) reflete que: [...] a pesar de que la cultura siempre ha reclamado algún tipo de organización por parte de la comunidad, la gestión cultural, como la entendemos hoy en día, es un campo de actuación muy reciente. Podríamos afirmar que a pesar de su rápido crecimiento en los últimos años aún está en fase de estructuración y definición. (MARTINELL, 2008, p. 267). Mas por que falar em gestão cultural? Qual é o contexto que enquadra a aparição desta nova disciplina? Por que sua expansão? Para Ochoa (2014), a gestão cultural é implementada como uma ideia que, para muitos críticos, reduz a cultura a uma comercialização de produtos. Este é um terreno difícil quando: “una palavra sea utilizada de maneras tan distintas testifica su incoherencia fundamental como concepto unitario, pero al mismo tiempo, es aquí donde radica su fuerza y su trampa. (OCHOA, 2014, p. 8). A busca de definição do objeto e do escopo da gestão cultural pode se orientar para uma nova abordagem da gestão desse universo específico de organizações, projetos e manifestações. Conforme Lustosa da Costa, [...] essa definição consiste em discutir concepções particulares da natureza humana, das relações do indivíduo com o seu universo simbólico,

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dos métodos e práticas do fazer artístico (e cultural) e das relações entre ética e estética. Nessa concepção, a gestão cultural buscaria definir-se como gestão do belo e do sensível. (Anotações de sala de aula, 2014). É possível situar o locus e o focus da gestão cultural. Para o estabelecimento de um adequado referencial teórico-analítico é importante alcançar clareza no conceito de gestão cultural, indicando tanto o locus (objeto) como o focus (abordagem). Segundo Keinert (2000), eles podem ser verificados do ponto de vista metodológico. O locus indica o território a ser estudado e analisado, os fenômenos empíricos. O focus é a perspectiva teórica que subsidia as discussões, análises e compreensões no campo desta temática. Os processos de gestão cultural podem dar-se no âmbito de organizações da administração pública (secretarias de cultura, museus, centros culturais), em organizações da sociedade civil, como também na órbita de empresas, fundações ou institutos privados, a exemplo de grupos culturais de natureza comunitária. Em cada uma dessas instâncias, a gestão cultural possui características específicas, com diferentes graus de complexidade, e pode recorrer a ferramentas de gestão que melhor se adequem aos objetivos visados. A gestão cultural precisa criar referenciais próprios de ação, adaptados às suas particularidades, com base no conhecimento do contexto no qual vai atuar. Como agente de mudança, o gestor precisa estar atento ao cenário cultural, através da identificação das demandas de públicos diferenciados. Além disso, assume um papel de mediador que opera entre atores diversos. 5. TERMINOLOGIAS UTILIZADAS Administração Cultural, como um ramo da administração, trata do conhecimento dos objetivos, prioridades, suas avaliações, alternativas de ação, formulação de planos complementares, organização e execução de ações e consequentemente suas avaliações, seguidas da medição de resultados operacionais, financeiros, contábeis, legais que darão o suporte a uma boa gestão. Gerência Cultural, também como um ramo da administração, informa e capacita os trabalhadores culturais para resolver problemas. Gestão Cultural, portanto, por um lado, tem um universo cultural amplo, marcado pelo compartilhamento de redes de significados; por outro, tem a especificidade de alguns significados, e não deve ser pensada como um fim último. Colombres (2009) aponta para a administração cultural que foi substituída por gestão cultural, desde que a primeira foi questionada por vários setores da área cultural, e conclui: “una primera definición que nos acerca a las posibilidades de la palabra es que si bien ésta está relacionada com la administración, com la obligación de rendir cuentas también implica dar origen, generar, producir hechos, conducir realizaracciones” (COLOMBRES, 2009, p. 26). A gestão cultural, designada como um campo de atuação profissional, está vinculada à denominação que mais reflete a realidade das pesquisas atuais. É preciso compreender que o trabalho em gestão cultural ainda está em processo de adequação e de utilização de metodologias próprias. 327

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6. ALGUMAS DISTINÇÕES CONCEITUAIS Convém que se façam agora algumas distinções conceituais entre a Gestão Cultural e os termos Produção Cultural, Política Cultural e Ação Cultural. 6.1. Gestão Cultural e Produção Cultural A produção cultural dedica-se a toda atividade profissional que consiste em gerenciar desde a organização de eventos culturais até à confecção de bens culturais. Os produtores culturais podem organizar shows, exposições de arte, espetáculos de música, dança, teatro, bem como coordenar a gravação de um filme, de discos, de vídeos, programas de TV, rádio, e inúmeras outras atividades de expressão cultural. Rubim (2005) sugere três movimentos mínimos de criação, divulgação/transmissão e organização. No entanto, dentro da noção de “assimilar a complexidade e as vicissitudes do mundo contemporâneo” (RUBIM, 2005, p. 15) associa o sistema econômico e a complexidade da sociedade com o sistema cultural. Canclini (1997) destaca que, dentro de uma ordem material, não existirá “produção de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais”. (CANCLINI, 1997, p. 29). Neste sentido Gadelha e Barbalho (2013) compreendem que existem: a) Meios de produção (os recursos tecnológicos para a produção artística e as modificações ocorridas pela introdução de novos materiais – acrílicos, plásticos – e novos procedimentos – multiplicação, mecânica ou eletrônica da imagem); b) Relações sociais de produção (entre artistas, intermediários e público; relações institucionais, comerciais, publicitárias; interação dentro do país e com a arte estrangeira). (GADELHA e BARBALHO, 2013, p. 13) Nesse contexto estrutural há uma relação construída dentro do processo artístico (autor-oba-intermediário- público) e a sociedade. Assim, é preciso ter ciência da associação entre material e simbólico dentro da definição de produção cultural. 6.1.1.Gestão Cultural e Política Cultural A política cultural dedica-se aos princípios, meios e fins responsáveis por nortear as ações. Difere da gestão cultural, como a capacidade de resposta no âmbito local e em sua relação com uma sociedade global e conectada. Esta pauta-se pela organização dos meios disponíveis para execução destes princípios e fins. Portanto, a gestão cultural faz parte do processo da política cultural. Apreende-se da análise de Marilena Chauí (1995) que, sob o ponto de vista da cultura política, a gestão cultural refere-se ao estimulo de formas de auto-organização da sociedade e sobretudo das camadas populares, criando o sentimento e a prática da cidadania participativa.

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Neste sentido é preciso compreender e identificar, na política cultural brasileira, sua tradição oligárquica, autoritária com que opera com a cultura, a partir de um Estado, com diversas modalidades de relação com a cultura. A corrente liberal identifica cultura e belas-artes, estas últimas vistas como privilégio de uma elite escolarizada e consumidora de produtos culturais. A corrente autoritária se apresenta como produtor oficial de cultura e censor da produção cultural da sociedade civil. A corrente populista manipula uma abstração genericamente denominada cultura popular, entendida como produção cultural do povo e identificada com o pequeno artesanato e o folclore, isto é, com a versão popular das belas-artes e da indústria cultural. A corrente neoliberal, que identifica cultura e evento de massa, consagra todas as manifestações desenvolvidas pela massmidia, e tende a privatizar as instituições públicas de cultura, deixando-as sob a responsabilidade de empresários culturais. (Chauí,1995)  Um aspecto relevante nesta análise é observar a relação dos produtores e agentes culturais (gestores) com os órgãos públicos. Observa-se a influência de natureza clientelista das corporações artísticas que encaram o Estado sob a perspectiva do grande balcão de subsídios e patrocínios financeiros. Tem-se que as práticas, valores, ideias e comportamentos colaboram para ampliar a visão de todos os envolvidos na atuação de sujeitos culturais. Teixeira Coelho (1997) completa essa definição afirmando que as iniciativas dos agentes visam “promover a produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável”; considera, ainda, política cultural como uma “ciência da organização das estruturas culturais” que tem como objetivo “o estudo dos diferentes modos de proposição e agenciamento dessas iniciativas, bem como a compreensão de suas significações nos diferentes contextos sociais em que se apresentam”. (TEIXEIRA COELHO,1997, p. 292) Para Canclini (2001), as políticas culturais resumem-se a um “conjunto de atividades realizadas pelo Estado, instituições civis e grupos comunitários organizados a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social”. (CANCLINI,2001, p. 65). Yúdice (2002) reforça o caráter administrativo e burocrático de uma política cultural: La política cultural se refiere a los soportes institucionales que canalizan tanto la criatividad estética como los estilos colectivos de vida: é um puente entre los dos registros. La política cultural se encarna en guías para la acción sistemáticas e regulatorias que adoptan las instituiciones a fin de alcanzar sus metas. Em suma, es más burocrática que criativa u orgânica (YÚDICE, 2002, p. 11) As discussões suscitadas pelo conceito de políticas culturais estão focadas no campo de atuação dessas políticas e nos agentes envolvidos em sua formulação e prática. Isaura Botelho (2008) reconhece duas dimensões da cultura que deveriam ser consideradas alvo das políti-

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cas culturais. A dimensão sociológica, distintamente privilegiada por tais políticas, refere-se ao mercado, à cultura “elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão”. (BOTELHO, 2008, p. 47). Já a dimensão antropológica remete à cultura produzida no cotidiano, representada pelos pequenos mundos construídos pelos indivíduos, que lhes garante equilíbrio e estabilidade no convívio social. Esta última perspectiva apresenta-se como o grande desafio para o alcance dos gestores da cultura. Por sua vez, o reconhecimento do caráter público de uma política cultural se configura como mais um dilema na definição deste termo.   6.1.2. Gestão Cultural e Ação Cultural A ação cultural articula os processos de mediação entre as práticas culturais e os diversos públicos com os quais elas se relacionam. É a partir desse conceito que se tem o entendimento da gestão cultural e de suas ferramentas que podem potencializar os resultados de ações e projetos, e auxiliar na construção de condições de sustentabilidade a longo prazo. De acordo com Teixeira Coelho (2008), “a noção contemporânea de ação cultural é condizente com a visão mais ampla da cultura como ação: o objetivo da ação cultural (a meta de toda política cultural) é a criação das condições para que as pessoas inventem seus próprios fins”. (TEIXEIRA COELHO,2008, P.22). Alkmin (2007) apresenta uma detida reflexão para ação ou animação cultural: “esta ação cultural estaria vinculada aos valores da diminuição das desigualdades culturais; à abertura de espaço para novos talentos; à análise das ideologias; experimentação e despertar de novos interesses; à formação de públicos e, por fim, à recuperação de registros históricos”. (ALKMIN, 2007, p. 5). Como contribuição dessa reflexão, Wanderley (2011) apresentou uma possível definição para o termo ação cultural no qual, de maneira confluente, esta “fica reconhecida como uma intervenção que é ao mesmo tempo técnica, política, social e econômica, promovida pelos órgãos públicos, privados e do terceiro setor. ” (WANDERLEY,2011, P.9). Para Villhena (2009): A ação cultural concebe programas, projetos e atividades relativos ao aprendizado de técnicas artesanais, artísticas e científicas; à difusão de obras simbólicas; à formação de grupos sociais, em defesa de direitos civis ou de cidadania; à educação popular de tratamento informal; ao aprendizado de habilidades corporais e desportivas. (VILHENA, 2009, P.4) Conforme Castro (2010), “a ação cultural está ligada ao turismo social; à conservação e popularização do patrimônio; à criação ou formação de centros de informação; ao treinamento de animadores semiprofissionais”. (CASTRO, 2010, P.12). Cabe ainda ressaltar que estes saberes estariam resguardados por um ambiente adequado à prática e à teoria, capaz de transmitir conteúdos inovadores, alinhado com o meio no qual esta ação é proposta e que, por último, possibilitasse o desdobramento da experiência vivida.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dado que a gestão cultural precisa criar referenciais próprios de ação, adaptados às suas particularidades, o diálogo com a política cultural perpassa por contextos político-institucionais, como a própria estrutura interna do Ministério da Cultura, o marco legal do país. Assim como a heterogeneidade dos gestores que condiciona a sua gestão e limita o alcance de seus objetivos. Há um entendimento extremamente racionalista sobre o conceito de cultura, na prática da gestão cultural, fato que a submete a elementos de política pública alheios a ela. Esta circunstância passa a gerar conflitos no processo de planejamento das ações culturais. Com as ferramentas que a ciência e a experiência prática já comprovaram, o tema levanta novos paradigmas conceituais que devem ser levados em conta pelos agentes culturais do presente e do futuro. A gestão cultural aproxima-se do conceito de política cultural, uma vez que implica em fazer escolhas. Nesse sentido, é clara a opção do Ministério da Cultura por alguns segmentos específicos da população, ao privilegiar sobre tudo aquela parcela da sociedade que se encontra diante de todo tipo de exclusão – social, cultural, econômica. Uma das características da gestão cultural é a de contar com certa liberdade para adequação às finalidades específicas da cultura. Talvez uma das capacidades mais requeridas aos gestores seja exatamente a de adaptabilidade às condições do contexto. Como a literatura sobre gestão cultural no Brasil é ainda incipiente, o conhecimento mais aplicado do assunto tem um grande percurso à frente. O primeiro desafio importante para a gestão cultural refere-se à sua própria operacionalização. Isto tem despertado grande interesse no âmbito acadêmico das escolas de gestão. O segundo desafio consiste numa maior preocupação com a formação de gestores culturais e seu reconhecimento como atividade profissional. A análise até aqui desenvolvida ajuda a compreender por que as políticas públicas para o setor cultural estão mudando, principalmente nos países em desenvolvimento. Impõe-se que sejam considerados os aspectos econômicos, sociais e políticos pertinentes, bem como as contradições socioeconômicas e os conflitos de interesses emergentes em escala internacional.

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THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Projetos Culturais: técnicas de modelagem. 2ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro, Editora FGV. 2012. Vilhena, Deolinda Catarina França de. Produção teatral: da prática à teoria. A sistematização de uma disciplina. Anais do V ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. CD Rom. Salvador, UBFA, 2009. WANDERLEY, Gustavo T. Dinâmicas de Espaços Culturais Independentes. http://www.funarte.gov.br/ encontro/wpcontent/uploads/2011/08/Artigo_Gustavo_Wanderley.pdf. Acesso em: 24 nov. 2014. YÚDICE, G. El recurso de la cultura. Usos de la cultura en la era global, Gedisa ed., Barcelona, España. 2002. ZUBÍRIA SAMPER, Sergio de; ABELLO TRUJILLO, Ignacio; TABARES, Marta. Conceptos básicos de administración y gestión cultural, 2ª ed. Cuadernos de Iberoamerica. OEI, Madrid: 2001.

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AFIRMAÇÃO E EXPANSÃO TERRITORIAL EM POLÍTICAS CULTURAIS: UMA ANÁLISE DOS PROGRAMAS CULTURA VIVA E ARTE NA RUA PELA PERSPECTIVA DO TERRITÓRIO Beatriz Terra Freitas1 RESUMO: O presente trabalho procura, ensaisticamente, fazer uma análise da perspectiva do território e das territorialidades nas políticas culturais, mais precisamente nos programas Cultura Viva, do governo federal, e Arte na Rua, no município de Niterói – Rio de Janeiro. Para isso, serão trabalhados os conceitos de política cultural e território e serão desenvolvidas duas categorias: políticas de expansão territorial das manifestações artístico-culturais e políticas de afirmação territorial das manifestações artístico-culturais. O artigo também busca estudar o território dentro da concepção das políticas urbanas, através do Caminho Niemeyer em Niterói. PALAVRAS-CHAVE: Políticas culturais, território, Caminho Niemeyer, Arte na Rua, Cultura Viva.

1. INTRODUÇÃO – PROBLEMATIZAÇÃO DO CONCEITO Para dar início a esse trabalho, é importante elucidar alguns pontos. O conceito de política cultural é amplo, complexo e abarca contradições. Talvez por isso, poucos são os autores que buscam dar uma definição concreta do termo. Alexandre Barbalho (2005) vai realizar um esforço de desconstruir o conceito na concepção de Teixeira Coelho para, depois, reconstruí-lo. Política cultural existe nas ações concretas, nas relações sociais, não é uma ciência, um saber específico; mas é, e deve ser, objeto de análise e estudos acadêmicos. Primeiro, é preciso dizer que é um desafio lidar com política cultural. Cultura, em sua concepção mais contemporânea, é flexível e fluida. Está nos encontros, nas trocas, nas misturas. O desafio está em como o campo das políticas públicas – um campo mais rígido e fixo – vai lidar com a maleabilidade do campo cultural. Certeau (2012, p. 234) vai dizer que “A gestão de uma sociedade deixa um enorme ‘resto’.” E esse resto, gerado pelos embates, é o que seria considerado cultura. Em outro momento, o autor faz uma analogia com o termo “espuma”, porque cultura é aquilo que escapa às mãos dos gestores culturais. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCult – UFF) e pesquisadora na Fundação Casa de Rui Barbosa, setor de Estudos de Política Cultural. [email protected] 1

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A partir disso, há de se tornar claro, também, que este trabalho considera e reconhece política cultural para além da esfera governamental. Aqui, política cultural – e política pública de uma maneira geral – é entendida por práticas e ações feitas tanto por setores estatais quanto não-estatais, ampliando o conceito mais comum e ordinário que se tem atualmente. Sobre isso, Barbalho diz: Uma última questão que gostaria de acrescentar nesse nosso percurso em torno do conceito de política cultural é a possibilidade de que alguns pesquisadores discordem de se compreender intervenções não-estatais na cultura como política cultural. Creio que nestes casos há uma visão estreita do significado de público, entendido como sinônimo de Estado. Essa igualdade estabelecida entre Estado=público nega a existência da esfera pública e é particularmente complicada quando se refere à cultura e à política. (BARBALHO, 2005, p.40) É necessário lembrar que o Estado não é um agente ou um ator. São relações sociais, relações de forças, onde se tem disputas e jogos, e onde – apesar de ser, aparentemente, distanciado de nós, algo externo a nós – a sociedade civil está incluída. E, por ser uma relação, pode haver um uso desigual, principalmente, se pensarmos que os sujeitos acionam as políticas culturais segundo seus instrumentos e meios, ou seja, sujeitos não acionam as políticas culturais de forma igualitária, pois estão posicionados no mundo de modos diferentes. O mercado também é um agente não-estatal que deve ser pensado nesse trabalho. Harvey (2006), ao definir renda monopolista, diz: O que espero ter exposto, ao invocar o conceito de renda monopolista dentro da lógica da acumulação do capital, é que o capital possui meios de se apropriar e extrair excedentes das diferenças locais, das variações culturais locais e dos significados estéticos, não obstante a origem. [...] O problema para o capital é achar os meios de cooptar, subordinar, mercadorizar e monetizar tais diferenças apenas o suficiente para ser capaz de se apropriar das rendas monopolistas disto. (HARVEY, 2006, p. 237, 238) O papel do mercado é, justamente, cooptar e subordinar o que ele puder e isso se torna problemático, especialmente, quando as fronteiras entre o Estado e o mercado são desvanecidas e o papel de um e outro começa a ser confundido, como tem acontecido no caso das parcerias público-privadas (PPP). Barbalho levanta essa questão: Interessa observar, no entanto, como o Estado, na sua interface com o setor privado, se redime da atuação como contraponto, como alternativa, que é o que se espera de regimes democráticos... [...] De modo que, por falta de uma política governamental bem definida e delineada, a cultura vem se tornando cada vez mais dependente do mercado e de sua “mão invisível”. E perde sua garantia de efetivar-se como direito fundamental. (BARBALHO, op. cit., p. 42)

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Dito isso, é conveniente dizer que nesse artigo, nos próximos itens, será trabalhada a questão institucional das políticas culturais. O primeiro ponto trará os conceitos de hegemonia e isotopia dentro do Caminho Niemeyer (Niterói-RJ), por ser um objeto que dialoga com temas de requalificação e planejamento estratégico; o segundo ponto tecerá duas categorias pensadas para esse trabalho, na perspectiva das políticas culturais. O objetivo de tratar da política cultural no seu âmbito institucional é para dar conta de analisar, ainda que ensaisticamente, como o Estado tem lidado com a questão do território dentro de seus programas e projetos de governo. 2. PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO, HEGEMONIA E ISOTOPIA: CAMINHO NIEMEYER E POLÍTICAS URBANAS Como princípio norteador deste trabalho, consideraremos que o território é tanto formado pelos sujeitos e grupos como formador das identidades desses sujeitos e grupos. As vivências e redes que se desenvolvem em um lugar vão além das fronteiras estabelecidas por um mapa físico, rígido em seus limites. A partir das relações traçadas ali, trocas e diálogos, faz-se clara uma relação entre cultura e território. Sendo assim, trabalhar com políticas urbanas também é importante dentro de um contexto das políticas culturais, visto que uma política urbana pode influenciar diretamente numa política cultural. Por esse motivo, neste item do presente artigo, falaremos de uma característica, se assim posso chamar, dos governos de forma geral e em outro momento, entraremos no caso do Caminho Niemeyer, aplicando o que foi visto antes. Atualmente, existe uma tendência nas grandes cidades – cidades com características internacionais, ou que querem passar a ter – de realizar grandes projetos de intervenção urbana a fim de “inovar” as cidades, criar um marketing urbano2 para vender a imagem da cidade, transformando-a em um cenário a ser consumido, em uma vitrine, um cartão-postal. Fazem parte, desse contexto, as PPP – como já foi mencionada anteriormente – que promovem certas fusões entre o mercado e o governo para desenvolvimento de um planejamento estratégico ou projetos de revitalização/requalificação, conceitos primordiais nesse contexto. Dentro desses projetos, a dimensão cultural tem sido utilizada muitas vezes para “validar” essas grandes intervenções diante da população local, como a construção de museus, teatros, entre outros equipamentos culturais. Arantes (2013, p. 15) diz que: quando, nos dias de hoje, se fala de cidade (pensando estar “fazendo cidade”...), fala-se cada vez menos em racionalidade, funcionalidade, zoneamento, plano-diretor etc., e cada vez mais em requalificação, mas em termos tais que a ênfase deixa de estar predominantemente na ordem técnica do Plano – como queriam os modernos – para cair no vasto domínio passe-partout do assim chamado “cultural” e sua imensa gama de produtos variados. Também pode ser chamado de city marketing. Trata-se de reorganizar e inovar a imagem das cidades para, principalmente, atrair entrada de turistas e de investimentos do capital financeiro estrangeiro.

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A cooptação de autenticidades culturais locais, como já diria Harvey, pelo capital levam a um discurso que busca produzir um sentido único. Segundo Arantes, através disso, forma-se um pensamento único, um senso comum acerca dos planejamentos urbanos. Quem faz a cidade – os planejadores urbanos e o mercado – irá utilizar-se de um enunciado cultural para “abrilhantar” – e com isso, deixar acima de qualquer questionamento – seu projeto. Assim sendo, essa formação da cidade, esse discurso empregado para implantação dos projetos excluindo – ou fazendo de tudo possível para excluir ou dificultar – a participação social, torna-se, aparentemente homogênea. Um discurso quase natural. É a hegemonia3 atuando. E a hegemonia parece eterna, mas são disputas de sentido, são blocos históricos, como diz Gramsci. No campo da política cultural, a hegemonia é bem aplicada, pois não se questiona a forma como o Estado age nesse campo. Por esse motivo, é importante procurar fazer um esforço para explanar o conceito de política cultural antes de utilizá-lo, a fim de tratá-lo de forma ampliada e deixar claro de que limites estamos falando. Gramsci afirma que a sociedade civil é complexa. Dentro desse contexto da hegemonia e do consenso, há também os sujeitos com autonomia. Lefebvre (1999, p. 40) diz que a coerência nessa coexistência “é apenas aparente, ainda que essa aparência se fortaleça através de sistematizações imperiosas.” Nesse sentido, ele apresenta o conceito de isotopia que é, nas palavras do autor, “um lugar (topos) e o que o envolve (vizinhança, arredores imediatos), isto é, o que faz um mesmo lugar. Se noutra parte existe um lugar homólogo ou análogo, ele entra na isotopia.” (Ibidem, p.43) No atual momento em que vivemos, os lugares parecem-se muito uns com os outros. As cidades buscam em outras maiores inspirações para seus planejamentos urbanísticos que geram – quase como uma ordem – as mesmas conseqüências: processos de espetacularização4, gentrificação5, entre outros. Ao mesmo tempo, Lefebvre diz que há a heterotopia: “Entretanto, ao lado do ‘lugar mesmo’, há o lugar outro, ou o outro lugar. O que o torna outro? Uma diferença que o caracteriza, situando-o (situando-se) em relação ao lugar inicialmente considerado.” 6 Essa diferença é o que possibilita os encontros, as trocas, o contato com o diverso, formando um campo de tensões altamente complexo, um possível-impossível como diz o autor. O alhures, como o autor usa, é o que propicia as brechas, onde podemos resistir, ainda que seja uma micro-resistência em comparação Hegemonia, em Gramsci, é a formação de um bloco histórico e ideológico que, através de um sistema de alianças com alguns setores da sociedade, cria consensos e uniformiza o pensamento. 4 Processo que, a partir das grandes intervenções urbanas dos planejamentos estratégicos, esvazia os espaços, dificultando a apropriação daquele espaço pela população local. Espaços que são voltados à visitação – consumação – turística. 5 Termo oriundo da palavra da língua inglesa gentry, “gente de boa família” em livre tradução. Gentrification foi desenvolvido para falar de ressignificações dos espaços da cidade. Gentrificação ficou mais ligado a expulsão de uma população pobre de um determinado local que passa por um processo de elitização. 6 Idem 3

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ao poder esmagador da hegemonia. Mas é nessa resistência que se tenta mostrar que nem tudo é igual e nem tudo pode ser subordinado pelo discurso dominante. Nessa lógica, Certeau diz: Assim, as maneiras de utilizar o espaço fogem à planificação urbanística: capaz de criar uma composição de lugares, de espaços ocupados e espaços vazios, que permitem ou impedem a circulação, o urbanista é incapaz de articular essa racionalidade em concreto com os sistemas culturais, múltiplos, fluidos, que organizam a ocupação efetiva dos espaços internos (apartamentos, escadarias etc.) ou externos (ruas, praças etc.) e que os debilitam com vias inumeráveis. (CERTEAU, op. cit., p. 233). Como exemplo, podemos olhar mais de perto o objeto proposto para este item do trabalho. O Caminho Niemeyer vai do espaço atrás do Terminal Rodoviário João Goulart – que contém os prédios do Teatro Popular, Memorial Roberto Silveira e Fundação Oscar Niemeyer – no bairro do Centro de Niterói, até a Estação das Barcas em Charitas, passando pela Praça Juscelino Kubitscheck (Centro), pelo Museu Petrobrás de Cinema (São Domingos) e pelo Museu de Arte Contemporânea – MAC (Boa Viagem). O projeto foi idealizado após o “sucesso” da construção do MAC que, teoricamente, devolveu a auto-estima que a cidade havia perdido quando deixou de ser capital do estado do Rio de Janeiro. O MAC passou para o Brasil uma imagem de uma Niterói moderna, projetada para o futuro, por ter uma obra do famoso arquiteto Oscar Niemeyer. Logo, a logomarca da Prefeitura seria trocada do brasão7 – usada em documentos oficiais – para um desenho do MAC, utilizado tanto em documentos oficiais, como nas mídias. Por problemas entre a UFF e a Prefeitura com relação aos terrenos que seriam dedicados para a construção do Caminho, a Prefeitura teve de realocar o projeto, uma parte ficando atrás do Terminal Rodoviário, na época chamado de Aterrado Norte e mal quisto pelos moradores do Centro devido a anos de abandono. Por isso, o Caminho converteu-se em um descontinuado, sem uma ligação clara entre seus prédios. E, essa parte localizada atrás do Terminal Rodoviário, acabou não tendo uma integração com o Centro de Niterói; fica escondida por vazios urbanos (estacionamentos, áreas degradas, com mato crescente) e pelo próprio Terminal. O Caminho Niemeyer foi pensado às pressas, deixando muitas falhas em relação à legalidade de sua implantação. O prefeito à época, Jorge Roberto Silveira (PDT – Partido Democrático Trabalhista), passou por cima da sociedade civil – ao não realizar audiências públicas, por exemplo –, da Câmara dos Vereadores e da Lei Orgânica do Município para aprovação e construção do projeto. Escolheu Selmo Treiger, empresário e engenheiro para a presidência do Grupo Executivo do Caminho Niemeyer, fazendo deste um braço empresarial da prefeitura, reforçando os laços das PPP. Assim sendo, parece que o Caminho segue uma tendência, já comentada anteriormente, do marketing urbano a fim de vender a imagem da cidade para atração Brasão é um desenho criado para classificar uma família, clã, cidades, regiões etc. obedecendo às leis da heráldica que estabelecem regras para os símbolos criados. 7

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turística e de capital financeiro. Durante o processo, o discurso da Prefeitura é de que o Caminho Niemeyer iria revitalizar a área do Centro de Niterói, mas só o fato de um conjunto de prédios de Oscar Niemeyer ter ficado escondido devido à falta de integração com o Centro, já aponta que esse projeto não deu certo. Com a entrada de Rodrigo Neves (PT – Partido dos Trabalhadores) na Prefeitura de Niterói, em 2013, havia um interesse, junto com a Secretaria Municipal de Cultura, de retomar as atividades do Teatro Popular Oscar Niemeyer, ação que só pode ser realizada a partir da entrada da Ampla8 como parceira. Desde outubro de 2013, então, tanto o Teatro quanto o Memorial Roberto Silveira estavam funcionando com programação frequente e a Fundação Oscar Niemeyer estava abrigando a presidência do Caminho Niemeyer e alguns órgãos da Prefeitura. Entretanto, em pesquisa realizada em 2014, pude perceber que o Caminho Niemeyer tinha pouca visitação – exceto em dias de grandes shows. Alguns moradores do Centro que foram entrevistados – fora do Caminho Niemeyer, na Avenida Rio Branco, principal Avenida do bairro – não frequentavam, por vezes nem sabiam o que era. As poucas pessoas com quem conversei dentro do Caminho eram turistas, quando não eram os próprios funcionários. Marcos Gomes, presidente do Caminho Niemeyer, demonstrou um desejo, por parte da municipalidade, de criar um sentimento de pertencimento entre os moradores da cidade e o Caminho e fazer com que as pessoas conhecessem o espaço e convivessem lá. No início de 2015, viam-se mais pessoas no Caminho, mais apropriação: pessoas sentadas na curta faixa de grama que tem perto do mar, conversando, fazendo piqueniques, entre outras atividades. Porém, ao mesmo tempo em que mais sujeitos tomaram aquele espaço para si, o lugar passou a ser mais regulado. Uma guarita na entrada do Caminho Niemeyer onde, em 2014 não ficava ninguém, em 2015 passou a ter alguns funcionários que, de forma aleatória – ou não –, pedem a documentação para algumas pessoas. A entrada para carro que antes ficava o tempo todo aberta, agora mantém uma cancela. Simultaneamente, também no início de 2015, muitas pessoas passaram a andar de patins e skates no Caminho Niemeyer, aproveitando que é um tipo de espaço que falta na cidade e é propício para isso, visto que o terreno é plaqueado9, característica das obras do arquiteto. A princípio foi um movimento espontâneo da população, mas devido ao êxito da ação, foi cooptado tanto pelo mercado – ao começar, em alguns eventos, a colocar barracas para vender artigos de esporte, especialmente para patins e skates – como pela Prefeitura – ao fazer uso do movimento como propaganda positiva para mostrar que ela começou a ação e que está incentivando esse tipo de uso do espaço. Empresa de energia que presta serviços à região Metropolitana do Estado do Rio Janeiro, principalmente os municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Magé. 9 Plaqueado é definido pela colocação de grandes placas de cimento em uma área plana. 8

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Dessa forma, explicitam-se as tensões e contradições do espaço e da relação entre Estado e agentes não-estatais. Como na cultura, essa relação que se cria entre a população e o objeto espetacular é complexa e dinâmica. Ela muda de acordo com as ações e respostas dos agentes inseridos no processo. Apesar do esforço empreendido pelo capital e pela esfera pública em controlar e regular um território, desde sua idealização no papel, passando por sua construção, até sua operação e manutenção, as ligações que são ali feitas e desenvolvidas, as práticas culturais, as trocas, os diálogos, os encontros10... São micro-resistências, são formas de “conter e resistir” – segundo Hall –, são meios de agir nas brechas contra o discurso homogeneizador. 3. POLÍTICAS DE AFIRMAÇÃO TERRITORIAL DAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICO-CULTURAIS E POLÍTICAS DE EXPANSÃO TERRITORIAL DAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICO-CULTURAIS Ainda não há uma bibliografia extensa que se debruce sobre o tema das políticas culturais, procurando explicitar e ampliar o conceito antes de usá-lo como algo corriqueiro, como algo subentendido. Menos ainda há trabalhos que façam uma ligação entre políticas culturais e territorialidades. O papel das políticas culturais deve ser, para além das menções já feitas, o de desmascarar as relações de institucionalização, de demonstrar a dimensão do que é público. Entretanto, nos programas de governo, esse objetivo não fica claro. Para esse trabalho, foram desenvolvidas duas categorias para pensar a relação entre território e políticas culturais: políticas de afirmação territorial das manifestações artístico-culturais e políticas de extensão territorial das manifestações artístico-culturais. A primeira se caracteriza por programas e ações de governo que têm como objetivo fomentar e incentivar as manifestações já existentes em um determinado território; a segunda é definida por programas e ações de governo que buscam levar um produto cultural ou uma manifestação já pronta e fechada para um determinado território. É importante ressaltar que essas categorias não são, necessariamente, contrárias, opostas. Dentro de um mesmo programa, às vezes, podemos aplicar as duas categorias ou pode haver contradições. Há contaminação entre elas. Além disso, não se pode dizer que um modelo é melhor que o outro, ambos tem problemas e aplicações positivas. A fim de aplicar essas categorias, serão trabalhados aqui – como mencionei antes, ensaisticamente – dois casos: O Programa Cultura Viva do governo federal e o Arte na Rua do município de Niterói.

“Encontros” entendido aqui, segundo Bhabha, quando diz que cultura é feita no encontro com o diverso, o diferente. 10

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3.1 O Programa Cultura Viva O Programa Cultura Viva foi criado e regulamentado em 2004 e 2005 por meio de duas portarias do Ministério da Cultura – MinC e estava vinculado à Secretaria de Programas e Projetos Culturais – SPPC11, cujo secretário, na época, era Célio Turino. Tem como objetivo “a ampliação do acesso da população aos meios de produção, circulação e fruição cultural”12 e possui três palavras-chave: autonomia, empoderamento e protagonismo. Uma das principais ações do Programa são os Pontos de Cultura, que se caracterizam pelo fomento a iniciativas culturais já existentes, através de editais de prêmios e bolsas. Segundo Turino (2009, p.85): O objetivo do programa é integrar o Ponto a um sistema mais amplo, vivo, pulsante. Conforme historiado, Ponto de Cultura e programa Cultura Viva nascem juntos e estão indissociavelmente associados, como pode ser verificado no documento de formulação do programa, escrito em junho de 2004: “O Cultura Viva é concebido como uma rede orgânica de gestão, agitação e criação cultural e terá por base de articulação o Ponto de Cultura”. No início, o Programa contava com cinco ações: os Pontos de Cultura, a Escola Viva, Griôs, Cultura Digital e Agente Cultura Viva, todas elas sendo vinculadas aos Pontos de Cultura. De 2005 a 2011, foram abertos 3.670 pontos de cultura em todos os estados, (de acordo com o site do MinC), numa tentativa de capilarizar o programa. Em 2013, o programa passou por uma reformulação, tendo inclusive mudado o nome do programa para “Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural – Cultura Viva” (sendo antes chamado de Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania - Cultura Viva). O tema da diversidade cultural no Brasil foi uma das ênfases do Programa desde sua criação. No novo formato, uma das principais mudanças nessa reformulação foi a permissão para que grupos culturais sem CNPJ pudessem participar dos editais, diminuindo a burocracia do processo e possibilitando que muitos grupos e manifestações culturais fossem beneficiados com o programa. Célio Turino destaca alguns problemas no funcionamento do programa: Quando viajo pelo Brasil e realizo encontros e reuniões com Pontos de Cultura, percebo que esse compartilhamento é real. Enquanto método de gestão, o programa enfrentou inúmeras dificuldades, burocratismo no processo de conveniamento, normas inadequadas à realidade, atraso no pagamento de bolsas para jovens, atraso no repasse de recursos aos Pontos, prestação de contas emperrada e em desajuste com a dinâmica da vida. Se observarmos bem, até os recursos repassados não são tão expressivos, R$ 60 mil por ano, equivalentes a R$ 5 mil por mês. Apesar A SPPC foi criada em 2004 juntamente com a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural – SID. Atualmente, nenhuma das duas consta mais no organograma do MinC. 12 Disponível em http://www.cultura.gov.br/culturaviva/culturaviva/objetivos-e-publico 11

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das limitações, a adesão e o apoio ao programa são efetivos. Os participantes tomaram o Cultura Viva para si, se apropriaram dos valores do programa e começam a identificar-se como movimento social, até se definindo como “ponteiros”. (Ibidem, p. 87) Em 2014, foi sancionada a Lei Cultura Viva que tenta desburocratizar os processos de prestação de contas e o repasse de recursos. Uma das novidades é a auto-declaração como Ponto de Cultura, que ainda está sendo implantando e gerando dúvidas entre os representantes dos Pontos. Primordialmente, o programa busca, através dos Pontos de Cultura, fomentar as ações já existentes em um determinado lugar, dando aos grupos incentivos financeiros e meios para iniciar o Ponto e mantê-lo após a retirada do incentivo, que tem duração de dois anos. Dessa forma, muitas comunidades periféricas que não eram contempladas com políticas culturais de forma geral, passaram a ser e assumiram uma posição no mapa político-cultural. À esse programa, atribuo a categoria das políticas de afirmação territorial das manifestações artístico-culturais pois as manifestações já existentes são as que são contempladas no programa e o incentivo é de que os agentes locais administrem e mantenham o Ponto. Porém, uma crítica ao programa deve ser clara, para além das críticas feitas pelo próprio Turino sobre a burocratização dos processos de conveniamento e prestação de contas – algo que, de fato, prejudicou o funcionamento de muitos Pontos, obrigando-os a pararem as atividades. O programa acaba por nublar as possibilidades que os sujeitos têm de lutar contra o financiamento público e de ser subordinado pela lógica do Estado. O próprio Turino comenta: “Há risco de, nesse processo, os movimentos culturais irem se institucionalizando, perderem a espontaneidade ou até mesmo serem cooptados? Há.” (Ibidem, p. 65) Logo, é importante ficar atento a este fator. E isso mostra a necessidade da ligação em rede, para que cada Ponto se apóie no outro em compartilhamento. Mas quando um ponto dessa rede sai, a rede tem a possibilidade de se rearticular. 3.2 Arte na Rua Como ainda não há uma escrita oficial sobre o programa ou uma descrição de seus objetivos e etapas, as análises que faço aqui são baseadas na observação dos materiais de divulgação do Arte na Rua e da minha própria vivência como estagiária da Fundação de Arte de Niterói – FAN, no período de janeiro a julho de 2014. Recentemente, soube da existência de um programa, entre 2006 e 2008, chamado Cultura para Todos que tinha os mesmos moldes do Arte na Rua, porém essa análise restringe-se ao período de 2013 a 2015, durante o governo de Rodrigo Neves, tendo Arthur Maia como Secretário de Cultura de Niterói e André Diniz como Presidente da FAN. Desde 2013, a FAN através da Secretaria Municipal de Cultura tem realizado o programa Arte na Rua, que propõe intervenções artísticas gratuitas em diversos pontos públicos da cidade, como praças e esquinas, privilegiando as zonas sul e central da cidade, mas acontecendo também na zona norte e região oceânica, em menor escala. O acesso ao programa se dá através de 342

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inscrição em chamada pública que fica aberto de março a setembro do ano vigente. Os artistas, preferencialmente moradores de Niterói, devem se inscrever por correio ou levando o projeto à própria Fundação, que passará pelo crivo de uma comissão formada por até três pessoas, sendo uma da FAN e outras duas escolhidas pelo Conselho Municipal de Cultura. O valor para cada apresentação é de R$ 750,00, pagos em até três meses pela FAN, só podendo participar da chamada pessoa física. Durante os três anos de funcionamento do programa (2013, 2014 e 2015), pode-se observar alguns pontos. Primeiro, os grupos proponentes são, em sua maioria, fixados – com escolas de dança ou teatro, por exemplo, ou mesmo endereço residencial – na zona sul de Niterói, que compreende os bairros mais caros de se morar e “melhor localizados”. Pouco se vê propostas de grupos que não estejam dentro dessa região. Na chamada pública, há a possibilidade de colocar, em ordem de preferência, os lugares para apresentação. A maioria dos proponentes preferia as esquinas e praças de Icaraí, um dos bairros da zona sul. Segundo: em uma rápida análise das programações do Arte na Rua de 2015, observa-se que a maioria dos locais de apresentação concentrava-se na zona sul. No panfleto de setembro de 2015, por exemplo, constata-se um total de três apresentações em bairros da zona norte (Fonseca e Barreto), diante de 15 apresentações em Icaraí e Santa Rosa (bairro vizinho de Icaraí) e nenhuma apresentação na região oceânica de Niterói. O projeto que pretende expandir as apresentações culturais, para outros territórios, acaba não cumprindo esse propósito e repetindo o que já existe, pois esses bairros da zona sul, assim como os bairros da zona central, já recebem atenção e recursos devido, também, ao acúmulo de equipamentos culturais nessas regiões. Terceiro ponto está no fato do personalismo das políticas culturais de Niterói. A chamada prevê que o proponente pode inscrever mais de um projeto, mas apenas um seria aprovado. Ou seja, o mesmo proponente não pode ter mais de um projeto aprovado durante o ano vigente da chamada pública. Entretanto, muitos grupos e artistas inscreviam, e eram aprovados em mais de um projeto. Desse modo, o fazer cultura na cidade fica restrito aos mesmos grupos e lugares. Quarto e último ponto é o fato de que o projeto busca regular algo que é espontâneo, ou deveria ser. Músicos de rua, apresentações com características de teatro itinerante, por exemplo, tomam as ruas há muito tempo, às vezes como forma de crítica ao governo, inclusive. O Arte na Rua acaba por limitar essa característica mais engajada dos artistas de rua e, ao mesmo tempo, limitar o espaço, na própria rua, que esses artistas têm para se manifestar, a uma esquina ou a uma praça. Nesse caso, o problema é o mesmo que no programa Cultura Viva, pois há a possibilidade de que essas manifestações sejam cooptadas pelo discurso do governo e, da mesma forma, essa política nubla a possibilidade de questionamento às ações da Prefeitura. Esse programa, iniciado no governo de Rodrigo Neves (PT), buscava diferenciar-se do evento Festa da Música que aconteceu em 2011 e 2012, mais no final de cada ano, no governo

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de Jorge Roberto Silveira (PDT). Os grupos que tocavam neste evento – como o nome diz, voltado apenas para a música – não se inscreviam através de chamada pública, mas através de formulário no site do evento e de contato com a FAN e a Secretaria Municipal de Cultura. Evidentemente, a rede de contatos dentro desses órgãos contaria muito para que um grupo fizesse sua apresentação. Porém, os palcos do Festa da Música localizavam-se em vários bairros da cidade, inclusive na zona norte e na região oceânica. Ainda assim, as mudanças no esquema e organização do Festa da Música para o Arte na Rua foram necessárias, ao menos para mascarar um processo de mais democrático. Pelas características do Festa da Música e do Arte na Rua, eu usaria, para ambos, a categoria das políticas de extensão territorial das manifestações artístico-culturais. No primeiro caso é mais fácil de perceber o controle da municipalidade ao levar apresentações culturais fechadas, sem possibilidade de intervenção pelos moradores que recebem a atração. No segundo caso, sendo somente pela sua proposta, poderíamos arriscar a categoria das políticas de afirmação das manifestações artístico-culturais. Mas o seu funcionamento na prática demonstra que o programa funciona como no caso das políticas de extensão territorial das manifestações artístico-culturais. A existência de uma chamada pública que, teoricamente, é uma ferramenta democrática, não altera uma característica personalista que está entranhada na política cultural da cidade, devido a anos de administração pública feita dessa forma. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS É preciso ficar atento às mudanças que podem acontecer tanto em questão à apropriação e ao tratamento dado ao Caminho Niemeyer, quanto na questão dos programas de governo. No primeiro caso, um fator que pode, em breve, influenciar na relação objeto espetacular e população local, é o plano de requalificação do Centro de Niterói, cujo nome é “Centro que Queremos”, pois prevê uma integração entre o Caminho e o Centro de Niterói, além de uma estação intermodal (que juntaria o Terminal, as Barcas e um provável metrô que faria o trajeto Niterói-São Gonçalo). Esse fator poderia provocar mudanças na apropriação daquele espaço pela população local. O projeto já tem site e detalhes de como será a intervenção urbanística no Centro. Desde a entrada de Rodrigo Neves na Prefeitura, a discussão sobre esse projeto surgiu, mas poucas foram as audiências públicas sobre ele até agora. No segundo caso, ao comparar o programa Cultura Viva e o programa Arte na Rua, podemos perceber porque estão em categorias diferentes, como lidam com a questão das políticas culturais. Obviamente, é necessário ter em mente a diferença da dimensão territorial e dos braços de ação entre um programa e outro; o primeiro é um programa nacional, que se estende em um país com proporções continentais; já o segundo é um programa municipal de uma cidade pequena, se comparada ao Rio de Janeiro, por exemplo. Ainda assim, é possível ver algumas

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semelhanças nos discursos dos governos – não só do MinC e da FAN, mas também de outros estados e cidades – quanto ao desejo, mesmo que às vezes não realizado, de expandir as políticas culturais para chegar em territórios periféricos, e quanto às ferramentas através da qual essa política se dará - edital ou chamada pública. Poderíamos dizer que essa questão de descentralizar as políticas culturais tem sido uma preocupação atual de diversos governos e isso tem sido feito tanto através da expansão territorial das manifestações artístico-culturais quanto da afirmação territorial das manifestações artístico-culturais. Porém, muito relevante, é o fato de que, através desses casos – tanto do Caminho Niemeyer, como dos programas – o que se entende de território nas esferas federal e municipal, é o seu sentido rígido, previsto nos mapas físicos, nos limites e nas fronteiras. Ainda não se pensa em territorialidades, em territórios a partir das narrativas, das trocas e dos encontros, território como ponto essencial na formação cultural de um grupo. Talvez esse entendimento de território dentro das políticas culturais seja a chave para tomarmos essa relação com as instituições para nós, fazendo desaparecer, ou diminuir, o abismo que ainda vemos entre nós, população, e as políticas públicas, principalmente cultural e urbana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, São Paulo, v. 80, 2010, p. 71-96. ARANTES, Otília. A estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. IN: ARANTES, Otília [et al.]. A cidade do pensamento único: Desmanchando Consensos. 8 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 11-74. BARBALHO, Alexandre. Política Cultura. IN: RUBIM, Linda (org.) [et al.]. Organização e produção da cultura. Salvador: EDUFBA; FACOM/CULT, 2005, p. 33-52. BHABHA, Homi. Introdução: os locais da cultura e Capítulo 1. O compromisso com a teoria. IN: O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. CERTEAU, Michel de. Conclusão. IN: A cultura no plural. 7 ed. São Paulo: Papirus, 2012, p. 233-253. DOMINGUES, João Luiz Pereira.Programa Cultura Viva: Políticas Culturais para a emancipação das classes populares. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Formação Humana), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. HAESBAERT, Rogério; LIMONAD, Ester. O território em tempos de globalização. Etc... Revista Eletrônica de Ciências Sociais Aplicadas, Niterói, nº 2 (4), v. 1, agosto de 2007, p. 39-52. HARVEY, David. A arte da renda: a globalização e transformação da cultura em commodities. IN: A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2006, p. 219-239. JACQUES, Paola Berentein. Espetacularização Urbana Contemporânea. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Salvador, 2004, p. 23-29.

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LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. 1 ed. 3ª reimpressão. Belo Horizonte: UFMG, 1999. MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em http://www.cultura.gov.br/culturaviva/culturaviva/ aprensentacao Acesso em 10 de jan. de 2016. MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em http://www.cultura.gov.br/culturaviva/culturaviva/ objetivos-e-publico Acesso em 10 de jan. de 2016. MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ponto-de-cultura/ apresentacao Acesso em 10 de jan. de 2016. SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA E FUNDAÇÃO DE ARTE DE NITERÓI. Disponível em http://www.culturaniteroi.com.br/blog/?id=159 Acesso em 10 de jan. de 2016. SANCHEZ, Fernanda. Cidade Espetáculo: Política, Planejamento e City Marketing. 1. ed. Curitiba: Editora Palavra, 1997. TURINO, Célio. Ponto de Cultura: O Brasil de baixo para cima. 1 ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009. VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. IN: ARANTES, Otília [et al.]. A cidade do pensamento único: Desmanchando Consensos. 8 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 75-103.

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POLÍTICAS CULTURAIS E AUDIOVISUAL: A EXPERIÊNCIA DE REALIZAR UM FILME VIA FUNDO DE CULTURA DO ESTADO DA BAHIA Calila das Mercês Oliveira1 Raquel Machado Galvão2 RESUMO: O presente artigo reflete sobre as nuances das políticas culturais na prática pelo prisma híbrido do territorial e do audiovisual. A partir da lei 9.431/2005, de criação do Fundo de Cultura da Bahia é possível para os agentes públicos financiar e viabilizar a realização de projetos culturais. Foi através do edital Territórios Culturais (2014) da Secretaria de Cultura da Bahia (Secult/BA) que a proposta do filme Antônio, o menino que queria ser Castro Alves foi aprovada e executada. Anexo à dissertação de Calila das Mercês, o filme de animação e documentário apresenta recortes da vida e obra do escritor baiano Antônio Torres e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Apresentamos o processo de produção do filme, assim como desafios encontrados na cadeia produtiva audiovisual, sem perder de vista os diálogos e dinâmicas envolvidos nas tramas da Secult/BA com agentes e produtores culturais do estado. PALAVRAS-CHAVE: Antônio Torres, Audiovisual, Bahia, Fundo de Cultura, Territórios Culturais.

1. PRIMEIROS DIÁLOGOS As relações entre instituição Estado (poder público) e artistas podem ser variáveis a considerar fatores como período (época), espaço (lugar), natureza da arte, formação, visão política, local de fala do agente, etc. Na história recente da arte ocidental, desde as dinâmicas estabelecidas pelo mecenato renascentista na Itália, que fez escola nos séculos subsequentes - XX e XXI - até os registros da escritora Virginia Woolf em Um teto todo seu (1928), quando indicou que para uma Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura na Universidade de Brasília (UnB), mestre em Literatura e Diversidade Cultural/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), MBA em Comunicação Corporativa pela Universidade Salvador (Unifacs) e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: [email protected] 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária na Universidade de Campinas (Unicamp), mestre em Literatura e Diversidade Cultural/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), especialista em Gestão Pública pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: [email protected] 1

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mulher escrever ela teria que ser independente financeiramente, estamos acompanhando críticas, indicações e/ou diagnósticos expostos sobre o fazer arte e suas dinâmicas. Contudo, antes de tratarmos especificamente da realização do filme Antônio, o menino que queria ser Castro Alves, propomos inicialmente algumas reflexões no que tange as relações estabelecidas entre os artistas e produtores culturais brasileiro e o estado. É muito recorrente a alguns artistas a não compreensão da arte como produto e a alguns gestores do estado o inverso. Estamos, então, diante de uma busca que possa harmonizar as relações recentes estabelecidas entre os dois agentes culturais. Como o artista e o estado podem trabalhar juntos sem que haja uma relação que se assemelhe a uma prestação de serviços do artista-proponente para o estado? Como o artista e o estado poderiam ser duplamente interessados no financiamento da realização da obra de arte e duplamente interessados em compreender os processos criativos no que tange a execução da proposta? Diante das leis, regimentos, atuações e funções, cabe-nos refletir qual o papel ideal do estado e as dinâmicas que podem ser estabelecidas diante da parceria com o produtor-criador e qual o tipo de postura caberia ao artista financiado pelo estado diante do seu processo criativo que no seu âmago deveria ser autônomo. Nosso lugar de fala é o estado da Bahia do ano de 2013 até 2015. E o encontro de onde culminou a ideia inicial do filme foi no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Ambas jornalistas, vindas de trajetórias similares na área de produção cultural e comunicação, achávamos que o nosso tempo de pesquisa acadêmica poderia ser potencializado através de ações e realizações culturais. A partir do grupo de pesquisa Descaminhos do Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos na Obra de Antônio Torres3 teve início o projeto de dissertação de autoria de Calila das Mercês: Antônio, o menino que queria ser Castro Alves: a escrita de si e outros diálogos em Antônio Torres. E nas nossas trocas acadêmicas nos intrigava o fato de Antônio Torres ser um escritor da Bahia, premiado internacionalmente, cujos livros foram traduzidos para países como Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, Espanha, Portugal, Bulgária e Vietnã, etc. e tendo nascido na pequena cidade de Sátiro Dias, no semiárido da Bahia, ser pouco conhecido fora do circuito acadêmico. A ideia de realizar um filme, uma construção artística como a tratamos, foi impulsionada pela ausência de informações e a necessidade de democratização do acesso à informação para a população da Bahia não necessariamente letrada.

Grupo de pesquisa vinculado a Universidade Estadual de Feira de Santana sob coordenação do Professor Dr. Roberto Henrique Seidel.

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Assumimos a produção executiva do filme e tendo a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, sob gestão do então Secretário Antônio Albino Canelas Rubim4, aberto em dezembro de 2012 e janeiro de 2013 o edital n. 08/2013 - Territórios Culturais - junto com outros 19 editais, resolvemos adaptar o filme para a proposta da secretaria de cultura que previa firmar parceria com 27 projetos de até R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) e 04 projetos de ate R$ 95.000,00 (noventa e cinco mil reais). Sendo, até então, a terceira e a última edição do edital Territórios Culturais na Bahia (2008 / 2012 e 2013), foram inscritas na edição 112 propostas por pessoas físicas e jurídicas residentes na Bahia. 2. TERRITORIALIZAÇÃO DA CULTURA Um pouco antes de se falar em política de territorialização na Bahia foi sancionada a lei 9.431/2005, de criação do Fundo de Cultura do Estado da Bahia (FCBA). Seu artigo primeiro a apresenta o fundo e seu objetivo de “incentivar e estimular a produção artístico-cultural baiana, custeando total ou parcialmente projetos estritamente culturais de iniciativa de pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado.” (online, 2005, p.1). Entre as suas finalidades destacam-se: I - apoiar as manifestações culturais, com base no pluralismo e na diversidade de expressão; II - promover o livre acesso da população aos bens, espaços, atividades e serviços culturais; III - estimular o desenvolvimento cultural do Estado em todas as suas regiões, de maneira equilibrada, considerando o planejamento e a qualidade das ações culturais; IV - apoiar ações de manutenção, conservação, ampliação e recuperação do patrimônio cultural material e imaterial do Estado; V - incentivar a pesquisa e a divulgação do conhecimento sobre cultura e linguagens artísticas; VI - incentivar o aperfeiçoamento de artistas e técnicos das diversas áreas de expressão da cultura; VII - promover o intercâmbio e a circulação de bens e atividades culturais com outros Estados e Países, difundindo a cultura baiana; VIII - valorizar os modos de fazer, criar e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade. (online, 2005, p.1) E durante a seu percurso foram muito recorrentes críticas ao Fundo de Cultura justificadas pelo apoio via editais públicos de projetos que majoritariamente tinham como local de execução a cidade de Salvador/BA. As outras cidades não ficavam completamente incluídas nesse processo de acesso aos recursos originários do FCBA. A partir do Governo Jaques Wagner na Bahia (2007), sob gestão do Secretário de Cultura Márcio Meireles5, foi dado um novo tom à dinâmica do fortalecimento de diálogo com artistas e produtores culturais, potencializando inclusive aqueles que não residiam na capital da Bahia. Os territórios de identidade, então, passaram a ser balizadores dessa política. Professor titular da Universidade Federal da Bahia - docente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade. 5 Ator. Reconhecido por ser um dos criadores do teatro Vila Velha (Salvador) e do bando de teatro Olodum. 4

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Na publicação Território e Identidade (2013), de Mireya E. Valencia Perafán e Humberto Oliveira, é sistematizada essa questão de realização de políticas que além de geográfica desemboca no simbólico: Desde 2007, o Governo da Bahia trabalha com a abordagem territorial e busca “identificar prioridades temáticas de nidas a partir da realidade local, possibilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões”. Na Bahia existem, atualmente, 27 Territórios de Identidade, constituídos a partir da especifidade de cada região. Com base numa consulta popular as comunidades, a partir de seu sentimento de pertencimento e representações sociais, identificaram tais territórios, que são unidades de planejamento das políticas públicas do Estado. (PERAFÁN & OLIVEIRA, 2013, p. 17) O edital Territórios Culturais, cuja primeira edição aconteceu em 2008, chega para ratificar essa visão institucional de região cultural. A própria Lei Orgânica de Cultura da Bahia (12.365/2011) reafirma esta questão ao colocar como um dos seus princípios orientadores a “territorialização de ações e investimentos culturais” (online, 2011, p. 2). O edital Territórios Culturais, somado a outras ações como Conferências Territoriais de Cultura, Encontros de Dirigentes de Cultura e contratação de Representantes Territoriais de Cultura, etc. capilarizou através de um único edital a distribuição de recursos que deixava lacuna nos outros editais setoriais por área artística e de formação6. A nossa decisão de inscrição no projeto no Territórios Culturais se deu justamente por acreditarmos em construções na Bahia que vão além do eixo da capital. O edital encaixava-se nos nosso ideais porque tanto nós enquanto produtoras e os demais agentes envolvidos no projeto estavam falando de cidades fora do eixo Salvador e região Metropolitana. Conceição do Jacuípe, Feira de Santana, Teixeira de Freitas, Cachoeira e Vitória da Conquista: éramos vozes vindas diferentes lugares buscando fazer arte e cinema, tarefas universais e inerentes àqueles que as buscam. 3. PRODUÇÃO E CRIAÇÃO: O PROCESSO A elaboração de projetos culturais prevê alguns modelos que deverão ser seguidos para a realização da parceria com o Estado. Alguns guias e cartilhas servem de baliza para esse encaixe das ideias. A nossa opção inscrever o projeto no edital Territórios Culturais se deu, como já foi relatado, pela abrangência da possibilidade de atuação do projeto. Evidentemente quem vai proEditais lançados pela Secult/BA de dezembro de 2013 a janeiro de 2014: Audiovisual, Artes Visuais, Circo, Culturas Digitais, Culturas Populares, Culturas Identitárias, Dança, Economia Criativa, Formação e Qualificação em Cultura, Literatura, Museus, Música, Projetos Estratégicos em Cultura, Patrimônio Cultural, Arquitetura e Urbanismo, Publicação de Livros por Editoras Baianas, Teatro, Territórios Culturais, Restauro e Digitalização de Arquivos, Dinamização de Espaços Culturais, Apoio a Grupos e Coletivos Culturais, Demanda Espontânea, Apoio a Ações Continuadas de Instituições Culturais, Eventos Calendarizados e Mobilidade Artístico Cultural.

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duzir o projeto tem que se familiarizar ou estar familiarizado com os termos que são utilizados na elaboração da proposta. Tarefa que ao nosso ver pode ser melhor executada por aqueles que já tem uma iniciação universitária, da área de produção cultural e/ou gestão pública. A inscrição do projeto se deu via Sistema de Informação e Indicadores Culturais (SIIC), o Clique Fomento, sendo: O Sistema de Informações e Indicadores em Cultura – SIIC é um aplicativo de acesso público gratuito, concebido e mantido pelo Governo do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura, conforme artigo 23 da Lei Estadual Nº 12.365 de 30 de novembro de 2011 – Lei Orgânica da Cultura - que dispõe sobre a Política Estadual de Cultura e institui o Sistema Estadual de Cultura. O SIIC é composto dos seguintes módulos: 1. Cadastro Cultural Registro e divulgação de espaços, bens culturais, instituições e pessoas, serviços e produtos relacionados com a cultura baiana. 2. Pesquisas e Indicadores Culturais Montagem e registro de pesquisas diretas ou coletadas em campo relacionadas à economia da cultura, culturas populares, linguagens artísticas e a elementos do Cadastro Cultural. 3. Fomento à Cultura – Disponível Fundo de Cultura da Bahia em primeira versão Divulgação de mecanismos e formas de apoio financeiro a ações culturais, inscrição e acompanhamento de propostas de pessoas físicas e jurídicas domiciliadas na Bahia e gerenciamento do processo de concessão de apoio e prestação de contas. (Online, 2016) O SIIC para a sua função de inscrição demonstrou ser um sistema bastante eficaz - a considerar o nosso local de fala: produtoras-jornalistas, com experiência anterior, familiaridade com a utilização de plataformas, mestrandas. No formulário obrigatório delimitamos o título do projeto, o segmento, outros segmentos, a natureza do projeto, a natureza secundária, fizemos um resumo, uma descrição detalhada, definimos os objetivos, a justificativa, delimitamos as metas, as informações sobre público alvo, fizemos um roteiro de execução com cronograma, plano de distribuição, inserimos os profissionais da ficha técnica e delimitamos o orçamento final no valor de R$ 68.330,00 (sessenta e oito mil e trezentos e trinta reais). Em resumo, o projeto foi dessa forma delimitado: Antônio, o menino que queria ser Castro Alves é uma produção de curta-metragem no formato documentário que retratará fragmentos da vida do escritor baiano Antônio Torres, imerso a sonhos e limitações no interior da Bahia na década de 1950, em contraste com sua recente eleição à Academia Brasileira de Letras. O projeto prevê circulação do curta no

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Litoral Norte/Agreste Baiano, nas cidades que têm os menores IDH do Território (IBGE 2000-2010). (2014, autoria própria). Levamos praticamente vinte dias do mês de janeiro de 2014 elaborando o projeto que foi enviado pela proponente Calila das Mercês Oliveira (também diretora, produtora e roteirista do filme) ao sistema no dia 21/01/2014. Considerando os segmentos do projeto (cinema, audiovisual e literatura) e as naturezas envolvidas (distribuição, criação, produção, pesquisa, memória e formação) e a sua abrangência o valor de 68.330,00 reais para uma produção de 30 minutos que é considerada de baixo orçamento. Para se ser uma ideia, em 2013, em no Edital de Apoio a Curta-Metragem realizado pela Secretaria de Audiovisual (Sav) ligada o Ministério da Cultura (MinC) o valor total de produção de um curta-metragem de 5 até no máximo 15 minutos foi de R$ 90.000,00 (noventa mil reais). Tendo cumprido todas as normas delimitadas pela Secult/BA, dentro dos prazos delimitados, a proposta foi dada como inscrita no dia 17/02/2014 e como aprovada no dia 09/04/2014, três meses após a realização da inscrição. O primeiro ajuste na proposta (de cronograma) foi solicitado e realizado no dia 25/05/2014 e aprovado no dia 02/06/2014. O Termo de Acordo e Compromisso (TAC) com a Secretaria de Cultura, sob tutela do então secretário Albino Rubim, foi assinado no dia 22/07/2014 e publicado em Diário Oficial. Um segundo ajuste (de cronograma) foi solicitado e realizado no dia 29/10/2014 e até então, aproximadamente dez meses depois da inscrição da proposta, não havíamos recebido a primeira parcela do recurso. Foi no dia 12/12/2014 que a primeira parcela no valor de R$ 47.831,00 foi repassada para a proponente. Por conta desse primeiro atraso no repasse, também recorrente na segunda parcela, tivemos que adiar a execução do projeto em mais de seis meses o que resultou na necessidade de novos diálogos na equipe e na necessidade de revisão das metas e das suas datas. O processo de produção, não dissociado do criativo, aconteceu de janeiro a setembro de 2015, que previa a pré-produção e a produção, e a circulação do filme foi realizada em outubro de 2015. Durante o processo de execução do projeto fomos acompanhados pelos funcionários da Coordenação do Edital Territórios Culturais – Diretoria de Territorialização da Cultura. Envolvendo mais de 20 funções na produção do filme, profissionais vindos da Universidade do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade Estadual de Vitória de Conquista (UESB), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e demais autodidatas, realizaram o projeto em sua completude sob a direção e roteiro de Calila das Mercês. A história, inclusive, partiu de uma de suas crônicas. Atuando também como produtora do curta, houve uma confluência com o que Walter Benjamin tratou no texto O autor como produtor, de ser um modelo de levar outros produtores à produção:

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Assim, é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores. (BENJAMIN, 1996, p. 132) Colaboração foi uma palavra fundamental nesse processo. Apesar dos desafios encontrados durante o processo de realização do filme, a equipe envolvida empenhou-se em produzi-lo de forma íntegra e completa, assim como circulação e a distribuição inicialmente proposta no projeto. Embora tenhamos nos agendado para realizar a proposta, em sua maior parte, durante o ano de 2014, foi preciso rever a agenda por conta da liberação do recurso e de outras questões que foram surgindo. O trabalho artístico teve um resultado muito positivo, por se tratar de uma ação inédita que foi realizada no território Litoral Norte/Agreste Baiano​com o intuito de tornar acessível e pública a vasta obra de Antônio Torres, que ganhou mais visibilidade nos noticiários nacionais em 2013, mas que é pouco conhecido ainda em s​eu estado natal, a Bahia. O escritor, hoje com 75 anos, pode contar com esse curta como um anexo à sua grande e memorável história de vida, para que os jovens e crianças possam se inspirar e saber que é possível correr atrás e conquistar os seus sonhos de infância. As projeções planejadas pelo projeto atingiram um público de aproximadamente 1000 pessoas, em sua maioria de comunidades de baixa renda. Foram feitas articulações com os municípios e o projeto foi amplamente divulgado em sua circulação. O projeto também previu a realização de 200 cópias do filme que estão sendo distribuídos para cineclubes do território, universidades, escolas públicas e pontos de cultura, importantes meios de difusão da cultura e da arte. 4. CIRCULAÇÃO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS A maior satisfação em realizar um trabalho como este é a não finitude, o filme não termina com a entrega dos DVD’s e as sessões. Existem alguns desdobramentos que consistem na formação de leitores, de apreciadores de filmes locais​e um estímulo às pessoas, principalmente aos jovens de baixa renda, que persistam em busca dos seus sonhos e também possa​m​ver a arte como um alicerce para a vida. O filme sobre Antônio Torres é um trabalho que mescla além da história de um menino que se torna homem e escritor, ​também faz um recorte da memória de um povo. É através deste menino de um vilarejo, o Junco, que abordamos símbolos de uma Bahia muitas vezes esquecida ou apagada do circuito da “baianidade”. Ao participar das sessões vimos jovens e adultos acenarem com a cabeça ao ouvirem ​as histórias contadas pelos entrevistados, vimos pessoas saírem das sessões emocionadas. Elas nos

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agradeciam por ter​mos​ ido até ​elas, por ter​mos​ encarado as estradas que distanciam as​ outras​ pessoas desta Bahia​ até então não conhecida por nós que produzimos o filme​. Elas nos inspiraram e com certeza, são estas pessoas que ficarão nas nossas memórias como facilitadoras de uma atividade, muitas vezes incompreendida, chamada arte. 5. PRESTAÇÃO DE CONTAS: EM BUSCA DE UMA RELAÇÃO IDEAL Alicerçados no Decreto N. 14.845 de 28 de novembro de 2013 que redefiniu o Regulamento do Fundo de Cultura da Bahia, que no seu Capítulo VIII apresenta a obrigatoriedade da apresentação da prestação de contas final de projeto cultural, apresentamos em janeiro de 2016 o que nos foi exigido pela execução do edital Territórios Culturais 2014. Entre a documentação obrigatória, um ofício de encaminhamento, o formulário de prestação de contas (disponibilizado em excel), extrato bancário (mês a mês das movimentações), relatório de atividades, documentos comprobatório das despesas (notas fiscais e recibos), material de divulgação, cópia do termo de acordo e compromisso (TAC e prorrogação), cópia do orçamento aprovado, 20% das cópias do produto do projeto (40 DVDs) e enceramento da conta do projeto. Ao contrário do processo de inscrição do projeto cultural, todo o material da prestação de contas foi impresso e entregue. Acreditamos que a prestação de contas seja necessária por ser tratar de uma parceria com o público, contudo mesmo sendo um projeto de baixo orçamento ele prevê um nível de profissionalização muito alto. O formato de prêmio, a exemplo de alguns realizados pela Fundação das Artes (Funarte) e da Biblioteca Nacional é uma opção que poderia ser considerada em produção dessa natureza. O ideal também para nós que produzimos o filme é que todo o processo, incluindo a prestação de contas, pudessem ser concluídos na internet. A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia oferece para todos os proponentes com projetos aprovados a possibilidade de realizar um curso de prestação de contas, que acontece em Salvador, sendo, em alguns momentos, multiplicados em salas de videoconferências em 32 cidades da Bahia, o que podemos considerar uma ação de formação positiva. O nosso propósito ao realizar o presente artigo é formalizar algumas discussões em torno dos formatos que estão pré-estabelecidos e evidenciar as tradições e contradições existentes diante da realização de um processo, neste caso um filme. Acreditamos na arte como processo, e para o artista-produtor lidar com cronogramas, notas e demais trâmites burocráticos torna-se um desafio muito maior do que o que foi inicialmente pensado, ainda mais quando é preciso rever o tempo. Sendo o governo interessado em agregar a sua marca nas realizações artísticas é interessante pensar para os tempos vindouros uma revisão das leis e dinâmicas que envolvem a execução de projetos apoiados. Durante o processo de realização do filme, apesar da concorrên-

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cia, percebemos que a aprovação do projeto configura-se como a etapa inicial. A execução em si, com seus prazos, metas e produtos, e adaptar-se aos imprevistos de mudanças de datas para receber o recurso da parceria aparece como o desafio maior. Foi necessário durante a execução do projeto viabilizar parcerias que contemplassem o que por questão de tempo e burocracia não foi possível realizar via remanejamento de recursos. No projeto, entre rendimentos e recursos, devolvemos cerca de 5% do que foi aprovado para o Fundo de Cultura porque em alguns momentos a produção achou mais viável realizar parcerias do que entrar com pedido de troca, ainda mais diante dos atrasos de execução em relação ao cronograma inicial e de imprevistos comuns que acontecem durante uma produção. Precisamos pensar políticas públicas para a cultura que contemplem ideias junto com os produtos. Ficamos muito satisfeitas com o significado e a abrangência do projeto que vem nos abrindo como pessoas e profissionais da cultura, mas nos vemos no papel de questionar também o status quo que vem sendo mantido há anos na dinâmica dos agentes públicos e privados. Nos vemos agora familiarizadas com as dinâmicas e buscando formas que sejam menos desgastantes para os artistas envolvidos na realização de um projeto cultural. No que abarca a criação e o seu processo, pensamos no estado enquanto colaborador, muito além do fiscalizador. Ficamos pensando nos lugares de fala daqueles que se diferem de nós. Indígenas, vozes das comunidades chamadas tradicionais. Como eles encarariam os desafios pelos quais passamos? Como podemos (re)pensar a arte na sociedade de consumo na qual estamos inseridos? Existem possibilidades? Qual é mesmo o nosso papel enquanto artistas e o do estado enquanto um dos principais agentes de gestão social? Conseguimos transformar verdadeiras realidades sociais com o nosso projeto. Dialogar com pessoas de uma Bahia desconhecida por nós. Amplificar um nome da literatura em um território híbrido que é o cinema. Lidar com arte é uma tarefa diferenciada que modifica e questiona as dinâmicas de opressão vigentes. Compartilhar tudo isso com as pessoas. Agora e avante, pelo que virá, como é possível para os autores-produtores poder mais?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. MERCÊS, Calila das. Antônio, o menino que queria ser Castro Alves. Produção de Calila das Mercês e Raquel Galvão. Direção de Calila das Mercês e Patrícia Moreira. Conceição do Jacuípe/BA. Digital. 30 min. Color, 2015. Edital Territórios Culturais. Edição 08.2013. Disponível em: . Acesso em 20 de janeiro de 2016.

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Lei Nº 12365 de novembro de 2011. Disponível em: . Acesso em 15 de dezembro de 2015. PERÁFAN, Mireya E. Valencia. OLIVEIRA, Humberto. Territórios e Identidade. Disponível em: . Acesso em 20 de janeiro de 2016. Lei Nº 9.431 de 11 de fevereiro de 2015. Disponível em: . Acesso em 14 de dezembro de 2015. Sistema de Informações e Indicadores em Cultura – SIIC. Disponível em: . Acesso em 14 de dezembro de 2015. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Circulo do Livro, 1990.

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BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO LIVRO, LEITURA E BIBLIOTECA Camila Rodrigues Leite1 RESUMO: Estudo exploratório, de abordagem qualitativa acerca da atuação das bibliotecas comunitárias na incidência em políticas públicas culturais, especificamente na área do livro, leitura, literatura e biblioteca. Apontamentos a partir de pesquisa empírica com bibliotecas comunitárias, investigando as maneiras como foram se constituindo sujeitos políticos na esfera pública. PALAVRAS-CHAVE: bibliotecas comunitárias, política pública do livro, leitura e biblioteca

1. INTRODUÇÃO Nos últimos dez anos têm crescido muito o número de pesquisas sobre as políticas públicas do livro, leitura, literatura e biblioteca no Brasil. As pesquisas acompanham os grandes avanços na própria consolidação de políticas públicas nacionais, regionais e municipais nesta área. No rol dos avanços, destacam-se, por exemplo, a aprovação do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) em 20062; dos Planos Estaduais do Mato Grosso do Sul (2010), de Tocantins (2012) e do Distrito Federal (2012), do Rio Grande do Norte (2013), da Bahia (2014) e do Paraná (2015) e dos Planos Municipais de Canoas (2012), de Joinville (2012), de Porto Alegre (2013), Nova Iguaçu (2014), Salvador (2014) e São Paulo (2015). Além de outros estados e municípios que já iniciaram seus processos de construção dos Planos, como por exemplo, os estados do Rio de Janeiro e a cidade de Belo Horizonte. Importante observar que o PNLL destaca em suas diretrizes: o papel que à biblioteca e à formação de mediadores assumem no desenvolvimento social e da cidadania e nas transformações necessárias da sociedade para a construção de um projeto de nação com uma organização social mais justa. Elas têm por base a necessidade de formar uma sociedade lei­tora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de bra­sileiros no que diz respeito a bens, ser Mestre em Educação pela PUC-Rio, Assessora Pedagógica do Programa Prazer em Ler do Instituto C&A. email:[email protected] 2 PNLL, 2006. Acessado em 15/01/2015:http://www.cultura.gov.br/pnll 1

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viços e cultura, garantindo-lhes uma vida digna e a es­truturação de um país economicamente viável. (PNLL, 2006) Neste sentido, torna-se imprescindível que os sujeitos que atuam diretamente nas bibliotecas como mediadores de leitura, formando leitores, ajam de modo direto e efetivo na construção das políticas públicas do livro, leitura, literatura e biblioteca. Destes planos aprovados, listados acima, merece ressalva os que foram construídos em parceria com a sociedade civil, envolvendo mediadores de leitura, como o próprio PNLL indica que deve ser feito. Assim, destaco aqui os Planos Municipais de Porto Alegre, de Salvador, de Nova Iguaçu (R|J) e de São Paulo, nos quais pude verificar in loco que contaram com a real participação da sociedade civil em articulação com os governos locais. Encontramos artigos científicos, dissertações e teses sobre a criação e implementação de tais políticas. São exemplares a participação da sociedade civil e do setor privado em programas e projetos com metas e objetivos definidos, com vistas a realização de ações de promoção e fomento à leitura que vão de encontro a construção dos planos. No entanto, existe um ator importante nesse processo que ainda não se tornou visível: as bibliotecas comunitárias. Por conta disso, o foco escolhido para este trabalho diz respeito à participação das bibliotecas comunitárias e, em especial dos mediadores de leitura destas bibliotecas, na construção de tais políticas. O termo biblioteca comunitária pode ser definido como: um projeto social que tem por objetivo, estabelecer-se como uma entidade autônoma, sem vínculo direto com instituições governamentais, articuladas com as instâncias públicas e privadas locais, lideradas por um grupo organizado de pessoas, com o objetivo comum de ampliar o acesso da comunidade à informação, à leitura e ao livro, com vistas a sua emancipação social. (Machado, 2009:91) Contudo, ainda são poucas as pesquisas que tratam do papel das bibliotecas comunitárias na construção de políticas públicas do livro, leitura, literatura e biblioteca no Brasil. Diz a mesma autora citada acima que: Os ambientes que convencionamos chamar de ‘bibliotecas comunitárias’ são ainda pouco estudados na universidade, em que pese sua relevância no panorama sociocultural de nosso país. A expressão ‘biblioteca comunitária’ já é, por si só, uma questão a ser discutida, pois lida com um conceito – o conceito de comunidade – que sofreu grandes transformações a partir dos anos 90 (Machado, 2006: 38). Afinal, por que não encontramos artigos científicos sobre o papel das bibliotecas comunitárias nas políticas públicas do livro, leitura e biblioteca? Como se daria a participação dos próprios sujeitos que integram as bibliotecas comunitárias na produção de conhecimento sobre suas práticas? 358

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Este trabalho foi elaborado a partir desta percepção: ausência ou pouca aparição das bibliotecas comunitárias. Como tenho acompanhado de perto a atuação de algumas delas julguei por hora minha tarefa escrevê-lo. A experiência de assessoria a um programa nacional de incentivo à leitura tem me oportunizado acompanhar, durante os últimos cinco anos, a consolidação de polos de leitura/redes, compostos por cinco ou mais bibliotecas comunitárias, em oito cidades brasileiras: Rio de Janeiro e Nova Iguaçu (RJ), São Paulo (SP), Belo Horizonte e Betim (MG), Recife e Olinda (PE), Salvador (BA). A partir dessa inserção, proponho essa pesquisa empírica com vistas a realizar um estudo exploratório, de abordagem qualitativa acerca da atuação das bibliotecas comunitárias na incidência em políticas públicas culturais, especificamente na área do livro, leitura, literatura e biblioteca. Utilizarei como fontes da pesquisa os dados recolhidos no trabalho de campo. Interessa interrogar fundamentalmente: 1) sobre o perfil destas bibliotecas comunitárias e de seus integrantes; 2) os modos como os polos de leitura foram se caracterizando como coletivos culturais; 3) as maneiras como as bibliotecas comunitárias, através dos mediadores de leitura foram se constituindo sujeitos políticos na esfera pública, impactando tanto as trajetórias singulares como a consolidação das políticas nas esferas locais. 1.1 Caracterização do campo O programa nacional no qual tenho atuado conta atualmente com mais de setenta bibliotecas comunitárias espalhadas por várias regiões do Brasil. No entanto, neste artigo tratarei apenas das bibliotecas com as quais tive relação direta através do trabalho de assessoria pedagógica, desde 2011. São elas: Polo Conexão Leitura - Rio de Janeiro (RJ) Associação Meninas e Mulheres do Morro – Biblioteca Atelier das Palavras Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – Biblioteca Elias José Instituto de Estudos da Religião – ISER – Biblioteca Vinícius SIC - AIACOM Colégio Agostiniano - Biblioteca Esquina do Livro Polo Baixada Literária – Nova Iguaçu e São João de Meriti – RJ Programa de Desenvolvimento de Área (Rancho Fundo) Centro Comunitário São Sebastião CECOM – Bibliotecas Mágica e Ziraldo Centro Comunitário de Santa Rita SARITA

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Associação Comitê Ponto Chic Centro Cultural Nossa Casa – Biblioteca Nossa Casa Polo Sou de Minas, uai - BH – MG Assoc. Comunitária da Vila Presidente Vargas - Bibl Livro Aberto Conselho de Pais Criança Feliz (Leitura ao Pé da Serra) Centro Cristão Evangélico Educacional Grupo de apoio à Criança e Adolesc do Cabana e Região Instituto Cultural Aníbal Machado - Borrachalioteca (Sabará) Polo EMredando leituras - Salvador – BA Assoc. Benef Cultural Ugo Meregalli Assoc. de Moradores Conj.Sta Luzia Assoc. de Moradores Ilha Amarela Asmoilha Assoc. Ideologia Calabar Assoc. Sons do Bem (Bibl. Maria Rita) Casa do Sol Pe. Luis Lintner Sofia Centro de Estudos (Bibl Paulo Freire) Polo Rede Releitura – Recife, Olinda, Jaboatão dos Guararapes – PE Assoc. Cultural - Bibl. Simon Bolivar Assoc. Cultural - Bibl. Amigos da Leitura Assoc. Círculo Histórias do Coque Assoc. Instituto Peró Arte e Cidadania Bibl Comunitaria Educ Guri CEPOMA Centro de Educação Popular Mailde Araújo Creche Escola IC - Lar Mei Mei Movimento Cultural Boca do Lixo Polo TOK Literário - Salvador – BA

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Congregação das filhas pobres São José de Calasanz (Biblioteca S José de Calasanz ) Congregação das filhas pobres São José de Calasanz (Biblioteca Novo Amanhecer) Instituto das Irmãs Franciscanas da Imaculada (Biblioteca Tia Jana) Instituto das Irmãs Franciscanas da Imaculada (Biblioteca Sandra Martini) Instituto das Irmãs Franciscanas da Imaculada (Biblioteca Condor Literário) ONG Gerarvida (Biblioteca Pe Luis Campinotti) ONG Gerarvida (Biblioteca Alfonso Pacciani) Polo LiteraSampa – São Paulo Associação Maria Flos Carmeli Centro Comunitário Casa Mateus IBEAC Inst. Bras.Est. e Apoio Comum.Queiroz Fo Instituto Criança Cidadã Programa Comunitário Reconciliação Polo Redes de Leitura - POA - RS Associação de Moradores da Grande Santa Rosa - Bibl. Aninha Peixoto Associação de Moradores da Vila Chocolatão (a/c Cirandar) Biblioteca Comunitária do Cristal Assoc. Amigos do CEPRIMA CIRANDAR C Integ. Redes Sociais e Culturas Locais Clube Literário Jardim Ipiranga 1.2 Sobre as bibliotecas comunitárias Destacam-se algumas características comuns dos perfis das bibliotecas pesquisadas. Estão localizadas em municípios do sudeste e nordeste brasileiro, em áreas urbanas de grandes cidades, em territórios periféricos e favelizados, inseridas em comunidade de baixa renda, na maioria das vezes marcadas pela criminalidade violenta e pela violência policial. São comunidades populosas e adensadas, nas quais se percebe, na maioria dos casos, a ausência de saneamento básico e de serviços públicos de qualidade como: coleta de lixo, acesso à água, escolas, postos de saúde, equipamentos culturais e de assistência social.

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Como não existem bibliotecas públicas dentro destas comunidades, e também por que, na maioria dos casos, as bibliotecas escolares existentes no território não têm seus acervos bem organizados, não emprestam livros, nem sempre dispõem de acervos de literatura de qualidade e muitas das vezes não tem um profissional específico para dinamizá-la, as bibliotecas comunitárias se tornam espaços de referência importantes nas suas localidades. O trabalho das bibliotecas está organizado a partir de quatro grandes eixos: Espaço, Acervo, Mediação e Gestão. No que diz respeito aos espaços físicos, vale relatar que variam entre: a) Casas de moradores alugadas ou cedidas para serem as bibliotecas; b) Salas em organizações sociais, como ONGs, Igrejas, Centro Espíritas etc; c) Garagens, galpões e lajes doadas, emprestadas ou alugadas. Há uma distinção entre as bibliotecas que surgiram com suporte de organizações sociais (algumas originalmente sendo “projetos” dessas entidades) e aquelas que foram criadas autonomamente pelos próprios moradores dos locais onde estão inseridas. Cada um dos espaços está organizado a partir das suas peculiaridades, priorizando a criação de ambientes confortáveis, convidativos, aconchegantes, nos quais o objeto livro tem maior destaque e cada um dos públicos se identifica com seu “canto”. Os espaços tendem a subdividir para atender seus diferentes públicos: crianças, adolescentes e jovens e adultos. Apesar das crianças, adolescentes e jovens serem o público prioritário da maioria delas, isso não significa que não atendam também adultos e idosos, que com menos frequência e em menor quantidade, também são usuários. A maior parte do público é constituída pelas camadas populares, estudantes da rede pública de ensino, moradores das comunidades onde estão inseridas e do entorno. Rodas de conversa sobre autores e livros, mediação de leituras, contação de histórias, saraus com música e poesia, encontros com autores, empréstimos de livros, atividades na praça, na rua, na escola, no posto de saúde são algumas dentre as inúmeras atividades realizadas pelas bibliotecas. É muito importante apontar que o acervo destas bibliotecas é prioritariamente de literatura, obras literárias de qualidade para o público infantil, juvenil e adulto. Ou seja, há uma diversidade literária. Os acervos estão catalogados e classificados por gêneros literários, favorecendo o acesso e à formação dos leitores, tendo em vista principalmente a construção da autonomia dos leitores. Destaca-se também que em todas as bibliotecas pesquisadas os acervos já estão automatizados em programas como o Bibilivre, o Biblioteca Fácil e o Alexandria. Com objetivo de democratizar o acesso aos livros de literatura de qualidade, à incentivar a leitura e a formar leitores em suas comunidades, as bibliotecas tem estabelecido relação com diversas instituições em seus territórios.

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Os processos de gestão das bibliotecas são marcados pelo compartilhamento das tomadas de decisão e da distribuição das tarefas entre os integrantes. Buscando envolver também os usuários das bibliotecas. É fundamental esclarecer que muitas destas bibliotecas viviam a partir do trabalho voluntário, ou de projetos sociais com captação restrita de recursos. Atualmente, recebem recurso financeiro do programa nacional ao qual me refiro, garantindo remuneração de mediador de leitura e coordenador da biblioteca, além de recursos para espaço, acervo, comunicação e administração. 1.3 Sobre os integrantes São considerados integrantes das bibliotecas os e as mediadores de leitura, os e as coordenadores e gestores das bibliotecas. O perfil de seus integrantes é diverso. No entanto, destacarei apenas algumas características comuns, importantes para o recorte da pesquisa. Majoritariamente mulheres jovens e adultas, negras, mães, casadas, com baixa escolaridade, com exceção das que completaram cursos na área de humanas, em universidades privadas, através das políticas de ingresso ao ensino superior criadas nos últimos anos no Brasil. Existe também, em menor número, um grupo de mediadores homens, jovens, cursando faculdade, ou recém formados, oriundos das camadas populares, moradores das comunidades de baixa renda onde estão localizadas as bibliotecas, esses dois grupos vivem sem carteira assinada, recebendo cerca de 1 a 2 salários mínimos. A maior parte dos integrantes está envolvida nas bibliotecas há pelo menos três anos, sendo que alguns já estão há mais dez anos. Ou seja, o trabalho desenvolvido, considerando os níveis distintos de pertencimento, de algum modo, atravessa significativamente a vida cotidiana dessas pessoas. Há em seus relatos tanto aqueles que se aproximaram das bibliotecas por já terem prévia paixão pelos livros, como aqueles que chegaram pela remuneração financeira, ou simplesmente uma oportunidade de trabalho como outra qualquer e no processo foram criando e/ou estreitando sua relação com os livros e com a literatura. O fato é que hoje, esses integrantes que já estão há mais de três anos atuando nas bibliotecas anunciam que é a formação deles próprios como leitores que se torna um dos principais ativos para continuarem mobilizados no trabalho com as bibliotecas. O fato da maioria dos integrantes morar na própria comunidade onde a biblioteca está inserida favorece aspectos que merecem ser relatados: em primeiro lugar há um processo de identificação direta entre ele e os outros moradores da comunidade, como ele também mora lá, em si essa situação facilita que qualquer outro morador também possa ser (ou querer ser) mediador de leitura, coordenador ou gestor da biblioteca. Em segundo lugar, este integrante conhece a comunidade por dentro, sabe das suas características, dos seus anseios e problemáti-

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cas, o que possibilita que o trabalho da biblioteca esteja em consonância com as demandas da própria comunidade. O integrante tem mais facilidade para se relacionar com os usuários das bibliotecas por conhecer suas famílias, suas histórias de vida, seu local de moradia, facilitando, por exemplo, que vá até sua casa cobrar a devolução de livro emprestado. Por fim, essa aproximação beneficia também que as atividades promovidas e desenvolvidas nas e/ou pela biblioteca acabam se tornando parte da programação da própria comunidade. 2. COMO OS POLOS/REDES DE LEITURA FORAM SE CARACTERIZANDO COMO COLETIVOS CULTURAIS E SUJEITOS POLÍTICOS? A maior parte dos polos/redes de Leitura foi constituída a partir de 2009. Deste período até o momento atual, pude acompanhar as diversas e complexas matizes do processo de se agrupar e ir, aos poucos, se constituindo como grupo, como coletivo cultural, que reconhece seus objetivos, que alinha princípios, que definem metas e passam a atuar juntos em prol de pautas comuns, experienciando processos de gestão compartilhada3. Cada polo/rede de leitura é composto por cerca de 5 a 14 bibliotecas comunitárias. A partir de reflexões acerca da importância da construção de uma identidade coletiva, desde o início criam nomes próprios, que os representam enquanto grupo. E assim, cada coletivo tem um nome e é composto por bibliotecas que também têm seus nomes e identidades. Cada polo/rede de leitura tem autonomia para criar suas formas de trabalhar, tendo como base os processos democráticos de gestão compartilhada. Eles se organizam através de Grupos de Trabalho (GTs), de Conselho Gestor, de coordenação colegiada etc. Alguns possuem carta de princípios e regimento interno, com premissas e combinados construídos coletivamente para auxiliar os processos de tomada de decisão e atuação colaborativa. Neste trabalho aqui apresentado, o que merece destaque é a maneira como esses coletivos foram se constituindo sujeitos políticos na esfera pública, impactando tanto as trajetórias singulares de seus integrantes, como a consolidação das políticas nas esferas locais. Ao ter que criar um plano de ação anual, cada um desses polos/redes, teve que reconhecer o que era atividade específica de cada biblioteca e o que era atividade comum a ser desenvolvida por todos eles juntos, como um coletivo. As atividades de organização dos espaços e dos acervos das bibliotecas, por exemplo, apesar de serem de competência de cada biblioteca, passaram a ser executadas de modo compartilhado e colaborativo. Presenciei alguns mutirões, nos quais todos os integrantes daquele polo/rede iam para uma única biblioteca descartar livros, catalogá-los no programa de computador, classificá-los, etiquetá-los e arrumá-los nas estantes. Processos e procedimentos colaborativos, com ênfase no diálogo, que proporcionem, ao conjunto dos sujeitos, equidade de participação no projeto coletivo, e a visão integrada de planejamento, monitoramento e avaliação na promoção da aprendizagem.

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Outro exemplo importante são as atividades de mediação de leitura que passaram a não ser desenvolvidas apenas dentro das bibliotecas, ganharam as ruas, as casas, as praças, os parques. Primeiro ainda ocupando os espaços públicos das próprias comunidades e em seguida, ocupação dos espaços públicos das cidades, como eventos organizados pelos coletivos: saraus, concursos literários, contação de histórias, pés de livros, eventos culturais etc. Contudo, o que é mais significativo é que de 2010 para cá esses polos/redes, que passaram a se reconhecer como coletivos culturais, encontraram como estratégia para a sustentabilidade: a incidência nas políticas públicas, em especial as relacionadas às áreas de cultura e educação. Com o PNLL, que estimula a participação da sociedade civil na construção dos planos estaduais e municipais, esses coletivos passaram a se organizar como sujeitos políticos. Em seus planos de ação anuais passaram a aparecer atividades que iam muito além da organização dos espaços físicos e acervos das bibliotecas, assim como das atividades de mediação de leitura, as atividades que começaram a surgir referiam-se a apropriação deles de que a leitura por ser um direito humano, deve ser encampada como luta política de garantia de direito para todos. Passamos assim, a encontrar nos planos de ação anuais atividades como: a) Estudo e debate sobre o PNLL; b) Estudo e debate sobre a lei orgânica municipal; c) Estudo e debate sobre os planos municipais e estaduais de educação e cultura; d) Conversa com vereadores e deputados das comissões de educação e cultura da câmara e da assembleia legislativa; e) Conversa com secretários de educação e cultura; f) Criação de Grupos de Trabalho para a construção dos Planos estaduais e municipais do livro, leitura e biblioteca; g) Articulação com outros setores das cadeias produtiva, criativa e mediadora do livro, leitura e biblioteca; h) Articulação com as bibliotecas escolares; i) Articulação com as bibliotecas públicas; j) Articulação com escritores e ilustradores; l) Articulação com livreiros, editoras e livrarias. m) Organização de audiência pública; n) Produção de seminário sobre as políticas públicas do livro, leitura e biblioteca; o) Estudo sobre orçamento público etc. Ou seja, as atividades ganharam perspectiva pública. Os integrantes se posicionando como cidadãos da cidade, aprendendo a conhecer seus direitos, reconhecendo-se como autores dos processos de construção e fortalecimento da democracia nas cidades, descobrindo que a leitura é um direito humano, que todos têm direito ao livro, a leitura e a biblioteca. Que o trabalho que desenvolvem nas comunidades é de garantia deste direito e, portanto, precisa ser reconhecido pelo poder público, como uma ação pública, garantindo por exemplo recursos públicos para manutenção das próprias bibliotecas. 3. ALGUNS APONTAMENTOS As características apontadas acima suscitam reflexões sobre o modo pelo qual se conectam as trajetórias individuais dos integrantes das bibliotecas comunitárias e a composição de um sujeito político no campo de debates sobre as políticas públicas de leitura no Brasil.

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O que define um sujeito político? O reconhecimento da capacidade de interferir na história, participando das decisões relativas à vida. Agir como sujeito político implica em uma atividade lúcida, reflexiva e deliberativa, cujo objetivo é a instituição de uma sociedade autônoma, permitindo formar projetos coletivos para empreendimentos coletivos (Castoriadis,1992). Uma análise ainda parcial e preliminar considera que o nível de pertencimento dos integrantes, influencia no engajamento à incidência em Políticas Públicas. Que por sua vez, como em um processo de retroalimentação, fortalece o pertencimento à causa, como mola propulsora que anima os projetos de vida. Ou seja, as trajetórias de vida alinhadas com o entendimento e reconhecimento das bibliotecas comunitárias como sujeitos políticos, favorecem a participação dos integrantes em espaços como: conselhos municipais e estaduais de cultura, audiências públicas, fóruns de leitura, reuniões de articulação com parlamentares e secretários de estado, diálogo frequente com outros atores, tais como as universidades, os conselhos de biblioteconomia, livreiros, editoras, fóruns de orçamento participativo, dentre outros. As diferentes formas organizativas dos sujeitos políticos estão em linha com os distintos tempos, espaços e demandas de várias ordens. Para ilustrar essa afirmação, percebe-se que atualmente, o campo temático da participação, por exemplo, tem se deparado com as debilidades em torno da ideia de representação. Nesse domínio, a noção de coletivos culturais, no qual incluo o modo de organização das bibliotecas comunitárias, responde, em parte, demandas contemporâneas: Os coletivos culturais são atualmente uma das expressões mais efervescentes dos movimentos sociais contemporâneos. Tais movimentos estão inseridos no conceito dos novos movimentos sociais (...) coletivo cultural é um movimento independente e desierarquizado, formado por um grupo de pessoas [na maioria das vezes jovens oriundos de territórios subalternos] unidas por interesses comuns. Além disso, uma característica que merece destaque, pertencente a estes coletivos, é a capacidade de transformação mútua, ou seja: (I) transformam e interagem no território, proporcionando novas dinâmicas que questionam [direta ou indiretamente] a lógica política contemporânea, colocando em evidencia uma postura contra hegemônica, de transformação e ressignificação dos diferentes espaços; e (II) ao mesmo tempo também se transformam, pois possuem vida, são dinâmicos e abertos a inovação e ao diálogo. Interagem e se conectam com outros atores, formam redes e circuitos culturais, sejam elas no espaço físico ou virtual. (Marino, 2013) A pesquisa em andamento haverá de explorar mais essa articulação direta entre os perfis das bibliotecas comunitárias, as trajetórias individuais e o componente de participação da sociedade civil presente no texto do próprio plano nacional do livro, leitura e biblioteca.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, Jorge Luis. Biblioteca de Babel. In: Ficções. São Paulo: Globo, 2001. BRASIL, Ministério da Cultura e Ministério da Educação. Plano Nacional do Livro e Leitura. 2006. CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre. (orgs.) Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007. CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, Observatório Itau Cultural, 2008. CASTILLÓN, Silvia. Organización de la sociedad civil por el direcho a leer y escribir. Texto apresentado em Buenos Aires na reunión do Plano Nacional de Leitura, julho de 2007. GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005. MACHADO, Elisa Campos e BARBOSA, Maria Christina de Almeida. Bibliotecas comunitárias em pauta. Itau Cultura, 2006. Disponível em: http://novo.itaucultural.org.br/midiateca/bibliotecascomunitarias-em-pauta/Acesso em: 15/07/2015 MACHADO, Elisa Campos. Análise de políticas públicas para bibliotecas no Brasil. InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 1, n.1, p. 94-111, 2010. MACHADO, Elisa Campos. Uma discussão acerca do conceito de biblioteca comunitária. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v.7, n. 1, p. 80-94, jul./dez. 2009– ISSN: 1678-765X. MARINO, Aluísio. Coletivos Culturais na cidade de São Paulo: ação cultural como ação política. São Paulo, 2013. Trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em gestão de projetos culturais e organização de eventos. CELACC/ECA – USP. MILANESI, Luís. Biblioteca. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas Culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; e BARBALHO, Alexandre (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador, Edufba, 2007.

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GESTÃO CULTURAL E DESAFIOS FRENTE ÀS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS Carla Anéte Berwig1

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo abordar as mudanças tecnológicas e suas implicações na elaboração de políticas culturais e na gestão da cultura. Mostrando que as inovações tecnológicas e os comportamentos decorrentes desse uso modificaram a cultura, tanto em seu modo de produção quanto em sua recepção/fruição. Para isso, focalizaremos em recursos tecnológicos empregados no setor cultural dos museus. Ao final, faremos sugestões que visam modificar o enfoque dado à cultura e o modo de ação no contexto digital, abandonando ideias, conceitos e práticas voltadas ao passado. PALAVRAS-CHAVE: cultura, tecnologia, políticas culturais, gestão cultural, competências digitais.

1. INTRODUÇÃO Vivemos em um tempo em que as mudanças significativas propiciadas pelas tecnologias de informação e comunicação incidem diretamente na maneira como as pessoas produzem e usam a cultura. Os bens culturais não são mais escassos. Pelo contrário, são abundantes e estão ao alcance da mão, com distribuição instantânea, o que, em grande medida, dispensa os mediadores necessários outrora. É claro que não podemos nos deixar levar pela ilusão da não mediação e pela crença na existência de uma “neutralidade técnica” na organização das informações disponíveis nesses meios. Na verdade, os mediadores foram substituídos e, por vezes, ficam ocultos. É preciso também considerar as desigualdades socioeconômicas presentes nesse processo, que afetam o acesso e a qualidade da informação a que as pessoas têm alcance. No entanto, é inegável a existência de uma maior autonomia cultural do indivíduo, já que agora não está mais sujeito ao sistema de produção e distribuição tradicional de bens culturais. E, além disso, com poucos recursos tecnológicos, é possível também produzir cultura.

Graduada em Letras Português-Inglês pela Universidade Tuiuti do Paraná, especialização em Literatura Infantojuvenil (PUC/PR), Literatura Brasileira (UFPR), Ensino de Língua Estrangeira (UFPR), Gestão Cultural e Políticas Culturais (Universidade de Girona e Itaú Cultural), Mestrado e Doutorado em Letras (UFPR). Gestora cultural da Fundação Cultural de Curitiba. E-mail: [email protected].

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O tempo para o uso ou consumo cultural também mudou, proporcionando experiências culturais quase instantâneas aos usuários, provocando imensas mudanças na dinâmica das sociedades. Todos esses aspectos não foram ainda considerados, na escala e dinâmica que o tema exige, pelas políticas culturais e incorporados pela gestão cultural, os quais ainda estão muito voltados a conceitos do passado. Diante desse cenário, pretende-se neste texto fazer uma reflexão sobre a dinâmica cultural contemporânea, ressaltando a importância de elegermos um conceito de cultura adequado para guiar nossas ações. Focalizaremos especificamente nos museus, nos quais a tecnologia provocou uma revolução, alterando o modo como as pessoas veem e se relacionam com essas instituições. Ilustraremos o texto com exemplos de instituições que têm conseguido operar mudanças em seu modo de gestão, levando em conta as mudanças tecnológicas e o modo como as pessoas se relacionam com a cultura. Por fim, faremos sugestões sobre quais valores, competências e condutas julgamos importantes para as políticas culturais e a gestão cultural nesta nova realidade digital. 2. CULTURA E TECNOLOGIA O surgimento das novas tecnologias, como se sabe, provocou uma mudança muito grande em todos os setores da vida humana. Esses impactos foram sentidos na medicina, na educação, nos esportes, nos processos de produção industrial, na vida social e familiar, na comunicação e também na cultura. Portanto, o setor cultural não pode ficar à margem dessa revolução digital que está afetando diretamente o uso/ consumo dos produtos culturais, o acesso à arte e à cultura, seja de qualquer ponto de vista adotado. A tecnologia e a cultura são interdependentes, qualquer mudança em uma, acarretará mudanças na outra. Dessa forma, é importante que tenhamos um conceito de cultura bem definido para pautar nossa ação. O conceito antropológico de cultura já não é mais apropriado, principalmente se tivermos em mente os estudos sobre a cultura e o planejamento e a prática de políticas culturais, pois ele é muito abrangente (tudo é cultura), ambíguo, impreciso e inconsistente. A respeito disso Teixeira Coelho esclarece: “Quando tudo é cultura — a moda, o comportamento, o futebol, o modo de falar, o cinema, a publicidade —, nada é cultura. Mais relevante: quando em cultura tudo tem um mesmo valor, quando tudo é igualmente cultural, quando se diz ou se acredita que tudo serve do mesmo modo para os fins culturais, de fato nada serve...” (TEIXEIRA COELHO, 2008, P. 20) É preciso, portanto, eleger um conceito que seja operacional. Nesse sentido, Carvalho (2011) vê a necessidade de uma redefinição do conceito de cultura no âmbito da sociedade do

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conhecimento. Dessa forma, as políticas culturais não podem ignorar o processo de disseminação e uso das novas tecnologias. 3. A MUDANÇA NO PERFIL DOS MUSEUS Ao analisarmos o nosso entorno, o que fica claro é que está em curso uma significativa mudança de comportamento do público da arte e da cultura, em grande medida provocada e possibilitada pela tecnologia. As pessoas desejam compartilhar experiências, interagir, ser ouvidas, participar ativamente da experiência cultural. Prova disso é que o perfil do público dos museus tem se modificado, exigindo novas práticas dessas instituições. Na contemporaneidade as exposições não ficam restritas apenas a mostrar objetos artísticos, mas sediam também manifestações artísticas ou de natureza estética. Para Botallo (2007), a mudança radical de mentalidade em relação aos museus, consiste no fato de que atualmente o museu não é mais questionado em sua permanência orgânica, mas passa a ser questionado em sua forma/estrutura, e esse raciocínio funciona como elemento catalisador para a aproximação com outras mídias e com outros setores da indústria cultural. O que reforça esse novo pensamento, na opinião da autora, é que existe um claro desejo de transpor as fronteiras disciplinares, em direção a uma proposta inserida no contexto de uma cultura envolvida com as mídias de massa. Assim, as mídias de massa passam a não ser vistas como inimigas do museu, que, por sua vez, amplia seu escopo de ação e permite diferentes apropriações e múltiplas sensibilidades. A partir da compreensão dessa nova mentalidade, algumas instituições ao redor do mundo entenderam que deveriam se aproximar de seu público, que as pessoas desejam experimentações coletivas e que o museu deve sair de sua posição de autoridade para uma posição de compartilhamento. Nesse sentido, é fundamental ouvir o público, perceber o que é valioso para ele e a tecnologia pode ser uma importante aliada nessa tarefa. Diferentemente de outros setores da área cultual, como, por exemplo, a indústria editorial e a música, que tiveram seu modelo de negócios tradicional afetado, a digitalização permitiu aos os museus novas oportunidades, ampliando os pontos de contato das instituições com os usuários, oferecendo possibilidades de inter-relação tanto para os criadores como para as instituições. A explosão da Internet, no início dos anos 2000, fez com que os museus começassem a criar suas páginas na Web, com informações sobre horários, valores cobrados para a entrada e localização. Uma década mais tarde, surgiram as redes sociais, as páginas com recursos multimídia e os primeiros aplicativos. Na atualidade, os museus investem na internet das coisas e na conectividade, com aparatos de todos os tipos, tecnologias “usáveis”, telas tácteis, robôs, aplicativos de reconhecimento facial, beacons (dispositivos que emitem ondas curtas), para conhecer a geolocalização dos visitantes e suas preferências em relação a obras e objetos ex-

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postos, sensores inteligentes e até sistemas de recomendação para satisfazer as necessidades dos visitantes. De acordo com o Anuário AC/E 2015 de Cultura Digital, elaborado pela Acción Cultural Española, que analisa o uso das novas tecnologias no setor cultural, os museus foram o setor que melhor soube tirar proveito das ferramentas digitais para inovar em suas exposições e enriquecer as visitas na Espanha. Para confirmar essa afirmação, os dados apurados pelo relatório revelam que 83,3% desses espaços, em sua grande maioria públicos, estão presentes na Internet, têm imagens digitalizadas de seus acervos e contam com aplicativos educativos. Dessa forma, acabam incorporando ao mundo cultural também as empresas que desenvolvem essas tecnologias. Para realizar esse estudo, foram pesquisadas 226 instituições em diversos países. A pesquisa revelou que o Museu de Arte Moderna de Nova York, Moma, e a Tate Galery, de Londres, são os que estão à frente no uso de tecnologias. O primeiro colocado, criou blogs e canais multimídia com tutoriais para suas obras no site, e tem aplicativos para todos os sistemas operacionais de celular. Possui também nove páginas nas diferentes Redes Sociais. No entanto, em relação a esse último aspecto, foi o Louvre que mais tirou proveito do Facebook, com 1,6 milhão de fãs, enquanto que no Twitter é o Metropolitan Museum de Nova York que tem o domínio, muito engajado com a interatividade com seus seguidores. Especificamente no contexto da Espanha, dados coletados pelos pesquisadores do Anuário AC/E de Cultura Digital 2015 mostraram que o desenvolvimento do país com relação a esses recursos é bastante positivo, apesar de estar atrás de outros países no uso de certos aplicativos. Dessa forma, em 2012, 42% dos museus desse país já contavam com códigos QR para uma análise alternativa das obras. Destaca-se o exemplo do Museu do Romantismo, em Madri, que faz uso de todas as redes sociais e, além disso, criou listas de músicas no aplicativo spotify para aqueles que desejarem se sentir imersos no clima do início do século 19. No que diz respeito à digitalização das obras, também há avanços registrados nos últimos dois anos. Em destaque estão o Museu do Prado, que já tem um arquivo com mais de 8.000 imagens, e o MNCARS, de Barcelona, com 9.000. São vários os problemas enfrentados nesse sentido, que devem ter solução mais à frente. O principal deles está relacionado ao Direito de Autor. No entanto, muitas instituições já têm abordado esses problemas e conseguido compartilhar seus conteúdos com a comunidade, permitindo o livre acesso a imagens de alta resolução e documentos, por meio de licenças livres como o Creative Commons, fazendo do museu um lugar mais social e participativo também no ambiente virtual. Cada instituição deve procurar criar sua política de difusão cultural levando em conta o entorno digital, com previsão de licenciamento para todos os casos. É importante ressaltar, que essas ações requerem uma mudança de paradigma dos museus em relação ao seu papel, que

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além de guardar, conservar e difundir o conhecimento, devem também passar a compartilhá-lo e criá-lo juntamente com a sociedade. Apesar do orçamento elevado de que dispõem essas instituições em diversos lugares do mundo, em comparação com outros segmentos da área cultural, segundo conclusão da pesquisa, nos últimos anos, as contas vêm exigindo uma maior presença de investidores privados. Nesse sentido, a maior dificuldade relatada pelo Anuário diz justamente respeito ao financiamento de projetos digitais. O Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León, por exemplo, investiu nas redes sociais e desenvolveu softwares livres para que os cidadãos possam se envolver mais com o museu. No entanto, dispõe de apenas dois funcionários para conduzir a tarefa da digitalização do museu. Após a apresentação de todos esses exemplos, do contexto internacional, de como os museus vêm incluindo as ferramentas digitais em seu funcionamento, nas exposições e como estratégia de comunicação com seu público, não resta dúvida de que a tecnologia não é nociva para a área cultural, desde que seja usada adequadamente. Nesse sentido, o físico espanhol Jorge Wagensberg (2013), que criou o Museu de Ciência de Barcelona e transformou a museologia em ciência, em entrevista ao Jornal O Globo, faz um alerta de que a tecnologia fica obsoleta rapidamente, e o que deve prevalecer na concepção de um museu são as boas ideias para contar histórias com criatividade e beleza. No entanto, o uso inteligente desses recursos, de acordo com a conclusão do estudo publicado no Anuario AC/E de Cultura Digital 2015, tem servido para ampliar o público dos museus e colaborado para que as pessoas se aprofundem mais nas obras, com um rendimento comunicacional e educativo mais abrangente e os museus, por meio dos dados colhidos, passam a conhecer mais e melhor seus visitantes. Como pudemos perceber os museus ao redor do mundo se encontram em um momento de mudança e transformações no modo de apresentar suas exposições e coleções. É visível e cada vez mais frequente o uso de novas técnicas e tecnologias como parte de estratégias para melhor atender os visitantes, facilitando o acesso ao conhecimento, tornando a visita mais rica e interativa. A combinação da digitalização com a virtualização tem modificado a museologia no mundo e também no Brasil. E a incorporação da tecnologia aos museus tem exigido novos olhares, novas formas e novos fazeres. No nosso País, são muitos os problemas que os museus enfrentam: baixos orçamentos, falta de estrutura e de profissionais capacitados, grandes distâncias, isolamento, alta concentração em algumas regiões, como Sul e Sudeste. Mas apesar de todos esses empecilhos, segundo Gouveia e Dodebei (2007), quase a totalidade dos museus brasileiros já se habituou a ter um novo espaço para sua divulgação, exposições, para suas atividades educativas, enfim, para construir seu projeto de memória.

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Henriques (2004, pág. 6) elenca algumas categorias para definir os museus dentro do ciberespaço. A primeira seria a de “folheto eletrônico”, na qual estão incluídos os sites de quase todas as instituições brasileiras, que funcionam como espaço para divulgação, apresentando o museu e informando os horários e programação. A segunda categoria seria a do “museu no mundo virtual”, na qual a instituição torna possível o acesso a informações sobre seu acervo, com imagens das exposições, chegando a permitir visitas virtuais. Sendo assim, o museu físico é projetado numa dimensão virtual. A terceira categoria diz respeito aos “museus realmente interativos”, são aqueles museus considerados museus virtuais de fato, nos quais sua imagem no ciberespaço não corresponde apenas à estrutura física do museu, mas o visitante consegue interagir para além da simples observação. Incorporar esses recursos digitais aos museus requer o desenvolvimento de certas competências digitais aplicadas ao setor cultural, é o que abordaremos no próximo item. 4. PROPOSTAS PARA A GESTÃO CULTURAL EM UM CONTEXTO DIGITAL As profundas transformações digitais pelas quais tem passado a sociedade contemporânea têm impacto na cultura e consequentemente nas equipes e nas pessoas que fazem parte do setor cultural, exigindo que essas se adaptem rapidamente às novas demandas. Não se trata de apenas de saber usar as novas ferramentas tecnológicas, mas de algo bem mais complexo. Trate-se de identificar quais as competências necessárias para que os gestores e profissionais da cultura desempenhem com êxito as novas tarefas, em um cenário incerto e em permanente mudança. Todos são afetados em maior ou menor grau, desde os artistas e criadores, os gerentes e administradores, até as equipes técnicas mais tradicionais. E a maioria desses profissionais não está preparada para dar respostas a essas novas funções requeridas, impondo-se então um problema de adaptação e uma necessidade de reciclagem e mudança de mentalidade. Dessa forma, apresentamos o modelo desenvolvido por Roca Salvatella (2004) apud Cerezo (2015), contendo oito competências digitais que acreditamos serem essenciais a qualquer organização e profissionais, especialmente aos gestores da cultura, para se adaptar as necessidades do mundo contemporâneo. No entanto, para incorporar essas competências, é importante destacar que a tecnologia deve estar subordinada à inteligência e à criatividade, e não o contrário. São elas: 1. Conhecimento digital: é a capacidade para desenvolver-se criativa, profissional e pessoalmente dentro do universo digital. Isso significa incorporar a lógica digital para o desempenho profissional, promovendo desde a melhora dos processos administrativos até a incorporação de dados para as tomadas de decisão. É o desenvolvimento de uma visão digital.

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2. Gestão da informação: trata-se da competência para buscar, obter, avaliar, organizar e compartilhar informações em um contexto digital, algo essencial em se tratando do setor cultural e criativo que vive essencialmente da gestão da informação e de sua transformação em conhecimento. 3. Comunicação digital: é a habilidade para comunicar-se, relacionar-se e colaborar de forma eficaz com ferramentas e entornos digitais. Aqui destaca-se a importância das redes sociais dentro das organizações culturais durante todo o processo criativo, aproximando os criadores de seu público, ajudando gestores a melhorar os modelos de relação e difusão de suas ofertas culturais. 4. Trabalho em rede: capacidade para trabalhar, cooperar e colaborar em entornos digitais. As instituições culturais sempre trabalharam com equipes multidisciplinares, mas a digitalização trouxe novas possibilidades que requerem novas ferramentas, plataformas e, principalmente, processos, para extrair o máximo de potencial, redefinindo hierarquias e estruturas. 5. Aprendizagem contínua: capacidade para gerir a aprendizagem de forma autônoma, conhecer e usar os recursos digitais, manter e participar das comunidades de aprendizagem. O processo digital requer um contínuo aprendizado, pois está em permanente transformação, exigindo que os profissionais da cultura estejam em constante alerta para as inovações. 6. Visão estratégica: capacidade para compreender o fenômeno digital e incorporá-lo à organização estratégica dos projetos desenvolvidos pelo gestor e pelas instituições culturais. 7. Liderança em rede: capacidade para dirigir e coordenar equipes de trabalho distribuídas em rede e entornos digitais, em ambientes menos hierárquicos, mais planos e difusos, requerendo um tipo de liderança diferente da tradicional. 8. Orientação aos usuários: capacidade para entender, compreender, interagir e satisfazer as necessidades dos novos usuários em contextos digitais. 5. CONCLUSÃO Neste texto analisamos como certas tecnologias mudaram a cultura, tanto em sua recepção quanto em sua fruição e quais as implicações para as políticas culturais e a gestão da cultura. Inicialmente falamos sobre a relação de interdependência entre cultura e tecnologia e apontamos a necessidade de haver uma revisão do conceito de cultura para guiar as ações dos gestores e orientar a elaboração das políticas culturais, levando em conta as transformações por que vem passando o mundo contemporâneo inserido na sociedade de informação.

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Para entendermos como as novas tecnologias modificam a cultura, focalizamos nos museus, analisando como as instituições museológicas, em nível internacional e nacional, incorporaram essas novas tecnologias em seus projetos expositivos, como forma de aproximar o público com a instituição e como estratégia de comunicação. A partir dessa análise, propomos ao setor da cultura a adoção de uma visão digital, por meio do desenvolvimento de competências, com foco em uma nova maneira de pensar que transforme a cultura organizacional, os processos, as relações entre os diferentes setores e áreas, e o diálogo e relação com os usuários, enfim, algo mais complexo do que a simples incorporação de recursos tecnológicos. Acreditamos que para atingir tal fim, as organizações culturais, que têm como base o talento, precisam escolher e implantar o modelo de competências que julgarem mais apropriado, para difundi-lo e impulsioná-lo da melhor forma, buscando parcerias para viabilizá-lo sob o ponto de vista econômico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANUARIO AC/E DE CULTURA DIGITAL 2015. Modelos de negocios culturales en Internet. Focus: Museos y nuevas tecnologias. Acción Cultural Española. Disponível em: Acesso em: 25/07/2015 BOTALLO, M. Poder, cultura e tecnologia: O museu de arte e a sociedade de comunicação. Novos Olhares - Revista de Estudos Sobre Práticas de Recepção. Publicação semestral online do Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da ECA/USP, 2000, p. 5-17. Disponível em: Acesso em: 15/07/2015 CARVALHO, E. A. Religação dos saberes e educação do futuro. In: TEIXEIRA COELHO, José (Org.). Cultura e educação. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2011. p. 29-42. CEREZO, P.  El reto de la transformación digital de las industrias culturales. Anuario AC/E de Cultura Digital, 2015. Modelos de negocios culturales en Internet. Focus: Museos y nuevas tecnologias. Acción Cultural Española, p. 147-161. Disponível em: Acesso em: 15/07/ 2015. EL DIARIO. Disponível em: Acesso em: 25/07/ 2015. HENRIQUES, R. Memória, museologia e virtualidade: um estudo sobre o Museu da Pessoa. Dissertação de Mestrado em Museologia Social. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, 2004. MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em: Acesso em: 3/08/2015 DODEBEI, V; GOUVEIA, I. Memórias de pessoas, de coisas e de computadores: museus e seus acervos no ciberespaço. MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 3, 2007. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Departamento de Museus e Centros Culturais,

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2004, p. 93-97. Disponível em: Acesso em: 20/07/2015. O GLOBO. Disponível em: Acesso em: 15/07/2015. O GLOBO. Disponível em: Acesso em: 20/07/2015 TEIXEIRA COELHO, J. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2008. TEIXEIRA COELHO, J. Com o cérebro na mão no século que gosta de si mesmo. Desafios culturais do século 21. São Paulo, 2015. Arquivo digital Itaú Cultural.

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CULTURA E DESENVOLVIMENTO DAS CIDADES. POLÍTICAS CULTURAIS PARA QUEM? Carla Cristina Rosa de Almeida1 João Policarpo Rodrigues Lima2 Maria Fernanda Gatto Padilha3 RESUMO: A questão dos subsídios às artes e da influência do setor cultural no desenvolvimento econômico divide opiniões nas diversas áreas de conhecimento. Assim, o objetivo deste artigo é discutir a relação entre cultura e desenvolvimento das cidades, bem como os diferentes desencadeamentos acerca da implementação de políticas culturais. O debate traz evidências de que as políticas culturais têm privilegiado as classes mais altas de renda, fato agravado pelas trajetórias da urbanização das grandes cidades, caracterizadas pela alta segregação social. PALAVRAS-CHAVES: Amenidades culturais, planejamento urbano, desenvolvimento urbano.

1. INTRODUÇÃO A não viabilidade econômica de grande parte dos serviços culturais, juntamente com a visão que consagra a importância da preservação de identidade nacional e do direito à cultura, faz com que os subsídios às “artes” sejam praticados em diversos países. Porém, são diversas (e divergentes) as abordagens sobre o papel do Estado como propulsor do setor cultural. Afinal, por que a oferta cultural importa? Dessa forma, o objetivo deste artigo é discutir a relação entre cultura e desenvolvimento das cidades, bem como os diferentes desencadeamentos acerca da implementação de políticas culturais. No campo da teoria econômica, em geral, a discussão perpassa pela análise das externalidades positivas dos investimentos públicos em cultura e a sua capacidade (ou não) de exceder os custos de intervenção. Alguns autores colocam a questão sob o ponto de vista da importância das amenidades culturais e de consumo para atração de capital humano e, consequentemente, Doutoranda em Economia – PIMES/UFPE, Recife. Professora do Departamento de Ciências Econômicas – FE/ UFMT, Cuiabá. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Economia pela University of London, Inglaterra. Professor do Departamento de Economia – UFPE, Recife e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected] 3 Doutora em Economia pela UFPE, Recife. Professora do Departamento de Economia – UFPE, Recife. E-mail: [email protected] 1

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das decorrentes externalidades que contribuem para o crescimento econômico das cidades, como visto na seção 2. Outros discutem a inclusão da cultura nos projetos urbanos de revitalização e dinamização de regiões e municípios, enfocando para além da sua função econômica, seu papel no âmbito social. Por sua vez, sob a ótica do direito à cultura e acesso à cidade, as políticas culturais também são importantes no processo de fortalecimento da cidadania. Tais visões são abordadas na seção 3. Por sua vez, na seção 4, traz-se uma revisão empírica acerca do desenvolvimento cultural de cidades brasileiras e, por fim, na seção 5, tem-se as considerações finais. 2. AMENIDADES CULTURAIS E CRESCIMENTO DAS CIDADES Diversos autores da área de Economia Regional e Urbana vêm procurando demonstrar a relação entre amenidades culturais e desenvolvimento das cidades, cujas teses mais conhecidas são as de Edward Glaeser e Richard Florida. Glaeser enfoca a importância das amenidades de consumo em geral em detrimento da produção como indutor de crescimento econômico, as chamadas cidades consumidoras (GLAESER, 2011; 2005; GLAESER, MARÉ, 1994; GLAESER et. al., 2001). O argumento baseia-se na tese de que, devido à aglomeração de indivíduos com alto nível de capital humano, em geral, a renda média da população nessas localidades tem crescido mais que a média dos salários, bem como tem apresentado taxas mais altas de crescimento populacional em comparação ao crescimento do emprego4. Englobam-se os casos de São Francisco e Londres, como cidades para consumo, e o caso de Paris, cujo fator de atração de pessoas consiste nas amenidades estéticas. Os autores apresentam que nas grandes cidades modernas são observadas quatro amenidades principais: (i) diversidade de bens de consumo e serviços, com os últimos particularmente importantes para o município – restaurantes, teatros, etc. – já que são não comercializáveis fora do local; (ii) conjunto de atributos estéticos e físicos, que podem estar relacionados a aspectos naturais ou arquitetônicos; (iii) serviços públicos essenciais, tais como escolas públicas de qualidade e baixa taxa de criminalidade; e (iv) velocidade, que consiste em uma ‘amenidade virtual’ relacionada ao tempo de deslocamento dentro do município (commuting costs)5.

A redução do custo de ideias vincula-se a aglomeração de pessoas no espaço – spillovers de conhecimento. O consequente aumento de produtividade da área urbana tem origem, portanto, na qualificação dos trabalhadores. 5 Dentre exemplos de políticas governamentais executadas com tais propósitos, pode-se citar cidades de médio porte do Canadá, que têm investido em amenidades culturais como fator de atração de migrantes, particularmente importante para o crescimento em um país com baixa taxa de natalidade e alta taxa de envelhecimento. Grant e Buckwold (2013) apresentam o caso de Halifax, um município de cerca de 372 mil habitantes em 2006, e que apresentava alta participação relativa de imigrantes que atuavam profissionalmente na área da cultura. 4

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Richard Florida (2002; 2003), por sua vez, relaciona o sucesso das cidades com a presença da classe criativa6. Sua hipótese consiste em dois argumentos principais: (i) que pessoas talentosas e criativas têm maior capacidade de contribuir para inovação e, consequentemente, crescimento econômico; (ii) que tais tipos de indivíduos – muitos ligados as atividades intensivas em tecnologia - buscam locais ricos em amenidades naturais e culturais. Dado que o espaço não é neutro e exerce influência na decisão locacional, já que as diferentes classes de indivíduos não estão distribuídas uniformemente (e nem aleatoriamente) e que as pessoas não buscam apenas empregos na escolha da habitação, o que faz com que alguns lugares se tornem destino da classe criativa? Florida (2003) afirma que os centros criativos são regiões que apresentam características específicas, cujos atributos são de interesse de indivíduos pertencentes à classe criativa. Dentre esses atributos, destacam-se as amenidades relacionadas ao estilo de vida, que incluem possibilidades de atividades esportivas e culturais, além de relações sociais. Nesta última, a tolerância tem papel fundamental e pode ser observada através da identificação de lugares com baixas barreiras à entrada de pessoas7. Em termos de implicações de políticas, para o autor, cidades cujos governos investem milhões em estádios e em medidas de atração de grandes lojas varejistas estão “presas ao passado”. Ao não realizar investimentos em amenidades de estilo de vida, as ações serão ineficientes para atrair jovens talentosos, sobretudo para as pequenas e médias cidades que dependem de fluxos migratórios para seu desenvolvimento. Em oposição ao papel central dos consumidores culturais no desenvolvimento atribuída pelos autores mencionados, Markunsen e King (2003) e Markunsen (2013), enfatizam a importância da própria classe cultural. Comparam a função dos artistas para o desenvolvimento regional ao dos bens públicos8, uma vez que contribuem não somente a partir dos fluxos de renda atuais, mas também através dos retornos para a região em virtude de investimentos passados, sobretudo em infraestrutura. Por sua vez, uma das principais críticas ao modelo de Glaeser é apresentada em Stoper e Scott (2009) e está vinculada especialmente a dois aspectos. O primeiro refere-se ao problema para identificar as preferências dos indivíduos que vivem nas grandes cidades, atribuindo às amenidades de consumo como fator central de atração de habilidosos, sem mensurar se essas preferências são reais. Em segundo lugar, contrapõem-se as conclusões sobre mudança nas preClasse criativa é um conjunto de pessoas que se engajam em funções profissionais cuja criação tem papel central e pode assumir formas diversas. (FLORIDA, 2002, p. 4). 7 Economists speak of the importance of industries having “low entry barriers,” so that new firms can easily enter and keep the industry vital. Similarly, I think it’s important for a place to have low entry barriers for people---that is, to be a place where newcomers are accepted quickly into all sorts of social and economic arrangements. (FLORIDA, 2002, p. 7). 8 “Artists as potential entrepreneurs bring strengths and deficits to enterprise development that differ from other types of entrepreneurial candidates (…) scientists, engineers” (MARKUSEN, 2013, p.3). 6

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ferências dos indivíduos mais talentosos, que teriam passado a valorizar mais as amenidades de consumo em detrimento de residir em cidades de temperaturas mais amenas, provocando crescimento populacional nos centros consumidores. Nesse sentido, Stoper e Scott (2009) apresentam diversos exemplos de fluxos migratórios e crescimento populacional, em diversos períodos do século XX nos Estados Unidos, que não apresentam nenhuma relação com o clima. Dentre as principais críticas ao modelo de Florida, podem-se citar os textos de Glaeser (2005) e de Stoper e Scott (2009). Ambos os trabalhos apontam que não foram encontradas evidências empíricas da relação entre os índices de diversidade e tolerância – Gay e Bohemian9 - e crescimento urbano, o que fragiliza a tese de Florida sobre cidades com baixas barreiras à entrada de pessoas, atração de classe criativa e sua contribuição no desenvolvimento local. Glaeser (2005) concorda sobre a crescente importância da classe criativa na economia, porém, discorda sobre o ineditismo da ‘teoria da classe criativa’ em relação ao mainstream da Economia Urbana, já que não avança teoricamente do consenso de que capital humano precede o sucesso das cidades10. Por sua vez, Stoper e Scott (2009) apontam que, ao contrário da maioria das teorias sobre inovação, Florida não discute os canais que estimulam e possibilitam a interação entre os agentes. Stoper e Scott (2009) ainda acrescentam que Glaeser e Florida subestimam a importância do trabalho de baixa qualificação para manter o sistema urbano em operação, sobretudo que trabalhadores de alto e de baixos salários são complementares para a emergência da nova economia nas maiores cidades The emerging new economy in major cities has been associated with a deepening divide between a privileged upper stratum of professional, (…) on the one side, and a mass of low-wage workers—often immigrant and undocumented—on the other side. (…)The low-wage segment of the labor market is itself one of the critical foundations of urban life today and hence of current patterns of growth, not only because workers in this segment carry out basic production activities such as electronics assembly or garment making, but also because this is the sphere of the janitors, security guards, transport workers, short-order cooks, child-minders and so on, who maintain the networks, infrastructures and services that help to keep the entire urban system in operation. (STOPER, SCOTT, 2009, p. 164). Consequentemente, tais teses, sobretudo a de Florida, induzem a sugestões de políticas que aumentariam hiato entre as classes sociais, levando a uma segmentação do mercado de trabalho e afetando a qualidade da cidadania e participação política. Por fim, Stopper e Scott (2009) afirmam que ambas as teses deixam em aberto a maior questão sobre o progresso das cidades: a identificação das forças que levam ao processo de crescimento e desenvolvimento Apresentado em Florida (2002). A saber: a ideia de criação de conhecimento de Adam Smith; a geração e difusão de ideias em áreas urbanas de Alfred Marshall; a criatividade em área urbanas de Jane Jacobs e a nova teoria do crescimento de Paul Romer. 9

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urbano na sua origem, ou seja, o que levou ao agrupamento de indivíduos habilidosos em determinadas regiões. At what point do individuals recognize a place as offering this or that amenity, and at what point does such recognition begin to spark off growth? How does a sufficient concentration of skills offering an effective opportunity for interaction emerge in the first place? More crucially, how and why do specialized accumulations of highly skilled individuals (such as actors and directors in Hollywood, or semiconductor engineers in Silicon Valley) come to characterize individual places—as opposed to accumulations of randomly assorted members of the creative class? (STOPER, SCOTT, 2009, p. 153). Nesse sentido, os autores consideram que são a produção e os postos de trabalho que dirigem a prosperidade urbana e, somente a partir daí é que surgem as amenidades sociais, culturais, materiais e econômicas. Tais amenidades são endógenas ao crescimento urbano e não causadoras desse processo e, sendo assim, é com relevância marginal que devem ser observadas como fatores de atração de capital humano. Um forte argumento para tal afirmação baseia-se no entendimento de que as escolhas locacionais individuais estão inseridas em um conjunto de possibilidades, que incluem as preferências, mas que também (e principalmente) estão fortemente ligadas à restrição orçamentária definidas pelas oportunidades de trabalho. Many individuals unquestionably have strong preferences for warm winters or upscale urban amenities or certain kinds of social diversity, and they are frequently prepared to act on the basis of these preferences. (…) most migrants—unless they enjoy a private income or are able to capitalize on some purely personal talent that can be practiced anywhere—are unlikely to be able to move in significant numbers from one location to another unless relevant employment opportunities are actually or potentially available. (STOPER, SCOTT, 2009, p. 161). Por sua vez, criticando fortemente as teses que enfocam o papel da cultura para regeneração de cidades pós-industriais, Andy Pratt (2008; 2009) coloca que o risco de gentrificação11 dos espaços culturais nas cidades prejudica a classe cultural (PRATT, 2008; 2009). Além disso, aponta que o fator de desenvolvimento local e a criatividade estão nos produtores culturais e ‘artistas reais’ e não nos consumidores que realizam gastos na localidade em virtude das amenidades culturais existentes12. Defende, portanto, políticas de desenvolvimento da indústria cultural e não apenas políticas de promoção de consumo. As ações públicas devem, ainda, considerar que a valorização Valorização de uma determinada região em virtude da instalação de novos pontos comerciais ou outras edificações, que prejudica a permanência de antigos moradores devido ao aumento dos custos. 12 Nesse sentido, reforça a crítica de Peck (2005 apud PRATT, 2008) a Florida, que ignora a dimensão produtora da indústria cultural e considera o ‘consumidor criativo’ autônomo como um agente de mudança. 11

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imobiliária dos espaços culturais pode forçar deslocamentos, o que, em última instância, pode contribuir para o próprio declínio da localidade13. Ademais, ressalta que ‘vender cidades’ com recursos públicos é uma forma de taxação socialmente regressiva. 3. CULTURA COMO POLÍTICA URBANA E SOCIAL No âmbito das relações entre urbanismo e cultura, tem sido discutida a importância das políticas culturais para revitalização14 urbana, através da regeneração de áreas urbanas degradadas ou ‘vazias’, preservação de patrimônio ou ambientes históricos, construção de equipamentos culturais, entre outras (VAZ, 2004; 2013). Sobretudo nas últimas décadas, a inclusão da cultura, assim como de outros bens não materiais, tem sido presente nos projetos urbanos das cidades pós-industriais como instrumento de desenvolvimento econômico e reversão de danos causados pelos processos de industrialização. Além disso, constitui “elemento diferencial na disputa entre as cidades por apresentar as melhores condições para atrair capitais, investimentos, empresas, moradores e turistas” (VAZ, 2004, p.2). Algumas intervenções, que alinham criatividade a questões urbanas, têm sido denominadas de ‘criativas’. Dentre os principais tipos de políticas tem-se creative-clad – dotar a cidade de uma roupagem criativa, como o recorrente exemplo de Bilbao; creative-class – realizar investimentos que atraiam a instalação de pessoas criativas (em conformidade as teses de Florida); e a creative-cash - “fomentar produtores criativos do próprio local” (MORAES, 2012, p. 15) 15. São muitos os exemplos de cidades onde investimentos em projetos que alavancam a cultura, turismo e/ou atividades esportivas foram bem sucedidos quanto ao aumento da renda e a redução da taxa de criminalidade. Na Itália, a cidade de Turim, ao passar uma crise de desindustrialização, teve sua economia alavancada através do investimento em atrações esportivas e culturais. Medellin, cidade colombiana considerada a cidade mais violenta do mundo em 1991, através de políticas articuladas, tornou-se referência turística e concomitante inclusão social (REIS, KAGEYAMA, 2011). No Brasil, a maior parte dos exemplos são de políticas direcionadas às áreas dentro das cidades e não voltadas a criar uma ‘cidade criativa’. Sobre instalações de equipamentos culturais ou de revitalização de espaços urbanos degradados, Machado (SD, p. 29-30) menciona os casos do

Como exemplo, apresenta o caso de Hoxton, em Londres, onde a constituição de rede de produção social de artistas e novos médios trabalhadores contribuiu para regeneração urbana, mas a formação de cluster de consumo, posteriormente, induziu a gentrificação das residências. 14 Sobre as diferentes denominações atribuídas as intervenções urbanas ao longo do tempo, ver Vaz (2013). Atualmente, é comum o uso do termo revitalização como forma de expressar a inclusão da população no processo de transformação física e econômica local. 15 A discussão sobre intervenções urbanísticas, criativas ou não, é muito ampla e foge ao escopo desse trabalho. Para uma introdução sobre política urbana criativa, ver Moraes (2012). 13

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(…) Pelourinho, em Salvador; a criação do Porto Digital no Recife Antigo, em Recife; a construção do espaço cultural Dragão do Mar, em Fortaleza; a recuperação da área portuária, em Belém; a revitalização da área da Praça da Estação, em Belo Horizonte e da região da Lapa, no Rio de Janeiro; a construção da Ópera do Arame, em Curitiba; a requalificação da região da Estação da Luz (Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa, Sala São Paulo), em São Paulo”. São muitas e diversas as críticas ao estrito ‘sucesso econômico’ das intervenções, que fogem ao escopo desse trabalho, que se atem ao resultado das políticas em termos de melhoria de renda e, principalmente, de acesso ao consumo cultural por parte dos residentes. Nesse contexto, ainda que seja difícil avaliar o custo-benefício de tais ações, historicamente, as intervenções urbanas têm-se concentrado nas áreas mais centrais e valorizadas das cidades, inclusive gerando gentrificação e espetacularização16 da urbe (VAZ, 2004; 2013), além do aumento geral do custo de vida e remoções forçadas (MORAES, 2012). Para Vaz (2004, p.3), Não se trata, portanto, do planejamento cultural enquanto provisão e distribuição de equipamentos e atividades culturais no território da cidade (..), mas “de projetos para intervenções urbanísticas nas quais se faz uso estratégico de recursos culturais tendo por objetivo o desenvolvimento local, e que podem ou não estar associadas a planos e políticas culturais. Dessa forma, a construção de equipamentos culturais não é capaz, por si só, de mudar a realidade local quanto ao desenvolvimento17, como muitas vezes também não promove democratização cultural18 aos residentes. A ampliação da oferta não garante o consumo cultural, pois os hábitos dependem de fatores contextuais e experiências passadas, que influenciam a identificação do indivíduo com um ou outro determinado tipo de manifestação cultural. Libânio (2014, p. 6) afirma que Viu-se que havia obstáculos materiais ao consumo e fruição cultural, tais como a má distribuição ou ausência de espaços culturais e os preços altos, mas que as barreiras simbólicas eram as predominantes, impedindo que novos segmentos da população tivessem acesso à oferta da cultura “clássica”. (....) a descentralização dos equipamentos culturais tem sido levada a cabo pelos governos no Brasil, muitas vezes sem as necessárias ações de mobilização e formação de público. No campo da Sociologia, através da ideia de capital cultural, Pierre Bourdieu coloca que o “gosto” por determinados tipos de bens culturais não ocorre de forma aleatória, mas afeta grupos sociais específicos, fortemente relacionado à formação do indivíduo e sua inclusão em deterA espetacularização da cidade é resultado do planejamento urbano estratégico no qual o valor mercadológico predomina sobre os valores artísticos e antropológicos. 17 É o que ocorreu na região da região da Estação da Luz, onde não se alterou a lógica de consumo e tráfico de drogas da Cracolândia (MORAES, 2012). 18 No que tange ao termo democratização, Botelho (2006) diferencia facilitação de acesso às manifestações artísticas tradicionais de democratização cultural, sendo esta última um conceito muito mais abrangente. 16

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minado grupo social e, portanto, reflete fortemente as desigualdades sociais. (MORAES, 2010). Sob o ponto de vista da teoria econômica, num dos primeiros trabalhos empíricos sobre consumo cultural, Becker e Stigler (1977 apud MORAES, SAMPAIO, 2010) apresentaram que a demanda por bens artístico-culturais presente afeta positivamente a demanda futura dos indivíduos e, portanto, ao contrário da maioria dos bens, os culturais possuem utilidade marginal crescente. A constatação de que grande parte das políticas de ampliação de oferta cultural, ligadas ou não a revitalização de áreas urbanas degradadas, remete a outro problema persistente ao longo do tempo: as desigualdades econômicas e sociais. Tais desigualdades são refletidas nas trajetórias de urbanização, com predominância dos espaços privados de interação, em detrimentos de praças, parques e outros espaços culturais e de lazer. Assim, a cidade tem-se tornado, cada vez mais, espaço de trabalho, enquanto as horas de lazer, entre elas, o consumo cultural, ocorrem dentro dos domicílios. Segundo Botelho (2003, p. 4), deslocamentos físicos se tornam, cada dia mais difíceis, pode-se dizer que a mobilidade territorial e o uso de equipamentos culturais se convertem, cada vez mais, em direito e privilégio das classes com maior poder aquisitivo. (...) De um lado, acompanharam o desenvolvimento da cidade; de outro, foram construídos em função de demandas dos setores já mais habituados ao consumo de cultura. Especialmente em países em desenvolvimento marcados por profundas disparidades sociais, “o acesso à cidade é restrito a uma parcela da população, sendo, portanto, apenas virtualidade para a grande maioria, em especial classes populares urbanas, moradores de favelas e periferias” (LIBÂNIO, 2014, p. 5). A política cultural, portanto, assume lugar no processo de construção da cidadania. Se a cultura pode ser qualificada como bem comum, assim como o conhecimento e a informação, então “a dimensão cultural da existência é (ou pode vir a ser) importante ferramenta, veículo e processo para a inclusão das classes populares no espaço urbano e ampliação do real acesso à cidade” (LIBÂNIO, 2014, p. 2). Então, por um lado, percebe-se que as cidades têm perdido sua função de promover convívio social ao longo do tempo e, por outro, que o consumo cultural pode contribuir para reversão desse processo. De acordo com o atual Ministro Juca Mendes, “A política cultural que reorganiza a relação com a periferia não só concomitantemente constrói outra cultura política; ela já é, em si, resultado de uma outra visão sobre a ocupação das ruas e dos espaços públicos, de uma política voltada a superar modelos excludentes” (FERREIRA, 2016)19. Estas reflexões indicam que as políticas culturais devem ser pensadas de forma transversal, caso contrário, não têm efeito, nem como política urbana, nem para promover o setor “A reversão de equívocos históricos para novos imaginários urbanos”, publicado na Folha de São Paulo em 03/01/2016, disponível no link http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/01/1723759-a-reversao-de-equivocos-historicos-para-melhorar-as-cidades.shtml

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cultural. Logo, devem ser avaliadas no que tange aos seus resultados, não somente em termos de renda gerada à classe cultural e ao entorno de onde está sendo realizada, mas também em termos de democratização do acesso as artes e a participação política em relação a cidade, legitimando o direito constitucional à cultura e ao exercício de cidadania. 4. DESENVOLVIMENTO CULTURAL DE CIDADES BRASILEIRAS: REVISÃO EMPÍRICA O desenvolvimento cultural das cidades pode ser analisado por diferentes óticas, perpassando pela oferta e distribuição de equipamentos culturais, pela eficácia da gestão cultural, pela análise do mercado de trabalho e outros indicadores, dente outras. Os principais estudos sobre o Brasil que enfocaram especificamente a problemática dos equipamentos culturais foram realizados a partir de estudos de casos das grandes cidades. Em geral, a distribuição dos equipamentos culturais nas principais metrópoles do país reflete a segregação da oferta de serviços públicos e privados. Observa-se, portanto, um ‘vazio’ nas periferias, que na sua maior parte são áreas de baixa renda, como demonstrado por Botelho (2003) e Bógus e Pasternak (2011) para região metropolitana de São Paulo. Outro exemplo em que os empreendimentos no campo do entretenimento seguiram a estratégia de localização nas principais vias de circulação e áreas de maior renda é Curitiba. A concentração dentro da RM também é evidente: 26 dos 50 novos empreendimentos a partir de 1998 foram instalados na capital (FERREIRA, FERNANDES, HUÇULAK, 2011)20. Com finalidade de comparar as diferentes localidades do país, um dos estudos pioneiros e, até o momento, um dos mais abrangentes, é a pesquisa realizada pelo Ipea (SILVA, 2010). Elaborou-se um indicador de desenvolvimento da economia da cultura (IDECULT) em nível municipal e também para as mesorregiões. As variáveis utilizadas foram referentes ao consumo cultural das famílias, mercado de trabalho cultural e sobre a oferta de equipamentos culturais. Apesar das diversas limitações impostas pelo uso de um indicador que não é capaz de registrar “as interações sociais que engendram as dinâmicas de produção da diversidade cultural”, apreendendo apenas “aspectos materiais e quantificáveis”, o estudo é inédito ao trazer uma radiografia do país em nível municipal (SILVA, 2010, p. 37). Traz também um panorama da distribuição dos equipamentos, divididos em quatro grupos: equipamentos culturais tradicionais (bibliotecas, museus, teatro ou casa de espetáculos, cinemas, bandas de música e orquestras, para os quais, em geral, existe política pública); equipamentos de lazer (clubes e associações recreativas); equipamentos privados de distribuição de bens culturais (videolocadora, loja de

O movimento de instalação de multinacionais na capital, intensificado a partir dos anos 90, aumentou a demanda por serviços e, consequentemente, estimulou criação de empreendimentos ligados ao entretenimento.

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discos, cds e fitas, livrarias e shopping center) e equipamentos audiovisuais (estação de rádio AM e FM, geradora de TV, provedor de internet e cinema). No que tange ao acesso à cultura ‘medida’21, os dados reportam uma forte desigualdade dentro do território brasileiro. As bibliotecas são os equipamentos mais bem distribuídos, “os museus aparentemente mais frequentes no extremo Sul e os teatros em São Paulo e Rio de Janeiro”, enquanto há uma “ausência quase completa de orquestras e cinemas nos municípios brasileiros”. (SILVA, 2010, p. 64). Ferreira Neto e Perobeli (2013), através da base de dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais - MUNIC (IBGE, 2009), elaboraram o Índice de Potencial de Desenvolvimento das Atividades Culturais (PDAC) para as microrregiões do estado de Minas Gerais. Utilizaram informações ligadas à cultura, tais como características da gestão e dos trabalhadores da administração pública, dados sobre arrecadação e gastos do município e informações sobre oferta de equipamentos culturais, atividades e cursos nessa área, totalizando 35 variáveis. Através de técnicas de análise fatorial, auferiram que três fatores principais explicam a variância: atividades e estrutura cultural; acesso à cultura e gestão cultural. Os resultados apontam que 64 das 66 microrregiões apresentaram valores que indicam deficiência de infraestrutura. Diniz e Machado (2011) elaboraram indicadores relacionados a oferta cultural para incluí-los em análise sobre gastos familiares com cultura. Para estudar consumo nas nove principais regiões metropolitanas do país e no Distrito Federal, com uso de análise fatorial, construíram o indicador com base em cinco variáveis - número de museus, número de teatros ou salas, número de centros culturais, número de cinemas, número de ginásios e outros poliesportivos – disponibilizadas pela base MUNIC. As estimações mostraram que uma maior oferta de equipamentos exerce influência negativa sobre os gastos, o que pode estar relacionado a melhor gestão pública cultural e, consequentemente, maior disponibilidade de lugares para visitação e eventos culturais gratuitos. Por sua vez, Luckewe; Padilha e Wanderley (2014), sob o argumento de que a oferta de bens culturais não tem sido suficiente para reduzir as desigualdades de consumo, apresentam um Índice de Demanda Cultural para comparar nove capitais brasileiras e avaliar as atividades organizadas pelo poder público. Verificaram posições melhores para Porto Alegre e Distrito Federal em diversos segmentos, tal como cinema, fotografia e internet, evidenciando também as desigualdades regionais. Particularmente sobre o mercado de trabalho em regiões metropolitanas, destacam-se os trabalhos de Machado, Rabelo e Moreira (2014), que avaliaram a influência de determinadas “(...) o setor cultural não é a cultura, o consumo não é a cultura, embora ambos se constituam em partes importantes dos dinamismos culturais mensuráveis nas nossas bases de dados mais importantes e consolidadas”. (SILVA, 2010, p. 37).

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características sobre a probabilidade de ocupação no mercado cultural – dados do Finanças do Brasil (FINBRA/Tesouro Nacional) e Pesquisa Mensal de Emprego (PME-IBGE) - e Diniz (2008), acerca dos principais determinantes dos rendimentos dos trabalhadores - dados do Censo Demográfico de 200022. Em complemento, Ferreira Neto, Freguglia e Fajardo (2012) investigaram os diferencias de salários no setor cultural brasileiro a partir de dados da PNAD. Mais recentemente, os esforços dos pesquisadores têm consistido em agrupar as cidades, no intuito de classificá-las conforme tipologias específicas ou conforme seus graus de desenvolvimento cultural. Machado (SD), em estudo sobre cidades criativas, traz informações acerca do desenvolvimento cultural dos municípios brasileiros, a partir de informações análogas as utilizadas por Ferreira Neto e Perobeli (2013). Agrupou-se cidades em cinco categorias: mista, não criativa, pouco criativa, algo criativa e criativa, sendo que o aspecto que mais diferenciou as cidades foi o gasto per capita com cultura. A maioria dos municípios enquadrados no cluster criativo estão no Sul e Sudeste, enquanto a maioria dos não criativos localizam-se no Nordeste e Norte. A autora ainda traz dados sobre as 10 principais RM brasileiras referentes ao mercado de trabalho – proporção ocupada na classe criativa, grau de informalidade e rendimento médio da classe criativa e outras ocupações – e gastos privados com consumo dos 25% mais ricos – recorte para avaliar barreiras ao consumo não monetárias. Em consonância com outros estudos, verificou-se que cidades com maior proporção de famílias que não realizam gastos culturais também apresentam maior proporção de chefes com menor grau de escolaridade, ao mesmo tempo em que a participação relativa dos domicílios chefiados por mulheres nos gastos positivos é maior. No quesito de políticas urbanas criativas, aponta os baixos esforços da gestão pública para transformar cidades brasileiras em criativas, a exemplo do que foi feito em Londres, Barcelona, Medellín, São Francisco, Nova York, Bilbao e Glasgow. Contudo, destaca as ações nas cidades de médio porte, tais como Tiradentes (MG), Brumadinho (MG), Parati (RJ) e Guaramiranga (CE), em contradição as ações mais comuns, focadas na revitalização de áreas dentro das cidades. Na mesma direção, Machado et. al. (2013) apresenta uma tipologia da relação entre amenidades urbanas e potenciais clusters criativos. As variáveis são compostas de informações sobre a população, tais como nível educacional, estado civil, condições da residência e outras (Censo Demográfico/IBGE); sobre o desenvolvimento cultural (MUNIC) e gastos municipais (FINBRA) de 5570 cidades brasileiras. Conciliando duas técnicas de análise multivariada – análise de cluster e análise discriminante – novamente, os resultados confirmam que os clusters com maiores potenciais, apesar de dispersos, estão, em sua maioria, localizados nas regiões Sul e Sudeste. Concluem que A autora ainda classificou as localidades de acordo com seu “ambiente cultural”, através de uma análise de agrupamentos (clusters) com base na Pesquisa Básica de Informações Municipais do IBGE.

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in terms of amenities, there is still a lot to be accomplished in order to achieve reasonable conditions for good quality of life in the municipalities, particularly for the ones in the North and Northeast regions of Brazil. Por fim, têm-se escassas pesquisas empíricas acerca da relação entre desenvolvimento econômico e cultural das cidades no Brasil. Especificamente mencionando as hipóteses de Florida, tem-se os estudos de Golgher (2008) e Cavalcanti e Silveira Neto (2014). O primeiro discute a relação entre a distribuição de trabalhadores qualificados e trabalhadores na economia criativa com dados municipais e análise de cluster. O autor agrupa os municípios conforme índices de qualificação, tecnologia e entretenimento em oito categorias. Confirmam-se as disparidades regionais, visto que as capitais e os municípios das regiões Sul e Sudeste apresentam os valores mais elevados para diversos indicadores, com destaque para São Caetano do Sul (SP), Niterói (RJ) e Florianópolis (SC). Cavalcanti e Silveira Neto (2014, p. 17-18) construíram indicadores para criatividade e nível educacional (capital humano) e, através de painéis espaciais para três anos (Censos 1991, 2000 e 2010), auferiram o impacto dessas variáveis no dinamismo das 293 maiores cidades brasileiras. Concluíram que crescimento do emprego tem associações mais significativas com as medidas de capital humano em comparação às medidas da classe criativa e, sugerem, portanto, que “is better for policy makers to support the accumulation of higher education per se, than to focus on policies that aim at attracting professionals in a specific field such as the creative class”, contradizendo a hipótese de Florida (2002, 2003). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na área de Economia Urbana, procurou-se demonstrar visões acerca do setor cultural vinculadas ao crescimento e/ou desenvolvimento econômico local ou regional, sobretudo com base em Glaeser e Florida. Como visto, tais autores colocam as políticas culturais com objetivos externos ao setor cultural, sendo que a defesa das políticas de promoção de amenidades tem sido fortemente criticada. Destacam-se Stopper e Scott, que apontam que tais ações podem contribuir para o aumento do hiato entre as classes sociais, enquanto Andy Pratt enfatiza o problema da gentrificação. Os debates que vinculam cultura e urbanismo direcionam-se, principalmente, a estudos de casos do impacto das políticas de promoção de cidades criativas e de revitalização de áreas degradadas. Porém, cabe enfatizar que a importância da cultura para além do seu âmbito estético e/ou econômico, sobretudo o entendimento do seu papel para o pleno desenvolvimento de capacidades e expressões que ele faculta aos diferentes grupos, também tem consistido no âmbito das justificativas para a existência de políticas culturais. Essa visão legitima o direito a cultura,

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não apenas constitucional, mas também a luz da importância da cultura como fator de distinção social e como facilitadora de acesso à cidade e a cidadania. Estudos recentes mostram que a maioria das cidades brasileiras apresentam baixo grau de desenvolvimento cultural, agravadas pelas fortes disparidades regionais, alta segregação urbana e desigualdade de renda. Apesar da escassez de trabalhos empíricos sobre o tema, recentemente, o Ministério de Cultura tem incorporado em seus debates23 a articulação entre política cultural e urbana. Inclusive, o atual Ministro Juca Mendes reconhece tal lacuna, já que “A essa altura, parece óbvia e até mesmo tardia a correlação entre a agenda do Ministério da Cultura e a agenda do direito à cidade, ou entre a política cultural e a política urbana”24. Em geral, as discussões trazem evidências de que as políticas culturais têm privilegiado as classes de maior poder aquisitivo, tanto na forma de subsídios para as manifestações culturais tradicionais, quanto em relação às verbas destinadas para construção dos equipamentos, com a maioria instalada nas áreas urbanas de maior renda. Como agravante, as trajetórias de urbanização das cidades, fortemente marcadas pela segregação, têm contribuído para perda da função da cidade como meio de interação social. Então, tem-se que o ponto de vista, compartilhado por acadêmicos e por articuladores de políticas públicas, é que as ações culturais não têm efeito se não forem articuladas com outras áreas da gestão pública, tais como educação, segurança e planejamento urbano.

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A exemplo do Seminário” Cidade e Cultura: a construção de outro imaginário urbano”, realizado em outubro de 2015 e disponibilizado integralmente na plataforma YouTube, através do link 24 “As cidades e a cultura: uma reflexão a partir do Movimento Ocupe Estelita”, publicado na Revista Carta Capital, em 05/08/2015 e disponível no link 23

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BAIRRO DO RECIFE: DO COMPLEXO TURÍSTICO-CULTURAL AO CLUSTER DE NEGÓCIOS CRIATIVOS Carla Lyra1 RESUMO: Este artigo aborda a trajetória das políticas culturais e urbanas para compreender as transformações no bairro do Recife (área do Porto) com a construção de novos equipamentos culturais que estão conectadas a outras áreas da cidade como o Cais José Estelita (área da antiga Estação Ferroviária). Neste cenário, o Plano do Complexo Cultural elaborado em 2003 foi identificado como instrumento de planejamento de uma rede cultural que articularia a construção da paisagem urbana recifense. Identificamos mudanças de paradigmas com relação às políticas culturais o surgimento de clusters de negócios criativos tendo como marco a nova gestão de Eduardo Campos (2007 – 2014). PALAVRAS-CHAVE: política cultural, tecnologia, cluster de negócios criativos, Porto Digital, equipamentos culturais.

1. INTRODUÇÃO A memória das reconfigurações dos usos do patrimônio no bairro foram analisadas a partir da década de noventa tendo como marco o surgimento do movimento Manguebeat2. A Teoria Ator-Rede foi uma ferramenta metodológica utilizada para desvendar a inter-relação entre o Movimento Manguebeat, a criação do Porto Digital e as políticas de regeneração urbana e cultura através de uma abordagem sobre as interconexões de quadros de memória dos diferentes atores que participaram desses processos. Um estudo de caso sobre o bairro do Recife e territórios em conexão como o Cais José Estelita trazendo à tona questões como economia criativa, cooperação público-privada, modelos de cidade-mercadoria e especulação imobiliária. A memória das reconfigurações dos usos do patrimônio no bairro foram analisadas a partir da década de noventa tendo como marco o surgimento do movimento Manguebeat3. A Doutora em Memória Social – UNIRIO. E-mail: [email protected] Emergindo da “periferia da periferia”, da lama, o Manguebit (como foi chamado pelos grupos que o constituíam), ou mangue beat (como ficou conhecido por meio da mídia nacional), vai transformar a cidade do Recife (PRYSTHON, 2005). 3 Emergindo da “periferia da periferia”, da lama, o Manguebit (como foi chamado pelos grupos que o constituíam), ou mangue beat (como ficou conhecido por meio da mídia nacional), vai transformar a cidade do Recife (PRYSTHON, 2005). 1 2

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Teoria Ator-Rede foi uma ferramenta metodológica utilizada para desvendar a inter-relação entre o Movimento Manguebeat, a criação do Porto Digital e as políticas de regeneração urbana e cultura através de uma abordagem sobre as interconexões de quadros de memória dos diferentes atores que participaram desses processos. Um estudo de caso sobre o bairro do Recife e territórios em conexão como o Cais José Estelita trazendo à tona questões como economia criativa, cooperação público-privada, modelos de cidade-mercadoria e especulação imobiliária. 2. COMPLEXO TURÍSTICO-CULTURAL E EQUIPAMENTOS CULTURAIS Ribeira do Mar dos Arrecifes dos Navios4. Cinco séculos nos separam das viagens ultramarítimas. O Plano para o Complexo Turístico-Cultural Recife Olinda - “No Território do Passado - a contrução do Futuro” elaborado a partir de 2003 consistiu no desafio de representar cenários no espaço e no tempo de um mundo globalizado para atração de turistas para Recife (PREFEITURA DO RECIFE, 2007). O plano estratégico tinha como objetivo geral oferecer propostas e instrumentos para promover a integração do planejamento e gestão territorial com a gestão das atividades turístico-culturais na região, que compreende os núcleos históricos de Recife e Olinda e seus eixos de conexão. No relatório do Plano, são discutidos fundamentos básicos para o reconhecimento da identidade da região e reflexões sobre a questão da pluralidade cultural e marcos consagrados na defesa do patrimônio material e imaterial5. O Complexo Cultural é definido como “território que sintetiza a expressão da cultura local e que pode tornar esta identidade como vetor estratégico para seu desenvolvimento”. A classificação de territórios culturais foi realizada tendo como fundamento o agrupamento de bens culturais de natureza material e bens culturais de caráter imaterial. Em 2003, a equipe responsável pela elaboração do Plano do Complexo Turístico Recife - Olinda realizou o levantamento dos equipamentos culturais do Bairro do Recife e das circunvizinhanças. De acordo com o relatório, o principal referencial tomado para a classificação do “equipamento cultural”6 foi levar em consideração a atividade nele exercida, buscando também “identificar de forma mais abrangente suas relações com a expressão das manifestações artísticas e dos valores culturais, assim como também o significado que uma edificação ou espaço determinado assume em termos da representação da memória coletiva”. O diagnóstico do Complexo Turístico Cultural Recife-Olinda identificou o Porto Digital como ator do processo de transformação do centro do Recife em polo de desenvolvimento Menção de Duarte Coelho (1537) ao vilarejo portuário de colonização portuguesa que surgiu em função do comércio de importação e exportação na capitania hereditária de Pernambuco. 5 Este plano foi elaborado durante a gestão do PT na esfera municipal (João Paulo) e federal (Governo Lula). 6 O relatório define “equipamentos culturais” como espaços ou edificações que consolidariam a principal feição formal da cultura local expressa no território compostas por expressões de significativo valor religioso, histórico, arquitetônico (2003; p.41). 4

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caracterizado pela relação de parceria público-privado. Desta forma, o Governo de Pernambuco celebrou um Contrato de Gestão com o Núcleo de Gestão do Porto Digital7, com o objetivo de construir a cooperação técnica para apoiar, implementar e acompanhar o desenvolvimento de estudos de viabilidade do Projeto de Requalificação Urbanística, Expansão Imobiliária e Atração de Investidores para a zona já referenciada. O projeto do Complexo foi bastante discutido, entretanto, as notícias sobre ele na mídia cessaram em 2008, ao mesmo tempo em que acontecia o leilão do terreno e o processo de aprovação do Projeto Novo Recife para o Cais José Estelita8. 3. O PORTO DIGITAL E A REGENERAÇÃO DO BAIRRO DO RECIFE No ano 2000, o Governo do Estado de Pernambuco lançou o projeto Porto Digital Empreendimentos e Ambiente Tecnológico. O Bairro do Recife foi escolhido para este projeto por apresentar uma disponibilidade de espaços ociosos e custo relativamente baixo para empresas, localização central na malha urbana, capacidade de impulsionar a revitalização do bairro histórico e resgatar o caráter funcional e simbólico do local; e, por apresentar uma grande oferta de equipamentos e manifestações culturais exigidas pelos novos grupos de investidores (GIRÃO, 2005). No ano 2000, o Governo do Estado de Pernambuco lançou o projeto Porto Digital Empreendimentos e Ambiente Tecnológico. O Bairro do Recife foi escolhido para este projeto por apresentar uma disponibilidade de espaços ociosos e custo relativamente baixo para empresas, localização central na malha urbana, capacidade de impulsionar a revitalização do bairro histórico e resgatar o caráter funcional e simbólico do local; e, por apresentar uma grande oferta de equipamentos e manifestações culturais exigidas pelos novos grupos de investidores (GIRÃO, 2005). Historicamente, a iniciativa privada teve pouca participação na conservação dos centros históricos na América Latina. A partir dos anos 1990 - ponto de mutação das políticas de regeneração - esse quadro mudou, pois o setor passou a ser parceiro fundamental no financiamento dos projetos de regeneração de áreas patrimoniais. Os sistemas de financiamento dos projetos de regeneração dependem dos esquemas de gestão, especialmente da composição dos organismos decisórios que controlam a aplicação dos recursos, isto é, da composição e do papel dos atores produtivos privados, especialmente os do mercado imobiliário (ZANCHETI, 2011). O Porto Digital é definido como um parque tecnológico e sistema local de inovação e tem como função garantir a propagação de novos produtos para exportação dispondo de duas incubadoras: a C.A.I.S. do Porto e a incubadora do Portomídia. A incubadora C.A.I.S. do Porto (Centro DECRETO Nº 23.212, DE 20 DE ABRIL DE 2001 - Qualifica a Associação Núcleo de Gestão do Porto Digital como Organização Social - OS. 8 Sobre o processo de ocupação do Cais José Estelita ver: LYRA, Carla. #OcupeEstelita: a construção do imaginário da resistência. In: Latinidade. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 23-32, jul./dez. 2014. 7

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de Apoio de Integração e Suporte a Novos Empreendimentos de TIC) tem como principal objetivo dar suporte a startups de TIC voltadas para o desenvolvimento de soluções para problemas da economia pernambucana e que se apresentem, também, em outros contextos regionais, nacionais e internacionais, de modo a garantir condições de crescimento e escalabilidade do negócio9. O cluster tecnológico como instrumento de regeneração urbana surge como uma alternativa ao desenvolvimento das metrópoles contemporâneas que tiveram parte de seus territórios desqualificados neste processo de 30 anos de reestruturação produtiva, desindustrialização e reindustrialização. Em dez anos, o Porto Digital se transformou em um cluster10 com 103 organizações entre empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), serviços especializados e órgãos de fomento, empregando cerca de 6,5 mil pessoas e faturando cerca de R$1 bilhão (faturamento estimado em 2010)11. Este cluster que opera no território do Bairro do Recife é um dos principais polos de tecnologia do Brasil impulsionando o setor de tecnologia de Pernambuco, que representava apenas 0,8% do PIB em 2000 e passou para 4,8% em 2008 (BERBEL, 2008). O fenômeno das transformações urbanas e sua relação com a globalização foi analisado por Castells (1999). O autor analisou a crise financeira internacional no início dos anos 90 e demonstrou a vulnerabilidade das cidades em relação aos fluxos globais em transformação. Para isto, elaborou conceitos para explicar a relação entre espaço e práticas sociais tais como: fluxos/ espaço de fluxos, fluxos de rede/infraestrutura tecnológica, rede de comunicação/ferrovias. Assim sendo, para analisar a regeneração ocorrida no bairro do Recife Antigo é necessário compreender a integração global dos mercados financeiros, as redes interativas de computadores e o papel do Estado na inovação tecnológica, as novas formas históricas de interação, controle e transformação social no contexto da década de noventa com os processos de desregulamentação, privatização, desmantelamento do contrato social entre capital e trabalho. Como coloca o autor, os principais processos de geração de conhecimentos, produtividade econômica, poder político/militar e a comunicação via mídia estão transformados pelo paradigma informacional e conectados a redes globais de riqueza, poder e símbolos. Neste contexto, David Harvey (2005) analisa o relacionamento entre o Estado e o funcionamento do modo capitalista de produção, assim como, as conexões entre a formação da ideologia dominante, a definição do “interesse comum ilusório” na forma do Estado e os interesses específicos reais da (s) classe(s) dirigente(s): Disponível em: . Clusters são concentrações geográficas de empresas e instituições interconectadas por uma determinada área de interesse. Os clusters incluem fornecedores de serviços especializados, tais como componentes, máquinas e infra-estrutura e alcançariam canais e consumidores e, de forma lateral, produtores de bens complementares. Além disso, os clusters também incluem, muitas vezes, instituições governamentais, de pesquisa e universidades. Exemplos mais conhecidos: Vale do Silício e a indústria cinematográfica de Hollywood (Porter,1998 APUD BERBEL, 2008). 11 Dados coletados na página do Porto Digital. Disponível em:< www.portodigital.org>. 9

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Esse tipo de governança urbana se orienta principalmente para a criação de padrões locais de investimentos, não apenas em infra-estruturas físicas, como transportes e comunicações, instalações portuárias, saneamento básico, fornecimento de água, mas também em infra-estruturas sociais de educação, ciência e tecnologia, controle social, cultura e qualidade de vida. O propósito é gerar sinergia suficiente no processo de urbanização, para que se criem e se obtenham rendas monopolistas tanto pelos interesses privados como pelos poderes estatais”. (HARVEY, 2005; p.232). É a partir deste quadro que podem ser compreendidas as políticas elaboradas para a criação de clusters de negócios criativos no bairro do Recife e as políticas de Economia Criativa. Este desenho de políticas seria o resultado de inovações culturais, políticas, de produção e consumo de base urbana. Numa perspectiva crítica, de acordo com Harvey (2005), existiria uma conexão vital subterrânea entre a ascensão do empreendedorismo urbano e a inclinação pós-moderna para o projeto de fragmentos urbanos, no lugar de um planejamento urbano abrangente, a exemplo de Houston, Dallas, Denver e o Vale do Silício nos Estados Unidos. 4. EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA: CIDADES E ECONOMIA CRIATIVA (2008) As transformações no bairro do Recife estão também relacionadas às políticas de Economia Criativa no segundo ciclo da gestão Eduardo Campos (PSB) entre 2007 e 2014. A cidade do Recife iniciou um debate sobre Cidades Criativas e Economia Criativa a partir da criação da Secretaria de Economia Criativa do MINC12 em 2008. Em função de sua importância crescente, esta nova economia criativa despertaria interesse de governos através de estudos e políticas para fomentar o setor. De acordo com Vaz (2004), é principalmente através da cultura que as cidades poderão se individualizar, acentuando suas identidades e marcando seu lugar no panorama mundial. A proliferação de imagens, eventos, festivais, ícones arquitetônicos, espaços públicos renovados seriam a matéria-prima do marketing urbano. Com a cidade pós-industrial, são difundidas novas formas de intervenção através dos planos estratégicos e dos projetos urbanos focados na produção de serviços, informações, símbolos, valores, estética, conhecimento e tecnologia a exemplo do Plano do Complexo Turístico Cultural Recife Olinda e da implementação do Porto Digital. O processo de regeneração urbana do bairro também utiliza a bricolagem e, ao longo do tempo, assimila processos europeus de revitalização. Na década de 1990, a reabilitação urbana de base cultural havia se tornado regra na Europa legitimada pela abordagem de cidade criativa (MILES, 2012). As transformações urbanas nas cidades criativas estão pautadas por referências elaboradas pelos planejadores das cidades europeias - cenários, sujeitos, discursos e práticas Informações coletadas a partir de entrevista e do página do Ministério da Cultura. Disponível em: < http://www. cultura.gov.br/secretaria-da-economia-criativa-sec>. 12

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numa nova configuração de memórias e experiências. Para Miles (2012), a cidade criativa é uma cidade socialmente fragmentada e na qual se valoriza a cultura entendida como as artes, em detrimento da cultura enquanto articulação de valores partilhados no cotidiano. Um dos exemplos europeus que inspirou a elaboração de políticas culturais e urbanísticas em Recife nos últimas décadas foi Barcelona. A Prefeitura de Barcelona promoveu um programa de revitalização econômica, social e urbanística na cidade - especialmente em seu Distrito 2213 - para os Jogos Olímpicos de 1992. O Modelo Barcelona consistiu não apenas em um projeto urbano, mas principalmente em uma operação imobiliária composta de uma ideia de cidade acoplada a uma programação econômica e financeira, cujo sucesso estaria condicionado a gestão de uma sociedade com forma jurídica autônoma (PONTUAL, 2007). Essa transformação em Barcelona foi um processo longo e contínuo que durou mais de vinte anos. A partir de 2001, a prefeitura passou a desenvolver ações de planejamento e gestão urbanística, infraestrutura avançada, edificação e inserção de projetos corporativos e de clusters, baseada no conceito de cidade inteligente e compacta14. As mudanças promovidas foram orientadas a fim de criar uma região com infraestrutura de ponta, que combinasse espaços públicos e privados, com áreas verdes coletivas para, desta forma, atrair indústrias, instituições de ensino e pesquisa e serviços de apoio, gerando sinergias e estimulando a criação de uma sociedade intensiva em conhecimento. Pardo (2010) descreve marcas, memória e aprendizados para reinventar Barcelona e seu processo de abertura para o mar com intervenções profundas nos mais de quatro quilômetros de praias públicas, conectadas por passeios e dispondo de serviços básicos. A canalização e a gestão das águas pluviais foi finalizada garantindo a limpeza e a salubridade da areia das praias e das águas, bem como eliminando todas as construções industriais. O legado dos jogos de 92 foi a imagem cultural de Barcelona com alto valor econômico, ingrediente fundamental para a retroalimentação dos processos de mudança e fator fundamental da coesão social do projeto coletivo da cidade. Entretanto, algumas medidas da política cultural no planejamento dos equipamentos culturais indicam que a estratégia implementada enfrenta grandes contradições e limitações com relação à participação da comunidade artística e da comunidade local. O modelo Barcelona também foi analisado por Manuel Delgado (2007) a partir de uma perspectiva antropológica revelando a criação de cidades-commodities ou cidades-negócio produzidas através de dinâmicas globalizadoras de internacionalização de um modelo de intervenção urbana aliada aos interesses de grandes corporações multinacionais. As cidades seriam convertidas em produto de consumo através de estratégias de marketing promovido pelo capital Ver Plano Municipal de Cultura da cidade do Recife elaborado em 2009. Ver El proyecto @22Barcelona. Disponível em: http://www.redbcm.com.br/arquivos/cidadescriativas/barcelona.pdf. Acesso em 28 abr. 2015 e o sítio web – Barcelona 22 disponível em: . 13 14

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financeiro e imobiliário, assim como, pela indústria do turismo e do entretenimento. Este modelo possuiria, desta forma, um caráter intervencionista, tecnocrático e manipulações da noção de diversidade cultural como slogan publicitário, a invenção de “lugares de memória” e “políticas monumentalizadoras”. O modelo de cidade-negócio elabora o seu conceito de memória partindo da escolha de acontecimentos históricos e imagens produzindo uma memória coletiva oficial e institucionalizada que passaria a orientar o uso prático e simbólico do espaço urbano. No caso do Recife, o modelo do Projeto Novo Recife - com a construção de doze torres no Cais José Estelita - iniciou a destruição dos galpões de açúcar, assim como, para erguer o Cais do Sertão é derrubado o Armazém 10 apagando a arquitetura da memória portuária. 5. PORTO DIGITAL E A ECONOMIA CRIATIVA EM PERNAMBUCO As expressões “economia criativa” e “indústrias criativas” são relativamente recentes e constituem produtos da “terceira revolução industrial” relacionados diretamente ao paradigma de produção da sociedade contemporânea baseada na era pós-industrial, pós-fordista, do conhecimento, da informação e do aprendizado (MIGUÉZ, 2007). No Reino Unido, o conceito foi utilizado para contextualizar o programa de indústrias criativas elaborado como resposta a um quadro socioeconômico pós-industrial global no programa de reposicionamento mundial da imagem do país - Creative Britain ou Cool Britain. No Brasil, o termo surgiria em 2004 com o encontro promovido pela UNCTAD e sistematizado no documento “Consenso de São Paulo”. A Economia Criativa, por sua vez, abrangeria, além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e nas conexões que se estabeleceriam entre eles. Como consequência, desencadearia mudanças sociais, organizacionais, políticas, educacionais e econômicas (REIS, 2010). A crescente importância da cadeia da economia criativa nas últimas décadas motivou o aumento do interesse do Brasil pela área. O Plano Brasil Criativo (BRASIL, 2011) define quatro forças que impulsionam o desenvolvimento: a organização flexível da produção, a difusão das inovações e do conhecimento, a mudança e adaptação das instituições e o desenvolvimento urbano do território resultado de uma dinâmica econômica local. Este plano apresenta um escopo dos setores criativos15 em concordância com os parâmetros da UNESCO16 onde o setor do patrimônio imaterial é considerado tradicional, por ser transmitido por gerações, e vivo, por ser transformado, recriado e ampliado pelas comunidades e sociedades em suas interações e práticas sociais, culturais, com o meio ambiente e com a sua própria história. Os recursos culturais urbanos incluem, não apenas o patrimônio histórico, industrial e artístico, as paisagens e os Os setores criativos são aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de um produto, bem ou serviço, cuja dimensão simbólica é determinante do seu valor, resultando em produção de riqueza cultural, econômica e social. 16 Disponível em: < http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/>. 15

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marcos urbanos, mas também, o patrimônio imaterial - tradições, festivais, rituais, gastronomia, lazer entre outros. De acordo com o relatório de atividades do Porto Digital, existe no Recife um enorme potencial nos setores ligados à economia criativa. “Tais atividades, suportadas por uma base sólida de tecnologia da informação, possibilita o lançamento do Recife e de Pernambuco como exportadores de serviços ligados à economia criativa de classe mundial, em especial nas áreas de design, jogos e cine-animação” (PORTO DIGITAL, 2013). O Programa Pernambuco Criativo/Governo do Estado de Pernambuco que faz parte do Planejamento 2012 - 2015 está alinhado com o Plano de Economia Criativa do Governo Federal e foi definido como um “programa de articulação, fomento e estímulo ao desenvolvimento das cadeias produtivas criativas, envolvendo um plano de ações para o horizonte de 04 anos em 07 eixos de atuação”. As Metas Estratégicas da Nova Economia são: consolidar o desenvolvimento, gerar emprego e renda, promover a Economia do Conhecimento e a Inovação, aumentar e qualificar a infraestrutura para o desenvolvimento. O Planejamento 2012 - 2015 apresentou também uma cronologia da execução da Política de Economia Criativa cujo debate despontou com força em 2008. Um dos setores contemplados foi a cadeia do audiovisual que, a partir de 2009, foi fortalecida pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura/PE)17. Em 2011, foi criado o GT de Economia Criativa18 como parte do Programa Polo Metropolitano do Governo Estadual, que tinha como objetivo construir uma nova experiência de uso e sustentabilidade de equipamentos públicos e incluía outros centros culturais como a Fábrica Tacaruna e Centro de Referência da Moda. Foram pensados também polos para Olinda e para o interior de Pernambuco: Goiana, Caruaru, Garanhuns, Arcoverde, Salgueiro e Petrolina. 6. DO MOVIMENTO MANGUEBEAT AO CLUSTER DE NEGÓCIOS CRIATIVOS (2013) Em 2013, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado contratou a Fundação Gilberto Freyre para realização de um estudo estratégico para implantação de um potencial cluster metropolitano de negócios criativos entre as duas cidades, que teve como objetivo analisar estratégias capazes de fomentar ações entre o Bairro do Recife e o Sítio Histórico de Olinda (FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE, 2013). O estudo da Fundação Gilberto Freyre contextualiza a tradição de criatividade e inovação que se estende do porto do Bairro do Recife à colina histórica de Olinda – na perspectiva da ciência, tecnologia e arte – demarcando três períodos: Disponível em: . O Núcleo Gestor foi formado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, AD/Diper, Secretaria Estadual de Cultura, FUNDARPE, Secretaria de Tecnologia e Porto Digital. 17 18

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1) o período holandês e a retomada portuguesa de 1630 até 1750; 2) segunda metade do século XIX até os anos 1960; 3) retomada cultural e tecnológica a partir dos anos 1990 com o movimento Manguebeat e a constituição do polo de tecnologia da informação do bairro do Recife onde o movimento Manguebeat é apontado como marco referencial da cultura e das artes e a implantação de um polo de tecnologia e inovação no Bairro do Recife como marco tecnológico. O documento define cluster no mundo da indústria como “uma concentração de empresas que se comunicam por possuírem características semelhantes e coabitarem no mesmo local. Elas colaboram entre si e, assim, se tornam mais eficientes”. A estratégia de ressignificação do território Recife/Olinda pelos negócios criativos se apoia na ênfase em negócios transmídia e na articulação sinérgica de 5 hubs19 em implantação ou a serem implantados/adaptados: Portomídia, Polo da Moda20, Museu Luiz Gonzaga – Cais do Sertão no bairro do Recife, Fábrica Tacaruna em Peixinhos, Museu do Futuro Imaginário em Olinda. Na ausência de uma articulação e continuidade de projetos como o Plano do Complexo Cultural, surgem políticas de negócios centradas em territórios específicos, a exemplo dos clusters de negócios criativos e novas controvérsias relacionadas a sua arquitetura institucional e política. Um análise dessas controvérsias pode ser vista em Bayardo (2013) que enfoca a noção de indústrias criativas e sua relação com as políticas culturais a partir do caso da cidade de Buenos, descrevendo o contexto da instalação de uma dinâmica setorial que omite os antecedentes em políticas culturais para legitimar políticas públicas de ordem econômica e social. O autor argumenta que as indústrias criativas aparentam envolver políticas culturais, porém diluem os contornos emanados de seu fundamento nos direitos culturais e na realização da cidadania. As indústrias criativas muitas vezes fazem desaparecer as políticas culturais sob políticas econômicas e sociais orientadas a gerar investimentos, renda, comércio externo, emprego e empreendedorismo. Enquanto o Complexo Cultural pensava a descentralização das atividades culturais, estas novas políticas concentram suas ações na área portuária ocupada pelo Porto Digital que, por sua vez, possui conexões com as iniciativas pública e privada. O Cais do Sertão faz parte do Projeto Porto Novo21. O texto no site do Porto do Recife define os projetos Porto Novo (iniciativa pública) e Porto Novo Recife (iniciativa privada) como “grandes obras, nas quais o Porto do Recife, através do Governo de Pernambuco e da iniciativa privada, devolvem à cidade espaços antes dedicados à operação portuária”. Um grande projeto de requalificação e reurbanização de áreas nobres que vai dialogar e enriquecer as opções de lazer, cultura, comércio, arqueologia e turismo do Bairro do Recife”22. Um hub funciona como a peça central, que recebe os sinais transmitidos pelas estações e os retransmite para todas as demais. Todas as placas são ligadas ao hub ou switch, que serve como uma central, de onde os sinais de um micro são retransmitidos para os demais. 20 Disponível em: . 21 Disponível em: . 22 Disponível em: . 19

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O Cais do Sertão recebeu a visita de 83 instituições públicas (4.330 visitantes), 93 privadas (5.531 visitantes), tendo realizado atendimento especial de 519 pessoas e cerca de 11.050 visitas mediadas em 3 meses de acordo com o relatório de atividades do segundo semestre de 2014. Em 2015, o Porto Digital comemorou seus quinze anos de existência no bairro do Recife. Entre os seus resultados, a instalação de 260 empresas e a geração de oito mil empregos com um faturamento de um bilhão e trezentos mil reais por ano23 e a conquista pela segunda vez do título de melhor parque tecnológico do país. A revitalização do Porto do Recife e o Parque Tecnológico consolidam uma rede de parcerias público-privadas no território do bairro do Recife e criam novos fluxos turísticos e equipamentos culturais redirecionamdo o fluxo de investimentos na cidade. Novas conexões são estabelecidas e outros lugares de memória “esvaziados”. Bairros que possuem um patrimônio cultural tombado e espaços culturais como o Pátio de São Pedro, muitas vezes não são integrados a esses novos circuitos. Ao mesmo tempo, projetos e programas são redesenhados e as mudanças políticas “engavetam” processos e planejamentos participativos. Espaços culturais que tem a sua governança afetada por fatores externos e necessitam de novas parcerias para se (re) inventar. O Plano do Complexo Cultural previa a revitalização da Fábrica Tacaruna. O conjunto fabril foi tombado em 1994 como patrimônio histórico e artístico pelo Governo Estadual e, em 1996, foi declarado de utilidade pública para fins de desapropriação. Em 2000, o governo anunciou a criação do Centro Cultural Tacaruna que, se transformou em 2009 em uma nova promessa: o Centro de Cidadania Padre Henrique que teria três cinemas, três teatros, um museu virtual, um espaço para gravação e edição de música, cinema e vídeo em formato digital, uma escola integral e um centro de cidadania. A Fábrica acabou cedida para o Centro de Pesquisa, Desenvolvimento, Inovação e Engenharia Automotiva da Fiat Chrysler em 201524. A notícia de que a Fábrica Tacaruna seria utilizada para outros fins gerou uma polêmica na cidade25 e repercurtiu nas redes sociais onde foi criado o grupo “A Fábrica é Nossa”26. Mais uma vez o Porto Digital se destaca no processo e articulação de novos setores da economia envolvendo o desenvolvimento de softwares e tecnologia e, enquanto o Parque tecnológico se fortalece e expande o seu território no bairro de Recife, Santo Antônio e Santo Amaro, as obras e equipamentos culturais previstos para os Núcleos do Complexo Cultural Recife/Olinda foram caracterizadas por descontinuidades e controvérsias: Território Recife (Casa da Cultura), Território Tacaruna (Fábrica Tacaruna) e o Cais José Estelita. Uma cartografia de projetos, proDados do vídeo institucional em comemoração aos 15 anos do Porto Digital e do relatório de atividades do Cais do Sertão, 2014. 24 Disponível em: . 25 Disponível em: . 26 Disponível em: . 23

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gramas e legislações que são modificadas por fluxos e pela dinâmica das atividades econômicas e “flutuações” políticas. Naufrágio ou nau frágil? Equipamentos culturais como âncoras de cultura que absorvem investimentos sem continuidade das suas funções e objetivos originais nos últimos vinte anos e sem garantia de sustentabilidade – palimpsestos da memória da governança no Brasil e sua arquitetura político-cultural. Equipamentos culturais são fechados e a população (re) ocupa espaços a exemplo do #Ocupe Estelita, do Ocuparque e a Fábrica Tacaruna é Nossa reivindicando o direito à cultura, à memória e à cidade.

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O PAPEL REGULATÓRIO DO ESTADO NA ECONOMIA DA CULTURA. Carlos Alberto Cerqueira dos Santos1

RESUMO: O artigo visa analisar o papel regulatório estatal na economia cultural a partir de uma leitura do conceito de regulação com uma abordagem a respeito dos respectivos instrumentos de intervenção, reservando especial atenção à ação dos municípios. PALAVRAS-CHAVE: Regulação, economia, cultura, intervenção estatal.

1. INTRODUÇÃO. COLOCAÇÃO DO TEMA Qualquer tentativa de traçar um papel do Estado com relação a cultura de um modo geral – a regulação econômica para fins deste estudo – passa pelo seu reconhecimento como uma preocupação estatal, e a consequente institucionalização. 1.1 Cultura como preocupação estatal A colocação da questão da influência das políticas culturais no desenvolvimento do Estado, seja no viés humano, econômico ou político, encontrou oportunidade em diversos debates setoriais na Europa e América, dentre eles o promovido na Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MONDIACULT, México, 1982) em que se consignou alguns princípios que passariam a balizar a instrumentalização da atuação estatal nas últimas décadas (SICSUR, 2012). São eles: a identidade cultural, a importância da promoção e valorização da diversidade; a dimensão cultural do desenvolvimento, a valorização dos fatores culturais para um desenvolvimento equilibrado; cultura e democracia, descentralização dos espaços e aproximação a toda a população; patrimônio cultural, proteção das obras materiais e imateriais refletidoras da criatividade de um povo; criação e educação artística, facilitação e fomento da criação nacional com estimulo a consciência sobre a importância da arte e da criação intelectual; e a relação entre cultura, educação, ciência e comunicação, elaboração de políticas complementares e harmônicas (UNESCO-CMPPC, 1982). Bacharel em Direito e Mestrando em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, e-mail: [email protected].

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Delimitados os princípios de atuação que foram ampliados e desenvolvidos de acordo com as experiências dos diversos países envolvidos – tome-se, com relação ao Brasil, o exemplo mais recente de planificação na Lei 12.343 de 2010 (Plano Nacional de Cultura) proposto pelo Ministério da Cultura –, necessário se faz demarcar o alcance das competências dos órgãos públicos no trato da cultura tanto como importante vetor de desenvolvimento social quanto econômico por meio da profissionalização e crescimento da denominada “indústria cultural”2. A cultura recebe investimentos públicos desde recursos humanos à gestão e proteção do patrimônio, passando pela manutenção e disponibilização de equipamentos culturais, organização e apoio a eventos e manifestações populares, aos incentivos e patrocínios a projetos dos mais variados direcionamentos, abarcando os três níveis de governo e sendo, inclusive, de difícil mensuração. Este desafio foi acolhido pela Fundação Getúlio Vargas que em 2015 publicou uma pesquisa denominada “A cultura na economia brasileira” que se popôs a fazer uma análise socioeconômica do setor cultural brasileiro em suas três dimensões, o orçamento público, o mercado de trabalho e o consumo das famílias (FGV, 2015). O levantamento dos dados e sua interpretação técnica tomou como base o orçamento anual aprovado, o total empenhado e a evolução dos gastos públicos no setor apreciado. Importante se faz destacar que, inclusive para fins das ideias a serem desenvolvidas neste trabalho, o Plano Nacional de Cultura – MinC (Lei 12.343 de 2010) estabelece a compreensão da cultura a partir de três prismas: o simbólico, consubstanciado no patrimônio cultural em suas diversas nuances; o cidadão, ligado a ideia de cultura como direito social constitucional; e o econômico, racionado as potencialidades da indústria criativa, seja pela geração de empregos, seja pela geração de renda pelo empreendedorismo e o desenvolvimento da cadeia produtiva. A análise feita pela FGV, considerando o orçamento de 2013, expõe que o valor aprovado nas três esferas de governo chegou a patamar de aproximadamente US$ 4,8 bilhões, sendo a maior parcela dos estados (US$ 1.9 bi), seguido pelos municípios (US$ 1.8 bi), demostrando a importante participação destes que costumam empenhar quase a totalidade dos valores aprovados anualmente. Além disso, da aplicação dos recursos pela União estimados em US$ 1.1 bi, 6% foram destinados a transferências para estados e municípios (FGV, 2015). Destaca-se também o crescimento da participação no orçamento brasileiro ao longo dos anos 2000. No intervalo entre os anos de 2003 a 2013, houve crescimento de cerca de 16,1% ao ano, o dobro do crescimento anual do orçamento total (8,02%), acumula-se 346% com relação a cultura frente ao 87% referente ao orçamento total.

Cf. as diretrizes “QUALIFICAR A GESTÃO CULTURAL” e “ESTRUTURAR E REGULAR A ECONOMIA DA CULTURA” traçadas pelo plano nacional, anexo da Lei 12.343 de 2010. 2

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Assim, o referido estudo encontra relevância ao demonstrar a importância econômica do setor cultural e sua potencial função para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, com soluções criativas e sustentáveis. Dá-se relevo ao papel do Estado no incentivo, controle e direcionamento de uma prospera atividade produtiva por meio da denominada intervenção estatal no domínio econômico cujos contornos serão a seguir analisados, delimitando objeto deste artigo. 1.2 Intervenção estatal na economia da cultura A forma e intensidade da intervenção estatal possuiu característica diversas de acordo com o momento histórico da evolução do Estado, assumindo nuances características no modelo Liberal, Social e Democrático de Direito (ou pós-social) em que se consagrou a figura de “Estado Regulador”. A dedicação do texto constitucional de 1988 à ordem econômica e o desenvolvimento em todas as esferas federativas pode ser indicada como um grande motor para a evolução acadêmica do tratamento pelos juristas da função interventiva do Estado na economia. Trata-se da mais delicada função do Estado na ordem econômica estabelecida pela Constituição da República, pois cuida da ingerência do governo na liberdade de empresa e na economia de mercado, “mediante imposições administrativas destinadas a corrigir distorções que atentem contra a soberania nacional, a função social da propriedade, a livre concorrência e a liberdade de escolha do consumidor” (MOREIRA NETO, 2014, p 660), assim como em face da justiça social que reflete as finalidades de redução das desigualdades regionais e sociais e a valorização do trabalho. O artigo 174 da carta constitucional estabelece as bases do que se tem como um conceito amplo de regulação que exclui, considerando a classificação de intervenção direta e indireta, a atuação do “Estado empresário”, compreendendo o condicionamento por lei ou ato normativo, disciplina e direcionamento da atividade privada.3 Preceitua-se que o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica exercerá as funções de fiscalização incentivo e planejamento. Daí se pode identificar o fomento público, a planificação econômica e a regulação propriamente dita que constitui um sentido restrito do termo 4. A função incentivadora se distancia da regulação, conforme o conceito que será tratado mais adiante, por meio da ausência de autoexecutoriedade e a bilateralidade da intervenção. Em doutrina se sustenta a conceituação do termo regulação em três âmbitos de sentido, amplo, intermediário e restrito, sendo o proposto neste trabalho como intermediário. Prefere-se a abordagem utilizada, tendo como parâmetro a classificação de intervenção direta e indireta, pois, caso contrário, o conceito de regulação se confundiria com o de intervenção no domínio econômico (Por todos, OLIVEIRA, 2013). 4 O professor Alexandre Aragão exclui, em obra referência sobre o tema, do conceito de regulação a atuação como fomentador, rejeita a classificação adotada por meio de uma concepção mais restrita do termo, enquadrando ambas atividades como espécies do gênero “intervenção do Estado na economia”. Note-se, porém, que não há diferenças práticas no tratamento da matéria pela adoção de uma ou outra classificação, apenas útil para fins de sistematização metodológica (ARAGÃO, 2002, p. 23) 3

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No âmbito deste trabalho, não se analisará a atuação do Estado no campo do fomento público, o Estado-incentivador, pois tema para outra oportunidade; em vez disso, serão tratados os aspectos da regulação propriamente dita que compreende as atividades de condicionamento e disciplina em geral, mais especificamente a sua aplicação na economia da cultura. Para tanto adota-se o conceito proposto por Alexandre dos Santos Aragão para quem a regulação é “o conjunto de medidas legislativas, administrativas, convencionais, materiais ou econômicas, abstratas ou concretas, pelas quais o Estado, de maneira restritiva da atividade empresarial ou meramente indutiva, determina, controla, ou influência o comportamento dos agentes econômicos, evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da constituição e os orientando em direções socialmente desejáveis” (ARAGÃO, 2012, p. 292). Este conceito traz elementos interessantes para o delineamento da atuação regulatória estatal na economia, não sendo diferente para a área cultural. Assim, delimitado o tema que se pretende avaliar, cumpre desenvolvê-lo. 2. LEITURA DA ATUAÇÃO ESTATAL NA CULTURA A PARTIR DO CONCEITO DE REGULAÇÃO Sobre a economia da cultura Sérgio Sá Leitão expôs que, pelo ponto de vista da economia, identifica-se “como o conjunto de atividades econômicas relacionadas a cultura”, um campo da economia; por outro lado, pelo ponto de vista cultural, “trata-se do conjunto de atividades culturais com impacto econômico”, isto é, que venha a gerar valor econômico, além do cultural, uma dimensão da cultura (LEITÃO, 2007, p. 197), evidenciando a existência do valor social e econômico no tratamento do tema, um duplo valor. Esta abordagem tende a demonstrar a necessidade de uma leitura da regulação no cenário em apreço com atenção a premissas metodológicas diferenciadas, embora não se pretenda escapar do conceito anteriormente proposto, uma vez que na exposição a ser desenvolvida serão examinados institutos e concepções intuitivas, assim como instrumentos pouco usuais em outros palcos regulatórios5. O papel de controle, indução e influência no comportamento dos agentes econômicos em homenagem à interesses sociais definidos no marco da constituição e orientando em direções socialmente desejáveis, assume maior relevo no trato da economia da cultura pelo referido duCumpre alertar que a indústria áudio visual, além do papel de destaque no meio cultural, possui um tratamento diferenciado com relação as demais manifestações, estando, inclusive, mais próxima do modelo regulatório habitual – assumindo relevo a atuação da agência reguladora ANCINE –, muito disso se deve a política institucional diferenciada de apoio que recebeu o referido setor ao longo da história de seu desenvolvimento no Brasil, além de sua planificação exclusiva e maior abertura para regulamentação. Diante disso, este estudo manter-se-á afastado da análise do setor audiovisual, embora muitas das ideias a serem desenvolvidas poderão ser a ele igualmente aplicáveis.

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plo valor. Embora a atividade ordenadora não dispense o caráter normativo, a este não se limita, ficando latente na abordagem regulatória da cultura o destaque recebido pelas demais funções, sobretudo as ligadas a concretização das ações constantes dos planos e as intervenções de caráter econômico-indutivas. Sobre o assunto sempre se apresenta a diferenciação entre a regulação e a regulamentação (GUERRA, 2004, p. 13-27). As competências típicas do regulador que podem se manifestar de forma parcial ou conjunta, presta-se, a um só tempo, a “assegurar as condições de exploração de dada atividade econômica e à consecução de objetivos públicos consentâneos com os princípios da ordem econômica” como na lição do professor Floriano de Azevedo Marques Neto para quem o Estado pode “exercer regulação sobre atividades consideradas serviço público ou não. Naquelas a regulação é imprescindível e prevalecente, nas outras há de ser menos intensa, mas nem por isso desnecessária” (MARQUES, 2004, p. 211-214). O papel regulador não depende da adjudicação de serviço público, tampouco da existência de relações de parceria com os agentes privados. Também não se cogita a imprescindibilidade da existência de agências reguladoras, o órgão responsável pode ser ou não dotado de personalidade jurídica, tendo como um de seus objetivos principais a tutela dos usuários da atividade regulada, no caso em exame, não só dos consumidores de cultura, mas também dos artistas, pois não se valoriza apenas o produto, mas também a manifestação geradora de patrimônio material e imaterial. Conforme se destacou, a atividade regulatória transcende o aspecto ordenatório, não excluindo outros tipos de relação, notoriamente na área cultural isso toma maior relevo, podendo se vislumbrar nas relações de meio como de parceiro ou utente, ou nas finalísticas como de fornecedor ou indutor de atividades socialmente interessantes. Isto exposto, cumpre aprofundar a analise destes instrumentos. 3. INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO REGULATÓRIA NA ECONOMIA CULTURAL A partir do conceito de regulação e do papel executado pelo Estado na área cultural é possível tratar da análise de instrumentos dos quais se poderá lançar mão na busca dos objetivos de indução, controle e direcionamento pelos meios econômico ou materiais, abstrata ou concretamente. Cumpre ressaltar que a enumeração aqui proposta não tem a pretensão de ser exaustiva, em vez disso, espera-se analisar o viés regulatório de instrumentos já utilizados pelo Estado na área cultural ou cuja tendência já se pode vislumbrar, não havendo prejuízo para o diagnóstico ou criação de outros mecanismos. Isto, pois, “a relação entre o Estado e a economia é dialética, dinâmica e mutável, sempre variando segundo as contingências políticas, ideológicas e econômicas”, revelando-se uma relação de mútua ingerência e limitação (ARAGÃO, 2002, p. 21).

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Objetiva-se dar uma ótica própria como parte de uma maior política pública para instrumentos que podem ser – ou já são – usualmente utilizados por gestores públicos na persecução das ações que cabem ao Estado no desenvolvimento da economia da cultura, tais como: (a) “formular e implementar políticas públicas de cultura tendo em vista a elevação do grau de acesso ao consumo, a defesa da diversidade cultural, a capacitação de técnicos e empreendedores, a formação de públicos, o estímulo à criação, à produção e à distribuição, a promoção de exportações e a valorização dos conteúdos nacionais; (b) produzir e apoiar a produção e disponibilização de levantamentos de dados, além de pesquisas e estudos sobre diversos aspectos relacionados ao tema, a fim de permiti uma melhor quantificação e também ajudar a qualificar o debate, a formulação e a avaliação das políticas públicas”, como forma de democratização e participação dos agentes e consumidores; (c) “regular as práticas econômicas tendo em vista o equilíbrio dos mercados e a mediação entre o interesse das empresas e o interesse público” (LEITÃO, 2007, p. 203). 3.1 Planejamento Econômico Em um primeiro momento é necessário falar sobre planejamento econômico mesmo tendo em vista a ressalva de que não se trata de um instrumento de regulação (entendida de forma restrita), pois constitui uma espécie do gênero intervenção no domínio econômico. A localização neste momento do trabalho se dá mais por razões metodológicas do que técnicas, tendo em vista a importância para a leitura dos instrumentos. Entretanto, esta estratégia tem lugar na medida em que “a constituição tem, no planejamento, o ponto chave para todos os demais instrumentos de intervenção, por via do qual, identificado o quadro existente (diagnóstico do mercado) é elaborado um prognóstico, prevendo as ações a serem desenvolvidas” (SOUTO, 2000, p. xi). É na planificação que se define as atividades, ações e mecanismos necessários ao atingimento dos objetivos do Estado. Segundo Sérgio de Andréa Ferreira o planejamento é “ um processo, a atividade de aplicação de um sistema racional de escolhas entre um conjunto de alternativas reais de investimentos e de outras possibilidades para o desenvolvimento, baseado na consideração dos custos e benefícios econômicos e sociais” (FERREIRA, 1980, p.19). Em outras palavras, o planejamento representa a escolha política de um curso de ações, dentre outras alternativas, para alcançar determinados objetivos e finalidades públicas, como um processo em que a “planificação é o resultado e o plano é o documento que o formaliza” (FERREIRA, 1980, p.19). A constituição de 1988 incorporou esta ideia de sistema, dando à planificação papel de destaque no Estado Regulador ao dispor no artigo 174 que “Como agente normativo e regulador

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da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Mais que isso: o constituinte ao mesmo tempo que reconhece a intervenção, baliza os limites pelo inequívoco reconhecimento do caráter facultativo do direcionamento para a iniciativa privada. A Lei Maior dispõe também, no parágrafo 1º do mesmo artigo, que “a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”. Nesse sentido, com relação ao tema deste estudo, há a recomendação do §3º do artigo 215, atualmente concretizado no Plano Nacional de Cultura (Lei 12.343 de 2010) e o Plano Plurianual (art. 165, §1º) que incorpora as diretrizes, objetivos e metas do investimento da Administração e baliza a elaboração dos programas nacionais, regionais e setoriais (§4º), sem prejuízo da concepção de orçamento-programa anual. De acordo com estas premissas, faz-se necessário visitar a Lei 12.343 de 2010 que instituiu o Plano Nacional de Cultura – PNC para a proposição dos instrumentos a serem tratados a partir do próximo tópico. Nesse sentido, é importante iluminar, em especial, o disposto nos incisos I, V e X do artigo 3º, segundo os quais compete ao poder público: “I - formular políticas públicas e programas que conduzam à efetivação dos objetivos, diretrizes e metas do Plano;  V - promover e estimular o acesso à produção e ao empreendimento cultural; a circulação e o intercâmbio de bens, serviços e conteúdos culturais; e o contato e a fruição do público com a arte e a cultura de forma universal; X - regular o mercado interno, estimulando os produtos culturais brasileiros com o objetivo de reduzir desigualdades sociais e regionais, profissionalizando os agentes culturais, formalizando o mercado e qualificando as relações de trabalho na cultura, consolidando e ampliando os níveis de emprego e renda, fortalecendo redes de colaboração, valorizando empreendimentos de economia solidária e controlando abusos de poder econômico;” (grifei). Estas competências refletem, sem detrimento das demais, as diretrizes estratégias e ações que cabem ao Estado no fortalecimento de sua função na institucionalização da cultura por meio de políticas públicas. No âmbito da análise dos instrumentos propostos serão aprofundados os conceitos. 3.2 Equipamentos públicos de cultura e criação de ambientes O PNC trata do equipamento culturais ao dispor sobre o acesso à cultura e delimita as duas principais facetas da intervenção regulatória, a qualidade do serviço posto ao consumidor da cultura – relacionado ao “acesso à arte, à cultura, à memória e ao conhecimento para o exercício pleno da cidadania e para a formação da subjetividade e dos valores sociais” – e a qualificação e

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desenvolvimento da produção cultural – “gerando suporte aos produtores das diversas manifestações criativas, alargando possibilidades de inovação e resultado, pressupondo novas conexões e cooperação institucional entre artistas, criadores, mestres produtores e gestores culturais. Note-se o lugar de destaque que ocupam os equipamentos culturais na criação de ambientes aptos a sediar o desenvolvimento da economia da cultura em seus diversos aspectos, com relevo para as ações e estratégias de formalização e fidelização de público, ampliação do acesso à fruição cultural para demandas específicas da sociedade (como inclusão e acessibilidade), expansão do consumo como estímulo a formação de mercado de bens e serviços culturais, manutenção e infraestrutura para garantir e incentivar padrões de qualidade e, dentre outras, a geração de informação e pesquisa no setor. No campo da rede de equipamentos culturais públicos, a atuação regulatória se dá: a) de forma ostensiva, pelo aspecto da normatização administrativa a que se sujeita o agente cogestor ou utilizador do espaço, por meio do qual se pode estabelecer padrões de contratação em conformidade com a planificação ou; b) discreta, pela geração de influência no mercado. 3.3 Controle de preços e democratização do consumo A democratização do consumo também se situa na esfera do acesso, da garantia a todos, independentemente da condição social, da fruição de cultura desde as mais populares as mais eruditas. Nesse cenário se coloca a discussão sobre a barreira representada pelo preço dos produtos culturais. Inegável que a regulação dos preços praticados na economia é um dos mais sensíveis no tratamento do tema, muito em função da tensão que pode gerar pela aproximação aos limites da intervenção do Estado, consubstanciados na isonomia, propriedade, ato jurídico perfeito, livre exercício da atividade econômica e o justo lucro. Não se advoga aqui a impropriedade do controle de preços, tanto que o tratamos como um instrumento de intervenção, porém cabe ressaltar a necessidade de se fazer com apoio ao devido processo legal e ao consensualismo administrativo, para que não se considere um preço como arbitrário ou elevado sem a devida análise casuística. No ambiente cultural o debate torna-se mais complicado em virtude do valor social além do econômico, pois não se exige que os preços sejam apenas justos, mas também, acessíveis a todos, incentivando a formação de público e a universalidade. No âmbito deste instrumento se colocam de forma direta as leis de meia entrada e gratuidades, em um ponto de vista ordenador, e outros atos administrativos de forma indireta, por meio dos equipamentos públicos, em um ponto de vista de influência econômica, seja pelo limite de valor nas bilheterias ou por outras políticas de acesso (meias e gratuidades).

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3.4 Licitações e desenvolvimento O PNC ao dispor sobre a estruturação e regulação da economia da cultura aponta para a construção de modelos sustentáveis, estimulando e formalizando a cadeia produtiva, ampliando o mercado de trabalho, o emprego e a geração de renda, criando e atualizando os mecanismos de atuação. Abordar a função regulatória da licitação consiste em identificar dentre as funções tradicionalmente reconhecidas pela doutrina como precípuas à ideia de licitar – os objetivos tipicamente apontados são a garantia da proposta mais vantajosa para a administração e o respeito à isonomia entre os participantes do certame – o uso do referido instrumento para atingir outros valores que não aqueles tradicionalmente perseguidos. Além disso, com atenção a redação atual dada ao artigo 3º da Lei 8.666/93, pela lei 12.349, que significou a inclusão pelo legislador da promoção do desenvolvimento nacional sustentável como objetivo, o uso da licitação como instrumento de regulação do mercado passou a ser parte da atividade interventiva da administração pública na economia. Na lição do Professor Marçal Justen Filho consiste em “aproveitar a oportunidade da contratação para fomentar o desenvolvimento nacional” (JUSTEN FILHO, 2011, p. 450). Neste sentido, a redação do “caput” do art. 3º da lei de Licitações que mencionou expressamente o desenvolvimento nacional, dando ampla guarida a tal interpretação, demonstrando a adesão a uma tendência verificada na legislação, como na dispensa de licitação para indução de determinadas atividades, a preferência de produtos nacionais e os requisitos de habilitação como forma de estimular a adimplência para com a seguridade social, dentre outros. É inegável a magnitude dos recursos gastos para que a administração pública compre bens e contrate serviços. Há um verdadeiro poder de compra, pois, sua necessidade pode ser utilizada como instrumento de influência na economia. Assim, o procedimento licitatório e o contrato buscam, além de obter o técnico e economicamente mais vantajoso e garantir a isonomia, promover outros objetivos constitucionalmente tutelados, especialmente relacionados à redução das desigualdades e ao desenvolvimento econômico e social (ARAGÃO, 2012, p. 325). Notadamente, para fins deste trabalho, na realidade da economia da cultura, a primeira noção corresponde ao poder de compra do poder público, por meio do qual se pode vislumbrar o impacto das contratações em orientar as práticas do mercado para direções socialmente desejáveis; a segunda corresponde ao desenvolvimento de modelos de negócio, introduzindo sustentabilidade e profissionalismo aos agentes. Na análise da licitação como reguladora de mercado é útil examinar os contratos de cogestão e de contratação artísticas que podem prever nos instrumentos convocatórios ou licitatórios elementos e ou modelos de negócio, com cláusulas de sustentabilidade e, até mesmo, requi-

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sitos técnicos ou fáticos que restrinjam a competitividade, desde que anterior e justificadamente tendam a atingir o objetivo almejado de forma proporcional a restrição dos direitos envolvidos. 3.5 Normatização, recomendação, orientação e capacitação de agentes culturais Também com relação à diretriz de institucionalização da cultura, coloca-se o instrumento estatal de regulação na função de cooperação entre os órgãos públicos e a iniciativa privada no sentido do desenvolvimento do setor. Consiste em um conjunto de atividade de ordenação, pesquisa, geração de dados para acompanhamento quantitativo e qualitativo, criação de estratégias de integração e difusão de espaços para dialogo e troca de aprendizado e experiência entre os gestores e agentes culturais. A ferramentas vão desde a instituição e atualização de normas regulatórias (marcos legais), passam por programas de capacitação e profissionalização de agentes, gestores e produtores culturais, apoio técnico a pequenas iniciativas locais e ao associativismo, ao estímulo para o estudo e formação de sistemas públicos de informação. 4. ATUAÇÃO EM ÂMBITO LOCAL: OS MUNICÍPIOS Notoriamente, os municípios dentro da estrutura federativa assumem papel de destaque na implementação de políticas públicas culturais levando-se em consideração institucionalização como estratégia de desenvolvimento social e econômico na ideia de duplo valor da cultura. Esta reflexão se coloca a partir da própria relação do Estado com a cultura que é, tradicionalmente para os antropólogos, de criador e criatura, sendo aquele fruto desta (MEIRA, 2007, p. 162-163). Assim, “se o Estado não é produtor de cultura nem instrumento para o seu consumo, que relação pode ele ter com ela? Pode concebê-la como um direito do cidadão, e, portanto, assegurar o direito de acesso”, o direito de fruição, o direito de criar, produzir e de participar das decisões sobre políticas culturais (CHAUÍ, 2006, p.162-163). Mais que isso: trata-se do papel de difusor e protetor das manifestações culturais dos mais variados matizes e assegurar a participação social como corolário do Estado Democrático de Direito. Soma-se a esta constatação, as características naturais de uma sociedade étnico e culturalmente diversificada como a brasileira e o dever de garantir o direito à diversidade cultural ou à interculturalidade, em um debate mais moderno. Nesse contexto os municípios estão mais próximos da realidade das manifestações desde as mais singelas às mais complexamente arraigadas no modo ser, viver e falar de seus cidadãos. Revela, dessa forma, maior capacidade institucional em realizar o papel declinado pela constituição de forma comum às três esferas da federação. Os instrumentos propostos neste trabalho, como se viu, podem ser identificados em práticas e políticas já implementadas, ainda que de forma incipiente, em diversos municípios,

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carecendo apenas de uma nova ótica para suas estruturas na sofisticação do seu tratamento e desenvolvimento, visando aos objetivos de, sem detrimento de outros: a) incentivar as manifestações culturais do município por meio da difusão e valorização das expressões artísticas e da cultura local; b) criar oportunidades de acesso à produção cultural brasileira em âmbito local como forma de ampliar os espaços de diálogo e interação entre as manifestações; c) propiciar à comunidade local o reconhecimento de sua identidade cultural por intermédio da preservação e cultivo à memória; proporcionar às comunidades locais o desenvolvimento socioeconômico, geração de renda e trabalho por meio da economia da cultura (indústria cultural). 5. CONCLUSÃO Ao longo do presente artigo buscou-se identificar a importância econômica do setor cultural e sua potencial função para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, com soluções criativas e sustentáveis, a partir do que se denominou duplo valor da economia cultural. Uma leitura a partir do conceito de regulação estatal foi proposto para iluminar a atuação estatal no setor, evidenciando as características e examinando instrumentos a serem utilizados para disciplina e incentivar a iniciativa econômica de acordo com planos de desenvolvimento. Não houve, portanto, a ousadia de querer discorrer sobre todas as técnicas de intervenção, tampouco sobre todos os instrumentos de possível utilização pelo Estado na regulação da economia da cultura, tema demasiadamente amplo, em vez disso almejou-se relacionar algumas técnicas – em parte já conhecidas – com o planejamento econômico do setor cultural, estabelecendo o liame com o reconhecimento de um papel regulador. Estabeleceu-se neste trabalho as bases que, embora singelas, expõem os elementos aptos a dar início à discussão sobre a atuação estatal nas três esferas de governo, por meio dos aspectos dos deveres e responsabilidades socioeconômicas, dedicando especial atenção aos municípios que – julga-se – exercem papel fundamental. Se tais ideias tiverem o condão de despertar a reflexão sobre as questões declinadas, terão atingido seu objetivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAGÃO, Alexandre dos Santos. Agências Reguladoras, (2002), Editora Forense, Rio de Janeiro. _________, Curso de Direito Administrativo. (2012). Editora Forense, Rio de Janeiro. CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural. (2006), Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo. CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS. Declaração do México. Disponível em: . Acesso em: 05/01/2016.

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FERREIRA, Sergio de Andréa. “Eficácia jurídica dos planos de desenvolvimento econômico”. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, nº 140, abr./jun. 1980 FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, Projetos (Ed.). A cultura na economia brasileira. Estudos e Pesquisas v. 23, 2015. Disponível em: < http://fgvprojetos.fgv.br/publicacao/cultura-na-economia-brasileira>, acesso em: 05/01/2016. GUERRA, Sérgio. “Normatização por entidades reguladoras independentes: uma contribuição para o desafio da tecnicidade”, in: Temas de Direito Regulatório/ Coord: GUERRA, Sérgio (2004). Freitas Bastos, Rio de Janeiro. GOVERNO DO CHILE, CNCA. Os Estados da Cultura. Estudo sobre a institucionalização cultural pública dos países membros do SICSUR. Disponível em: Acesso em: 05/01/2016. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso. 7ª Edição (2011). Editora Fórum, São Paulo. LEITÃO, Sérgio Sá. “Economia da cultura e desenvolvimento”, in: Políticas públicas de cultura do estado do Rio de Janeiro: 2006/ Org: CAMPOS, Cleise; LEMOS, Guilherme; CALABRE, Lia (2007). Rede Sirius UERJ, Rio de Janeiro. MARQUES, Floriano de Azevedo. “Pensando o controle da atividade de regulação estatal”, in: Temas de Direito Regulatório/ Coord: GUERRA, Sérgio (2004). Freitas Bastos, Rio de Janeiro. MEIRA, Márcio. “Institucionalidade pública da gestão cultural no Brasil”. in: Políticas públicas de cultura do estado do Rio de Janeiro: 2006/ Org: CAMPOS, Cleise; LEMOS, Guilherme; CALABRE, Lia (2007). Rede Sirius UERJ, Rio de Janeiro. MENDES, Conrado Hübner. “Reforma do Estado e Agências Reguladoras”, in: Direito Administrativo Econômico/ Coord: SUNDFELD, Carlos Ari, (2000), Editora Malheiros, São Paulo. SOUTO, Marcos Juruena Villela. Aspectos Jurídicos do Planejamento Econômico. 2ª Edição (2000). Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro. OLIVEIRA, Rafael Rezende. Curso, (2013). Editora Método, São Paulo. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso. (2014). Editora Forense, Rio de Janeiro.

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REDE WEB DE MUSEUS: ACESSO AOS ACERVOS MUSEOLÓGICOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Carlos Henrique Marcondes1 Elenora Nobre Machado2 Éricka Madeira3 RESUMO: Apresenta a Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro enquanto política que objetiva ampliar o acesso aos acervos os museus do estado através da disponibilização de fichas de peças museológica de diferentes acervos e suas imagens no portal Web da Rede. Discute as potencialidades da Web para os museus como meio de alcançarem um público mais amplo e necessidade de considerá-la nas políticas museológicas. Discorre sobre as políticas da Superintendência de Museus. Mecanismos de cooperação e fomento da Rede são descritos e a sua plataforma tecnológica – um sistema de base de dados compartilhada, voltado para a disponibilização na Web de acervos e suas imagens, e para sua gestão, é apresentada. Futuros desenvolvimentos da Rede, como organização e a criação de novas funcionalidades para o sistema, como exposições e aulas virtuais, são apresentados. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, museus na Web, base de dados museológica, gestão de acervos, documentação museológica

1. INTRODUÇÃO A Web é cada vez mais onipresente nas atividades humanas, sejam elas educacionais, econômicas, políticas, sociais ou culturais. Naturalmente que uma plataforma tão abrangente como Web não deixaria de influenciar os museus e a maneira como desenvolvem suas atividades. Estudo desenvolvido pelo Instituto Nacional de Museus e Serviços de Biblioteca dos EUA em 2008 sobre a utilização de museus e a Internet (http://interconnectionsreport.org/), concluiu que “the amount of use of the Internet is positively correlated with the number of in-person visits to museums.” Assim, pode-se esperar que a Web, por si só, represente um incremento na visitação e divulgação dos museus. No entanto a Web tem um potencial muito maior que esse para as instituições de preservação da memória e cultura e para os museus em especial. Profº Drº Depto. de Ciência da Informação, UFF, [email protected]. Coordenadora de Museologia, Superintendência de Museus/SEC-RJ, [email protected]. 3 Gerente de Projetos Museológicos, Superintendência de Museus/SEC-RJ, [email protected]. 1 2

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A Web e os formatos digitais de conteúdos tornam os museus e seus acervos acessíveis a um público muito mais amplo do que seria possível num museu presencial. Ela vem se tornando um instrumento sem precedentes para a disseminação desses acervos, a um público cada vez muito mais amplo, a qualquer hora, de qualquer lugar, através de dispositivos como computadores convencionais até “smartphones” (HSI, 2002). A Web pode contribuir assim para democratizar o acesso a estes conteúdos, antes só disponíveis ao público presencial. A possibilidade de disseminarem seus acervos através da Web amplia os papeis e justificativas sociais, educacionais e culturais dos museus. Hoje se torna cada vez mais necessário que os museus levem em conta a Web e suas possibilidades em suas políticas. Em consonância a essa nova realidade, ao potencial que a Web representa nos dias atuais, às vantagens que um trabalho em rede pode oferecer no compartilhamento, disseminação e disponibilização de informações e conhecimento, além da necessidade da realização de um controle eficaz dos acervos dos museus, a Secretaria de Estado de Cultura (SEC) e a Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ) desenvolveram o Projeto Rede Web de Museus. A Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro tem como objetivo ampliar o acesso aos acervos dos museus do estado, tornando-se instrumento de uma política pública que visa a cooperação, integração participação, compartilhamento e preservação da memória dos museus do estado, através de seus acervos, disponibilizando-os a partir do portal Web da Rede (://www. museusdoestado.rj.gov.br/). Neste sítio usuários podem consultar os acervos de diferentes museus do estado através de palavras-chave digitadas num formulário de busca. São recuperadas fichas descritivas das peças que correspondam às palavras-chave, acompanhadas de uma ou mais imagens das peças. O SISGAM – Sistema Web de Gestão de Acervos Museológicos -, plataforma tecnológica da Rede, é um ambiente colaborativo que permite aos museus vinculados compartilharem uma base de dados comum, disponibilizarem e gerenciarem seus acervos utilizando padrões e metodologias comuns. Fichas individuais de cada peça catalogada podem ser associadas à suas imagens digitais. Uma vez catalogadas as pecas e suas imagens podem ser consultadas a partir do portal da Rede na Web. Este trabalho é o relato de uma experiência; tem como objetivo apresentar a Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro enquanto política pública para ampliar o acesso aos acervos de seus museus através da sua disponibilização na Web e viabilizar a cooperação entre museus do estado. O trabalho está organizado da seguinte maneira: na seção 2 é discutida a importância da Web e a necessidade destes considerarem a Web na formulação de suas políticas; na seção 3 é apresentada a Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro, sua proposta, seus objetivos e seus instrumentos; na seção 4 são apresentadas as funcionalidades da plataforma Web da rede; a

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seção 5 apresenta a Superintendência de Museus a Rede Web e suas políticas culturais vigentes na área de museus, nas quais se insere a Rede; por fim por fim, na seção 6, são apresentadas as considerações finais e os desenvolvimentos futuros da Rede. 2. MUSEUS NA WEB Como o estudo mencionado anteriormente confirma, a Web aumenta a visitação aos museus. Ferramentas como Facebook, Instagram e Twitter permitem hoje aos museus terem milhares de “seguidores” e divulgarem assim suas atividades e muitos museus, de fato, já as veem utilizando. Contudo, a possibilidade de alcançar um público muito mais amplo que o público presencial é a maior potencialidade trazida pela Web. Esta potencialidade vem sendo explorada, a exemplo do que já existia para outras instituições de memória e cultura como as bibliotecas, por exemplo, para criação de catálogos “online” dos acervos e também, exposições virtuais. Catálogos museológicos na Web são ferramentas de busca que contêm registros de peças da coleção do museu. Podem contemplar a coleção inteira ou estarem segmentados por subcoleções ou exposições específicas. Além disso, na maioria das vezes, entradas dos catálogos são acompanhadas de imagens das peças, permitindo a experiência com coleções museológicas a um público muito mais amplo. Variantes dos catálogos “online” são as exposições virtuais, sobre temas ou coleções específicas. No momento em que este trabalho estava sendo escrito uma pesquisa aleatória com o tema “virtual museum” na ferramenta de busca Google permitiu identificar: “Online Tours”, British Museum, (://www.britishmuseum.org/explore/online_tours.aspx); “Online Tours”, Louvre, Paris, (http://www.louvre.fr/en/visites-en-ligne); Virtual Tour do National Museum of Natural History, EUA, (http://www.mnh.si.edu/panoramas/); exposição do escultor americano Alexander Calder, na National Gallery of Art, Washington, EUA, (http://www.nga.gov/exhibitions/calder/realsp/room1-enter.htm), as “Online Exibits” do Museum of the History of Science (http://www.mhs.ox.ac.uk/exhibits/). A Web também trouxe a possibilidade e o novo conceito de Web museus, aqueles que não têm uma existência física e só realizam suas atividades através da Web. Estes museus reúnem coleções de imagens de objetos específicos, como o The Virtual Diego Rivera Web Museum (http://www.diegorivera.com/), o Museu da Pessoa (http://www.museudapessoa.net/pt/home), ou, o que é bastante inovador, fichas e imagens de objetos que pertençam a diferentes museus num único sítio Web; exemplos são o Web Museum (http://www.ibiblio.org/wm/) e a Web Gallery of Arts (http://www.wga.hu/). A Web também amplia a capacidade dos museus se comunicarem entre si e articularem suas atividades. Várias redes de museus articulam-se através da Web, com finalidades diversas, como projetos educacionais conjuntos (The Museumnetwork, http://www.museumnetworkuk.

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org/elearning/), busca de oportunidades de fundos e financiamento (NEMO – Network of Museums Organization, http://www.ne-mo.org/), cooperação técnica (Spectrum, http://www.collectionstrust.org.uk/spectrum), cooperação internacional (Ibermuseus – Rede de Museus da Ibero-america, http://www.ibermuseus.org). Um projeto que se assemelha à proposta da Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro é o catálogo coletivo Artefacts Canada, de acervos de museus canadenses, mantido pelo CHIN - The Canadian Heritage Information Network –, http://www.pro.rcip-chin.gc.ca/artefacts/index-eng.jsp. Juntamente com novas possibilidades a Web traz também novos desafios para os museus, ampliando as perspectivas profissionais e necessidades de capacitação para enfrentar estes desafios. Tópicos como arquitetura de informação de sítios Web de museus, digitalização e registro fotográfico de acervos, curadoria e preservação dos novos acervos digitais, são demandas cada vez mais urgentes a serem incluídas na agenda de formação e capacitação dos profissionais de museus. Desafiante também é a possibilidade trazida pela Web e pelas tecnologias da assim chamada Web semântica, de integrar acervos de instituições arquivísticas, bibliotecas e museus (RINEHART, 2003), (MARCONDES, 2015). As potencialidades que a Web traz para os museus vêm sendo discutidas sistematicamente no evento anual “Museums and the Web” (http://mw2014.museumsandtheweb.com/). O evento ocorre sistematicamente desde 1997 e este ano ocorreu sua 18ª. edição. 3. A REDE WEB DE MUSEUS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ENQUANTO UMA POLÍTICA PÚBLICA Como foi visto o advento de novas tecnologias de informação transformaram a forma de comunicação do museu com seu público. Depositários de privilegiados aspectos da herança cultural de uma sociedade, museus são levados a procurar os novos caminhos oferecidos pelas tecnologias Web para se fazer representar ou realizar seus programas em um ambiente virtual, integrando-os com um público novo, acostumado à velocidade quase instantânea e à realidade virtual, através de redes e sistemas integrados. Ao lado das novas funcionalidades de integração com o público o museu continuou a realizar o tratamento técnico de seu acervo, documentando-o e tratando adequadamente as suas informações, atividades fundamentais para o gerenciamento e segurança desses acervos, facilitando a sua disponibilização, acesso e disseminação. Em consonância a essa nova realidade e atentos a necessidade de um controle eficaz de seus acervos, em 2008, a Superintendência de Museus da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro (SEC) e a Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ), desenvolveram o projeto REDE DE MUSEUS.

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Com o patrocínio da Oi, através da Lei de Incentivo à Cultura, e apoio do PRODERJ4, o projeto REDE DE MUSEUS teve como principais propostas: interligar através da Web os acervos das unidades museológicas vinculadas a FUNARJ/SEC, acessíveis através de um navegador comum, migrar para um novo sistema de gerenciamento de acervos museológicos e atualizar a base de dados de suas unidades disponibilizando-a através de sua página institucional. Essas propostas visaram ampliar, utilizando as facilidades da Web, o potencial cultural, artístico e educativo dos acervos dos museus, tornando os seus conteúdos informacionais acessíveis a um público mais amplo. Este objetivo esta alinhado com a diretriz do Plano Nacional de Cultura, de “Universalizar o acesso dos brasileiros à fruição e à produção cultura” (PLANO NACIONAL SETORIAL DE MUSEUS, 2010).Além disso, pretendeu otimizar o controle e a segurança das coleções desses museus. O SISGAM, plataforma de gestão e registro de acervos, desenvolvida neste projeto, foi o responsável pela interligação das unidades museológicas vinculadas àSEC, através de um sistema comum, utilizando normas e padrões que permitiram um melhor gerenciamento de seus acervos. Dado aos bons resultados obtidos com a utilização do SISGAM e considerando o potencial que a Web representa nos dias atuais, às vantagens que um trabalho em rede pode oferecer no compartilhamento, disseminação e disponibilização de informações e conhecimento, além da necessidade da realização de um controle eficaz dos acervos dos museus,em novembro de 2013, a SEC, recebeu novamente recursos da OI, através da Lei de Incentivo à Cultura, para dar prosseguimento ao Projeto Rede de Museus, agora denominado Rede Web de Museus. O novo projeto visa estabelecer uma política estadual integrada e colaborativa para os museus do Estado do Rio de Janeiro facilitando o compartilhamento e gerenciamento de informações relativas aos acervos destas instituições, através de sua adesão à rede e a utilização do Sistema de Gerenciamento de Acervos Museológicos (SISGAM) pelas instituições que fazem parte do Sistema Estadual de Museus (SIM/RJ). Em 21 de maio de 2014 foi criada oficialmente, a Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro, através da Portaria no. 513 da Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ). A Rede tem como principal objetivo oferecer uma infraestrutura gerencial, tecnológica e de padronização que permita dinamizar a gestão cooperativa sobre os acervos dos museus do Estado, tendo em vista a ampliação do acesso, a oferta dos serviços integrados e a presença na Web. Para isso, dispõe de um conjunto de instrumentos normativos, metodológicos, tecnológicos e gerenciais e do portal unificado de consulta pública para disponibilizar aos seus colaboradores.

PRODERJ, Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio de Janeiro, http://www.proderj.rj.gov.br/.

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A política e o fomento implícitos na proposta da Rede partem do pressuposto que, com seus próprios recursos, a presença de um museu na Web envolve infraestrutura tecnológica, tecnologia, expertise e custos bastante significativos. Ao fomentar estes recursos e torná-los disponíveis aos museus do estado, a Rede se constitui num instrumento político para fomentar a ampliação do acesso a estes acervos, a oferta de serviços integrados e a presença na Web desses acervos. Iniciada em 2008 a partir dos museus pertencentes à SEC/RJ, hoje, fazem parte da rede 24 instituições museológicas com cerca de 55.000 itens de acervo cadastrados e suas respectivas imagens. Instituições como o Museu das Telecomunicações Oi Futuro, museu privado, o Museu Histórico da Cidade (MHC), pertencente à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o Museu Casa Scliar, de Cabo Frio, o Museu Internacional de Arte Naif (MIAN) e Centro de Documentação da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro são alguns dos museus que estão presentes na Rede. Em vias de aderir à Rede estão os museus vinculados à Universidade Federal do Rio de Janeiro, como o Museu D. João VI, Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Estudos e Pesquisas/Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e o Museu do Bonde. Importante ressaltar que na Rede estão presentes museus pertencentes às esferas municipais, estaduais e federais, todos localizados no Estado do Rio de Janeiro e cadastrados no Sistema Estadual de Museus. A adesão à Rede de Museus poderá ser feita de duas formas: colaborativa e plena. A adesão colaborativa destina-se às instituições que possuem um Sistema próprio de documentação, mas que passam a integrar de forma colaborativa a Rede Web de Museus. Os dados dos sistemas dessas instituições – um conjunto básico de campos de catalogação e suas imagens - são migrados para o SISGAM e passam a ser disponibilizados no portal da Rede. Membros colaborativos participam da Rede e agregam seus acervos ao portal, permitindo a pesquisa integrada nas coleções suas a partir da ferramenta de busca do portal, proporcionando assim novas opções de curadoria, de pesquisa e de geração de conhecimento. A adesão plena destina-se às instituições que não possuem sistema próprio de documentação e gerenciamento de acervo, que passam a integrar a Rede como usuárias do SISGAM. Isto significa utilizar não somente sua ferramenta de busca sobre a base de dados coletiva de acervos, mas também suas funções de acesso restrito, destinadas ao gerenciamento de acervos. A Rede se baseia em normas comuns de tratamento de acervos museológicos, cabendo a Superintendência de Museus orientar e auxiliar as instituições em suas demandas. Um conjunto de 28 campos, vários dos quais são repetitivos, compõe a ficha de descrição dos objetos museológicos no SISGAM. A identificação destes campos e respectivas regras de entrada de dados são

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descritas no Manual do usuário do SISGAM (2012). Além destes 28 campos, cada ficha pode incluir uma ou mais imagens de cada peça. 4. A PLATAFORMA TECNOLÓGICA DA REDE A plataforma tecnológica da Rede, o SISGAM, vem sendo utilizado nos museus vinculados à SEC com êxito, desde 2008. Através dela os museus realizam um controle eficaz do patrimônio museológico sob sua a guarda, que envolve desde a entrada do objeto no museu, sua pesquisa, conservação, circulação e segurança até a sua disponibilização na web. É um sistema que oferece dois conjuntos básicos de funcionalidades. Em primeiro lugar o sistema se constitui num mecanismo de busca sobre a base de dados de acervos museológicos onde estão armazenadas fichas de objetos, associadas a uma ou mais imagens das pecas correspondentes. Esta base de dados é separada por museu, permitindo assim que a base seja compartilhada por acervos de vários museus. Através de uma ferramenta de busca a base pode ser pesquisada por palavras-chave que correspondem ao conteúdo de todos os campos da ficha museológica, como tipo de objeto, título, autor, material, técnica, descrição, data, etc. Muitos dos campos têmseu conteúdo controlado, através de tabelas do sistema, como: tipos de objetos, autores, materiais, técnicas, etc. A interface Web de busca do SISGAM para os usuários pode ser vista na figura seguinte. Figura 1: Interface de busca do SISGAM

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Além de permitir uma busca transversal em todos os acervos dos museus da rede, o SISGAM também possui um conjunto de funcionalidades voltado para a gestão de acervos museológicos. Estas funcionalidades estão disponíveis somente para acesso restrito, isto é, aos usuários cadastrados no sistema. Através das funcionalidades de acesso restrito curadores, museólogos e documentalistas tem a sua disposição funções como registro das peças, manutenção das tabelas de padronização do sistema, registro das transações ocorridas em cada peça e emissão de relatórios diversos. A base de dados do SISGAM esta dividida em dois tipos de registros: registros de fichas de objetos e, vinculados a estes, registros de transações ocorridas numa determinada peça. O sistema prevê a possibilidade de registrar, para cada ficha museológica, as transações ocorridas no objeto. Estão previstos os seguintes tipos de transações: avaliação do estado de conservação, avaliação monetária, conservação/restauração, empréstimo e cessão, participação em exposições, baixa de acervo e histórico de publicações. As diversas transações ficam agregadas à ficha do objeto, permitindo ao gestor registrar e consultar todas as ocorrências relacionadas à peça ao longo de sua trajetória. As funções para gestão de acervos do SISGAM, de acesso restrito, podem ser vistas na seguinte figura. Figura 2: Funções para gestão de acervos do SISGAM

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Imagens digitais das peças e o registro sistemático de informações sobre as mesmas, além de viabilizarem a disponibilização dessas imagens através da Web, contribuem também para a preservação e segurança dos acervos. Hoje muitos museus interessados em participar da Rede, não têm ainda seus acervos, ou pelo menos seus “destaques”, digitalizados. No intuito de padronizar as catalogações das instituições colaborativas, a Rede adotou um conjunto de campos básicos para o registro de uma obra - Object ID (http://archives.icom.museum/objectid/ about.html), iniciativa do Instituto Getty, que permite identificar inequivocadamente uma peça, evitando o comércio ilegal de objetos de roubados. Outro instrumento chave usado para compatibilizar a descrição das peças dos diferentes museus da Rede é o Thesaurus de Acervos Museológicos, desenvolvido por Helena Dodd Ferrez e Maria Helena Bianchini (1987) As categorias do Thesaurus, ao serem empregadas na classificação/descrição das peças dos diferentes museus da Rede, têm um papel fundamental ao agregarem registros de peças de tipologias diferenciadas. Encontra-se em andamento projeto que visa a ampliação e atualização deste instrumento para atender esta diversidade de acervos que compõe a Rede. Oferecer informações padronizadas foi uma das principais iniciativas da Rede Web de Museus que, visando promover maior intercâmbio entre as suas bases de dados e facilitar a recuperação da informação de seus acervos, desenvolveu o Manual do Usuário do SISGAM (2012), para ser utilizado pelos técnicos dos museus que utilizam o sistema, para a pesquisa e descriçãofísica dos itens de suas coleções, proporcionando maior controle e segurança desses acervos. 5. A SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS E A REDE WEB DE MUSEUS Criada através do Decreto N° 41282/ 2008, a Superintendência de Museus, órgão da Secretaria Estadual de Cultura, tem como missão estabelecer e promover em museus e instituições afins, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, políticas públicas voltadas para a preservação do patrimônio e da memória, valorizando a diversidade cultural e orientando, em caráter técnico, ações de gestão, comunicação, pesquisa e educação. Pretende ser referência na formulação de diretrizes para museus e instituições afins, visando a salvaguarda do patrimônio material e imaterial no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Estão vinculados a SMU os seguintes museus: Museu de História e Artes do Estado do Rio de Janeiro (Museu do Ingá), Museu Antonio Parreiras, Casa de Oliveira Vianna, Casa da Marquesa de Santos/Museu da Moda Brasileira e Museu Carmen Miranda. Buscando atender às diversas demandas da área, não só para as unidades vinculadas, como para uma atuação efetiva em todo o Estado, a Superintendência de Museus desenvolve suas atividades com a seguinte Estrutura:

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Figura 3: Estrutura da Superintendência de Museus do estado do RJ

O planejamento da Superintendência de Museus estabeleceu cinco eixos de atuação, que traçam diretrizes, estratégias e ações para o desenvolvimento de programas e projetos e que são também, a base para a construção da Política Estadual de Museus: difusão de bens culturais, Inovação memória e Cidadania, Preservação do Patrimônio Cultural, Modernização da Gestão, Formação e Fortalecimento de Redes e Sistemas. Em 2008, foi criado o Sistema Estadual de Museus, que pelo decreto nº 42.306, publicado em 22/02/2010, mas com atuação desde o ano de 2009, surgiu com a finalidade de integrar uma ampla e diversificada rede de instituições de caráter museológico - públicas e privadas - para que, juntas, unissem esforços para o desenvolvimento de ações ligadas à valorização, preservação e ao gerenciamento do patrimônio cultural em nível regional. O processo de criação do SIM-RJ obedeceu às orientações do SBM – Sistema Brasileiro de Museus, pertencente à estrutura do Instituto Brasileiro de Museus, IBRAM -, e que tem por finalidade facilitar o diálogo entre museus e instituições afins, objetivando a gestão integrada e o desenvolvimento dos museus, acervos e processos museológicos brasileiros. Trabalhando de forma integrada com a esfera federal e municipal, a SMU/SEC tem as suas ações direcionadas a atender à sua missão e as normas estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Este instituiu, através da Resolução Normativa nº 1, de 31 de julho

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de 2014, que regulamenta os artigos 11 e 12 do Decreto nº 8.124/13, o Inventário Nacional dos Bens Culturais Musealizados (INBCM). O INBCM é um instrumento de inserção periódica de dados sobre os bens culturais musealizados que integram os acervos museológico, bibliográfico e arquivístico dos museus brasileiros, para fins de identificação, acautelamento e preservação, previstos na Política Nacional de Museus. Atentos àestas normativas, a Rede Web através do SISGAM, vem trabalhando no sentido de viabilizar a exportação de dados das instituições vinculadas à Rede, possuindo em seu elenco todos os campos compatíveis para alimentar o INBCM, sendo capaz de realizar a exportação de dados em formatos como XML, Excel e Dublin Core. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Rede Web de Museus do Estado do Rio de Janeiro esta em fase de implantação e institucionalização. Pretende-se que a Rede tenha mecanismos e fóruns próprios de gestão. Assim a Rede ampliará suas oportunidades de se desenvolver, de desenvolver projetos e de obter mais fomento para os museus do estado. Estão previstos futuros desenvolvimentos na plataforma SISGAM para facilitar o acesso aos acervos dos diferentes museus da Rede e potencializar seu uso educativo e cultural. Será oferecido aos usuários a opção de “navegação” pelas categorias do Thesaurus., a exemplo das estruturas de “navegação” por categorias como as disponíveis no sítio do Victoria and Albert Museum, (http://collections.vam.ac.uk), facilitando a recuperação de registros de peças museológicas disponíveis em diferentes instituições. Com isto usuários poderiam “navegar” por estas categorias, escolher uma categoria e recuperar fichas de peças correspondentes, disponíveis em acervos de diferentes museus. Às facilidades de recuperação de informações proporcionadas pela ferramenta de busca do portal da Rede planeja-se também agregar facilidades para a elaboração, por parte de curadores ou professores, de exposições, ou aulas “virtuais” com comentários ou textos agregados, enriquecendo o potencial educativo e potencializando as sinergias existentes entre os acervos dos diferentes museus da Rede. A Superintendência de Museus, através do Projeto Rede de Museus, pretende promover a troca de experiência, a cooperação técnica e o compartilhamento de informação e conhecimento entre as instituições do estado, tendo como perspectiva a atualização continuada das equipes e a adoção de normas, padrões e boas práticas de documentação. Também pretende promover promover ações educativas e culturais com base nos conteúdos das instituições participantes da Rede. O trabalho cooperativo em rede é uma experiência nova no Brasil. A Rede abre caminho para que os museus explorem todas as potencialidades e sinergias do trabalho cooperativo e tirem partido das oportunidades trazidas pelas tecnologias de informação.

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Fomentando a cooperação, a adoção de padrões, a plataforma tecnológica, a hospedagem da base de dados e a presença na Web, a SMU/RJ, através da Rede, vem contribuindo efetivamente para que museus do estado que, por seus próprios meios, levariam muito tempo e despenderiam recursos, possam gerenciar, disponibilizar e disseminar as suas informações, fazendo sua transição para o uso da Web de forma segura e suave.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 1, DE 31 DE JULHO DE 2014. DOU de 01/08/2014 (nº 146, Seção 1, pág. 19). BRASIL. MINISTÉRIO DA CULTURA. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 02, DE 29 DE AGOSTO DE 2014. DOU de 01/098/2014 (nº 167, Seção 1, pág. 14). ESTADO DO RIO DE JANEIRO. SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA. SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS. Texto sobre a Política Estadual de Museus do Estado do Rio de Janeiro. Fev. 2016. FERREZ, Helena Dodd; BIANCHINI, Maria Helena S.  THESAURUS para acervos museológicos. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. HSI, Sherry. The Electronic Guidebook: A study of user experiences using mobile web content in a museum setting. In:  Wireless and Mobile Technologies in Education, 2002. Proceedings. IEEE International Workshop on. IEEE, 2002. p. 48-54. MANUAL DO USUÁRIO E DE ENTRADA DE DADOS. Rede de Museus do Estado do Rio de Janeiro, Sistema de Gerenciamento de Acervos Museológicos (SISGAM), 2012. MARCONDES, Carlos Henrique. O papel dos modelos conceituais para interoperabilidade entre acervos de arquivos, bibliotecas e museus. Desafíos y oportunidades de las Ciencias de la Información y la Documentación en la era digital: Actas del VII Encuentro Ibérico EDICIC 2015 (Madrid, 16 y 17 de noviembre de 2015. Disponível em: . Acesso em 11 fev. 2016. PLANO NACIONAL SETORIAL DE MUSEUS - 2010/2020 (Brasília – DF: Ministério da Cultura, Instituto Brasileiro de Museus, 2010). RINEHART, Richard. MOAC - A Report on Integrating Museum and Archive Access in the Online Archive of California.DLib Magazine, v. 9, n. 1, 2003. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2010.

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ECONOMIA DA CULTURA COMO VETOR DE DESENVOLVIMENTO PARA O ESTADO DA BAHIA: ALGUMAS REFLEXÕES. Carmen Lúcia Castro Lima1 RESUMO: O presente artigo discute se o modelo de desenvolvimento do estado da Bahia, historicamente pautado nas atividades industriais e agrícolas, pode incorporar os segmentos culturais e criativos. A principal conclusão do artigo é que, para a consolidação da economia da cultura no estado da Bahia, são necessários fundamentalmente a sensibilização e o reconhecimento dos atores públicos e empresariais privados sobre a importância econômica e social dos setores produtores de bens simbólicos. PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Desenvolvimento, Economia Baiana

1. INTRODUÇÃO Desde o final do Século XX, estudiosos têm apontado tendência a mudanças expressivas na dinâmica de acumulação e de desenvolvimento das sociedades. A nova lógica, expressa na tese da centralidade do trabalho intelectual e criativo, impactaria, particularmente, na dimensão econômica da cultura nas sociedades atuais. Yúdice (2004) chama a atenção para a tendência atual de se utilizar “cultura como recurso”, visando à melhoria social, política e econômica das comunidades. Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) e economista da Agência de Fomento do Estado da Bahia (Desenbahia). [email protected].

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Saliento que embora assine como autora, este artigo é resultado de um trabalho coletivo, fruto da experiência de todos os membros da Diretoria de Economia da Cultura do estado da Bahia que atuou, durante o período de 2013 e 2015, na formulação de políticas públicas para esta área”. Os coautores do artigo são: • Daniel Carneiro: especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, coordenador técnico do Programa Bahia Criativa. [email protected] • Luiz Filipe Dunham: mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), técnico em nível superior da Diretoria de Economia da Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. [email protected] • Pierre Malbouisson: licenciado em História e graduando em Economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected] • Rita Clementina: gestora cultural e coordenadora do Projeto Mercado Salvador Criativo. rclementina@ gmail.com • Tais Viscardi: bacharel em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e assessora da direção do Museu de Arte da Bahia. [email protected]

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No século XXI, com a sociedade do conhecimento, exige-se um novo padrão de desenvolvimento para as economias emergentes. A questão que se apresenta é se estas, que têm seus modelos pautados nas atividades industriais e agrícolas, podem incorporar os segmentos culturais e criativos nas suas estratégias de desenvolvimento. Particularmente, será discutido, no presente trabalho, o caso do estado da Bahia. Além desta introdução, o artigo está estruturado em cinco partes. O debate sobre cultura e desenvolvimento será o tema da seção 2, enquanto a participação do segmento cultural na economia baiana será discutida na seção seguinte. Posteriormente, serão abordados os principais fatores favoráveis à exploração do potencial econômico da cultura na Bahia. Em seguida serão elencados os maiores entraves ao aproveitamento desse potencial. Na última parte deste artigo, serão feitas as considerações finais. 2. CULTURA E DESENVOLVIMENTO: DEBATE ATUAL As atividades econômicas culturais, assim, vêm apresentando um significativo potencial, principalmente como fonte de ocupação e renda e promoção de inclusão social. Além disso, as especificidades culturais enquanto fatores intangíveis de competitividade das empresas e das nações são motivos de interesse crescente (LIMA, 2009)2. A relação entre cultura e desenvolvimento é, certamente, um dos pontos centrais dos debates contemporâneos. O ambiente acadêmico tem assistido, nos anos mais recentes, ao crescimento do número de estudos e pesquisas dedicadas a esta temática. Também é crescente a publicação de documentos de organizações internacionais que articulam cultura e desenvolvimento. Na XI Reunião da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), realizada em junho de 2004, a comunidade internacional reconheceu que os segmentos com conteúdo simbólico geram externalidades positivas, ao tempo em que preservam e promovem o patrimônio e a diversidade culturais (UNCTAD, 2010). A aprovação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO, 2006), em 2005, veio reforçar substantivamente o protagonismo contemporâneo da esfera cultural. Esta assume como premissa básica a diversidade como patrimônio comum da humanidade e sugere a relação entre cultura e desenvolvimento. Neste sentido, a cultura deve ser o elemento-chave em todos os centros de decisão governamental, cortando, transversalmente, o conjunto das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, no Relatório das Nações Unidas sobre a Economia Criativa, intitulado Widening local development pathways, que as indústrias culturais e criativas impulsionam as economias e o desenvolvimento. O relatório, apresentado Neste artigo, considera-se segmento cultural tanto os campos tradicionais da arte e da indústria cultural como as atividades que geram bens com valor cultural significativo, a exemplo de moda, publicidade e design.

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na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), tem como objetivo contribuir para a formulação de nova agenda de desenvolvimento sustentável pós-2015, que reconheça o efeito multiplicador da cultura (UNESCO, 2013). A Unesco (2013) estima que o comércio mundial de bens e serviços criativos totalizou um recorde de US$ 624 bilhões em 2011, e mais do que duplicou entre 2002 e 2011. Nesse mesmo período, as exportações de produtos do segmento registraram aumento médio anual de 12,1% nos países em desenvolvimento. Além disso, a contribuição de atividades culturais privadas e formais representou, em média, 5,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Observa-se que, desde os anos 1990, vários governos passam a considerar as atividades produtoras de bens culturais/criativos como pilar estratégico para o desenvolvimento dos países. O Reino Unido tem um trabalho relevante na formulação de políticas voltadas às indústrias criativas, consideradas estratégicas para combater a depressão econômica que atingia as cidades industriais no final do século XX (BRITISH COUNCIL, 2014). Além do Reino Unido, outras experiências importantes nessa área podem ser citadas como: Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Cingapura, Hong Kong e os países membros da União Europeia (UNCTAD, 2010). No caso do Brasil, a temática surgiu a partir de 2004, durante a XI Conferência da Unctad em São Paulo, com a realização de um painel dedicado exclusivamente às indústrias criativas na perspectiva dos países em desenvolvimento. Nos últimos 11 anos (2004-2014), houve um avanço na discussão em relação à dimensão econômica da cultura como elemento de política pública. A criação da Diretoria de Economia da Cultura no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); a instituição da Secretaria de Economia Criativa no Ministério da Cultura (SEC/MinC) e as iniciativas de vários governos estaduais e municipais e entidades privadas são indicativos da maior relevância do tema no debate sobre o modelo de desenvolvimento para o Brasil. Uma questão que se coloca no presente trabalho é: o segmento cultural/criativo pode se consolidar como vetor estratégico para o desenvolvimento da Bahia? Esta possibilidade será discutida a seguir. 3. O SEGMENTO CULTURAL E A ECONOMIA BAIANA No estado da Bahia, a partir da segunda metade do século XX, estabeleceu-se um modelo de desenvolvimento, impulsionado pelo governo, com o objetivo de ampliar a estrutura produtiva da Bahia pela via industrial. Estes investimentos concentravam-se na capital e na Região Metropolitana de Salvador (RMS), proporcionando uma matriz econômica com baixa diversificação produtiva (BARRETO, 2014). Assim, o modelo econômico que se consolidou na Bahia, no final do século XX, terminou por privilegiar uma indústria intensiva em capital e concentrada na RMS.

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A partir de uma análise da evolução recente da economia baiana, verifica-se um maior dinamismo na economia do estado com a ampliação de investimentos em infraestrutura, serviços e turismo e diversificação industrial, com a implantação da indústria automobilística e de calçados. No entanto, como conclui Barreto (2014), o estado da Bahia ainda não escapou totalmente da divisão nacional do trabalho que o coloca enquanto produtor de bens intermediários e matérias-primas para indústrias de outros estados, além de consumidor de bens produzidos por estes e gerador de divisas no agronegócio e turismo. Considerando-se o panorama acima apresentado, procurou-se inferir o peso da cultura na economia da Bahia a partir de dados sobre ocupação e renda, haja vista que não existe uma estimativa dessa participação no PIB do estado. Para isso, foram consideradas três fontes: os indicadores de ocupação da publicação Infocultura (2014), produzidos pela Secretaria da Cultura (Secult) e a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI); o mapeamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN, 2014), e a síntese dos indicadores elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (SINTESE, 2013). Com base nos dados do Censo Demográfico de 2010, estimou-se que o segmento cultural/criativo3 incorpora 57.619 ocupados na Bahia, em torno de 1% da população ocupada do estado, estando à frente do setor metalúrgico (0,65%) e da indústria têxtil (0,22%). O segmento cultural/criativo e as atividades relacionadas a este ocupam 111.613 pessoas em seu trabalho principal, o qual representa 1,91% do total do estado (INFOCULTURA, 2014). A Firjan, em seu mapeamento da indústria criativa em 2014, organizou dados relacionados ao emprego formal do setor4. Segundo esses dados, os empregados criativos representam 1,4% do mercado de trabalho formal na Bahia. Em uma análise evolutiva, entre 2004 e 2013, houve aumento do número de empregos criativos na Bahia (de 2.390 para 3.354) e da participação em relação ao total da economia formal (de 1,1% para 1,3%) (FIRJAN, 2014). Outra publicação importante na tentativa de estimar o peso do segmento cultural na economia é a Síntese de Informações e Indicadores Culturais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)5. Segundo ela, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012, o setor cultural/criativo e atividades relacionadas na Bahia ocupa 171 mil pessoas, o que representa 2,6% do total dos ocupados no estado. O estudo apresenta, ainda, o rendimento médio da população ocupada no setor cultural/criativo: em torno de R$ 1.553,00, Nesta publicação, o segmento cultural/criativo são as atividades que geram, preservam, conservam e transmitem bens com conteúdo simbólico-cultural. Estas são: atividades culturais (patrimônio, artes cênicas, artes visuais, livros e periódicos, audiovisual, música e mídias interativas e artesanato) e criações funcionais (publicidade e arquitetura). 4 Na classificação da Firjan, a área da cultura inclui os seguintes segmentos: expressões culturais, patrimônio e artes, música e artes cênicas; o setor cultural, segundo essa classificação, seria uma subdivisão do que se entende por indústria criativa. 5 Ressalte-se que o IBGE, em sua delimitação do segmento cultural, inclui apenas as atividades econômicas relacionadas à produção de bens e serviços direta ou indiretamente ligados à cultura e tradicionalmente ligados às artes. 3

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valor ligeiramente superior ao rendimento médio da população ocupada nos demais setores da atividade produtiva, aproximadamente R$ 1.460,00 (SISTEMA, 2013). Essas informações apontam uma significativa importância do setor cultural/criativo para a economia baiana em termos de geração de ocupação e renda. Neste sentido, a Bahia, enquanto o estado com maior PIB da Região Nordeste e maior contingente populacional, poderia ampliar a participação das atividades culturais na economia. Nas duas próximas seções serão discutidos alguns fatores favoráveis e desfavoráveis para que isso ocorra. 4. POTENCIALIDADES E AVANÇOS DA ECONOMIA DA CULTURA NA BAHIA O potencial cultural e criativo da Bahia é comumente usado para referenciar o estado em âmbito nacional e internacional. Em função de suas trajetórias históricas, sociais e econômicas, a Bahia é reconhecida por sua riqueza e diversidade cultural. A despeito das várias identidades coexistentes no estado, durante muitos anos foi, a ‘baianidade’ que prevaleceu como discurso identitário hegemônico, principalmente no âmbito midiático e das políticas públicas6. E embora hoje estas sejam pautadas considerando toda a diversidade identitária e territorial do estado, não há como negar a força simbólica que ainda reside em torno da ‘marca’ baianidade, encenada e reiterada nas ruas de Salvador e Recôncavo e nas produções culturais de maior visibilidade. A inconteste riqueza cultural baiana se traduz ainda por meio de seu vasto patrimônio, revelado em festejos populares, danças, artesanato, gastronomia, entre outros; além das próprias edificações históricas que preservam a memória desde a fundação da Nação. A Bahia, em 2015, apresenta 186 bens materiais e imateriais sob salvaguarda do estado. Além destes, ainda há os bens tombados e registrados pelos poderes públicos federal e municipal (IPAC, 2015). No contexto da economia da cultura, esse potente repertório simbólico vem sendo convertido em mola propulsora para o desenvolvimento de um mercado cultural, a exemplo do Carnaval. Nesse sentido, a música é incontestavelmente o setor cultural baiano que mais se sobressai nacional e internacionalmente, tendo a axé music como expressão de maior apelo comercial com base na propalada ‘baianidade’. Além da citada produção musical, outros setores merecem destaque. Em que pese o protagonismo do Rio de Janeiro e de São Paulo, a Bahia é reconhecida como importante centro de criação e produção nas artes cênicas. O segmento audiovisual merece destaque não apenas pelas produções locais de curta e longa metragem, como por atrair um grande número de projetos de fora, interessadas nas histórias, no patrimônio e nas paisagens do estado. A publicidade é outro O texto identitário da baianidade tal como se reconhece hoje ocorreu, sobretudo, a partir da necessidade do Governo do Estado da Bahia (a partir da década de 70) de criar um programa político que conjugasse a cultura e o turismo, conforme aponta Jocélio Teles (SANTOS, 2005). Desse modo, investiu-se no que seria um aspecto diferenciador da cultura baiana no cenário nacional: o elemento afro.

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segmento que se sobressai nacionalmente, haja vista nomes baianos figurarem entre os principais do segmento publicitário brasileiro. Como promissoras e potenciais atividades criativas, a Bahia também desponta nos segmentos de design, moda e jogos eletrônicos. As ações do poder público são de grande relevância para o desenvolvimento de qualquer segmento econômico. Nesse sentido, a institucionalização da dimensão econômica da cultura, reconhecida pela Lei Orgânica da Cultura e pelo Plano Estadual da Cultura, representa um avanço importante para o setor. Acrescente-se a isto a publicação do Documento Bahia Criativa que buscou estabelecer “diretrizes estratégicas, de forma a construir uma carteira de iniciativas integradas para o fortalecimento do segmento criativo na Bahia”. No âmbito das políticas públicas, evidenciam-se também, nos últimos anos, ações de apoio à profissionalização e à gestão dos empreendimentos culturais, como o Qualicultura – projeto executado pela Secult em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) –, que ofereceu capacitação e formação técnica aos setores criativos. Por sua vez, o Escritório Bahia Criativa, convênio entre MinC e Secult, promove ações de atendimento e suporte aos empreendedores criativos a partir de capacitações, consultorias, assessorias técnicas, palestras e debates, entre outras iniciativas, em todo o estado. Merecem destaque, também, as ações de fomento empreendidas pelo estado, como: o Edital de Economia Criativa, da Secult-BA, que se destina a projetos que contribuam para o desenvolvimento da dimensão econômica da cultura; o Edital de Ideias Inovadoras, promovido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), que destina uma linha de financiamento específica para inovações relacionadas à economia criativa; o Edital Fapesb, de apoio a projetos de caracterização de Indicação Geográfica (IG), que financia iniciativas com a finalidade de identificar e caracterizar produtos ou serviços originários de um local ou região (BAHIA, 2014). Evidencia-se ainda o crescente interesse das universidades pelo tema, com a produção de diversos trabalhos de pesquisa e extensão sobre a cultura. As instituições de ensino superior em funcionamento na Bahia possuem um amplo conjunto de cursos de graduação e pós graduação relacionados à economia da cultura (BAHIA, 2014). No âmbito acadêmico, destaca-se o Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia, no qual uma das áreas de concentração investiga a cultura como elemento essencial para o desenvolvimento. A sua existência vem proporcionando, desde 2004, a produção de teses e dissertações que discutem a dimensão econômica da cultura, bem como a formação de especialistas em gestão e políticas culturais (BAHIA, 2014). Não obstante este cenário, a produção de dados sobre o setor ainda é incipiente, não somente na Bahia, mas em todo o Brasil. Neste contexto, a criação do Observatório de Economia Criativa, que objetiva produzir, reunir e difundir informações quantitativas e qualitativas sobre

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a economia criativa brasileira, aponta para a perspectiva de realização de novas pesquisas sobre o setor (UFBA, 2013). 5. LIMITES E DESAFIOS DA ECONOMIA DA CULTURA NA BAHIA Uma análise preliminar das informações apresentadas nas seções anteriores é suficiente para inferir que a cultura na Bahia reúne elementos suficientes para assumir um papel de destaque na matriz econômica do estado. Entretanto, há alguns obstáculos à consolidação, de forma estratégica, das atividades culturais na agenda de desenvolvimento do estado. O segmento cultural, devido às suas especificidades, é um mercado de alto risco para o investimento privado. Seu processo produtivo caracteriza-se pela participação de equipes polivalentes, o que exige a coordenação de diferentes competências, especialidades e recursos. Além disso, cada produto cultural é único, e os empresários da área cultural possuem capacidade bastante limitada de aprendizado com as experiências anteriores (LIMA, 2009). Com relação à demanda, há acentuada aleatoriedade e incerteza. A pesquisa Públicos de Cultura: hábitos e demandas (SESC, 2014), que traça o perfil do consumo cultural para o país, revela que 51% dos entrevistados não costumam realizar atividades culturais, mesmo durante os finais de semana. Se o público não consome cultura, o setor mostra-se como um ambiente de alto risco para o empresariado, que, em muitos casos, não tem garantia de retorno dos valores investidos. Outro fator que pode ser elencado como empecilho a um maior desenvolvimento econômico da cultura é a dificuldade de os agentes deste setor acessarem mecanismos de distribuição dos produtos culturais (UNCTAD, 2010). É válido afirmar que, para qualquer atividade artística e cultural, o processo não pode se encerrar no fim do ato criativo. É necessário que o resultado de todo um processo de investimento financeiro e intelectual alcance o público. Desse modo, podem-se consolidar uma rede produtiva e um mercado de bens culturais. A despeito do já mencionado potencial econômico do setor, muitos artistas e/ou agentes culturais são resistentes à ideia de associar o seu fazer criativo a uma gestão empresarial de suas carreiras, organizações ou projetos. Não raro observa-se nesses agentes um discurso que refuta a visão de cultura atrelada ao desenvolvimento e ao mercado, como se isso prejudicasse a liberdade e a sensibilidade criativa dos envolvidos no processo. A insuficiência de informações sobre o setor é outro fator relevante. O Plano da Secretaria da Economia Criativa (2011), lançado pela Secretaria de Economia Criativa do Ministério da Cultura, afirma que a carência de dados impede o conhecimento e o reconhecimento de vocações e oportunidades a serem reforçadas e estimuladas por meio de políticas públicas consistentes (BRASIL, 2012). A construção de indicadores, a partir de metodologias elaboradas

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exclusivamente para o setor cultural, permitiria mensurar o real desenvolvimento econômico das atividades culturais no estado. O Plano da Secretaria da Economia Criativa aponta, ainda, que os marcos legais no Brasil não atendem as especificidades do mercado cultural/criativo. Assim, seria necessária a adequação do arcabouço jurídico, nas áreas previdenciária, trabalhista, financeira e de propriedade intelectual, que favoreça o desenvolvimento do segmento criativo (BRASIL, 2012). Outro entrave relevante diz respeito à pouca diversificação das receitas da atividade econômica cultural, o que a torna dependente basicamente de recursos públicos. Como consequência, observa-se que, em geral, não há uma continuidade dos projetos sem o apoio governamental, ou a iniciativa de buscar a sustentabilidade econômica para além das fontes públicas de fomento. Por fim, em que pese um maior protagonismo econômico da cultura, ainda não há reconhecimento, por parte dos agentes empresariais e governamentais na Bahia, da importância estratégica da economia da cultura para o estado. Barreto (2014) demonstra que a atração de investimentos, no período 2007-2012, visou ao fortalecimento de setores tradicionais competitivos, como o químico, o petroquímico, o de petróleo, gás, papel e celulose; à consolidação de setores produtores de bens finais e à ampliação de atividades em que a Bahia mostra vantagens comparativas significativas, como a mineral, a de energia eólica e a indústria naval. Assim, o segmento cultural não está presente na agenda de investimento dos atores econômicos do estado. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A concepção da cultura como vetor estratégico de desenvolvimento, hoje em evidência principalmente nos países desenvolvidos, surge como uma resposta direta à crise e como estratégia de sobrevivência em áreas fortemente atingidas pela depressão econômica. Esta reformulação do modelo é provocada por mudanças na economia global e a percepção de que houve uma transferência de grande parte da produção manufatureira tradicional para outros centros, como a China e a Índia. Assim, em que pese o potencial econômico da cultura, o efetivo salto do setor cultural como motor de desenvolvimento, nos países centrais como o Reino Unido, ocorreu a partir do esgotamento dos modelos industrialistas (BRITISH COUNCIL, 2014). Diante da escassez de alternativas nos setores historicamente priorizados, os governos desses países enxergaram nas atividades econômicas culturais e criativas um possível caminho para a construção de vantagens competitivas. Passaram, então, a desenvolver ações de apoio, estruturação e incentivo a tais atividades, em muitos casos gerando efeitos significativos e de caráter estruturante. Por conta dessas iniciativas de sucesso, é crescente o número de nações que passam a conferir caráter estratégico ao setor. Na Bahia, o potencial de desenvolvimento econômico a partir da cultura é inegável, já que o estado é culturalmente diverso, possui produção cultural relevante em diversas linguagens

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e conta com um número significativo de profissionais ocupados no setor. Além disso, demonstra significativos avanços ligados à formação técnica e ao apoio governamental, ainda que existam críticas a respeito da forma e do alcance dessas ações. A transformação desse potencial em resultados concretos, no entanto, esbarra em entraves que envolvem não apenas características do mercado, barreiras institucionais, problemas com distribuição e demanda, mas também a postura dos agentes produtivos perante o panorama atual. Talvez o obstáculo mais significativo resida na resistência dos agentes públicos e empresários em reconhecer a relevância econômica do setor cultural, concebendo um modelo de desenvolvimento que vá além dos setores agrícolas e manufatureiros tradicionais. Em síntese, não há, ainda, a vontade política necessária para avançar com a agenda da economia da cultura na Bahia (até mesmo no Brasil). Para incorporar o segmento cultural no modelo de desenvolvimento do país, é fundamental, portanto, que este seja inserido na pauta e nos projetos das casas parlamentares e do Poder Executivo, sob uma perspectiva econômica, e passe a dividir (e disputar) espaço com setores tradicionais no âmbito das políticas. Essa mudança de perspectiva passa, necessariamente, pela sensibilização de atores públicos e empresariais privados sobre a importância econômica e social dos setores produtores de bens simbólicos. Assim, deve ser uma construção política que possibilite a participação dos agentes dos segmentos criativos na formulação de um novo padrão de desenvolvimento para o Brasil e a Bahia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAHIA. Bahia Criativa: diretrizes e iniciativas para o desenvolvimento da economia criativa na Bahia / Governo do Estado da Bahia – Salvador: O governo, 2014. 90p. BARRETO, R. M. Bahia 2000-2013. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014.152p. BRASIL. Plano da Secretaria da Economia Criativa. MinC, 2012, 145p. BRITISH COUNCIL. New directions in creative economy policy = Novas direções na formulação de políticas para a economia criativa. Londres: São Paulo. British Council, 2014. 155 p. (Série Investigando Políticas). FIRJAN. A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil. Edição 2014. Disponível em: http://www.firjan. org.br/economiacriativa/pages/default.aspx. Acesso em mar.2015. INFOCULTURA. Ocupação e trabalho na economia criativa do estado da Bahia - 2010.v.1, n.7 (dez. 2014)-. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado Bahia, 2014. 124p. INSTITUTO DO PATRIMÔNIOARTÍSTICO E CULTURALDABAHIA. Relatórios: Patrimônio Cultural na Bahia, por Território de Identidade e por Município Conforme Âmbito de Proteção. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2015. LIMA, Carmen. Redes sociais e aglomerações produtivas culturais: proposição de método de pesquisa e aplicação ao caso da produção de filmes em Salvador 2009. Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador. SANTOS, Jocélio Teles. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil.Salvador: EDUFBA, 2005. SEI/BA. Bahia Análise & Dados (Economia Criativa). Salvador, v. 22, n. 4, p.603-622, out./dez. 2012. SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO (SESC); FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Públicos de Cultura: pesquisa de opinião pública. 2013. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. SISTEMA de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010, Rio de Janeiro: IBGE, 2013. 1179 p. (Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 31). Disponível em: ftp:// ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sistema_de_Informacoes_e_Indicadores_Culturais/2010/indic_ culturais_2007_2010.pdf. Acessoemnov. 2013. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA). Plano de trabalho Observatório Estadual de Economia Criativa – Bahia (OBEC-BA). jun. 2013, 30p. UNCTAD. Creative Economy Report 2010 – Creative Economy: A Feasible Development Option. UN, 2010. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2015. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. FICHTNER, Bernd. Práticas culturais para uma perspectiva intercultural. Palestra para “Semana de Educação” na USP - 22 de set. 2008. Disponível em: . Acesso em 12 de jan. de 2015. FIORIN, José Luiz. Construção da identidade nacional, São Paulo: Bakhtiniana, 2009. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Tradução Marie Agnes Chauvel; prefácio Maria Isaura Pereira Queiroz. São Paulo: Brasiliense, 2003. MIGUEL, Paulo Augusto Cauchic, e HO, L.L. “Levantamento tipo survey”. In: MIGUEL, P.A.C. Metodologia de Pesquisa em Engenharia de Produção e Gestão de Operações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. MINISTÉRIO DA CULTURA. Viva cultura viva do povo brasileiro, Brasília: Museu Afrobrasil, 2007. MONTES, Maria Lúcia. O ideário da cultura brasileira. In: Discurso de abertura da TEIA, Brasília: Cultura em ação, 2007. RIMBAUD, Arthur apud. LEITÃO, Cláudia Souza. Seminário Internacional do Programa Cultura Viva: novos mapas conceituais. Brasília: Ministério da Cultura, 2009. SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. TURINO, Célio. Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.

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O LUGAR DA PERFORMANCE ARTE NO EDITAL PRÊMIO FUNARTE ARTES NA RUA (2011 A 2013) Charlaine Suelen Rodrigues Souza1 RESUMO: O presente artigo busca expor o lugar da Performance Arte nas Políticas Públicas para as Artes e utiliza, como exemplo, a Fundação Nacional das Artes, a Funarte. O recorte dentro deste universo refere-se ao edital Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança, Teatro). A pesquisa percorre os anos de 2011 a 2013 investigando a quantidade de projetos na área da Performance Arte que foram contemplados e suas principais características. Em um universo de três editais e 206 projetos premiados, foram encontrados 13 projetos que se assumem dentro desta linguagem. PALAVRAS-CHAVE: Performance, Funarte, Políticas Públicas para as Artes, Editais, Artes na Rua.

1. INTRODUÇÃO A partir do século XIX, com o segundo processo de industrialização da produção de bens e do trabalho na Europa, a forma de relacionamento das pessoas entre si muda e isso reverbera nas artes. Nesse período, entre os séculos XIX e XX, surgem diversos movimentos artísticos de vanguarda que questionam os modos de produção e relacionamento da sociedade europeia e, ao mesmo tempo, se utilizam deles para criação. Os artistas, seguindo a lógica de mudança de paradigma na produção, aprimoraram suas criações de maneira a romper com as fronteiras invisíveis que separavam as artes. Esta lógica de criação e produção híbrida se desenvolve ao longo do século XX ao ponto de surgir deste contexto entre as décadas de 1960 e 1970, uma geração de artistas que, aos poucos, abole artifícios, acessórios para criação e exibição e apontam e utilizam o corpo como principal campo de trabalho para além das já consagradas artes do corpo, como a dança e o teatro. Nesta proposta de criação e exposição, o corpo do artista e os corpos, vontades e ações do público entraram no jogo da criação. Começa a surgir o que se estabeleceu apenas na década de 1970 como Performance. Considerada uma arte de fronteira que lida com o corpo do artisEspecialista em Gestão Cultural: Cultura, desenvolvimento e mercado, pelo SENAC - Lapa Scipão/SP. E-mail: [email protected]

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ta e abarca todas as outras artes. Uma arte nova e que ainda é considerada de vanguarda e de pouco entendimento e aceitação. Ela trabalha pelo artista presente na ação e por vezes, saindo dos locais convencionais de apresentação (galerias, teatros, museus e etc) e produzindo em plataformas diferenciadas. As instituições públicas que beneficiam projetos culturais nem sempre estão preparadas para receber propostas híbridas que falem de teatro, música, performance e artes visuais. Os equipamentos culturais possuem geralmente salas específicas, formatos de programação, perspectivas e limites de orçamento. Ao mesmo tempo, sendo ela uma expressão artística que começa a ganhar mais espaço em centros culturais, escolas de formação, entende-se também que a necessidade financeira para sustentar essa arte e seus representantes também precisa avançar e crescer junto com ela. Daí surge o impasse: como legitimar publicamente algo que não possui definição, formato e linguagem própria. As políticas públicas voltadas para a cultura enfrentam a complexidade do segmento que é regido por valores, em sua maioria, subjetivos. Para isso, cresce a necessidade de haver uma mudança de paradigma em prol de meios de legitimar sua relevância para ampliar seus recursos e credenciar profissionais. É preciso pensar em políticas públicas que auxiliem o maior alcance para a população da diversidade artística do país. Neste ambiente de financiamento às artes, a performance ainda procura seu espaço. Sendo originária, principalmente, nas Artes Cênicas, ela não pode ser chamada de teatro, dança ou circo. Por possuir um caráter híbrido e de borda entre as linguagens, nem sempre há legitimação no campo das artes visuais (talvez uma das mais flexíveis de classificação e envolvimento). Como uma arte legítima, reconhecida pela crítica, pelos artistas, instituições públicas e privadas, ela ainda caminha para abrir este espaço de acesso a financiamentos. A presente pesquisa pretende estabelecer uma análise para averiguar como encontra-se a legitimação da performance nas políticas públicas para as artes e utiliza como objetos de pesquisa a Fundação Nacional das Artes e a performance. Foram selecionados os editais regulares de artes por onde a arte da performance transita para análise de três anos (2011, 2012 e 2013), para estruturar informações em três aspectos principais: 1) em quais destes editais é aceita como forma de trabalho a Performance Arte; 2) quantos projetos foram efetivamente foram aprovados que tenham a performance como característica principal ou secundária e 3) quais são esses projetos e suas características. O estudo de caso reúne essas informações e parte para análise de dados. A partir do recorte de tempo, inicia-se um cruzamento entre os editais a fim de chegar a um denominador que englobe editais regulares da Funarte e que possuam oficialmente a abertura para a linguagem da performance arte. Restam nesta análise o edital Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança e Teatro) e o edital Rede Funarte de Artes Visuais, constituindo seis textos para investigação.

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2. PERFORMANCE NA ARTE CONTEMPORÂNEA “Em performance a figura do artista é o instrumento da arte. É a própria arte”. Battcock (1984 apud COHEN, 2002, p.76). Se fosse possível resumir a arte da performance em uma sentença, talvez a de Gregory Battcock2 seja uma das mais simples e diretas. Mas, ainda assim, ela sozinha não consegue dar conta de explicar o que seja essa manifestação artística. Em primeiro lugar, a expressão performance é uma palavra de língua inglesa. Traduzida para o português significa ‘desempenho’. Na vida cotidiana e no meio artístico, ela pode ser utilizada para explicar o desempenho do artista ao fazer determinada obra: o desempenho daquele ator ao interpretar “Hamlet”, de Shakespeare3; o desempenho da bailarina em “O lago dos cisnes”4; o desempenho de Van Gogh ao pintar “Doze girassóis numa jarra”5. Até esse momento, ela é uma expressão de ação. A partir do início do século XX, alguns movimentos de arte de vanguarda começam a reconfigurar a forma de fazer e interpretar a arte. Com isso, a palavra ‘performance’ começa a ser destacada pela capacidade de fazer do artista e ela, a palavra, aos poucos é elevada ao status de manifestação artística se destacando das outras artes a partir da década de 1970. Para a artista sérvia Marina Abramovic Performance é um certo tipo de construção mental e física em que o artista se apresenta na frente do público. Performance não é uma peça teatral, não é algo que se pode aprender e, então, interpretar, fazendo o papel de uma outra pessoa. É mais como uma transmissão direta de energia. (ABRAMOVIC, 2013, p.02) A grande criação da performance na verdade está no fato dela poder, precisar e ser por gestação união das artes plásticas, ritos terapêuticos, intervenções, teatro e dança. Para o brasileiro Renato Cohen numa visão, a princípio, romântica da performance O trabalho de um artista de performance é basicamente um trabalho humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte, dos lugares comuns impostos pelo sistema. Os praticantes da performance, numa linha direta com os artistas da contracultura, fazem parte de um último reduto que Susan Sotang6 chama de “heróis da vontade radical”, pessoas que não se submetem ao cinismo do sistema e praticam, à custa de suas vidas pessoais, uma arte de transcendência. (COHEN, 2002. p.45). Artista e historiador americano (1941 - 1980) William Shakespeare, dramaturgo inglês (1582-1616) 4 Espetáculo de ballet, composto pelo russo Pyotr Llynch Tchaikovsky (1840-1893) entre os anos de 1875 e 1876. 5 Pintura em óleo sobre tela, criada em 1888, pelo holandês Vincent van Gogh (1853-1890). 6 Susan Sotang (1933-2004) foi uma escritora e crítica de arte norte-americana. Expressão retirada do livro “Styles of Radical Will”, de 1966. 2 3

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O corpo passa a ser a plataforma e o dispositivo de trabalho. Pintar uma tela precisa dispor do artista além do pincel, todo o corpo. Este torna-se templo de adoração e, ao mesmo tempo, suplício. Os limites do corpo são explorados e a capacidade de concentração e resistência. Este artista começa a ser chamado de performer. As apresentações performáticas mais conhecidas e que estigmatizaram a arte, são as que promovem o esforço, sacrifício, dor ou modificações corporais ou manuseio de elementos até então não usuais na arte. Para Lehmann, uma das principais mudanças no teatro que promoveram a performance são na forma de lidar com o público, trazendo-o ativamente para a cena. Promovendo criações onde este é responsável pela ação e pelo entretenimento. Parte do que define a linguagem da performance, principalmente em sua origem está no frescor de executar uma partitura aberta a diversas possibilidades e esse ser o grande mérito. A performance busca o choque ao invés da fruição. É uma arte de intervenção em quem faz e em quem recebe. Não utiliza diretamente elementos estéticos elaborados em sua origem. Hoje, as ações performáticas ganharam mais espaço em galerias, mostras individuais e festivais. O próprio desenvolvimento da linguagem ao longo dos anos ampliou significados e possibilidades estéticas. As performances ganharam mais produção. Com ela vieram ensaios, direção, contratos e cachês. (2002. Pag.45-46). A performance trabalha com collage, termo que quer dizer colagem. Uma maneira de sobreposição de referências, estéticas, expressões que separadas não possuem coesão artística, mas sobrepostas produzem arte. Como afirma Cohen: “Numa primeira definição, collage seria a justaposição e colagem de imagens não originalmente próximas, obtidas através da seleção e picada de imagens encontradas, ao acaso, em diversas fontes”. (COHEN, 2002. Pag.103). Outra característica do teatro é a mise em scéne. Consiste em um momento crucial do artista solo, nada antes e nada depois. Por seu caráter alternativo, foge dos espaços convencionais do teatro e abre espaço na cidade por meio de outras possibilidades de espaços. Ela também contribui para o desenvolvimento de outros espaços e outros olhares. (COHEN, 2002. p. 57-59). Em performance, o mais importante é o instante presente. O que está acontecendo e não a história a ser contada. O performer possui ou elabora uma partitura corporal, uma sequência de ações que podem levá-lo a algum lugar, às vezes previsto e às vezes não previsto. Nesta dinâmica, costuma-se dizer que o performer não possui personagem e esta é a uma das principais diferenças desta linguagem. Geralmente há o que chama-se de persona, uma versão preparada do performer para aquele momento. Segundo Cohen, a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte, etc). A personagem é mais referencial. Uma persona é uma galeria de personagens”. (COHEN, 2002. Pag.107). Há uma postura específica, objetivos específicos. Um estado, que executa uma partitura corporal e

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mental visando a realização artística. Sua vida, suas habilidades, sua idiossincrasia, são expostos e ele precisa muito mais se mostrar, se expor para que sua arte possa ser assimilada. Na passagem para a expressão artística performance, uma modificação importante vai acontecer: o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de um artista que verticaliza todo o seu processo, dando sua leitura de mundo, e partir daí criando o seu texto (no sentido sígnico), seu roteiro e sua forma de atuação. O performer vai se assemelhar ao artista plástico, que cria sozinho sua obra de arte; ao romancista, que escreve seu romance; ao músico que compõe sua música. (COHEN, 2002. p.100) Seu trabalho pode ser pautado em apresentações, exposições, vídeos, música ao vivo ou a fusão de todos eles. O performer pode ser a própria instalação de uma obra. Grande parte dos profissionais que trabalham hoje vieram ou do teatro ou das artes plásticas, pois ela encontra espaço para operar basicamente entre as duas. Após 40 anos dessa forma artística ser trabalhada, reafirmada e adaptada ao tempo, como qualquer arte já passou por questionamentos até possuiu sua morte decretada pela imprensa, pelo mercado e pela crítica e pelos próprios artistas. Há que se pensar qual o lugar da performance na atual configuração da sociedade e das relações humanas, artísticas e culturais. Esse lugar precisa ser reconhecido pela arte também pelos mecanismos de financiamento e instituições. Como todas as manifestações artísticas e culturais hoje no Brasil possuem meios para viabilização ela, enquanto também arte, necessita e possui direito dentro do universo da cultura, afinal existe trabalhos que possuem quase custo zero e outros que necessitam de aporte para sua realização. Neste momento ela esta num impasse de reconhecimento. 3. POLÍTICAS PÚBLICAS: DESENVOLVIMENTO DAFUNARTE O ciclo de criação de uma política pública não é muito diferente do ciclo de um projeto ou qualquer outra demanda e urgência de uma sociedade ou grupo de pessoas. O ciclo basicamente consiste em: identificação do problema, formação de agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, implementação, avaliação e extinção. A rotina de criação de editais da Funarte é algo relativamente novo, nos últimos 10 anos a instituição vem criando esta rotina. Até 2005 a Funarte era responsável por editais de ocupação de seus espaços e alguns editais pontuais de criação artística e apoio a eventos. Falta a instituição dar mais autonomia para os fazedores artísticos. Neste mesmo ano foram criadas as câmaras setoriais para discussão sobre soluções na área da cultura. A partir dessas discussões e recursos disponíveis identificam-se quais são as necessidades e formulação de alternativas. As decisões caminham para a criação de mais editais e a continuação dos já existentes. A linha de desenvolvimento da instituição possui uma lógica. Primeiro fomentar atividades em seus equipamentos culturais. Criar uma circulação

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de trabalhos no Brasil onde ela produz a circulação. Mais adiante, após identificada a necessidade de mais verba e distribuição pelo país, ela parte para a tomada de decisão de criação de maneiras de fomentar o acesso a recursos. Em 2006, diversos editais são lançados em diversas áreas artísticas e se mantém até os dias de hoje. Agora ela financia projetos independentes de sua necessidade produzindo. Ela apenas opera, regula e acompanha os processos, mas a realização está nas mãos dos produtores. Todos os anos estes são lançados e passam por avaliações e reformulações. Geralmente sofrem mudanças de uma edição para outra. Esse processo faz parte da implementação de qualquer política pública. Essas discussões e reformulações da forma como a Funarte lida com a distribuição de verbas completam uma década e as discussões não param. Como qualquer política pública em algum momento a política de editais deve acabar, pois o problema pode ter sido resolvido ou, mais provável, é a substituição por outra que seja mais eficaz e que atenda às necessidades de uma nova geração de artistas. Deve-se considerar também que se trata do serviço público e de recursos públicos. Os procedimentos e necessidades para a execução final de projetos possui ritmo próprio que nem sempre seguem o mesmo ritmo dos artistas. Criada em 1975, a Fundação Nacional das Artes, a Funarte, é um órgão ligado ao Governo Federal, administrado e submetido ao Ministério da Cultura, para desenvolver e aplicar políticas públicas para as artes nos seguintes âmbitos: artes visuais, música, teatro, dança e circo. Seus principais objetivos são “[...] o incentivo à produção e à capacitação de artistas, o desenvolvimento da pesquisa, a preservação da memória e a formação de público para as artes no Brasil”7. Seu principal formato de fomento se estabelece por meio de bolsas e prêmios em dinheiro. Todos os anos a instituição lança editais para premiação de projetos enviados de todo o Brasil. Existem editais tradicionais publicados todos os anos para atender aos segmentos artísticos nas suas principais necessidades: criação e circulação dos trabalhos. O desenvolvimento de editais de seleção pública para apoio a projetos culturais são estão submetidos à Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC); ao Decreto nº 5.761, de 27 de abril de 2006 que regulamenta a Lei nº 8.313 e estabelece a sistemática de execução do PRONAC, o Decreto Nº 6.170, de 25 de julho de 2007 que dispõe sobre as normas relativas a transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, a Portaria Interministerial Nº 127, de 29 de maio de 2008 que estabelece normas para execução do disposto do Decreto nº 6.170 e a Lei Nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública. 7

Fonte: http://www.funarte.gov.br/a-funarte/. Acesso em 28/03/2015.

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Uma rede de leis e procedimentos que moldam a forma de promover recursos públicos para as artes no país. Existe um procedimento básico e necessário para elaborar e manter um edital, principalmente os que são de origem e de responsabilidade da administração pública. Segundo o Manual de Orientação para Elaboração e Gestão de Editais de Seleção Pública de Projetos e Iniciativas Culturais8, as seleções devem ser regidas pelos seguintes princípios: transparência, isonomia, legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, equilíbrio na distribuição regional de recursos e acesso à inscrição. 4. METODOLOGIA DE PESQUISA O recorte feito nesta pesquisa seguiu alguns princípios: selecionar editais da Funarte nas áreas de Artes Cênicas e Artes Visuais, tendo ao final pelo menos um de cada área; editais que beneficiem projetos de criação artística; sua regularidade de lançamentos pela instituição e um período em que os editais e seus vencedores possam ser avaliados. Foram selecionados os três últimos anos (2011 a 2013) que possuem fechamento de atividades e entrega de relatório público final, ou seja, números e dados já foram reunidos e os projetos já foram finalizados. A partir do recorte de tempo houveram outros filtros a fim alcançar um recorte passível de pesquisa e que tenha relevância no ambiente da instituição: encontrar editais de artes por onde a arte da performance pode transitar com maior ênfase: os editais na área Artes Cênicas (Dança, Circo e Teatro), os editais de Artes Visuais e os editais do departamento da Funarte denominados ‘Artes Integradas’. Desta seleção foram encontrados 96 editais no período de 2011 a 2013. Dos 96 textos, o próximo passo foi excluir os que não possuíam ocorrência todos os anos do recorte temporal selecionado. De 96 ocorrências, o número foi reduzido para 65. O próximo filtro foi a exclusão de editais de ocupação dos espaços pertencentes a Funarte e a manutenção apenas dos editais criação artística livre. O número foi reduzido para quinze textos de seis editais, sendo quatro específicos para circo, dança, teatro e artes visuais e dois editais que englobam as três formas de artes cênicas produzidas para encenação na rua. O último recorte foi possível apenas após leitura de todos os 15 textos dos editais citados acima. A busca observou o ‘Objeto’ do edital, local logo no início do texto da maioria dos editais onde é descrito para qual tipo de trabalho/projeto é destinado o prêmio. O Objeto é o único presente em todos os textos que corresponde ao objetivo artístico do projeto. A pesquisa priorizou apenas editais onde é possível a identificar a abertura para a Performance Arte como possível http://www.cultura.gov.br/legislacao/-/asset_publisher/siXI1QMnlPZ8/content/portaria-n%C2%BA-29-2009-minc/10937. Acesso em 28/03/2015

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manifestação artística a ser considerada para recebimento de prêmios. Dos seis editais citados, apenas dois assumem em seus ‘Objetos’ a Performance Arte diretamente descrita. Desta forma, o filtro e a seleção final de editais para análise de textos e vencedores se estabeleceu apenas com dois editais que citam a palavra Performance no texto. Devido a abrangência do tema, foi eleito apenas o edital Prêmio Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança e Teatro) para ser analisado, por ser essa a arte que mais se aproxima da linguagem da Performance. 5. ANÁLISE 5.1. Edital Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança e Teatro) Presente dentro da Coordenação de Teatro da Funarte, o Edital Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua, teve sua primeira edição em 2009. Seu principal objetivo é fomentar manifestações artísticas nas áreas do circo, dança e teatro e que sejam desenvolvidas nas ruas ou em espaços abertos e públicos, como praças e parques. Tem um recorte mais flexível onde os proponentes podem propor projetos híbridos que utilizem mais de uma linguagem artística. 5.2. Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança, Teatro) 2011 O edital é restrito às ‘Performance Cênicas’, não se tratando de um termo oficial e segmentado no universo da pesquisa em Performance, mas um posicionamento da instituição em defender o perfil dos projetos a serem apresentados de acordo com o edital - artes cênicas. A lista de selecionados não define nenhum projeto em uma linguagem específica. Esta definição cabe aos proponentes. Após a listagem dos projetos selecionados, a pesquisa buscou compreender melhor as características de cada projeto selecionado a fim de identificar quais tinham como característica principal ou secundária a linguagem da performance arte. A pesquisa buscou os resultados conquistados por meio de publicação dos grupos e artistas e obedeceu as definições dos grupos sobre seus trabalhos. Como para a Funarte em seu texto no edital não há a consideração da performance como arte independente, a única forma de encontrá-la é sua associação com alguma arte cênica. Por entender que os projetos podem se englobar em mais de uma arte cênica, foram realizadas algumas combinações das artes cênicas. Quando essas são feitas e somadas a elas o quesito sem definição na lista geral é possível identificar cinco possibilidades, mas sendo o objetivo encontrar projetos na área da performance, outras combinações são necessárias nesta busca, é necessário assumir que para a Funarte a performance não é uma arte principal. Sendo assim as definições e combinações foram estabelecidas da seguinte maneira: 1. Circo 2. Circo | Dança

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3. Circo | Dança | Performance 4. Circo | Dança | Performance | Teatro 5. Circo | Dança | Teatro 6. Circo | Performance 7. Circo | Performance | Teatro 8. Circo | Teatro 9. Dança 10. Dança | Performance 11. Dança | Teatro 12. Teatro 13. Teatro | Performance 14. Dança | Performance | Teatro 15. Sem definição Entre as quatorze possibilidades de definição do formato e segmento dos projetos selecionados, cinco foram reconhecidos como performance ou utilização dela indiretamente. Sete dos 63 selecionados não foram possíveis sua definição devido a falta de informações sobre os projetos. Dos 63 projetos, 05 possuem a performance arte como linguagem. Trabalhos que, ou assumem diretamente ser tratado como performance ou possuem maneiras de realização diferenciada, cuja linguagem pode ser associada a ela. Este número corresponde a 08% do total de aprovados. Projetos contemplados: Águas Passadas da Beira Mar, Na Casa de Paulo, Cambana, Circulação OCUPADO e Nave pirata. 5.3 Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança, Teatro) 2012 Apesar do aumento no número de projetos a serem contemplados, o número de propostas na área da performance permaneceu o mesmo: Cinco projetos. O perfil de propostas associadas a outra arte cênica se inverteu. Em 2011 foram quatro projetos na área de teatro e performance e um de dança e performance. Em 2012, quatro projetos podem ser relacionados ou se assumem como dança/performance receberam recursos contra um de teatro/performance. 74% dos projetos foram de artes isoladas, sendo, mais uma vez, o teatro o principal vencedor (60% do total de aprovados). Apesar da quantidade de aprovados na área da performance ter se mantido, a porcentagem caiu para 7% devido ao aumento do número total de prêmios. O número de projetos de artes híbridas diminuiu, sendo 26% e desses 7% pertenciam ao campo da performance e os outros 19% a outras artes. Durante a análise dos trabalhos vencedores pode-se perceber uma mudança de postura do artista. Nesta edição, durante a divulgação da realização dos projetos, os grupos e artistas as-

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sumem diretamente seus trabalhos como performances, como será descrito adiante. Os artistas possuem trabalhos mais estruturados dentro da linguagem e os grupos histórico de trabalhos, interesse e pesquisa nesta área. A lista completa com os cinco trabalhos apresentou os seguintes resultados: Antologia da Árvore, Macaco Nú, Pele do lugar - corpo e cidade, Perfografia e Posso dançar pra você? 5.4 Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua (Circo, Dança, Teatro) 2013 A premiação em 2013 recuou na quantidade de projetos aprovados na área da performance. Em 2013, foram apenas três que correspondem a 4% do montante. Projetos de uma única linguagem ainda são os mais premiados e este ano com aumento para 87% do total. Houve uma queda na porcentagem dos projetos de teatro e aumento nos premiados em circo. Deve-se destacar uma queda no espaço para projetos híbridos, onde a performance se encaixa, o que pode apontar por mais formalidade da instituição e comissão de avaliação na escolha dos vencedores. Projetos contemplados: Coisas Que Fazem o Coração Correr Mais Rápido, Estética da Via Crucis em Romaria, Sandwalk With ME Ao todo, foram 206 projetos que tiveram acesso a R$ 7.834.500,00 (sete milhões oitocentos e trinta e quatro mil e quinhentos reais). Desse número, 13 projetos se enquadram na linguagem pesquisada e, ainda assim, é preciso considerar adequações e projetos que abriguem outras linguagens em conjunto para que a Performance Arte possa ter acesso. Os treze projetos identificados somam 458 mil e cem reais e mostram outro dado: dos treze projetos, sete, ou seja 54% deles, foram premiados no módulo A, que corresponde a menor premiação entre as três faixas de valores do edital. Ainda ponderando os valores recebidos pelos projetos, no ano de 2013 onde houveram apenas três projetos vencedores, todos estavam dentro do módulo A e receberam 32.700 reais para execução do trabalho. O panorama geral aponta para a valorização dos projetos com apenas uma linguagem artística. Cerca de 82% deles são apenas de Teatro, ou de Circo ou de Dança e nessa sequencia de maiores vencedores. Propostas de linguagem múltipla correspondem a 18%, enquanto que a Performance Arte ocupa 6% do total de projetos ganhadores do edital. 6. REFLEXÕES FINAIS “A Performance não possui uma forma única, sempre foi alternativa. Eu gostaria de vê-la respeitada antes de eu morrer”. Quando Marina Abramovic fala sobre o desejo de ver a Performance reconhecida, ela expõe junto com seu discurso uma legião de artistas que ainda não possuem espaço para as suas expressões. Espaço aqui não se refere ao prédio, mas reconhecimento da Performance como uma arte própria e necessária. Suas provocações estão fora do local da repetição ou da exposição, como a maioria das outras artes, e essa particularidade dela

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precisa ser reconhecida. Se esta necessidade é real para uma artista como Marina Abramovic que possui mais de 40 anos de carreira, obteve trabalhos expostos nas maiores galerias e festivais do mundo, é preciso refletir sobre a situação da grande maioria dos artistas que executam essa mesma arte e precisam de reconhecimento e subsídios. Os editais promovidos pela Funarte ainda precisam alinhar a distribuição de recursos para esta e outras formas de manifestação artística consideradas não convencionais. A pesquisa mostra uma intenção de abrigar essa arte. As políticas públicas de cultura no Brasil ainda estão em processo de elaboração, implementação e avaliação, mas já mostram favorecer tanto artes que existem há milênios, como o teatro e a dança, e as mais recentes como a Performance. O espaço pode ainda parecer pequeno, mas ele existe e cabe aos gestores, artistas e demais profissionais pensarem em qual seria a melhor política pública para esta arte. Em 2010 a Funarte lançou um edital de festivais de arte chamado “Apoio a Festivais de Fotografia, Performances e Salões Regionais”. Nele, três dos quinze projetos aprovados eram de festivais de Performance Arte. Nenhum seguiu com mais edições após o prêmio da Funarte e o edital teve apenas uma ocorrência. Esta informação mostra um interesse da instituição, ou pelo mostrou em 2010, em valorizar essa arte. O que precisa ser desenvolvimento ao longo dos anos é como viabilizar algo que possa ser apresentado sem modificar a obra em função da necessidade de repetição, posso gerar indicadores e materiais que comprovem sua execução. A Funarte é uma instituição pública que utiliza em sua maioria verbas públicas, portanto, ela precisa prestar contas do que financia. O que se apresenta hoje é uma arte cada vez mais híbrida de plataformas diversas que conversam entre si, ou não. O próximo passo é alinhar as produções aos mecanismos de reconhecimento das manifestações artísticas, embora se a arte é de vanguarda essa adequação não será na mesma velocidade das criações, mas as discussões e manifestações que a rua aborda reverberam no dia a dia e provocam, de certa forma mudanças no cotidiano das pessoas por onde as intervenções passam. Essa força é real e presente. Chegará um momento em que provavelmente a Política Pública de financiamento a cultura por meio de editais terá que ser superada por algo ainda mais amplo e democrático e perene. Em 2013 prefeituras, governos estaduais e federal instituíram as conferências de cultura onde foram elencados os novos problemas para formação de agenda para políticas públicas para cultura. Estive presente para conferência de São Paulo. Nenhum representante na área da Performance Arte esteve presente para defender mais apoio para a linguagem artística e ela não entrou diretamente em pauta. Para se credenciar uma arte é preciso criá-la e também usar de estratégias para que ela seja reconhecida. Este material levantado pode ser uma maneira de auxiliar os artistas e gestores a pensarem para além da verba direta, mas quais são as maneiras de sustentar a criação de um artista.

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17 a 20 de maio de 2016 Voltar ao Índice dos Trabalhos

AÇÕES CULTURAIS EM MUSEUS PARA PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE: PROJETO CONSTRUINDO1 Christiane Maria Castellen2 RESUMO: O presente trabalho pretende contribuir nas reflexões e na produção teórica do campo das políticas culturais, quanto à realização de projetos e programas de ações educativas de inclusão sociocultural, que promovam a integração à sociedade de indivíduos submetidos ao regime de privação de liberdade. Apresenta o Projeto CONSTRUINDO, realizado pelo Museu Histórico de Santa Catarina, a partir do ano de 2009, e seu desdobramento no Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina e no Museu de Arte de Santa Catarina – unidades culturais vinculadas à Fundação Catarinense de Cultura. O Projeto tem como objetivo promover o acesso e a integração de um grupo de reeducandos da Penitenciária Estadual de Florianópolis, através de ações educativas socioculturais em visitas mensais nas exposições. PALAVRAS-CHAVE: pessoas em privação de liberdade; ação cultural em museus; educação patrimonial; inclusão sociocultural.

O presente trabalho pretende subsidiar o desenvolvimento de estudos, quanto à realização de políticas culturais de inclusão sociocultural, que promovam a integração à sociedade de indivíduos submetidos ao regime de privação de liberdade. O texto apresenta as ações educativas e de inclusão sociocultural do Projeto CONSTRUINDO – desenvolvido pelo Núcleo de Ação Educativa do Museu Histórico de Santa Catarina com o objetivo de promover o acesso de reeducandos da Penitenciária Estadual de Florianópolis ao patrimônio cultural de três museus vinculados à Fundação Catarinense de Cultura: Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC), Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina (MIS/SC) e Museu de Arte de Santa Catarina (MASC). O projeto busca oportunizar experiências, percepções, descobertas e apropriações da Este texto foi baseado e em parte extraído de: CASTELLEN, Christiane Maria. O Educador frente a outras realidades: educação patrimonial para pessoas privadas de liberdade do sistema carcerário. In: FONSECA da SILVA, Maria Cristina da Rosa (org.) Cadernos de docência: contribuições para a formação em artes visuais. Florianópolis : AAESC, 2015. pp 39-62 2 Christiane Maria Castellen: Licenciada em Educação Artística, com Habilitação em Artes Plásticas e Especialista no Ensino das Artes Visuais / UDESC. Analista Técnica em Gestão Cultural da Fundação Catarinense de Cultura, na função de Educadora do Museu Histórico de Santa Catarina – Palácio Cruz e Sousa. Membro do Grupo de Pesquisa Educação, Arte e Inclusão. UDESC – Cnpq. [email protected] ; [email protected] 1

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pluralidade de sentidos e narrativas presentes no espaço de um museu, em visitas às exposições realizadas em encontros mensais. O referido Projeto enfatiza a importância do acesso ao patrimônio cultural e da educação patrimonial como instrumentos de integração e inclusão sociocultural para sujeitos privados de liberdade. Sujeitos em privação de liberdade são reconhecidos como presos, presidiários, apenados, detentos ou reeducandos, e são aqueles que cumprem pena de detenção em decorrência de sentença condenatória3. A população carcerária, estando em um lugar condicionado e restrito à vigilância, é, muitas vezes, invisibilizada à sociedade, salvo nas projeções midiáticas de situações conflituosas no sistema prisional. É possível que uma das questões mais complexas da realidade social brasileira, na atualidade, possa ser identificada e encontrada na situação carcerária. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen)4, de junho de 2014, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) / Ministério da Justiça, o Brasil possui a quarta maior população prisional, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. No país existem 1.424 unidades prisionais, cuja população carcerária totaliza 607.731 pessoas em regime de privação de liberdade. De acordo com o Levantamento, todas as unidades exibem taxa de ocupação superior a 100%, e em um espaço concebido para custodiar 10 pessoas existem por volta de 16 indivíduos encarcerados5. Segundo o levantamento do Infopen o perfil das pessoas presas do sistema penitenciário brasileiro é majoritariamente: de jovens (56%)6, de negros (67%), de baixa escolaridade (68%)7 e de baixa renda, sendo a maior parte solteira (57%). O tráfico de entorpecentes é o crime de maior incidência, respondendo por 27% dos crimes informados, seguido de roubo, com 21% (INFOPEN, 2014). Tais índices abafam conflitos socioculturais que merecem profundas reflexões e vão além das discussões sobre Direitos Humanos, Segurança Pública, direito à Justiça, combate à criminalidade. Reflexões e ações que pertencem a toda a sociedade, e cuja problemática exige a atuação de gestores públicos, legisladores e operadores jurídicos, na condução e construção de caminhos mais encorajadores, tanto para a população carcerária como para toda a sociedade. http://www.jusbrasil.com.br/topicos/301646/reeducando O Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. Levantamento disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/11/080f04f01d5b0efebfbcf06d050dca34.pdf 5 O levantamento menciona que, entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%. Em 2000, havia 137 presos para cada 100 mil habitantes. Em 2014, essa taxa chegou a 299,7 pessoas. Caso esse ritmo de encarceramento se mantenha, em 2022, a população prisional do Brasil ultrapassará a marca de um milhão de indivíduos. Em 2075, uma em cada dez pessoas estará em situação de privação de liberdade (p.16). 6 O relatório informa que são considerados jovens, pessoas entre 18 e 29 anos, de acordo com o Estatuto da Juventude (p. 48) 7 Índice referente apenas ao ensino fundamental incompleto. 3

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A magnitude do problema, segundo o Depen, exige a intensificação de esforços e o envolvimento dos três poderes da República, em todos os níveis da Federação, em busca de soluções e estratégias inteligentes para equacionar os problemas existentes. Ao propor uma política nacional de melhoria dos serviços penais, abrangendo quatro eixos, cuja amplitude aponta alternativas penais, de gestão de problemas e serviços relacionados ao hiperencarceramento, bem como a modernização do sistema penitenciário brasileiro, o Depen destaca, no seu terceiro eixo, a “ humanização das condições carcerárias e a integração social” (INFOPEN, 2014). A melhoria nesse eixo específico depende da promoção de um modelo intersetorial de políticas públicas de saúde, de educação, de trabalho, de cultura, de esporte, de assistência social e de acesso à justiça. Conforme o Infopen, para que “esses serviços alcancem as 607 mil pessoas que se encontram nos presídios brasileiros, as políticas devem ser implementadas pelos gestores estaduais especializados nas diferentes temáticas sociais governamentais” (INFOPEN, 2014). Como se percebe, cabe ao Estado cumprir, para que sejam aplicadas, de fato, todas as condições e garantias necessárias para a ressocialização, prevenindo o crime e possibilitando o retorno e a convivência em sociedade. Em relação à representação de pessoas privadas de liberdade, que se encontram segregados espacialmente, discriminados socialmente, é de conhecimento geral, devido às problemáticas de nosso sistema prisional, de que estão frequentemente vinculados aos discursos e práticas relacionados a violências e crimes. Separada das normas de convívio social, a população carcerária compõe, muitas vezes, representações perversas, traduzidas em preconceito, estigma e rejeição. Buscando também contribuir para a desconstrução de olhares e concepções que produzem e reproduzem a lógica classificatória e segregadora de pessoas em situação de privação de liberdade, a narrativa aqui proposta abre espaço, para reflexões e ações junto a grupos estigmatizados que se encontram nesse espaço de exclusão social. Diversos documentos manifestam e asseguram ao cidadão a inclusão social e a democratização do acesso aos bens da cultura. Dentre eles, destacam-se: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a Emenda Constitucional n.° 48 de 2005, no art. 215 da Constituição Federal; o Plano Nacional de Cultura e as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Museus. Também o Parecer do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica nº 4/2010, aprovado, que trata das Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais8, estabelece: A prisão “[...] não implica, contudo, a suspensão dos seus direitos ao respeito, à dignidade, à privacidade, No Decreto nº 7.626, de 24/11/2011, da Presidência da República, é instituído o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional – PEESP, que contempla a educação básica na modalidade de educação de jovens e adultos, a educação profissional e tecnológica, e a educação superior. 

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à integridade física, psicológica e moral, ao desenvolvimento pessoal e social, espaço onde se insere a prática educacional” (MEC, 2010)9. Os estudos contemporâneos acerca da função social dos espaços museológicos também apontam discussões crescentes nas últimas décadas, onde se incluem reflexões e problemáticas do uso educativo deste patrimônio cultural. Diferentes práticas em abordagens sociais, culturais e também políticas vêm proporcionando maior interação deste espaço museológico com a sociedade, permitindo multiplicar suas utilizações e ações. Tais práticas permitem a multiplicidade de iniciativas e apontam diversas experiências histórico-culturais, que se ampliam e se transformam em espaços de formação nos vários campos da ação humana. O acesso e a formação de público nos espaços museais são considerados compromissos sociais. Para compreensão da função social dos museus, a definição do Conselho Internacional de Museus assegura: Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e de seu meio ambiente para fins de educação, estudo e lazer (ICOM, 2007). É no potencial educacional do museu que projetos e programas vêm oportunizando práticas inclusivas de democratização do acesso aos bens da cultura a diferentes grupos sociais. No âmbito dos museus, o Núcleo de Ação Educativa (NAE) do MHSC compartilha da definição de exclusão social compreendida por Aidar, que se refere aos “processos pelos quais um indivíduo, ou um grupo de indivíduos, encontra-se com acesso limitado aos instrumentos que constituem a vida social e são, por isso, alienados de uma participação plena da sociedade em que vivem”(AIDAR, 2002). Nesse contexto, seria possível verificar que, no Brasil, grande parcela da sociedade encontra-se excluída dos espaços museológicos, devido a questões econômicas, sociais e também políticas. Seguindo essa mesma lógica, pode-se considerar que os sujeitos em situação de privação de liberdade dentro do sistema prisional encontram-se inseridos nesse fenômeno de exclusão social. A população carcerária, tendo seus direitos civis e políticos suspensos, seria consequentemente o público mais excluído do espaço do museu e do acesso ao patrimônio cultural. Daufemback salienta que a prisão “ parece operar na legitimação dessa rejeição, pois nomeia e localiza um grupo de pessoas que material e simbolicamente não fazem parte dos valores da sociedade” (DAUFEMBACK, 2005). A própria punição por pena de reclusão, muitas vezes, cria visões discrimadas de marginalização do indivíduo, operando, reforçando e até ampliando a ideia de rejeição na reintegração social. 9

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14906&Itemid=866

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Ao considerar que as dinâmicas sociais e as instituições limitam alguns grupos de uma ampla participação na sociedade, Aidar argumenta que “os museus, como instituições culturais, podem executar um papel numa rede de elementos excludentes, ou por oposição, serem ferramentas para a inclusão social” (AIDAR, 2002). Para combater esse complexo quadro de exclusões, além de desconstruir visões cristalizadas, superando representações preconceituosas sobre determinados grupos sociais e parcelas da população, é necessária: “uma atuação em rede que perpasse serviços sociais, civis e governamentais, e meios que possibilitem a participação política, econômica e cultural dos grupos em questão” (CHIOVATTO & AIDAR, 2009). Contribuir para o desenvolvimento social, combater as desigualdades e promover a inclusão de públicos que tradicionalmente não são frequentadores dos espaços museais têm sido também objetivos das ações educativas e culturais realizadas através dos setores e/ou núcleos educativos. Tais ações encontram-se inseridas no campo da educação não-formal e promovem experiências de diversos públicos no contato com o patrimônio cultural. A Educação Patrimonial é: um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da autoestima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural (HORTA et al.,1999, p.6). As ações desenvolvidas pelo NAE/MHSC visam, além de oportunizar espaços de construção e troca de conhecimentos de forma interativa, garantir uma educação crítica, reflexiva, estética e artística, bem como promover a inclusão sociocultural e a acessibilidade de públicos diversos. No ano de 2009, estabeleceu-se o início do Projeto CONSTRUINDO – desenvolvido pelo Núcleo de Ação Educativa do Museu Histórico de Santa Catarina, com o objetivo de promover o acesso de reeducandos da Penitenciária Estadual de Florianópolis ao patrimônio cultural de três museus vinculados à Fundação Catarinense de Cultura: Museu Histórico de Santa Catarina (MHSC), Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina (MIS/SC) e Museu de Arte de Santa Catarina (MASC). O referido Projeto enfatiza a importância do acesso ao patrimônio cultural e da educação patrimonial, como instrumentos de integração e inclusão sociocultural de indivíduos submetidos ao regime de privação de liberdade. Desde a década de 1980, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC)10 mantém um Contrato de Prestação de Serviços de mão de obra com a Penitenciária Estadual de Florianópolis11. A FCC tem como missão valorizar a cultura através de ações que estimulem, promovam e preservem a memória e a produção artística catarinense. Além de executar ações de apoio e desen10 11

Órgão da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte / Santa Catarina. Órgão da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa do Cidadão.

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volvimento da área cultural do estado de Santa Catarina, estão, sob sua responsabilidade, várias instituições culturais, entre as quais os museus mencionados – MHSC, MIS/SC e MASC – e o Centro Integrado de Cultura Henrique da Silva Fontes (CIC), complexo cultural que abriga museus, teatro, cinema e oficinas culturais. A Penitenciária Estadual de Florianópolis, instituição com a qual a FCC mantém o referido Contrato, está situada geograficamente vizinha ao CIC. O complexo penitenciário abriga aproximadamente 950 presos do sexo masculino, maiores de 18 anos. Cerca de 21012 deles encontram-se em regime semiaberto, que possibilita uma vigilância menos rigorosa, estruturado para que o indivíduo possa trabalhar e estudar. Cada três dias trabalhados resultam em um dia de remissão de pena. Há, no Contrato entre a FCC e a Penitenciária, dez reeducandos que realizam trabalhos principalmente no CIC. A presença deles nos espaços culturais do CIC é diária em serviços de manutenção, tais como: jardinagem, limpeza do estacionamento, pinturas, pequenos reparos, entre outros, sempre sob a supervisão de um técnico da FCC/CIC. A participação dos integrantes do grupo, cuja faixa etária varia entre 23 e 55 anos de idade, é intermitente, pois podem ser substituídos por condutas de comportamento ou pela liberação do alvará de soltura. O grupo é formado por indivíduos que possuem, em comum, histórias de violência e/ou delitos. É este número relativamente pequeno de pessoas que compõe o grupo participante do Projeto CONSTRUINDO. A primeira visita realizada pelos reeducandos ao espaço expositivo do Museu Histórico de Santa Catarina13 foi promovida em agosto de 2009, após uma semana de trabalhos de limpeza efetuados pelo grupo nos muros do Museu. Criou-se uma oportunidade de aproximação desse grupo, como público visitante, a fim de conhecer esse patrimônio cultural, como sujeito de direito. Juntamente com os órgãos e setores responsáveis, foi possível concretizar o acesso do grupo a uma visita mediada ao museu, mediante a dispensa de um período de trabalho. Com a repercussão positiva dessa primeira visita entre todos os envolvidos, principalmente entre os visitantes, foi possível sensibilizar e mobilizar técnicos, setores e órgãos envolvidos na ação, com a finalidade de viabilizar a continuidade das visitas ao Museu. As condições favoráveis e o caráter educativo do Museu reforçam e contribuem para que novos olhares sobre esse público possam ampliar oportunidades de realizar ações, em um processo educativo continuado.

Dados informados pela Penitenciária Estadual de Florianópolis, em 23/11/2015. Localizado no centro de Florianópolis e instalado no Palácio Cruz e Sousa, seu acervo é composto por móveis e objetos diretamente ligados à história política do Estado, sendo um dos maiores patrimônios sua edificação, importante exemplar da arquitetura eclética do final do século XIX.

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O Projeto CONSTRUINDO vem sendo coordenado e mediado por mim e pela arte-educadora Márcia L. Carlsson, ambas do Núcleo de Ação Educativa do MHSC14. Assim, parcerias, planejamentos, agendas compatíveis, recursos humanos, estrutura e transporte foram viabilizados para que, em 2010, novos encontros fossem realizados, evidenciando-se a proposição de um Projeto, com visitas sistemáticas do grupo de reeducandos ao Museu, através de encontros mensais. O objetivo inicial tinha como proposta o acesso, a integração e a participação do grupo nas ações educativas socioculturais, oportunizando experiências, percepções, descobertas e apropriações da pluralidade de sentidos e narrativas presentes nas exposições apresentadas no espaço do MHSC. No entanto, em 2012, foi possível o desdobramento do Projeto CONSTRUINDO em ações no MIS/SC15 e no MASC16, ambos localizados no Centro Integrado de Cultura. Esse desdobramento do Projeto permite aos reeducandos o contato com acervos e linguagens presentes nas diferentes tipologias dos museus, propiciando novas experiências de subjetividade e de produção de conhecimento, a partir da cultura visual e do patrimônio cultural. A escolha do nome do Projeto foi amplamente discutida pelo grupo durante os encontros iniciais, mas somente durante o 6º encontro, com a presença do artista Edgar Bessa, no ano de 2010, decidiu-se por CONSTRUINDO. Esse nome possui a referência de algo que está em construção coletiva, considerando que o sufixo INDO, em itálico, sugere este movimento dos próprios participantes (reeducandos), num processo contínuo de passagem, de fluxo e de mudança. A logomarca do Projeto, criada pelo reeducando Marco Antônio e definida sob orientação de Moysés Lavagnoli - designer gráfico da FCC -, é aprovada pelo grupo em agosto de 2013. Para o desenvolvimento do Projeto, optamos pela utilização do aporte metodológico da pesquisa-ação Thiollent (1996), por meio da qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação estão envolvidos de modo cooperativo e participativo17. Como suporte teórico, destacamos conceitos de “mediação”, em Vygotsky (1989); de “dialogia”, em Bakhtin (1992; 2003); de “relações de poder”, em Foucault (1973; 2003; 2005); de “educação patrimonial”, em Outras informações sobre o Projeto constam de publicações Castellen;Carlsson, 2013 e Castellen;Carlsson, 2015 citadas nas referências ao final deste artigo. Em setembro deste ano, ingressou na equipe do NAE/MHSC a arte-educadora Cristiane Ugolini. 15 Criado em 1998, com a finalidade de preservar, documentar, pesquisar e comunicar acervos audiovisuais de relevância nacional e, preferencialmente, do estado de Santa Catarina. Seu acervo está divido em cinco Coleções: Filmes; Som; Imagens; Equipamentos e Registros Textuais. 16 Criado em 1949, como Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), seu acervo é representado por artistas nacionais e estrangeiros e possui mais de 1.750 obras entre pintura, gravura, escultura, fotografia, objetos e outras. 17 Com base empírica, esta metodologia é concebida e realizada em estreita cooperação entre as partes, e dá lugar a uma grande diversidade de propostas nos diversos campos de atuação social. Idealizada como metodologia de articulação do conhecer e do agir, a pesquisa tem como objeto de investigação a situação social e os problemas de diferentes naturezas, havendo, durante o processo, um acompanhamento das decisões, das ações e de cada atividade dos sujeitos envolvidos (Thiollent, 1996). 14

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Horta (1999); de “objeto gerador”, em Ramos (2004); e de “inclusão social aplicada a práticas dos museus”, em Aidar (2002). Os procedimentos para a atuação durante a visita do grupo são selecionados a partir de objetos e conteúdos geradores de conhecimento e reflexão presentes nas exposições. Tais procedimentos proporcionam a elaboração de ações flexíveis e compartilhadas com os participantes, como forma de estabelecer relações construtivas com o grupo, assim como iniciativas comunitárias. Inicialmente os participantes recebiam com certa desconfiança a oportunidade de escolher e dialogar com liberdade de expressão. As visitas mediadas às exposições de longa e curta duração, realizadas nos três museus com tipologias diferentes (história, arte, imagem e som), permitem não apenas ampliar o repertório visual em diferentes linguagens e técnicas, como também reflexões acerca de novas narrativas, histórias e memórias. A riqueza de proposições pode ser observada a partir de alguns títulos das exposições temporárias visitadas: Isso não posso contar; Pintar o futuro; Do Conceito e da Afeição; Contaminações: Linhas da infância; Grupo de Risco; Na Pele; O Tesouro do Morro da Igreja; Pinceladas de Luz; Fotografando o Silêncio; Ritos, Ditos e Ditados: Memórias Inventadas; Guerra do Contestado: 100 anos de memórias e narrativas; Gravar: técnica e expressão; Além de 3x4; Guerreiros do bronze ao aço; O coração no Olho; Na sombra de uma origem; Diálogo entre Eros, Psique e Thanatos. Procuramos promover visitas nas exposições que proporcionem experiências, vivências, memórias e ressignificações individuais e coletivas. É possível perceber a importância das ações vinculadas ao patrimônio cultural, a partir dos diálogos dos participantes que se encontram nos relatórios dos encontros. Foram realizados 32 encontros do Projeto com o grupo de reeducandos no decorrer desses anos, totalizando 42 exposições visitadas, de longa e curta duração, em três museus da FCC, sendo dezenove visitas mediadas no MHSC, sete no MIS/SC e cinco no MASC18. São oportunizados, sempre que possível, encontros com curadores de exposições e artistas, permitindo assim o estabelecimento de diálogos e relações sobre experiências, subjetividades e processos criativos. Debates e reflexões sobre temas contemporâneos nessas práticas sociais promovem a sociabilidade e o fortalecimento de posicionamentos individuais diante do grupo sobre percepções e descobertas. Foram promovidos onze encontros presenciais com a participação de artistas, curadores e um cineasta19. Além dos encontros mencionados, foi possível, em 30/04/2010, realizar um encontro do Projeto CONSTRUINDO no Museu Victor Meirelles (MVM). Esse Museu encontra-se geograficamente vizinho ao MHSC, mas não pertence à FCC. 19 Foram convidados a participar dos encontros, os seguintes artistas e expositores: Clara Fernandes, Tercília dos Santos, Kátia Áurea, Edgar Bessa, Susana Bianchini, Giovana Zimermann, Rô Cechinel, Danísio Silva, Maria Helena Rosa Barbosa, Giliard Lach, Heloisa Caminha Bradacz e Carlos Jr. 18

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Já as oficinas temáticas e as vivências em oficinas práticas são estruturadas conjugando relações com as visitas nas exposições, sendo elaboradas diferentes metodologias, com procedimentos que possibilitem experiências significativas e interativas. É possível perceber, algumas vezes, o receio de alguns reeducandos no início dos procedimentos, talvez por acreditarem que realizam essas ações de forma incorreta, ou mesmo por inibição. Mas o fortalecimento de vínculos entre os participantes e o respeito às individualidades permitem ao grupo maior autoconfiança para a realização dos trabalhos. É possível também observar a valorização das ações e o envolvimento de todos os participantes com as temáticas propostas e com os materiais disponibilizados. Tais materiais proporcionam experiências em diferentes linguagens, bem como a descoberta de potencialidades e a autovalorização de suas próprias possibilidades. O momento das oficinas é considerado, por alguns, muito importante, pois propicia maior interação e descontração nas atividades. Até agora, foram elaboradas treze vivências em oficinas práticas de pintura, recorte e colagem, desenho, gravura, fotografia, música, palavra, narrativas, retrato e desenho com teatro de sombra; e três oficinas temáticas de patrimônio cultural e história da fotografia. Projeções de filmes que dialogam com as temáticas das exposições também permitem experiências na linguagem cinematográfica. Foram realizadas duas exibições durante os encontros: O tesouro do Morro da Igreja e Victor Meirelles - Quadros da História. Em todos os encontros, há um espaço de “rememoração”, possibilitando reavivar memórias de experiências, diálogos e reflexões em relação a visitas anteriores. É possível perceber relações qualitativas de reconhecimento com os repertórios temáticos, narrativos e visuais dos patrimônios culturais visitados. Nos horários dos encontros em visitas aos museus, as proibições e limitações de suas vidas cotidianas apontam possibilidades de outros significados, como demonstra o comentário de um dos participantes: “Neste momento sou um homem livre!” (NAE, 2010). Há compromisso e assiduidade com os calendários e as ações do Projeto, como também há espera especulativa, na expectativa de novos encontros, por parte de todos os envolvidos. Eis a fala de um dos participantes: “Se vocês marcarem o dia do próximo encontro, a gente não marca visita com a família neste dia pra poder estar aqui.”(NAE, 2014) A fim de registrar as ações desenvolvidas durante as visitas, foram elaborados instrumentos e estratégias, que foram compartilhados e autorizados pelos participantes do Projeto. São relatórios descritivos dos encontros, registros fotográficos, captação de imagens em vídeos, registros das ações nas oficinas, produções e relatos de opiniões dos participantes (reeducandos, artistas, mediadores, psicólogos, funcionários). Diversos materiais impressos, como convites de exposições, reproduções de obras de arte, folders e catálogos, são doados, quando disponibilizados pelas exposições. Faz-se necessário, ainda, avançar em metodologias de avaliação

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qualitativa, para identificar processos, experiências e conhecer os impactos das ações propostas pelo Projeto. O Projeto proporcionou, até o momento, a participação de 76 reeducandos, sendo que retornaram ao Museu, quando em liberdade, 50% dos participantes no ano de 2010. A rotatividade dos integrantes do grupo, devido à intermitência de sua participação – substituição por conduta de comportamento ou liberação do alvará de soltura –, impõe ao Projeto uma adaptação constante. Alguns indivíduos participam no decorrer de um ano ou mais, outros, em apenas dois ou mais encontros. O Projeto CONSTRUINDO contempla, além do desenvolvimento de ações integradas com as equipes dos núcleos educativos dos museus, o compartilhamento das ações realizadas com servidores de setores específicos da FCC, que são fundamentais para a realização e a manutenção do Projeto. Também são compartilhadas informações do Projeto com funcionários da Penitenciária, proporcionando interações construtivas entre sujeitos e contextos diferentes. A presença de alguns desses técnicos em três encontros, a fim de acompanhar o Projeto, fez com que também eles visitassem/conhecessem os museus e sua função social. Foi possível ampliar, também, o diálogo sobre as ações do Projeto com a representante do Programa de Educação nas Unidades Prisionais e Unidades de Intervenção da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina. Em agosto de 2010, foi oportunizada uma visita técnica ao complexo penitenciário. Experiência essa importantíssima para reconhecimento do contexto em que vivem os participantes do Projeto CONSTRUINDO. Os reeducandos consideram importante que o Projeto seja compartilhado. Sobre esse desejo deles, destaca-se o comentário de um dos participantes: “Quero que o projeto seja divulgado para olharem diferente para nós”(NAE, 2010) A FCC e suas casas vinculadas, assim como a Penitenciária Estadual de Florianópolis, são instituições mantidas e administradas pelo poder público estadual, e estão, também, sujeitas à sazonalidade de suas gestões. É nesse contexto que o Projeto CONSTRUINDO envolve sujeitos históricos diversos, que se encontram inseridos em campos de atuação com missões completamente diferentes. Em ambas as instituições tem sido possível dialogar sobre a relevância do Projeto e assegurar sua realização e continuidade. O Projeto CONSTRUINDO viabiliza iniciativas que extrapolam a ação interna da instituição e incorpora diversas experiências histórico-culturais. Ele abre novas intervenções, possibilitando a renovação de conceitos e práticas tanto para as instituições envolvidas (FCC e Penitenciária) como para a formação docente, a universidade e os próprios museus. Ao serem promovidas ações em que os reeducandos possam vivenciar e dialogar nos espaços museológicos, em contato com os códigos e significados potencializados pelos objetos do patrimônio cultural, acredita-se favorecer não só o reconhecimento desses espaços como

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lugares de direito e de cidadania, mas também de significações pessoais e comunitárias. Para Milene Chiovato, as ações de leitura, significação e apropriação dos objetos museais “apontam ao mesmo tempo para o sujeito que lê e para o mundo ao seu redor, estabelecendo um fluxo de significação entre objeto, sujeito e mundo”(CHIOVATTO in AIDAR & CHIOVATTO, 2010). É evidente e perceptível a importância e a valorização atribuídas pelo grupo de reeducandos, a este espaço/tempo aberto às visitas, narrativas, reflexões e propostas. A educação patrimonial contribui não apenas no “reforço da autoestima dos indivíduos e comunidades”, como aponta Horta (1999), mas pode ir além de informação e conhecimento, como menciona Martins: Trata-se de um processo de consciência de ser cidadão, de ser responsável pelo todo elaborado de um mundo ou parte dele. Representa uma ação não apenas para preservação, para a defesa da memória da história, do respeito e das referências tão necessárias para ser o que somos: pessoas de um lugar, com referências, pertencimentos bem peculiares que por sermos da raça humana, somos ao mesmo momento, locais e universais (MARTINS, 2012, p.190). Creio que é a partir da apropriação e ressignificação do patrimônio humano e cultural, e na implementação de ações, de forma a possibilitar a integração e a inclusão sociocultural de indivíduos privados de liberdade, que poderemos também avançar na aplicabilidade das demandas sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Creio que os resultados produzidos pelo Projeto CONSTRUINDO, possam contribuir na visibilidade de ações de inclusão sociocultural junto ao complexo fenômeno de aprisionamento, na medida em que apontam condições favoráveis para a realização de procedimentos possíveis para diversos profissionais de diferentes campos de atuação. É possível que ações dessa amplitude oportunizem pautas de reivindicação no plano institucional, legal e social, em torno de demandas e realizações que proporcionem a integração à sociedade de indivíduos em situação de privação de liberdade. As relações contemporâneas, ao reivindicarem novos olhares, promovem o rompimento de paradigmas, provocando novas práticas sociais, que contribuem na busca de alternativas para problemas sociais tão complexos como os do sistema carcerário no Brasil. São os órgãos públicos os proponentes e reguladores de “lugares culturais”, e nesses lugares são constituídas práticas sociais. Compondo muitas vezes o que Leite chamou de “cartografia do poder”, o autor observa que “os lugares singularizam-se principalmente pelas representações e práticas construídas pelas pessoas que neles interagem” (LEITE, 2004). Nesse sentido, torna-se vital a mobilização de interlocutores diferenciados nos planos institucionais, contribuindo para legitimar práticas e projetos participativos em parceria, com o intuito de in-

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corporar novos sujeitos na construção de uma nova realidade. Fortalecendo a ideia de que é possível pensar um mundo novo, com alternativas e possibilidades, Boaventura Santos afirma que “devemos buscar credibilizar, ampliar simbolicamente as possibilidades” de vê-lo a partir do presente, dando visibilidade a experiências possíveis, “que não estão dadas porque não existem alternativas para isso, mas são possíveis e já existem como emergência”(SANTOS, 2007). Penso ser consenso de todos que inúmeros desafios se apresentam para toda a sociedade. Para nós, gestores e servidores públicos (das diferentes áreas), o desafio é refletir sobre uma política atenta para a diversidade e complexidade que compõem não só os espaços institucionais, mas os espaços de sociabilidade na contemporaneidade. Conforme Boaventura Santos, [...] é preciso fazer transgressões. Buscamos o novo nos interstícios, entre as realidades, [...] de nossa sociabilidade, que estão articulados de maneira muito complexa. Precisamos migrar de um campo a outro, de um estrato a outro, de uma linguagem a outra; a transdisciplinaridade é, em parte isso. Temos ainda de buscar conceitos que venham de outros conhecimentos (SANTOS, 2007, p.48). Espero que a experiência dos participantes do Projeto CONSTRUINDO possa contribuir na reflexão sobre políticas culturais e em práticas efetivas de integração de pessoas em situação de privação de liberdade. O Projeto CONSTRUINDO, após anos de realização, foi no ano de 2015 inserido no Plano Museológico do Museu Histórico de Santa Catarina, sendo normatizado como um projeto de atuação sistemática. Assim, o projeto possibilita abrir portas, derrubando estigmas, minimizando o processo de exclusão, ampliando discussões e apontando oportunidades em contextos com múltiplas dimensões sobre políticas públicas, culturais, sociais e educacionais, com vistas à integração e inclusão social do sujeito em privação de liberdade em toda a sua complexidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIDAR, Gabriela. Museus e inclusão social. Ciências & Letras. Revista da Faculdade Porto Alegrense de Educação, Ciências e Letras nº 31. Porto Alegre, 2002. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 9ª ed. São Paulo: Ucitec, 1992.  _________.Estética da Criação Verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra, 4a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CASTELLEN, Christiane Maria; CARLSSON, Márcia Lisbôa. Olhares compartilhados: construindo diálogos com reeducandos no museu. In: I ENCONTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM CULTURA: pesquisa e produção do conhecimento para além da universidade, 2013 São Paulo. Anais CD-Rom. São Paulo. EACH USP, 2013.

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_________.CONSTRUINDO: possibilidades de ações socioculturais com reeducandos no museu. Florianópolis: FCC, 2015 Publicado em Justiç@ Revista Eletrônica da Seção Judiciária do Distrito Federal. – ano 7, n. 36 (Agosto - 2015). - Brasília: SJDF, 2015. Disponível em : http://portal.trf1.jus.br/ sjdf/comunicacaosocial/imprensa/publicacoes/revista-justica.htm _____. O Educador frente a outras realidades: educação patrimonial para pessoas privadas de liberdade do sistema carcerário. In: FONSECA da SILVA, Maria Cristina da Rosa (org.) Cadernos de docência: contribuições para a formação em artes visuais. Florianópolis : AAESC, 2015. pp 39-62 CHIOVATTO,Milene; AIDAR, Gabriela. Arte+. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2009. CHIOVATTO, Milene.  Ações extramuros: diminuindo barreiras. In: AIDAR,G. & CHIOVATTO,M. Percorrer e registrar: reflexões sobre a ação educativa extramuros da Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010. DAUFEMBACK, Valdirene. Condições de aprisionamento e condições de aprendizagem de encarcerados. 2005. 240p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de Santa catarina, Florianópolis, 2005. GOVERNO FEDERAL, Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen - junho de 2014, Departamento Penitenciário Nacional – Depen / Ministério da Justiça. Brasília DF. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/11/080f04f01d5b0efebfbcf06d050dca34.pdf Acesso em 17 de nov. 2015. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC, 1973. _________. Microfísica do Poder. 18ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 2003. _________. Vigiar e punir. 30ª ed., Petrópolis: Vozes, 2005. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia básico de educação patrimonial. Brasília: IPHAN/ Museu Imperial, 1999. ICOM – International Council of Museum. Museum Definition – 2007. In: ICOM-Development of the Museum Definition according to ICOM Statutes (2007-1946) Disponível em: http;//icom.museum/hist_ def_eng.html LEITE, Rogério Proença. Lugares da política e consumo dos lugares – nação e patrimônio cultural. In: Contra-usos da cidade: lugares e espaços públicos na experiência urbana contemporânea. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, Aracajú (SE): Editora UFS, 2004. p.34-95. MARTINS, José Clerton de Oliveira. Tempos sociais acelerados, patrimônio cultural em risco. In: BRASILEIRO, Maria Dilma Simões; MEDINA, Julio César Cabrera; CORIOLANO, Luiza Neide (orgs). Turismo, cultura e desenvolvimento [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2012. pp. 169-193. Disponível em:< http://books.scielo.org/id/7y7r5/pdf/brasileiro-9788578791940-09.pdf >. Acesso em 18 de fev. 2015. NÚCLEO DE AÇÃO EDUCATIVA. Relatório Projeto Construindo - Museu Histórico de Santa Catarina, FCC. Florianópolis, anos 2009-2015. RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto – O museu no ensino de História. Chapecó: Argos, 2004.

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SANTOS, Boaventura de Sousa. A sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências: para uma ecologia de saberes. In: Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação humana. Boitempo, São Paulo, 2007. THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez, 1996. VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS http://www.jusbrasil.com.br/topicos/301646/reeducando http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7626.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc48.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0591.htm http://pnem.museus.gov.br/wp-content/uploads/2012/08/Lei12.343-PNC-Plano-Nacional-de-Cultura. pdf   http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14906&Itemid=866 https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2010/01/politica_nacional_museus.pdf http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf

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MEDIAÇÃO CULTURAL: PROBLEMATIZAÇÕES E CONTEXTO Cintia Maria da Silva1 Renan Ribeiro Beltrame2 RESUMO: Este trabalho pretende investigar de que maneira o contexto histórico explica as transformações ocorridas na práxis do mediador cultural a partir da década de 1990, e em que medida estas mudanças interferem na qualidade pedagógica das ações educativas oferecidas por equipamentos culturais da cidade de São Paulo. Para tanto, são utilizadas referências teóricas da educação e história que embasem nossa hipótese. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Mediação Cultural, Neoliberalização da Educação.

1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo apresentar parte da pesquisa intitulada “Mediador Cultural: profissionalização e precarização das condições de trabalho” que está sendo desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes, no Instituto de Artes da UNESP. Nosso interesse é expor o contexto histórico no qual o trabalho do mediador cultural sofre transformações, e como estas interferem na relação direta com os públicos. Há, na mediação cultural, uma clara contradição: contrata-se pesquisadores críticos e qualificados, todavia, para transmitir conhecimentos (já) consolidados pelas instituições. Apontaremos nossa compreensão sobre mediação cultural, seu papel na educação e na construção de conhecimento, e também sua contribuição na formação do sujeito crítico e reflexivo, qualificado para transformar sua realidade e sociedade.

Graduada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (2010), e mestranda em Artes pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, na linha de pesquisa Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural, sob orientação da Prof.ª Dra. Rejane Galvão Coutinho. E-mail: [email protected] 2 Graduado em Licenciatura e Bacharelado em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André (2011). Pós-graduado em nível de especialização lato sensu em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (2013). E-mail: [email protected] 1

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2. MEDIAÇÃO CULTURAL NA DÉCADA DE 1990 Na cidade de São Paulo, o trabalho educativo realizado em museus e instituições culturais se inicia com a inauguração do Museu de Arte de São Paulo (1947) e do Museu de Arte Moderna (1948), que contratavam estudantes de Artes e ofereciam visitas monitoradas. Ao final da década de 1990, com a montagem das chamadas “megaexposições”, é possível notar algumas mudanças ocorridas na apresentação, divulgação e promoção de arte. Essas exposições, a exemplo das que foram montadas em São Paulo, tais como: Brasil+500, no Parque do Ibirapuera/2000; Rodin, na Pinacoteca do Estado de São Paulo/2001 e no Pavilhão da Oca/2004, garantiram que nomes de artistas e obras consagradas pudessem circular pelos corredores de museus e instituições culturais, que passaram a contar com a contribuição financeira de grandes empresas e bancos. Os novos mecenas das artes, assim como os do passado, não patrocinavam arte e cultura por simples generosidade ou filantropia. As grandes empresas e instituições financeiras utilizavam (e ainda utilizam) os incentivos fiscais para apadrinhar grandes exposições – e, em contrapartida, vincular e promover a marca da empresa, gerando mais rentabilidade. As grandes exposições causaram frisson nas cidades por onde passaram, aumentando expressivamente a rota de circulação simbólica das artes visuais. Muitas pessoas se disponibilizaram a fazer o que não era habitual: ir até museus e instituições culturais contemplar as obras dos grandes mestres (ainda que esse contato não tenha comprovadamente transformado a maneira de perceber e se relacionar com a arte). Também data desta época o inchaço numérico das visitas escolares, que começaram a inflar as estatísticas de visitação. Diante da eloquência e grandiosidade dessas exposições, se fez necessário investir na contratação e formação dos profissionais que atenderiam o grande público – afinal, estes também fariam parte do marketing realizado pelas empresas. Assim, a importância da presença da figura do mediador cultural neste período foi atender o grande volume de pessoas que frequentavam essas exposições. Naquele momento, o contexto político brasileiro era de intensa transformação: o processo de redemocratização se iniciou em 1985, mas se consolidou efetivamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O primeiro presidente eleito pelo voto popular, Fernando Collor de Mello, assumiu o poder em 1990 e, diante de graves denúncias de corrupção, renunciou à presidência da república (o que não evitou seu impeachment). Se Collor deu início ao processo de privatização no Brasil, foi pelas mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato (1994-97), que o Neoliberalismo direcionou o sistema econômico no país. Além das privatizações de empresas estatais (por exemplo, a Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletropaulo), também é notório o crescimento da privatização da cultura (WU, 2006), claramente estimulada por meio de: a) leis de incentivo fiscal: renúncia fiscal à contribuintes do Imposto de Renda (IR) que queiram financiar projetos culturais, por meio de doação ou patrocí-

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nio; b) criação das Organizações Sociais (OSs): entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, passam a administrar equipamentos públicos de arte e cultura (museus, bibliotecas, teatros) por meio de contrato de gestão firmado com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Não por acaso foi nesse período em que a discussão sobre políticas públicas para educação ganhou fôlego no Brasil. Adentrada a nova fase democrática brasileira, anunciada com a promulgação da Constituição Federal em 1988, o debate sobre educação no país ganhou novos contornos e foi colocada em pauta a ação da escola junto às temáticas pertinentes à manutenção do estado Democrático de Direitos, consolidação e defesa dos Direitos Humanos, participação cidadã e o papel da sociedade civil organizada na concepção de uma metodologia adequada à nova realidade brasileira, que entendesse e atendesse toda a gama de diversidades sociais do país na formação de sujeitos capacitados a agirem na construção daquela dinâmica societária. A prática educativa, principalmente aquela implementada em instituições de Ensino Formal, ganhava o caráter de polo de discussões sobre o agir político contemporâneo, onde profissionais da educação perspectivavam aglutinar condições para a realização de um projeto educativo emancipador. (...) a despeito das ambiguidades, é forçoso reconhecer que a década de 1980 foi marcada por um vigoroso movimento organizativo-sindical envolvendo os professores dos três graus de ensino. A organização dos educadores na referida década pode, então, ser caracterizada por meio de dois vetores distintos: aquele caracterizado pela preocupação como significado social e político da educação, do qual decorre a busca de uma escola pública de qualidade, aberta a toda a população e voltada precipuamente para as necessidades da maioria, isto é, a classe trabalhadora; e o outro marcado pela preocupação com o aspecto econômico-corporativo, portanto, de caráter reivindicativo, cuja expressão mais saliente é dada pelo fenômeno das greves que eclodiram a partir do final dos anos de 1970 e se repetiram em ritmo, frequência e duração crescentes ao longo da década de 1980 (SAVIANI, 2013, p. 404). Todavia, a nova ordem social proclamada não rompeu com os traços do desenvolvimento social brasileiro estabelecido até então. Alteradas as regras de participação nas instituições governamentais, a subordinação da classe trabalhadora à autocracia do Estado capitalista brasileiro se manteve inalterada. Além de não romper com os meios de apropriação de capitais, a Nova República deixou intactas na Constituição Federal mecanismos de manutenção da ordem

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política e social implementados pela Ditadura bonapartista Civil-militar3 que perdurou no Brasil por 21 anos, e que pretendeu superar. Não responsabilizou o Estado e não puniu os perpetradores, diretos ou indiretos, civis e militares que violaram Direitos Humanos durante o regime imposto anteriormente, e estabeleceu relações institucionais limitadoras da participação social efetiva nas decisões das políticas nacionais. A formação das novas políticas públicas para a educação brasileira não ficaram de fora deste contexto, e assim como todo o conjunto de espaços reservados para o atendimento da população, pagaram caro pela reorganização da autocracia brasileira que desarmou seu aparato militarizado e se institucionalizou para garantir a produção do valor numa nova etapa da mundialização do capitalismo. Desta forma, as concepções a respeito de uma educação emancipadora foram sufocadas. Orientadas por organizações multilaterais, principalmente BM, FMI e BID, as reformas gerenciais e organizativas do Estado brasileiro, tanto em nível federal estadual ou municipal, tiveram como pano de fundo a reorganização das forças produtivas nesta etapa de desenvolvimento econômico e social. A neoliberalização dos mercados exigiu mais do que uma remodelação da atividade industrial em nível mundial como saída de uma crise. Uma nova concepção sobre o mundo, sobre seu passado, presente e futuro, sobre as formas de sociabilidade e perspectiva da história, foi forjada para atender às necessidades da reprodução capitalista. Cultura, educação – práticas educativas –, arte, cidadania, política, esporte, lazer... a lógica do mercado cooptou a atividade socializadora e institucionalizou seu acesso, limitou-a à compra e à venda de seus produtos na perspectiva de condicionar o consumo de bens produzidos e incentivar o avanço neoliberal no acúmulo de capitais. Isto porque se fez necessário ao capital implementar um duro processo de desmonte do que se considerou como Estado de bem-estar social na Europa e nos EUA, fruto de intensa mobilização da classe trabalhadora no pós- segunda guerra mundial. Sindicatos e movimentos de lutas sociais conquistaram garantias de atendimento, por parte do poder público, em setores como saúde, previdência social, educação, transporte e moradia. Ao enfrentar a resistência dos trabalhadores no desmantelar daquela forma de gerenciamento do “Importa dizer que a institucionalização da autocracia burguesa é a expressão jurídica do politicismo, enquanto o bonapartismo é sua expressão explicitamente armada, na exata medida em que ambos são formas (no plural) de poder político de uma mesma forma de capital, de um mesmo modo de ser capitalista, que o politicismo sintetiza. No sentido de que o politicismo é a essência, tanto de uma como do outro, exprimindo a estratégia e a tática da incompletude econômica de nossa burguesia e de sua correspondente estreiteza política. /.../ Resultam, pois, dois pólos para a genuína dominação capitalista no Brasil: a truculência de classe manifesta e a imposição de classe velada ou semivelada, que se efetivam através de um mero gradiente, excluída a possibilidade de a hegemonia burguesa, no caso, resultar de e no quadro integracionista e participativo de todas as categorias sociais, que caracteriza, com todos seus limites conhecidos, a dominação de tipo democrático-liberal. /.../ Ou seja, do mesmo modo que, aqui, a autocracia burguesa institucionalizada é a forma de dominação burguesa em ‘tempos de paz’, o bonapartismo é sua forma ‘em tempos de guerra’. E na proporção em que, na guerra de classes, a paz e a guerra sucedem-se continuamente, no caso brasileiro, no caso da objetivação do capitalismo pela via colonial, as formas burguesas de dominação política oscilam e se alternam entre diversos graus de bonapartismo e de autocracia burguesa institucionalizada, como toda a nossa história republicana evidencia” (CHASIN, p. 127-128, 2000). 3

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Estado e da economia, a burguesia internacionalizada necessitou reordenar as perspectivas da classe trabalhadora, no sentido mais largo do termo. Em suma o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo. O processo de neoliberalização, no entanto, envolveu muita ‘destruição criativa’, não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologias, dos modos de vida e de pensamento, das atividades reprodutivas, das formas de ligação à terra e dos hábitos do coração. (HARVEY, 2008, p. 13). A respeito do quadro brasileiro é preciso destacar ainda a eficácia com que o traço repressivo do Estado atuou no combate aos movimentos de lutas sociais. Testado pelo mundo afora, o uso da violência monopolizada pelo Estado se mostrou como arma fundamental para a implementação do neoliberalismo. Não só as ditaduras chilena e argentina como também o governo Reagan e o thatcherismo colocavam-se escancaradamente violentos na sua ação de criminalização das forças sociais contestadoras da ordem social imposta. A ditadura brasileira deixou mais forte esta característica deste Estado de via colonial de entificação do capitalismo4, e no período de implementação do neoliberalismo no Brasil, se multiplicam os exemplos desta herança ainda calando as mentes e as bocas que se abriram no direcionamento de algo diferente do que estava sendo imposto. As perspectivas para a educação no Brasil se mostram há muito tempo reféns e órfãs de todo este processo. Reféns, pois, como qualquer outra área de discussão sobre políticas publicas no país, tem descartada, sem não antes ser ridicularizada, qualquer proposta que tenha como prerrogativa a melhoria da condição de vida dos trabalhadores, e órfã porque, no Brasil em particular, as organizações da classe trabalhadora – partidos políticos, centrais sindicais e movimentos de lutas sociais – não criam prerrogativas teórico/práticas que atendam a realidade atual e que assumam concreta possibilidade de efetivação, se não imediata, pelo menos a curto ou médio prazo. O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. “Alude-se aqui, portanto, ao passo que configuraram a forma particular da objetivação do capitalismo no Brasil – a via colonial, expressão criada por J. Chasin para designar um caminho particular hiper-retardatário, não revolucionário, marcado pela conciliação entre o arcaico e o moderno (com a especificidade de que ambos são expressões do capital), pela subordinação ao capital externo e pela superexploração da força de trabalho.” (COTRIM, p.1, 2013). 4

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O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da política e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado da saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para atender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício. (HARVEY, 2008, p.12). As práticas educativas brasileira são vítimas desta conjuntura, dominada pela lógica do mercado neoliberal. E a escola pública, pensada como polo aglutinador de discussões é sucateada e esvaziada de sentido. O ensino privado capitaneado pela financeirização mundializada assume o terreno e o horizonte da práxis formadora5 por todo o território nacional. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado aprovado em 1995 deu as bases para que serviços públicos essenciais previstos pela Constituição Federal de 1988 pudessem ser realizados tanto pelo Estado quanto pela iniciativa privada cumprindo com a tarefa de criar mercados e contribuir com suas expansões. O sistema de OSs e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) passou a ser implementado para a “realização dos serviços sociais, culturais e científicos do Estado, ou seja, estão sendo criadas organizações públicas não estatais que executam esses serviços com mais autonomia e eficiência” (PEREIRA, p. 150, 2008). Eficiência esta destacada pelo antigo responsável pelo Ministério da Administração Pública e Reforma do Estado no 1º governo Fernando Henrique Cardoso (1995/98) em 1995, Luiz Carlos Bresser Pereira, idealizador da Reforma Gerencial do Estado que recebeu apoio dos governos estaduais do período, “principalmente do governador de São Paulo, Mário Covas, e do governador do Rio Grande do Sul, Antonio Britto” (PEREIRA, p. 157, 2008). As já citadas, e outras organizações multilaterais (Organização das Nações Unidas – ONU – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO Faz-se referência neste ponto à análise de Marx na construção de sua crítica ao materialismo de Feuerbach ao identificar o trabalho (objetivo, ineliminável intercâmbio material da sociedade com a natureza) como processo matrizador ontológico-primário da socialidade. Nesta perspectiva Marx apresenta o processo de trabalho como “modelo de práxis, abrindo de vez a via para a compreensão do modo de ser e reproduzir-se do ser social enquanto gestador de totalidades complexas e dinâmicas, com legalidades e estruturas particularizadas historicamente. É esta concretização que permite a Marx uma crítica radical da ordem burguesa, na construção da teoria social de que O capital será a pedra angular.” (NETTO, p. 34, 1994). 5

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– e Organização Mundial do Comércio – OMC – por exemplo), junto ao Estado por meio de ministérios, secretarias, universidades, fundos e bancos, das empresas privadas com suas indústrias, universidades e bancos e setores da sociedade civil organizada com a formação de Organizações Não Governamentais – ONGs – OSs e OSCIPs, a partir da década de 1990 dominaram a discussão sobre cultura e educação, mercantilizaram e institucionalizaram seu fazer, seu acesso e seu desfrutar. O pensamento sobre o que é cultura, e o que é educação, sua razão e seu devir foi monopolizado por este conglomerado institucional, blindado pela lógica do mercado que, ao consolidar-se deu sentido à sua argumentação e afastou, pela exclusão, qualquer contra argumentação. No Brasil as políticas públicas para cultura e educação foram orientadas e implementadas pela proposta neoliberal dada pelo direcionamento macroeconômico do país desde a abertura das fronteiras brasileiras aos mercados internacionais no pós-redemocratização com o governo de Fernando Collor de Mello (1990/92), consolidada pelos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995/98 e 1999/2002), que implementaram as orientações do Consenso de Washington e deliberaram os processos de sucateamento e privatização do espaço público, e rearranjadas pelas presidências comandadas pelo Partido dos Trabalhadores com Luiz Inácio Lula da Silva (2003/06 e 2007/10) que estabilizaram as condições de investimentos, principalmente do capital financeiro nacional e internacional, junto à atividades do governo conservando os meios de apropriação de capitais, e realinharam o posicionamento da classe trabalhadora frente ao combate ao neoliberalismo, plano este, seguido por Dilma Rousseff (2011/14 e 2015/atualmente) O mais plausível é dizer que a manutenção da política macroeconômica de FHC não foi um fator que contribuiu para o realinhamento eleitoral do subproletariado, mas sim para o realinhamento das elites hegemônicas do bloco no poder. O apoio do subproletariado ao governo Lula, conseguido com os programas de transferência e com o aumento do salário mínimo, ao lado da manutenção da política econômica, possibilitou a manutenção da dominação da fração bancário-financeira no bloco no poder. Mais que isso, completou-se o processo de legitimação na medida em que a hegemonia restrita da fração bancário-finaceira, durante o governo FHC, torna-se uma hegemonia ampla, incorporando os segmentos fora do poder. (TEIXEIRA, PINTO, 2012, p. 26). Em âmbito estadual os governadores do Partido da Social Democracia Brasileira em São Paulo desde 1995 constituíram amplo mercado cultural e educacional no desenrolar de suas políticas públicas. Atrelados ao compromisso capitalista de valorização dos mercados, entregaram à iniciativa privada a administração dos recursos públicos para a cultura por meio

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das OSs e OSCIPs que guiaram a consolidação de um sólido mercado de arte, cultura, saber e entretenimento6. 3. PROFISSIONALIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO Diante destas perspectivas políticas e sociais, como se deu a transformação da profissão? Ao que tudo indica, a primeira geração de educadores que se consolidou na área, passou a coordenar as equipes posteriores de mediadores culturais. Estes antigos “monitores” trouxeram à discussão teóricos e pesquisadores internacionais para repensar as práticas educativas da educação não-formal no contexto brasileiro. Contudo, o fato destes atuais coordenadores trazerem outras perspectivas e compreensões sobre o que é o trabalho de mediação cultural, a precarização das condições de trabalho (ANTUNES, 2005) ainda é uma realidade. Reconhecer os mecanismos de dominação velados pela precarização do trabalho é um passo para compreender e transformar a importância deste trabalhador e sua contribuição para a formação de sujeitos críticos e emancipados. Como o mediador cultural não é um profissional regulamentado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), é mais fácil manter o trabalho precarizado. É comum encontrarmos estudantes contratados como estagiários para exercerem a função do mediador cultural, assim como os contratos terceirizados por empresas especializadas na seleção e formação de mediadores culturais – quase sempre geridas por antigos mediadores culturais. Geralmente, paga-se salários abaixo das qualificações exigidas, os contratos de caráter temporário impossibilitam o gozo de férias remuneradas e o acesso ao 13º salário. Muitas vezes não se tem acesso nem ao vale-transporte ou vale-alimentação. Adoecer é sempre uma preocupação, já que não há assistência médica. No discurso institucional, a mediação cultural é valorizada e respeitada, os mediadores culturais são “peças” fundamentais para o bom “aproveitamento” do público – a missão e valores das empresas são humanizados e solidários. Na prática institucional, os mediadores culturais são considerados transportes passivos do conhecimento curatorial e têm seu trabalho Em dias atuais a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo repassa dinheiro público para administração de OSs em todos os seus 18 Equipamentos Culturais com espaços de visitação que passaram por processos de musealização e que desenvolvem ações no âmbito da Educação Não-formal recebendo o público. De acordo com a própria secretaria, estes equipamentos culturais juntos receberam, em 2014, uma soma de 3 milhões de pessoas e todos oferecem uma grande gama de temas e distintas abordagem e opções para os públicos das mais variadas idades, e que comungam de uma preocupação central: “oferecer acesso a população menos favorecida” (www.cultura.sp.gov.br). Por conta disto, 07 destes equipamentos têm entrada gratuita (Casa Guilherme de Almeida, Casa das Rosas, Memorial da Resistência de São Paulo, Museu Casa de Portinari, Museu Felícia Leiner, Museu Índia Vanuíre e Paço das Artes), e aqueles outros 11 que cobram ingresso (Catavento, Pinacoteca do Estado, Estação Pinacoteca, Museu Afro Brasil, Museu da Casa Brasileira, Museu da Imagem e do Som, Museu da Imigração, Museu da Língua Portuguesa, Museu de Arte Sacra, Museu do Café e Museu do Futebol) oferecem gratuidade, obrigatoriamente, um dia por semana (www.cultura.sp.gov.br).

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precarizado (baixos salários, ausência de benefícios e direitos trabalhistas, acúmulo de funções, terceirizações). Eis o paradoxo: a) dos requisitos: pesquisador curioso, sujeito crítico, de espírito inquieto e criativo. b) das atribuições: reprodutor de conhecimento oficializado pelas instituições. Partindo da contradição institucional entre as exigências contratuais e da prática requerida, percebemos uma grande lacuna a ser investigada. Qual o real reconhecimento e compreensão que administradores dos equipamentos culturais fazem do papel do mediador cultural? Por que exigem pesquisadores (na teoria) se o que anseiam destes profissionais é a simples reprodução de conhecimentos consolidados? De que maneira teoria e prática se dissociam nas ações educativas? Por que precarizar as condições de trabalho do profissional responsável pelo contato direto com o público? 4. MEDIAÇÃO CULTURAL E A CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO Aqui, é importante ratificar nossa perspectiva educativa do que consideramos ser os pressupostos sobre a prática de mediação cultural (BARBOSA, CUNHA, 2010; BARBOSA, COUTINHO, 2009), e quais as qualidades e saberes que julgamos fundamentais para um mediador cultural (ALENCAR, 2008). Se em seu surgimento este profissional era formado para proferir boas palestras sobre interpretações e afirmações dos significados estabelecidos pelas sumidades intelectuais, essa concepção de trabalho se adaptou às transformações sofridas pela sociedade. Atualmente, concebemos esse profissional como sujeito ativo na construção de conhecimentos, e não mais um mero transmissor dos saberes consolidados. A mediação cultural é um encontro entre pessoas que estão dispostas ao diálogo, já compreendemos de antemão que não há discurso pronto que caiba em uma conversa, em uma troca de experiências, em percepções compartilhadas (LARROSA, 2011). Contudo, inserida na particularidade do modo de produção capitalista, a prática educativa está submetida à divisão social do trabalho estabelecida pelo mercado, na qual a dinâmica econômica e social cria espaços institucionais que tomam para si o controle da Educação tornando-a mercadoria bastante singular, controlada pelo Estado e empresas privadas na manutenção da produção social. Com o desenvolvimento do neoliberalismo, novas instituições – de claro conluio entre Estado e iniciativa privada no intuito de garantir o controle sobre a Educação – são criadas e passam a exercer forte domínio acerca das práticas educativas. Completamente mercantilizada está a educação brasileira. Desde os níveis básicos e fundamentais, até os mais altos graus de diplomação oferecidos pelas instituições de ensino superior. Cada vez mais as perspectivas educacionais são reduzidas e orientadas pela iniciativa privada nacional e internacional num contexto de economia plenamente mundializada. A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, responsável pela gestão de dezoito museus, oferece em todos estes estabelecimentos serviços de ação educativa para o atendimento ao

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público, por meio de atividades educacionais da mais variada gama de diversidades, inclusive estabelecendo parcerias junto à Secretaria de Educação do Estado. É importante observar que estes dezoito Equipamentos Culturais pertencentes à Secretaria de Cultura têm seus recursos gerenciados pelo sistema de OSs. Respondem todos às normas e metas estipuladas pelo Estado, mas têm garantida a autonomia nos processos de utilização do que lhes é repassado. Fora o financiamento do poder público, as OSs têm garantidas também a liberdade de capitanear dinheiro por outros meios como cobrança de bilheteria, patronos e patrocínio de empresas privadas e estatais dos setores produtivo ou financeiro. Questionamentos sobre o processo de configuração deste quadro, sobre o panorama educacional que esta relação estabelece, ou quais os resultados efetivados por este relacionamento, assim como a respeito das perspectivas para educação estabelecidas nesta dinâmica ofertada pelas OSs, fazem parte da práxis educativa que envolve os agentes diretamente localizados neste processo. Refletir sobre o desenvolvimento desta dinâmica permite o aprimoramento da ação educativa em equipamentos culturais e o desenrolar de perspectivas para a educação, entendida como processo formador. Dito isso, propomos apontar as qualidades deste profissional, que aparecem primeiro em sua formação. Esta se dá ao longo de sua trajetória – no curso superior, nas instituições culturais, com as equipes de trabalho e os muitos grupos atendidos. Só investigando e refletindo sobre a própria experiência é possível a este profissional perceber se está no (seu) caminho certo, se está, ou não, realizando bem seu trabalho com o público. A formação acontece tanto na ausência de condições mínimas de trabalho (que forçam a procura de caminhos e possibilidades educativas), como trabalhando em ambientes produtivos e criativos, com pessoas preocupadas com suas ações e que demonstram um grande respeito ao público atendido. A educação não-formal realizada no contexto museal (MARANDINO, 2008; MARTINS, 2003; MARTINS, 2013) deve ser aberta e flexível, mas apresenta duas características que se afetam mutuamente, interferindo na qualidade da atividade educativa proposta e dificultando o trabalho do mediador: o pouco tempo dado ao diálogo (apenas uma hora e meia de duração de visita para ouvir os participantes, contextualizar suas falas diante o objeto exposto e construir novos conhecimentos), e a descontinuidade do trabalho de construção do conhecimento. O que podemos esperar de um trabalho onde a continuidade não é esperada? Como contribuir na formação do sujeito em um único encontro de pouco mais de uma hora? É necessário que este profissional tenha claro que nós, seres humanos, somos sujeitos históricos, inacabados e inconclusos, e que a história se constrói com a mediação e interação humana. Assim como o mundo, estamos em constante processo de transformação, e cabe a cada um de nós contribuir para a construção do que virá a se tornar realidade. Desta forma, compreendendo a necessidade de construir nossas histórias coletivamente, o mediador cultural conse-

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guirá propor ao público que seu papel não é reproduzir significados oficiais, senão potencializar a relação entre espectador e bens culturais, na intenção de ampliar horizontes perceptivos, aprofundar olhares e leituras de imagem e criar novas possibilidades de compreensão. Sob esta perspectiva, é imprescindível que cada indivíduo possa observar, perceber e questionar o mundo de modo reflexivo e indagador. Se o ser humano nasceu para ser mais (FREIRE, 2013), cabe a todos a tarefa da criticidade na educação. Esse ponto é de fundamental importância para que o mediador cultural compreenda que seu papel não é transmitir conhecimento, mas sim, criar condições para a aprendizagem. Também é importante ao mediador cultural reconhecer e respeitar os saberes que o público traz consigo. O que chamamos de repertório deve ser utilizado pelo mediador com um instrumento para romper hierarquias de saberes entre professores e alunos. Partindo do princípio que o indivíduo possui muitas experiências acumuladas ao longo de sua trajetória de vida, torna-se clara a ideia de que, cada qual a seu modo, todos possuímos inteligências diversas e dignas de valoração. Saber respeitar os conhecimentos do outro é imprescindível para contribuir no processo de emancipação dos sujeitos. É preciso saber ouvir, respeitar e valorizar o conhecimento alheio – o que não significa dizer que o conhecimento trazido pelo outro, portador de sua história e identidade, seja recebido como verdade absoluta, impassível de discussão, problematização, de diálogo. Do mediador cultural espera-se uma sensibilidade ímpar, que saiba colocar em relação ao repertório do grupo: a exposição, as obras e os artistas, o seu próprio repertório e do mundo (MARTINS, 2003); deve ser comunicativo, se fazer entender; saber ouvir e trabalhar em equipe; saber respeitar e se fazer respeitado. O mediador precisa ser um pesquisador nato, um curioso que se realiza nas investigações do todo e das partes, do geral e do detalhe; tem que ser provocador e saber aguçar a curiosidade e vontade de aprender do outro. Deve ser um bom leitor de imagem e conseguir atiçar o olhar investigativo e reflexivo do público que, assim como um arqueólogo, vai cavar a terra atrás de indícios e respostas. Mas não de qualquer jeito: a investigação deve ser cuidadosa, pois dali pode surgir uma preciosidade – ou não. É preciso, inclusive, saber lidar com os não-achados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Valéria Peixoto de. O mediador cultural: considerações sobre a formação e profissionalização de educadores de museus e exposições de arte. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes/ UNESP, São Paulo, 2008. ANTUNES, Ricardo. A nova morfologia do trabalho: e o desenho multifacetado das ações coletivas. In: O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.

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BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda Pereira da (orgs.). Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Editora Cortez, 2010. BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (orgs.). Arte/educação como mediação cultural e social. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009. CHASIN, J. A Miséria Brasileira. 1964 – 1994: Do Golpe Militar à Crise Social. Santo André, Ad Hominem, 2000. COTRIM, L. Estado Novo: As Raízes do Bonapartismo. In: http://memorialdaresistenciasp.org.br/ memorial/default.aspx FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 47ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013. ________. Pedagogia do Oprimido. 54ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013a. HARVEY, D. Neoliberalismo. História e Implicações. São Paulo, Edições Loyola, 2008. LARROSA, Jorge Bondía. Dar a palavra. Notas para uma dialógica da transmissão. In: Habitantes de Babel: Políticas e Poéticas da diferença. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. MARANDINO, Martha (org.). Educação em Museus: a mediação em foco. 1ª ed. São Paulo: Geenf/ FEUSP, 2008. Disponível em: http://www.geenf.fe.usp.br/publica.php. Acesso em 30/03/2014. MARTINS, Luciana Conrado (org.). Que público é esse? formação de públicos de museus e centros culturais. Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura, Programa de Ação Cultural, 2013. Disponível em: http://percebeeduca.com.br/wpcontent/uploads/ 2013/05/Guia_%C6%92_verde_simples.pdf. Acesso em 21/09/2013. MARTINS, Mirian Celeste. Conceitos e terminologia. Aquecendo uma transforma-ação: atitudes e valores no ensino de arte. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino de arte. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 49-60. NETTO, J. P. Razão Ontologia e Práxis. In: Serviço Social e Sociedade, 44. São Paulo, Editora Cortez, 1994. PINTO, E. C.; TEIXEIRA, R. A. A Economia Política dos Governos FHC, Lula e Dilma: Dominância Financeira, Bloco no Poder e Desenvolvimento Econômico. In: http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/ publicacoes/discussao/2012/IE_Teixeira_Pinto_2012_TD006.pdf RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2002. SZYMANSKI, Heloísa (org.), SAVIANI, D. História das Ideias Pedagógicas no Brasil. São Paulo, Autores Associados, 2013. Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. http://www.cultura.sp.gov.br/

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AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS EM ÂMBITO MUNICIPAL Cláuber Gonçalves dos Santos1 Ricardo Luis Sampaio Pintado2 RESUMO: As Audiências Públicas em nível municipal constituem-se em um relevante instrumento de democratização dos processos decisórios (art. 216-A, § 1º, X da CF) na medida em que servem como meio de legitimar as políticas públicas culturais locais a partir da vinculação das decisões nela tomadas, superando-se com isso o caráter meramente informativo ou consultivo que tem caracterizado este tipo de oitiva no Brasil. Democracia, soberania popular e participação social são valores constitucionais que alicerçam diretamente a cultura e as políticas culturais, pois que sustentam a razão de ser destas políticas - a promoção, ao final, dos direitos humanos em sua dimensão cultural PALAVRAS-CHAVE: audiências públicas, vinculação, política cultural

1. INTRODUÇÃO O presente estudo busca demonstrar a relevância das Audiências Públicas como meio de concretização do princípio democrático nos processos decisórios previstos no art. 216-A, § 1º, X da CF e como instrumento essencial na realização dos princípios constitucionais formadores do sistema nacional de cultura em âmbito municipal. É sabido que a democracia e a participação do povo são indispensáveis para a manifestação da soberania popular e para a evidência da coisa pública. A democracia conjugada com a soberania popular exige a participação dos cidadãos na coisa pública. As políticas públicas implantadas pela Administração Pública ligam a todos os cidadãos e a eles se dirigem. Portanto, cabe indagar o caráter desta vinculação quando ditas ações emanam genuinamente da vontade popular quando estas são manifestadas pela própria comunidade. Os mecanismos de exercício direto da democracia no Brasil são raros de serem

Advogado, Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPEL. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural - ICH/UFPEL.E-mail: [email protected] 2 Arquiteto e Urbanista, Professor Adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, docente dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, e Museologia - UFPEL, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural - ICH/UFPEL.E-mail: [email protected]

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utilizados. O referendo e o plebiscito, desde 1988, pouco foram utilizados. A iniciativa popular possui requisitos difíceis de serem preenchidos, logo, sendo inviabilizada. A Audiência Pública representa outro mecanismo importante de democracia, constituindo-se em oportunidade para que a comunidade se manifeste sobre tema determinado, em momento e local apropriados ao tratamento da matéria. A Constituição Federal de 1988, a partir da inclusão do art. 216-A por força da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012, abre um espaço para a realização das Audiências Públicas até então não existente. Diz este dispositivo que o Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui-se por um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. Estabelece ainda como princípio basilar no inciso X a obrigatoriedade de democratização dos processos decisórios com participação e controle social. A partir desta nova ordem, as Audiências Públicas expandem o âmbito de possibilidade de intervenção popular nas decisões agora sobre o exercício dos direitos culturais e como forma de efetivação no processo de implantação de políticas públicas. Todavia, é inadequado que tais audiências tenham apenas caráter consultivo, ao contrário, também devem possuir um efeito vinculatório sobre a deliberação política dos agentes públicos, justamente pela intervenção direta dos verdadeiramente interessados que, nesse momento, opera-se pela força da inovação trazida na ordem constitucional através da Emenda Constitucional nº 71. Diante dessa perspectiva, as Audiências Públicas no âmbito municipal é o foco da análise, pois é nesse ambiente político-jurídico em que a comunidade pode deliberar com maior consciência sobre sua realidade, interferindo com propriedade sobre a condução das ações culturais do município. 2. DEMOCRACIA: A ESTRUTURA JURÍDICA QUE POSSIBILITA A PARTICIPAÇÃO POPULAR A democracia no ordenamento jurídico brasileiro é dotada de expressiva relevância normativa, uma vez que a Constituição de 1988 estabelece-a como cláusula pétrea (art. 60, §4°, II), não se admitindo sequer a possibilidade de proposta de alteração constitucional que busque suprimi-la do ordenamento jurídico. O processo democrático exige a escolha livre, por meio de voto secreto e universal, e em associação com os representantes do povo ou por decisão livre, em conjunto e direta em plebiscito, referendo, iniciativa popular (CANOTILHO, 2002, p.295) ou em algumas propostas de democracia participativa (MORAIS, 2006, p.211).

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Nesta lista inclui-se a compreensão do princípio da maioria como possibilidade da minoria ser – em outra ocasião – a maioria – ou princípios contramajoritários. Esses elementos são estruturadores do entendimento atual sobre a democracia, a falta de qualquer um pode prejudicar algum aspecto da configuração democrática. Sem a democratização no seio da sociedade, o Estado não será democrático (RIBEIRO, 2003, p.39), terá apenas a denominação. A análise destes elementos é fundamental, pois que guardam uma relação direta com o objeto desta análise. 2.1 Princípio da maioria: a incidência na democracia É sabido que os princípios jurídicos não são absolutos, mas sofrem a delimitação de uns pelos outros. Segundo Alexy (1997, p.86), uma norma-princípio é um mandado de otimização para que algo seja realizado, na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Essa realização na maior medida possível deve ser observada com cautela no caso do princípio da maioria, pois que este pode conduzir à violação das regras que impedem o governo irrestrito da maioria sobre a minoria (STERN, 1984, p.590-592). Disso decorre a proteção e inviolabilidade dos direitos da minoria (HÄBERLE, 1977, p.35-37). Essa proteção à minoria e a imposição de limites à maioria garantem a manutenção da pluralidade e das condições democráticas básicas do Estado. Tais garantias essenciais, uma vez violadas, desqualificam a própria decisão democrática e majoritária, ao retirar dignidade e autonomia (liberdade) da pessoa (cidadão) e a igualdade, além também de violar as regras garantidoras da possibilidade de alterar a posição de minoria à maioria. Sem as condições mínimas para manifestar e exercer sua vontade, a democracia transforma-se em tirania da maioria (HÄBERLE, 1977, p.244). A autodeterminação política, seja para compor a maioria ou a minoria, pressupõe a garantia da própria dignidade humana. Por conseguinte, a democracia pressupõe um Estado constitucional fundado sobre o governo do Direito e constituído na soberania popular. 2.2 Soberania popular na democracia A soberania é um componente autocompreensivo da democracia no Estado constitucional. A soberania não existe para o exercício dentro do Estado, o que se quer dizer é que os princípios constitucionais, os direitos humanos, a divisão dos poderes, a responsabilidade do governo (servidores públicos lato senso), entre outros, não são incompatíveis com a soberania. Se a soberania fosse interna, esses elementos do Estado poderiam ser suprimidos a qualquer momento, então o poder poderia ser concentrado em uma ou algumas mãos, os juízes ou outros funcionários do Estado poderiam instituir ou destituir arbitrariamente, os direitos humanos perderiam a sua centralidade e importância na vida jurídico-política. Enfim, diversas situações contribuiriam para as transformações estatais, já independentes da volonté générale (KRIELE,

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1990, p.224-225). Por isso, a soberania é inalienável, una, imprescritível e indivisível (DALLARI, 2005, p.81), e o representante do soberano não pode ser qualquer um. O representante não pode impor aos seus representados tal condição que lhe retirem a capacidade de exercer a soberania (ROSSEAU, 1996, p.23-25). Com esta perspectiva, a soberania popular não pode ser, por conseguinte, competência-competência3 do povo para qualquer decisão, pelo contrário, o próprio Estado constitucional reconduz (deve reconduzir) sua legitimidade ao poder de decisão do povo. Esta identificação baseia-se em dois elementos diferentes que remontam à Revolução Francesa, o pouvoir constituant e pouvoir constitué. O primeiro está associado junto ao povo e significa a soberania, originária e decisória sobre a Constituição, pondo-se em estado de latência no ato legislativo-constituinte. De poder soberano originário passa, com a constituição, a constituir-se pouvoir constitué, até a revogação ou ruptura da Carta Magna. A soberania popular permanece latente nas mãos dos cidadãos, como indicam alguns artigos da nossa Constituição (arts. 1º, § único e 14, I, II e III da CF). Por conseguinte, a constituição democrática diferencia-se entre os portadores e os executores do poder estatal. A soberania, neste sentido, significa detenção ou porte do poder estatal. A soberania não significa somente o exercício do poder pelo próprio povo, mas que o poder emanado está dividido e é exercido em diversos órgãos constitucionais, em favor e com o consentimento do povo. No Estado constitucional, determinadas competências e direitos, na grande maioria, são dirigidos ao povo, como a eleição e a votação (Art. 14 da CF), a colaboração partidária (Art. 17 da CF), a união (Art. 5º, XVII, da CF), a reunião (Art. 5º, XVI, da CF), a petição (Art. 5º, XXXIII e XXXIV, da CF), a educação (Art. 6º da CF), a manifestação pública da opinião ou do pensamento (Art. 5º, IV, da CF), a liberdade de ir, vir e ficar (Art. 5º, XV, LIV e LXVIII, da CF) etc. Para o Estado constitucional, a soberania do povo significa o pouvoir constituant e a portadora do poder do Estado. Ele só pode constituir-se com a liberdade e com a democracia (KRIELE, 1990, p.226), com pleno respeito à dignidade humana. No regime democrático, o povo fica com o poder soberano latente e capacitado para agir. Este é o modelo de Estado de ROUSSEAU, o mesmo de HOBBES4, mas, para este, com outro nome de governo. A soberania monárquica, a popular ou de seus representantes não estão dentro da constituição, mas sobre ela. O significado prático é que a soberania popular pode suprimir A competência-competência indica a possibilidade soberana de decidir sobre quem e quando deve competir qual competência. A faculdade desta alta competência pode indicar ou deter cada competência do Estado (KRIELE, 1990, p.87). 4 Para o autor do Leviatã, a finalidade e o desígnio dos Homens condizem com a restrição sobre si mesmos de viabilizar a convivência na república como precaução para com a própria conservação e satisfação. Para ele, a diferença das res publicas está na distinção do soberano. Quando o representante é um, tem-se a monarquia, quando uma assembléia é de todos, tem-se uma democracia (governo popular) e quando de apenas de uma parte, chama-se aristocracia. A tirania e a oligarquia são as mesmas formas de governo, mas detestáveis (HOBBES, 2003, p.143 e 158-159). 3

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ou romper as condições reais-jurídicas da liberdade individual, com a qual seria suprimido, ao mesmo tempo, as condições reais da democracia (KRIELE, 1990, p.226-227). A soberania popular também é delimitada pelo próprio Estado constitucional enquanto Estado democrático e constituído, uma vez que através da liberdade e da dignidade humana, cria a necessária condição para a concretização da democracia. Para que a democracia fundamente, em última análise, o Estado como democrático, é necessária a participação popular, ou seja, o governo do povo se manifesta por meio de mecanismos eletivos realizados de forma livre e igualitária, na observância do princípio da legalidade por parte do Estado, na colaboração cotidiana do cidadão e em muitos outros mecanismos (KRIELE, 1990, p.133-136). Na perspectiva de uma democracia cidadã, o processo de decisão política, principalmente as de graves consequências, deveria estar ligado à formação da vontade pública do cidadão e direcionado ao bem público (SCHACHTSCHNEIDER, 1994, p.25), daí se concluir que não se pode estabelecer o parlamento como instância única de manifestação democrática, carecendo de um aumento do local de seu exercício e das formas como ela se realiza, seja direta ou indiretamente, além de se pensar em mecanismos de representação das classes sociais. No caso brasileiro, nossa democracia possui mecanismos adequados para colocar em prática a soberania popular, ao proporcionar o exercício desta soberania ao legítimo detentor. O processo democrático realiza-se na liberdade de admitir um discurso em torno da admissão da verdade e da correção (SCHACHTSCHNEIDER, 1994, p.103) baseada na pluralidade de opiniões, de sentimentos e de conhecimentos, tendo sempre a participação do povo. Verificado que a soberania popular se manifesta mediante a realização do processo democrático e que a vontade pública deve ser buscada além da que é manifestada através do parlamento, resta saber de que modo as Audiências Públicas inserem-se neste processo como legitimadoras e fortalecedoras da atuação das esferas legislativa e executiva municipais e como corroboradora dos princípios acima tratados. 3. AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO As Audiências Públicas são consideradas instrumentos recentes no sistema juspolítico brasileiro. Sua aparição só foi ocorrer a partir da instalação e dos debates promovidos pelas Subcomissões Temáticas da Assembleia Constituinte de 1988, por força do art. 24 do Regimento Interno regrador desta Assembleia, dado o longo tempo ditatorial vivenciado até então no país. O ordenamento jurídico brasileiro permite a utilização das Audiências Públicas em várias situações. No âmbito constitucional os arts. 29, XIII, 194, § único, 198, III, 204, III e 225 da Constituição Federal apontam, de forma implícita, a utilização desta forma participativa. Já o art. 58, § 2º, II é categórico ao afirmar a sua utilização pelas Comissões Temáticas do Congresso Nacional.

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No âmbito infraconstitucional, a lei de licitações (Lei 8.666/93, art. 39), o Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01, arts. 43, II e 44) e os casos relacionados ao setor elétrico (art. 4º, § 3º da Lei 9427/96, que instituiu a ANATEL), entre outros, estabelecem a obrigatoriedade das Audiências Públicas para a tomada de decisões executivas e legislativas. Como se pode observar, a opção do legislador foi estabelecer um mínimo de casos que entende seja indispensável a realização da participação direta da sociedade através desta modalidade; vez que este processo garante à comunidade diretamente envolvida o direito de manifestação, permitindo uma maior eficácia e legitimidade jurídica e política das decisões (GORDILLO, 2003, p. XI-10). 3.1 Audiência Pública no âmbito municipal e o princípio democrático à luz do art. 216-A da Constituição Federal As Audiências Públicas são um importante mecanismo de participação da sociedade na atividade legiferante e administrativa do Município. Durante o processo legislativo municipal, por orientação constitucional (artigo 58, § 2°, ll), deverão ser realizadas na fase constitutiva, no âmbito das Comissões Temáticas. Todavia, não há no ordenamento pátrio uma lei geral que oriente o procedimento para sua realização. Em razão disso, a literatura jurídica sugere que o procedimento deve submeter-se aos princípios constitucionais que norteiam exercício do poder político de forma democrática, em especial o princípio democrático, funcionando como ferramenta útil de técnica social na tentativa de diminuir a controvérsias no âmbito da sociedade civil e de tomada de decisões que sejam consensualmente aceitas (CAVALCANTE, 2007, p.2). A eficiência na realização das Audiências Públicas será atingida na medida em que o Poder Legislativo e Executivo contemplarem os diversos pontos de vista expostos pelos administrados, possibilitando a mais ampla discussão a respeito dos assuntos expostos, para que ao final seja possível a obtenção da melhor decisão, sobretudo legítima. Cabe ressaltar que, como forma de assegurar a plena consecução da participação popular no âmbito do processo legislativo, as Câmaras de Vereadores devem regulamentar a prática de Audiências Públicas em consonância aos princípios da legalidade, do contraditório, da igualdade e da busca da verdade material, tendo em vista que a plena realização dos mecanismos da democracia semidireta, vale dizer, atribuindo aos mecanismos eficácia deliberativa, dependem de edição de leis que regulamentam seus aspectos, para que possam ser devidamente utilizados (MENCIO, 2007, p.67). Já o Poder Executivo tem nas Audiências Públicas um instrumento de efetivação das políticas públicas na medida em que a tomada de decisões fica respaldada pelos próprios interessados por contemplar suas necessidades.

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3.2 A vinculação dos debates das Audiências Públicas à luz do princípio democrático A efetividade do resultado das decisões proferidas em Audiências Públicas é tema bastante controverso na literatura jurídica. Questiona-se se são decorrentes da conjugação do direito de petição e de informação. De um lado, autores como Perez (2004), Mencio (2007), Soares (2002), entre outros, defendem que o resultado da Audiência Pública não vincula a decisão política a ser tomada, chegando a afirmar que os institutos de democracia participativa, nos quais estão incluídas as Audiências Públicas, não podem sobrepor- se aos de democracia representativa. Segundo Perez (2004), as Audiências Públicas integram os institutos de participação popular de caráter não vinculante. Para o autor, o instituto tem caráter consultivo ou meramente opinativo; pois que consistiria em uma sessão pública de debates destinada ao esclarecimento e para a discussão dos aspectos relacionados à decisão a ser tomada. No mesmo sentido, Mencio (2007, p.155) argumenta que uma lei não pode estabelecer a vinculação dos resultados sob pena de ferir o princípio da democracia representativa, que autoriza que poucos escolhidos decidam em nome de muitos cidadãos. Segundo a autora, no âmbito do Processo Legislativo Municipal, os vereadores, após oitiva dos diversos pontos de vistas, têm ampla liberdade para incorporar ou não o anseio da população em um projeto de lei. Esta separação entre vinculatividade ou não das decisões tomadas no âmbito das Audiências Públicas revela um fenômeno interessante; é que no Brasil as Audiências Públicas realizadas sem um procedimento previamente conhecido pelos participantes transformaram-se em Town Meetings (GORDILLO, Cap. XI-10), ou seja, manifestos populares meramente consultivos, de caráter informal, abertos ao público de forma ilimitada para uma troca livre de opiniões entre a autoridade e o cidadão a respeito de um tema específico, confundindo-se os institutos. Aliados à corrente doutrinária que apregoa a vinculação dos resultados das decisões das audiências públicas estão autores como Moreira Neto (2007), Oliveira (1997), Fonseca (2003), entre outros, para os quais o instituto constitui-se em um mecanismo de afirmação do Estado Democrático de Direito. Conforme Moreira Neto (2007), as Audiências Públicas têm como principais características a formalidade de seus procedimentos e a vinculação de seus resultados, posto que conferem legitimidade às decisões dos agentes públicos. Nesse sentido, Fonseca (2003, p.301) assevera que a Audiência Pública é uma forma de efetivação dos princípios do Estado Democrático, do Estado de Direito e da participação popular, constituindo-se em importante vertente de prática democrática, tomada em sua plena concepção doutrinária, o que significa a possibilidade de acesso e exercício do poder. Para os autores acima referidos a eficácia vinculatória está condicionada à existência de previsão legal, sob o argumento de que o exercício direto do poder pela população, com a dispensa dos representantes políticos, deve dar-se através de uma lei especifica. Oliveira (1997), inclusive, atrela a eficácia vinculatória do instituto conforme os vários graus de intensidade e

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níveis de profundidade alcançados durante o processo participativo, que dependerão da fase em que é realizada a Audiência Pública. Se realizada durante a instrução, será apenas informativa, salvo disposição legal em contrário; todavia, se realizadas em fase decisória, o agente público não poderá afastar-se do resultado obtido com o debate. Observa-se que ambas as posições reconhecem as Audiências Públicas como um mecanismo eficaz ao aperfeiçoamento da democracia, no entanto, a vinculação ao resultado está na aceitação ou não do exercício simultâneo do poder entre a população e seus representantes. Nota-se, dessa forma, que uma solução razoável para a controvérsia que há em torno da vinculação das decisões advindas dos debates das Audiências Públicas encontra-se na observância ao sentido que deve ser dado à democracia. 3.3 Audiências Públicas e processos decisórios no âmbito cultural No âmbito cultural, a vinculatividade das decisões nas Audiências Públicas agora encontra suporte também no art. 216-A da Constituição Federal que, por força da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012, em seu inciso X, preconiza a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social” entre os princípios regedores do Sistema Nacional de Cultura. Por força da inovação constitucional, a Carta Magna confere às Audiências Públicas a força normativa necessária, agora clara, para que seus resultados produzam efeitos no âmbito municipal, na medida em que as questões locais relacionadas aos direitos culturais possam ser discutidas diretamente com a comunidade envolvida, num modelo de consolidação das políticas públicas culturais, além de permitir maior eficiência na gestão destas políticas e na publicidade dos atos legislativos e executivos. À luz desse entendimento, para as audiências realizadas durante o processo legislativo onde o tema é a cultura, não há que se cogitar a eficácia meramente informativa, tendo em vista que o procedimento terá sempre caráter decisório, já que a finalidade é a aprovação de um projeto de lei; tratando-se do âmbito da Administração Pública, sua adoção deve necessariamente ocorrer da mesma forma, pois a decisão de quais políticas públicas (ações municipais) serão tomadas em relação aos fenômenos culturais deve também ser objeto de decisão popular de modo a que se realize o princípio democrático – norma-princípio - na maior medida possível. A adoção das Audiências Públicas como meio de realização dos processos decisórios no âmbito cultural tem agora força normativa e, como tal, exige comportamentos a ela alinhados. Sua implementação através de regras que visem tornar efetivos os mecanismos de participação popular na tomada decisões de política cultural, portanto regras de procedimento, não é de forma alguma conflitante com o sistema constitucional brasileiro; ao contrário, é com ele perfeitamente compatível.

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Assim, percebe-se que a vinculação do legislador ou do gestor público ao resultado dos debates da Audiência Pública é consequência do regime democrático e da aplicação do princípio da participação social no exercício dos direitos culturais e, como tal, não pode ser afastada. Do contrário, estar-se-ia ferindo o princípio democrático ao não respeitar a soberania popular sobre estas questões. Pode-se dizer, destarte, que a participação popular por meio da democracia representativa pode ser exercida simultaneamente à prática da democracia participativa que a Audiência Pública possibilita efetivar, posto que “todas essas modalidades de participação em relação à legitimidade a que visem são igualmente essenciais à realização de uma democracia plena; por outro lado, a participação restringida ou limitada a um aspecto de legitimidade, com esquecimento dos demais só realiza uma democracia parcial” (MOREIRA NETO, 1992, p. 27-28). Nos Municípios, a implementação da democracia participativa por via das Audiências Públicas não implica abandono da forma representativa nem a adoção de um regime misto, em que parte das decisões possam ser tomadas pelos munícipes e outra pelos governantes. Na verdade, o que se tem é a abertura dos Municípios para uma maior participação da população, sobretudo na elaboração das leis locais e no programa executivo, num verdadeiro compartilhamento das decisões. A vinculação política promovida pelas Audiências Públicas não é oposta ao regime representativo, ela é sim afirmadora deste próprio regime. Entender de forma contrária significa não só dissociar o vínculo entre representantes de representados, como também invalidar a própria razão de ser da representação. Nessa linha de argumentação, Falcão (2004) pondera que ainda que a democracia brasileira seja predominantemente representativa, não é impróprio reconhecer a presença concomitante de democracia direta e participativa no ordenamento, de modo que esses modelos não são mutuamente excludentes. Como caracterizadora e concretizadora do princípio democrático, permite estabelecer nova determinação do modo como se quer ser governado (MOREIRA NETO, 2007, p.257) proporcionando que o agir do Município esteja coadunado com os interesses predominantes da coletividade. Além disso, as Audiências Públicas são instrumentos hábeis à legitimação das leis uma vez que o processo legislativo garante apenas que as estas sejam elaboradas em consonância ao princípio da legalidade. Não garante, contudo, a legitimidade das normas ou mesmo a eficácia. Da mesma forma, as decisões municipais devem ser precedidas de um amplo debate público mediante um programa que seja claro e detalhado para permitir uma eficaz discussão, pois que estas decisões impactam toda a coletividade. É preciso evidenciar que a atividade legiferante municipal se alicerça no consenso e que a intensidade da coerção, característica da lei, está diretamente vinculada ao grau de participação da sociedade na elaboração da norma, daí porque tanto mais a sociedade possa participar e ver

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observado seus anseios, tanto menor será o grau de coerção. Nesse aspecto, o Município tem papel fundamental, por ser forma de Administração Pública mais descentralizada e mais próxima do cidadão e de suas aspirações sociais. Deve, portanto, fomentar debates com a população em torno da cultura que objetiva proteger e resguardar, produzindo canais de participação popular, sobretudo durante o processo legislativo e na formulação de políticas públicas municipais de realização dos direitos culturais. As decisões sobre os direitos culturais obtidas por Audiências Públicas legitimam a decisão do Poder Público e fortalecem a tutela aos direitos culturais, consolidando a atuação do Município, seja no plano normativo (legislativo) seja no plano executivo – realização das políticas públicas culturais - que são de transcendência social. Por serem os direitos culturais de múltiplas expressões e ante a diversidade dos fenômenos culturais a serem protegidos, as Audiências Públicas tornam-se um mecanismo idôneo de formação de consenso da opinião pública a respeito da juridicidade e conveniência da atuação do Município no âmbito cultural, assim como conhecer a compreensão da comunidade sobre os temas antes de comprometer-se formalmente com a diretriz política a ser implementada. As Audiências Públicas mostram o sustento fático, ou a sua ausência, ao que se quer decidir sobre os bens e direitos culturais, permite aos agentes públicos e ao cidadão formar opinião e legitimar a atuação do Município, cumpre com o princípio da transparência pública nas decisões e fortalece a decisão jurídica sobre a matéria, gerando um consenso de opinião e devolvendo ao cidadão o exercício do poder. 4. CONCLUSÃO O Estado brasileiro a partir de 1988 trouxe em sua Constituição a democracia com elemento estruturante e organizador da relação entre o jurídico e o político. Se for verdade que o Brasil passou pelo processo de redemocratização, também é verdade que os instrumentos utilizados nos países ditos democráticos estão aqui presentes – como é o caso das Audiências Públicas. A democracia e seus princípios que a ela se relacionam encontram na delimitação constitucional o ponto de equilíbrio para o processo democrático saudável. A participação dos cidadãos no processo democrático não pode ensejar que se criem novos instrumentos de dominação, muito pelo contrário, trata-se de verificar nos novos tempos as formas mais eficazes e de densificação da participação popular, a partir da realização e efetivação da soberania popular na democracia. A realização das Audiências Públicas não pode ser vista como mera formalidade na realização do processo legislativo. Ela permite o resgate da participação popular diretamente nas decisões de seu interesse, no espaço que lhe é próprio – o parlamento. Se o povo participa diretamente das questões políticas locais, expondo suas necessidades, como ignorar, por completo, as propostas realizadas? Nenhum sentido tem em ouvir o povo e ignorar suas pretensões no

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âmbito legislativo e executivo. A lei não é recomendação. A Administração não é absoluta e independente. A Constituição Federal agora de forma explícita coloca no centro da realização dos direitos culturais a participação popular nos processos decisórios e permite que as Audiências Públicas tornem-se mecanismos de efetividade dos princípios constitucionais aqui desenvolvidos. Toda norma é eficaz, ou possui um mínimo de eficácia. Quando a sociedade se organiza e discute o tema está afirmando os princípios constitucionais formadores do Estado brasileiro – a participação popular, a igualdade, a dignidade humana. O legislativo e o executivo sempre foram e sempre serão o eco dos anseios populares e devem ser capazes de entender e refletir sobre os anseios sociais, convertendo-os em norma aquilo que o povo reclama. O fato do Estado brasileiro ainda encontrar-se numa forma embrionária sobre a aplicação e desenvolvimento das Audiências Públicas não mais agora serve como justificativa para o avanço na utilização deste instituto. É preciso avançar. O legislador constitucional já deu o primeiro passo.

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MODOS DE VIDA, REFERÊNCIA CULTURAL E AMBIENTE: NARRATIVAS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS DE PATRIMÔNIO Claudia Feierabend Baeta Leal1 Luciano de Souza e Silva2 Mônica Castro de Oliveira3 RESUMO: A partir de exemplos ficcionais e não-ficcionais de construções de barragens e dos efeitos destas sobre os modos de vida das populações e as regiões de que são deslocadas, propõemse com esta comunicação destacar os sentidos dessas barragens para as comunidades atingidas e pensar de que maneiras e em que medida o patrimônio cultural, por meio do licenciamento ambiental, pode significar a afirmação e a proteção dos modos de vida das comunidades. Tratase de analisar o licenciamento ambiental como política pública que pode significar formas de preservar tais modos de vida e referências culturais, afetivas e espaciais, entendendo-o como contexto de discussão sobre a própria noção de patrimônio cultural. PALAVRAS-CHAVE: Licenciamento ambiental, preservação, patrimônio.

Divinéia, Mato Grosso, 1950. A iminência da construção de uma barragem para desviar o curso do rio Jurapori a fim de torná-lo navegável em toda sua extensão – barragem essa que causaria a inundação da pequena cidade – mobilizou seus moradores, assim como engenheiros da companhia responsável, que tinham como tarefa arrefecer as animosidades e resistências ao empreendimento. Por meses, no meio das atribulações domésticas, familiares, amorosas, políticas do cotidiano de seus moradores e forasteiros, discutiu-se e disputou-se acerca de tal construção. Por um lado, da parte dos moradores, colocava-se a defesa, por vezes violenta, daquele modo de vida há tempos ali assentado, das relações sociais, familiares, afetivas de seus habitantes, das pequenas propriedades conquistadas a duras penas; por outro, no discurso dos Doutora em História Social (Unicamp); técnica em história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), professora do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN; [email protected] 2 Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN; técnico em arqueologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); [email protected] 3 Mestre em História (UFF), Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (IPHAN); técnica em história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), superintendente do IPHAN/ Rondônia; monica. [email protected] 1

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responsáveis pela barragem, argumentos em prol do progresso, do desenvolvimento, do interesse coletivo.4 Sobradinho, Bahia, 1977. Os municípios de Juazeiro, Sento Sé, Xique-Xique, Remanso, Casa Nova, Pilão Arcado convivem com o trânsito de caminhões e forasteiros, por causa da construção da barragem de Sobradinho, que inundaria mais de 1000 km2 e entraria em operação em pouco tempo. A represa tiraria toda a gente de lá a partir de 1979: debaixo d’água, lá se ia a vida inteira das comunidades que moravam na região havia gerações e que teriam que ir embora por medo de se afogar. Aos moradores, restava tentar organizarem-se e unirem-se, local e nacionalmente, em torno das demandas de “indenização justa” e, mais tarde, de “terra por terra”, nos primeiros passos para a criação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).5 Javé, 2004. A cidade estava com sua existência comprometida, pois uma barragem havia sido aprovada e Javé estava no caminho das águas. A população havia enviado emissários para levantar informações junto aos engenheiros da obra e as notícias com que retornaram eram desalentadoras: era a maior desgraça que um povo poderia viver. Os moradores, reunidos, mostravam sua indignação pela perspectiva de terem que deixar suas terras marcadas pelo costume das divisas cantadas, e se agarraram ao que lhe foi então apresentado como única solução: a cidade só não seria inundada se lá houvesse alguma coisa importante, histórica, grande; se lá houvesse coisa de tombamento que pudesse virar patrimônio. Decidiram que escreveriam as histórias daquele lugar, a “Grande História do Vale de Javé”, acreditando que assim revelariam o patrimônio daquele povo e impediriam o desaparecimento de suas casas, de seus mortos, de seu cotidiano, de seus modos de vida.6 Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, 1997. Era concedida a licença prévia para instalação da Usina Hidrelétrica de Irapé no rio Jequitinhonha, junto aos municípios de Berilo e Grão Mongol. O longo processo para a instalação da barragem, que seria inaugurada apenas em 2006, foi bastante penoso para a população local, em especial para as 1.200 famílias deslocadas, que residiam em oito municípios à beira do Jequitinhonha e seus afluentes. As alterações, perdas, violações de direitos, doenças foram algumas das consequências que o grupo que se organizou na Comissão de Atingidos pela Barragem de Irapé (CABI) narraram sobre a instalação da hidrelétrica.7 “Fogo sobre Terra” Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/fogo-sobre-terra/trama-principal.htm, acesso em 14fev.2016; “ ‘Fogo Sobre Terra’ é a luta entre o futuro e o passado” O Globo, Rio de Janeiro, 05/05/1974; Acervo O Globo. Disponível em http://acervo.oglobo.globo.com/, acesso em 14fev.2016. 5 Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Sobradinho – Informações técnicas” Disponível em http://www. observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/12/sobradinho/, acesso em 14fev.2016; SÁ e GUARABYRA (2012); MAB (2011). 6 O Filme Narradores de Javé, de 2004, dirigido por Eliane Caffé e com roteiro de Eliane Caffé e Luiz Alberto de Abreu, está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Trm-CyihYs8 (acesso em 14fev.2016) 7 GESTA, 2011; Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Irapé – Transformações” Disponível em http:// www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/20/irape-presidente-juscelino-kubitschek-de-oliveira, acesso em 14fev.2016. 4

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Altamira, Pará, 2015. Moradores de ilhas do rio Xingu são notificados da necessidade de deixarem suas terras e casas, pois a instalação da barragem de Belo Monte estima inundar de 200 a 500 km2 e, com isso, deve deslocar 20 mil pessoas. Seu João e dona Raimunda já saíram, sem necessariamente apresentarem resistência à determinação da concessionária Norte Energia, mas sendo submetidos à rotina de desrespeito e violação de direitos que se tem reportado na região: mesmo cumprindo o prazo para retirar seus pertences de onde viviam, tiveram sua casa queimada antes que pudessem esvaziá-la; e em troca, receberam uma indenização inexpressiva, uma condenação à miséria, visto que perdiam sua terra e a vida sem fome que haviam conquistado ali.8 A diferença entre esses exemplos, apesar das aproximações e até coincidências, é que Divinéia e Javé são localidades ficcionais imaginadas pela criatividade de Janet Clair e de Eliane Caffé e Luiz Alberto de Abreu, respectivamente. Trata-se da telenovela “Fogo sobre Terra”, televisionada pela Rede Globo entre maio de 1974 e janeiro de 1975, e do filme “Narradores de Javé”, lançado em 2004. Essas cidades não foram efetivamente inundadas; suas casas e moradores não foram deslocados ou mortos por causa das águas; mas a discussão sobre o que se quer preservar frente à iminência da destruição de cidades, comunidades, modos de vida está presente nesses exemplos ficcionais, em que o destaque está na vida das personagens, e não nos empreendimentos e tampouco nas políticas públicas. A cidade ficcional de Divinéia, localizada temporalmente em 1950, mas criada em meados da década de 1970 por Janet Clair, é certamente uma inspiração das discussões em torno da instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu, com concessão para operação já em 1973.9 A escritora, em entrevista dada em 1974, às vésperas do início da novela, declarou que, para o enredo, inspirara-se “em notícias de jornais sobre cidades do interior que vão desaparecer sob as águas para dar lugar a obras gigantescas e maravilhosas.”10 As personagens que criou reproduziam ações descritas nos relatos sobre Itaipu,11 com reuniões nas escolas das comunidades; a distribuição de pôsteres, cartazes; a divulgação de programas de rádio e de filmes.12 Janet Clair descreveria em sua novela a instalação de uma dessas “obras gigantescas e maravilhosas”, mostrando, no entanto, como já indicava em sua entrevista, que entenBRUM, 2015; Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Belo Monte – Transformações” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/25/belo-monte, acesso em 14fev.2016. 9 Cf. Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Itaipu– Transformações” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/28/itaipu, acesso em 14fev.2016. 10 “ ‘Fogo Sobre Terra’” é a luta entre o futuro e o passado” O Globo, Rio de Janeiro, 05/01/1974. 11 É possível acompanhar o desenrolar do enredo da novela por meio dos resumos diários dos capítulos, publicado no jornal O Globo, entre maio de 1974 e janeiro de 1975. Ver Acervo O Globo. Disponível em http://acervo.oglobo. globo.com/, acesso em 14fev.2016. 12 GERMANI, 2003, apud Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Itaipu– Transformações” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/28/itaipu, acesso em 14fev.2016. 8

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dia que, em tais cidades, “o bem é encarado como mal e, de fato, o que pode vir a ser um bem a longo prazo, ocasiona problemas imediatos.”13 Sua posição crítica não passou desapercebida pelas autoridades à época: a resistência dos moradores de Divinéia ao empreendimento e os contornos da história teriam sido alvo da Censura Federal, que proibira a sinopse no ano anterior e, mesmo liberando a difusão da trama em 1974, teriam imposto vários cortes e alterações à autora.14 A história da Javé, por sua vez, remete, de um lado, ao pouco acesso das populações aos processos, procedimentos e instrumentos oficiais de patrimonialização, e às dificuldades para o reconhecimento dos seus direitos à sua própria cultura. Por outro, contribui também para descontruir a ideia de narrativas populares homogêneas, sem conflito, e propõe um relato sobre as negociações necessárias para a construção de narrativas sobre memória, história, passado e patrimônio. A discussão sobre as formas de resistência a barragens e outras obras públicas ou privadas e o que se quer preservar dos potenciais danos causados por estas está presente também nos casos reais elencados acima, e na agenda das instituições ambientais e de patrimônio já há vários anos. Remanso, Casa Nova, Sento Sé e Pilão Arcado deram efetivamente lugar ao grande lago que alimenta a barragem de Sobradinho e seus nomes mantêm-se tão vivos em parte graças à música “Sobradinho”, de 1977, de Sá e Guarabyra, na qual cantam, segundo os compositores, os sentidos das barragens “do ponto de vista do sertanejo”15: o adeus às cidades, a perda da vida inteira, o medo de se afogar. Para os relatos da Igreja e o sindicato envolvidos com os desdobramentos da construção da barragem, tratava-se da “destruição do patrimônio cultural que constituía o modo de vida da população ribeirinha que ocupava a área alagada com a conformação do reservatório” (grifos meus).16 O trabalho realizado pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais para avaliação dos impactos da UHE de Irapé no Vale do Jequitinhonha partiu exatamente das categorias e sentidos utilizados pelos moradores da região, da “caracterização etnográfica dessas comunidades” para descrever suas atividades, suas formas de ocupação do território, a organização da paisagem; em outras palavras, para “qualificar as especificidades socioculturais que definem seu modo complexo e particular de reprodução social” (GESTA, 2011, p. 10). O objetivo do relatório era exatamente identificar “as mudanças compulsoriamente experimentadas em seus sistemas de uso dos recursos naturais” (idem, p. 14), as perdas sofridas e os efeitos a jusante de barragem. Em Belo Monte, por sua vez, a usina que governo nenhum tinha conseguido tirar do papel desde a ditadura civil-militar, “mas que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratiza“ ‘Fogo Sobre Terra’” é a luta entre o futuro e o passado” O Globo, Rio de Janeiro, 05/05/1974. “Fogo sobre Terra – Censura” Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/fogo-sobre-terra/censura.htm, acesso em 14fev.2016. 15 Depoimento de Sá e Guarabyra em “História da Música Sobradinho de Sá e Guarabyra” Disponível em https:// www.youtube.com/watch?v=s_pmGhMJiIg, acesso em 14fev.2016. Publicado em 12/09/2012. 16 Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Sobradinho – Transformações” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/12/sobradinho, acesso em 14fev.2016. 13 14

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ção do país” (BRUM, 2015), é agora um fato e a região de sua implantação, cenário de violações de direitos humanos (MPF, 2015) e de perdas nas tradições econômicas e sociais locais, com ameaças à “reprodução social da agricultura familiar na região”, “intensificação dos problemas fundiários”, “aliciamento dos especuladores de terra sobre as famílias empobrecidas”, além das “expectativas criadas devido ao emprego temporário oferecido pela empresa, as invasões de terras indígenas e a exploração ilegal de madeira na região”.17 Com esses relatos, nota-se que, para descrever os sentidos da construção de barragens e hidrelétricas para as comunidades, cujas vidas são dramaticamente atingidas por esses empreendimentos, não basta falar em impactos: tal descrição, conforme sugere Célio Bermann (2014), demanda termos como “perdas, prejuízos, danos, desastres, expulsões, expropriações, desaparecimentos, privações, ruínas, desgraças, destruição de vidas e bens, muitas vezes permanentes e irreversíveis.” (grifos no original) Demanda também um investimento detalhado para conhecer seus modos de vida, seus lugares, seus monumentos, manifestações, suas formas de socialização e reprodução, com vistas tanto a avaliar as alterações compulsórias a que tais modos de vida foram submetidos, mas também para poder propor formas de proteção da cultura dessas populações. O objetivo desta comunicação é propor o destaque aos sentidos das barragens para as comunidades atingidas no âmbito das políticas públicas; é propor também pensar de que maneiras e em que medida o patrimônio cultural, por meio do licenciamento ambiental, pode significar a afirmação e a proteção dos modos de vida das comunidades. O entendimento que se propõe aqui do licenciamento ambiental é de um importante instrumento e contexto em que tais situações de ameaça e impacto a modos de vida - modos de vida por vezes desconhecidos de grande parte da população, de estudiosos e de instituições estatais - devem ser avaliadas, estudadas e evitadas. Trata-se de analisar o licenciamento ambiental como possibilidade de preservação de tais modos de vida e referências culturais, afetivas e espaciais, entendendo-o como contexto de discussão sobre a própria noção de patrimônio cultural, frente a ações e normativas recentes que tendem a limitar a bens já acautelados o que deve ser conhecido e protegido dos impactos de grandes empreendimentos. Propor tal perspectiva significa problematizar a Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015 (doravante IN nº 001/2015), publicada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que “Estabelece procedimentos administrativos a serem observados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nos processos de licenciamento ambiental dos quais participe” (IPHAN, 2015). Determina ainda que o IPHAN será instado a se Observatório Sócio-Ambiental de Barragens. “Belo Monte – Transformações” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/25/belo-monte, acesso em 14fev.2016; SEVÁ (2005, apud “Belo Monte – Transformações” op. cit.) 17

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manifestar nos processos de licenciamento ambiental federal, estadual e municipal quando forem identificados, na área de impacto direto do empreendimento, “bens culturais acautelados em âmbito federal” (idem, art. 1º), o que significa incluir os bens tombados conforme o Decreto-lei nº 25/1937, o bens arqueológicos protegidos pela Lei nº 3924/1961, os bens registrados de acordo com o Decreto nº 3551/2000 e, por fim, os bens valorados nos termos da Lei nº 11.483/2007, referente aos bens da extinta RFFSA (idem, art. 2º). A indicação desse escopo pode parecer adequada à atuação do Iphan, que se manifestaria, portanto, em prol dos bens pelos quais é legal e institucionalmente responsável – aqueles “acautelados em âmbito federal”. No entanto, é possível identificar nesse recorte uma considerável redução das possibilidades ambientais, culturais, sociais e epistemológicas que vinham se colocando, nacional e internacionalmente, desde os anos 1970, nos debates sobre categorias como natureza e cultura, ambiente e patrimônio; no âmbito de um processo de ampliação de formas de identificação e patrimonialização de bens; e até de multiplicação de frentes de atuação do Iphan. A publicação dessa normativa, nesse sentido, bateria de frente com a ampliação de perspectivas, noções, experiências referentes não só aos entendimentos sobre patrimônio cultural, como também às práticas do Iphan de preservação do patrimônio cultural e ainda ao papel desse órgão no licenciamento. Para pensar nos debates sobre noções como desenvolvimento, meio ambiente, cultura, patrimônio e nas formas com que tais noções marcaram as discussões sobre a preservação do patrimônio cultural, é importante indicar alguns marcos dos debates sociais, conceituais e institucionais que vêm marcando esses temas, e que foram discutidos, entre outros, por Oliveira (2015) e Leal e Silva (2016) referentemente aos contextos nacional e internacional a partir dos anos 1970, quando a noção de cultura sofreu uma importante ampliação e o meio ambiente passou de uma noção exclusivamente relacionada à natureza para a compreensão do ser humano como usuário e parte desse meio. Internacionalmente, é fundamental destacar dois documentos elaborados no contexto das Nações Unidas na década de 1970, a saber, Declaração sobre o Meio Ambiente Humano ou Declaração de Estocolmo (ONU, 1972), e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (UNESCO, 1972). Desta última, já foi destacada em outros estudos a importância da aproximação entre cultura e natureza no campo do patrimônio (SCIFONI, 2004; LEAL, 2010). No que concerne à Declaração de Estocolmo, que foi dedicada “a discutir a problemática da relação homem-natureza, em especial no que se refere ao desenvolvimento e à utilização dos recursos naturais” (OLIVEIRA, 2015, p. 20), é central a noção do homem como “obra e construtor do meio ambiente que o cerca” (ONU, 1972). O texto final deu grande destaque à ligação entre economia e meio ambiente, com ênfase na importância de o desenvolvimento econômico e social assegurar um ambiente de vida e trabalho favorável (LEAL e SILVA, op. cit., p. 69).

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No Brasil, um importante marco foi a Lei nº 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente. Esse documento conciliou desenvolvimento socioeconômico com preservação e recuperação da qualidade ambiental e criou instrumentos fundamentais e que continuam em vigência para a proteção do ambiente, notadamente o ambiente natural (OLIVEIRA, op. cit., p. 48), como a Avaliação de Impacto Ambiental, licenciamento ambiental, criação de espaços protegidos, Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Faz-se ainda necessário destacar a importância da Resolução CONAMA nº 1/1986, que prevê estudos mínimos para obtenção de licença ambiental por aqueles empreendimentos que, potencialmente, pudessem causar danos ao meio ambiente. É particularmente importante para os argumentos desta comunicação a aproximação promovida entre ambiente natural e cultural. Nesse sentido, destaca-se o inciso c da alínea I do art. 6º, que determinou que avaliação de impacto deveria contemplar a sócio economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos (MNA, 1986, grifos nossos). Para além dos “sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade” – bens que, no momento de publicação dessa Resolução, já estavam atrelados à noção de patrimônio e à atuação do IPHAN havia cinco décadas –, ressalta-se principalmente o destaque à perspectiva da comunidade na definição de seus sítios e monumentos referenciais e às “relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos”. Com isso, incluíam-se entre os aspectos a serem considerados como relevantes nos estudos de impacto ambiental as relações entre homens e mulheres e os recursos ambientais: as atividades simbólicas e também as econômicas; os lugares, a ocupação e usos da terra; as formas de socialização, as manifestações culturais, os modos de vida. A Constituição de 1988 coloca-se como mais um elemento definidor dos aspectos que se tomam, nesta discussão, como centrais para a ampliação dos sentidos de patrimônio e para a importância da perspectiva das comunidades na identificação e valoração dos bens culturais e naturais. Como destacaram Leal e Silva (op. cit., p. 68), de um entendimento de “conjunto dos bens móveis e imóveis” vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil ou de “excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, devidamente inscritos em pelo menos um dos Livros do Tombo do IPHAN, o patrimônio cultural brasileiro passa a ser definido como os bens de natureza material e imaterial “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (art. 216 da Constituição 1988), protegidos pelo poder público “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. 539

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Essa perspectiva tomava cultura “no sentido antropológico mais amplo de invenção coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos” (CHAUÍ, 1995, p. 81), marcando a oficialização de um processo de ampliação dos sentidos de cultura que já vinha sendo notado desde os anos 1970. Além disso, explicita o que Ulpiano Bezerra de Meneses (2012, pp. 33-34) chamou de “deslocamento de matriz”: “os valores culturais (os valores, em geral) não são criados pelo poder público, mas pela sociedade”. Tal perspectiva está marcada pela noção de referência cultural presente no texto, a qual remete a discussões importantes no âmbito da preservação do patrimônio na década de 1970 e aos sentidos e valores atribuídos pelos diversos grupos sociais aos bens com os quais se relacionam (FONSECA, 2006). A Constituição de 1988 também estabeleceu perspectivas interessantes para o meio ambiente: além destinar um capítulo exclusivamente para o tema (Capítulo VI), definiu meio ambiente como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida” (caput da Constituição, 1988), indicando um entendimento que sublinha a necessidade de sua preservação, mas que não veta o uso e exploração dos recursos naturais. Sua proteção é proposta de forma coletiva e pública: é atribuída responsabilidade tanto ao Poder Público como à coletividade na defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado e incentivou-se a educação ambiental em todos os níveis de ensino com vista a promover “a conscientização pública para a preservação do meio ambiente” (idem, art. 225, inciso VI). O tema, porém, extrapola o capítulo dedicado a ele: como afirmou Juliana Santilli (2005, p. 67), a questão ambiental “está presente em diversos outros capítulos do texto constitucional (economia, desenvolvimento agrário etc.)”. Isso significa perceber na Constituição uma perspectiva transversal para as políticas ambientais, identificando um conjunto de políticas públicas que influenciariam o campo ambiental e que incluiriam da defesa nacional à função social da propriedade, da política agrícola à política urbana, da saúde à cultura (idem, p. 67 e ss.). Vale também chamar atenção para a influência dos movimentos ambientalistas na adoção de medidas políticas e institucionais para proteção do meio ambiente no Brasil. Com a atuação dos movimentos que se afirmavam na luta pelo respeito sociocultural das famílias atingidas por empreendimentos de infraestrutura – como o Movimento dos Atingidos por Barragem – e em sua aliança com os povos da floresta – “índios, seringueiros, castanheiros e outras populações tradicionais” (Santilli, op. cit., p. 32), foi-se consolidando a ideia de que “a melhor maneira de tratar as questões ambientais” seria envolver “todos os cidadãos interessados”, com destaque para a participação nos processos decisórios, conforme se lê na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU, 1992), mais conhecida como Rio 92. No âmbito específico do patrimônio cultural e da atuação do IPHAN, desde a Resolução Conama nº 01/1986, alguns processos de licenciamento passaram a ser enviados ao IPHAN pelos órgãos ambientais para que a instituição se manifestasse sobre os impactos aos “sítios e

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monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade”. Privilegiou-se, no entanto, a avaliação de impacto de empreendimentos sobre os sítios arqueológicos, o que foi fortalecido pela publicação da Portaria nº 230, de 17 de dezembro de 2002, que previa a compatibilização das “fases de obtenção das licenças ambientais em urgência com estudos preventivos da arqueologia” (grifos nossos) nas áreas de impacto dos diversos empreendimentos que surgiam no país. Nesse mesmo contexto, dá-se a publicação do Decreto nº 3551, de 04 de agosto de 2000, o qual instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Com esse Decreto, propunha-se “uma noção sempre mais abrangente, mais realista, menos exclusivista e excludente do que sejam as nossas heranças culturais”, que incluísse também “as inumeráveis formas expressivas que a nossa gente vem gerando ao longo dos séculos e prossegue produzindo rotineira e cotidianamente” (GIL, 2006). Percebe-se nesse trecho de apresentação do Decreto 3551/2000 pelo então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, que estava previsto – como já constava da Constituição de 1988 – o “deslocamento de matriz” (Meneses, 2012) que delegava à “nossa gente” (e não somente ao poder público e técnicos do órgão nacional de patrimônio) a competência na identificação e valoração dos bens culturais, reconhecidos como patrimônio pelo Estado. Propõe-se inclusive, simultamentamente à publicação do Decreto, um instrumento que, em certa medida, sistematizava tal deslocamento de matriz, o Inventário Nacional das Referências Culturais (INRC) – ou, nos termos de seu Manual de Aplicação: O INRC é, antes, um instrumento de conhecimento e aproximação do objeto de trabalho do IPHAN, configurado nos dois objetivos principais que determinaram sua concepção: 1. identificar e documentar bens culturais, de qualquer natureza, para atender à demanda pelo reconhecimento de bens representativos da diversidade e pluralidade culturais dos grupos formadores da sociedade; e 2. apreender os sentidos e significados atribuídos ao patrimônio cultural pelos moradores de sítios tombados, tratando-os como intérpretes legítimos da cultura local e como parceiros preferencias de sua preservação. (CORSINO, 2000, p. 8, grifos nossos) Nos trechos destacados, percebe-se o claro diálogo com a Constituição de 1988, com referência aos “grupos formadores da sociedade”, e também o esforço de propor uma nova aproximação em relação aos bens culturais, que procurasse apreender “os sentidos e significados” dos moradores, descritos aqui como “intérpretes legítimos da cultural local” e cuja atuação na preservação desta é estimulada. Vale destacar aqui a aproximação a aspectos para os quais já se chamou a atenção nesta comunicação, em especial a valorização da perspectiva da comunidade na definição de seus bens 541

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referenciais, presente da Resolução Conama nº 1/1986, e na importância do envolvimento dessa comunidade na preservação do ambiente natural e cultural, que se identificou na Constituição de 1988 e também na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92). Cumpre ainda destacar, de acordo com Leal e Silva (op. cit., p. 70-71), as formas como o IPHAN lidou com a aproximação entre patrimônio e meio ambiente, criando procedimentos que passaram a considerar o meio natural como parte constituinte do patrimônio cultural, como, por exemplo, o reconhecimento das relações entre bens registrados como patrimônio imaterial e os recursos naturais necessários à reprodução dos saberes, dos modos de expressão e mesmo das celebrações; ou a criação da chancela da paisagem cultural, conceituada como “porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores.” (IPHAN, 2009, Art. 1º). Nesse processo de ampliação de entendimentos do patrimônio, dos atores legítimos ou legitimados nos processos de atribuição de valor, das relações entre cultura e natureza e seus efeitos no campo do patrimônio, coloca-se a importância de problematizar a determinação da IN nº 001/2015 de fazer coincidir o âmbito de atuação do IPHAN no contexto do licenciamento ambiental com o âmbito de sua atuação independentemente do licenciamento. É certo que, como destacou Oliveira (2015, p. 67), ao se comparar a IN nº 001/2015 com “o que fora estabelecido pela Portaria nº 230/2002 e com que era rotina em várias Superintendências do Iphan”, deu-se uma considerável ampliação do papel do IPHAN: “As responsabilidades criadas por seu artigo 2º18 (...) e a obrigatoriedade de um Projeto Integrado de Educação Patrimonial (art. 35, inciso V) implicam o envolvimento de diversas áreas e, mais ainda, a articulação entre elas.” Por outro lado, quando se analisam as possibilidades criadas pelo licenciamento ambiental e pela noção de referência cultural para pensar o patrimônio em estreita relação não só com o meio ambiente, como com os sentidos atribuídos pela comunidade aos bens culturais (Leal e Silva, op. cit, p.74), nota-se o movimento que Boaventura de Sousa Santos denomina “pensamento ortopédico”, definido como “o constrangimento e o empobrecimento causado pela redução dos problemas a marcos analíticos e conceptuais que lhes são estranhos” (SANTOS, 2008, p. 15). No formato atual, a IN nº 001/2015 reduz as possibilidades de conhecimento de bens culturais passíveis de proteção pelo poder público federal, uma vez que limita o escopo de atuação do IPHAN a situações em que ele já deve se manifestar, independentemente do contexto do licenciamento ambiental; em outras palavras, limita a atuação institucional aos problemas que o Trata-se do artigo que especifica quais seriam os “bens acautelados em âmbito federal”, cuja existência na área de influência direta do empreendimento determinaria a necessidade de manifestação do IPHAN nos processos de licenciamento ambiental: “I - tombados, nos termos do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937; II - arqueológicos, protegidos conforme o disposto na Lei nº 3.924, de 26 de Julho de 1961; III - registrados, nos termos do Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000; e IV - valorados, nos termos da Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.” (IPHAN, 2015) 18

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próprio IPHAN enuncia (LEAL e SILVA, op. cit., p.75), produzindo, portanto, desconhecimento e invisibilidade das referências culturais não patrimonializadas das populações atingidas pelos empreendimentos. Diante das diversas possibilidades elaboradas durante o processo de criação e consolidação do licenciamento ambiental para construir uma noção mais ampla de meio ambiente, incluindo o meio ambiente cultural, as noções de cultura e patrimônio; para afirmar a participação social na formulação de políticas referentes à preservação desse meio ambiente, na identificação de suas referências culturais e nas relações simbólicas e de existência com o meio ambiente natural; para, enfim, se apropriar dos avanços notados na legislação brasileira e nos procedimentos técnicos, notadamente no IPHAN, propomos um olhar de estranhamento frente à escolha da Instituição de restringir a atuação no licenciamento ambiental apenas àqueles bens já reconhecidos pela própria instituição. A discussão proposta nesse artigo procura destacar as possibilidades disponíveis, porém invisibilizadas nessa trajetória. Em Divinéia, a abertura das comportas da barragem em 05 de janeiro de 1975 no horário nobre da Rede Globo marcou o desfecho do longo processo de disputa entre “o futuro e o passado”, entre diferentes visões de mundo, diferentes formas de poder, de resistência, de articulação, de expectativas. Marcaram-no também a festividade barulhenta daqueles que se aproximaram da companhia responsável pela barragem, locais ou forasteiros; a indignação triste dos deslocados, acompanhando de Nova Divinéia, pelo rádio, a inauguração da barragem; e a morte de Nara, moradora da cidade e personagem do núcleo principal da novela, que preferiu afogar-se a abandonar a terra onde nascera e criara seus descendentes. Ainda que o sertão não tenha virado mar, Remanso, Casa Nova, Santo Fé e Pilão Arcado submergiram e formam hoje um grande lago. 72 mil pessoas foram atingidas pela barragem, entre moradores das cidades e comunidades indígenas.19 A música de Sá e Guarabyra conserva sua atualidade quase 40 anos após seu lançamento, e a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragens, criado em 1991 após anos de articulação dos atingidos desde a construção da barragem de Sobradinho, torna cada vez mais cruciais suas bandeiras “contra a injustiça, pelos direitos dos atingidos por barragens, por um modelo energético popular que leve em conta as necessidades do povo, e por um projeto popular para o Brasil” (MAB, 2011). Javé também se foi sob as águas: a barragem foi construída; os moradores, deslocados; a “Grande História do Vale de Javé” não chegou a ser escrita pelos moradores ou pesquisada por estudiosos ou instituições de patrimônio. Nada foi tombado, e o único remanescente material da história desse lugar - o sino da igreja - foi preservado por iniciativa dos moradores, que arriscaram suas vidas para salvarem-no da inundação com grande esforço. Os deslocados de Javé “Sobradinho – Informações Técnicas” Disponível em http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/12/ sobradinho, acesso em 14fev.2016.

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partiram juntos de suas terras; talvez fossem assentados em uma mesma localidade e mantivessem alguns dos vínculos que houvessem cultivado por gerações, ou mesmo preservassem as narrativas daquele vale, em torno daquele sino e das divisas cantadas que não marcavam então mais nada além de água. As comunidades afetadas pela UHE de Irapé sistematizaram os efeitos da construção da barragem, elencando a perda de terras férteis; a perda de recursos naturais; o aumento da migração, das doenças, da fome; o desrespeito ao povo, seus bens e sua cultura; indenizações injustas; alterações na qualidade da água a jusante da barragem e nas condições de vida e da organização produtiva das comunidades ribeirinhas naquela região.20 Em suma, destacaram como o modo de vida das comunidades fora comprometido a partir da instalação da UHE Irapé (GESTA, 2011). Já a respeito de Belo Monte, mesmo com os relatos terríveis sobre e das “vítimas dessa guerra amazônica” (BRUM, op. cit.), mantem-se o projeto do empreendimento, em detrimento claro da variedade de populações indígenas, ribeirinhas e tradicionais e seus respectivos modos de vida, que serão irremediavelmente afetados, assim como a biodiversidade da região. Ambiente, cultura, patrimônio e modos de vida em risco pela produção de desconhecimento a que tais grupos e lugares são submetidos por políticas públicas que têm diminuído as possibilidades ambientais, sociais, culturais, políticas e epistemológicas dos instrumentos existentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERMANN, Célio. A desconstrução do licenciamento ambiental e a invisibilização do social nos projetos de Usina Hidrelétricas. In: ZHOURI, Andréa; VALENCIO, Norma. (orgs.). Formas de matar, de morrer e de desistir: Limites da resolução negociada de conflitos ambientais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014. BRUM, Eliane. “Vítimas de uma guerra amazônica” El País, 22/09/2015, disponível em http://brasil. elpais.com/brasil/2015/09/22/politica/1442930391_549192.html, acesso em 14fev.2016. CHAUI, Marilena. Cultura política e política cultural. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, n. 23, p. 7184, abr. 1995. CORSINO, Célia. Apresentação. In: IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais: manual de aplicação. Brasília: IPHAN, 2000. FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: bases para novas políticas de patrimônio in: IPHAN. Patrimônio Imaterial: O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: MinC/IPHAN, 2006.

GESTA, 2011; “Irapé – Informações técnicas”. Disponível em: http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/20/irape-presidente-juscelino-kubitschek-de-oliveira 20

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GRUPO DE ESTUDOS EM TEMÁTICA AMBIENTAL (GESTA). Relatório Técnico – Impactos da UHE Irapé para comunidades a jusante da barragem. Belo Horizonte, outubro de 2011. Disponível em http://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2014/05/Relat%C3%B3rio-sobre-qualidade-da-%C3%A1gua-a-jusante-da-UHE-Irap%C3%A9-2011.pdf, acesso em 30out2014. GIL, Gilberto. Apresentação. In: IPHAN. Patrimônio Imaterial: O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: MinC/ IPHAN, 2006. LEAL, Claudia F. Baeta. Patrimônio da Humanidade e patrimônios nacionais. In: IPHAN. A questão do nacional no Iphan. Anais da III Oficina de Pesquisa. Rio de Janeiro: Copedoc/DAF/IPHAN, 2010, pp. 47-60. LEAL. Claudia F Baeta e SILVA, Luciano de Souza. De possibilidades sociais e epistemológicas e do desperdício de experiências: a preservação do patrimônio cultural no contexto do licenciamento ambiental. Anais do III Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura – GT Patrimônio Cultural. Crato, 08 a 10 de outubro de 2016. Disponível em http://ebpc.ufca.edu.br/, acesso em 15fev.2016. MENESES, Ulpiano. T. Bezerra de. O campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de premissas. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão. Brasília: Iphan, 2012, tomo 1, pp. 25-39. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (MPF). Relatório de Inspeção Interinstitucional: áreas ribeirinhas atingidas pelo processo de remoção compulsória da UHE Belo Monte. 2015. Disponível em http://www. prpa.mpf.mp.br/news/2015/arquivos/ Relatorio_inspecao_ribeirinhos_Belo_Monte_junho_2015.pdf, acesso em 15fev.2016. MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS (MAB). “História do MAB: 20 anos de organização, lutas” Disponível em http://www.mabnacional.org.br/historia, acesso em 14fev.2016. Publicado em 11/01/2011. OLIVEIRA, Mônica Castro de Oliveira. O patrimônio como ambiente: o papel do IPHAN no licenciamento ambiental. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) Iphan, Rio de Janeiro, 2015 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005. SANTOS, Boaventura de Sousa. “A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal”. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 80 | 2008, Disponível em http://rccs.revues.org/691, acesso em 30jan 2013. SCIFONI, Simone. A UNESCO e os patrimônios da humanidade: valoração no contexto das relações internacionais. in: Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade. (ANPPAS), 2004, Indaiatuba. Anais... Indaiatuba: ANPPAS, 2004 . ONU. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Estocolmo, 1972 . ONU. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1992. UNESCO. Convenção sobre a proteção do Patrimônio mundial, cultural e natural. Paris, 1972.

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LEGISLAÇÃO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de1981. BRASIL. Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007. IPHAN. Instrução Normativa nº 001, de 25 de março de 2015. IPHAN. Portaria n° 230, de 17 de dezembro de 2002. IPHAN. Portaria nº 127, de 30 de abril de 2009. MNA. Resolução CONAMA n° 001, de 23 de janeiro de 1986.

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A ‘CIDADE CRIATIVA’ COMO UM NOVO PARADIGMA NAS POLÍTICAS URBANO-CULTURAIS Claudia Seldin1 RESUMO: O conceito de ‘cidade criativa’ vem se tornando cada vez mais rotineiro em se tratando de políticas urbano culturais contemporâneas. No Brasil, o termo ganhou atenção tardiamente, havendo um foco especial em cidades como Rio de Janeiro, onde projetos de renovação de frentes marítimas foram pareados com noções de economia criativa. Neste artigo, defendemos o argumento de que a ‘cidade criativa’ representa uma nova fase de um processo de ‘culturalização’ do espaço urbano iniciado nos anos 1970 para repaginar as imagens de cidades que buscavam inserir-se competitivamente na rede global. Trataremos brevemente do caso de Berlim, onde o status de ‘cidade criativa’ está consolidado e onde as políticas que o enfatizam vêm enfrentando reação negativa. Concluiremos com considerações sobre o Rio de Janeiro e o Distrito Criativo do Porto. PALAVRAS-CHAVE: Berlim; Cidade Criativa; Distrito Criativo; Rio de Janeiro; Zona Portuária

1. SÉCULO XX: O PROCESSO DE ‘CULTURALIZAÇÃO’ DAS CIDADES O conceito de ‘cidade criativa’ vem se tornando cada vez mais rotineiro em se tratando de políticas urbano culturais contemporâneas. Sabemos, no entanto, que o pareamento das ideias de ‘criatividade’ e planejamento urbano não é nada novo. É fato que a criatividade sempre possuiu um papel essencial na maneira de se pensar o espaço, organizar as formas, os fluxos e propor interações entre pessoas e lugares. Apesar disso, a noção de criatividade parece, hoje, ganhar momentum, sendo introduzida como uma espécie de novidade capaz de repaginar as imagens de cidades que buscam inserir-se competitivamente na rede global. Esta busca por imagens atraentes para as cidades também não é recente, consistindo em uma parte integral daquilo que chamamos de processo de “culturalização” do espaço urbano (VAZ, 2004). Este processo, conflagrado a partir dos anos 1970, vem implicando na utilização da cultura e do entretenimento como instrumentos para a revitalização pontual de áreas tidas Claudia Seldin é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ com período sanduíche na Bauhaus-Universität Weimar (Alemanha). Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado com bolsa FAPERJ/CAPES - PAPD no PROURB-FAU-UFRJ. E-mail: [email protected] Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no XVI ENANPUR em 2015.

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como estratégicas para regenerar cidades economicamente abaladas pelo fenômeno de desindustrialização. Segundo Bianchini (1993), a visão da cultura como um possível instrumento de salvação para os problemas das cidades na segunda metade do século XX não aconteceu por acaso. No contexto europeu ocidental, por exemplo, a ênfase no desenvolvimento de políticas culturais com desdobramentos urbanos se explicou pela diminuição das horas de trabalho nos novos setores dominantes da economia, o que levou a um aumento na proporção de renda e de tempo disponível para gastos com lazer. Porém, mais do que isso, as crises de recessão de 1973 e 1979 impulsionaram a emergência de um contexto político-econômico neoliberal, caracterizado pela diminuição da atuação do Estado e pelo abandono das formas de controle público sobre o espaço. Com isso, as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano passaram a refletir tendências de descentralização de funções e de redução de despesas administrativas, levando ao encorajamento de patrocínio de atividades e eventos culturais por parte do setor privado. Nos anos seguintes, as políticas públicas nos EUA e na Europa Ocidental passaram a ser formuladas de modo a atrair investimentos privados para o desenvolvimento dos centros urbanos, utilizando o discurso de que a demanda por serviços seria impulsionada, os gastos aumentariam e novos empregos seriam criados. Dentro desta lógica, houve um incentivo especial a serviços conectados às atividades culturais e de entretenimento, levando à construção de grandes centros culturais e de convenções, novos estádios esportivos e espaços para festivais e feiras. Assim, a necessidade de atenuar problemas socioeconômicos, a união de setores públicos e privados e as “expectativas exageradas em se tratando da capacidade da cultura em compensar a diminuição dos empregos perdidos” (KRÄTKE, 2011, p. 22) tornaram-se fatores complementares para a criação de um “planejamento cultural estratégico” (SELDIN, 2015b), calcado no discurso da regeneração urbana pelo viés cultural. Esta regeneração, também tida como “revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, requalificação, renascença” (ARANTES, 2002, p. 31), tinha como objeto principal trazer visibilidade às cidades e atrair novos investimentos e turistas culturais, reaquecendo as economias locais. No âmbito do ‘planejamento cultural estratégico’, podemos destacar alguns modelos que ganharam popularidade em nível global nas últimas quatro décadas, dentre eles: a transformação de uso de antigos armazéns industriais em residências e ateliês para jovens e artistas; a requalificação de frentes marítimas e vazios urbanos como complexos de entretenimento, lazer e cultura; a implantação de grandes equipamentos culturais dotados de projeto de arquitetos célebres em centros históricos e áreas degradadas; a promoção de megaeventos internacionais (em especial esportivos); entre outros. Cabe ressaltar que estes modelos não são exclusivos e podem ser aplicados simultaneamente, mesclando-se e incorporando aspectos uns dos outros. Juntos, eles configuram o que argumentamos aqui ser a primeira fase do processo de ‘culturalização’

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do espaço urbano – uma fase em que predomina a busca incessante pelo status de ‘cidade de cultura’ ou de ‘capital de cultura’2. Foi nos EUA, durante a década de 1980, que primeiro se observou uma intensificação da exploração imobiliária das fábricas desativadas, com ênfase especial na revitalização de frentes marítimas e zonas portuárias degradadas. Antigos armazéns ao longo de orlas ganhavam novos usos através de projetos urbanos e arquitetônicos pontuais, criando faixas de complexos comerciais e de lazer, como demonstram os casos de Nova York, Boston e São Francisco. Já na Europa Ocidental, apesar da regeneração de frentes marítimas ter se tornado uma forte tendência – vide os exemplos de Docklands e Southbank em Londres (Inglaterra) e do Diagonal Mar e Poblenou em Barcelona (Espanha) –, o foco principal das políticas públicas recaiu sobre a implementação de grandes equipamentos culturais em centros históricos degradados. Isso porque os museus e centros culturais passaram a ser vistos como elementos relacionados à qualidade de vida da cidade, assim como os festivais artísticos, as grandes competições esportivas e outros eventos high-profile de cultura. Nestes casos, mostrou-se crucial o papel do design e do renome dos profissionais da arquitetura, que acabariam por contribuir para um fortalecimento de verdadeiras grifes de projeto, bem como da prática de branding urbano. Esta lógica de venda da imagem cultural de uma cidade e sua consequente transformação em vitrine urbana fez surgir exemplos emblemáticos no cenário europeu, dentre os quais destacamos a Paris do governo de François Mitterrand (1981-1995), a Barcelona olímpica de 1992 e Bilbao pós-1997 – lar da arquitetura espetacular da filial do Museu Guggenheim projetada por Frank Gehry. Embora alguns gestores urbanos considerem estes casos como bem-sucedidos devido ao aumento da atividade turística e ao fortalecimento/inserção destas cidades no ‘mapa cultural global’, uma parte significativa das populações locais sofreu com os efeitos negativos da aplicação prática da busca do status de ‘capital de cultura’. A partir do momento em que esta fórmula passou a adentrar as políticas públicas das mais diversas cidades – incluindo o Rio de Janeiro –, as consequências negativas da busca pelo status de ‘capital de cultura’ passaram a ser percebidas e sentidas em escala global. Em todo o mundo, as estratégias de revitalização urbana de fundo cultural começaram a enfrentar duras críticas por parte de acadêmicos, lideranças locais e movimentos sociais, que apontavam para uma multiplicação de ‘elefantes brancos’ nas cidades e para uma desigualdade no acesso aos espaços renovados, indagando para quem eram efetivamente construídos. Mais do que isso, os críticos apontavam para a desconsideração das singularidades locais em meio à adoção de projetos urbaEsclarecemos que este termo faz uma alusão ao título homônimo, concedido pela Comissão Europeia às suas cidades a partir de meados dos anos 1980. Apesar do título propriamente dito se limitar àquele continente, consideramos que a ideia por traz dele reproduz uma tendência global – da busca de uma imagem de cidade repleta de opções culturais mundialmente reconhecidas.

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nísticos genéricos e importados, que levavam à produção de espaços simulados, onde a criação de disfarces urbanos é favorecida em detrimento de espaços contextualizados. Simultaneamente, outra consequência polêmica era observada em relação ao ‘planejamento cultural estratégico’: o fenômeno da gentrificação, em especial o tipo referido pelo sociólogo Andrej Holm como “fase pioneira” (2013, p. 174). Em outras palavras, a área renovada – transformada em descolada pela presença de espaços culturais e de artistas – passa por um processo de valorização tão profundo que as pessoas que ali habitavam não conseguem mais arcar com os seus elevados custos. São, assim, obrigadas a deixar a região – agora habitada pela classe média. Argumentamos aqui que estas consequências negativas da busca pelo status de ‘capital de cultura’, pareadas com transformações significativas na esfera econômica, vêm contribuindo para o que percebemos como uma transição de paradigmas urbanos inseridos nas políticas públicas contemporâneas. Se até o início dos anos 2000, observávamos um foco na busca pelo status de ‘capital de cultura’, agora podemos perceber uma clara repaginação e uma segunda fase dos processos de ‘culturalização’ do espaço urbano, culminando na busca do status de ‘cidade criativa’ – um paradigma no qual predomina a imagem de conhecimento e inovação. 2. CRÍTICA À ‘CIDADE CRIATIVA’ A passagem do século XX para o século XXI serviu para reforçar imensamente a chamada economia simbólica, bem como seus efeitos nas cidades pós-industriais. Durante a década de 1990, ampliou-se pelo mundo o consumo de serviços e de bens culturais em massa, levando à glorificação do capital cultural como motor econômico. Em pouco tempo, as cidades foram ficando cada vez mais interconectadas em função da internacionalização da economia e do avanço das tecnologias de ponta, que permitiram a integração e a ampla difusão dos meios de comunicação. Simultaneamente, intensificava-se a competição entre as cidades por atenção e investimentos na rede global. A crescente homogeneização das ‘capitais de cultura’, já nos anos 19902000, fez com que a multiplicação de equipamentos culturais, de entretenimento e lazer se tornasse não mais um fator diferenciador e de destaque, mas ‘lugar comum’ em termos de políticas públicas. A falta de autenticidade e singularidade na experimentação da vida urbana começava a apontar para a necessidade de novas formas de se vender a imagem da cidade. Foi neste contexto que a noção de ‘criatividade’ começou a ganhar espaço nos discursos das políticas públicas. A ‘criatividade’, como conceito aplicado ao planejamento urbano, remete a meados da década de 1990 através de obras como “The Creative City” de Landry & Bianchini (1995). Porém, a instrumentalização do termo e a sua expansão mundial, se intensificaram apenas a partir dos anos 2000, quando o conceito foi moldado em uma vertente econômica passível de

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utilização por gestores urbanos à procura de uma ‘atualização’ de suas plataformas eleitorais. Esta atualização deveria implicar em custos baixos de investimentos públicos sem transformar significativamente as relações de mercado surgidas nas décadas anteriores, sem danificar as parcerias consolidadas entre setores públicos e privados e sem invalidar os programas já concretizados de ‘culturalização’ das cidades. Foi exatamente isso que a polêmica “teoria de classe” do economista estadunidense Richard Florida (2002) propiciou. Com obras como “The Rise of the Creative Class” (2002) e “Cities and the Creative Class” (2005), Florida contextualizava o início do século XXI como um momento de declínio das restrições físicas das cidades e comunidades, no qual a criatividade se tornava a principal força motriz do crescimento e desenvolvimento urbano regional. O autor apontava que o elemento chave para a competição de uma cidade na rede global não era mais o fluxo de capital e a troca de bens, de mercadorias e de serviços, mas sim a capacidade em desenvolver e reter a energia criativa de sua própria população, bem como de atrair as pessoas criativas de outras partes do mundo. Em outras palavras, tratava-se do advento do “capital humano” como “segredo da produtividade” (2002). Sua teoria pregava o novo papel das cidades como ‘potencializadoras’ e incentivadoras deste capital humano. Ou seja, a nova chave para a competição urbana estaria na habilidade em atrair para uma cidade as pessoas altamente qualificadas, produtoras de ideias. A controversa pesquisa de Florida propunha, então, a ascensão de uma nova classe social, essencial para o crescimento econômico das cidades contemporâneas. Caracterizada como jovem, boêmia, cool, diversificada e tolerante, esta nova classe combinaria profissionais muito diferentes entre si – artistas, cientistas, pequenos empresários, técnicos de tecnologia da informação, líderes políticos, entre outros – todos reunidos no mesmo grupo de produtores do capital cognitivo e pioneiros urbanos. Ainda de acordo com ele, porque a “classe criativa” é móvel e cosmopolita, pode escolher onde viver no mundo – um fato que leva à busca constante pela melhor cidade onde habitar (SELDIN, 2015a). Esta escolha seria feita com base no potencial para uma ótima qualidade de vida e na disponibilidade de um conjunto específico de amenidades. Sobre estas amenidades, sua pesquisa destaca que a presença de grandes e espetaculares equipamentos culturais, esportivos e de entretenimento já não é tão desejável como em décadas anteriores, sendo inclusive repudiada, havendo uma preferência por lugares originais e autênticos. Entre os itens almejados estão: uma cena cultural alternativa ao invés de grandes museus e centros culturais espetaculares; áreas verdes e pequenos parques locais no lugar de estádios esportivos de grandes clubes; pequenos cafés e bares ao invés de restaurantes de rede e assim por diante. Com base nessa lógica, os gestores urbanos contemporâneos deveriam se concentrar menos na simples atração de turistas culturais através da repetitiva fórmula de projetos urbanos grandiosos, e mais na captação e manutenção desta classe criativa através da valorização da autenticidade local.

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O impacto deste conceito de criatividade para o planejamento urbano foi tal que, em 2004, pouco após a publicação de “The Rise of the Creative Class”, a UNESCO anunciou a implantação de sua Rede de Cidades Criativas, com os objetivos de promover o desenvolvimento socioeconômico e cultural de suas cidades através das indústrias criativas e de conectar social e culturalmente comunidades diversas. Esta ação contribuiu imensamente para despertar o potencial econômico do binômio ‘cidade-criatividade’, que seria fortalecido ainda mais em função da crise financeira conflagrada em 2008. Como consequência da popularidade deste conceito lucrativo, até o ano de 2014, 69 cidades passaram a configurar oficialmente a rede da UNESCO. O que podemos perceber, no entanto, é que, com poucas exceções, a maioria destas cidades é desconhecida no cenário internacional. A esperança de seus gestores é que o novo status de ‘cidade criativa’ contribua para alavancar sua visibilidade e crescimento econômico. Cabe ressaltar aqui que, apesar da grande popularidade entre os gestores urbanos, a polêmica em torno da “teoria de classe” de Florida também tem sido significativa, havendo inúmeras críticas à distinção congelante entre os vencedores e perdedores da economia urbana, à combinação de pessoas muito diferentes e com objetivos pessoais e profissionais diversos em uma única classe social homogênea e à glorificação de um grupo de gentrificadores como bravos exploradores urbanos (SELDIN, 2015a). Krätke (2011) salienta inclusive que, apesar de geralmente possuir uma conotação positiva, a ‘criatividade’ como conceito é algo vago e passível de diversas interpretações. Isso porque se trata de uma atividade essencialmente humana, e, portanto, subjetiva. O autor afirma que é o ator humano, e não as coisas ou territórios, que são criativos, levando-o a crer que a noção de ‘cidade criativa’ não passaria de uma ficção (p. 03). Para Krätke (2011), a busca pelo status de ‘cidade criativa’ surgiu, portanto, como uma nova etapa do marketing urbano e do processo de venda das imagens urbanas – um novo slogan a ser explorado na competição entre cidades. Essa nova ideologia teria impulsionado, na última década, a criação de estratégias de desenvolvimento espacial baseados na expansão de setores industriais especializados, mais especificamente os serviços financeiros e corporativos do tipo FIRE – “finance, insurance & real estate” (p. 20). Dentre estas estratégias estariam os projetos de extensão de centros de negócios e a reconversão de sítios industriais abandonados, não mais apenas em espaços de cultura e entretenimento, mas em clusters ligados às indústrias criativas e tecnológicas. Apesar das muitas críticas, a criação de políticas e projetos específicos para atrair a “classe criativa”, conforme o proposto por Richard Florida, tem sido adotada por gestores urbanos de diferentes cidades. Aqui, abordaremos mais especificamente o caso de Berlim, onde o status de ‘cidade criativa’ encontra-se mais consolidado e onde a ênfase recente em políticas voltadas para a indústria criativa tem gerado uma forte reação por parte da população local; bem como o caso do Rio de Janeiro, onde o status começa a ganhar atenção, mesmo que ainda pareado com um quadro de megaeventos e arquiteturas espetaculares.

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3. BERLIM: CIDADE MODELO PARA O PARADIGMA DA CRIATIVIDADE? A cidade de Berlim assistiu a uma intensificação considerável de seus processos de ‘culturalização’ e branding urbano após a queda do muro e a reunificação da Alemanha em 1989 e 1990, respectivamente, como propõe Colomb (2012). No início dos anos 1990, a necessidade de reformular a imagem desta cidade, posicionando-a como uma potência econômica e política europeia era urgente, o que culminou em um processo de “ocidentalização”, norteado, em grande parte, pelas mesmas estratégias de ‘planejamento cultural estratégico’ vistas em outras cidades, porém de forma muito mais intensa e rápida. Dentre os projetos urbanos e arquitetônicos mais emblemáticos calcados na instrumentalização da cultura, destacamos a regeneração da Potsdamer Platz – uma antiga área adjacente ao muro de Berlim, onde agora situam-se edifícios de escritórios e o complexo de entretenimento Sony Center, e as caras renovações da Ilha de Museus (Museumsinsel) e do edifício do Parlamento (Reichstag) – este último dotado de uma nova cúpula de vidro projetada pelo arquiteto britânico Norman Foster. Até o início da década de 2000, Berlim já havia se reestabelecido como uma ‘capital de cultura’ atraente e um disputado destino turístico, porém isso não foi suficiente para evitar que a cidade enfrentasse uma grave crise financeira em decorrência de um escandaloso colapso bancário, envolvendo partidos políticos e o setor imobiliário. Assim, a partir de 2001, com a ascensão de outra coalizão partidária ao poder, novas políticas foram criadas a fim repaginar a imagem da cidade, atrair capitais de outros setores e enfatizar o papel de Berlim como uma proeminente ‘cidade criativa’. Sob a liderança do então prefeito Klaus Wowereit (2001-2014), foi adotada uma postura de benefício às indústrias criativas e de publicidade da capital alemão como uma ‘metrópole cosmopolita’ – excitante, socialmente liberal e dotada de uma cena cultural dinâmica, distribuída em espaços autênticos. Tratava-se de uma clara transição das políticas aplicadas nos anos 1990 pelos partidos mais conservadores, que pregavam uma imagem de cidade ordenada, fechada à imigração e oposta às ocupações e formas alternativas de apropriação do espaço. A influência da teoria de Richard Florida em Berlim tornou-se clara através dos discursos de Wowereit, incluindo sua famosa frase proferida durante uma entrevista de TV em 2004 sobre a cidade ser “pobre, mas sexy”. Em outras palavras, Berlim estava economicamente falida, porém possuía uma imagem atraente – e que poderia ser explorada criativamente em nome do lucro. Cabe ressaltar que a insuficiência de recursos financeiros constituía uma realidade com a qual a cidade e seus habitantes vinham lidando há décadas. No contexto europeu, Berlim sempre foi famosa pelo estilo de vida barato, atraindo muitos jovens, boêmios e artistas, seduzidos pelos relativamente baixos aluguéis e custos de vida (principalmente em comparação com outras cidades europeias e alemães). Por isso, as medidas inicialmente adotadas pelo prefeito para a exploração da faceta sexy de Berlim iam de encontro com a consolidação desta imagem. Dentre estas medidas, destacamos: a facilitação da entrada e concessão de vistos para artistas estrangeiros;

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a bem sucedida candidatura de Berlim para adentrar a Rede de Cidades Criativas da UNESCO (sob a especialidade do Design); a criação de um novo slogan para a cidade – “be Berlin”; e o encorajamento da formação de clusters de empresas criativas em espaços degradados. Em consonância com a teoria de Florida, as agências de marketing urbano locais passaram a concentrar seus esforços na promoção da subcultura como ponto atrativo da cidade, dando atenção especial aos espaços dotados de ‘uso temporário’ (Zwischennutzung) – vistos como autênticos e como centros da cultura alternativa berlinense. Atenção especial foi dada às ‘praias urbanas’ montadas na margem do Rio Spree (que corta a cidade) durante o verão, aos cafés e bares de aparência mais decadente, aos mercados de pulgas e aos squats culturais. A apropriação, pelo marketing urbano berlinense, de espaços culturais criados espontaneamente é um ponto que merece atenção especial aqui. Esclarecemos que, em Berlim, a prática do uso temporário foi possibilitada pela presença abundante de vazios intersticiais, lacunas e brechas espaciais – em sua maioria resultantes de processos de desindustrialização ou da queda do muro. Tratava-se de antigas áreas industriais, de companhias de transporte e serviços urbanos, terrenos de edifícios demolidos, entre outros espaços, onde os custos de revitalização mostravam-se muito altos. Por isso, foram deixados de lado, tanto pelo Estado quanto por seus proprietários, que o alugavam por preços muito baixos ou simplesmente permitiam sua ocupação em troca da proteção contra o vandalismo ou contra a degradação. O resultado deste relativo descaso implicou em uma demonstração de real criatividade por parte dos ocupantes e usuários temporários, que, com pouco capital e muita força de vontade, conseguiram revitalizar os espaços através de suas atividades, remodelando sua imagem e contribuindo para aumentar seu valor imobiliário. Apropriações alternativas do espaço somadas à riqueza cultural da cidade eventualmente fariam com que, até o fim da década de 2000, Berlim alcançasse o novo status almejado de ‘cidade criativa’, atraindo novos habitantes e sendo mundialmente celebrada como um lugar jovem e autêntico. A ascensão da Berlim Criativa, no entanto, não veio sem custos. O início da década de 2010 marcou a constatação de enormes gastos em obras públicas, de uma nova estagnação econômica e de um fortalecimento das medidas de austeridade do governo, implicando na diminuição de serviços providos pelo Estado e em um aumento do número de berlinenses dependentes de assistência social. A cidade, antes conhecida pelos baratos alugueis, viu subir consideravelmente os preços e o custo de vida, principalmente nos distritos situados na antiga Berlim Oriental e cujas imagens eram altamente ligadas à subcultura. A nova atenção recebida pelos espaços tidos como alternativos implicou em processos de valorização e especulação imobiliária, gerando diversos despejos dos terrenos tomados por usos temporários, squats e comunas, cujos contratos de permanência fixados durante as décadas de 1980-1990 chegavam ao fim. A partir de 2010, inúmeras ocupações residenciais e culturais que figuravam nas brochuras

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promocionais oficiais foram despejadas ou ameaçadas de despejo pelos proprietários – em sua maior parte instituições financeiras e incorporadoras interessadas em transformar os terrenos em clusters criativos. Em pouco tempo, a população local começou a perceber que as políticas adotadas contribuíam para o acúmulo de riquezas de apenas uma pequena parcela da população e que a visão de crescimento criativo da cidade contribuía para a segregação, a exclusão e a marginalização de certos grupos e comunidades com interesses desconsiderados no processo de branding urbano. A percepção do fortalecimento da gentrificação e das crescentes desigualdades socioeconômicas como resultados diretos das políticas públicas de desenvolvimento urbano-cultural vem gerando um forte movimento de reação por parte da população berlinense, historicamente acostumada a reivindicar sua participação no processo de construção da cidade. Ironicamente, esta reação tem sido encabeçada por uma parte considerável daquela que constituiria a “classe criativa” local: artistas autônomos, pequenos empreendedores, ativistas ambientais e lideranças locais. Nos últimos anos, campanhas, passeatas, panfletagens e protestos vêm sendo realizados contra os novos grandes projetos urbanos, deflagrando uma onda de movimentos sociais que lutam contra o chamado ‘desenvolvimento criativo’ da cidade. Um dos exemplos desta luta consiste no movimento social MediaSpree Versenken (afundem o MediaSpree), iniciado em 2006, para protestar contra a operação urbana MediaSpree. Esta previa o desenvolvimento de projetos de empresas ligadas ao setor criativo, bem como a implantação de arenas de eventos, edifícios de escritórios, hotéis e apartamentos de luxo em uma faixa de 3,7 quilômetros em ambos lados do Rio Spree. O movimento social deflagrava a aversão da população local ao plano, que propunha a venda de grandes parcelas de terras públicas para investidores privados, bem como a elaboração de contratos imobiliários que negligenciavam a legislação urbana vigente. Ademais, o MediaSpree previa a retomada e a renovação de antigos armazéns e edifícios industriais em ambos os lados do rio – muitos dos quais eram ocupados por squats, bares e clubes alternativos há décadas, possuindo extrema popularidade. Dentre os slogans do movimento destacavam-se “salve sua cidade”, “lute por sua cidade” e “parem a privatização”. Em 2008, o movimento conseguiu que fosse realizado um referendo público acerca do plano, levando aproximadamente 300 mil habitantes a votarem por sua revisão (SELDIN, 2015). O movimento MediaSpree Versenken abriu espaço para outros protestos contra as políticas de incentivo ao desenvolvimento criativo berlinense. Em maio de 2014, outro referendo foi realizado na cidade, desta vez em função de um projeto para o antigo aeroporto de Berlim Oriental, o Tempelhof – uma área de cerca de 356 hectares, transformada em parque público em 2010. Mais de 700 mil eleitores votaram contra a construção de apartamentos de luxo e uma grande biblioteca central no terreno, provando que a população local não aceita mais os projetos

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que privatizam indiscriminadamente o espaço público. No caso de Berlim, a crítica feita pela própria população é de que as políticas urbano-culturais recentes vêm intensificando fronteiras invisíveis, que não se limitam mais à tradicional divisão física entre leste e oeste. As novas linhas de fragmentação desta cidade são diversas e representam ilhas: ilhas de criatividade, ilhas de riqueza, ilhas de qualificação profissional, ilhas de migração... 4. DISTRITO CRIATIVO DO PORTO NO RIO DE JANEIRO: PARA QUEM? Enquanto assistimos às inúmeras críticas às políticas que incentivam indiscriminadamente a economia criativa, trazendo gentrificação e desigualdade em cidades como Berlim, no Brasil, continuamos a perseguir o novo paradigma, como o observado recentemente na capital carioca. Porém, é necessário destacar que, no caso do Rio de Janeiro, os planos de renovação urbana vêm incentivando um modelo de planejamento estratégico de fundo cultural mais condizente com a primeira fase do processo de ‘culturalização’ das cidades (observado nos EUA e na Europa na década de 1990) e que pouco se relaciona com o que já foi teorizado sobre economia e criatividade no século XXI. A construção de grandes equipamentos culturais, a abertura para os megaeventos (Copa do Mundo, Olimpíadas) e a produção de espaços espetaculares em meio à pobre infraestrutura urbana, altos preços e pouca tolerância social chocam-se com a ideia de uma cidade que deveria investir em profissionais do conhecimento e em amenidades de caráter cultural autêntico e alternativo, pouco espetacular. Essa mistura de discursos contribui para o desenvolvimento de políticas urbano-culturais disparates, confusas e pouco eficientes. Um bom exemplo do choque provocado pela confusão de discursos político-culturais no Rio de Janeiro consiste no caso da zona portuária, em especial no âmbito da operação urbana Porto Maravilha. Ressaltamos que o quadro de esvaziamento da região portuária carioca já despertava o interesse da prefeitura local e da iniciativa privada para a sua revitalização desde os anos 1980. Com a escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, foi finalmente concretizada a operação Porto Maravilha, com a intenção admitida de promover o desenvolvimento econômico da região em função de sua localização estratégica. Para tal, buscou-se apoio em um forte discurso de revitalização cultural do espaço urbano através da introdução de um programa de valorização dos pontos turísticos locais, como um mirante no topo do Morro da Providência, acompanhado de teleférico e plano inclinado com custo superior a R$ 75 milhões (FAULHABER & AZEVEDO, 2015), o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e o Museu do Amanhã (projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava). Em meio à implantação de grandes equipamentos culturais dotados de arquitetura de grife, em 2015, foi anunciada na área a criação do Distrito Criativo do Porto. O evento de lançamento do mesmo ocorrido no auditório do MAR trouxe representantes da Prefeitura, da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), da Firjan, do Sebrae, do

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Instituto Light e dos coletivos locais, que se apresentaram para uma plateia composta predominantemente de membros de empresas convidadas. A ideia do evento era claramente a “venda” da ideia da região como um cluster criativo em potencial, um local cuja imagem será repaginada e futuramente capaz de se transformar em referência da economia criativa brasileira, passível de “internacionalização e competitividade” em meio à um quadro de “efervescência carioca”3. Neste contexto, a região é apresentada como se fosse anteriormente vazia – de pessoas, de identidade cultural, desconsiderando a sua enorme importância para a consolidação da cultura local (na região, localiza-se, por exemplo, a Pedra do Sal – área tombada e referência para a cultura negra, para as comunidades quilombolas, para o samba e choro). Mais do que isso, o compromisso social e a contrapartida do Distrito à população ali residente, até então, são quase nulos, relegados a pequenas ações, como um projeto de qualificação profissional dos alunos de uma escola local – algo que não seria capaz de anular o imenso processo de gentrificação que ocorreria caso o Distrito obtivesse o sucesso atentado. O caráter excessivamente econômico desta iniciativa vai de encontro com as intenções da própria operação Porto Maravilha, polêmica e criticada pelas inúmeras remoções provocadas – especialmente no Morro da Providência, como citam Faulhaber e Azevedo (2015), pelo excessivo foco nos empreendimentos imobiliários, pela pouca preocupação com habitação social e pelo até então não cumprimento do legado prometido, como enfatizam Galiza, Vaz e da Silva (2014). Até este momento, o sucesso do Distrito em atrair novos negócios criativos para a região e criar o ‘ar de efervescência’ necessário para sua total requalificação parece ameaçado em virtude do esvaziamento e da falta de sucesso dos empreendimentos imobiliários locais. Em outubro de 2015, a Folha de São Paulo mencionava os milhares de metros quadrados desertos de edifícios corporativos construídos na região, atentando para a pouca probabilidade de ocupação dos mesmos em função da atual crise econômica. De acordo com a reportagem, a zona portuária carioca conta atualmente com uma taxa de 22,05% de edifícios vazios4, o que nos leva a crer na falta de articulação entre políticas urbanas e culturais para compreender o que seria necessário para a consolidação de um Distrito que funcionasse efetivamente como polo criativo da cidade. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que observamos, de forma geral, é que a ‘cidade criativa’ de hoje não se mostra necessariamente aberta para acolher as ideias inovadoras e capazes de romper com padrões urbanos estabelecidos, mas sim para processos que se mostrem economicamente criativos. Neste sentido, Frases proferidas durante o evento de lançamento do Distrito Criativo do Porto no MAR em 11 ago. 2015. VILLAS BÔAS, Bruno. Desertos, prédios esperam empresas no Rio. Folha de São Paulo, 25 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2016.

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a criatividade, ao invés de espontânea, acaba pré-determinada, através de categorias rentáveis em um esquema de perversão do seu conceito primário de originalidade e autenticidade. No âmbito do planejamento, observamos que este novo paradigma acaba surgindo como mais um jargão urbano, como ‘sustentabilidade’ e ‘diversidade’, sendo utilizado para justificar projetos e políticas que atendem a interesses específicos dos detentores do capital. Ao analisarmos Berlim e Rio de Janeiro como vitrines para a transição de paradigmas urbanos – da ‘capital de cultura’ à ‘cidade criativa’ – percebemos que seu mais recente título consiste apenas em uma repaginação de processos de culturalização urbana percebidos há mais de quatro décadas. Mais do que isso, os casos provam que a ‘cidade criativa’ é uma cidade contraditória, pois não é necessariamente pensada em benefício daqueles que alega promover – uma “classe criativa” que acaba expulsa das áreas que ajuda a qualificar. Em função de sua dependência da autenticidade e inovação, há de se considerar também que a ‘cidade criativa’ em voga em cada momento esteja sempre em transição. Neste sentido, nos cabe indagar: o que será, no futuro próximo, das cidades que hoje apostam todas as suas cartas em um modelo fadado a ser constantemente superado?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Otília. B. Uma Estratégia Fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: Arantes, O.B., Vainer, C.; Maricato, E. (Eds.). A Cidade do Pensamento Único. Petrópolis: Vozes, 2002. BIANCHINI, Franco. Remaking European Cities: the role of cultural policies. In: Bianchini, F.; Parkinson, M. (Eds.). Cultural Policy and Urban Regeneration. Nova York: Manchester University Press, 1993. COLOMB, Claire. Staging The New Berlin: place marketing and the politics of urban reinvention post -1989. Londres: Routledge, 2012. FAULHABER, Lucas.; AZEVEDO, Lena. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015. FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class. Nova York: Basic Books, 2002. FLORIDA, Richard. Cities and the Creative Class. Nova York: Routledge, 2005. GALIZA, Helena.; VAZ, Lilian Fessler.; DA SILVA, Maria Laís. Grandes Eventos, Obras e Remoções na Cidade do Rio de Janeiro, do Século XIX ao XXI. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEGAEVENTS AND THE CITY, II, Rio de Janeiro, 2014. Anais... Rio de Janeiro: Ippur, 2014. HOLM, Andrej. Berlin’s Gentrification mainstream. In: Bernt, M., Grell, B.; Holm, A. (Orgs.). The Berlin Reader. Berlim: Transcript, p. 171-187, 2013. KRÄTKE, Stephan. The Creative Capital of Cities. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011. LANDRY, Charles. & BIANCHINI, Franco. The Creative City. Londres: Demos, 1995.

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SELDIN, Claudia. O Discurso da Criatividade na Cidade: Possibilidades de Resistência sob a Inspiração de Berlim. In: ENANPUR, XVI, Belo Horizonte, 2015. Anais… Belo Horizonte: Anpur, 2015a. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2016. SELDIN, Claudia. Práticas Culturais Como Insurgências Urbanas: o Caso do Squat Kunsthaus Tacheles em Berlim. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Recife: ANPUR, v.18, dez. 2015b. VAZ, Lilian Fessler. A “Culturalização” do Planejamento e da Cidade: Novos Modelos? Cadernos PPGAU/FAUFBA, ano 2, n. especial, p. 31-42, 2004.

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FORTALEZA DA DESIGUALDADE E DA CRIATIVIDADE: REFLEXÕES SOBRE AS CIDADES NO SÉCULO XXI Claudia Sousa Leitão1 Luciana Lima Guilherme2 Raquel Viana Gondim3 RESUMO: O século 21 será (e já é!) o século das cidades. Estudos e pesquisas nacionais e internacionais indicam que a vida rural foi gradativamente se tornando menos atraente e, desde a segunda metade do século 20, um grande contingente da população do mundo, que vivia no interior dos países, passa a buscar nas cidades novas oportunidades. Esse fenômeno trouxe grandes impactos para a vida urbana no planeta, especialmente, para os países em desenvolvimento: o inchaço das cidades, seguido de uma infraestrutura insatisfatória ou ausente, o aumento do desemprego, o incremento da violência e do consumo de drogas, entre outras mazelas que transformaram as cidades em espaços de exclusão e de desumanização. Esse artigo reflete sobre o conceito de território criativo, a partir da análise de Peter Hall sobre as ‘cidades eternas’, assim como pelo conceito de economia criativa proposto em 2011 pela Secretaria Nacional da Economia Criativa (SEC). Por último, toma a cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, como objeto de pesquisa, no intuito de identificar os paradoxos contidos na construção da categoria ‘cidade criativa’. PALAVRAS-CHAVE: Economia criativa, cidade criativa, Setores criativos.

1. O DESTINO DAS CIDADES E AS CIDADES COMO DESTINO A partir do seu livro, “As cidades do Amanhã”, Peter Hall reflete sobre as chamadas ‘cidades eternas’, aquelas que viveram tempos áureos ainda hoje presentes nas representações que Doutora em Sociologia pela Sorbonne, Université René Descartes, Paris V. É professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará (UECE), onde lidera o Grupo de Pesquisa sobre Políticas Públicas e Indústrias Criativas e participa da Rede de Pesquisadores de Políticas Culturais-REDEPCULT, tendo sido também pesquisadora e consultora ad hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico -CNPq. Consultora em Políticas Públicas para a Economia Criativa da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). E-mail: [email protected] 2 Doutoranda do Programa de Pós-grad. Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED /IE/UFRJ). Professora de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). E-mail: [email protected] 3 Doutoranda em Ciências da Cultura UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro – Vila Real, Portugal).  Professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) nos cursos de Audiovisual e Novas Mídias e Design de Moda. E-mail:[email protected]. 1

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fazemos das cidades nas quais gostaríamos de ter vivido: Atenas de Péricles, Florença renascentista, Londres elizabethana, Paris e Viena modernas, assim como Berlim contemporânea. O urbanista inglês não constrói um pensamento determinista para explicar o êxito dessas cidades a partir de seus planejamentos. Pelo contrário, aponta os desastres cometidos por esses processos, observando que muitas decisões políticas, tomadas a partir de diagnósticos ou planos, foram, em muitos casos, profundamente danosas às cidades, posto que desconectadas dos desejos de suas populações (FREITAG, 2005 apud LEITÃO; DOS SANTOS, 2006). Embora reconheça a grande contribuição das ‘cidades eternas’ para mundo contemporâneo, o urbanista inglês também as interpreta a partir a reflexão de Benjamim (LEITÃO; DOS SANTOS, 2006, p. 220): “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie”. Desse modo, observa que muitas cidades monumentais, hoje grandes destinos turísticos no mundo, foram construídas a partir do aniquilamento de outras culturas, tornando hegemônicos seus legados e histórias, em detrimento de outros legados e histórias. Essa constatação não o impede de buscar identificar as razões pelas quais essas cidades atingiram, em um determinado momento histórico, um desenvolvimento notável. Ao procurar denominadores comuns entre elas, encontra algumas características interessantes: • Em nenhuma das seis cidades a ‘idade de ouro’ surgiu do nada ou de repente. Em todos os casos, ela foi fruto de longos processos de maturação, em que o investimento em arte e o incentivo à cultura constituíram uma constante; • Todas as cidades atingem o auge, o florescimento de sua cultura, em um período de transição e ruptura com as fases históricas anteriores, aventurando-se em um outro campo cultural e em território desconhecido; • Todas essas cidades, que poderíamos chamar de ‘criativas’, caracterizam-se por uma atitude cosmopolita: com abertura para outras terras e gentes, sem xenofobia ou falsos nacionalismos; • Finalmente, todas as cidades investiram em infraestrutura tecnológica e em educação para produzir mudanças em suas dinâmicas econômicas, capazes de permitir a eclosão da inventividade e da inovação. (LEITÃO; DOS SANTOS, 2006, p. 149). As observações de Hall são fundamentais para pensarmos as cidades do século 21. Ao enfatizar os papéis da cultura e da ciência e tecnologia para o seu desenvolvimento, o urbanista acaba por nos oferecer boas pistas para refletirmos sobre os fundamentos que devem legitimar a categoria ‘cidades criativa’. Senão, vejamos. No novo século, distritos, bairros, cidades, bacias ou regiões, em diversos países, vem sendo estruturadas para se tornarem ‘territórios criativos’. Dessa forma, passam a se constituir o locus privilegiado de políticas, programas e ações voltados à criação de uma ambiência propícia à produção, difusão e consumo da criatividade e da cultura que, através das tecnologias tradicio-

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nais e contemporâneas poderão favorecer a produção de bens e serviços com alto valor agregado. Esses territórios passam a buscar fundamento do seu desenvolvimento na economia criativa, uma economia fruto dos avanços da economia do conhecimento e da cultura, cujos grandes ativos são a memória, a diversidade cultural, assim como o conhecimento científico e tecnológico. Se a criatividade é uma invenção da cultura, como afirma Celso Furtado (2008, p.116), a economia criativa é uma aposta em um novo desenvolvimento a partir e através da cultura. Embora não haja inovação sem criatividade, criatividade não é sinônimo de inovação. Inovação é a transformação do conhecimento e da criatividade em riqueza e bem-estar social. Três elementos aparecem como essenciais para a inovação: o conhecimento (a ciência) e criatividade, que constituem sua matéria-prima, aliados à indispensável transformação, o seu processo. O fato é que a inovação contém necessariamente conteúdo cultural, uma vez que tem por objetivo, direto ou indireto, participar e qualificar as nossas formas de viver e, para o bem ou para o mal, afetá-la. Em outras palavras, o objeto da inovação é intervir nos nossos meios de produção, comunicação, deslocamento, saúde, moradia, alimentação, entretenimento, enfim, no nosso cotidiano, para torná-lo mais confortável, mais digno e mais humano. Por isso, são os conteúdos culturais das tecnologias que desempenham papel essencial no processo de transformação da ciência em riqueza e bem-estar. Dito de outra forma, parte significativa do processo inovador reside na incorporação da cultura/criatividade à tecnologia. Essa é a tarefa precípua das políticas públicas para a economia criativa nas cidades, pois elas constituem fundamento e condição necessária para a transformação dos seus destinos. Afinal, uma ‘cidade criativa’ deverá ser, antes de tudo, uma cidade humana, que traduza na qualidade de vida de sua população os direitos e deveres essenciais aos direitos à cidade. 2. A CULTURA COMO EIXO ESTRATÉGICO DO DESENVOLVIMENTO: A NOVA AGENDA DA ECONOMIA CRIATIVA NO MUNDO Em 2001, quando o inglês John Hawkins escreveu seu livro The Creative Economy How People Can Make Money From Ideas (“Economia Criativa – Como as Pessoas Podem Ganhar Dinheiro a Partir de Ideias”, tradução livre), certamente não imaginou que produziria um best seller. Mas, Howkins trouxe à baila uma reflexão sobre a qual ainda poucos haviam se debruçado e que foi posteriormente difundida nos debates sobre desenvolvimento: a de que os bens e serviços produzidos pela imaginação ganhariam cada vez mais prestígio na sociedade do conhecimento do século 21. As discussões sobre as dinâmicas econômicas desses bens e serviços não tardaram em chegar à Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) que lança o primeiro Relatório Mundial sobre a Economia Criativa – Creative Economy Report 2008, num esforço de aprofundar o conceito e de compilar informações e dados sobre a econo-

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mia dos bens simbólicos dentro de uma perspectiva mundial. As indústrias criativas compreenderiam um conjunto de atividades baseadas no conhecimento, que produzem bens tangíveis e intangíveis, intelectuais ou artísticos, com conteúdo criativo e valor econômico. Elas constituem os ciclos de criação, produção e distribuição de produtos e serviços que utilizam criatividade e capital intelectual como insumos primários; constituem um conjunto de atividades baseadas em conhecimento, focadas, entre outros, nas artes, que potencialmente geram receitas de vendas e direitos de propriedade intelectual; constituem produtos tangíveis e serviços intelectuais ou artísticos intangíveis com conteúdo criativo, valor econômico e objetivos de mercado; posicionam-se no cruzamento entre os setores artísticos, de serviços e industriais e constituem um novo setor dinâmico no comércio mundial. Em relação aos setores criativos, organismos internacionais, como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), propuseram sistemas de classificação (frameworks) que apresentam e organizam estes setores a partir de categorias no sentido de criar uma base comum para o desenvolvimento de análises comparativas entre os diversos países. A seguir, a proposta de classificação sugerida pela UNCTAD: Figura 1: Classificação da UNCTAD para as indústrias criativas

Fonte: UNCTAD (2010; p. 8)

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A UNESCO avança no desenho da proposta de um framework, sugerindo uma estrutura mais compacta, ainda que mantendo uma convergência com a classificação setorial da UNCTAD. Vide a seguir a proposta da UNESCO: Figura 2: Classificação da UNESCO para os setores culturais e criativos

Fonte: BRASIL (2011, p.28)

Os relatórios produzidos pela UNCTAD e pela UNESCO tornaram-se marcos no reconhecimento da relevância estratégica da economia criativa como vetor de desenvolvimento, demonstrando, especialmente, a força das indústrias criativas. A mensuração dessa economia, contudo, é fruto da compilação de dados produzidos pelos diversos países, sem a presença de uma cesta de indicadores e de um tratamento estatístico comum, o que fragiliza os resultados aferidos. De qualquer modo, em suas três edições (2008, 2010 e 2013), vão gradativamente confirmando algumas hipóteses sobre a força dessa nova economia; “apesar da crise financeira mundial ter provocado queda drástica no comércio internacional em 2008, entre 2002 e 2011, as exportações de bens e serviços criativos cresceram, anualmente, em torno de 12,1% nos países em desenvolvimento, chegando a US$ 227 bilhões em 2011 (UNCTAD, 2013), destacando-se como um dos setores mais dinâmicos do comércio internacional” (UNCTAD, 2012; UNESCO, 2013): A economia criativa é um conceito em evolução baseado em ativos criativos que potencialmente geram crescimento e desenvolvimento econômico; 564

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Ela pode estimular a geração de renda, a criação de empregos e a exportação de ganhos, ao mesmo tempo, que promove inclusão social, diversidade cultural e desenvolvimento humano; Ela abraça aspectos econômicos, culturais e sociais que interagem com objetivos de tecnologia, propriedade intelectual e turismo; É um conjunto de atividades econômicas baseado no conhecimento, caracterizado pela dimensão do desenvolvimento e de interligações cruzadas em macro e micro níveis para a economia em geral; É uma opção de desenvolvimento viável que demanda respostas de políticas inovadoras e multidisciplinares, além de ação interministerial; Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, também enfatiza os papéis da economia criativa no desenvolvimento das nações: Além de gerar postos de trabalho, a economia criativa contribui com o bem-estar geral das comunidades, fomenta a autoestima individual e a qualidade de vida, o que resulta em um desenvolvimento sustentável e inclusivo. Em momentos em que a comunidade internacional está estruturando uma nova agenda de desenvolvimento pós-2015, é vital reconhecer a importância e o poder dos setores cultural e criativo como impulsionadores de desenvolvimento (UNESCO, 2013, p.11). No Relatório de 2013 a UNESCO inclui exemplos interessantes que demonstram a contribuição dos setores culturais e criativos para a qualidade de vida dos países em desenvolvimento. Na Argentina, por exemplo, as indústrias culturais e criativas empregam cerca de 300.000 pessoas e representam 3,5% do PIB do país. No Marrocos, as indústrias editorial e gráfica empregam 1,8% da população ativa, com um volume de negócios de mais de 370 milhões de dólares, assim como o valor de mercado da indústria musical, que era de 54 milhões de dólares em 2009, e que não cessa de aumentar desde então. Em Bangkok (Tailândia), a indústria da moda por si só tem dado lugar a 20.000 negócios de diversas proporções, envolvendo muitos jovens que ganham a vida como designers de pequena escala. Em Chiang Mai, também na Tailândia, a Iniciativa Cidade Criativa Chiang Mai (CMCC) é um laboratório de ideias e uma plataforma de atividades em rede que associa ativistas do setor de educação, membros de organismos privados e estatais e grupos comunitários locais. Apoiando-se no acervo cultural local, a CMCC busca tornar a cidade mais atrativa como lugar de residência, trabalho e investimento e promovê-la como destino para investimento, negócios e indústria criativa. Na cidade de Pikine (Senegal), a Associação Africulturban criou uma academia de hip hop que ensina os jovens: inglês, grafismo e design digital, produção de música e de vídeo, marketing, além de como chegar a ser um disc-jockey. Este programa inovador está ajudando os jovens professionais do setor criativo a desenvolverem-se com mais eficácia nos mercados local e mundial, ambos em constante evolução artística e tecnológica.

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3. A ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL Vinte e cinco anos depois da gestão de Celso Furtado, à frente do Ministério da Cultura, institucionalizou-se no Governo Federal a Secretaria da Economia Criativa, para liderar políticas públicas voltadas a retomar, reavivar e ressignificar as relações e as conexões entre cultura e desenvolvimento, com a missão de contribuir para transformar a criatividade brasileira em inovação e a inovação em riqueza. A Secretaria da Economia Criativa nasce sob o pensamento de Furtado: Todos os povos lutam para ter acesso ao patrimônio cultural comum da humanidade, que se enriquece permanentemente. Resta saber quais serão s povos que continuarão a contribuir para esse enriquecimento e quais aqueles que serão relegados ao papel passivo de simples consumidores de bens culturais adquiridos nos mercados. Ter ou não ter direito à criatividade. Eis a questão. (FURTADO, 1984, p.25). Enquanto política pública, a economia criativa foi assim denominada a economia resultante: [...] das dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/ fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência de sua dimensão simbólica (BRASIL, 2012, p. 23). Na perspectiva da construção de um conteúdo próprio às economias criativas ibero-americanas, caribenhas e africanas, a criação da Secretaria da Economia Criativa brasileira constituiu um fato animador, pois a Secretaria, ao invés  de dogmatizar um conceito de economia criativa, busca garantir princípios que devem fundamentá-la: • Diversidade Cultural: valorizar, proteger e promover a diversidade das expressões culturais nacionais como forma de garantir a sua originalidade, a sua força e seu potencial de crescimento; • Inclusão social: garantir a inclusão integral de segmentos da população que em situação de vulnerabilidade social por meio da formação e qualificação profissional e da geração de oportunidades de trabalho, renda e empreendimentos criativos; • Sustentabilidade: promover o desenvolvimento do território e de seus habitantes garantindo a sustentabilidade ambiental, social, cultural e econômica; • Inovação: fomentar práticas de inovação em todos os setores criativos, em especial naqueles cujos produtos são frutos da integração entre novas tecnologias e conteúdos culturais. 4. A ECONOMIA CRIATIVA E O DIREITO À CIDADE Se o século 21 é o século das cidades, é tarefa dos governos e das organizações internacionais formular políticas e garantir os direitos dos indivíduos à vida com qualidade e dignidade 566

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nas cidades. Publicada na França em 2000, a “Carta Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem na Cidade” constitui um desses documentos: Considerando que a maior parte da população do planeta vive hoje em cidades, Considerando que as cidades constituem o futuro da humanidade, Considerando a crise dos estados nacionais e o crescimento dos valores democráticos de proximidade possíveis nas cidades, Considerando que as cidades surgem como a possibilidade de um novo espaço político e social no século XXI, Considerando que uma boa gestão das cidades requer o respeito e a garantia dos Direitos do Homem para todos os habitantes, assim como a promoção dos valores de coesão social e de proteção dos mais vulneráveis, Considerando a necessidade de qualificação dos espaços públicos para todos s nas cidades, As cidades europeias assumem os seguintes compromissos: Parte I. DAS DISPOSIÇÕES GERAIS Art. I. Direito à Cidade A cidade constitui um espaço coletivo pertencente a todos os habitantes que têm o direito de nela encontrar as condições de desenvolvimento político, social e ambiental, ao mesmo tempo em que assumam seus deveres de solidariedade. As autoridades municipais favorecem, por todos os meios à sua disposição, o respeito à dignidade de todos e à qualidade de vida de seus habitantes. PARTE III. DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Art. XV. Direito à Cultura Os cidadãos das cidades têm direito à cultura em todas as suas expressões, manifestações e modalidades possíveis. As autoridades locais, em cooperação com as associações culturais e o setor privado, fomentam o desenvolvimento da vida cultural urbana no respeito à diversidade, Espaços públicos propícios à atividades culturais e sociais são disponibilizados aos cidadãos das cidades em condições iguais a todos.[...]

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Nesse contexto, elas se comprometem a respeitar o patrimônio natural, histórico, arquitetônico, cultural e artístico das cidades e de promover a renovação do patrimônio existente [...] Art. XXI. Direito ao Lazer As cidades reconhecem o direito dos cidadãos a dispor de tempo livre. As autoridades municipais garantem a existência de espaços lúdicos de qualidade abertos a todas as crianças sem discriminação. Como podemos observar, a Carta Europeia estabelece os direitos essenciais dos indivíduos nas cidades que, por sua vez, favorecem às dinâmicas econômicas relativas à criação, produção, difusão, distribuição e consumo/fruição dos bens e serviços criativos e culturais. Os direitos culturais estão inseridos no direito à cidade são direitos propulsores dessa nova economia dos produtos simbólicos. É o que também afirma Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, por ocasião do Terceiro Fórum Mundial da UNESCO sobre Cultura e Indústrias Culturais, que ocorreu em Florença, entre os dias 2 a 4 de outubro deste ano (UNESCO, 2014): “[...] cultura cria emprego, gera renda e estimula a criatividade. É um vetor multifacetado de valores e identidade. Mais que isso, a cultura é uma alavanca que promove a inclusão social e o diálogo”. Ao final do Fórum de Florença, os participantes adotaram a Declaração de Florença que defende a integração da cultura à agenda de desenvolvimento pós-2015, a qual as Nações Unidas devem adotar no primeiro semestre de 2015. A declaração reflete os resultados de consultas nacionais sobre cultura e desenvolvimento, conduzidas em conjunto em cinco países – Bósnia e Herzegovina, Equador, Mali, Marrocos e Sérvia – pela UNESCO, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). As consultas nacionais revelaram até que ponto a cultura tem o poder de atrair e mobilizar as pessoas. A cultura é a chave para políticas mais inclusivas, portanto, mais sustentáveis’, afirmou o ministro da Cultura do Marrocos, Mohamed Amin Sbihi. Aminata Haidara Sy, representando o ministro da Cultura do Mali, por sua vez, lembrou a importância do patrimônio cultural, por exemplo, os manuscritos e os mausoléus de Timbuktu, para permitir o diálogo e a unidade nacional. O ministro dos Assuntos Civis da Bósnia e Herzegovina, Serdoje Novic, destacou os benefícios que a preservação do patrimônio e o investimento nas artes trazem para o desenvolvimento urbano sustentável. Por fim, o ministro da Cultura da Sérvia, Ivan Tavosac, lembrou o dinamismo do cinema e das artes como um todo, contribuindo para o desenvolvimento e a inovação. (UNESCO, 2014) A compreensão dos significados da economia criativa vai, portanto, crescendo entre as cidades do mundo. A Declaração de Florença (UNESCO, 2014) clama especialmente aos governos, à sociedade civil e ao setor privado para melhorar:

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Capacidades humanas e institucionais; ambientes legais e políticos; novos modelos de parceria e estratégias de investimento inovadoras; pontos de referência e de indicadores de impacto para monitorar e avaliar a contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável. 5. FORTALEZA E SUAS VOCAÇÕES CULTURAIS E CRIATIVAS Vários estudos e pesquisas intentam refletir sobre as origens da criatividade humana. Da Antropologia à Psicologia, inúmeras são as tentativas científicas de explicar, mais do que compreender, a criatividade humana, Afinal, ela seria fruto da necessidade? A carência de recursos materiais seria um motor capaz de estimular a criatividade nos seres humanos? Poderíamos dizer que criatividade dos cearenses decorreria da histórica pobreza de sua população? Embora seja uma cidade litorânea, Fortaleza também carrega consigo os imaginários dos sertões, dos vales e das serras, que constituem o estado. Constituída de famílias que aqui chegaram, em função do êxodo das grandes secas, e que consigo trouxeram seus saberes e fazeres tradicionais, adaptando-os a uma vida urbana e contemporânea, a cidade acabou por reunir tradição e contemporaneidade, riquezas artesanais e novas tecnologias, características interessantes em tempos pós- industriais, em que a dimensão cultural e tecnológica dos bens e serviços se fundem para agregar valor a um território. Fortaleza é, portanto, esta cidade da (con)fusão de mundos e imaginários, ao mesmo tempo sertaneja e litorânea, tradicional e contemporânea, uma capital com grande vocação cultural e econômica para os serviços, característica da economia criativa. Com a retomada da área de Planejamento Estratégico da cidade, em 2012 a prefeitura de Fortaleza dá institucionalidade e apoio de capital humano para o Instituto de Planejamento de Fortaleza (IPLANFOR) que assumiu o desafio de pensar a cidade, seus problemas, desafios e vocações, para construir um Plano capaz de desenvolver a cidade, hoje reconhecida pela grande concentração de renda e pela violência. Assim, se começou a construir o ‘Fortaleza 2040’, um Plano que vem sendo conduzido por experts em diversas áreas do conhecimento, acompanhado da população da cidade e o governo municipal. Enquanto consultoras do ‘Fortaleza 2040’ para a Economia Criativa, levantamos, a partir de dados secundários, as vocações da cidade e de sua região metropolitana relativas aos setores culturais/criativos. Chegamos aos seguintes quadros:

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Figura 3: Fortaleza | Cidade do Patrimônio Cultural e do Design – setores contemplados

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Fortaleza| Cidade das Artes, do Entretenimento e das Mídias Figura 5: Fortaleza | Cidade das Artes, do Entretenimento e das Mídias – setores contemplados.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A economia criativa é uma realidade crescente no mundo e poderia ser um eixo estratégico para o desenvolvimento das cidades brasileiras. Os setores do audiovisual, design de moda, jogos digitais e música são exemplos de atividades com potencial de desenvolvimento econômico para Fortaleza, embora assim ainda não sejam percebidos pelos governos. Enquanto o design de moda é fruto de uma histórica vocação da cidade, que já foi um grande polo de confecções no Brasil, os jogos digitais perscrutam uma tendência que pode vir a ser fortalecida com o necessário apoio de políticas públicas. Relativamente à musica, Fortaleza goza de um reconhecimento

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nacional em função da qualidade dos profissionais atuantes, tanto no núcleo criativo (cantores, músicos, arranjadores, produtores etc) quanto nas demais áreas de atuação dessa cadeia produtiva. No audiovisual, vale ressaltar uma geração de profissionais que vem se destacando na produção de conteúdos relacionados à TV aberta, à TV paga e ao cinema. Por outro lado, a cidade é historicamente vocacionada ao comércio de bens e serviços. E essa vocação pode e deve ser ampliada para o campo cultural e criativo. Para isso, é necessário o desenvolvimento de estratégias capazes de transformar Fortaleza, por exemplo, em uma capital de serviços culturais e criativos. De modo integrado às estratégias de desenvolvimento do turismo na cidade, a economia dos setores das artes e do entretenimento demonstra potencial de crescimento quando associados, por exemplo, às festas, espetáculos e eventos que já fazem parte do calendário turístico cultural da cidade (réveillon, carnaval, festas juninas, festas religiosas, micaretas). Por outro lado, o artesanato e a gastronomia também caminham juntos como insumos estratégicos ao desenvolvimento turístico e cultural da cidade. O talento do cearense para as atividades manuais e artesanais (rendas, bordados, artefatos de decoração, utensílios domésticos) poderia ser melhor aproveitado caso dialogasse de forma mais intensa com o design de interiores e arquitetura. A gastronomia, por sua vez, aparece no setor de serviços como uma possibilidade concreta de produção de riquezas, ampliando o leque de atuação dos profissionais atuantes na cadeia produtiva, tais como: consultores, chefs de cozinha, assistentes, nutricionistas entre outros. Por último, não podemos subestimar a potencial econômico do humor da cidade de Fortaleza. Essa representativa expressão da nossa cultura, reconhecida nacionalmente, vem crescendo, tanto na produção de conteúdos para a TV, o rádio e a internet, quanto nos stand up comedy nos bares, restaurantes, casas de show, shoppings centers, barracas de praia entre outros espaços de lazer na cidade. A economia criativa é uma economia de redes que conectam sistemas produtivos. Ao apresentarmos as vocações culturais/criativas mais pujantes, chamamos a atenção para os setores conexos que se relacionam de forma direta ou indireta com os segmentos priorizados. A Fortaleza - Cidade do Patrimônio Cultural e do Design está absolutamente imbricada à Fortaleza - Cidade das Artes, do Entretenimento e das Mídias. Mas, as vocações da cidade para os setores aqui elencados fazem de Fortaleza uma cidade efetivamente criativa? 6. FORTALEZA… UMA CIDADE CRIATIVA? De início era o movimento. Era o nomadismo de homens e mulheres à procura de água para saciar a sede e de sombra para amainar o sol inclemente. E, como nos descreveu poeticamente Gustavo Barroso no Hino de Fortaleza: “Junto à sombra dos muros do forte, a pequena semente nasceu”. Fortitudine será a divisa que marcará de forma ambivalente a sua heráldica.

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Afinal, a qual fortaleza nos referimos? A do pequeno arraial do Forte, como observou João Brígido (apud BARBOSA, 2001), ou à fortaleza moral, virtude de um povo? De início era o movimento. Era o comércio simbolizado pela figura de Hermes, símbolo da inteligência industriosa e realizadora, da astúcia, rapidez e criatividade. Deus das negociações, das intermediações e das encruzilhadas, Hermes, através dos seus quatro rostos simboliza o encontro entre o céu e a terra e entre os quatro pontos cardeais, representando, ao mesmo tempo, ambiguidade e completude. Hermes aparece em várias culturas com as características que lhe dão origem: mistura e movimento. Seja como mágico, satírico, médico, músico ou artesão, o deus alado se transfigura para interpretar culturas através da leitura de símbolos e signos que compõem as culturas. Ele é o deus do hermetismo e da hermenêutica, do mistério e da arte de decifrá-lo (LEITAO, 2001). Os mitos funcionam como narrativas explicativas das trajetórias humanas, ou seja, eles servem para intermediar as tensões e as contradições do real. Fortaleza é território, por excelência, desses contrastes, conflitos e paradoxos. Ao observarmos os indicadores de desenvolvimento humano da cidade, especialmente na perspectiva da concentração de renda, da violência, da infraestrutura, da educação e da saúde, Fortaleza apresenta resultados preocupantes que apontam para uma cidade apartada, injusta e desumana. Mas, Fortaleza também é território de gente industriosa e criativa, de uma população habituada a reunir realidades diversas para produzir novos modos de ser e de estar no mundo. Tal qual Hermes, os fortalezenses conhecem o nomadismo e assim aprenderam a viver e a sobreviver em situações adversas, desenvolvendo tecnologias sociais, éticas e estéticas próprias. Tal qual Hermes, os fortalezenses aprenderam a negociar, a inventar, a fazer circular, a convencer  para vencer e assim construíram uma cidade. Enfim, é inconteste que a cultura e a criatividade começam a se deslocar dos discursos artísticos, produzindo novos e importantes impactos na ampliação dos significados do desenvolvimento. Como matriz estratégica para as dinâmicas econômicas, a cultura começa a ser considerada como um recurso estratégico. Por isso, os indicadores relativos à construção ou à produção de obras de infraestrutura (tais como saneamento, estradas, habitação, urbanização) passam a não ser suficientes para medir o desenvolvimento humano. Nas sociedades do conhecimento, ser desenvolvido significa conquistar um novo patamar relativo à qualidade de vida, através de um novo trabalho capaz de produzir inclusão, garantindo a sustentabilidade da vida do individuo, mas também do planeta. Por isso, as sociedades exportadoras de commodities vão perdendo prestígio diante daquelas que passam a produzir bens e serviços com valor agregado. Com a transfiguração da economia industrial para as economias pós-industriais, as conexões entre cultura e desenvolvimento sustentável passam a ser percebidas sob dois enfoques: de um lado, a criação de programas de desenvolvimento dos setores culturais e criativos pro-

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priamente ditos (as artes, o turismo, o patrimônio cultural, os segmentos criativos); de outro, a formulação de políticas públicas que consideram a cultura como eixo estratégico de desenvolvimento dos Estados, a partir da produção de planos que realizam o cruzamento das políticas culturais com as demais pastas dos governos (educação, ciência e tecnologia, saúde, trabalho e emprego, meio-ambiente, entre outras) em prol do desenvolvimento sustentável, especialmente, das dinâmicas econômicas dos bens e serviços simbólicos. Por outro lado, a economia criativa é uma temática eivada de contradições e paradoxos como é contraditório e paradoxal o próprio sistema capitalista. Para tanto, é preciso estar atento ao fenômeno da estetização da economia, denominado por Gilles Lipovestsky e Jean Serroy (2014) de “capitalismo estético”. Esse fenômeno se relaciona diretamente com o crescimento das indústrias criativas no século 21 e sua apropriação pelo mercado. Na era da globalização, a economia também se estetiza e se desmaterializa para se dedicar às dimensões imateriais do consumo. Se a oferta dos produtos culturais é imensa, temos cada vez mais a impressão de que o nosso acesso se dá ao produto padronizado, ao produto industrializado. Assim vivemos em um mundo da diversidade homogênea que oferece uma grande ameaça à diversidade cultural do planeta. Afinal,  com o esgotamento das grandes distinções entre arte e indústria, cultura e entretenimento, imaginação e negócios, criatividade e marketing, cidade e shoppings, tudo parece submergir ou emergir a favor de um mundo kitsch, presente seja nos bairros ricos quanto nas periferias das diversas cidades do mundo. Se tudo sucumbe à sedução estética, as cidades correm o risco de se tornarem espécies de shoppings-centers e o resultado será dramático para os seus habitantes: quanto mais se busca consumir  o belo, menos a vida lhe parece  bela; quanto mais o produto cultural se prolifera e está acessível nos diversos mercados, menos educação se possui para fazer escolhas e, por isso (como diria Amartya Sen) menos liberdade se goza, menos autonomia se possui; quanto mais se consome produtos de lazer, mais despolitizado se está. As cidades que recebem títulos de ‘cidades da cultura’ ou ‘cidades criativas’ pelos governos ou organizações internacionais (como a UNESCO) são exemplos da apropriação das cidades pelo capitalismo estético e sua sedução consumista e hedonista. Elas são assim são denominadas por anunciarem a multiplicação de lugares para arte, com novas estratégias de marketing e de comunicação, sempre voltadas ao “consumo estetizado” ou a uma indústria criativa ameaçadora da diversidade cultural. Devemos avançar na busca de um modelo de economia criativa que seja crítico a essas categorias de ‘cidades criativas’. Uma cidade criativa não é a cidade do consumismo exacerbado, do trabalho precário, dos contrastes sociais abissais, da ausência do Estado, da exclusão, da dependência, da domesticação das mentes, do esvaziamento de imaginários, do estimulo ao individualismo possessivo! Por isso, não devemos nos esquecer dos ensinamentos de Peter Hall quando se refere ao apogeu das grandes cidades do mundo, destacando condições essenciais para sua construção: o

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investimento contínuo nas artes e na cultura; a aposta na inovação; a valorização da diversidade cultural e do cosmopolitismo; e, por último, o investimento em infraestrutura e educação. Não se deve denominar um território de ‘criativo’ somente por se ter mapeado naquele território vocações culturais ou talentos empreendedores dentro dos setores culturais/criativos. Um território tornar-se-á verdadeiramente criativo caso seja sujeito (e não objeto!) de um novo desenvolvimento que seja libertador e humano. Não basta criatividade nem criativos para construirmos ‘cidades criativas’. Fortaleza que o diga. A verdadeira Fortitudine, a Fortaleza empreendedora, criativa e inovadora ainda está por nascer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Ivone Cordeiro. ‘Introdução’. In: BRÍGIDO, João. Ceará – Homens e fatos. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2001, v. 4, p. 09-16. BRASIL. Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações – 2011 a 2014, Brasília: Ministério da Cultura, 2012. 154p. CABO VERDE. Discurso do Ministro da Cultura Mário Lúcio Sousa – 2014. Site do Governo de Cabo Verde. Disponível em: . Acesso em 19 de agosto de 2015. D’AGUIAR, Rosa Freire (org.). Ensaios sobre a cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2012. 198p. D’AGUIAR, Rosa Freire. Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas e Desenvolvimento, 2013. (Coleção Pensamento Crítico; 2). 240p. FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. 128p. FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 235p. HOWKINS, J. The Creative Economy – how People make money from ideas. Londres: Penguin Books, 2001. 263p. LEITÃO, C. S. Memória do Comércio Cearense. V.1. Fortaleza (CE): SENAC - Nacional, 2001. 186p. LEITÃO, C. S. (Org.); SANTOS, F. (Org.). Seminário Cultura XXI: Seleção de Textos. Fortaleza, Ceará: SECULT, 2006. 306p. LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. O capitalismo estético na era da globalização. Lisboa: Edições 70, 2014. 490p. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA – UNESCO NO BRASIL. Creative Economy Report 2013 - Special Edition: widening local development pathways, 2013. Disponível em: . Acesso em: dezembro de 2013. SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Coimbra: Almedina, 2012. 150p.

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UNESCO – Representante da Unesco no Brasil. As indústrias criativas impulsam as economias e o desenvolvimento, segundo o Relatório da ONU. 14 nov. 2013. Disponível em: . Acesso em 20 de agosto de 2015. UNESCO – Representante da Unesco no Brasil. A cultura é vital na agenda global de desenvolvimento pós-2015, enfatiza a Declaração de Florença. 9 nov. 2014. Disponível: . Acesso em 20 de agosto de 2015. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT - UNCTAD. Creative Industries Report 2008. Disponível em: . Acesso em: set. 2009. ______. Relatório de Economia Criativa 2010. : economia criativa uma, opção de desenvolvimento. – Brasília: Secretaria da Economia Criativa/Minc ; São Paulo : Itaú Cultural, 2012. 424 p. Disponível em: . Acesso em: set. 2013.

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O EDITAL NA POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Cleide Vilela1 Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi2 RESUMO: O objetivo deste artigo é compreender o papel dos editais na política pública de financiamento à cultura. A perspectiva utilizada foi a de que os instrumentos não são neutros, pois, além de serem uma tecnologia/artefato, podem expor a filosofia gerencial e o modelo organizacional nos quais se inserem. Concluímos que o edital é um modelo que privilegia o produto cultural na lógica de financiamento à cultura e pode favorecer uma política de democratização do acesso. PALAVRAS-CHAVE: Financiamento à cultura, Instrumento de gestão, Edital, Fundo de cultura, Política cultural.

1. INTRODUÇÃO Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília (PPGDSC/UnB). A análise parte da abordagem da instrumentação da ação para compreender o edital enquanto um instrumento da política pública de financiamento à cultura. Nesta perspectiva, o edital não é neutro, ele é portador de uma “concepção concreta da relação política/sociedade e sustentado por uma concepção de gestão” (LASCOUMES E LES GALÈS, 2012 a, p.22). A primeira parte do texto busca entender a escolha pelos editais na política pública de cultura e sua imbricação com a política de finaciamento à cultura vigente. Em seguida, apresentamos a perspectiva dos instrumentos de gestão para caracterizar o edital enquanto um instrumento de seleção de projetos culturais, apresentando algumas conclusões prévias sobre seus aspectos de artefato/substrato técnico, filosofia gerencial e modelo organizacional nos quais o edital se insere e, por fim, tentamos identificar o tipo de política cultural que ele pode favorecer. Neste artigo, privilegiamos o entendimento dos editais para escolha de projetos culturais a serem financiados por meio de subsídios de fundos de cultura. Apesar do texto propor uma Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional do Ceam/UnB. E-mail: [email protected]. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional do Ceam/UnB. E-mail: [email protected] 1

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discussão genérica sobre a ferramenta de escolha de projetos culturais, o modelo de finaciamento à cultura implementado na gestão de 2011 a 2014 no Distrito Federal foi o norteador na análise realizada na dissertação. Mesmo sabendo que os editais não são a principal política do Ministério da Cultura (MinC) e o modelo apresenta sinais de esgotamento, a abordagem é justificada pelo ministério encorajar estados e municípios a adotarem este modelo de seleção de projetos em diversos materiais e cartilhas destinados a gestores de cultura de municípios e estados, principalmente os voltados para implementação de sistemas de cultura. 2. OS EDITAIS NA POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA A literatura sobre as políticas públicas de cultura no Brasil é unânime em afirmar o caráter excepcional da gestão de Gilberto Gil (2003 a 2008) à frente do Ministério da Cultura, comparada ao histórico das gestões anteriores. Entre as características apontadas, ressalta-se a ampliação do entendimento do conceito de cultura e dos públicos atendidos pelas políticas executadas pelo ministério e, também, uma maior abertura para a participação social por meio de conferências, seminários, consultas e pela criação do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Apesar dos avanços, o financiamento apresentou limites, pois “continuou subordinado de modo unilateral e perigoso às leis de incentivo” (RUBIM, 2015, p. 15). O projeto de lei que cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura) foi encaminhado ao Congresso em 2010, no final da segunda gestão do presidente Lula, ainda que a necessidade de reformulação da Lei Rouanet fosse apontada desde 2003. O texto do projeto foi alterado na primeira gestão do governo Dilma Rousseff e, atualmente, uma nova discussão sobre o Procultura está sendo realizada. Este caminho demonstra uma série de disputas sobre a questão do financiamento à cultura pelos diferentes atores desta política pública e, também, a inadequação da política de financiamento para as novas políticas para a diversidade cultural o que evidencia o descompasso entre elas (RUBIM, 2015). Uma das alternativas para ampliação do público atendido pelas políticas de financiamento foi a de utilizar os recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC) direcionados às atividades culturais “que precisam ser democratizadas e não encontram sua sustentabilidade nos mercados” (LIMA e ORTELLADO, 2013, p. 352). Os fundos de cultura estariam em consonância com o Estado enquanto mecenas e “entendidos como verbas que são distribuídas para viabilização do fazer artístico, para fomento dos processos de criação e para democratização do acesso para todos os públicos” (OLIVIERI, 2004, p. 60). A escolha pelos editais, na primeira gestão do governo Lula, tinha como objetivo dar uma resposta imediata às dificuldades apontadas pelo campo nos seminários cultura para todos a fim de diminuir a concentração regional e setorial do mecenato, pois as alterações estruturais

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da política de financiamento à cultura poderia levar um tempo maior (CALABRE, 2013, p. 40), o que de fato ocorreu. Os editais começaram a serem utilizados de maneira mais sistemática a partir da gestão de Juca Ferreira (2008/2010) no Ministério da Cultura, apesar de não serem um instrumento novo na área cultural: empresas já utilizavam este instrumento para apoiar projetos aprovados na modalidade mecenato da Lei Rouanet antes do governo Lula, ainda que de maneira tímida, e, também, há exemplos esporádicos de utilização de instrumentos semelhantes aos editais3, nos municípios e estados, ao definir critérios de seleção de projetos artísticos e culturais. No caso da modalidade mecenato, houve uma mobilização do MinC para que os maiores investidores estatais (Petrobrás, bancos públicos) utilizassem o mecanismo. Lia Calabre (2013, p. 40) afirma que, a partir de dados levantados, o percentual de recursos disponibilizados pelas leis de incentivo através de editais saltou de 3% em 2003 para 13% em 2008, ela ainda acrescenta que a adesão ao modelo editais se deu também em empresas e fundações privadas, “buscando ampliar a abrangência e melhorar a transparência das ações implementadas” (CALABRE, 2013, p. 40). O edital, instrumento das políticas de financiamento à cultura, teria sua escolha justificada pela transparência e acesso aos recursos públicos. A transparência, através dos critérios a serem observados para que um projeto cultural seja financiado com recursos públicos e, também, pelas informações sobre valores disponibilizados, número de projetos a serem contemplados, critérios de seleção como uma maneira de superar a “política de balcão”4. O acesso seria facilitado por suprir a intermediação e “pulverizar recursos para que eles gerassem com a capilaridade do investimento os contextos criativos que independiam de uma industrialização vertical da cultura” (LUZ, 2013, p. 85). Na perspectiva da intermediação, José Márcio Barros (2013, p. 280), ao discutir a diversidade cultural e a gestão, identifica uma “nova colonização” cultural, na figura de mediadores (consultores culturais), que se coloca entre o Estado e o campo da cultura popular e práticas periféricas a partir da escrita de projetos culturais para participação em editais. Salgado et al (2010, p. 103), apesar de salientarem a importância dos editais em determinadas políticas, também afirmam que em outros casos, “o edital torna-se um instrumento burocrático de acesso ao financiamento (…) por sua linguagem técnica e exigências na seleção de projetos”. Participar de um edital, exige, no mínimo, conhecimento técnico de elaboração de projetos. A pesquisa de Costa et al (2010, p.70) questiona se a sociedade civil está preparada para trabalhar com a inscrição de projetos culturais que preveem, por exemplo, planos de ação Caso dos concursos destinados à produção na área de artes cênicas, em 1979, pela Fundação Cultural do do Estado da Bahia (ALVES et al, 2004, p.44); e da Instrução de 30 de setembro de 1987 que “institui uma comissão de seleção, que regulamenta concessão de auxílio parcial para projetos artísticos culturais do Distrito Federal”. 4 Entendemos “política de balcão” como uma modalidade do clientelismo que “indica um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político” (CARVALHO, 1997) 3

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e orçamentos. Os autores defendem uma política de formação e qualificação na área da cultura para que a sociedade se aproprie desses mecanismos, mas não se avança na discussão sobre o modelo mesmo do financiamento que está posto em jogo. Os editais são aceitos enquanto uma política e se propõe uma formação para que os proponentes e beneficiários se adequem a ela. A limitação dos editais para garantir a “inclusão” de setores da população que não possuem acesso a recursos para desenvolver ações na área da cultura é objeto de reflexão do estudo de Abreu e Barbosa da Silva (2012) sobre o Programa Mais Cultura do Ministério da Cultura. Os autores apontam que regras como um período mínimo de atuação na área cultural podem não garantir a equidade e a descentralização dos recursos para os projetos culturais. Segundo Afonso Luz (2013, p. 86), ex-Secretário de Políticas Culturais da gestão Juca Ferreira (2008-2010), os editais seriam importantes para o público dos Pontos de Cultura e de pequenos e médios projetos e iniciativas culturais e tinham como princípio a “capilarização de recursos como forma mais eficaz de investimento nos ambientes criativos e no impulso de uma economia da cultura”. No entanto, a dificuldade atribuída aos gestores dos pontos de cultura em relação à gestão dos projetos e complexas prestações de contas na primeira gestão do governo Dilma Rousseff demonstra uma “inadequação dos procedimentos do Estado brasileiro para acolher de modo democrático e satisfatório os novos agentes culturais” que foram “incluídos”5 a partir das novas políticas (RUBIM, 2015, p. 16). Outra crítica ao editais, seria a reprodução de um modelo provisório de política de atenção à diversidade cultural, “mais do que pluralizar, ampliar e multiplicar as instituições permanentes de trabalho com a cultura” (BARROS, 2013, p. 280). Nesta perspectiva, destaca-se a vulnerabilidade econômica dos proponentes que são remunerados apenas pelo produto final e não por toda pesquisa e concepção da obra e do projeto cultural e, também, pela incerteza do lançamento ou não de editais já que a maioria não tem periodicidade regular (LIMA E ORTELLADO, 2013).

O governo Lula é caracterizado, em muitos estudos, como um governo de políticas de “inclusão”. No entanto, acreditamos que essa categoria supõe uma outra que é a dos “excluídos”. A reflexão de Guareschi (1992) sobre os “excluídos” culturais faz-se necessária no caso das políticas públicas de cultura. Mesmo que a política pública do ministério tenha sido inovadora ao reconhecer as diversas culturas, compreender que é preciso “incluir” essas culturas em uma determinada política pública que possui uma racionalidade específica pode estar reproduzindo os modelos de políticas difusionistas dos anos 1970 em que se elegia o que era bom para ser consumido pelos demais. Aqui está uma das justificativas em compreender os instrumentos e tentar buscar abrir um caminho para soluções inovadoras e de uma perspectiva pluralista, a exemplo da Lei Cultura Viva. Neste sentido, Catherine Walsh (2007) faz uma reflexão importante na busca de políticas que tenham como horizonte a interculturalidade. Defende as políticas de inclusão para que elas adotem esta perspectiva, apesar da crítica a este modelo de racionalidade: “El problema es –y allí va la otra perspectiva– que ser reconocidos como seres ‘étnicos’ e incluidos con una categoría de lo ‘especial’ –así también con derechos específicos– puede perpetuar la colonialidad del ser si no apunta a cambiar las estructuras institucionalizadas que siguen manteniendo y reproduciendo la racionalidad de la modernidad como norma ontológica.” 5

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O modelo, ainda que comtemple grupos e indivíduos que estavam à margem da política de financiamento, “não supera a lógica de mercantilização do resultado do processo de produção cultural” e limita-se a “comprar ou ajudar a comprar bens e serviços culturais” (LIMA E ORTELLADO, 2013, p. 354). Desse modo, essas políticas ainda são pautadas pela democratização do acesso em que um produto é elegido como relevante para ser consumido pela população: Isso significa que, ainda que os subsídios contribuam para a emancipação da lógica de mercado – no sentido da produção não de pender da sua comercialização –, eles mantêm a forma de compra e venda, através do financiamento da produção e da difusão das obras pelo estado (LIMA e ORTELLADO, 2003, p. 354). No item a seguir, discutimos o edital a partir da instrumentação da ação pública com a finalidade de compreender as críticas levantadas a partir da escolha deste instrumento. Nessa perspectiva, os objetivos e finalidades da política de financiamento podem encontrar limites na instrumentação. 3. OS EDITAIS: INSTRUMENTOS DE GESTÃO Entendemos que as políticas públicas são compostas pela ação coletiva estruturada, na qual meios são escolhidos para ação, exercício ou limitação do poder do Estado (OLLAIK e MEDEIROS, 2011, p. 1945). Desse modo, a ação pública é constituída tanto por um espaço sociopolítico construído tanto por técnicas e instrumentos quanto por finalidades, conteúdos e projetos de ator (LASCOUMES e LES GALÈS, 2012b, p. 21). Os instrumentos são dispositivos técnicos e sociais que organizam as relações entre o Estado e aqueles a quem a política pública é endereçada de acordo com as representações e significados que carregam (LASCOUMES e LES GALÈS, 2007, p. 4). Eles “permitem traduzir princípios em ações concretas coordenadas entre poder público e atores de diferentes tipos” (BARBOSA DA SILVA e LABREA, 2014, p. 18). Além disso, podem ser interpretados como um tipo de instituição em particular, um dispositivo técnico com a finalidade genérica de carregar consigo um conceito concreto da relação políticas/sociedade e sustentado por um conceito de regulação. Segundo este raciocínio, o instrumento determina a maneira como os atores se comportam, cria incertezas sobre os efeitos de equilíbrio de poder e acaba privilegiando determinados atores e interesses e exclui outros. Os atores sociais e políticos têm capacidades de ação que diferem amplamente de acordo com os instrumentos escolhidos (LASCOUMES e LES GALÈS, 2007). Desse modo, o edital pode ser interpretado enquanto instituição social (instrumento) porque possui características previsíveis baseadas na racionalidade prevista na lei de licitações e nas lei de criação do respectivo fundo a que ele atende e suas regulamentações.

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Labatut et al. (2012) faz um percurso semelhante na análise de tecnologias gerenciais (que interpretamos como sinônimo de instrumento neste artigo) ao identificarem que elas carregam suposições, mitos racionais, sistemas de crenças, hipóteses e restrições materiais que resultam em forças institucionais mais amplas, construção de um padrão de ações e abertura de novas possibilidades de desempenho e invenções. Para fins de análise, compreendemos que o instrumento é composto por três dimensões: 1) artefato ou substrato técnico – conjunto de técnicas, aspectos materiais e regras: modelos, bases de dados, algoritmos, etc; 2) filosofia gerencial – sistema de conceitos que denotam objetos e objetivos que constituem os alvos de uma racionalização; 3) modelo organizacional – descreve os papeis e cenas coletivas, a forma como o trabalho é envolvido em rotinas organizacionais (LABATUT et al., 2012; LASCOUMES e LES GALÈS, 2007; 2012a) Os autores que discutem os instrumentos também enfatizam que dificilmente aparecem sozinhos, há uma pluralidade de instrumentos mobilizados, o que põe em questão a sua coordenação; os instrumentos, também, podem ter múltiplos propósitos que portam ambiguidades. O edital, na perspectiva da lei de licitações, atende diferentes finalidades e setores da política, ele se encontra mobilizado em políticas muito diferentes em suas formas e fundamentos. Desse modo, o edital é utilizado para dar regras de diferentes tipos de seleções na gestão pública brasileira, desde a definição de regras para concusros de seleção de pessoal a licitações. O edital é, também, parte de um conjunto de instrumentos e ferramentas da política de financiamento. Primeiro, ele está sujeito à lei que cria o fundo de cultura e suas regulamentações. Esta lei corresponde ao entendimento de fundo especial como “o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços” (BRASIL, 1964), pois ainda não foi criada uma lei complementar, como disposto no art. 165 da Constituição de 1988, para estabelecer normas para instituição e funcionamento de fundos. Assim, o fundo também tem normas próprias de controle e prestação de contas que não podem elidir a competência específica do Tribunal de Contas e é uma uma exceção ao princípio de unidade de tesouraria que possibilita que seus recursos tenham uma conta própria (F. BRASIL, 2014). Em segundo lugar, os fundos específicos de cultura obedecem aos preceitos do § 6° do art. 216 da Constituição, instituído em 2003. Neste caso, a constituição permite que os entes federados vinculem até 0,5% da receita tributária líquida em fundos para financiamento de programas e projetos culturais. Estes recursos, porém, não podem ser utilizados para despesas com pessoal e encargos sociais, serviço da dívida e qualquer outra despesa corrente não vinculada aos investimentos ou ações apoiados. Neste aspecto, o edital é um instrumento que guia uma seleção de projetos culturais para “terceiros” para que estes prestem serviços financiados com recursos públicos com fins públicos (SALAMON, 2001). Para Salamon (2001), esta seria uma das características distintivas das ferramentas de gestão mais recentes da ação pública: partilha

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com atores da sociedade civil, principalmente com ONGs, de uma função governamental referente a um direito básico. Britto e Santos (2009) argumentam que este entendimento de previsão de subsídio para a cultura em regime de colaboração com o setor privado permite a implementação de políticas neoliberais, com pouca participação do Estado, cujo “fomento é atividade de Estado que através do particular, realiza objetivos de interesse geral”. As autoras também colocam um outro questionamento sobre a continuidade dos serviços públicos de cultura, pois a ideia de fomento a projetos e programas pressupõe “apoio, suporte e estímulo a atividades específicas e transitórias, advindo da concepção de autossustentabilidade das organizações” com pouca margem para custeio permanente a grupos e instituições. O argumento a favor dessa política de transferência de recursos a projetos culturais é a de evitar o dirigismo cultural. Isto é, uma forma de intervenção realizada pelos agentes culturais e instituições para a coletividade ou público a que se voltam “sem que sejam estes consultados sobre suas necessidades ou desejos” (COELHO, 1997, p. 151-152). Mesmo que haja algum grau de intervenção inerente a toda política cultural por essas possuírem as seguintes características: 1) no campo da cultura, a oferta é que determina a procura, mais do que o inverso – e portanto um certo grau de dirigismo é inevitável; 2) programas culturais sustentados por políticas públicas devem destinar-se àqueles modos e práticas culturais não cobertos habitualmente pelas diversas ramificações da indústria e do mercado cultural – e novamente o dirigismo surge como etapa incontornável; 3) o agente cultural, que passa por uma formação específica, tem suas responsabilidades públicas próprias e não pode furtar-se a elas limitando-se a ser um elo passivo na corrente de transmissão dos desejos do público ou da comunidade a que deve atender. (COELHO, 1997, p. 152-153) Por último, o edital é um modo de selecionar projetos culturais, de acordo com a lógica da lei de licitações. Os projetos culturais, de maneira geral, são selecionados de acordo com as modalidades concurso ou prêmio, previstas na lei 8.666/1993. Na modalidade concurso, os projetos culturais são entendidos como um produto ou serviço artístico que deve ser escolhido pelos princípios da moralidade, eficiência e impessoalidade (art. 37 da constituição); e também aquele que reúne melhores condições para o desempenho de uma atividade de interesse do poder público ou da sociedade (MARTINS JUNIOR, 2005, p. 38). O edital é, portanto, um “ato por meio do qual se convoca os interessados em participar do certame licitatório” (MIRANDA, 2004, p. 89) e, também, onde se estabelecem as condições que regem o processo. É intrínseco ao edital a publicidade através de publicação de avisos no Diário Oficial; o prazo de 45 dias entre a publicação do edital e a data de realização do evento; a possibilidade de dispensa de documentos nos casos da modalidade concurso e convite.

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Aqui também há controvérsias sobre a necessidade ou não de utilizar a modalidade concurso que implica um processo licitatório no caso de produtos e serviços artísticos e culturais. Para Miranda (2004, p. 66) a aquisição de obras de arte e objetos históricos estão no rol da dispensabilidade de licitação, apesar do autor argumentar que a obra de arte, por se tratar de um objeto singular e características únicas pode também estar no conjunto de exceções da inexigibilidade de licitação e não dispensabilidade pois, para ele, não há como aferir objetivamente os requisitos técnicos, tampouco se valorar qual obra de arte é mais importante ou mais bela. Na perspectiva de Lascoumes, Le Galès, Labatut, Ageri e Girard, o edital é um artefato para seleção de projetos culturais, inserido numa filosofia gerencial adotada pela lei de licitações que enfatiza a transparência e o mérito e que também orienta os procedimentos do órgão gestor da cultura com relação aos projetos culturais beneficiados e a rotina dos proponentes de projetos culturais. Portanto, não são apolíticos, “sua elaboração e desenvolvimento é o resultado direto de escolhas políticas e não podem ser entendidas somente de acordo com sua função, mas também pelos significados que possuem para as pessoas que as criam e as utilizam” (LUCIO et al, p. 153-154). Outro aspecto relevante é que ele também é uma peça comunicacional ou um gênero discursivo. O edital possui, desse modo, um conteúdo – “o enunciado do edital apresenta acima de tudo um conteúdo preciso por buscar legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade por meio desse gênero discursivo.” (…); um estilo - “ (…) o estilo da linguagem no edital corresponde ao padrão culto da linguagem, presente na redação oficial, com impessoalidade, clareza e concisão, formalidade e uniformidade” (NUNES, 2014, p. 113); e uma construção composicional por uma estrutura fixa (NUNES, 2014, p. 115). E, portanto, “os candidatos podem apresentar determinadas dificuldades durante o processo seletivo por desconhecer a representação organizada e hierarquizada do conteúdo semântico do edital, sua composição textual e da sua adequação pragmático-discursiva à situação de interlocução” (NUNES, 2014, p. 115). Para participar dos editais também são necessários conhecimento sobre a elaboração de projetos culturais, que devem se adequar à proposta dos editais. Neste sentido, escrever um projeto cultural pode demonstrar desigualdades entre os candidatos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar das críticas ao modelo de seleção de projetos realizado pelos editais, estes são apontados por alguns autores como o meio necessário para se escolher projetos culturais da sociedade de maneira transparente e mais acessível. A maioria dos editais solicitam um projeto cultural para avaliação da proposta, com exceção de alguns editais realizados pelo Ministério da Cultura que permitiram a candidatura a partir de documentos registrados em áudio e/ou vídeo com o objetivo de ampliar o acesso a pessoas que não estão familiarizadas com a linguagem do

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projeto cultural. Este tipo de seleção pode sair onerosa para uma prefeitura de pequeno porte, se pensarmos na perspectiva da gestão municipal. Para além da seleção de projetos, o que se coloca em jogo são sinais de esgotamento deste modelo de financiamento que privilegia o produto ou o bem cultural. Nesta perspectiva, Lima e Ortellado (2013, p. 366) propõem a criação de políticas de financiamento que promovam o processo de produção e não do produto cultural e pela “desburocratização da prestação de contas, de maneira a preservar a flexibilidade do desenvolvimento dos projetos e a respeitar a informalidade dos agentes”. Para isso, propõem uma espécie de bolsa, a renda básica cidadania para os agentes culturais, mesmo sabendo que isso possa gerar parasitismos ou free ridings. Pose (2015, p. 39) também defende que os governos devem construir políticas culturais de maneira mais participativa possível para que as necessidades principais de seus cidadãos, que não podem ser atendidas pelo mercado ou outras vias, sejam acolhidas. Pois, promover o consumo cultural pode provocar mais consumo e não uma cidadania mais “culta”.

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UMA POLITICA CULTURAL PARA O DESIGN Cristina Portugal1 Eliane Jordy2 Juan Carlos Arañó3 RESUMO: Este artigo pretende contribuir para a reflexão sobre a necessidade de uma política cultural para o Design. Discorre sobre a importância da criação da Sociedade Brasileira do Design da Informação (SBDI) como entidade que promove por meio de Congresso e outras atividades, uma política cultural para o campo do Design e áreas afins pelo prisma de incentivar a evolução simbólica material e imaterial. Como instituição civil organizada, a SBDI, busca atuar na formação da cultura ao visar o desenvolvimento de uma consciência crítica para o imaginário social, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, tanto sobre as diferenças culturais, o respeito pela diversidade e o diálogo intercultural. Isto porque, já não podemos desconhecer a importância das experiências que ampliam o campo do design, dada a sua abrangência e alcance como fenômeno social. PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Design da Informação, Cidadania, Cultura

1. INTRODUÇÃO Este artigo apresenta a Sociedade Brasileira do Design da Informação (SBDI) 4 como entidade que promove por meio dos Congressos intitulados, CIDI | Congresso Internacional de Design da Informação e CONGIC | Congresso Nacional de Iniciação Científica em Design da Informação, uma política cultural para o campo do Design e áreas afins pelo prisma de incentivar a evolução simbólica material e imaterial, além de discorrer sobre a importância da referida sociedade para o desenvolvimento, discussão do Design da informação, e sobre o seu impacto social e cultural para o grupo social envolvido.

Doutora em Design - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, [email protected] Mestre em Design - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, [email protected] 3 Doutor em Artes - Universidade de Sevilha. Espanha, [email protected] 4 As informações sobre a SBDI contidas neste artigo tiveram como base textos de relatórios internos e anais dos congressos CIDI e CONGIC, dentre outros documentos elaborados pelo conselho científico da SBDI, Carla Spinillo, Edna Lúcia Cunha Lima, Guilherme Cunha Lima, Joaquim Redig, Luiz Antonio Coelho, Mônica Moura, Priscila Farias, Rita Couto, Solange Coutinho e demais colaboradores da SBDI. 1 2

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Lima, Ortellado e Souza (2013) - com base na noção de política de cultura definida pela UNESCO - entendem as políticas culturais como um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas, orçamentárias e procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural do Estado. E, neste caso, reconhecem a existência e a legitimidade de políticas culturais postas em ação por atores não estatais, como no caso da SBDI. A SBDI é uma entidade sem fins lucrativos, fundada em Recife, no ano de 2002. O seu surgimento representa o início do processo de institucionalização da disciplina do Design da Informação no país. E, contou também com o lançamento da Revista Brasileira de Design de Informação, periódico brasileiro com pontuação no Qualis CAPES, como publicação da SBDI. Como ação de políticas culturais para o Design foi criado o primeiro Congresso promovido pela SBDI realizado, em 2003, na cidade de Recife, sendo representado como um horizonte de grandes avanços, a primeira tomada de consciência brasileira (coletiva) sobre a relevância do Design da Informação, segundo palavras de Joaquim Redig (2004): Embora nesse período tenha florescido o Design Gráfico nacional, setor a que está vinculado o Design de Informação, esta especialidade permaneceu aparentemente esquecida, tanto pela teoria, nas escolas, quanto pela prática, nos escritórios, empresas e repartições – a não ser em alguns ensaios isolados, como o sistema de Comunicação Visual do serviço de ônibus urbano do Recife, de Edna Cunha Lima, ou o de São Paulo, de Cauduro / Martino, ou a sinalização urbana do Rio de Janeiro, da PVDI, de Aloísio Magalhães (REDIG, 2004, p: 1). Para Redig (2014), o designer contemporâneo deve assumir uma responsabilidade eficaz e coerente, diante da definição de estratégias diversificadas. Tarefa que deve ser assumida junto ao Poder Público, pois de acordo com o autor a informação tem primordial importância na formação da cidadania. Não há cidadania sem informação, nem informação sem Design. Esses pequenos exemplos, somados a tantos outros, trazem a noção de cidadania para o âmbito da responsabilidade do designer, e particularmente do designer de informação. Cabe-nos assumir junto ao poder público esta responsabilidade, através das entidades acadêmicas e profissionais (REDIG, 2004 p: 66). A SBDI como entidade científica congrega pesquisadores, docentes e profissionais, que atuam em sistemas de informação e comunicação analógicos e digitais, na gestão e produção da informação. Um de seus objetivos é o de contribuir para o desenvolvimento, organização e difusão científica do Design da Informação enquanto área acadêmico-científica em âmbito nacional e internacional, promovendo e estabelecendo o diálogo e a cooperação entre profissionais, docentes e pesquisadores, e fomentando o interesse de estudantes pela área, contribuindo, assim, para sua formação profissional e intelectual.

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2. A SBDI E A CULTURA Nas palavras de Arañó (2011), a cultura é o que permite que enquanto seres humanos tenhamos esperança, ela estimula nossos sentidos e possibilita novas formas de ver e compreender a realidade. Cultura vista como o conjunto de características próprias, espirituais e materiais, que caracterizam e distinguem uma sociedade e um grupo social. Referem-se a todas as artes, assim como modos de vida, sistemas de valores, tradições, crenças e visões de mundo. Quando falamos sobre cultura, convém esclarecermos que a construção de uma política pública, exige estratégias diferentes quanto às duas dimensões da cultura – antropológica e sociológica – embora ambas sejam igualmente importantes. Para a pesquisadora Isaura Botelho (2001), na dimensão antropológica, a cultura se produz “através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar, sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças”. Neste sentido, “a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando”. Por sua vez, segundo a autora, a dimensão sociológica não se constitui no plano do cotidiano do indivíduo, pois é elaborada com a intenção “de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão”. Em outras palavras, a dimensão sociológica da cultura, segundo Botelho (2001), Refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria. Ela compõe um universo que gere (ou interfere em) um circuito organizacional, cuja complexidade faz dela, geralmente, o foco de atenção das políticas culturais (BOTELHO, 2001, p.74). Neste sentido, a proposta de criação da SBDI como entidade científica e como circuito socialmente organizado visava, naquele momento, estimular, por diversos meios, a produção, a circulação e difusão científica do Design da Informação enquanto área acadêmico-científica. Criando mecanismos, fornecendo meios que favorecessem aos envolvidos sua própria compreensão de valor cultural permitindo-lhes o pleno desenvolvimento de suas capacidades e habilidades através da valorização do conhecimento, estético e técnico, que estão profundamente imbricados. Assim, segundo Botelho (2001), para intervir nas políticas públicas é necessário muito convencimento e, sobretudo, dois tipos de investimento, dado o fato de que as políticas culturais, isoladamente, não conseguirem atingir o plano do cotidiano: • O primeiro é de responsabilidade das pessoas diretamente interessadas. Isto significa organização e atuação efetivas da sociedade, em que o exercício real da cidadania exija e impulsione a presença dos poderes públicos como resposta a questões concretas; • O segundo refere-se à área de cultura dentro do aparato governamental. Uma política cultural que queira cumprir a sua parte tem de saber delimitar seu universo de atuação, precisando, portanto, ter estratégias específicas para a sua atuação como articuladora de programas conjuntos.

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Como instituição civil organizada a SBDI busca atuar na formação da cultura ao visar o desenvolvimento de uma consciência crítica para o imaginário social, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, tanto sobre a cultura visual e material, as diferenças culturais, a liberdade de expressão, o respeito pela diversidade e o diálogo intercultural. Isto porque, já não podemos desconhecer a importância das experiências que ampliam o campo do design - dada a sua abrangência e alcance como fenômeno social. Os eventos realizados pela SBDI como ações de políticas culturais para o Design, os quais serão descritos em detalhes mais adiante, colaboram positivamente para a educação em Design, e áreas afins, ao criar um lugar propício de reflexões e discussões. Considerando, nas palavras de Arañó (2011), que, tanto a opinião pública, quanto organizações internacionais como a UNESCO5, OCDE6, Banco Mundial e o BID7 identificam a educação como principal instrumento para o desenvolvimento dos países, crescimento das economias, aumento da produtividade para superar o abismo da pobreza interna ao possibilitar o conhecimento externo entre os países desenvolvidos, e os em desenvolvimento. Ainda a educação pode ser contemplada como elemento-chave para restabelecer a coesão social, a evitar a deslocação de jovens, prevenção da criminalidade e abuso de drogas, afirmando os valores da sociedade, etc. A LDBEN vem favorecer a atuação do design no âmbito educacional quando estabelece a lei nº 9.394/96, no seu art. 26, § 2º para o ensino de arte: [...] a arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. Observará as seguintes diretrizes: o conteúdo será distribuído entre as diversas séries e níveis da educação básica pelas escolas, abrangerá obrigatoriamente as áreas de: a) música, teatro e dança; b) artes visuais (artes plásticas, fotografia, cinema e vídeo) e design; c) patrimônio artístico, cultural e arquitetônico (BRASIL, 2009) (Grifo nosso). Esta nova orientação foi devidamente normatizada nos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Brasileira (PCNs), que apresentam dois projetos de lei sobre os conteúdos de educação formal da escola brasileira: Projeto de Lei (PL741/07). O Design é um amplo campo que envolve e para o qual convergem diferentes disciplinas. Para o designer Antonio Fontoura (2002), ele pode ser visto como uma atividade, um processo ou ser entendido em termos dos seus resultados tangíveis. O Design também pode ser visto como uma função de gestão de projetos, como atividade projetual, um serviço social, uma atividade conceitual, ou ainda como um fenômeno cultural. Pode ainda ser tido como um meio para adicionar valor às coisas produzidas pelo homem e também como um veículo para as mudanças sociais Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura. Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. 7 Banco Interamericano de Desenvolvimento. 5 6

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e políticas. (FONTOURA, 2002, p.68). Vindo ao encontro das ideias de Fontoura sobre o campo de Design, lançamos mão das palavras de Bonsiepe: Existe o perigo de se cair na armadilha das generalizações vazias do tipo ‘tudo é Design’. Porém, nem tudo é Design e nem todos são designers. O termo Design se refere a u m potencial ao qual cada um tem acesso e que se manifesta na invenção de novas práticas da vida cotidiana. Cada um pode chegar a ser designer no seu campo de ação. E sempre deve-se indicar o campo, o objeto da atividade projetual. [...] Design é uma atividade fundamental, com ramificações capilares em todas as atividades humanas; por isso, nenhuma profissão pode pretender o monopólio do Design (Bonsiepe, 1997, p.15). Diante do que foi dito faz-se oportuno citarmos Kerckhove (1998), que se ocupou em discutir a relação do Design, da tecnologia e da cultura, com vistas a problematizar a necessidade de políticas culturais para o Design. Para o autor, existem claramente mais questões no Design além de servir para conter e seduzir. Num sentido mais amplo, o Design desempenha um papel metafórico, traduzindo benefícios funcionais em modalidades cognitivas e sensoriais. O Design encontra a sua forma e seu lugar como uma espécie de som harmônico, um eco da tecnologia. Ele frequentemente faz o eco do caráter específico da tecnologia e corresponde ao seu impulso básico. Sendo a forma exterior visível ou texturizada dos artefatos culturais, o Design emerge como aquilo a que poderíamos chamar de pele da cultura. 3. AS PRÁTICAS E AÇÕES DA SBDI A criação da SBDI, em 2002, se deu por iniciativa de alguns pesquisadores e professores de universidades brasileiras. O Design da Informação consistia em tema de discussão relevante internacionalmente para o campo do Design, desde meados dos anos 1970. Redig (2004) aponta a relevância do Design da Informação em eventos como a criação do IIID (International Institute for Information Design, sediado na Áustria), a edição do Design Information Journal, e o boletim da Glyphs Inc. - entidade internacional liderada pela antropóloga Margaret Mead e pelo designer Rudolf Modley - como contributos que ofereceram abrangência ampla para a disseminação da Pictografia como linguagem universal. Pode-se dizer que - dada a importância do campo do Design para a criação simbólica material e imaterial da cultura, soma se a isso, o célere crescimento do valor da informação com a disseminação das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) – tudo isso contribuiu para a SBDI criar os Congressos intitulados CIDI | Congresso Internacional de Design da Informação e CONGIC | Congresso Nacional de Iniciação Científica em Design da Informação tendo como principal objetivo discutir o estado da arte do Design da Informação e, consequentemente, promover o intercâmbio entre pesquisadores da área; divulgar a produção científica brasileira e internacional; e ainda contribuir para a consolidação do Design da Informação no Brasil. 591

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Os Congressos científicos com periodicidade bienal promovidos pela SBDI são patrocinados por agências de fomento à pesquisa brasileira como CNPq, CAPES, FAPERJ, FACEPE, FAPESP, entre outras, tangibilizam o encontro de diversos especialistas na área do design e áreas afins. Tais encontros geram reflexões e ações que visam promover o desenvolvimento cultural diante da tarefa de realização conjunta proporcionando uma profícua oportunidade de intercâmbio entre pesquisadores, profissionais e estudantes do Brasil e do exterior. Na 6º edição do Congresso em 2013, realizado em Recife, comemorando os 10 anos de sua fundação, foi consolidada a inserção do Brasil na área de Design da Informação no cenário mundial, proporcionando visibilidade e intercâmbio entre a produção nacional, além de ter proporcionado o contato entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros, assim como estudantes e profissionais participantes dos eventos na discussão do estado da arte do Design da Informação. Um exemplo desta inserção foi o convite, durante o evento, de trazer para o Brasil a Editoria do Information Design Journal, publicado pela John Benjamin, onde a professora Carla Spinillo da UFPR foi convidada como General Editor e a professora Solange Coutinho da UFPE como Editorial Manager. E ainda durante o Evento foram produzidos e lançados os seguintes documentos: Livro de Resumos com 88 páginas; Lançamento do Selected Readings do 5º CIDI; lançamento do número da InfoDesign - Revista Brasileira de Design da Informação, São Paulo | v. 10 | n. 3 [2013] (ISSN 1808-5377); Lançamento de quatro livros sobre design pela editora Rio Books e outras editoras e Anais do Congresso online editado pela Editora Blucher, São Paulo. Em 2015, a 7º edição do Congresso realizada em Brasília, proporcionou visibilidade e intercâmbio entre a produção nacional e internacional, como parte do 7o Congresso Internacional de Design de Informação 2015 – CIDI e 7o Congresso Nacional de Iniciação Científica em Design de Informação – CONGIC, organizados pela SBDI e a Universidade de Brasília – UnB. Entre as parcerias firmadas, destacamos a realizada com a Royal College of Art de Londres, a mais importante universidade de Pós-Graduação em Arte e Design do mundo, para a realização da exposição intitulada Graphics RCA. Nela foram expostos trabalhos originais dos alunos do RCA de coleções e arquivos especiais. A mostra foi a primeira exibição, no Brasil, de obras desenvolvidas por alunos e ex-alunos do Royal College of Art de Londres. Durante o CIDI 2015, a SBDI divulgou o apoio ao Congresso intitulado Information+ Interdisciplinary practices in information design and visualization que será realizado em julho do corrente ano na Carr University of Art + Design na cidade de Vancouver, Canadá. Consolidando suas ações de políticas culturais tanto no Brasil como no exterior. Também contou com a publicação de livro de resumos, Anais do Congresso online editado pela Editora Blucher, São Paulo e lançamento do número da InfoDesign - Revista Brasileira de Design da Informação| v. 12 | n. 2 [2015].

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Em 2017 será realizada a 8º edição do Congresso que oferece a oportunidade tanto para profissionais quanto para estudantes apresentarem e discutirem sobre os temas que são focos de reflexão. Edições anteriores foram realizadas em Recife, 2003; São Paulo, 2005, Curitiba, 2007, Rio de Janeiro, 2009; Florianópolis, 2011; Recife, 2013 e Brasília, 2017. Verificaram-se nos relatórios dos eventos que o maior número de participantes é de professores e alunos da cidade que sedia o congresso e de cidades vizinhas. O evento itinerante objetiva a disseminação e democratização da informação, pois facilita o acesso de pesquisadores, professores e alunos das regiões mais próximas ao evento, possibilitando assim uma valorização de todas as regiões já alcançadas, dado o tamanho continental do Brasil que gera alto custo de locomoção. O gráfico abaixo apresenta os dados sobre a participação por região do Brasil no congresso realizado em Recife, no ano de 2013. Podemos observar que é sempre maior o número de participantes oriundos das cidades que já sediaram o evento do que das cidades que ainda não ocorreu nenhuma edição de Congresso realizado pela SBDI. Figura 1: Número de participantes no CIDI e CONGIC 2013 por Estados

Os trabalhos apresentados nos eventos CIDI e CONGIC em sessões oral e pôster, são publicados em anais trazendo o estado da arte do Design da Informação, divulgando assim, a produção científica brasileira e internacional. Os artigos são agrupados nos seguintes eixos temáticos: • Comunicação: Aspectos e questões relacionados à eficácia comunicacional de sistemas informacionais analógicos. Investigações enfocando o design de instruções,

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formulários, sistemas de signos, símbolos gráficos, mapas, artes sequenciais, roteiro, storyboard, fazem parte deste eixo temático; • Educação: Aspectos e questões referentes ao papel do design da informação na educação. Estudos sobre currículos de graduação e pós-graduação, artefatos didático/ instrucional, métodos e abordagens de ensino/aprendizagem numa perspectiva do design da informação, entre outros; • Sociedade: Aspectos e questões do design da informação relativas à produção e utilização de artefatos por indivíduos e seus efeitos na sociedade. Estudos em áreas como design social, design vernacular, produção artesanal, semiótica relacionados ao InfoDesign se enquadram neste eixo temático; • Tecnologia: Aspectos e questões do design da informação relativas à produção e utilização da tecnologia por indivíduos. Estudos em áreas como: interação humano/ computador, design de hipermídia, visualização de dados, design de jogos, realidade aumentada, animação, broadcasting design e avaliação de interfaces computadorizadas se enquadram neste eixo temático; • Teoria e História: Abordagens/contribuições históricas e teóricas ao design da informação. Pesquisas sobre pioneiros e primórdios do design da informação, propostas de taxonomias, assim como modelos e métodos para seu estudo, enquadram-se neste eixo temático; Além disso, com o intuito de criar encontros regionais, como um desdobramento do Congresso Internacional de Design da Informação, que ocorre bianualmente, a Sociedade Brasileira de Design da Informação – SBDI, em parceria com Universidades brasileiras têm realizado encontros, mesas redondas e jornadas denominadas “Ecos do CIDI”. A intenção é que esses encontros disseminem ideias e fomentem reflexão para pequenos grupos, e venham a dar visibilidade aos trabalhos de outras regiões ainda menos favorecidas ao acesso à informação. 4. CONCLUSÕES Apesar da presidente Dilma Rousseff ter vetado integralmente, o projeto de lei nº 24, de 2013 (nº 1.391/11), que dispõe sobre a regulamentação do exercício profissional de designer (G1 28/10/2015), o Design tem assumido papel preponderante em nossa sociedade. Tanto que hoje ele já possui representante junto ao Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura- MinC. Este espaço não existia, e foi concedido em função do interesse do MinC em incluir esta área como ferramenta para valorizar a produção cultural do país. Devemos acrescentar que através de iniciativas e ações como a criação da SBDI, é possível avançar nas políticas culturais colaborando para o entendimento da relevância do campo

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do design para a sociedade e contribuindo para o desenvolvimento local e regional das cidades que sediam os congressos. A atividade do Design pode ser classificada como cultura visual e material das sociedades de consumo, ao participar dos processos culturais por meio da configuração de artefatos, ambientes e sistemas analógicos e digitais. O Design da Informação segundo Mirsoeff (2003), como produtor de cultura visual deve ser tratado desde um ponto de vista muito mais ativo e se baseia no papel determinante que ele desempenha na cultura mais ampla à qual pertence. Ela realiza aqueles momentos nos quais o visual se põe no interdito, se debate e se transforma como um lugar sempre desafiante de interação social. O importante desta discussão para o campo do Design é compreender a responsabilidade social do designer enquanto produtor e criador de sistemas informacionais, comunicacionais e estéticos, os quais de alguma maneira irão influir para a construção da cultura e por sua vez na estrutura de uma sociedade. De acordo com Arañó (2011), a cultura é a base estrutural para um mundo simbólico de significados, crenças, valores e tradições que são expressas através da linguagem, arte, religião e mitos. Assim, ela desempenha um papel fundamental no desenvolvimento humano e no complexo tecido das identidades e hábitos dos indivíduos e das comunidades. As transformações tecnológicas que se proliferam de forma célere, segundo Portugal (2013), estão criando uma nova cultura cada vez mais visual que está transformando nossa maneira de interagir com os objetos, as pessoas e o meio ambiente. As mudanças que ocorrem na organização e na produção de conhecimento criam a base de uma nova sociedade, na qual o saber passa a ser entendido como o produto de negociações coletivas que envolvem pessoas e artefatos tecnológicos. Dessa forma, transformando a estrutura de nossa subjetividade, mudam também as formas de construção do conhecimento e, consequentemente, os processos culturais. O Design é um processo ativo que influencia a sociedade criando cultura visual e material. Segundo esta ótica, Meurer (1997) diz que o mundo em que vivemos é mais que a matéria – que se há solidificado como forma – e que se deteve no tempo. Sua forma está definida mediante a atividade, e a ação é o seu centro. Se o Design é concebido orientado em direção à ação, entendida como interação ativa e mudança criadora, ele não focará somente o objeto como forma. Ao contrário, os designers irão preocupar pelo desenvolvimento de modelos de processos interativos, nos quais os objetos desempenham um papel central indiscutível como meio para a ação. Segundo esta visão, o Design se relaciona com a totalidade do espectro concreto e intelectual da interação humana, da interação entre as pessoas, dos produtos, e com o mundo em que vivemos. Tomando esta definição do Design como campo, que nas palavras de Meurer (1997) “se relaciona com a totalidade do espectro concreto e intelectual da interação humana”. Neste

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sentido fica clara a necessidade de políticas culturais para o Design que colaborem para a consolidação da área. A descrição deste trabalho nos fez refletir sobre a importância da realização de políticas culturais que atentem para a necessidade de investir em iniciativas e ações como a da SBDI, a fim de colaborar para o entendimento da relevância do campo do design para a sociedade. Acreditamos que toda política cultural deveria considerar trabalhos onde as demandas do grupo social envolvido e as políticas públicas sejam aliadas, e alinhadas, num projeto cultural comum com trabalhos bem incorporados.

AGRADECIMENTO Ao conselho científico da SBDI, Carla Spinillo, Edna Lúcia Cunha Lima, Guilherme Cunha Lima, Joaquim Redig, Luiz Antonio Coelho, Mônica Moura, Priscila Farias, Rita Couto, Solange Coutinho e demais colaboradores da SBDI.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Anais do 6th Information Design International Conference.São Paulo: Blucher Design Proceedings, Maio 2014 vol. 1 num. 2 Disponível em: http://www.proceedings.blucher.com.br/article-list/cidi2013212/list#articles. Acesso 10 fev. 2016. Anais do 7th Information Design International Conference. São Paulo: Blucher Design Proceedings,, Setembro 2015 vol. 2 num. 2Disponível em: http://www.proceedings.blucher.com.br/article-list/ cidi2015-255/list/development#articles . Acesso 10 fev. 2016. ARANÓ. Juan Carlos. Educación Artística Visual y Construcción de Realidades In: CALZADO, Zacarías, ESPADA, Rodrigo y DURAN, Guadalupe (ed.): La Educación Artística Como Proyecto Común Europeo. Badajoz: Plinto pp.: 26-48 2011. BONSIEPE, Gui. Design do material ao digital. Florianópolis: FIESC/IEL, 1997. BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo: Perspectiva, 2001. DESIGN CULTURE. Regulamentação da profissão do Design. Disponível em: http://www.designculture. com.br/regulamentacao-da-profissao-de-designer-vamos-entender-do-que-se-trata/. Acesso 10 fev. 2016. FONTOURA, Antonio. M. EdaDe – Educação de crianças e jovens através do design. Florianópolis, 2002. 337p. Tese (Doutorado em Engenharia da Produção) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Produção, Santa Catarina: UFSC, 2002. JORDY, Eliane. Práticas culturais e experiências em Artes. Disponível em: http://culturadigital.br/ politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2012/09/Eliane-Jordy-Iung-et-alii.pdf Acesso 10 de janeiro de 2016. KERCKHOVE, Derrick. Skin of Culture. London: Kogan Page. 1998.

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LIMA, Luciana P. B., ORTELLADO, Pablo, SOUZA, Valmir de. O que são as políticas culturais? Uma revisão crítica das modalidades de atuação do Estado no campo da cultura. In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS – 16 a 18 de outubro/2013 Setor de Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro – Brasil MEURER, Bernd. User-Centred Graphic Design: In: FRASCARA, Jorge, MEURER, Bernd, TOORN, Jan van, WINCKLER, Dietmar. Mass Communication And Social Change. Cleveland: CRC Pres, 1997. MIRSOEFF, Nicholas. Una introducción a la cultura visual. Barcelona, Paidós, 2003. PORTUGAL, Cristina. Design, educação e tecnologia: Rio de Janeiro: Rio Books. 2013. _______. Design, educação e tecnologia (online): Rio de Janeiro: Rio Books, Disponível em: www. design-educacao-tecnologia.com. Acesso: 20 Janeiro de 2016. SBDI - Sociedade Brasileira do Design da Informação. Disponível em: www.sbdi.org.br. Acesso 13 fevereiro de 2016. REDIG, Joaquim. Não há cidadania sem informação, nem informação sem design. São Paulo: InfoDesign Revista Brasileira de Design da Informação 1 – 1 [2004], 58-66

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OS PRIMEIROS CONGRESSOS NACIONAIS DE MUSEUS NO BRASIL E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DE UMA POLÍTICA NACIONAL MUSEAL Daniel Campelo de Oliveira1 RESUMO: O objetivo deste trabalho é fazer uma análise específica nos três primeiros congressos nacionais de museus, realizados entre os anos de 1954 e 1963, identificando os atores sociais envolvidos e os principais temas abordados nas discussões. Em um momento em que os museus brasileiros buscavam se alinhar as intencionalidades de investimentos do Governo, os sujeitos envolvidos nestes encontros se destacaram pela organização inédita neste sentido no país. Ao dar luz a estes congressos pretendemos vislumbrar sua importância perante aos rumos que os museus e a museologia tomaram a partir de sua realização. PALAVRAS-CHAVE: Política de museus, Congressos nacionais de museus, Museologia, Museus.

Alguns estudos acerca do Estado e sua relação com a sociedade, presentes de forma preponderante na produção historiográfica brasileira, são relevantes para introduzir o assunto, na medida em que elaboram reflexões naturalizadas dessa relação. Ao organizar uma coletânea de textos sobre o campo de política cultural no Brasil republicano, desde as experiências da Era Vargas nos anos 1930 e 1940, até o período contemporâneo da gestão do ministro da cultura Gilberto Gil, no período de 2003 a 2009, Alexandre Barbalho e Antonio Albino Canelas Rubim atentam para o fato da produção acerca desta temática, apesar de consistente, “... ainda não se estabeleceu em nosso meio social um capital crítica sobre política cultural. ” (BARBALHO; RUBIM, 2007) Ao analisar de forma mais detalhada as décadas de 1950 a 1970, especificamente no que se refere às intenções e práticas políticas dos museus no Brasil, este trabalho pretende preencher uma pequena parte desta lacuna citada por estes autores. Na década de 1950 o “campo museológico” no país encontrava-se em formação. Os três decênios anteriores foram essenciais para o desenvolvimento da museologia e dos próprios muMestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. E-mail: [email protected]

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seus no país. Desde a fundação do Museu Histórico Nacional em 1922, e da criação do curso de museus (atualmente Escola de Museologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - Unirio) dez anos depois, o Brasil passava por um momento de alinhamento com novas tendências da museologia, sobretudo após a criação da Organização Nacional do Conselho Internacional de Museus – ONICOM, no ano de 1948, atualmente conhecida como ICOM-Brasil. Especificamente entre os anos de 1956 e 1962 foram realizados os três primeiros congressos nacionais de museus no país, todos organizados pelo conselho nacional. Primeiro Congresso Nacional de Museus realizado em Ouro Preto, Minas Gerais em 1956; Segundo Congresso Nacional de Museus, realizado na capital do Estado de São Paulo em 1959; e o Terceiro Congresso Nacional de Museus, realizado em Salvador, Bahia em 19622. Nestes encontros foram discutidos os principais problemas enfrentados pelos profissionais que atuavam nos museus brasileiros. Mudança de legislação, valorização dos profissionais e problemas estruturais foram algumas das principais temáticas abordadas nestes eventos, que contribuíram para modificar de forma indireta, ou mesmo diretas, na construção de uma trajetória política de museus em âmbito nacional. O Conselho Internacional de Museus – ICOM, juntamente com a divisão das Nações Unidas para educação e cultura – UNESCO, também organizou diretamente um encontro no país, no ano de 1958, contando com o apoio do conselho nacional. O Seminário Regional da UNESCO sobre a função educativa dos museus, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, contribuiu para aumentar o intercâmbio entre profissionais da museologia que atuavam na América Latina e no restante do mundo. 1. INSTITUIÇÕES MUSEOLÓGICAS NACIONAIS E LEGISLAÇÃO EXISTENTE O artigo 148 da Constituição federal brasileira de 1934 destinava à União, aos Estados e aos municípios, o favorecimento do desenvolvimento da cultura em geral, com o objetivo de proteger o interesse histórico e o patrimônio artístico do país. Na constituição de 1937, os serviços relativos à educação foram ampliados, a partir da criação do SPHAN e seu Conselho Consultivo. Com relação aos museus, no mesmo artigo destinado ao tratamento do patrimônio histórico e artístico, há a indicação de que deveriam cooperar com as atividades do SPHAN. O Museu Histórico Nacional, o Museu Nacional de Belas-artes e outros museus nacionais de coisas históricas ou artísticas, que forem criados, cooperarão nas atividades do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pela forma que for estabelecida em regulamento (Capítulo III. Secção III. Lei nº 378). Em um período em que os museus estavam subordinados ao recém criado Ministério da Educação e Cultura - MEC, houve uma forte comunicação entre o governo federal e os museus, Essas informações encontram-se no Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional. Série AS-DG1. Caixas: 2A e 3. 2

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através da centralização das decisões referentes a esse assunto no MHN e na Inspetoria de Museus, ambos comandados por Gustavo Barroso, no final do mesmo decênio o projeto se alterou e a museologia brasileira passou por um período de transformações A década de 1940 foi marcada pela criação de diversos museus federais no país. Na cidade de Petrópolis-RJ foi criado o Museu Imperial, através do decreto-lei de número 2.096/1940. No mesmo ano foi criado na cidade de São Miguel das Missões-RS, o Museu das Missões, além do Museu do Ouro em Sabará, MG, em 1945, todos inaugurados após a publicação de decretos-leis federais. Gradativamente foram criados serviços públicos responsáveis por administrar o interesse destes órgãos públicos. Na cidade do Rio de Janeiro foi criado o Serviço de Museus da cidade do RJ, subordinado a Secretaria geral de educação e cultura da prefeitura do Distrito Federal, também no ano de 1940. Esse órgão representou concessão pública à atenção específica para as necessidades dos museus na cidade. Em paralelo à criação de instituições museológicas, a museologia se consolidava. Nas palavras do historiador Paulo Knauss: “A década de 1940 se confirmou como a década em que a museologia se afirma como campo intelectual no Brasil” (KNAUSS, 2011). Foi também o período da renovação do currículo do Curso de Museus do MHN. Criado no ano de 1932, o Curso de Museus do MHN recebeu novos disciplinas, investimento e procurava se alinhar às novas tendências da museologia mundial, fato pertinente para este, desde o decreto lei nº 24.735 de 1934, que alterou pela primeira vez o Estatuto do Curso, o concedendo relativa autonomia em relação ao MES (Ministério da Educação e Saúde),3 e posteriormente ao MEC. No final dos anos 40, mais precisamente em 1948, com a fundação do ICOM-Brasil, os profissionais que atuavam nos museus brasileiros iniciaram as discussões que seriam vigentes em décadas posteriores: a função e os objetivos das instituições museais brasileiras. Neste mesmo período, os museus brasileiros passaram a se preocupar com a divulgação de seu acervo para um público ampliado. Data de 1952 a primeira pesquisa de público em museus realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE. Foi apontado um número de 1.226.000 visitantes em 104 museus que participaram da pesquisa (TRIGUEIROS, 1955, p.29). Já o caráter educacional é destacado pelo historiador Paulo Knauss. No trecho apresentado a seguir, nota-se a mudança de interesses e perspectivas das instituições museais existente no Brasil, primeiro ele apresenta a intencionalidade dos museus até a década de 1940, e por fim a mudança a partir da década de 1950 no país. Os museus mais antigos do Brasil, (...), tinham como foco a pesquisa e, por isso, não era de surpreender que não tivessem horário de visita, pois recebiam apenas pesquisadores agendados (...) Nos anos de 1940, porém, 3

Relatórios do MHN. Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional. Série AS-DG1. Caixas 2ª e 3.

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todos os museus tendiam a combinar o interesse pelo tratamento técnico das peças com a missão educativa dos museus. (KNAUSS, 2011, p. 583). Se durante o século XIX os museus voltavam sua atenção às pesquisas científicas, a partir da década de 40 e 50 do século XXI, principalmente, a preocupação com os visitantes se difundiu, e mais especificamente projetos voltados para os estudantes. Torna-se imprescindível neste momento alinhar o Brasil dentro do cenário internacional, e entender como a museologia e os museus eram vistos e administrados ao redor do planeta. O ICOM foi criado no ano de 1946, com o objetivo de estabelecer uma normatização a todos os museus do planeta, e visava apontar diretrizes para as funções destes,4 pois após as tragédias ocorridas no decorrer da primeira metade do século XX, a preocupação com os bens materiais históricos e artísticos havia se intensificado. Vinte anos antes da criação do ICOM, ocorrera uma tentativa de se estabelecer uma entidade capaz de abarcar os museus e os profissionais atuantes na área ao redor do mundo, o Escritório Internacional de Museus – IOM, porém sua atuação se restringiu aos países França, Estados Unidos, Alemanha, Itália e Grã-Bretanha, uma vez que o diálogo com países fora deste eixo ocorreu de forma limitada. (CRUZ; 2006) Um dos museus brasileiros que recebeu esta comunicação foi o Museu Nacional de Belas Artes – MNBA sediado no Rio de Janeiro. Tão logo os representantes da instituição responderam à recém-criada organização internacional, foi feito um convite para que um representante do museu fluminense acompanhasse a reunião de abertura da nova instituição. (CRUZ, 2006) Se no período da formação do projeto de Gustavo Barroso, com a criação do MHN e do Curso de Museus durante as décadas de 1920 e 1930, a influência do projeto europeu não é tão visível, até porque a comunicação internacional entre os profissionais estava em formação, a partir da criação do ICOM, na segunda metade da década de 1940, estes elementos se evidenciam. A criação dos diversos museus através de decretos-leis entre as décadas de 1940 e 1950 evidenciavam que o diálogo entre sociedade civil, organizada principalmente no Icom-Brasil, e a sociedade política, responsável pelos decretos que criavam estas novas instituições, permite visualizarmos a composição de um Estado que atendia às necessidades da comunidade museal que se formara anos antes, e se encontrava em fase de desenvolvimento e estruturação política. No dia 12 de abril de 1954 Getúlio Vargas instituiu seu último ato legal em relação aos museus, ao criar Museu do Diamante em Diamantina, MG através do decreto-lei de nº 2.200. Seus governos (1930-1945, e 1951-1954) foram caracterizados pela criação de diversos museus, e favorável atenção concedida aos à museologia. Dois meses após o suicídio do presidente, dois representantes de museus nacionais foram enviados pelo Governo federal, para a capital da Grécia para participarem do Segundo Estágio sobre os museus e a educação, promovido pelo

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Cf. http://icom.museum/the-organisation/history/. Acessado em 03/01/2014.

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ICOM, os professores Jenny Dreyfus e Vitor Stawiaski, funcionários do MHN e do Museu Nacional, respectivamente. (CRUZ, 2006). O tema educação em museus que permeava as discussões dos profissionais das instituições museais do país assumiu maior destaque através do contato dos brasileiros com o ICOM, até que ficou decidido a realização do Primeiro Congresso Nacional de Museus no Brasil. A cidade escolhida foi Ouro Preto, MG, e o evento realizou-se no ano de 1956. Nas palavras da presidente do ICOM-Brasil à época do evento, através do congresso: “selou-se o início da cooperação sistematizado entre os educadores oficiais e os técnicos de museus” (TRIGUEIROS, 1958, p.11) A importância deste primeiro congresso, organizado pelo conselho nacional do ICOM, tratou majoritariamente sobre educação e museu, pois permitiu um debate acerca das dificuldades encontradas em instituições distintas, com problemas que se convergiam. Foram apresentados alguns temas relativos a memória de instituições como por exemplo, o Museu do Banco do Brasil e o Museu Antônio Parreiras, de Niterói, Rio de Janeiro. Com a possibilidade de museus distintos se tornarem visíveis dentro da comunidade museal, o evento incentivou a realização de eventos posteriores, e cada vez mais audaciosos, inclusive em relação a propostas de mudanças de legislação referentes aos próprios museus do país. 2. CONGRESSOS E ENCONTROS DE MUSEUS DURANTE AS DÉCADAS DE 1950 E 1960 NO BRASIL: PROPOSTAS DE MODIFICAÇÕES NA LEGISLAÇÃO Com a organização desta instituição entre os anos 1956 e 1962 realizaram-se no país os três primeiros congressos nacionais de museus. Além do “Seminário Regional da UNESCO sobre a função educativa dos museus” no Rio de Janeiro em 1958, que foi o único dos grandes eventos organizado diretamente pelo ICOM com parceria da UNESCO. A organização nacional do Conselho Internacional dos museus, apenas apoiou a realização deste encontro. A análise destes congressos nos permite identificar a presença repetida de profissionais de destaque que atuaram nos museus brasileiros neste período, assim como perceber quais eram os principais questionamentos e objetivos expostos por estes agentes sociais. O primeiro dos eventos promovido pelo Comitê Nacional do ICOM, ocorreu em julho de 1956, o Primeiro Congresso Nacional de Museus. Dividido em dez diferentes tópicos de discussão e com aproximadamente 140 congressistas convidados, os representantes das principais instituições museais brasileiras debateram sobre sua situação administrativa, além de dedicar atenção especial para o tema da legislação específica dos museus, incluindo possíveis regulamentações que deveriam ser constituídas a partir das sugestões do encontro. Foram apresentados 72 trabalhos durante os cinco dias de encontro, e em sua grande maioria com a temática voltada para os serviços educativos nos museus, além das publicações

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geradas a respeito da memória de algumas instituições museais, como por exemplo, do Museu do Banco do Brasil (MONTEIRO, 1956) e do Museu Antônio Parreiras de Niterói (ÁVILA, 1956). Um dos tópicos presente no encontro tratava da situação que se encontravam os museus no Brasil. Foi feita a apresentação de resenhas históricas de algumas destas instituições, no qual foram apresentadas instalações e organizações estruturais dos prédios que as abrigavam com objetivo de tornar visível para a comunidade museal os percalços enfrentados nas diferentes casas históricas. Porém o destaque maior foi para as sugestões de legislação e regulamentação que se direcionava aos museus, as quais deveriam ser constituídas. Há de se destacar alguns dos convidados neste encontro, como por exemplo, Juracy Silveira e Guy de Hollanda, professores e funcionários do Ministério da Educação e Saúde e Dioclésio Redig de Campos (TRIGUEIROS, 1958, p. 91). Desta forma, os organizadores do Encontro cumpriam com dois de seus objetivos incluídos no projeto do evento: além de tomar uma atitude que passa a ser constante nos eventos seguintes, convidar especialistas em museus internacionais para opinar nas técnicas museológicas adotadas no país com a finalidade de reunir propostas e levá-las para o conhecimento do governo. O presidente do SPHAN Rodrigo Mello Franco de Andrade foi escolhido como um dos presidentes de honra do Encontro, o que foi visto como tentativa ainda maior de estreitar a ligação da ONICOM com o órgão federal de preservação. Reuniram, portanto, representantes do MEC e o Serviço do Patrimônio, os dois grandes órgãos aos quais as instituições museais estavam atreladas e subordinadas. Dois anos após a realização do congresso organizado pelo ICOM-Brasil, o próprio ICOM em parceria com a UNESCO decidiu realizar o Seminário Regional sobre a Função Educativa dos Museus. Tratou-se de uma série de conferências e mesas-redondas ocorridas de 07 a 30 de setembro de 1958 na cidade do Rio de Janeiro, envolvendo representantes de vinte países da América Latina, museólogos dos Estados Unidos, França, Países Baixos e Reino Unido, além do presidente do ICOM, Georges Henri Rivière (TORAI, 1995, p. 10). No documento final, redigido pelo próprio presidente do ICOM, e publicado pela UNESCO, destacou-se como fator primordial dos debates e discussões ocorrido ao longo do seminário, que o museu pode trazer muitos benefícios a educação. È preciso pensar esta premissa sem colocar em perigo o cumprimento da conservação e investigação científica, por exemplo. (TORAI, 1995, p. 10). Pouco aos antes de alcançar a década de 1960, os especialistas em museus, museólogos e demais profissionais que pensavam e atuavam nas principais instituições internacionais, ligadas ao ICOM e a UNESCO, ainda buscavam formas mais adequadas dos museus servirem à educação. A análise dos temas propostos neste encontro ajuda a pensarmos de que forma este tema ainda era uma incógnita para estes sujeitos.

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O tema: “Exposição polivalente e exposição especializada” presente em uma das conferências pode ser destacado aqui. Exemplos ainda em fase de teste, no Museu do Homem em Paris e no Rilksmuseum em Amsterdã, serviram como exemplo de como um público distinto e completamente heterogêneo era tratado. (TORAI, 1995, p. 13). Já o Segundo Congresso Nacional de Museus foi realizado em dezembro de 1959, em São Paulo, e sobre essa reunião há poucas informações disponíveis Uma das mais relevantes é que tal encontro reforçou a importância do tema museu e educação, já tratado no Primeiro Encontro realizado em Ouro Preto, e realçado no Seminário Regional da UNESCO, dedicado inteiramente a função educativa dos museus, realizado em 1958, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1962, com a realização do Terceiro Congresso Nacional de Museus, na cidade de Salvador, surgiram as ideias mais relevantes em relação à formulação de diretrizes legais para os museus brasileiros. A comunidade museal, que vinha se aglutinando em torno dos primeiros congressos pela Organização Nacional do ICOM, resolveu produzir documentos sugestivos para uma política de museus. Com o título “Utilização cultural de material de museus”, os idealizadores abriram os debates declarando que o encontro não possuía finalidade de discutir legislação, no entanto concluem o encontro, afirmando que “é preciso introduzir modificações na legislação...” Destaque para as quatro sugestões para uma política de museus, apresentadas já no primeiro dia do evento: transformar os museus em autarquias, gerando uma política oficial de museus; fazer com que os museus de maior expressão cultural, de mais rico patrimônio passem a integrar universidades, como institutos anexos; fazer com que os museus de menos campo de ação, como os regionais e municipais se organizassem em redes de cooperação e assistência, sob proteção dos estados, municípios e entidades particulares; e por fim garantir a divulgação dos museus na sociedade. Um dos pontos mais relevantes das propostas finais deste encontro foi da criação de uma Associação Brasileira de Museologia, que de fato ocorreu um ano depois, em 1963, quando foi criada a ABM. Após a criação da ABM no início da década de 1960, a organização dos eventos em nível nacional passou a tutela da nova associação. As mudanças em relação à legislação vinham ainda em forma de sugestões, pois os profissionais responsáveis pelas propostas não possuíam força política para a efetiva alteração de leis. É interessante notar que anos depois, entre 1969 e 1973, O Programa de Ação Cultural, vigente durante o ministério de Jarbas Passarinho, não possuía uma função explícita de formular uma política oficial de cultura. (MICELI, 1970, p.56) Mesmo esse dado sendo posterior ao período destacado, nos permite pensar sobre a dificuldade de modificação da legislação patrimonial no país.

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O fato é que os profissionais da área de museus, que passaram a se organizar desde a criação do ICOM-Brasil, ao invés de adotar o critério do embate com o Governo, resolveram seguir, com a criação da ABM, de se alinhar ao setor federal, buscando receber alguns benefícios provenientes desta aliança. Nosso objetivo na dissertação será destacar o posicionamento político dos profissionais envolvidos nestes encontros apresentados, assim como os cargos públicos exercidos por eles. E por fim tentar analisar a existência ou não de uma rede de intelectuais capazes de um diálogo mais íntimo com o Governo Federal durante as décadas de 1960 e 1970.

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GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. KNAUSS, Paulo. A presença de estudantes: o encontro de museus e escola no Brasil a partir da década de 50 do século XX. P. 583. In: Revista Varia hist. vol.27 no.46 Belo Horizonte Julho./Dezembro, 2011. LANDIM, Leilah. (Org.) Ações e sociedade. São Paulo: Editorial Nau, 1998. LANDIM, Leilah et alli. Sociedade e Políticas: Novos debates entre Ongs e Universidades. São Paulo: Editorial Revam, 2003. MAGALHÃES, Aline Montenegro. O que se deve saber para escrever história nos museus? In: Anais do Museu Histórico Nacional v.34. Ministério da Cultura – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro. 2002 MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Roberto Marinho, 1997. MENDONÇA, Sonia Regina. Economia e Política na historiografia brasileira. Antropolítica, Niterói, EDUFF, 2001 MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e políticas públicas: considerações político-conceituais. Outros Tempos, vol. 1, p. 7, 2007. MENDONÇA, Sonia. Por uma sócio-história do Estado no Brasil. In: IPHAN. A invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, 1995. MICELI, Sergio. Mecanismos de estatização da atividade cultural: o processo de construção institucional na área cultural federal (anos 70). MONTEIRO, Fernando. O Museu do Banco do Brasil: Memória apresentada ao Primeiro Congresso Nacional de Museus. Rio de Janeiro: Oficinas do Banco do Brasil, 1956. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. POERNER, Arthur José. Identidade cultural na era da globalização: Política federal de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997. POUILLON, Jean (org.) Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1968. SANTOS, Maria Célia Teixeira et alii. Anais do II Seminário sobre Museus-casas. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1998. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A Escrita do passado em Museus Históricos. Rio de Janeiro: Editoria Garamond, 2006. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus Brasileiros e Política Cultural. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.19, p.53 - 72, 2004. TELLES, Vera da Silva e CABANES, Robert (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Editora Humanitas, 2006. TORAI, Hernan Crespo. In: A memória do pensamento museológico contemporâneo: documentos e depoimentos. Comitê Brasileiro do ICOM, Rio de Janeiro, 1995.

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TRIGUEIROS, F. dos Santos. Museu e educação. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1958. TRIGUEIROS, F. dos Santos. Museu: órgão de documentação. Cadernos AABB, nº 11. Rio de Janeiro, 1955.

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ANÁLISIS FESTIVAL ESTÉREO PICNIC: CRECIMIENTO DE LOS FESTIVALES Y LA OFERTA MUSICAL EN COLOMBIA (2010-2015) Daniela Herrera Dimaté1 RESUMO: El Festival Estéreo Picnic es un festival musical que se ha realizado desde el 2010 en Bogotá, Colombia, poniendo a la ciudad como referente para giras de músicos. Se analiza la historia, cadena de valor y factores del entorno del Festival, cómo estos influyen en el Festival, y también cómo influye éste en la economía de Bogotá. El análisis del Festival se realiza desde la perspectiva de que éste es una manifestación positiva e influyente en la industria creativa de la música en Colombia, que ha experimentado un crecimiento favorable a nivel local y mundial en años recientes. PALAVRAS-CHAVE: Festival de música, cadena de valor, indicadores de medición, Bogotá.

En Colombia en la última década se ha evidenciado un crecimiento en la oferta musical, tanto bandas locales que se dan a conocer en el exterior como bandas internacionales que visitan frecuentemente Colombia; a comparación de la década de los noventas donde en el país se presentaban contadas agrupaciones internacionales vigentes de la época, esto se debía en gran parte a la imagen negativa de violencia que dejó el narcotráfico y el conflicto interno en general. No solo los artistas o promotores temían por su seguridad, sino que tampoco existía el capital humano ni herramientas técnicas ni tecnológicas suficientes para poder desarrollar conciertos de alta calidad con estándares internacionales. En especial en la última década se ha notado una mejora y crecimiento en este aspecto en Colombia y en especial en la capital país. El presente artículo tiene por objetivo analizar los factores del entorno que han dado pie al crecimiento en la escena musical en Colombia, específicamente en los festivales de música, y entre festivales, el que ha presentado un acelerado crecimiento en el último lustro: el Festival Estéreo Picnic.

Especialista en Gerencia y Gestión Cultural de la Universidad del Rosario (2016) Actualmente coordinadora del Museo de Artes Gráficas de la Imprenta Nacional de Colombia, ha trabajado en varios festivales musicales y eventos culturales de la ciudad de Bogotá (2009-2015) a nivel operativo. e-mail: [email protected]

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Antes de analizar los factores del entorno se revisarán las definiciones e historia de los festivales de música a escala local e internacional. Por Festival de música se entiende un evento público, muchas veces al aire libre, que presenta más de dos artistas y puede llegar a durar varios días. En su acepción moderna incluye servicios como variedad de comidas, ferias de arte y diseño, baños, parqueadero y transporte. Se puede decir que es un evento masivo por lo general, aunque la cantidad de asistentes no define si es un festival o no; la cantidad de artistas sí. Además los festivales se financian a través de patrocinadores comerciales. Este tipo de eventos ha venido creciendo en el mundo y en Colombia, ya que el precio de la boleta incluye una cantidad de artistas (verlos por separado sería mucho más caro): todo en un mismo lugar por un mismo precio. También se han popularizado estos festivales debido al cambio de formato de ventas en el sector de la música: la venta de discos ha disminuido y para los artistas puede resultar más rentable realizar giras de conciertos que quedarse esperando las ganancias sobre las ventas de discos (incluso en formatos digitales como iTunes o servicios de streaming2). Los festivales de música pueden centrarse en un solo género musical (como los festivales de música clásica) o en varios. Esta caracterización es relevante en tanto define el carácter del evento, así como el tipo de público objetivo. Los festivales de música como se conocen hoy en día nacieron en la década de los sesentas y algunos persisten hasta hoy. Ejemplos de festivales memorables en el mundo (por el cartel de artistas que presentaron y por la cantidad masiva de asistentes) son: Woodstock Music & Art Fair (Nueva York, EEUU, 1969), Glastonbury Festival of Contemporary Performing Arts (Somerset, Inglaterra, 1970-presente), Rock in Río (Río de Janeiro, Brasil, 1985-presente) y Coachella Valley Music and Arts Festival (Indio, CA, EEUU, 1999-presente). Estos festivales de música combinan distintos géneros de música contemporánea como rock, indie, hip-hop, electrónica, entre otros. En Colombia han existido dos grandes festivales que también han servido como escuelas de aprendizaje para las artes escénicas y las personas involucradas en ellas3, tanto artistas como técnicos, procesos de logística y de distribución de boletería: el Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá (1988-presente) y Rock al Parque (1995-presente). La falta de experiencia y equipamientos en Bogotá se evidenciaron en la primera edición del Festival Iberoamericano de Teatro cuando la escenografía, luces y equipos de sonido de obras internacionales fueron

Servicio de consumo en línea de música, videos o películas. Entrevista con un técnico de sonido de la empresa Árbol Naranja el 11/03/2015. Árbol Naranja es una plataforma de entretenimiento que presta servicios de marketing cultural, y en especial soporte musical como estudios de grabación, alquiler de backline, equipos de producción, salas de ensayo, agencia de manejo y booking. Ver: http://arbolnaranja.com/

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trasladadas de Caracas a Bogotá en aviones del ejército venezolano para ahorrar costos, ya que había otro festival de teatro en Venezuela4. Por su parte, Rock al Parque inició con los esfuerzos del cantante del grupo de rock colombiano La Derecha Mario Duarte, el empresario musical y publicista Julio Correal y la subdirectora de fomento del Instituto Distrital de Cultura y Turismo, Berta Quintero, con el objetivo de realizar un festival para promover las bandas locales de la escena del rock así como escenarios de tolerancia y convivencia. El formato de este festival es distinto al del Festival Estéreo Picnic (FEP), ya que lo gestiona la Alcaldía Mayor de Bogotá, la entrada es gratuita, muchas de las bandas se escogen por concurso abierto al público y no está abierto a cualquier género musical (en tanto hay otros Festivales al Parque), por ende no representa competencia para el FEP. El Festival Estéreo Picnic no fue el primer festival en realizarse en Bogotá con un formato similar al de Coachella o a Glastonbury, de hecho en el 2010 (primer año en que se realizó el FEP) se realizaron otros dos festivales en las afueras de Bogotá: Nemcatacoa y Soma. El último fue organizado por la misma empresa que realiza el FEP y tuvo buenas críticas, mientras que Nemcatacoa fue una experiencia financieramente fallida debido a problemas con el patrocinador principal. Sin embargo, Estéreo Picnic fue el festival que más ganó en cuanto a percepción de marca y recordación entre los asistentes5. La primera edición del FEP, que se realizó en abril de 2010, fue el producto de una unión de dos empresas que, para no competir entre ellos, decidieron juntar los artistas que habían “bookeado6” en un mismo día. Las empresas son Absent Papa y T310, ambas venían compitiendo y habían realizado eventos a menor escala en la ciudad de Bogotá, y se componen de 6 miembros fundadores e inversionistas principales hasta el día de hoy. Si se compara el cartel de artistas de la primera versión del FEP con el que se hará en el 2016 se evidencia un aumento considerable en cuanto a cantidad de artistas: en el primer festival hubo un total de 6 artistas (3 internacionales y 3 nacionales), mientras que en el 2016 se esperan alrededor de 53 bandas (17 nacionales apróx. el resto internacionales).

Charla con Anamarta de Pizarro, actual directora del Festival Iberoamericano de Teatro de Bogotá. 19/09/2015 Duque, R. y Granados, A. (2013). Music Festival Management in Colombia-Festival Estéreo Picnic (tesis de pregrado). Universidad de los Andes, Bogotá, Colombia. 6 Bookeado: expresión derivada del verbo en inglés to book, quiere decir cuando se ha concertado la contratación de un artista. 4 5

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Imagen 1: Primer cartel de artistas del FEP (2010)7

Es evidente entonces que el crecimiento del FEP se refleja en el aumento de oferta musical. Sin embargo, se debe analizar de qué manera es que esta oferta de valor se genera y qué factores han influido para propiciar este crecimiento. Para hacer el ejercicio de dibujar la cadena de valor (concepto propuesto popularmente por Michael Porter -1985) se tomó como referencia la Cadena de valor de las artes escénicas hecha por Stephen Preece (2005). Imagen 2: Cartel del FEP para el 20168

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Resident Advisor. Imagen extraída de http://www.residentadvisor.net/event.aspx?148619 TuBoleta. Imagen extraída de http://vive.tuboleta.com/baners/picnic16/lineup.jpg 611

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La cadena valor es un concepto en el que se distingue el proceso de transformación de ciertos recursos en una oferta de valor para los usuarios del producto o servicio. Vale aclarar que esta oferta se presenta desde el interior de la empresa y es así pues reflejo de su entorno. De este modo se distinguen dos tipos de actividades: actividades primarias y actividades de apoyo. Como su nombre lo dice, las actividades primarias son las que la empresa realiza directamente y se podría decir son clave para la operación, si una de ellas deja de funcionar la cadena de valor se rompe. Las actividades de apoyo son también importantes en la producción de valor, pero son de apoyo ya que pueden ser fácilmente tercerizadas, opción que se toma a menudo en organizaciones artísticas, ya que permite enfocarse hacia las actividades primarias. Las actividades de apoyo son cruciales y se relacionan por lo general con la distribución, ya sea de productos (como boletería) o de personas (como se hace con el transporte). Imagen 3: Cadena de valor del FEP9

Las actividades primarias son codependientes, y en general el concepto de cadena significa que si un eslabón falla la cadena se rompe. Es así que no existen jerarquías más allá de las actividades primarias y las de apoyo, pero sí un orden que va de la planeación a la ejecución. Como actividad primaria se encuentra el área de Programación o booking de artistas. Esta área es la encargada de gestionar los artistas nacionales e internacionales que harán parte de la oferta musical. Esta área es la principal oferta de valor ya las personas compren las boletas porque les llama la atención algún nombre del cartel, este factor incide más en el momento previo al evento (después hay otros factores que complementan la experiencia del festival). Esta curaduría musical no se hace de un día para otro, de hecho los bookers viajan a distintos festivales alrededor del mundo y hacen relaciones públicas para poder gestionar el cartel con un año de anticipación para las bandas internacionales. Esto también se debe a la alianza que existe entre festivales de la región latinoamericana y con los organizadores del festival Llolapallooza Adaptado de Preece, S. (2005). The Performing Arts Value Chain. International Journal of Arts Management, 8 (1), 21–32. Extraído de http://www.jstor.org/stable/41064860 9

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en Chicago (1991-1997, y 2003-presente), festival que se ha extendido a países de la región como Chile, Argentina y próximamente Colombia. Esta alianza permite que entre los festivales de la región se repartan los gastos a la hora de traer tiquetes. Por ejemplo, a los organizadores del FEP les saldría excesivamente costoso traer al integrante de la banda Oasis Noël Gallagher, entre tiquetes aéreos, viáticos, entre otros costos, no sería viable ni sostenible, y esto es con un solo artista. Mientras que gracias a esta alianza se pueden gestionar más artistas internacionales, ofreciendo así una mayor variedad, lo que a su vez aumenta la posibilidad de llamar la atención de varios públicos, y de este modo se incrementa la expectativa del número de asistentes al festival. En cuanto al área de Personal, se refiere al capital humano con el que cuenta la empresa. Esta área es imposible de imitar ya que cada jefe de área cuenta con experiencia en su campo: por ejemplo los bookers o curadores musicales se guían por su gusto (o por pensar qué bandas pueden llamar la atención) y por intuición, el director de mercadeo está a cargo de ingeniarse estrategias novedosas de mercadeo. También está el director de ingeniería de sonido, quien es muy importante ya que no sirve de nada traer un gran show si la empresa contratante no se puede adaptar a las necesidades técnicas y tecnológicas del artista (esto se llama un rider donde se listan las necesidades de instrumentos, luces y demás que utiliza el artista; cuando no se tiene un equipo exacto al que pide el artista, se puede ofrecer uno equivalente). En resumidas cuentas, se necesita de curadores musicales para que propongan las bandas, de ingenieros de sonidos capaces de adaptarse a las necesidades de las bandas, y un departamento de marketing que sepa promocionar estas bandas para vender la mayor cantidad de boletas posible. Como ya se dijo, el área de Promoción es crucial ya que se encarga de comunicar masivamente la existencia del evento para poder vender la mayor cantidad de boletas posible. En las campañas de publicidad se contemplan estrategias como activación de marcas (ATL y BTL), manejo de redes sociales, publicidad en radio, medios impresos y community management, entre otros. Un valor agregado del área de Promoción es que se ingenian en conjunto con los patrocinadores experiencias acorde a cada patrocinio, de este modo, por ejemplo, con la empresa Caterpillar (originalmente es una empresa fabricante de maquinaria de construcción y tiene además una línea de calzado) quienes en el 2014 en el FEP ofrecían la experiencia de montarse a una máquina retroexcavadora pequeña y recolectar balones de playa (de plástico)10. Finalmente en actividades primarias se encuentra el área de Producción. Si las anteriores áreas son de planeación, esta es la de ejecución del evento. Esta área también aporta gran parte de la oferta de valor, pues hay un tipo de público que va a festivales y compra la boleta aún 10

Para referencias visuales visitar http://www.zoomenlinea.com/?p=25737

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sin saber quién va a tocar. En producción se incluye el montaje audiovisual, la distribución del espacio: tanto locación o venue del festival, como el layout o disposición de escenarios (también flujo de personas, ubicación de servicios adicionales como comida, baños, etc.). Aquí es cuando los ingenieros de sonido e ingenieros de luces ponen en marcha el rider o propuesta de producción de los artistas, es decir: el sonido, pantallas que transmiten el show en vivo, la acústica (se debe escuchar bien desde cualquier lugar que rodee las tarimas, no se debe escuchar eco), supervisión de cada show y resolución de imprevistos respecto a éstos. Ahora, sobre las actividades de apoyo, éstas se clasifican desde lo interno a lo externo, o desde la planeación a la ejecución. Es así que Gobernanza se enuncia como superior, esta área permea tanto a la empresa como al evento, ya que, según Preece, consiste en la supervisión de la organización, por lo general en forma de una junta directiva (Preece, p.23). En el caso de Absent Papa/T310, son 6 socios fundadores que supervisan todas las actividades de la empresa, y cada uno se centra en su especialidad (booking, finanzas, mercadeo). El área de Administración se refiere a la gestión de la empresa y de los distintos departamentos en los que se divide para poder realizar el festival. Unas de las áreas son marketing y diseño, producción, logística, finanzas, booking, comercial y prensa. Es claro el por qué el área de Recaudación de fondos es importante, pues esta área se enfoca en obtener y asegurar financiación. El FEP se financia en gran parte a partir de patrocinadores, de préstamos de bancos e inversión propia de los 6 socios fundadores (al principio era más grande la inversión externa que ahora). Asimismo se han realizado en el pasado convenios con embajadas de otros países donde éstas se encargan de cubrir los gastos de viaje de un artista (viáticos, tiquete aéreo) que por lo general es representativo del país al que pertenece la embajada y éste les ayuda a promover su cultura en Colombia. Como se mencionó anteriormente, la alianza con otros festivales en la región es crucial para poder gestionar y asegurar la presencia de los artistas del cartel en el festival. En actividades de apoyo está finalmente la Logística del evento. Al ser un evento de asistencia masiva contempla la logística típica de un evento de este tipo, primero el de escoger un venue o locación ideal con acceso fácil, y segundo los demás factores de la logística de un evento masivo: baños, acceso al venue, salidas de emergencia, transporte para los asistentes y para los artistas. La logística de los artistas incluye gestión de visas, tiquetes aéreos, hoteles, transporte, alimentación, entrega de viáticos y prueba de sonido. Actividades complementarias que también requieren de una planeación y logística minuciosa son: la oferta de comidas y distribución en el venue, la feria de diseño (elección de diseñadores, ingreso de mercancía, facturación, distribución de locales en el venue). En logística también se incluye una sección crucial que es la de boletería: distribución y acceso a la misma, así como el recaudo del dinero. El recaudo se hace a través de la empresa encargada de la venta de boletas.

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Habiendo descrito la cadena de valor del Festival Estéreo Picnic pasamos a reflexionar sobre los factores que han dado pie a que la escena musical en Colombia y, en especial los festivales de música, prosperen. El primer factor identificado es el factor ciudad, o más bien Bogotá como capital musical. De acuerdo a uno de los socios fundadores del FEP, también booker, Philippe Siegenthaler “Bogotá se volvió una referencia en la región y en el continente como que se pueden hacer conciertos, son exitosos, va gente, se venden boletas, hay una producción decente, buena, y las bandas finalmente terminan teniendo una experiencia buena”11. Según Siegenthaler, Bogotá es la quinta ciudad de Latinoamérica (junto a Río de Janeiro) para hacer conciertos (después de Santiago de Chile, Buenos Aires, Sao Paulo y México D.F.), ya que en esta ciudad se encuentra un amplio mercado, con gustos diferentes y diferentes niveles de poder adquisitivo. Otro factor que mencionó Siegenthaler es el creciente interés del público hacia la oferta musical y en especial a los espectáculos musicales en vivo. “Es un público que en los últimos 15 años ha avanzado de no existir prácticamente”12 dijo Siegenthaler, ya que, como se expuso en la introducción, no existían muchos conciertos y tampoco existía la costumbre de ir y además de pagar por conciertos (por ejemplo Rock al Parque es un evento gratuito). Se pasó de no tener una oferta ni una demanda sólida por conciertos a una nueva generación, actual, que tiene inculcado o ya planea para pagar y asistir a espectáculos en vivo. De este modo el crecimiento del público, o la demanda, ha aumentado considerablemente. Un factor externo que se discutió fue la Ley 1493 de 2011 también conocida como la Ley del espectáculo público. Esta ley disminuyó la cantidad de trámites necesarios para poder hacer un espectáculo público y bajaron ciertos impuestos para los ejecutores del evento gracias a esto. Sin embargo esta ley no contempla lo que se debe pagar de recaudo por derechos de autor a Sayco-Asimpro13 ni el impuesto de Hacienda. En total los promotores del concierto pagan entre el 25% y el 35% del total del show, dependiendo del formato del show, la envergadura, los costos de las boletas y otros cuantos factores. De acuerdo a Siegenthaler esta ley representó una pequeña ayuda, y es válido si se compara a cómo estaba Colombia hace 10 años, sin embargo él piensa que no se debe comparar a cómo estaba el país hace 10 años sino comparar Bogotá y Colombia con los gobiernos líderes en promoción de la cultura y en beneficios tributarios para este sector. De hecho Siegenthaler mencionó que si fuera por los promotores, ellos bajarían a estándares de primer mundo la carga de impuestos a la cultura, ya que, según él, Colombia se Entrevista directa 10/11/2015 IBÍD. 13 Organización (avalada por la Dirección Nacional de Derechos de Autor) encargada de realizar el recaudo de las remuneraciones provenientes de la comunicación y almacenamiento digital de obras musicales, entre otros formatos. El dinero recaudado se entrega a entidades tenedoras de los derechos de autor y conexos quienes deben distribuir estas regalías entre los artistas, intérpretes, productores y creadores. Tomado de http://www.osa.org.co 11

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ha ceñido por la carga de impuestos a la región, que, tanto en Latinoamérica como en España, son altos en comparación a países como Alemania, Francia, Suiza, Austria, Inglaterra, los países escandinavos, e incluso Estados Unidos. Él dice que en estos países hay un mayor entendimiento del público y del Estado de apoyar la cultura y el esparcimiento. Un factor adicional es el de cómo las economías creativas benefician a distintos sectores de comercio y por lo tanto de la economía. Según Siegenthaler, gracias al FEP, uno de los sectores que más se beneficia es el del turismo, tanto nacional como internacional. El festival debe recibir apropiadamente a los artistas y es por esto que gestiona hoteles, tiquetes aéreos y demás; el festival debe alimentar a los artistas y a los empleados (temporales y permanentes), se puede necesitar dar abasto hasta para 300 personas entre artistas y empleados, lo que representa un gasto considerable en alimentación y en transporte. El turismo internacional también se beneficia porque vienen personas de fuera del país y de la ciudad, lo que alimenta la circulación turística en Bogotá con todo lo que esto conlleva. Esto es un beneficio para Bogotá, que no es reconocida internacionalmente por sus atractivos culturales (monumentos o parques naturales) como sí lo es Cartagena, por ejemplo, sino por las experiencias que ofrece. En cuanto a patrocinadores, estos también se benefician, tal vez de una forma más indirecta. De acuerdo a Siegenthaler los patrocinadores se benefician del FEP como lo harían de cualquier otra plataforma de promoción, en tanto se espera generar un retorno de inversión. El festival como tal no mide el impacto de cada marca o el retorno de inversión como tal; esto lo hace cada marca y es información clasificada. Por ejemplo con Tigo se hizo el ejercicio de que a todo el plantel del FEP recibió una tarjeta SIM de esta empresa, y al final del evento los que quisieran podían quedarse con ese operador. Otra forma de beneficio para los patrocinadores es la activación de boletas en locaciones de ventas como Adidas. Entonces si el FEP va a una tienda de Adidas y regala boletas, las ventas que se registran en esa tienda aumentan en relación a otros días. En pocas palabras, el comercio también se beneficia al patrocinar este tipo de eventos. A pesar de que los impactos de cada marca no se miden desde el FEP, se asume que las marcas están satisfechas en tanto vuelven a patrocinar el evento. Hablando de medición, los indicadores que se utilizan para medir el impacto y éxito del evento son relevantes, Siegenthaler compartió los que se utilizan para medir el FEP: el primero se trata de la venta de boletería, que no es lo mismo que la cantidad de asistentes ya que con los patrocinios se acuerdan boletas para que ellos dispongan de ellas. Además, la venta de boletas no se puede analizar aisladamente del gasto del presupuesto invertido en el festival. Es así que se mide el éxito en términos de asistentes, dependiendo de cuánto se gastó en relación a cuántas personas pagaron boleta. Por ejemplo, no es lo mismo que un festival cueste 100 pesos y vayan 10 personas, a que cueste 200 y vayan 9, en el último caso el indicador es mucho más bajo. Si cuesta más y va menos gente el indicador va a ser mucho más bajo. Se dice que hasta el FEP

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2015 fue que se logró un punto de equilibro respecto a este indicador (la cantidad invertida fue proporcional a la cantidad de compradores de boletas). Otro indicador es el de cantidad de patrocinios. Es así que para el FEP la empresa organizadora monitorea a los patrocinadores pasados y los que podrían llegar a serlo. Se monitorea en términos de crecimiento y presencia a nivel de mercado, qué tan activos están según también estén dispuestos a dar patrocinios y recursos. Esta medición es bastante importante (pues es la modalidad de financiación del festival) y se hace constantemente, ya que se desea analizar cómo están los patrocinadores y qué experiencias desean proveer al público en el festival, qué tan creativos les permite ser su presupuesto, y si se pueden inventar más cosas o hay que racionalizar ciertos gastos y demás. Se preguntó sobre si existía un indicador en cuanto a curaduría musical o booking y se encontró que es en realidad algo intuitivo de los bookers, ya que la cantidad y variedad de bandas depende del presupuesto que exista. Del mismo modo, no se afirma que un artista es bueno o exitoso dependiendo de la cantidad de boletas que se vendan, ya que a veces se ha invertido lo mismo en dos artistas diferentes, y resulta uno vendiendo más boletas que el otro. Esto no le quita legitimidad al artista que vendió menos boletas. En el FEP, como ya se dijo, la cantidad de boletas vendidas puede estar relacionada a la variedad de bandas. Lo mismo sucede con las bandas nacionales. No hay un indicador o un factor específico que diga el radio o cantidad de bandas locales que debe haber por bandas internacionales. Lo cierto es que el FEP se ha instaurado como una importante plataforma de lanzamiento para bandas nacionales (como Bomba Estéreo y Monsieur Periné), ya que si una banda aparece en el cartel despierta la curiosidad de los asistentes al evento y promueve el consumo de estas bandas. En cuanto a derechos de autor, es de anotar que el FEP es una marca registrada, y asimismo el merchandising que se vende en el evento aporta ganancias a los organizadores del evento. Otro tipo de derechos de autor por el que deben pagar son los que se pagan a SaycoAsimpro dependiendo de la cantidad de asistentes, entre otras circunstancias. Otro factor a tener en cuenta es la oferta de valor que les otorga el FEP a los distintos actores que interactúan dentro de éste. El actor más importante es el público, pues es para quien se hace el evento, a éste se le otorgan tres días de libertad (la duración del festival), de olvidarse de lo cotidiano y de lo que se vive en Bogotá o de la ciudad en la que estén. Entonces desde el FEP, Absent Papa/t310 sienten que le aportan un granito de arena al esparcimiento y al olvidarse y sentirse simplemente libres. En general también aportan al abrir la mente del público en cuanto a gustos musicales, en estos festivales se descubren bandas que no se llegarían a consumir por vía orgánica14. Es decir que no se buscarían por internet ya que muchas no aparecen en los listados musicales ni suenan en emisoras de radio. 14

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A los patrocinadores se les aporta visibilidad y validación ante su público objetivo. Este tipo de eventos ayudan a que marcas se posicionen pues permite un acercamiento directo a los jóvenes, es decir, las marcas se validan ante un púbico y una comunidad. El FEP respalda de manera fuerte a esas marcas que quieren entrar, se quieren establecer, o quieren presentar un nuevo producto; al hacerlo por medio del FEP lo están haciendo a través de una marca sólida y bastante querida por una comunidad. Es así que el FEP se ha vuelto en una comunidad, donde el sentido de pertenencia es tal que las personas reclaman sobre qué artistas se han debido traer y cuáles se deben traer en el futuro. Las personas que trabajan en el FEP, ya sea habitual u ocasionalmente, aprenden que en Colombia se pueden hacer eventos culturalmente a un primer nivel internacional. Que si bien hay tradiciones y características latinas y colombianas, la gente hoy en día sale impresionada del FEP del nivel de trabajo y profesionalismo de muchísima gente que trabaja allá. Entonces, al convertirse en un referente internacional, es como tener una carta de validación, un referente profesional relevante, dado el grado de credibilidad que tiene el festival, nacional e internacionalmente. A los artistas se pretende aportarles una buena experiencia del país. Además de conocer a un público local bastante entregado y bastante caluroso, y que ha comprobado que tiende a crear fanatismo y tiende a seguir consumiendo las bandas que ve en vivo. Es así que a través del FEP se han visto crecer bandas que antes venían a Bogotá a presentarse solas, y después de presentarse en el FEP agotan entradas (como Foals ó Vetusta Morla). Esta no es una regla general, pero sí hay un aporte y un empuje grande a la fanaticada de esas bandas. Otro factor de éxito es el venue o locación del FEP. Desde el 2013 se ha realizado en el Parque 222 que solía ser un lote para canchas de fútbol. Según Siegenthaler, la locación sería difícil de mejorar ya que está central, al lado de la vía más grande de Bogotá, alejado de zonas residenciales, y además ellos han hecho que la locación se adapte a sus necesidades. Cuando empezaron no había facilidades para hacer conciertos, ni la infraestructura, y con todas las complicaciones del mundo. Se ha ido acoplando esa infraestructura existente a las necesidades y obligaciones del FEP para con la gente, los proveedores, los artistas y demás. Finalmente, como aspectos a mejorar Siegenthaler no considera que la distribución de boletería sea uno que deba hacerlo, ya que, como la locación, se ha ido adaptando a las necesidades del FEP y provee una plataforma de acceso internacional, el know-how que ha adquirido con este tipo de festivales lo sitúa como el mejor proveedor de este servicio. Esto es relevante ya que según él, la demanda cada vez es más grande y cada vez es más rápida, y los clientes nuestros quieren comprar cada vez con mayor antelación y con unos beneficios, por lo menos de velocidad, cada vez mayores. Es así que TuBoleta, y en general como es común de las economías creativas, afirma la teoría que el distribuidor (quien por lo general no tiene como

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actividad primaria una economía creativa) es el que más dinero gana por ser el final de la cadena de valor que es el de distribución. En cuanto a impuestos, se dejó claro que todavía se puede llegar a ser como ciudades donde los gobiernos apoyan tributariamente más a espectáculos públicos. En cuanto a mejoras internas, para los organizadores del FEP es supremamente importante el tema de vender una experiencia, más allá de un concierto, y en este sentido Siegenthaler afirma que el secreto de los organizadores es que creen que debe ser una experiencia más allá de lo que alguien puede ver en un escenario; tiene que ser una experiencia global 360° de lo que la gente básicamente vive desde que llega a una locación a vivir un concierto. Todo esto se refleja en la atención al detalle que con el paso de los años han ido, primero, entendiendo y descubriendo, y después solucionando. También se afirma que a pesar de que siempre habrá algo por mejorar, en el 2015 por primera vez respiraron un poco más tranquilos en tener muy bien concebido el tema de experiencia. Es así que se ve cómo el FEP se inscribe en las dimensiones de la cultura en cuanto a formación (que ofrecen a las personas que trabajan con ellos), circulación y apropiación del evento, ya que el público exige como si fuera un accionista más del evento, y durante el evento se ve que los asistentes cuidan las instalaciones y muchos se cuidan entre ellos. Es decir que existe una comunidad sólida, al punto de que compran la boleta sin saber qué artistas se van a presentar. Del mismo modo el FEP representa la definición de economía creativa que propone el Proyecto de Economías Creativas de Brasil, donde se dice que …los sectores creativos son todos aquellos cuyas actividades productivas tengan como proceso principal un acto creativo generador de valor simbólico, elemento central de la formación del precio y que resulta en producción de riqueza cultural y económica. (MINISTERIO DE CULTURA DE BRASIL, 2014, p. 32) El valor simbólico se ve desde el amor y dedicación que transmiten los socios al FEP y cómo esto se traduce hasta en el más mínimo detalle, logrando que sea una experiencia única en Colombia asistir a este evento. Y finalmente, como plataforma de intercambio entre artistas nacionales e internacionales se traduce en el éxito que está teniendo la música colombiana en el exterior, por ejemplo con los últimos triunfos de los Grammy 2015 de bandas como Monsieur Periné y Bomba Estéreo, los últimos se presentaron con el rapero Will Smith en este evento. Es así que se evidencia que Colombia ha mejorado respecto a su propio pasado en cuanto al sector musical, aunque todavía hay campo para mejorar y estar a la par de referentes internacionales.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONTRERAS, Liliana. Conciertos de Paul McCartney, Madonna y Katy Perry han dejado $52 mil millones a Colombia. El Espectador, Bogotá, 18 de noviembre de 2015. Disponible en: Acceso: 20 de noviembre de 2015. DUQUE, Remy y Álvaro Granados. Music Festival Management in Colombia – Festival Estéreo Picnic (tesis de pregrado). Bogotá: Universidad de los Andes, 2013. MINISTERIO DE CULTURA DE BRASIL. Proyecto de Economías Creativas de Brasil: políticas, directivas y acciones, 2011-2014. Brasilia: Ministerio de Cultura, 2011. PORTAFOLIO. La economía naranja en Colombia. Bogotá, 22 de octubre de 2015. Disponible en: Acceso: 6 de noviembre de 2015. PREECE, Stephen. “The Performing Arts Value Chain”. International Journal of Arts Management 8.1: p. 21–32, 2005. Extraído de REVISTA DINERO. CCB abre camino a las industrias creativas. Bogotá, 17 de diciembre de 2013. Disponible en: Acceso: 23 de noviembre de 2015. RUBBINI, M. Ellos son los 6 mosqueteros detrás del Festival Estéreo Picnic. Revista Shock. Bogotá, 28 de enero de 2015. Disponible en: Acceso: 16 de junio de 2015. UNIVERSIA. Preguntas frecuentes sobre la Ley 1493 del 26 de diciembre de 2011. Bogotá, 9 de enero de 2012. Disponible en: Acceso: 23 de noviembre de 2015. ROCK AL PARQUE. Línea de tiempo. Bogotá, 2015. Disponible en: Acceso: 10 de noviembre de 2015. W RADIO. Cámara de Comercio de Bogotá y su propuesta para apoyar industrias creativas y culturales. Bogotá, 11 de septiembre de 2015. Disponible en: Acceso: 13 de noviembre de 2015.

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BRASÍLIA POR PESSOAS: ENVOLVENDO A POPULAÇÃO NAS POLÍTICAS CULTURAIS DA CIDADE Daniela Pereira Barbosa1 RESUMO: O presente trabalho trata de um experimento envolvendo cidade, cultura e internet; com a finalidade de envolver a sociedade em uma pesquisa acadêmica específica para auxílio na conclusão de uma dissertação de mestrado. A dissertação foi concluída e o experimento, intitulado “Brasília por Pessoas”, ficou em segundo plano, mas não foi esquecido. Como um projeto que envolve políticas culturais, com um viés social, apresentamos suas bases formais, metodologia e resultados esperados, a fim de que possa ser replicado e desenvolvido em outros níveis. A principal contribuição é o envolvimento do cidadão nos processos de concretização do projeto, o que o torna um experimento social colaborativo, envolvendo os cidadãos em propostas de políticas urbanas que envolvem cultura e sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Cidade, Brasília, Fotografia.

1. INTRODUÇÃO A região do Distrito Federal (DF) apresenta um grande abismo social, agravado ainda por questões espaciais. O DF é a única unidade da Federação Brasileira dividida em Regiões Administrativas (RA) e não em cidades como o restante do Brasil. A organização do território do DF, no entanto, deixa bastante claro que a divisão das RA se dá por classes sociais, onde a população com menor poder econômico se encontra bastante afastada do centro, este sendo local de concentração do maior número de empregos do DF. A partir daí, é possível perceber que a maior parte da população do DF guarda intensa relação com Brasília, que é centro do poder e local de grande concentração de interações relativas dentro do DF, sejam de nível social, cultural e econômica. É justamente na rodoviária do Plano Piloto, local central de Brasília, que toda a população do DF potencialmente se encontra, por ser local de chegada e partida para todo o DF. Tratando-se de política cultural, segundo Alexandre Barbalho, Uma política cultural é um conjunto mais ou menos coerente de princípios (conceitos e diretrizes), objetivos (onde se quer chegar), estratégias (como alcançar os objetivos projetados), meios necessários e as ações a serem realizadas (os programas e projetos concretos). Importante frisar 1

Mestre em Design, Tecnologia e Sociedade pela UnB – Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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que deve haver uma lógica entre as partes do conjunto – é esta lógica que dá sentido a uma política cultural. (p. 8). Nesse sentido, política e cultura devem trabalhar em conjunto para que o cidadão seja beneficiado. Ancorados em nossos estudos e convicções, que tratam a sociedade como um sistema complexo em que os próprios habitantes devem fazer parte do planejamento, ações e resultados das políticas públicas, lançamos neste trabalho uma proposta de política cultural que abranja e envolva o cidadão desde o seu início até o produto final. Nossa proposta neste artigo é a intervenção cultural, por meio do auxílio da internet, culminando em uma exposição de fotografias envolvendo a população do DF. A proposta envolve práticas colaborativas, onde a população, por meio de incentivos, participaria ativamente no processo de produção e execução desta intervenção. O resultado seria a exposição virtual das fotografias, organizadas de modo a contemplar os fotógrafos amadores (que seriam a própria população do DF), e pensando-se em longo prazo, a elaboração ainda de uma exposição física das imagens. A contribuição popular se daria por meio do compartilhamento de imagens com hashtags específicas, que possibilitariam a busca e seleção das melhores fotografias. O cidadão, estimulado a participar de um movimento cultural na cidade, seria motivado a tirar fotografias a partir de seu smartphone e divulga-las na rede social instagram, para depois fazer parte da exposição que valorizaria a participação popular. Nossa metodologia fez parte de uma das etapas para a dissertação da idealizadora deste projeto, que pesquisava a relação entre habitante e cidade e sua ocupação também por meio da internet. O projeto “Brasília por Pessoas” foi, então, um dos frutos desta pesquisa específica. Como fazia parte de uma das etapas do processo de reflexão, o projeto não foi levado adiante, mas percebemos ser de grande relevância cultural e social para o Distrito Federal, podendo ainda ser replicado em outras cidades do Brasil a fim de trabalhar na democratização dos centros por meio de cultura e arte, tendo o cidadão como ator ativo no processo. O habitante, desta maneira, faria parte de uma rede colaborativa de participação em um dos processos de consolidação da proposta, o que lhe daria identidade social e responsabilidade política e cultural. 2. CONTEXTUALIZAÇÃO No coração de Brasília está a Rodoviária do Plano Piloto, local de chegadas e partidas de ônibus, além da linha central do metrô. A rodoviária do Plano Piloto, a princípio, serve para que sejam interligadas todas as cidades do DF com o centro, possibilitando o deslocamento dos habitantes a seus locais de trabalho ou estudo; além de chegada em diversas localidades do centro. Desta maneira, podemos perceber este espaço, a rodoviária, como sendo de uso e apropriação popular e ainda localizado no centro de Brasília, sendo lugar de grande concentração de populações de todo o DF independente da classe social.

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Consideramos, porém, que muito mais do que a chegada e partida dos ônibus e metrô, a rodoviária é uma verdadeira representação da imagem da população da cidade, imagem esta que é construída por todo o Distrito Federal, com suas diversas classes sociais. O próprio Lúcio Costa2, em 1987, se dizia surpreendido com a realidade na Rodoviária do Plano Piloto “à noitinha”. O urbanista, em seu projeto, havia pensado para aquele espaço um “local requintado, meio cosmopolita”, nas palavras dele. Porém, segundo Costa, quem se apropriou de fato daquele lugar foram os brasileiros, os trabalhadores do DF, aqueles que “construíram a cidade e estão ali legitimamente”. No final do depoimento, Costa fica satisfeito ao admitir que aquelas pessoas estavam certas em se apropriar do local, e ele, que havia pensado em um lugar requintado, estava errado. A citação a seguir é uma cópia do depoimento de Lúcio Costa extraído da publicação Registro de uma Vivência, p. 311. “Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a rodoviária, à noitinha. Eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélites improvisadas da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa população que mora fora entra em contacto com a cidade. Então eu senti esse movimento, essa vida intensa de verdadeiros brasilienses, essa massa que vive fora e converge para a rodoviária. Ali é a casa deles, é o lugar onde eles se sentem à vontade. Eles protelam, até, a volta para a cidade-satélite e ficam ali, bebericando. Eu fiquei surpreendido com a boa disposição daquelas caras saudáveis. E o ‘centro de compras’, então, fica funcionando até meia noite... Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Só o Brasil... E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma bastilha. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser. Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais. Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído.”. (30/III/87) Mesmo quase 30 anos após este depoimento, podemos constatar que a realidade da Rodoviária do Plano Piloto, em termos de apropriação popular, permanece a mesma. Os preços praticados no local fazem referência a um ambiente popular, com a presença de lojas, camelôs e vendedores ambulantes. Justamente por esta dinâmica observada na rodoviária, com grande Lucio Costa foi um grande urbanista brasileiro; pioneiro da arquitetura modernista no Brasil. Ficou conhecido mundialmente pelo projeto do Plano Piloto de Brasília.

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fluxo de pessoas vindas de diversas cidades do DF, sua paisagem urbana é também local de trocas e interações culturais, por colocar no mesmo local pessoas de classes sociais diversas. Mesmo quem não utiliza o transporte público, por vezes transita ou passa pela rodoviária para resolução de problemas diversos, ou para oferecer carona. Além disso, mesmo aquele cidadão que, em seu carro, passa ao lado da Rodoviária, tem uma visão privilegiada do que ocorre naquele lugar, que escancara realidades sociais presentes no DF. Esta realidade tão à mostra pode causar desde admiração até repúdio ou desconforto, porém, o que importa é que está presente no Centro da Capital, ostentando as distintas realidades do DF. Estas realidades distintas é justamente o que enriquece a cultura do lugar. A rodoviária, por sua localização central, é local de fácil acesso por transporte público, o que possibilita encontros diversos. A partir de lá, o cidadão que habita no Plano Piloto ou em outras cidades do DF segue para seu destino final, mas sempre há encontros entre os usuários e interações com o local: cheiro de comida sendo preparada; pessoas apressadas que passam correndo para não perder o ônibus ou metrô; música ambiente; lojas com produtos diversos; pessoas em filas lado a lado indo para locais opostos da cidade, mas por estarem lado a lado, veem-se em um mesmo local, o que provavelmente não seria possível em outro ambiente. Essa vida no ambiente da rodoviária, por colocar todos em sintonia, é local de início, de partida e de chegada. É justamente lá onde Brasília encontra o seu povo. Figura 1: Rodoviária do Plano Piloto de Brasília

Foto: Daniela Barbosa

Como reflexões e avaliações acerca do potencial desta proposta, e considerando a tecnologia envolvida como um importante passo para a concretização do projeto, avaliamos ser importante sugerir que nossa ideia privilegiasse a inserção das pessoas na era digital, ou seja,

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percebemos que a educação para a cultura digital seja uma importante reflexão em nossa pesquisa por demonstrar ao cidadão a possibilidade de fazer parte de uma política de desenvolvimento cultural, em que o próprio cidadão comum é o protagonista. Consideramos que o espaço da Rodoviária do Plano Piloto de Brasília tem a capacidade de abrigar manifestações culturais, seja a partir da rede conectada, seja no próprio espaço Físico. Essas manifestações culturais, como proposta de aproximar cidadão e cidade, devem abranger a realidade dos habitantes de todo DF. Considerando que grande parte da população que frequenta a rodoviária do Plano Piloto tem acesso à internet por meio de smartphones, e contamos ainda com a potencialidade do “Conecta DF”, rede gratuita e aberta com cobertura digital na rodoviária. Assim, a proposta de envolver a sociedade em uma manifestação cultural digital é possível, e estimularia a interação e a valorização do habitante das cidades do DF dentro de Brasília, como formadores da cultura da cidade. Esta interatividade é capaz de materializar a cultura urbana, que já é observada na rodoviária, sendo justamente o retrato cultural do DF se fazendo presente em Brasília. Assim, ao invés da tentativa de mascarar uma realidade, restringindo-a a rodoviária, esta exposição cultural visa justamente mostrar a “cara de Brasília”, sem ideias e pré-conceitos estabelecidos do que é o brasiliense. Desta maneira, o habitante das cidades do DF para além do Plano Piloto, que não encontram na Capital a sua representação, ou a sua valorização enquanto cidadão, poderia perceber nesta exposição aspectos de sua cultura, sua cidade e seus anseios, o que promoveria a identificação maior do cidadão com Brasília. Mesmo se tal exposição não pudesse ter lugar no Espaço Físico da cidade, ela poderia ser divulgada no ambiente virtual, analogicamente ao que ocorreu na cidade de Palmas, como explicam André Lemos; Eugênia Rigitano e Leonardo Costa (2007), na publicação Cidade Digital. Os autores dedicam um dos capítulos para tratar da inclusão digital no Brasil, e um dos projetos destacados é o “Cidade do Conhecimento3”, em Palmas (TO). Parafraseando os autores, trata-se de um ambiente virtual para a educação à distância, promovendo assim a inclusão digital e gestão do conhecimento. Estas atitudes buscam inserir os cidadãos na Sociedade da Informação. É valioso o viés cultural que o projeto propõe, pois os Netcidadãos, como são chamados os participantes, constroem o portal a partir de relatos da sua história, inclusive com a criação de álbuns de fotografias. O projeto, além dessa possibilidade de construção interativa, ainda oferece informações gerais sobre a cidade, mas o principal é focar no relato dos cidadãos neste ambiente digital. Os usuários ajudam a construir o portal por meio também de arte e cultura, tendo neste espaço eventos virtuais como, por exemplo, a exposição fotográfica ‘Palmas’, em que o usuário pode De acordo com a publicação Cidade Digital, de 2007, o projeto era chamado “Cidade do Conhecimento”, mas ele mudou de nome, e hoje o projeto é chamado “Palmas Virtual”.

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navegar em um museu virtual de fotos sobre a cidade. Os autores ainda destacam que, para que o cidadão tenha acesso ao programa Cidade do Conhecimento, são oferecidos pontos públicos de acesso fixo e uma unidade móvel, com a presença de monitores para ajudarem a navegação. Percebemos, a título de reflexão acerca das potencialidades que avaliamos neste artigo, como um projeto nesses moldes seria importante culturalmente para Brasília, pois traria a realidade das demais cidades do DF de maneira visível para os habitantes de todo o Distrito Federal, mesmo entre cidades distantes que não têm muito contato entre si. Tal proposta seria capaz de unir os habitantes de todo o Distrito Federal por meio da tecnologia, já que podemos concluir que muitos habitantes do Plano Piloto conhecem pouco ou quase nada das demais cidades do DF. A ideia é confrontar realidades distintas de maneira dinâmica e interativa onde, por meio do contato com o outro e do reconhecimento de Brasília como lugar de todos, a democracia de acesso e uso do espaço do Plano Piloto possa ser mais bem compreendida por todos os habitantes do DF. Ademais, a internet como meio de divulgação, informação e disseminação de uma proposta nesse sentido é capaz de se valer como um aliado à democratização dos espaços de Brasília. 3. METODOLOGIA Em nosso processo de pesquisa, desenvolvemos uma proposta considerando as possibilidades de disseminação de ideias no ambiente digital, envolvendo a população do DF a partir da publicação de fotos de Brasília, com a possibilidade de captura e análise dessas imagens por nós. Propusemos a partir das redes sociais facebook e instagram, o projeto “Brasília por Pessoas4”. Na página da rede social facebook estão disponíveis todas as imagens coletadas, além dos devidos créditos aos fotógrafos que colaboraram para o projeto. A fim de envolver a população do Distrito Federal na pesquisa, e para conhecer como o cidadão revela a cidade para a rede conectada, propusemos o desafio a partir da rede social facebook em que os usuários utilizariam a hashtag “#brasiliaporpessoas” em suas fotografias tiradas na cidade de Brasília e divulgadas na rede social instagram. Periodicamente, essas imagens foram capturadas por nós e divulgadas na rede social facebook, na página do projeto. Para estimular a produção, foi explicado que se tratava de uma pesquisa com finalidade acadêmica, e que a interação com a comunidade seria de extrema importância. O projeto, aos poucos, se popularizou, e cada vez mais pessoas começaram a acrescentar a hashtag proposta em suas fotografias de Brasília. Em 11 de dezembro de 2015 tínhamos um total de 358 marcações (hashtag) no instagram. Escolhemos a rede social instagram por ela permitir mapeamento e sistema de buscas de imagens por hashtags, que funciona para fins de busca de imagens marcadas pelos usuários naquela rede social. O facebook funcionou como uma espécie de repositório, uma biblioteca do 4

Disponível em https://www.facebook.com/bsbporpessoas?fref=ts. Acesso em 8-6-2015. 626

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que estava sendo coletado. O resultado nos revela a visão de Brasília que os usuários desejam mostrar: uma cidade bela, destacando sempre suas qualidades arquitetônicas e naturais, além de fotografias de festas, encontros e passeios na cidade. 4. RESULTADOS ALCANÇADOS Devemos considerar que o alcance do projeto não se deu de modo a promover uma real discussão acerca da realidade em todo DF, e nem contemplou todas as classes sociais existentes, já que as imagens divulgadas representam apenas a realidade daquelas pessoas que tiveram acesso ao desafio. Nas figuras a seguir (2, 3 e 4), temos exemplos das imagens do projeto Brasília por Pessoas. Figura 2: Compilação n. 1 de imagens do projeto “Brasília por Pessoas”.

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Figura 3: Compilação n. 2 de imagens do projeto “Brasília por Pessoas”.

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Figura 4: Compilação n. 3 de imagens do projeto “Brasília por Pessoas”.

Vale lembrar que o desafio não era a finalidade da dissertação em que o projeto teve início, mas apenas uma etapa que envolvesse a sociedade no projeto. Dessa maneira, a repercussão do projeto “Brasília por Pessoas”, apesar de ter tido um alcance notável, com diversas contribuições e participação da sociedade, não teve um alcance capaz de abranger o Distrito Federal em sua totalidade, e nem representa a realidade de todo o DF nas imagens. Devemos lembrar que as

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diretrizes do projeto para a coleta de imagens eram bastante abrangentes, não sendo obrigatória a tomada de imagens críticas, mas sim apenas o fornecimento, por meio de hashtags, de fotos de Brasília tiradas pelos cidadãos. A experiência nos valeu principalmente pela constatação da garantia de disseminação de conteúdo pela rede conectada para um projeto cultural como este, e da possibilidade, por meio do Ambiente Digital, de democratizar espaços da cidade a partir de intervenções culturais críticas, que promoveriam valorização do cidadão que habita lugares afastados do centro. Para fins de continuidade do Projeto, poderíamos propor, considerando que a finalidade seria uma exposição com imagens da realidade do Distrito Federal, a divulgação maior desse projeto ou de algum análogo, com apoio governamental e social, tendo como princípio maior a valorização do cidadão. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A divulgação do projeto se deu principalmente pela rede social facebook, e a coleta de imagens foi apenas a partir da rede social instagram. Nossa ideia considerou o alcance que seria naturalmente promovido por meio da internet, e o interesse e divulgação que se daria a partir dos usuários. As pessoas que contribuíram com o projeto eram aquelas interessadas em colaborar com uma pesquisa acadêmica, mas que não consideravam necessariamente o viés social ou cultural que o Brasília por Pessoas poderia representar. As contribuições foram espontâneas e livres, sendo a vivência do cidadão na cidade e suas impressões de extrema importância para que nós pudéssemos entender o papel da internet em nossas pesquisas. Consideramos que o projeto é ainda inacabado e que poderia ainda ser explorado além do que foi concebido por nós. A troca de experiências da pesquisa com o cidadão conectado a partir do Brasília por Pessoas foi enriquecedora, já que a própria internet foi um meio capaz de divulgação, comunicação e divulgação do andamento do projeto. Foi bastante válido acompanhar a publicação de pessoas desconhecidas, que marcavam suas publicações com o intuito de colaborar com o projeto. A internet, dessa maneira, é um meio indiscutível de interação, divulgação e propagação de conteúdo, sendo capaz de auxiliar a promover projetos culturais. Um estudo das relações do cidadão com a rodoviária do plano piloto nos fez entender como aquele espaço representa a “cara de Brasília”, mas que parece estar restrito à rodoviária. Com o Brasília por Pessoas, as “caras de Brasília” poderiam fazer parte de uma vivência maior, tendo possibilidade de expansão em todo o território do DF, mas principalmente levando as pessoas que moram em RA’s afastadas e que têm contato com Brasília a realmente se encontrarem na cidade, buscando e construindo em Brasília sua própria identidade para além da rodoviária. O habitante que se sente bem-vindo no espaço de Brasília apenas como força de trabalho poderia ter sua marca, através do Brasília por Pessoas, definida como parte integrante e importante na Capi-

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tal Federal. Tal situação, além da valorização do cidadão, ainda pode ser capaz de promover uma política cultural de real envolvimento com a sociedade, que auxiliaria na construção do projeto. Ademais, esperamos que o projeto sirva de inspiração para que as cidades sejam incitadas a valorizar sua força cultural, expondo as fotografias dos habitantes e ajudando no estabelecimento de uma nova cultura urbana, onde os habitantes sejam capazes de estabelecer uma relação com os espaços das cidades que vai além da relação de força de trabalho. Para que tal valorização se estabeleça, e pensando no projeto Brasília por Pessoas como parte integrante do processo, ocorre-nos a importância de uma estrutura física que exponha as fotografias, dando os devidos créditos aos fotógrafos. É importante que tal exposição, se ocorresse, não ficasse restrita apenas à rodoviária, por exemplo, mas que fosse expandida a locais de valorização e incentivo à cultura, como museus; além de locais de grande concentração de pessoas, como Centros Comerciais, praças e parques. Desta maneira haveria uma real valorização do habitante que, por exemplo, trabalha na limpeza do Centro Comercial, mas que certamente não é público alvo das lojas de lá por apresentam um preço elevado. Com uma exposição que envolva a sua participação naquele espaço, este cidadão teria uma maior consciência política de que aquele também é seu espaço, e que a cidade deve, cada vez mais, se democratizar. As consequências indiretas seriam a politização e conscientização dos habitantes da cidade, que, por se valorizarem enquanto cidadãos, também acabam por se integrarem à vida política, cultural e social da cidade, impondo seus valores e garantindo processos de democratização. A presença da identidade popular em locais economicamente valorizados da cidade, nesse sentido, favorece a ocupação e a representação do povo além da rodoviária, mas na própria imagem da cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______ Brasília 50 + 50 : cidade e projeto / Luciana Sabóia e Maria Fernanda Derntl, org. – Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2014. _______ Brasília, ideologia e realidade : espaço urbano em questão / Aldo Paviani (org). – Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 2010. ______. Cidades Digitais : portais, inclusão e redes no Brasil / André Lemos, organizador. – Salvador : EDUFBA 2007. BARBALHO, Alexandre. Política Cultural. Coleção política e gestão culturais. Secretaria de cultura do Governo da Bahia. Salvador, 2013. BILÁ, Gabriela. O novo guia de Brasília = The new guide to Brasília / Gabriela Bilá ; tradução: FriendlyCheesecake. – Brasília : Ed. do Autor, 2014.

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NOTAS SOBRE O FINANCIAMENTO À MÚSICA ATRAVÉS DA LEI ROUANET: UMA POLÍTICA DA OFERTA Daniela Ribas Ghezzi1 RESUMO: Este trabalho é um excerto de um artigo mais amplo sobre o público dos espetáculos de música ao vivo no Brasil a partir de dados do Sistema de Indicadores de Percepção Social – SIPS 2015, pesquisa nacional realizada pelo IPEA. No presente texto, de escopo mais restrito, exploro principalmente o aporte de recursos oriundos da renúncia fiscal à área da música. Comento o “estado da arte” das políticas para o setor musical, em que a Lei Rouanet (principal instrumento de renúncia fiscal para a área da cultura) torna-se imprescindível enquanto mecanismo de fomento à música. Isso perfaz uma política centrada na oferta, ainda que haja ações pontuais de estímulo à demanda. PALAVRAS-CHAVE: Renúncia fiscal, Lei Rouanet, Políticas públicas para a música, Mercado musical.

1. CONSUMO MUSICAL NA ATUALIDADE O consumo de música tem sofrido transformações importantes em função principalmente das mudanças tecnológicas. Elas têm reconfigurado os hábitos de consumo de música, alterando a relação entre consumo doméstico, em dispositivos móveis, e ao vivo. O cenário ainda é movediço e novas acomodações vêm surgindo, o que torna difícil a interpretação e o mapeamento de todos os agentes que compõem o negócio da música na atualidade2. Além disso, o contexto brasileiro é fortemente marcado pela ação do Estado no incentivo e financiamento de atividades artísticas. Nesse cenário, têm relevância o desenvolvimento dos smartfones, das redes 3G e 4G para telefonia celular, e de softwares (chamados de players) de escuta musical sob demanda via internet. Esta nova forma de acesso à música gravada é chamada de streaming, e reconfigurou Doutora em Sociologia (UNICAMP). É Pesquisadora em Ciências Sociais e Humanas III no Centro de Pesquisa e Formação do SESC São Paulo. Membro Titular do Colegiado Setorial de Música (gestão 2015-2017) do Conselho Nacional de Política Cultural – CNPC do Ministério da Cultura – MinC. E-mail: [email protected] e [email protected]. 2 O Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo promoveu em 2015 o Ciclo de Debates “Perspectivas do Novo Mercado Musical”, com o objetivo de compreender este cenário em constante redefinição. Vide: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/novo-mercado-musical. 1

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completamente a forma de se escutar música. Se numa etapa inicial o importante era ter a cópia digital do fonograma (em que o download era a prática cultural predominante3), no momento atual a tendência é de expansão do consumo via streaming (em que é necessário um player instalado em dispositivo que disponibilize as faixas/discos/artistas demandados através da internet). Vende-se não a posse do fonograma, mas a facilidade de ouvir quando e onde quiser via internet, gratuitamente4 ou sob assinatura mensal do serviço (numa forma em que as assinaturas “Premium”, em expansão, financiam a forma “Freemium”5). O comércio eletrônico obedece atualmente ao princípio da “cauda longa”6, que descreve a transformação do mercado de massa (em que um único produto tem altos índices de venda) para um mercado pulverizado (em que a venda de muitos produtos, somadas, podem gerar grandes receitas). Com a ampliada e diversificada oferta de produtos musicais, com a venda de facilidade de acesso pelos players (em que o uso do fone de ouvido durante as tarefas cotidianas pode acabar gerando heavy users e alimentando o “desejo por cultura”7), somado às campanhas de artistas independentes vendendo o show através da disponibilização do disco, o tipo de fruição ordinária é a cotidiana: doméstica, em trânsito, em espera, etc. Os players oferecem playlists de editores/curadores e de usuários para que o ouvinte não tenha que escolher o que vai ouvir, usando para isso logaritmos e cruzamentos que mapeiam os hábitos musicais mais frequentes, que por sua vez retroalimentam o sistema de informações. Este tipo de escuta ordinária pode alimentar o desejo por uma experiência de fruição extraordinária, contemplada, por exemplo, na ida a um show de música ao vivo. A pesquisa Públicos da Cultura, realizada em Agosto de 2013 pelo Sesc e Fundação Perseu Abramo, traz dados sobre uso da internet (ouvir música 11%, de um universo de 55% das pessoas que usam internet) e uso do celular (ouvir música 15%, de um universo de 87% que têm celular). Fonte: http://www.sesc.com.br/portal/site/publicosdecultura. Tais dados referem-se a práticas anteriores à tecnologia do streaming chegar ao Brasil (em 2013 com o Deezer). 4 Exceto pelo custo de acesso à internet pago às operadoras. 5 Grosso modo, a diferença entre essas duas maneiras de consumo não é no limite de acesso às faixas, playlists de editores e usuários, velocidade, ou outras restrições. Em geral, na forma “freemium” há anúncios publicitários, e na forma “premium” não. A disponibilização de faixas para escuta se dá entre gravadoras (detentoras dos fonogramas, e responsáveis pelo pagamento aos artistas), players de streaming, e agentes chamados agregadores digitais (que fazem contratos de licença entre as gravadoras e os players). O ouvinte renova sua licença de acesso às faixas a cada sincronização do dispositivo com o software, mecanismo que contabiliza quantas vezes a faixa foi reproduzida. As escutas só geram rendimentos a partir de 30 segundos, e as assinaturas “Premium” geram, por faixa, remunerações maiores do que a modalidade “Freemium”. 6 Conceito discutido e popularizado por Chris Anderson em seu livro A Cauda Longa - Do mercado de massa para o mercado de nicho, de 2006. Fator chave para o êxito nas vendas de tipo cauda longa é o custo de armazenamento: se ele for baixo, como no caso do streaming, é possível ter êxito com esse tipo de negócio em função da soma das pequenas vendas. Outro fator chave são ferramentas como motores de busca e softwares de recomendações, que permitem que os consumidores encontrem produtos fora da sua área geográfica. Vale também a leitura da entrevista de Chris Anderson à Revista Época em 2006: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75221-5856-433,00.html. 7 DONNAT (2011). 3

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Contudo, deve-se considerar que tal “democratização” do acesso pela internet parece reforçar o que se chama de “lei do acúmulo”: quem já tem hábitos frequentes de escuta musical diversificada é quem sai de casa mais vezes para ir a espetáculos, passando a ser ainda mais aficionado. Isso, por um lado, incrementa o mercado de shows, mas por outro revela a persistência, para a maior parte da população, de barreiras materiais e simbólicas no consumo de música, fruto de processos educacionais e da exposição aos códigos musicais. O espetáculo musical vem, dessa forma, ganhando importância dentre os hábitos culturais contemporâneos, especialmente em centros urbanos. Para além da sociabilidade que a música ao vivo engendra, ela proporciona uma fruição mais profunda, atenta e interessada em relação à escuta cotidiana ordinária de arquivos digitais. Por outro lado, no Brasil, artistas, produtores, educadores e outros agentes reivindicam políticas públicas específicas para cada etapa da cadeia produtiva, especialmente para a gravação e circulação de obras musicais. Redes de trabalho colaborativo vêm se organizando politicamente e consolidando festivais de importância nacional. O circuito de pequenos palcos independentes de música autoral vem se fortalecendo. Isso vem aumentando consideravelmente a oferta de shows. Dito isto, é necessário voltar a atenção para o contexto brasileiro, em que as políticas públicas ganham destaque na difusão de produtos musicais. 2. A POLÍTICA CULTURAL PARA O SEGMENTO MUSICAL: A LEI DA OFERTA Para além do mercado definido atualmente pelas gravadoras e players, no caso brasileiro outras forças operam no segmento da música, tendo relevância as políticas culturais. O principal dos instrumentos da política cultural é a renúncia fiscal (em que as empresas optam por aplicar os impostos devidos na produção cultural), também chamada de mecenato. Há legislação para o mecanismo de renúncia fiscal em níveis municipal, estadual e federal. No âmbito federal, o principal instrumento de renúncia é a Lei Federal de Incentivo à Cultura (no. 8.313 de 23 de dezembro de 1991, mais conhecida como Lei Rouanet, em homenagem ao então Secretário de Cultura8). Importante ressaltar que o mecenato através da renúncia fiscal não é exatamente uma política cultural, e sim um dos muitos instrumentos possíveis de financiamento a serem utilizados numa política cultural mais ampla. Ela foi importante quando foi criada, pois diante da ausência de um Ministério e de uma preocupação mais ampla sobre o universo artístico, qualquer mecanismo de financiamento à cultura assume relevância. Apesar disso, há um lado pernicioso em se tomar a parte pelo todo: dentre os projetos previamente aprovados pelo MinC, cabe à iniciativa privada escolher, segundo seus próprios critérios, quais deles merecerão recursos públicos através da captação autorizada pelo MinC. E isso, ao longo das décadas, acabou por gerar distorções 8

Sobre o funcionamento da Rouanet, vide: http://www.cultura.gov.br/projetos-incentivados.

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(como a concentração de recursos), uma vez que tais escolhas acontecem em função dos interesses do marketing cultural dessas empresas, e não da relevância artística das propostas ou de sua capacidade de contribuir para a superação de entraves identificáveis no mercado artístico. Uma política cultural deve ser sistêmica e permanente, procurando identificar gargalos e lacunas que devem ser alvos de programas específicos, independentemente de seu alcance mercadológico e sustentabilidade econômica. A Rouanet, criada no final de 1991, só assume maior relevância para a área cultural no final da década com a estabilização da economia, com as empresas abrindo seus respectivos capitais à bolsa de valores e declarando seu lucro real, e incorrendo no pagamento de impostos suscetíveis ao mecanismo da renúncia fiscal. Segundo estudos do IPEA (SILVA, 2007) relativos à década de 90 e aos primeiros anos no século XXI, os diversos segmentos produtivos relacionadas à música sofreram um impacto positivo com o aporte de recursos provenientes da renúncia fiscal. No estudo há considerações sobre a geração de emprego e mercado de trabalho, exportações e importações, difusão, etc. Ressalto os dados referentes à ocupação dos músicos e do segmento de espetáculos. Há uma correlação entre o aporte de recursos e o incremento dos setores de espetáculos ao vivo e de ocupações de músicos: O segmento de espetáculo ao vivo e atividade artística também cresceu no período entre 1992 e 2001 (7,9% ao ano), mas sempre com as oscilações resultantes das modalidades de financiamento e em decorrência das instabilidades econômicas. Depois da vigência das leis de mecenato, o segmento cresceu em praticamente todos os anos, com exceção de 1999, quando declinou em 5,1% relativamente ao ano anterior. (SILVA, 2007, p. 305) Nota-se a importância dos aportes das leis de incentivo, mas também sua dependência em relação à economia. Isso reforça o argumento de que uma política cultural deve ser mais ampla do que o instrumento de renúncia, para que o setor não fique à deriva das oscilações do mercado financeiro. O estudo aponta ainda uma forte correlaçpla que o instrumento de renos anos, com excessnistO estudo aponta ainda uma correlação entre mecenato e o mercado de trabalho: com as leis de incentivo, o número de ocupações como “músico” (essencial a atividades como os espetáculos) cresceu em todos os anos (com exceção de 1999, com queda de 16,9% em relação ao ano anterior), atingindo picos de crescimento em 1995 (32,3%) e 1998 (22,7%). As ocupações como “músico” nunca foram inferiores ao patamar de 1992, ano em que a Rouanet começou a ser colocada em prática. (SILVA, 2007, p. 305-306). Ainda segundo o mesmo estudo, os aportes “(...) explicam parte do comportamento do segmento musical no que se refere à geração de ocupações (...) (justificando) o financiamento público organizado, mesmo quando se destina a eventos isolados” como shows e projetos de circulação. (SILVA, 2007, p. 306). Contudo, que esta correlação positiva não exclui a necessidade de uma política cultural sistêmica.

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Com a política cultural que começou a se desenhar a partir de 2003 com a gestão do Ministro Gilberto Gil, o segmento musical passou a contar com instâncias de regulação e participação social. Em 2005 foi criada a Câmara Setorial da Música, ligada ao Centro de Música – Cemus da Fundação Nacional das Artes – Funarte9). Com a Câmara Setorial, a Funarte era a responsável pela política das Artes. A política para a música empreendida desde então passou por 3 momentos10. Na etapa atual, em que a estratégia é a de incentivar o desenvolvimento da infraestrutura do setor, ganham destaque ações de incentivo à formação e à produção de conhecimento, e de tentativa de ampliação do fomento e mapeamento das demandas11. Observa-se uma preocupação com a formação, mas as ações, centradas em Prêmios, acabam por reforçar a política centrada na oferta cultural. Com a criação do Conselho Nacional de Política Cultural – CNPC em dezembro de 2007, a Câmara Setorial (ligada à Funarte entre 2005 e 2008) foi transformada no Colegiado Setorial de Música, que foi instalado entre 2008 e 2009 com vistas à construção de políticas de âmbito nacional, passando a ser coordenado diretamente pelo MinC. Em 2010 o Colegiado elaborou o documento Plano Setorial da Música12 (complementar ao Plano Nacional de Cultura – PNC, transformado em lei no mesmo ano13). O Plano consiste num relatório das atividades da Câmara (2005-2008) e do Colegiado (2008/2009-2010), levando em conta os 10 pontos da

Em 2005 o MinC criou a Câmara Setorial da Música, que foi coordenada pelo Centro de Música - CEMUS-Funarte (à época dirigido pela ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda). Apenas 10 entidade estavam representadas e tinham direito a voto (ABEM-Editores, ABEM-Educação Musical, ABPD, ABEPEC, ABER, ABERT, ABM, ABMI, ECAD, e OMB). Essas entidades representavam principalmente os setores de gravadoras, editoras, meios de comunicação, e direitos autorais. Músicos, produtores, festivais, redes e público não tinham representação fixa com direito a voto. Em 2005 houve 7 reuniões temáticas da Câmara, e em cada uma participaram, além das associações acima, algumas entidades convidadas, sem, contudo, o direito a voto. 10 Num primeiro, foram priorizadas ações de fomento à realização e circulação de espetáculos através do Projeto Pixinguinha, e da Pauta Funarte de Música Brasileira para a ocupação das Salas. Num segundo, havia a transferência de recursos aos músicos e produtores para realização de projetos de criação, produção e circulação musical, através de programas como o Prêmio Funarte de Apoio à Gravação, Prêmio Circuito Funarte de Música Brasileira, e Seleção de Projetos de Ocupação das Salas. Fonte: ESTEVES, Eulícia. “Políticas públicas para a música”, Ciclo Perspectivas do Novo Mercado Musical. CPF Sesc São Paulo. 20Ago2015. https://centrodepesquisaeformacao. sescsp.org.br/atividade/novo-mercado-musical. 11 Principais ações atuais: Prêmio Palcos Musicais Permanentes (destinado ao circuito cultural formado por pequenas casas noturnas), Prêmio Festivais e Mostras de Música, Convênios para a realização de Feiras de Música, Feira Música Brasil, Bolsas de Aperfeiçoamento Técnico e Artístico, Prêmio de Produção Crítica em Música, e Prêmio Funarte de Música Brasileira. 12 Para o Plano Setorial da Música vide: http://pnc.culturadigital.br/wp-content/uploads/2012/10/plano-setorial-de-musica-versao-impressa.pdf 13 Para o Plano Nacinal de Cultura vide: http://www.cultura.gov.br/documents/10883/11294/METAS_PNC_final. pdf/ e http://pnc.culturadigital.br. O PNC está atualmente em processo de consulta pública de revisão, que vai até 15 de fevereiro de 2016. 9

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“Carta de Recife” elaborada pela Rede Música Brasil14 na Feira Música Brasil promovida pelo MinC em 200915. Em 2015 o MinC e a Funarte lançaram a Política Nacional das Artes – PNA16, cujo objetivo principal é a implementação de políticas públicas atualizadas, fundamentadas e duradouras para as artes, divididas por linguagens. E diretamente ligada à PNA está a reestruturação da Funarte, no sentido de tornar a instituição capaz de atender às suas atribuições. Para o processo de construção da política há um comitê executivo (com representantes do MinC e Funarte), os articuladores (que fazem a mediação entre sociedade civil e poder público) e consultores (que sistematizarão os documentos gerados no processo). Originalmente, a PNA previa quatro eixos de ação: Caravana das Artes (com rodas de conversa por todo o país para coletar sugestões); Seminários Temáticos; Encontros Setoriais e uma Plataforma Digital colaborativa. Mas uma avaliação estratégica adiou as Caravanas para o final do processo, no momento em que já houver tido um processo interno de levantamento dos trabalhos e experiências já realizadas em âmbitos público e privado17. Até o momento, o comitê executivo delimitou três projetos transversais para a PNA: Rede Nacional de Difusão das Artes (plataforma voltada à difusão e circulação das linguagens artísticas); Pacto Federativo do Fomento às Artes (diretrizes comuns entre os três níveis de poder para o fomento às artes, mas com seleções descentralizadas); e Marcos Legais das Artes (revisão da legislação tributária, fiscal, trabalhista e previdenciária para a regulamentação do setor cultural). No tocante à música, o ponto central é a criação de uma autarquia reguladora da música, aos moldes do que a Ancine representa para a área do audiovisual, já preconizada desde a Carta de Recife de 2009. Um primeiro estudo sobre sua criação foi entregue ao ministro em

“No início de 2009, foi criado o fórum virtual Pró-Conferência Nacional de Música, com o objetivo de fomentar e organizar as discussões em torno das políticas públicas para a área musical, como preparação para a Conferência Nacional de Cultura, realizada em março de 2010. Este movimento surgiu por iniciativa da sociedade civil organizada, e o Centro de Música/Funarte logo o reconheceu como um ambiente privilegiado para a articulação do setor musical. Em meados de 2009, o Fórum Pró-Conferência Nacional de Música foi então acolhido pelo recém criado programa Rede Música Brasil / Funarte, passando a se chamar Fórum Virtual Rede Música Brasil – RMB. (...) O Conselho da RMB é formado por entidades musicais com representatividade nacional (SEBRAE, ABMI, ABEART, ABRAFIN, ABEM, ABER, ABPD, ARPUB, BM&A, CUFA, FNM, FED. DAS COOPERATIVAS DE MÚSICA, CIRCUITO FORA DO EIXO, CASAS ASSOCIADAS e MPB)”. Fonte: http://culturadigital.br/redemusicabr/ 15 O 4o. Encontro da RMB foi realizado na Feira Música Brasil em Recife (PE), e gerou o documento “Carta de Recife”. Sobre a Feira, vide: http://culturadigital.br/blog/2009/12/07/feira-musica-brasil-2009/. Para ver a Carta de Recife, vide: http://www.musicaltda.com.br/2010/12/carta-de-belo-horizonte-reproducao/. O primeiro ponto da Carta de Recife é a criação da Agência Nacional da Música, aos moldes da Ancine, demanda ainda muito forte no segmento e priorizada nos debates da Política Nacional das Artes, de que falarei adiante. 16 Sobre a Política Nacional das Artes – PNA vide: http://culturadigital.br/pna/ e http://www.cultura.gov.br/politica-nacional-das-artes-pna17 Sobre a nova metodologia da PNA vide: http://culturadigital.br/pna/destaque/remodelada-metodologia-do-processo-de-construcao-da-pna/ 14

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dezembro de 201518. Mas apesar dos avanços que tal política representa, observa-se que não há uma preocupação com uma política capaz de incrementar a demanda. Os três eixos da PNA tocam em questões importantes (circulação artística, fomento a projetos, e regulação da profissão), mas continuam centrados na oferta. Paralelamente a este processo da PNA ocorreu a renovação dos Colegiados Setoriais do Conselho Nacional de Política Cultural19. O processo, aberto à sociedade civil para voto e candidaturas, deu-se em duas fases, uma através de plataforma digital20 e outra presencial. O processo teve recorde de participação (mais de 70 mil pessoas votaram em seus representantes). O Colegiado Setorial da Música, de que passei a fazer parte desde esta última eleição, já iniciou os trabalhos, e primeiro deles está sendo reunir num único documento todas as demandas do setor musical desde a Câmara Setorial da Funarte, passando por todos os mandatos do Setorial, pelos pontos constantes do Plano Setorial da Música, pelas propostas compiladas pela Rede Música Brasil, e pelas metas do Plano Nacional de Cultura. O objetivo é o de contribuir com a PNA mas também com o processo de revisão do PNC. Mas o que se nota é que a amplitude do negócio da música no Brasil extrapola os limites desses órgãos governamentais e instâncias de representação social, que acabam não dando conta das demandas do setor. Em 10 anos de discussões sobre qual seria a política adequada ao segmento da música, nota-se que apesar dos esforços governamentais em sistematizar as demandas e ampliar os mecanismos de participação social do setor, não se avançou muito em políticas e programas continuados (em modalidades diversas dos tradicionais editais e prêmios) para a área da música. Da mesma forma, os esforços para uma melhor regulação da arrecadação e distribuição de recursos gerados por direitos autorais21 ainda estão longe de atenderem às demandas do setor. Na ausência de um Fundo Setorial da Música ou de uma autarquia reguladora específica (como a Ancine no caso do setor audiovisual), o mecanismo da renúncia fiscal da Lei Rouanet,

Sobre a entrega do documento ao Ministro, vide: http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/ OiKX3xlR9iTn/content/id/1311913 19 Sobre a renovação dos Colegiados Setoriais do CNPC vide: http://www.cultura.gov.br/cnpc 20 Sobre a plataforma digital da renovação dos Colegiados, vide: e http://cultura.gov.br/votacultura/ 21 “ No Brasil, o direito autoral é regulamentado pela Lei 9.610/1998, alterada em 2013, com a aprovação da Lei nº 12.853/13. Alguns pontos dessa nova lei entraram imediatamente em vigor com a publicação, mas outros aspectos precisaram ser regulamentados pelo Decreto 8.469/2015, que regulamenta a Lei da Gestão Coletiva dos Direitos Autorais”. Para ver quais as mudanças trazidas pelo decreto sobre o funcionamento da arrecadação dos direitos autorais, vide: http://www.brasil.gov.br/cultura/2015/06/transparencia-na-arrecadacao-de-direitos-autorais. 18

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apesar das distorções que causa22, ainda cumpre um papel importante no financiamento de projetos na área da música23. Os dados abaixo, retirados do Sistema de Apoio à Lei de Incentivo – Salic24 podem dar uma ideia de como a Lei Rouanet ainda é um instrumento importante para o aporte de recursos na área da música. Em 2014, de um total de R$ 1,3 bilhão movimentado pela Rouanet para todas as 7 áreas, cerca de 300 milhões foram destinados à área da música (cerca de 23% do total), montante distribuído entre 800 projetos em média. Como há projetos que captam recursos num período maior que um ano, a soma de todos eles resultaria num número maior do que os projetos incentivados realmente. No site do MinC de onde tais dados foram retirados não há, atualmente, um recurso que possibilite separar ou filtrar tais casos. Em 2014 a música só foi superada pelas artes cênicas, que ficou com 24% do montante dos incentivos. Esse percentual destinado à música manteve-se razoavelmente estável entre 2005 e 2014, pois teve uma variação de apenas 6 pontos percentuais no período: 18% em 2006 e 24% em 2011. As tabelas a seguir podem ilustrar tais dados25:

Para corrigir tais distorções foi criado em 2010 o Projeto de Lei nº 6.722, que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura) como o novo marco regulatório que irá substituir a Lei Rouanet, mantendo o mecanismo da renúncia fiscal mas implantando outros dispositivos que minimizam as distorções que causa. Para o acompanhamento da tramitação vide: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=465486. 23 O assunto está longe de se encerrar. Recentemente (03/02/2016) houve uma reviravolta a partir de uma decisão do TCU em que “eventos culturais com potencial lucrativo ou que possam atrair investimento privado serão proibidos de receber incentivos fiscais através da lei Rouanet”. Vide: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/ 1736700-tcu-proibe-lei-rouanet-para-projetos-com-fins-lucrativos-e-autossustentaveis.shtml. 24 Para acesso ao Salic vide: http://novosalic.cultura.gov.br/. 25 Os dados utilizados nesta seção sobre a Lei Rouanet foram extraídos do sistema SalicWeb por JLeiva Consultoria em Cultura e Esporte e apresentados na palestra “Um Raio-X da Lei Rouanet”, com João Leiva, Karina Poli, e Inti Queiroz, que fez parte da Semana Internacional da Música de São Paulo – SIM SP 2015, realizada entre os dias 02 e 05/12/2015 no Centro Cultural São Paulo – CCSP. Vide: http://www.simsaopaulo.com/pb/events/um-raio-x-da-lei-rouanet/. 22

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Projetos incentivados pela Lei Rouanet - BRASIL: 2005/2014

Percentual do incentivo da Lei Rouanet destinado às diferentes áreas - BRASIL: 2005/2014

De acordo com as categorias disponibilizadas no Salic para a consulta, não é possível saber quantos deles se dedicam à área de pesquisa/criação/produção/gravação de discos, quantos são na área de difusão e circulação musical (que inclui o aporte espetáculos musicais, festivais, etc.), e quantos são projetos dedicados à formação de público, por exemplo. Isto só seria possível com uma extração manual, projeto a projeto, o que dificulta bastante a construção desse indicador. Mas ainda que não seja possível ainda extrair tais estatísticas, é possível deduzir que

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a maioria dessas ações seja na área de difusão musical (shows, principalmente), justamente aquela que mais dá visibilidades às empresas patrocinadoras. O próprio estudo do IPEA aqui citado (SILVA, 2007, p. 306) sugere que o aporte da renúncia fiscal incrementa a ocupação no setor, justificando o financiamento público em eventos isolados de difusão (como shows). Portanto, ainda que não haja uma ação orquestrada das empresas nesse sentido, pode-se dizer que o mecanismo da renúncia fiscal, por sua natureza, reforça a tendência de uma política centrada na oferta. As categorias disponibilizadas no sistema referem-se aos segmentos: música erudita, música instrumental, música popular, áreas (musicais) integradas, artes integradas, e orquestras26, conforme tabela abaixo:

Tais divisões relacionam-se às instruções normativas, que regulamentam os procedimentos para apresentação, recebimento, análise, aprovação, execução, acompanhamento, prestação de contas e avaliação de resultados de propostas culturais que são submetidas ao MinC. A mais recente versão é datada de 24 de junho de 2013, que mantém pontos de 1995 quanto à natureza dos projetos e faixa de imposto a ser deduzido pela empresa. Ela estabelece que há dois níveis de dedução do imposto devido pelas empresas: 30% (artigo 26, destinado à música popular com intérprete ou quando há áreas e artes integradas, ou ainda a propostas que não se encaixam ao previsto na instrução), e 100% (artigo 18 da instrução, destinado às demais modalidades acima listadas). Após a avaliação feita por peritos contratados pelo MinC, os projetos são enquadrados em um ou outro artigo de acordo com sua natureza, o que gera tal classificação pouco condizente à realidade das manifestações musicais. Tal diferenciação foi criada justamente em função da área musical, para limitar o acesso de propostas em música popular cantada com enorme poder de mobilização de público e mercado (como o sertanejo e o axé, por exemplo) aos recursos públicos, e também para rebater a crítica de que as empresas não investiam nada além do imposto devido para ter um enorme retorno de marketing (com a nova instrução, as empresas só podem deduzir 30% do imposto devido). Por outro lado, em função dessa instrução normativa criada para frear distorções, os cantores em início de carreira disputam os mesmos recursos que intérpretes consagrados, incorrendo-se numa outra distorção. A atual instrução normativa passou recentemente (até 8 de dezembro de 2015) por processo de consulta pública. Vide: http://www. cultura.gov.br/banner-3/-/asset_publisher/axCZZwQo8xW6/content/lei-rouanet-aberta-consulta-publica-da-instrucao-normativa/10883?redirect=http://www.cultura.gov.br/banner-3%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_axCZZwQo8xW6%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-3%26p_p_col_count%3D2.

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Percentual do incentivo da Lei Rouanet destinado aos diversos segmentos musicais BRASIL: 2005/201427

Como é sabido, um dos gargalos do financiamento via renúncia fiscal é a etapa de captação de recursos após a aprovação do projeto. Os dados das tabelas acima referem-se aos projetos que conseguiram captar recursos na iniciativa privada após a aprovação (que em 2012 foram cerca de 30% do total). Dentre o total de projetos que conseguem captar recursos, os de música popular (que são 48% do total dos aprovados) têm a menor taxa de sucesso na captação (58% não conseguem captar). Já as orquestras e os produtores de grandes eventos lideram a relação de captadores. Este foi um brevíssimo panorama sobre a oferta musical no país, tanto do ponto de vista das políticas públicas estruturantes do setor, como do ponto de vista do principal mecanismo de financiamento público a projetos musicais – a renúncia fiscal, que acaba reforçando a política da oferta. O que se nota é que tanto o poder público como a iniciativa privada possibilitaram uma política centrada na oferta de bens culturais, deixando em segundo plano aquilo que garantiria um mercado cultural perene e sustentável: o estímulo à demanda. Apesar dos crescentes esforços para tanto, não há ações sistêmicas e consistentes para uma política da demanda. Isso seria necessário principalmente em municípios pequenos, áreas rurais, em populações de baixa renda e escolaridade. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: AÇÕES PARA O ESTÍMULO À DEMANDA Do ponto de vista das ações na esfera da educação, que é a principal linha de atuação para o estímulo à demanda, há duas iniciativas importantes mas que, infelizmente, não lograram cumprir totalmente com seus objetivos. A primeira que destaco é o Ensino Musical nas Escolas, causa levaNão estão aí discriminados quais os percentuais de “verba direta” (equivalente aos 70% não deduzidos pela empresa, que assim aporta recursos próprios como numa espécie de patrocínio) e de incentivo (100% de dedução). Cálculos apontam que entre 2009 e 2014 a área da música recebeu R$1,6 bilhão, sendo 75% do montante na forma de incentivo (faixa de 100% de dedução) e 25% do montante na forma de recursos diretos não deduzíveis. Os maiores beneficiários dos recursos diretos são projetos de grande apelo comercial. Fonte: SalicWeb, extração JLeiva, SIM SP 2015.

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da adiante desde 2006 pelo Grupo de Ação Parlamentar pró Música - GAP. Diante das dificuldades enfrentadas pelo GAP no poder legislativo, o grupo criou em 2008 a campanha “Quero Educação Musical na Escola” sendo, desde então, a causa prioritária do GAP. A Lei 11.769/2008, que determina que a música deve fazer parte dos conteúdos obrigatórios, já foi aprovada, mas ainda carece de regulamentação para ser cumprida pelas escolas. Em 2013 houve uma resolução do Conselho Nacional de Educação regulamentando a Lei e estipulando seu cumprimento. Contudo, ela não foi ainda homologada pelo Ministério da Educação e, portanto, ainda não têm valor. O GAP continua pressionando para que a lei seja finalmente regulamentada e aplicada. A segunda iniciativa que merece destaque é o Programa “Mais Cultura”, criado em 2007 para a promoção do acesso à cultura em escolas e universidades públicas. As chamadas públicas são destinadas a projetos elaborados por municípios e estados, por pessoas físicas, e por pessoas jurídicas sem fins lucrativos que sejam de natureza cultural. Os projetos selecionados devem desenvolver ações em escolas e universidades em pelo menos um dos três eixos: Cultura e Cidadania, Cultura e Cidades, e Cultura e Economia. Contudo o programa não tem ainda a força necessária para incentivar a demanda como seria necessário. Do ponto de vista das políticas públicas norteadas pelo PNC e SNC, o programa que mais se relaciona à ideia de uma política da demanda é o “Cultura Viva”, que visa estimular e desenvolver capacidades e potenciais artísticos através do apoio a iniciativas culturais já existentes, dando a oportunidade à população de desenvolver suas vocações artísticas e difundi-las em todas as suas expressões. A principal estratégia utilizada é a implantação de Pontos de Cultura, espaços de gestão coletiva que se constituem não apenas em polos de criação, como também de fruição culturais, visando à construção de novos valores de cooperação e solidariedade através do fazer cultural. Conforme já argumentei em outro texto, “o pressuposto básico é o de que não é necessário ‘levar’ cultura a tais segmentos sociais, uma vez que eles já são produtores de cultura que necessitam apenas serem reconhecidos como tais”. (GHEZZI, 2015). Com tal programa, espera-se que os elos com o mundo social passem necessariamente pela cultura, o que contribui para o início de uma política da demanda através do estímulo ao desejo por cultura. Mas apesar da multiplicação dos Pontos de Cultura, o programa não é capaz de responder sozinho por uma política consistente e sistêmica centrada na demanda cultural. Outra iniciativa do MinC que pode contribuir com tal propósito é o “Vale Cultura”, criado para os trabalhadores de baixa renda (até 5 salários mínimos). O benefício de R$50 mensais (cumulativos e válidos em território nacional) é oferecido pelas empresas aos seus trabalhadores formalizados. As empresas que aderem ao programa têm em contrapartida isenção em encargos sociais e trabalhistas sobre o valor concedido, além de abatimento no imposto de renda em até um por cento. E os beneficiários podem usar o auxílio para a ida a cinemas, museus, teatros, espetáculos, shows e a compra e aluguel de CDs, DVDs, livros, revistas e jornais, além de cursos

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de formação artística, compras de instrumentos musicais, ou mesmo em programas culturais com um custo mais elevado. Em relação aos hábitos musicais propriamente ditos, o Vale Cultura poderia incorporar na lista de bens e serviços elegíveis o pagamento de assinaturas de música por streaming. Ao incentivar o consumo de bens culturais, o programa incrementa também a economia da cultura. “Cerca de 18 milhões de brasileiros podem ser beneficiados com o Vale-Cultura, representando um aumento de R$ 11,3 bilhões na cadeia produtiva da Cultura” (GHEZZI, 2015). Contudo, deve-se considerar que o Vale Cultura é um recurso que se lança mão, e não exatamente uma política sistêmica. Ele vale por sua abrangência, mas não resolve a questão das barreias simbólicas que dificultam o acesso, tampouco é capaz de estimular adequadamente o desejo por cultura. Ainda que haja tais ações que estimulem a demanda, elas não são suficientes para eliminar as barreiras simbólicas que impedem o acesso pleno à cultura. O incentivo continuado às práticas amadoras, e ações perenes de educação formal e informal em música seriam essenciais para o estímulo à demanda. Apesar da recente diversificação de mecanismos de fomento pela Funarte, os Prêmios e Editais (que se caracterizam pela seleção de poucos projetos de excelência para usufruto do fomento) continuam sendo as modalidades mais utilizadas para a promoção do acesso à cultura, limitando o alcance das ações propostas para o incremento da demanda. Da mesma forma, programas estaduais e municipais de educação musical têm papel importante no estímulo ao desejo por cultura, mas o que se nota é que os municípios de pequeno porte e as áreas rurais, além da população em situação de vulnerabilidade social, ainda carecem de políticas eficientes de promoção do acesso à cultura. Nessa perspectiva, cabe pensar em políticas estruturantes não apenas da oferta de música, mas principalmente em políticas voltadas à ampliação da demanda. Assim se estaria contribuindo não apenas com o setor musical especificamente, mas com a área cultural de maneira ampla, pois ao priorizar uma política da demanda, desenvolve-se o desejo por cultura, fundamental ao desenvolvimento humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. RJ: Elsevier/ Campus: 2006. BOTELHO, Isaura. Dimensões da Cultura e Políticas Públicas. In: São Paulo em Perspectiva, São Paulo,  v. 15,  n. 2,  p. 73-83, Abril  2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-88392001000200011&lng=en&nrm=iso.

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BRASIL. Metas do Plano Nacional de Cultura. São Paulo: Instituto Via Pública; Brasília: Ministério da Cultura, 2012. Disponível em: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/uploads/Biblioteca Table/9c7154528b820891e2a3c20a3a49bca9/60/13661436941701177432.pdf COULANGEON, Philippe. Sociologia das práticas culturais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014. DIAS, Marcia Tosta. Quando o todo era mais do que a soma das partes: álbuns, singles e os rumos da música gravada. In: ITAÚ CULTURAL. Revista Observatório Itaú Cultural / OIC n. 13, Set. 2012. São Paulo: Itaú Cultural, 2012, p. 63-74. DONNAT, O. Democratização da cultura: fim e continuação? In: ITAÚ CULTURAL. Revista Observatório Itaú Cultural / OIC n. 12, Mai./Ago. 2011. São Paulo: Itaú Cultural, 2011, p. 19-34. GHEZZI, Daniela Ribas. Mapping Brazil – Cultural Participation / Democratização e Acesso à Cultura no Brasil. Holanda, DutchCulture, 2015. Disponível em: http://dutchculture.nl/en/mapping/mappingbrazil-cultural-participation. IBGE. Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010. RJ, 2013. Disponível em: ftp:// ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sistema_de_Informacoes_e_Indicadores_Culturais/2010/indic_ culturais_2007_2010.pdf. MINISTÉRIO DA CULTURA. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais 2010. Brasília: MinC, 2010. Disponível em: http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2009/10/cultura_em_ numeros_2009_final.pdf. SESC. Públicos de Cultura. Sesc/Fundação Perseu Abramo, 2013. Disponível em: http://www.sesc.com. br/portal/site/publicosdecultura/. SILVA, Frederico A. B. Política Cultural no Brasil, 2002-2006: acompanhamento e análise. Brasília: Ministério da Cultura, 2007. TURINO, C. Pontos de cultura: O Brasil de baixo para cima. São Paulo: Ed. Anita Garibaldi, 2ª ed., 2010. VICENTE, Eduardo. Da Vitrola ao IPod – uma história da indústria fonográfica no Brasil. São Paulo: Alameda, 2014.

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OFERTA CULTURAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE POR ÁREA DE PLANEJAMENTO Daniele Cristina Dantas1 RESUMO: O desenvolvimento da gestão cultural tem levado à incorporação de práticas que empregam informações quantitativas nas diferentes etapas do ciclo das políticas públicas e seu amadurecimento tem favorecido a compreensão da eficiência do uso de indicadores nos processo de gestão cultural. Tais processos favorecem as análises do estado atual, o monitoramento e o planejamento das ações. O presente trabalho tem como objeto a análise espacial da oferta cultural na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2013, a partir de indicadores construídos com dados da Secretaria Municipal de Cultura. As análises são feitas por áreas de planejamento (APs), favorecendo o reconhecimento de uma configuração da oferta cultural neste perfil de equipamentos culturais na cidade que difere do comumente representado. PALAVRAS-CHAVE: indicador cultural, gestão cultural, análise espacial, dados de registro administrativo, Rio de Janeiro. .

1. INTRODUÇÃO O desenvolvimento da gestão cultural tem levado à incorporação de práticas gerenciais que empregam informações quantitativas nas diferentes etapas do ciclo das políticas públicas. O amadurecimento da gestão cultural na última década favorece compreender que as ações de uma política pública para cultura tendem a ser mais eficientes com o uso de indicadores como subsídio às análises do estado atual, assim como no monitoramento e planejamento das ações em relação ao que pode e pretende ser melhorado. Considerando possibilidades de análise da realidade cultural a partir de dados quantitativos, aspectos empiricamente observados tornam-se objetos de estudo convenientes. No presente trabalho, este objeto tem como recorte a cidade do Rio de Janeiro, segunda grande metrópole do país, na qual se reconhece a percepção da existência de diferenças na distribuição de infraestrutura para a fruição cultural em seu território, em função de características históricas e sociais de sua ocupação. Considera-se ocorrer uma concentração de equipamentos culturais Especialização em Estatística Aplicada (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro); mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais (Escola Nacional de Ciências Estatísticas); [email protected].

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em algumas regiões (como o Centro da cidade) em detrimento de outras. Aliado a esse fato, a oferta de infraestrutura para fruição no município está sob diferentes níveis de gestão, a saber: municipal, estadual, federal ou privada. Para a fundamentação das análises que seguem, considera-se indicador cultural a partir de três perspectivas teóricas, a saber: como estatísticas que dão suporte ao monitoramento para o planejamento cultural contextualizando os fenômenos culturais existentes (YUE; KHAN; BROOK, 2011); como ferramenta que auxilia na definição de problemas e no desenho de tendências culturais orientando o planejamento cultural (FANCHETTE, 1979); e como instrumento que fornece informações relevantes para as políticas culturais (PFENNIGER, 2004). Buscando recursos para a análise, aplicou-se um método estatítico para construção de um indicador sintético para a análise da oferta cultural em equipamentos sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (SMC-RJ), utilizando-se recursos de geoprocessamento para a representação dos resultados no território, que possibilitam melhor compreensão da distribuição do indicador no espaço estudado. Foi utilizada como unidade de análise as áreas de planejamento (APs) da cidade, que representam agrupamentos de bairros contíguos. Nesta perspectiva, o indicador proposto é composto por informações referentes à capacidade e ao número de atividades realizadas nos diferentes equipamentos culturais da cidade, representando o entendimento de oferta cultura a partir da relação entre a capacidade física de recebimento do público e as atividades realizadas nos espaços culturais em análise. Assim, o Indicador de Oferta Cultural (IOC) representa a oferta cultural nas diferentes regiões da cidade. Através dele identifica-se a distribuição dos equipamentos culturais na cidade e a representação quantitativa (em representação percentual) da oferta cultural. Para a organização dos dados, o processamento e a apresentação das informações foram utilizados o Excel, do pacote Microsoft Office. Para a representação espacial dos resultados foi utilizado o ambiente de geoprocessamento ArcGIS v.10. 2. O RIO DE JANEIRO E OS EQUIPAMENTOS CULTURAIS DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DA CIDADE Em seus 450 anos, o Rio de Janeiro foi capital do país, desde o Brasil Império até a mudança da capital da República para Brasília nos anos 1960. Município da região Sudeste, o Rio de Janeiro é capital do estado de mesmo nome e tem uma população de, aproximadamente, 6.320.446 habitantes, composta por 53% de mulheres e 47% de homens2, vivendo em uma área de 1.224,56 km² 3. Sua divisão administrativa apresenta 05 (cinco) áreas de planejamento com Fonte Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em . Fonte Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), disponível em .

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16 (dezesseis) regiões de planejamento e 33 (trinta e três) regiões administrativas, onde se inscrevem seus 160 (cento e sessenta) bairros. Considerando que a oferta de infraestrutura para usos culturais, compreende equipamentos sob diferentes perfis de gestão, a saber: pública federal, estadual e municipal (distribuídos em diferentes secretarias e fundações); além de equipamentos culturais privados ou de organizações sociais e coletivos artísticos, a distribuição destes espaços apresenta-se mais concentrada em algumas regiões. De acordo com dados do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), autarquia pública da cidade, em 2008, registravam-se 661 equipamentos culturais sob a gestão municipal (por fundações públicas e outras secretarias), estadual e federal, além de equipamentos privados, entre museus, bibliotecas, teatros, salas de cinema, galerias, espaços e centros culturais, escolas e sociedades musicais. Os equipamentos sob a gestão municipal estão distribuídos em secretarias municipais ou órgãos da gestão pública na cultura, ciência e tecnologia, educação e turismo, por exemplo. Reconhece-se que a diferença no tipo de gestão (municipal, federal ou estadual; em nível de secretaria ou fundação; pública, privada ou comunitária) implica no perfil de gerenciamento da cultura para a sociedade; assim como pode ajudar na compreensão da dinâmica de oferta e usos culturais nas diferentes regiões da cidade. Este cenário fundamentou o avanço dos debates sobre o desequilíbrio na distribuição da oferta de infraestrutura de serviços culturais e demandas por ações em busca do equilíbrio entre os bairros e regiões da cidade, a partir dos anos 1990. Outro aspecto que se pode observar refere-se ao perfil da distribuição dos equipamentos culturais no território e verificar que a distribuição de equipamentos culturais de perfis de alguns tipos de gestão não obedece à mesma dinâmica. Como referencial analítico, a observação de equipamentos culturais sob o mesmo perfil de gestão, os dados da SMC-RJ oferecem informações que permitem avaliar espaços sob a mesma gestão e política. Tais espaços totalizam 52 (cinquenta e duas) unidades entre teatros, bibliotecas, museus, lonas e arenas culturais e espaços culturais multiuso, conforme detalhamento na Tabela 2 por tipo, Área de Planejamento e Região Administrativa. É possível verificar que a presença de equipamentos culturais sob a gestão da SMC-RJ em todas as Áreas de Planejamento. Contudo, nem todas as APs têm todos os tipos de equipamento cultural.

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Tabela 1: Equipamentos Culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura, por Áreas de Planejamento (APs) e Regiões Administrativas (RAs), Rio de Janeiro, 2013

Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, jan-dez, 2013.

Nota-se que a Arenas e Lonas Culturais são equipamentos presentes nas APs 3, 4 e 5, Teatros são equipamentos culturais presentes nas APs 1, 2 e 3 e Museus equipamentos culturais presentes APs 1 e 2. Estas informações permitem que se identifique que as diferentes áreas da cidade têm diferentes infraestruturas de equipamentos culturais, o que tende a influenciar no perfil da oferta em cada uma delas. 3. A CONSTRUÇÃO DO INDICADOR A proposta metodológica compreende a quantificação de aspectos da dinâmica cultural por meio de indicadores que permitam a visualização analítica da distribuição da infraestrutura para a fruição cultural no ano de 2013 nos equipamentos culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. A construção do indicador considera primeiramente os valores relativos de cada variável em relação ao total delas. Em seguida, a uniformização dos pesos considera uma distribuição igual para todos. A partir deste segundo passo, a soma de todas as variáveis encontradas deve somar 1 (um) e os resultados encontrados para cada uma estará compreendido entre 0 (zero) e 1 (um). Para favorecer a leitura dos resultados, o valor encontrado foi multiplicado por 100, figurando em percentual. A partir daí, aplicou-se o método proposto às informações agregadas em 05 (cinco) Áreas de Planejamento da cidade. 4. O INDICADOR DE OFERTA CULTURAL (IOC) A formulação do indicador corresponde a uma estrutura de somas e produtos em linhas e colunas totalizando 1. O formalismo para a construção dos indicadores e suas respectivas operações matemáticas que traduzem a representação final do indicador proposto considera que seja um elemento da matriz de informações que representa o sistema de informações de oferta cultural sob a gestão da prefeitura municipal do Rio de Janeiro, onde os índices correspondem, respectivamente as seguintes informações: Equipamento Cultural, Atributo de Medição do Equipamento Cultural, Áreas de Planejamento. Para que se possa visualizar a Tabela 2 traz a representação dos atributos do indicador: 650

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Tabela 2: Apresentação de atributos do Indicador de Oferta Cultural (IOC)

Assim, o elemento

representa as Atividades realizadas nas Arenas Culturais

localizadas na Área de Planejamento 1 e

é o total da Capacidade das Lonas Culturais distribuídas nas cinco Áreas de Planejamento do município do Rio de Janeiro. Tendo em vista que os dados originais apresentam variação significativa que dificultaria o processamento do indicador, a composição do indicador segue duas fases: (1) uniformização do conjunto de dados; e (2) ponderação dos indicadores a partir dos pesos atribuídos. Na Fase 1, a uniformização considera os Equipamentos Culturais (i) e seus Atributos de Medição(j) e é representada por:

Cada observação será resultado da divisão do valor original da célula pelo total do atributo de medição do equipamento (j) que representa. Por exemplo, o valor assumido por P1,2,1 será o resultado da divisão do valor da Capacidade das Arenas Culturais da AP1 (x1,2,1) pela Soma da Capacidade das Arenas Culturais (

). Com este processo, busca-se diminuir a amplitude em um conjunto de dados com grande variabilidade, conforme representa a Tabela 3:

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Tabela 3: Representação dos valores uniformizados do Indicador de Oferta Cultural (IOC)

Assim, todas as observações serão representadas em uma mesma escala, variando entre 0 e 1, para representar os atributos de medição de cada equipamento cultural. Na Fase 2, a ponderação é realizada a partir do número de Equipamentos Culturais (i) e do número de seus Atributos de Medição (j) e é representada por:

Onde n(i) * n(j) representam os pesos atribuídos para o cálculo do indicador, respectivamente, 1/6 e 1/2. Visto que o indicador tem distribuição igual, o fator utilizado na ponderação será uma constante (W) de valor igual a aproximadamente 0,0833:

Assim, temos a representação para o cálculo do indicador, onde

Desta forma, o indicador que representará a presença de oferta cultural, em função da capacidade dos equipamentos culturais e do número de atividades realizadas neles durante o ano de 2013, em nível de Áreas de Planejamento será representado na Tabela 4:

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Tabela 4: Representação da Composição do Indicador de Oferta em Equipamentos Culturais sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultural do Rio de Janeiro

Considerando os processos de uniformização e ponderação anteriormente realizados e compreendendo que j é um atributo que compõe a informação do equipamento cultural, pode-se reuni-los de modo a representar o indicador final, onde:

Com isso, o indicador final, que representará a presença de oferta cultural, nos diferentes equipamentos culturais nas Áreas de Planejamento é representado na Tabela 5: Tabela 5: Indicador de Oferta Cultural por Equipamentos sob a gestão da Secretaria Municipal de Cultural do Rio de Janeiro por Área de Planejamento

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Desta maneira, os resultados alcançados terão sua distribuição no território representada em imagens que favorecerão as análises. 5. RESULTADOS E ANÁLISES A partir dos resultados do indicador que representa a capacidade dos equipamentos culturais associada às atividades realizadas nos equipamentos presentes em cada Área de Planejamento (AP), apresentado na Tabela 6, nota-se que as APs 1 e 2 têm valores próximos (respectivamente 25,44 e 25,16) e que a AP3 (que representa bairros da Zona Norte da cidade) tem o valor mais elevado (29,62). A AP4 (onde ficam os bairros de Jacarepaguá e Barra da Tijuca) tem o menor valor (3,91) e a AP5 (onde estão os outros bairros da Zona Oeste) tem um valor intermediário (15,88). Este resultado confirma a existência de desequilíbrio na oferta cultural em diferentes áreas da cidade no período em estudo, com destaque para as APs 4 e 5, que registram os resultados gerais mais baixos. Maior equilíbrio é verificado entre as APs 1, 2 e 3, com destaque para a AP3 que registra a maior concentração da oferta cultural na cidade no período analisado. Tabela 6: Indicador de Oferta Cultural por Área de Planejamento (IOC-AP), município do Rio de Janeiro, 2013 (%)

Fonte: SMC-RJ. Dados de registro administrativo, jan-dez, 2013.

Arenas Culturais, presentes nas APs 3 (12,90) e 5 (3,77) têm uma representação mais expressiva na AP3 do que na AP5. Nas Bibliotecas, que estão presentes em todas as APs, registrou-se maior oferta cultural nas APs 3 (6,52) e 2 (4,68). Em relação à oferta cultural nos Centros Culturais, foram verificados resultados mais expressivos nas AP1 (7,03), seguida da AP3 (4,41) e da AP2 (4,16). Sobre a oferta cultural nas Lonas Culturais conferiu-se a maior oferta na AP5 (10,65), alcançando-se resultados mais discretos nas outras APs que têm este tipo de equipamento cultural (AP4 com 1,07 e AP3 com 4,95). Nota-se que a oferta cultural nas Lonas Culturais da AP5 tem um dos maiores indicadores de oferta da cidade no ano de 2013. Este resultado pode representar a importância deste equipamento cultural, presente exclusivamente nas regiões da cidade mais afastadas das zonas centrais, para a região, da mesma forma que o resultado das

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Arenas na AP3 (12,90), reiterando a importância destes equipamentos na distribuição da oferta cultural nos subúrbios em relação à oferta cultural na cidade. Os resultados que traduzem a distribuição da oferta cultural na cidade apresentado na Tabela 6 podem ser visualizados na Figura 1. Nela as APs 4 e 5 estão representadas como Áreas mais carentes em oferta cultural pela SMC-RJ e as AP 3 e 1 como as Áreas com melhor cobertura. Representando a oferta cultural nos diferentes equipamentos culturais, é possível reconhecer, nos mapas a seguir, a importância de cada um deles nas regiões em que estão presentes. Na Figura 2, nota-se a ausência de Arenas Culturais nas Áreas de Planejamento 1, 2 e 4 e a maior concentração de oferta cultural deste tipo de equipamento cultural na Área de Planejamento 3, onde as Arenas são equipamentos mais presentes. A Figura 3 representa a oferta cultural em Bibliotecas na cidade, o único tipo de equipamento cultural presente em todas as Áreas de Planejamento. Reitera-se a informação lida na Tabela 6, que informa a menor oferta cultural neste tipo de equipamento nas APs 5 (1,46) e 4 (1,78), assim como maior oferta cultural deste tipo de equipamento na AP 3 (6,52) seguida da AP2 (4,68). A oferta cultural nos Centros Culturais da cidade está representada na Figura 4. A partir dela é possível reiterar a importância dos Centros Culturais na AP1, visto que a oferta cultural neste tipo de equipamento nesta região da cidade é de 7,03%. É destacada a ausência dos Centros Culturais na AP5. Nota-se o valor baixo registrado na AP4 (1,06). Contudo, é importante reconhecer que este é um entre os poucos equipamentos culturais disponíveis na AP4, respondendo por 35,71% da capacidade dos equipamentos culturais existentes e por 66,39% das atividades realizadas nesta Área de Planejamento. Instaladas exclusivamente nos bairros mais distantes do Centro e da Zona Sul da cidade, a oferta das Lonas Culturais nestas regiões menos atendidas por equipamentos culturais tem resultados positivos. Tendo em vista que sua presença é expressiva na AP5, a imagem reitera a posição destacada deste equipamento cultural para esta Área de Planejamento (10,65), conforme se vê na Figura 5. A ausência de oferta cultural deste equipamento cultural nas APs 1 e 2 confirmam a ausência de Lonas Culturais nestas regiões.

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Figura 1: Indicador de Oferta Cultural por Área de Planejamento (IOC-AP), município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

Figura 2: Oferta Cultural em Arenas Culturais por Área de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

Figura 3: Oferta Cultural em Bibliotecas por Área de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

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Figura 4: Oferta Cultural em Centros Culturais por Área de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

Figura 5: Oferta Cultural em Lonas Culturais por Área de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

Figura 6: Oferta Cultural em Museus por Áreas de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010. 657

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Figura 7: Oferta Cultural em Teatros por Áreas de Planejamento, município do Rio de Janeiro, 2013

Fonte: Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP-RJ), 2010.

De forma oposta, A Figura 6 representa a ausência de oferta cultural em Museus nas APs 3, 4 e 5 e sua concentração na AP1 (12,72). Esta região reúne importantes museus na cidade. Verifica-se que, em menor proporção, a AP4 também registra oferta cultural em museus no ano de 2013 (3,95). Presentes em parte da cidade, os Teatros são os equipamentos com maior oferta cultural na AP2 (12,37), registrando um dos maiores indicadores de oferta cultural da cidade no ano de 2013. A AP1 (3,47) e a AP3 (0,83) também registram oferta cultural em teatros no ano de 2013. Contudo, o indicador de oferta cultural na AP3 é significativamente baixo. Conforme ilustra a Figura 7, as APs 4 e 5 registram resultado igual a zero no que se refere a presença de teatros, visto que na estrutura da Secretaria Municipal de Cultura não se registra a presença deste tipo de equipamento cultural nestas regiões da cidade. O atendimento às demandas por pauta teatral na região é cumprido pelas Lonas Culturais. Retomando a análise geral pelo IOC, verifica-se que as APs 4 e 5 têm os menores valores do indicador, respectivamente, 3,94 e 15,88. Valores bem diferentes dos verificados nas APs 3 (29,62), 2 (25,16) e 1 (25,44). Diferente de todas as outras, a AP5 é a única que tem pelo menos um tipo de Equipamento Cultural sob a gestão da SMC-RJ em cada Região Administrativa; mesmo que em algumas tenha apenas um tipo de equipamento. Contudo, corroborando o desequilíbrio, verifica-se que a AP$ tem apenas três Equipamentos Culturais, todos situados na mesma RA (RA XVI Jacarepaguá). Analisando as Áreas com os melhores resultados, as APs 1e 2 eram aquelas onde se esperava encontrar maior valor para o resultado do indicador sintético. Contudo, foi a AP3 que apresentou o maior resultado (29,62). Esta AP concentra quase todas as Arenas Culturais da ci-

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dade, além de ser a Área onde está situado o Centro Cultural João Nogueira4, Equipamento Cultural com valores expressivos tanto em Capacidade quanto em número de Atividades realizadas. Nota-se que a infraestrutura de equipamentos culturais da SMC-RJ na AP3 atende a uma região com presença de infraestrutura cultural por outros níveis de gestão diferente do observado nas APs 1 e 2, nas quais se verifica a oferta cultural também em equipamentos federais e estaduais, além dos privados. Analisando a concentração da Oferta Cultural na Zona Sul e no Centro nota-se que a soma representa, aproximadamente, 50% da oferta cultural de toda a cidade. Resultado expressivo, visto que os outros 50% estão distribuídos em três Áreas de Planejamento, que geograficamente representam tanto área física, quanto contingente populacional expressivos. Contudo, este resultado precisa ser analisado pela perspectiva histórica da ocupação do território, tanto comercial e populacional quanto por equipamentos culturais, na cidade do Rio de Janeiro, que se consolidou entre Centro e Zona Sul há mais tempo e passou a contemplar outras regiões da cidade em tempos mais recentes, com a instalação de novos equipamentos culturais. Isto pode ser verificado pelas variações observadas no Indicador de Oferta Cultural na AP3 com a presença de Equipamentos Culturais de instalação recentes, como as Arenas Culturais, mas que precisa ser avaliado com cautela na APs 4 e 5, especialmente pelo tipo e infraestrutura do tipo de Equipamento presente nelas. Isto porque os equipamentos culturais que existem nestas Áreas não têm capacidade de receber em sua programação produções que demandam maior infraestrutura dos espaços, mas são importantes nas últimas décadas por amenizarem a ausência de anos atrás. Há 25 anos, aproximadamente, a AP5, por exemplo, teria muitos resultados iguais a zero, visto que as Lonas e Arenas Culturais foram inauguradas entre 1992 e 2004, e estes são os Equipamentos culturais mais presentes nesta Área de Planejamento. Conhecer o histórico de instalação e dinâmica de uso dos Equipamentos culturais ajuda a verificar mudanças, considerando a construção de um indicador que represente o tempo que cada Equipamento Cultural existe e encontra-se em funcionamento, como a presença deste Equipamento Cultural pode influenciar e representar a possibilidade de oferta cultural em cada região da cidade. Os Centros Culturais são equipamento culturais ausentes apenas na AP5, que tem Lonas Culturais e uma Arena Cultural e são equipamento culturais que não existem nas APs 1 e 2 (que concentram Centros Culturais). A AP3 tem maior diversidade de Equipamentos culturais, não existindo nela apenas Museus. Neste contexto, é importante reconhecer a chance de oferta cultural gerada com a instalação de Lonas e Arenas Culturais em áreas onde não existiam equipamentos culturais da SMC-RJ até meados dos anos 1990. O Centro Cultural João Nogueira é uma construção já existente (o antigo Imperator), que foi incorporada à estrutura da SMC-RJ e inaugurada em 2012.

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Os vazios de representação de Equipamentos culturais públicos municipais, que seriam identificados há 25 anos, foram amenizados com a presença destes tipos de equipamento cultural. Porém, a ocupação destes equipamentos culturais, suas linhas de ação e perfil de programação, por exemplo, são questões a serem avaliadas em um estudo sobre o desenho da política cultural da SMC-RJ, visto que não são questões captadas pelo indicador de oferta proposto. 6. CONSIDERAÇÕES Com a observação do indicador a partir das Áreas de Planejamento foi possível identificar e reconhecer alguns aspectos da oferta cultural nos equipamentos culturais da Secretaria Municipal de Cultura no Rio de Janeiro. Confirmou-se o desequilíbrio na oferta cultural em algumas regiões da cidade e foi possível reconhecer a importância de alguns equipamentos culturais em algumas delas, como as Lonas Culturais para parte da zona oeste. A representação do desequilíbrio na Oferta Cultural nas diferentes Áreas de Planejamento traduz que, de modo geral, esta oferta não está distribuída geograficamente de forma equânime. Contudo, isso não invalida todo o conjunto de realizações existentes nos diferentes Equipamentos Culturais, sua representação para a população e importância no conjunto das ações culturais tanto em contexto local quanto para a cidade. Com isso, é importante reconhecer que o resultado de um indicador sinaliza possibilidades de leitura sobre uma situação para a qual ele foi construído. Mas as respostas, que ele permite que sejam alcançadas, necessitam de aprofundamento e esclarecimentos que serão obtidos com a análise qualitativa da gestão cultural em seus diversos aspectos, desde as propostas de ação, às tomadas de decisão, os ajustes de objeto, entre outros fatores que podem influenciar o resultado dos projetos, ações, programas de uma política. Assim, os resultados traduzidos por indicadores isoladamente, em algumas circunstâncias, suscitarão questões não evidenciadas no cotidiano sem oferecer respostas diretas, visto que é através da análise do conjunto de decisões e ações da gestão que se podem alcançar alguns esclarecimentos. Porém, quando as análises se fundamentam em um conjunto de informações quantitativas sobre o cotidiano da gestão, o processo para que se identifiquem respostas passa a ter parâmetros mais objetivos. Isto corrobora a importância de se consolidar conjuntos de dados do cotidiano da gestão por períodos mais longos, construindo séries de dados longitudinais, que permitirão ao gestor avaliar as ações de sua política em perspectiva no tempo e verificar os resultados alcançados, possibilitando o monitoramento e os ajustes durante o processo de gestão. Assim, seria possível analisar cenários anteriores e posteriores à instalação de alguns equipamentos culturais, da mudança na programação oferecida, verificar se os resultados foram mais expressivos em um

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momento específico ou se se trata de um equipamento cultural de referência para uma região da cidade ou para o público da cidade. O uso de indicadores na gestão tende ainda a ser favorecido pela adesão ao um sistema de indicadores que auxiliará na ampliação da análise dos resultados alcançados através de um indicador sintético, assim como na identificação de outras características que podem ajudar na compreensão de aspectos da gestão verificados com o uso de um indicador isolado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FANCHETTE, S. Les indicateurs culturales: theorie et pratique. Reunion d’experts sur lês estatistiques et lês indicateurs culturels. Paris: UNESCO, 1979. Disponível em Acesso em 13 abr. 2013. PFENNINGER, M. Indicadores y Estadísticas Culturales: Breve repaso conceptual. In: Boletín GC, n. 7, 2004. Disponível em: http://www.gestioncultural.org/ficheros /1_1316771694_MPfenniger.pdf> Acesso em 13 abr. 2013. YUE, A; KHAN, R; BROOK, S. Developing a local cultural indicator framework in Australia: a case of the city of Whittlesea. In: Culture and Local Governance, v. 3, n. 1-2, 2011. Disponível em Acesso 16 abr. 2013.

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PERSPECTIVAS SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL NO PROGRAMA CULTURA VIVA Daniele Sampaio da Silva1 RESUMO: Este estudo foi realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Setor de Políticas Culturais, entre 2012 e 2014, e contou com a orientação da Profa. Dra. Lia Calabre. Seu objetivo foi a análise empírica dos impactos sociais, culturais e humanos em comunidades onde se estabeleceram os Pontos de Cultura - uma das vertentes do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, criado em 2004, durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura do Brasil. Entre outras coisas, buscou-se verificar o alcance desta política como fomento à diversidade cultural – seu princípio fundante. Neste artigo, há uma síntese das ações empreendidas nesta pesquisa, a qual envolveu estudo bibliográfico e pesquisa de campo em dois Pontos de Cultura da cidade de Campinas-SP. PALAVRAS-CHAVE: Programa Cultura Viva, Pontos de Cultura, Diversidade Cultural.

1. INTRODUÇÃO O principal objetivo desta pesquisa foi verificar, com base em estudos teóricos e trabalhos de campo, os impactos das ações dos Pontos de Cultura, vertente do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, criado em 2004 na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Os Pontos de Cultura, dentro da perspectiva do MinC, são definidos como organizações da sociedade civil já existentes, que recebem apoio financeiro e kits de cultura digital disponibilizados através de editais públicos. Desde a criação do programa, os projetos contemplados recebem por três anos o valor correspondente a três parcelas de R$60 mil, tendo como contrapartida a realização das atividades propostas no plano de trabalho submetido no edital. De acordo com os conceitos básicos dos criadores do programa, o Ponto de Cultura está apoiado em quatro pilares conceituais: autonomia, protagonismo, empoderamento e gestão compartilhada. A fim de se estudar esta vertente do programa Cultura Viva, esta pesquisa se dividiu em três etapas: 1) levantamento e estudo de documentos oficiais sobre os princípios do programa, análise dos estudos realizados pelo IPEA nos anos de 2009 e 2011 - onde avaliou-se a implementação e Produtora Cultural, Fundadora da SIM! Cultura, Pesquisadora de Políticas Culturais pela Fundação Casa Rui Barbosa e Mestranda em Artes da Cena pela UNICAMP. Email: [email protected]

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alcance das ações previstas no programa - e bibliografia relacionada às políticas culturais. 2) observação empírica de impactos sociais, culturais e humanos em duas comunidades com Pontos de Cultura na cidade de Campinas-SP, envolvendo a aplicação de entrevistas aos gestores, colaboradores, alunos/frequentadores e população moradora/trabalhadora das comunidades onde os Pontos estão inseridos. 3) comparação reflexiva entre o estudo teórico e os dados coletados na pesquisa de campo. Partindo do princípio de que o programa tem como premissa a promoção da diversidade cultural, procurou-se contemplar no trabalho de campo Pontos de Cultura que envolvessem ações e públicos beneficiados completamente divergentes. Assim, o primeiro ponto observado está localizado em uma região nobre da cidade de Campinas e tem como atividade principal a realização de saraus musicais a um público majoritariamente acadêmico: a Cia Sarau. O segundo ponto está localizado em uma região historicamente menos favorecida da cidade, e tem como ação principal atividades culturais voltadas para o atendimento de crianças e jovens de baixa renda: a Casa de Cultura Tainã. 2. LOCALIZANDO OS PONTOS: BREVE HISTÓRICO DO MINISTÉRIO DA CULTURA 1985-2010 O Ministério da Cultura (MinC) foi criado em 1985 por meio do Decreto No 91.144, durante a gestão do presidente José Sarney (CALABRE, 2009). Como poderá ser verificado, historicamente o ministério é marcado por uma infeliz tradição de não continuidade de programas. Até 1990, a pasta foi chefiada por quatro ministros, o que inviabilizou a implementação de qualquer política nacional de cultura. A única ação de destaque deste período, foi a criação da primeira lei federal de financiamento às atividades artísticas do país, conhecida como Lei Sarney. No entanto, a lei foi fortemente criticada por diferentes segmentos da sociedade, principalmente por conta da falta de transparência na aplicação dos recursos e por sua concentração nas mãos de poucos artistas/produtores. Para fragilizar ainda mais as ações da pasta, em 1990 o MinC foi extinto pelo então presidente Fernando Collor de Mello, que transformou o ministério em Secretaria de Cultura vinculada e subordinada à Presidência da República. Em resposta às críticas à Lei Sarney e a fim de se corrigir os problemas detectados na sua implementação, o então Secretário da Cultura, Paulo Sérgio Rouanet, promulgou a lei que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura - a chamada Lei Rouanet. Mas as críticas ao novo modelo de financiamento continuaram, sobretudo por conta da concentração dos recursos na região sudeste. Em 1992, no governo do presidente Itamar Franco, o Ministério da Cultura foi recriado e teve três dirigentes em apenas dois anos. De forma que, notadamente, o ministério é marcado

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já nos seus primeiros dez anos por sucessivas substituições de dirigentes e por ações típicas da chamada política de evento, com ações isoladas e com caráter imediatista. É entre 1994 e 2002, período dos dois governos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que o MinC vai vivenciar seu primeiro período de estabilidade. Ali, introduziu-se no país a política neoliberal do Estado mínimo, com práticas análogas àquelas inauguradas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, nos EUA e Grã-Bretanha respectivamente, na década de 1980 – desenvolvendo-se, nestes países, novos modelos de fomento à cultura, baseados em transferências de responsabilidades e regulação por práticas de mercado (WU, 2006, passim). Em sintonia com este movimento, o MinC, chefiado nestes oito anos por Francisco Correa Weffort, empenhou a quase totalidade de suas ações na promoção da Lei de Incentivo - ou Lei do Mecenato, como passou a ser chamada. Mas a despeito das fortes investidas na promoção da Lei, não foram cumpridas as proposições iniciais de corrigir as desigualdades de apoio às expressões artísticas em nível nacional. Pelo contrário: ao concentrar os recursos no eixo sul do país e por priorizar projetos vinculados aos chamados grandes nomes da indústria cultural, a principal política deste período agravou ainda mais as desigualdades regionais da área cultural no país. Pior, de acordo com Rubim, a cruel combinação entre escassez de recursos estatais e a afinidade desta lógica de financiamento com os ideários neoliberais, fez que parcela considerável dos criadores e produtores culturais passasse a identificar política de financiamento e políticas culturais com as leis de incentivo (RUBIM, 2012). Em mão contrária às práticas neoliberais, entre 2003 e 2010, período dos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, observa-se um empreendimento da pasta para a institucionalização da cultura em nível nacional. Este seria o segundo período de estabilidade do MinC, quando Gilberto Gil assumiu a chefia da pasta até 2008. Neste intervalo, verificou-se uma forte articulação entre poder público e sociedade civil que resultou na criação e implementação de diferentes políticas culturais nos âmbitos municipal, estadual e federal. É neste período que a pasta ganha notoriedade e se amplia o debate em torno das políticas culturais em diferentes segmentos da sociedade brasileira. 2.1. A gestão do ministro Gilberto Gil e o Programa Cultura Viva Pode-se afirmar que a maior contribuição da gestão de Gilberto Gil à frente do MinC (2003-2008) foi o alargamento do sentido de cultura, que passou a ser pensado a partir de uma perspectiva antropológica. No lugar da indústria cultural, com pretensões universalizantes ou homogeneizadoras, a promoção e valorização das mais variadas formas de viver foram protagonizadas. O reconhecimento e legitimação da diversidade cultural - traço inquestionável da produção cultural nacional - contrastou radicalmente com as gestões anteriores, onde os princípios da homogeneização típicas do movimento de globalização contaminaram fortemente o setor.

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Neste sentido, é possível localizar no leque de ações empreendidas pelo MinC, de um lado, propostas voltadas para corrigir as distorções de políticas já existentes - como por exemplo o debate em torno dos Direitos Autorais, a Reforma da Lei Rouanet, a ampla consulta pública através dos seminários “Cultura para Todos” e do Conselho Nacional de Cultura, etc. Por outro, houve a proposição de novas ações públicas nos âmbitos municipal, estadual e federal, a reestruturação administrativa e a criação de secretarias internas na busca de setorizar e facilitar a operacionalização do ministério; a criação de editais de incentivo à produção de diferentes segmentos da cultura em diferentes partes do país; a abertura de diálogo com outros ministérios; o convênio com o IBGE na busca de indicadores no setor; a institucionalização do Plano Nacional de Cultura, etc. Neste sentido, a criação do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – o Cultura Viva ganha destaque. Com propósitos de se colocar como espaço para a conquista da cidadania e tornar-se um instrumento para a superação da exclusão social (BRASIL, 2006), o programa reconheceu o papel estratégico da cultura como base da construção e preservação das identidades brasileiras. Para alcançar tais objetivos, o Programa foi criado a partir de cinco vertentes (BRASIL, 2004): a) Pontos de Cultura: ação que articula as demais ações do Cultura Viva. Compreende o apoio institucional e financeiro do MinC a entidades civis que desenvolvem atividades de impacto sócio-cultural em suas comunidades. Até abril de 2012, eram 2,5 mil Pontos de Cultura em 1122 cidades brasileiras. b) Agente Cultura Viva: pretendia favorecer atitude crítica, auto-estima e consciência de si em jovens atuantes em Pontos de Cultura. Um edital de seleção de bolsistas selecionaria projetos de capacitação de jovens como agentes culturais. c) Cultura Digital: ação catalizadora da rede formada pelos Pontos de Cultura, destinada a fortalecer, estimular, desenvolver e potencializar  redes virtuais e presenciais. Dentre suas atividades, destacam-se o papel de facilitadora da apropriação e do acesso às ferramentas multimídia em software livre pelos Pontos de Cultura para a geração de autonomia. d) Escola Viva: com o intuito de integrar Pontos de Cultura com a escola, articulando formas de saber reflexivo e sensível por meio da cultura. e) Griôs – Mestres dos Saberes: apoio a projetos pedagógicos que contemplem as práticas da oralidade, dos saberes e dos fazeres dos Mestres e Griôs nas  parcerias dos Pontos de Cultura com escolas,  universidade e entidades do terceiro setor. Por ser responsável pela rede de integração entre todos as iniciativas do programa, os Pontos de Cultura são elemento central do Cultura Viva. Ainda que se possa discorrer sobre algumas limitações do programa - uma certa burocracia estatal dificultando a implementação

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do próprio programa e mesmo de ações da sociedade civil, por exemplo (IPEA, 2011) -, nunca uma política pública mobilizou tão expressivamente diferentes segmentos da sociedade. Mais: possibilitou uma mudança de paradigma na maneira de entender a ação cultural. Assim, por exemplo, o lançamento de outro programa articulado ao Cultura Viva, o Mais Cultura, inseriu as iniciativas desta área na agenda do governo federal, tomando-as como políticas estratégicas de redução da pobreza e a desigualdade social. Aí, um grande avanço no entendimento da cultura – menos como política de evento e entretenimento, como em gestões anteriores do MinC, e mais como ação política transformadora. A fim de verificar o alcance desta ação sua ação – sempre dentro da perspectiva da diversidade cultural - foram pesquisados dois Pontos de Cultura na cidade de Campinas-SP com programações e público-alvo completamente diferentes. Para tanto, além da pesquisa bibliográfica acerca das políticas culturais, foram realizadas pesquisas de campo envolvendo a aplicação de entrevistas com os gestores dos pontos, alunos e público frequentador, e moradores das comunidades onde estão inseridos. 3. BREVE APRESENTAÇÃO: A CIA SARAU E A CASA DE CULTURA TAINÃ A Cia Sarau foi criada em 1993 como espaço cultural voltado à arte e à música a partir do encontro entre o músico José Eduardo Gramani e o então professor na Unicamp, Álvaro Tucunduva. A Cia Sarau está localizada na região norte de Campinas, a 4km da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no distrito de Barão Geraldo. A despeito da simplicidade estrutural do espaço, durante seus mais de 20 anos de existência, a Cia Sarau reúne em seu histórico músicos nacional e internacionalmente reconhecidos. Entre 2007 e 2009, a Companhia Sarau, em conjunto com a Boa Companhia Teatro (Associação Cultural Boa Companhia), foi um Ponto de Cultura do Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura em parceria com a Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Campinas. Depois, entre 2010 e 2012, foi Ponto de Cultura do programa 300 Pontos de Cultura – Rede Estadual de Pontos de Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, por meio de um convênio com o MinC. Com ações que contemplaram apresentações musicais, peças de teatro e atividades formativas, o Ponto de Cultura Boa Companhia e Cia Sarau desenvolveram seus projetos em duas sedes e com programações paralelas. Para esta pesquisa, foram abordadas apenas as atividades desenvolvidas na Cia Sarau. A Casa de Cultura Tainã teve sua fundação como resultado da articulação dos moradores provenientes das áreas dos antigos cortiços de Campinas - em sua maioria ocupados pela população negra e pobre da cidade. Em parceria com a COHAB - Companhia Metropolitana de Habitação -, as autoridades locais removeram a população dos cortiços para bairros recém construídos, em regiões bem afastadas do centro. Neste contexto, foi criada a Vila Castelo Branco. Anos mais

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tarde, seus moradores fundariam a Associação de Moradores da Vila Castelo Branco, a qual, através de um concurso promovido na comunidade, passou a ser chamada de Casa de Cultura Tainã. A Casa de Cultura Tainã é uma entidade cultural e social sem fins lucrativos, cuja missão é possibilitar o acesso à informação, fortalecendo a prática da cidadania e a formação da identidade cultural, visando contribuir para a formação de indivíduos conscientes e atuantes na comunidade2. Segundo o gestor do ponto, a Casa apresenta-se como uma das poucas opções de ação comunitária efetiva no bairro, sendo reconhecida como uma das únicas referencias culturais numa região onde se registram todos os tipos de carências, resultantes da falta de políticas sociais que assegurem a sobrevivência e a qualidade de vida de crianças e jovens. 4. ENTREVISTAS COM OS GESTORES, MORADORES E FREQUENTADORES DOS PONTOS A Cia Sarau possui sede própria desde sua fundação. A viabilização de sua programação, antes de ser tornar Ponto de Cultura, era possível graças a pequenos patrocínios e recursos advindos de editais públicos, incluindo projetos captados na Lei Rouanet. De acordo com a entrevista realizada com o gestor da Cia Sarau, os dois convênios firmados com o Programa Cultura Viva possibilitaram um importante redimensionamento na ação cultural do espaço. O principal benefício teria sido de ordem prática: a aquisição de um piano de cauda e equipamentos técnicos, responsáveis por garantir a reestruturação do espaço e a ampliação dos saraus – que se tornaram mais frequentes. Em uma perspectiva simbólica, o gestor afirma que a articulação entre os Pontos de Cultura da cidade ainda teria contribuído para a desconstrução de preconceitos entre diferentes segmentos da música - como a música popular e o hip hop, por exemplo. Segundo ele, os frequentes encontros com os representantes dos Pontos promoviam este exercício de alteridade ao colocar juntos e no mesmo espaço propostas e projetos tão diversos entre si. Na medida em que o programa criava condições para o encontro entre diferentes linguagens, os preconceitos eram substituídos pelo reconhecimento e respeito pela diversidade. Por fim, destaca o amadurecimento político dos movimentos culturais da cidade em função dos encontros periódicos entre os Pontos de Cultura. Isto, atrelado à conscientização e à integração dos vários movimentos sociais da região, teria promovido um sentimento de pertencimento e de coletividade. Ao final, ainda segundo o gestor, a sensação de estar trabalhando sozinho fora substituída pela ideia de ser parte de um todo. Em relação às dificuldades enfrentadas durante a execução do plano de trabalho, pode-se dizer que os problemas elencados na entrevista reiteram os pontos levantados pela pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2009 e 2011). Assim, além de 2

Extraído de: http://www.taina.org.br/casa.php / (acesso em 28/11/2013). 667

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nunca ter recebido a terceira parcela do primeiro convênio, a burocracia estatal, a falta de preparo dos funcionários da Secretaria de Cultura de Campinas, a ausência de retorno aos e-mails e telefonemas, dificuldades para esclarecer procedimentos na prestação de contas e o atraso do pagamento das verbas, teriam sido os enfrentamentos recorrentes da gestão da Cia Sarau durante os dois convênios. Para conferir outras perspectivas acerca da ação do programa Cultura Viva, foram entrevistados moradores e/ou trabalhadores da comunidade onde a Cia Sarau está localizada. Para tanto, concentramos a abordagem em um raio de até 1km da sede da Cia Sarau. A faixa etária dos entrevistados esteve compreendida entre 21 e 62 anos, sendo 72% do sexo masculino e 28% do sexo feminino. Deste total, 14% confirmaram que conheciam e frequentavam a Cia Sarau, contra 29% que disseram não conhecer e 57% que conheciam, mas nunca havia frequentado suas atividades. Quando perguntado sobre o tipo de vínculo que possuíam com o bairro, 14% responderam que trabalhavam e 86% que moravam no bairro. Quanto ao grau de escolaridade, 7% disseram ter o Primeiro Grau completo, 14% completaram o Segundo Grau, 72% cursavam ou já havia concluído a Graduação e 7% tinham Pós Doc. Em relação à profissão, foram contemplados as seguintes respostas: antropólogo; advogado; ator; comunicador social; dançarina; marceneiro; músico; produtor cultural, sapateiro e sociólogo. Sobre o nível de frequência à atividades culturais, tais como espetáculos de teatro, dança, show, 14% afirmaram que frequentam em média uma vez a cada três meses, outros 58% frequentam uma vez por mês e 28% frequentam uma vez por semana. Quando questionados sobre o que costumavam fazer no tempo livre, foram contempladas as seguintes respostas: animação em 3D; caminhar; ir ao cinema; correr; dormir; encontrar os amigos; fotografar; jogar futebol; pescar; ler. Por fim, foi perguntando aos entrevistados o que eles entendiam por Ponto de Cultura. Do total de pessoas abordadas, 7% afirmaram não conhecerem, contra 93% que afirmaram já terem ouvido falar. Deste total, foram contempladas as seguintes definições: ações de continuidade; intercâmbio de gestão e ação cultural; espaço onde as pessoas conversam, debatem e retornam; problemas burocráticos; incompatibilidade com o sistema; traz benefícios para os moradores; uma coisa genial; projeto que mobiliza as pessoas; ação que promove encontros; estabelece contato com gente de outras classes sociais; um ponto de transversalidade; retrato da comunidade. No sentido de contemplar o ponto de vista de quem foi beneficiado com as ações do Ponto de Cultura, foram aplicadas entrevistas também ao público frequentador da Cia Sarau ao longo de quatro sessões dos saraus. Em sua maioria, o público da Cia Sarau é constituído por acadêmicos e profissionais liberais, sendo 46% residentes no distrito de Barão Geraldo, 40% em outras regiões de Campinas e 14% em outras cidades. A faixa etária dos entrevistados ficou concentrada entre 23 a 63 anos, dos quais 66% do sexo feminino e 34% do sexo masculino. Quanto ao grau de escolaridade, 7% possuíam ensino superior incompleto, 63% graduação e 30% pós

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graduação. No tocante às profissões, foram recebidas as seguintes respostas: antropólogo; advogado; atriz; designer de interiores; economista; engenheiro; engenheiro eletrônico; engenheiro de alimentos; estudante; jornalista; músico; professor; professor de inglês; professor universitário; servidor público federal; zootecnista. Quando questionados sobre como se deslocam até a Cia Sarau, 28% afirmaram que se deslocam a pé ou de bicicleta e 72% de carro próprio. Sobre a frequência às atividades promovidas no espaço, 20% revelaram estar pela primeira vez no espaço cultural, contra 80% que disseram ser frequentadores assíduos. No que diz respeito à frequência à espetáculos de teatro, dança e show, 3% disseram que não costumam frequentar, enquanto 20% frequentam em média uma vez ao ano, 59% em média uma vez a cada três meses e 18% em média uma vez por mês. Em relação ao tempo livre, os entrevistados responderam que normalmente se ocupam com as seguintes atividades: aeromodelismo; artes plásticas; batucar; caminhar; cantar; carpintaria; ciclismo; cinema; fotografia; jogar tênis; ler; nadar; ouvir música; piano; pintura; teatro; tocar violão. Para entender o nível de relação com o espaço, foi pedido aos entrevistados que classificassem a Cia Sarau em até cinco palavras. Entre as classificações, tivemos como respostas: manancial no deserto cultural; simples, alegre, musical; familiar; uma jóia; genial; simples; aconchegante; importante; sui generis; uterino; respeito; valorização música brasileira; orgânico; variado; qualidade e afinidade; descontraído; selecionado; agradável; próximo; caseiro; programa de governo ; caloroso; lugar apaixonante; oportunidade; simplicidade; um jeito de fazer; excelente. Por fim, foi perguntado ao público frequentador o que entendiam por Ponto de Cultura, dois quais somente 7% disseram não conhecer o programa e 93% afirmaram conhecer – exatamente a mesma proporção dos entrevistados da comunidade. Dos 93%, foram dadas as seguintes definições: descentralização da verba; pessoas com projetos e iniciativas culturais financiadas pelo governo; dinheiro na mão de quem sabe fazer; subsídio público para promover atividades culturais; projeto para gestores culturais; grupos que promovem eventos; geração de acesso; programa do governo que cria pontos culturais; espaços de criação e atividades culturais; ideia boa, mas que precisa aprimorar; atividade que gera elo entre artista e público; promove cultura de nível; projeto de incentivo à cultura; apoio financeiro para projetos valiosos; intercâmbio cultural; verba federal para a cultura. A Casa de Cultura Tainã também tornou-se Ponto de Cultura em 2004. Desde sua fundação, a Casa ocupou diferentes espaços públicos da cidade. Por esta razão, sua gestão até 2004 esteve pautada na busca de verba para subsidiar as oficinas promovidas pelo espaço e suprir materiais básicos, tais como produtos de limpeza e papelaria - as contas de água e luz eram de responsabilidade da Prefeitura Municipal de Campinas. De acordo com o gestor da Casa, a verba para suprir estas rubricas advinha principalmente de pequenos patrocínios locais. Por este motivo, a Casa sempre enfrentou problema de falta de condições para a execução de suas atividades.

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Assim como no primeiro Ponto entrevistado, a principal transformação da Casa depois de se tornar Ponto de Cultura segundo o seu gestor, foi de ordem estrutural. Durante os dois primeiros anos do convênio, mesmo contrariando o plano de trabalho aprovado no edital, foi realizada uma grande reforma que envolveu o conserto dos banheiros, a instalação de ventiladores, o retorno do fornecimento de água e luz, a abertura de uma janela na sala dos computadores, a criação de um estúdio com tratamento acústico e a inclusão digital da Casa e de seus colaboradores. Esta investida possibilitou que colaboradores com maior experiência se aproximassem e as atividades promovidas pela Casa fossem numérica e qualitativamente ampliadas. Como resultado instantâneo, o gestor aponta o aumento significativo do alcance de beneficiados, que praticamente dobrou, e a divulgação da ações da Casa que passou a ser reconhecida enquanto referencia nacional na sua atuação – sobretudo pela própria comunidade. No entanto, a despeito do resultado prático da obra, a Casa entrou num período de crise que acarretaria no seu esvaziamento e quase desmantelamento. Ao contrário da Cia Sarau que conseguiu permanecer ativa depois do fim dos convênios, a Casa de Cultura Tainã perdeu seus colaboradores ao fim da primeira gestão. Para o gestor, a principal razão teria sido o enfraquecimento da militância depois que as atividades passaram a ser remuneradas – até então, o oficineiros prestavam trabalho voluntário. Para ele, a chegada da verba teria esvaziado um ideal compartilhado. Já de acordo com as entrevistas com a comunidade e ex-colaboradores, a centralização da gestão e a falta de transparência na aplicação do recurso teriam sido as principais razões para o seu enfraquecimento. Segundo ex-colaboradores, a despeito das reuniões gerais que envolviam todos os monitores das oficinas serem frequentes, a pauta se resumia em comunicar as decisões do gestor sobre os próximos encaminhamentos. Tal instabilidade interna levaria a Casa a não mais oferecer atividades em sua sede a partir de 2006. Assim, no lugar de ter sua ação ampliada, a Casa de Cultura Tainã perdeu seus colaboradores e passou a realizar pequenos projetos de forma pontual. No tocante às dificuldades da administração do Ponto, o gestor aponta como principal problema a burocracia no trato estatal. Segundo ele, a noção de gestão compartilhada não estava presente entre Estado e Ponto de Cultura e, portanto, jamais poderia ser exigida na gestão do Ponto. Depois, a ausência de comunicação com o poder público teria sido o principal impeditivo para a realização das atividades propostas no plano de trabalho. Segundo o gestor, inúmeros contatos foram feitos com a Secretaria de Cultura de Campinas e com o Ministério da Cultura para esclarecer dúvidas simples, porém decisivas para a continuidade do projeto. Por fim, fez críticas à exigência da prestação de contas, já que para ele o que deveria ser avaliada é o resultado das ações empreendidas no projeto e não o que e quanto se gastou. A abordagem aos moradores e/ou trabalhadores da Vila Castelo Branco também ficou concentrada num raio de 1km de distância da Casa de Cultura Tainã. A faixa etária dos entre-

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vistados variou entre 22 e 85 anos, dos quais 85% eram do sexo feminino e 15% do sexo masculino. Deste montante, todos afirmaram conhecer a Casa, sendo que 73% afirmaram já terem frequentado atividades contra 23% que nunca frequentaram. A respeito do tempo de moradia ou trabalho na Vila Castelo Branco, 12% responderam que trabalham e moram no bairro, outros 12% que trabalham, mas não mora, e 76% que moram e não trabalham. Em seguida, observa-se um claro contraste aos entrevistados do primeiro Ponto de Cultura no que se refere ao grau de escolaridade, profissão e frequência à atividades culturais. De acordo com o que foi apurado, 23% possuíam o primeiro grau completo, 8% o segundo grau incompleto, 19% o segundo grau completo e 50% preferiram não responder. Sobre a profissão, foram contempladas as seguintes respostas: atendente de padaria, arte-educador, batuqueiro, professor, professor particular de língua portuguesa, músico, aposentados. Em se tratando da frequência à atividades culturais, 19% confirmaram frequentar pelo menos uma vez por mês, 31% uma vez a cada três meses em média, 12% pelo menos uma vez a cada seis meses e 38% não frequentam. A respeito sobre o que costumam fazer no tempo livre, foram contempladas as seguintes respostas: andar de bicicleta, tocar com a banda, costurar, pintar, fazer ginástica, cozinhar, caminhar, dançar, navegar na internet, participar de passeios promovidos pelos projetos sociais, frequentar as atividades oferecidas pelo “Sistema S” (mencionados SESI e SESC). Por fim, o entendimento sobre Ponto de Cultura revelou que apenas 15% dos entrevistados desconheciam esta vertente do Programa Cultura Viva, contra 73% que afirmaram conhecer e 12% que preferiram não responder. Dentre as definições do que é um Ponto de Cultura, foram contempladas as seguintes respostas: casa de cultura; ponto que aglomera atividades culturais; espaço de cultura; ponto de encontro entre pessoas e práticas; recinto que pode realizar atividades voltadas para a arte e cultura; lugar de convivência; espaço para dividir saberes; arte e social juntos; reunião das capacidades múltiplas de uma comunidade, espaço comunitário, casa de todos os moradores. As entrevistas aos frequentadores e colaboradores da Casa de Cultura Tainã ficaram restritas a profissionais e beneficiados que atuaram na Casa entre 2004 e 2008. A ausência de realização de atividades somado à resistência em falar sobre a relação com a Casa de Cultura Tainã, restringiu o contingente entrevistado em menos da metade do contingente entrevistado no primeiro ponto. A faixa etária esteve concentrada entre 16 a 28 anos entre os alunos e de 19 a 37 anos entre os colaboradores – idades correspondentes à época do contato com o Ponto de Cultura. Deste total, 38% eram do sexo feminino e 62% do sexo masculino. Quando perguntado sobre o grau de escolaridade, 84% afirmaram possuir o segundo grau completo, 8% o ensino superior incompleto e outros 8% o ensino superior completo. Aqui também nota-se um contraste com os frequentadores do primeiro Ponto de Cultura, onde 63% teriam graduação. No tocante às profissões, os entrevistados deram as seguintes respostas: educador, arte-educador, educado-

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ra-social, batuqueiro, músico e terapeuta ocupacional. Quanto ao tipo de relação que tinha com o bairro, 38% disseram ser moradores e 62% em bairros vizinhos. Quando perguntado como se deslocavam até o Ponto de Cultura, 84% afirmaram que faziam o trajeto a pé, 8% de bicicleta e apenas 8% de carro – contrastando com os 72% da Cia Sarau que afirmaram ir de carro próprio. Sobre a frequência às atividades promovidas pela Casa de Cultura Tainã à época do convênio, 46% afirmaram frequentar em média três vezes por semana, 16% pelo menos uma vez por semana e 38% pelo menos uma vez por mês. No que diz respeito à frequência à atividades culturais, 23% disseram frequentar, uma vez ao ano, 46% uma vez a cada três meses e 31% uma vez por mês, em média. Sobre como costumam ocupar o tempo livre, foram contempladas as seguintes respostas: praticar esporte, artes marciais, capoeira, banda, BMX (modalidade esportiva com bicicleta), ouvir música, ir ao shopping, estudar, ir ao cinema, ficar com família e amigos, assistir televisão, jogar vídeo-game, tocar bateria, caminhar, ler. Quando perguntado como classificavam a Casa de Cultura Tainã, foram dadas as seguintes respostas: uma escola; segunda casa; espaço de convívio da comunidade; ponto de partilha de conhecimento; lugar de aprendizado e fortalecimento; respeito; valorização da negritude; conhecimento e prática; reconhecimento do papel social de cada um; força coletiva; ação social, cultural e artística. Por fim, sobre o que entendiam por Ponto de Cultura, tivemos como respostas: transformação; espaço de valorização da cultura; conhecimento e evolução; local de reconhecimento e respeito à cultura; a comunidade inteira; lugar em que as pessoas tem prazer em ir; casa de convívio comunitário. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa se propôs a verificar alguns dos impactos sociais, culturais e humanos das ações propostas no Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva. A partir de estudos teóricos sobre políticas culturais e da observação empírica em duas comunidades da cidade de Campinas-SP, procurou-se averiguar como os agentes envolvidos nas ações dos Pontos de Cultura enxergam as transformações locais a partir da implementação dos Pontos. Buscou-se, ainda, verificar como o programa atua na construção de uma política plural e inclusiva, em favor de uma democracia cultural. Criado em 2004 na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, o Programa Cultura Viva rompeu com um pensamento neoliberal - predominante nas gestões políticas brasileiras na década de 1990 -, onde a produção cultural esteve pautada em práticas universalizantes e homogeneizadoras. A partir de 2004, o Ministério da Cultura aposta na construção de uma política nacional de cultura por meio da legitimação e promoção da diversidade cultural. Para tanto, fundamentado em um entendimento antropológico de cultura, seu discurso oficial passa a orientar diretrizes que tomam por base a articulação de três dimensões da cultura: simbólica, econômica e cidadã.

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Através do reconhecimento e potencialização de inúmeras iniciativas da sociedade civil, o programa Cultura Viva reconheceu e incorporou diferentes atores sociais que constituem as identidades brasileiras. No entendimento desta pesquisa, este reconhecimento e incorporação atuam na construção de novas práticas de convívio em que se reconhece as qualidades de uma sociedade notadamente plural e heterogênea, como a brasileira. Como sugere o pensador argentino Néstor Garcia Canclini, diversidade não no sentido de igualdade homogeneizante, (...) mas em seu poder constituinte de consolidação de sociedades efetivamente democráticas, o que significa reconhecer que o modo de produção do social se dá a partir de relações de negociação, conflito e trocas recíprocas. (CANCLINI: 2004,15). Neste sentido, foram realizadas pesquisas de campo em dois Pontos de Cultura da cidade de Campinas, incluindo entrevistas com os gestores, colaboradores, frequentadores e moradores/trabalhadores de duas comunidades. A primeira necessidade observada nas entrevistas com os dois gestores foi a urgência da fala. Ou a busca pela escuta. A despeito de ambos reconhecerem e reiterarem a potência do programa, os dois reconhecem que os resultados alcançados poderiam ser muito mais significativos se houvesse mais escuta por parte dos representantes públicos. De certa forma, as limitações apontadas nas duas entrevistas reiteram o que as pesquisas realizadas pelo IPEA (2009, 2011) revelaram. No caso da Cia Sarau e da Casa de Cultura Tainã, os principais problemas enfrentados durante os convênios poderiam ser sintetizados nos seguintes tópicos: a) Problemas de comunicação com os agentes da Secretaria de Cultura de Campinas e do Ministério da Cultura; b) Despreparo da equipe da Secretaria de Cultura de Campinas: os gestores relataram que tiveram documentos perdidos, inserção de formulário de outro Ponto de Cultura na prestação de contas do seu projeto, além da equipe demonstrar uma total falta de informação sobre quais encaminhamentos deveriam ser investidos; c) Problemas de comunicação entre os demais Pontos de Cultura da cidade, o que aumentava as dificuldades de resolução de problemas que poderiam ser compartilhados; d) O atraso no pagamento das parcelas, comprometendo o cronograma de trabalho proposto e obrigando os gestores a atrasarem os compromissos firmados com colaboradores alunos e públicos; e) O não pagamento da terceira parcela do primeiro convênio (nos dois Pontos de Cultura), impedindo a execução dos planos de trabalho. A despeito das dificuldades, os dois gestores reconhecem que o recurso disponibilizado pelo programa, mesmo quando não repassado em sua totalidade, foi determinante para uma profusão das ações promovidas pelos Pontos. Isto pôde ser comprovado tanto na reforma estrutural

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e na aquisição de bens materiais, como no redimensionamento das atividades realizadas pelos dois Pontos, seja através da contratação de profissionais mais preparados, no aumento na frequência de atividades, no maior alcance de beneficiados. Outra contribuição da pesquisa, foi a desconstrução de um certo imaginário de que os Pontos de Cultura teriam 1) como ação principal as manifestações denominadas populares; 2) com foco nas populações de baixa renda; 3) e contemplariam, majoritariamente, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social. As entrevistas com os frequentadores e moradores/ trabalhadores do Ponto de Cultura Cia Sarau comprovaram o contrário. Com uma programação de saraus musicais, o Cia Sarau tem como público majoritário profissionais liberais com curso superior completo e que se deslocam, em sua maioria, com automóveis próprios. Nota-se aqui o quanto a ação do programa pode ser abrangente e diversificada. Outra questão que as entrevistas revelaram é a desconstrução do pressuposto de que pessoas com maior grau de escolaridade (e, por dedução, com maior renda per capita) frequentem programas culturais com mais assiduidade. Como se observou, embora a grande maioria dos entrevistados da Casa de Cultura Tainã tenha grau de escolaridade inferior quando comparado aos entrevistados do primeiro ponto, o nível de frequência anual a atividades culturais é superior aos entrevistados da Cia Sarau. Isso pode sugerir que a fruição e a produção de bens culturais é fortalecida por noções como identidade e pertencimento – o que, diga-se, opõe-se como conceito e como prática da idéia de “consumo de cultura” que parece nortear as políticas culturais anteriores ao Cultura Viva. O grau de escolaridade pode criar condições favoráveis na facilitação do acesso à cultura, mas não parece determinar sua frequência. Também em ambos os casos há um reconhecimento por parte do público beneficiado acerca da importância social e cultural das ações dos Pontos em suas respectivas comunidades. Isso fica evidente na questão sobre o que entendem por Ponto de Cultura, onde as noções de política cultural e política de Estado são evidentes nas respostas dos entrevistados da Cia Sarau, enquanto identidade, pertencimento e comunidade constituem como pano de fundo das respostas sobre a Casa de Cultura Tainã). Baseado nestes e em outros dados que não caberiam neste artigo, as reflexões levantadas neste estudo confirmam a hipótese sobre o Programa Cultura Viva atuar como uma política pública de promoção à diversidade cultural. A despeito dos muitos problemas que o programa comprovadamente possui, é preciso reconhecer os significativos avanços que o mesmo promoveu na emancipação de pessoas, manifestações e comunidades que, antes, viviam à revelia do Estado. Para tanto, basta lembrar que não existe um modelo padrão de Ponto de Cultura e do quanto isto favorece para uma diversidade de instituições e manifestações serem contempladas no programa. De certo, há muitos desafios pela frente. E isso, sem dúvida, é de se celebrar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Ministério da Cultura (MinC). Cultura Viva: Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania. Brasília, 2004. CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. CANCLINI, N. Diferentes, desiguales y desconectados: mapas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa, 2004 IPEA. Cultura viva: as práticas de pontos e pontões. Ipea/Coordenação de Cultura. Brasília: Ipea, 2011. ARAÚJO, Herton E.; BARBOSA, Frederico A. B. (Org.). Cultura Viva – avaliação do programa arte, educação e cidadania. Brasília: Ipea, 2010. RUBIM, Antonio Albino Canelas; ROCHA, Renata (Org). Políticas Culturais. Salvador: EDUFBA, 2012. WU, Chin-tao. A privatização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2006.

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DIAGNÓSTICO SITUACIONAL DA CULTURA E POLÍTICA CULTURAL DO MUNICÍPIO DE UIRAMUTÃ – RR Dayana Soares Araújo Paes1 Lindinaia Perereira Melquior2 Omério Cavalcante de lima3 RESUMO: O presente artigo contempla inicialmente um diagnóstico da cultura local do município de Uiramutã, apontando assim características da economia local, patrimônio histórico, natural, material e imaterial para compreender a dinâmica do cotidiano. Posteriormente segue uma análise sobre de que forma ocorre a gestão pública cultural deste lugar. Para isso, foram realizadas entrevistas com moradores da região, onde parte deles são indígenas, visitas a pontos importantes da região, bem como pesquisas bibliográficas e documentais. Após as vivências e observações, percebemos que mesmo com tanta diversidade cultural, a política pública cultural de Uiramutã precisa se estruturar para que ocorra uma boa gestão de forma a atender às demandas dos povos indígenas desta região. PALAVRAS-CHAVE: política cultural; diagnóstico situacional; Uiramutã

1. INTRODUÇÃO Em Boa Vista-Roraima foi oferecido um curso de extensão em Gestão Cultural, realizado pela Universidade Federal de Roraima em parceria com o Ministério da Cultura. Neste, os participantes foram divididos em grupos para realizar um diagnóstico inicial da cultura nos municípios e, nosso grupo, foi contemplado com Uiramutã. Desta forma, apresentaremos alguns recortes da pesquisa que fizemos por meio de uma breve descrição histórico-geográfica, características da economia local, cultura e patrimônio histórico, natural, material e imaterial. Para tanto, realizamos entrevistas com autoridades locais, artesões e pessoas que vivem há muito tempo na região, trazendo relatos importantes que contribuem para compreender a vida cotidiana no município. Além disso, consultamos documentos e visitamos diversos locais para compreendermos as potencialidades do município do ponto de vista da cultura e do patrimônio. Mestranda no programa de pós-graduação Sociedade e Fronteiras(UFRR), Professora do Curso de Artes Visuais da UFRR, conselheira no Conselho Estadual de Cultura de Roraima - [email protected]. 2 Licenciada em pedagogia; gestora cultural do município de Uiramutã- [email protected] 3 Gestor cultural do município de Uiramutã - [email protected] 1

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Pudemos perceber que, apesar da diversidade cultural e patrimonial do município, a gestão da cultura por parte do governo municipal ainda precisa se estruturar, principalmente do ponto de vista das políticas públicas. Esperamos que este trabalho possa contribuir para a gestão cultural de Uiramutã, tendo em vista o que coletamos, observamos e percebemos. Apesar disso, reconhecemos que há um longo e gratificante caminho a percorrer para que as políticas públicas culturais do município aconteçam de forma a engrandecer a cultura local e sua população. 2. METODOLOGIA O presente artigo se baseia em uma pesquisa qualitativa hermenêutica4 de caráter exploratório, que se utilizou de diferentes abordagens e técnicas, com análise documental de fontes primárias e secundárias, entrevistas semiestruturadas e estudo de campo, pois, de acordo com Flick (2004, p. 22), “a pesquisa qualitativa não se baseia em um conceito teórico e metodológico unificado”. Num primeiro momento, reconhecemos a importância de consultar os documentos oficiais, para partir deles direcionar o nosso olhar. Aqui elencamos a legislação e outros documentos relevantes que tratam da cultura e das políticas culturais nas diversas esferas do poder público. Em seguida, vislumbramos a possibilidade de aprofundar certos conceitos por meio da bibliografia especializada. Interessou-nos particularmente definir as ideias de patrimônio cultural natural, material e imaterial e política pública de cultura. Além disso, procuramos entender questões específicas no âmbito da gestão, como a gestão cultural, o Sistema Nacional de Cultura e os órgãos gestores da cultura. Num terceiro momento, planejamos dois estudos de campo ao município de Uiramutã. Neles, pudemos vivenciar minimamente o que é estar no município percorrendo e interagindo com a diversidade patrimonial. Entrevistamos moradores, visitamos locais considerados sagrados, avistamos construções e monumentos simbolicamente relevantes, comemos e bebemos da culinária local, entre outras vivências que tornaram possível compreender um pouco mais da importância deste artigo para pensarmos a gestão cultural do município. A fundamentação teórica deste artigo se encontra nas respectivas seções, de forma que poderemos dialogar os diversos assuntos abordados com os conceitos e categorias de análise nos locais adequados.

“a perspectiva hermenêutica dá conta de que a experiência humana está atrelada ao contexto sociocultural e que é difícil conceber uma linguagem nas ciências sociais que exclua este contexto, quer seja pelos valores do pesquisador, quer pelos do grupo estudado”. (GONDIM, 2003, p. 150).

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3. BREVES APONTAMENTOS DA HISTÓRIA E DO PERFIL SOCIOECONÔMICO DO MUNICÍPIO O município de Uiramutã, antes denominado Vila do Uiramutã, pertencia ao município de Normandia, sendo emancipado em 1995 (FREITAS, 2009). No mapa da divisão municipal de Roraima (figura 1), localizamos o município no ponto mais setentrional do Brasil, nordeste do estado, local que compõe a tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Boa Vista dista 330km do Uiramutã, que possui 8.065,56 km2, dos quais aproximadamente 98% desta área pertencem à Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (figura 2). A porcentagem restante é formada pelo núcleo urbano uiramutense, “isolando-o” dentro da reserva. Figura 1: Divisão municipal do estado de Roraima

Figura 2: Identificação das áreas indígenas do estado de Roraima

Fonte: SILVA (2007, p. 166) Fonte: SILVA (2007, p. 172)

Esta situação peculiar revela alguns dados interessantes quanto à demografia local, formada por 8.375 habitantes, segundo o IBGE (2010), sendo que a população urbana é de 1.138 habitantes e a rural é de 7.237 habitantes. Assim, considerando a elevada porcentagem da população rural e o contexto territorial marcado pela presença da Terra Indígena Raposa-Serra do

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Sol, não surpreende que 7.382 habitantes sejam identificados como indígenas (IBGE, op. cit.), aproximadamente 88% da população residente. A característica da população atual, sobretudo na classificação do IBGE por cor ou raça, nos remete à ocupação humana originária da região, muito antes da ocupação pelos europeus e da emancipação municipal. Uiramutã é considerado o município roraimense com a maior porcentagem de população indígena em relação ao total de habitantes. No município, esta população é subdividida em vários povos como Macuxi, Ingaricó, Patamona, Taurepang e Wapixana. Por volta de 1914, a Igreja Católica passou a realizar suas atividades religiosas com os povos. Desde então, percebemos a influência desses novos saberes e doutrinas presentes no local, visto que a maior parte da população professa esta religião. É justamente dos missionários católicos que temos os primeiros relatos que registram a população, as atividades econômicas e a chegada de outros imigrantes. As crônicas de viagens e os diários se tornaram fontes importantes para a compreensão do surgimento da vila, e depois município, em suas origens. Segundo Silva (2007), o garimpo é a primeira atividade econômica praticada por não indígenas a partir da década de 1920, com crescimento até o auge da atividade na localidade da década de 1940. O autor ressalva que “a atividade garimpeira não significa povoamento definitivo” (SILVA, 2007, p. 111), mas certamente temos os resquícios das primeiras aglomerações, como é exemplo a vila de Uiramutã, onde hoje é a sede do município. Após este impulso inicial, o estado de Roraima e seus municípios produtores de ouro, como é o caso de Uiramutã, passaram por mais dois períodos de intensa atividade garimpeira até o declínio final na década de 1990, quando diversos fatores convergem para desencorajar a prática em grande escala, como: maior fiscalização por parte da Polícia Federal e demarcação de terras indígenas. Outro fator de extrema relevância para o contexto histórico-social do município foi a chegada dos fazendeiros que se dedicaram à criação de gado bovino. Com isso, algumas famílias indígenas passaram a trabalhar para esses fazendeiros e, conforme o tempo foi passando, as terras indígenas foram sendo tomadas pelo gado. Houve épocas de grandes conflitos para que esses proprietários saíssem das terras e mais tarde deu-se início aos processos de demarcação das terras indígenas. Atualmente podemos observar que, mesmo com a saída dos fazendeiros do município, a população aprendeu a lidar com a criação de gado e hoje a carne bovina faz parte da culinária de Uiramutã. Um fato importante a ser exposto é o “memorial da aliança de amizade do marechal Cândido Rondon com os povos de Uiramutã”. Por volta de 1928, o marechal Rondon, que demarcava as fronteiras do Brasil com os países vizinhos, esteve em Uiramutã e deixou um sabre como memorial de aliança de amizade com o povo Macuxi. Atualmente este sabre está sobre a guarda de Dona Avelina Pereira, uma indígena macuxi nascida na Comunidade Maturuca, mas resi-

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dente na Comunidade Ticoça, fundada por seu esposo Lauro Melquior, em 1977. Durante uma entrevista, ela nos relatou algumas histórias que recorda de sua infância acerca do episódio5. [...] Por volta de 1928, Tuxaua Amijor mandou o jovem Merequior ir com os padres pela Guiana para ir pra Manaus passar um ano pra aprender a cultura dos brancos. Aí os padres mandaram recado pra fazer pista grande pra pousar avião que ia trazer o exército e o chefe deles... Tuxaua Apá chamou os tuxauas e comunidades do Maracanã, Uiramutã, Pedra Branca e Lilás pra trabalhar e depois receber os brancos que iam chegar na comunidade. Em 1930, aí veio comitiva do marechal Cândido Rondon (dono da espada), os padres do Brasil e Merequior... os padres reuniram o povo cedo pra rezar missa, aí colocaram Merequior que tinha aprendido ser branco pra ser Tuxaua no lugar do tuxaua velho Apá Amijor. O Marechal falou pro povo e tirou sua roupa (farda), sapato e cinto e colocou no Merequior e deu a espada como símbolo de amizade com as comunidades indígenas da região. O Tuxaua vestia a farda nas reuniões e no domingo pra ir pra missa e visitar os parentes. O capataz Oscar vestia a roupa do Merequior na ausência dele. Já na velhice ele passou o cargo pro filho Lauro Melquior e pra simbolizar o ato repassou a espada do Marechal Rondon pra o mesmo e recomendou que este ato se repetisse toda vez que mudasse de tuxaua na comunidade. [...] o quartel já veio varias vezes aqui pra ver a espada e cantar hino do Brasil na comunidade. Daí vai ser repassada pro meu neto Milton Melquior, quando eu me for. Devido à importância que é dada à espada guardada pela Dona Avelina, o Exército Brasileiro, por intermédio do 6º PEF/7º BIS6, realiza anualmente um evento cívico-militar, como cerimônia de repasse da espada, e parada militar. Finalizando esta seção, destacamos que as comunidades apresentam certa vocação para a pecuária bovina de corte, cuja criação é extensiva, prática herdada pelos antigos fazendeiros. Além disso, as propriedades naturais e culturais do município podem vir a transformá-lo num expressivo polo turístico, representando sua principal potência econômica. Outra atividade que gera trabalho e renda é a produção e comercialização do artesanato, que será exposto adiante. O mercado local de Uiramutã é movimentado pelos recursos oriundos de benefícios sociais como o Programa Bolsa Família, Crédito Social, aposentados, pensionistas e salário maternidade rural, provento de salários de servidores federais, estaduais e municipais, e recursos oriundos da Guiana, pois toda a área de fronteira faz compra dos produtos da cesta básica em Uiramutã. A agricultura sempre foi de subsistência, trabalhada de forma coletiva e familiar com o cultivo principalmente da mandioca, que é a base de alimentação, feijão, milho, cará, banana, batata e mamão. Além disso, diversos programas governamentais, ligados à produção e distri5 6

Entrevista concedida por dona Avelina Pereira aos autores deste trabalho, em setembro de 2015. 6º Pelotão Especial de Fronteira/7º Batalhão de Infantaria de Selva, instalado no município desde 2002.

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buição de alimentos impulsionam a produção local, gerando trabalho e renda para os moradores do município. 4. A CULTURA NO MUNICÍPIO 4.1. Estruturação da política cultural no município Hoje a gestão da cultura é feita pela Secretaria de Educação, Cultura e Desportos. O município ainda está na fase inicial na institucionalização e implementação do Sistema Municipal de Cultura. Não foram criadas as leis municipais, plano de trabalho e gestão específica de cultura, mas já estão em discussão projetos de lei para criação de todo o aparato dos órgãos municipais de cultura. Por enquanto, a cultura figura apenas na Lei Orgânica de Uiramutã, conforme o artigo 157 (Uiramutã, 1998, p. 34): DA CULTURA E DO PATRIMONIO HISTORICO E CULTURAL Art. 157 - O Município no exercício de sua competência: I - apoiará as manifestações da cultura local; II - protegerá por todos os meios ao seu alcance obras, objetos, documentos e imóveis de valor histórico, artístico, cultural e paisagístico. Art. 158 - Ficam isentos do pagamento do imposto predial e territorial urbano os imóveis tombados pelo Município, em razão de suas características históricas, artística. Como ações de cunho de valorização cultural baseadas em políticas públicas, podemos citar o ensino da língua materna dos povos indígenas locais na educação básica, tanto na rede municipal quanto na estadual. Além disso, são trabalhadas nas escolas as artes cênicas, artesanato e feiras culturais, que reivindicam as tradições dos povos originários da região. Para além da esfera governamental, as organizações indígenas trabalham e lutam em defesa da cultura local, a saber: a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIRR), que luta por uma educação diferenciada, respeitando valores locais (língua, arte, cultura, tradições, culinárias etc); o Conselho do Povo Indígena Ingaricó (COPING), que também defendem a mesma causa, contudo acrescentam os saberes, expressões e artesanatos, principalmente cestarias, como fonte de geração de renda; o Conselho Indígena de Roraima (CIRR), que é a maior organização dos direitos indígenas, e também vem incentivando e apoiando ações culturais no município; a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (SODIURR), que também apoia ações culturais; a Associação do Fórum de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável de Uiramutã (AFDU), uma organização de interesse público que apoia ações voltadas para a educação, saúde, geração de renda, empreendedorismo, cultura e meio ambiente, cujo tema também é muito discutido no Fórum de Agricultura Familiar de Uiramutã.

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No município de Uiramutã, apesar da diversidade cultural, como a cultura nordestina e a trazida pela Igreja Católica, predominam as culturas indígenas, porém as políticas de incentivo ao desenvolvimento cultural ainda não estão efetivadas como políticas de governo municipal e a sociedade não tem o “valor cultural” como resgate de cidadania, inclusão social, fonte de renda e postos de trabalho. Por isso, apontamos a necessidade de paulatinamente sensibilizar, incentivar, criar, organizar e implementar as políticas da cultura. 4.2. Identificação dos elementos culturais que caracterizam o município7 4.2.1. Patrimônio cultural natural Uiramutã está situado no extremo norte de Roraima, cujas paisagens da chamada terra de Macunaima possuem beleza cênica surpreendente. Esta singularidade cênica possui enorme potencial turístico, principalmente pelas serras e cachoeiras, com piscinas naturais possibilitando a prática de turismo ecológico. O município se localiza no planalto das Guianas, região de serras onde há muitos desníveis. Os rios e igarapés formam muitas cachoeiras e corredeiras. As mais acessíveis e visitadas são as cachoeiras: Banho do Paiuá, Sete Quedas, Urucá e Rebenque. As formações geomorfológicas que despertam mais interesse são: o Monte Caburaí, ponto mais setentrional do Brasil, localizado onde se encontra a nascente do rio Uailã; a Serra do Sol, com 2.370m de altura, e o Monte Roraima, com 2.875m. Todas ficam dentro do Parque Nacional do Monte Roraima, onde vive o povo Ingaricó. 4.2.2. Patrimônio cultural material Por patrimônio cultural material reconhecido pela população, temos a Biblioteca Pública Municipal, Ginásio Poliesportivo, Praça Pública, Igrejas e Malocas Indígenas. A biblioteca é mais frequentada pelos alunos e professores das escolas. Esta também é aberta para a população e possui espaços para pesquisas e realização de projetos. No momento, existe o projeto infantil denominado de “Cantinho da Leitura” e “Cantinho dos Números”. Como o futebol é muito praticado por toda comunidade, o ginásio é bastante frequentado e também utilizado para a realização dos eventos locais. Em outros momentos, a Praça Mariano Rufino foi mais frequentada, quando, por exemplo, havia a feira de produtos agrícolas, mas atualmente a feira não acontece mais. Apropriando-nos de Teixeira, Pozzi e Silva (2012, p. 17), “o patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto de saberes fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à história, a memória e a identidade desse povo”. Assim, todo patrimônio brasileiro faz parte da história da construção da sociedade e transmite para as gerações futuras o conhecimento Partimos da definição da Constituição Federal de 1988: “Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]”. 7

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do passado da humanidade, fortalecendo a identidade de um determinado grupo social através de simbologias de valor cultural. O Catolicismo, como citamos acima, foi introduzido em 1913 por missionários beneditinos, conforme Freitas (2014, p. 120), o qual é predominante no município e na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Destacamos a Igreja Sagrado Coração de Jesus na Comunidade Maturuca, como templo central de todas as Igrejas, mas também há em outros locais, como as localizadas em Willimon, Makuquem, Pedra Branca etc. Há também evangelização por parte das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus de Roraima, Assembleia de Deus de Madureira, Assembleia de Deus de Minas Gerais, Adventistas do Sétimo Dia, Testemunhas de Jeová, Mundial do Poder de Deus e Igreja Missionária Indígena. Construções indígenas também são consideradas patrimônios culturais, pois as paredes são feitas de madeira e cipó revestido com barro, e a cobertura é de madeira com palha de Buriti, que ainda é muito comum o uso dessas moradias nas comunidades. Figura 3 - Memorial da homologação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.

Figura 4 - Urna funerária

Fonte: fotografia de Alê Brum, 2015.

Fonte: fotografia de Dayana Soares, 2015.

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Há também o Monumento do Memorial da Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol na Comunidade Maturuca (figura 3), feito pelos artistas plásticos Bartô e Máximus, em 2007. Segundo Dionito José de Souza, 48 anos, residente em Maturuca desde sua infância, ex-coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIRR) no período de 2007 a março de 2011, o monumento “foi um presente para os tuxauas relembrarem a luta e o sofrimento das comunidades”. 8

4.2.2.1. Sítios arqueológicos em uiramutã: urnas funerárias e sítios cerimoniais A expressão Rue’ penaron é conhecida na língua macuxi como lugar antigo e muito respeitado pelos detentores dos conhecimentos tradicionais onde são encontrados vestígios ancestrais. Vale ressaltar que esses lugares sagrados não são de livre acesso para qualquer pessoa da comunidade, pois eles podem ser também espaços que no passado aconteceram guerras entre povos diferentes, ou lugares de antigos aldeamentos, visto que se encontram vestígios humanos de interesse arqueológico e vestígios de cerâmicas, cestarias e utensílios de caça, elementos identitários de um determinado grupo que ocupou esse espaço. A importância do sítio arqueológico de urna funerária (figura 4) para os indígenas não é apenas a quantidade de materiais que podem ser encontrados, nem o estado de conservação dos objetos identificados, mas o valor e significado que eles assumem para os grupos indígenas, como uma continuidade simbólica no processo de ocupação da terra (MARQUES, 2009, p. 35). Adotando a definição de Martins (2008, p. 72), “sítio arqueológico é o local onde são encontrados os vestígios de ocupações antigas”. Sendo assim, o município é vasto em sítios arqueológicos de cemitérios indígenas, pinturas e desenhos rupestres. Destacamos as urnas funerárias indicando a forma de sepultamento pelos indígenas antes da chegada dos missionários beneditinos. Era escolhido um local, como caverna ou pedras inclinadas, e colocavam seus parentes dentro de urnas de cerâmica onde o sol nem a chuva pudessem deteriorar por completo os cadáveres. Existem várias pinturas e gravuras rupestres que, por vezes, podiam indicar um local de caça, localização de endereço etc. Há também lugares considerados sagrados pelos nativos, como Chefe do Rato, Chefe do Veado, Chefe do Catitu na serra do Pacará, Chefe da Cutia e outros locais que não podem ser visitados sem autorização, pois exige um ritual de purificação para chegar a esses locais. Encerramos esta parte do nosso trabalho, ao mesmo tempo em que foi o ponto de partida para nossas argumentações nesta seção, com as definições do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-RJ) (2006, p. 26): Em 11 de dezembro de 1998, o Ministro da Justiça, Renan Calheiros, assina a Portaria 820/98, que declara a Terra Indígena Raposa Serra do Sol – TIRSS posse permanente dos povos indígenas, em área contínua. Em 18 de abril de 2005, foi revogada a Portaria 820/98 pela Portaria 534/05 em que o Presidente da Republica Luiz Inácio Lula da Silva assina e homologa a demarcação pelo Decreto de 15 de abril de 2005.

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a) As jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunho da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, monte artificial ou tesos poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias e quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significados idênticos a juízo da autoridade competente. b) Os sítios nos quais se encontra vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios tais como grutas, lapas e abrigo sob a rocha; c) Os sítios identificados como cemitérios sepulturas ou locais de pouso prolongados ou de aldeamento, ”estações” e “cerâmico”, nos quais se encontra vestígios humanos de interesse arqueológicos ou paleoetnográfico. d) As inscrições rupestres ou locais de suco de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividades de paleoameríndios. Assim, ressaltamos que deve haver um grande esforço para identificar e catalogar estes sítios, para que eles sejam reconhecidos oficialmente como patrimônio e recebam a devida preocupação na preservação e respeito às comunidades locais. 4.2.3. Patrimônio cultural imaterial 4.2.3.1. Artesanato Com os recursos naturais da região, existe a produção do artesanato, que abrange uma variedade de artefatos e objetos (figura 5). Como matéria-prima tem a fibra da palha do buriti, cipós de arumã, titica e jacitara, utilizados para a confecção de cestarias, vestimentas, utensílios domésticos decorativos, biojoias, adeFigura 5: Artesanato dos povos indígenas de Uiramutã reços para danças etc. Há as sementes usadas majoritariamente para fazer colares, pulseiras e brincos. A madeira serve para fazer utensílios de cozinha, como, por exemplo, colher de pau, remo, canoas, bandejas etc. A argila é usada para a fabricação de cerâmica, como panelas de barro, pratos, potes etc. Além disso, existem pinturas usadas nas cestarias, cerâmicas e no corpo. Cada povo tem sua forma de produção, Fonte: fotografia de Dayana Soares, 2015. contudo, devido ao contato entre os povos indígenas e não indígenas, muitos hábitos passaram por transformações tanto na estética visual, quanto na maneira de produzir.

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O povo ingaricó é formado por exímios artesãos, que possui no trançado um dos elementos mais expressivos de sua cultura. Belíssimos cestos de cipó titica e fibra de arumã, com uma variedade de trançados, são confeccionados pelos homens e têm múltiplas funções. Além das combinações de cores, formas e tamanhos valorizarem as peças, o material é enriquecido ainda mais quando lhes são agregados elementos de matizes iconográficos. Há também o primoroso chapéu de cipó, um tipo tradicional de sandália pïta pi’pï, colares mo’mo e bolsas pakara, taimé. Os dois últimos artefatos podem ser confeccionados pelas mulheres, mas sua produção costuma ser de peças de tamanho bem pequeno. Parece haver entre os Ingaricó a noção de que os grandes artesãos são homens, e assim cabe às mulheres um papel secundário nessa atividade. 4.2.3.2. Tradições A medicina tradicional ainda é muito utilizada para tratamento de úlceras, sarnas, dores musculares, inflamações. Além destas, há pajés e curandeiros, que ainda seguem suas tradições e rituais, exemplificados mais adiante. As danças também estão presentes entre os povos, nas quais se destacam a parixara, tucui e ximidim. Na entrevista realizada com Quésia Pereira da Silva, da Maloca do Uiramutã, tivemos o relato de que esses três termos são usados para dançar e cantar durante eventos que ocorrem nas comunidades. Cada etnia tem seu cântico e sua dança e as melodias são diferentes. Durante as entrevistas, foi-nos explicado como ocorre entre o povo macuxi. O tucui é cantado e dançado para receber o parixara. Então, quando há uma comunidade que vai fazer festa, dança o tucui e usa vestimentas e adereços típicos dessa dança. Assim, o parixara também possui suas vestimentas e adereços, sendo que a fibra da palha do buriti é muito utilizada com adereços de semente e pena. No caso da parixara, a letra da melodia quer dizer “a minha bonita saia de palha balança, traz bebida pra eu beber”. O ximidim tradicionalmente era usado no Natal e em festividades religiosas dentro da comunidade, como no Sábado de Aleluia, por exemplo. Cada dança tem uma pintura corporal diferente. Quésia Silva9 relembra que, na época em que era criança, todos da comunidade dançavam, principalmente os mais velhos e adultos. Com a entrada dos não índios em Uiramutã algumas falas, do tipo “essas danças de vocês é feia”, foram intimidando os índios e, aos poucos, apenas os mais antigos sabiam dançar e cantar. Percebendo que havia o risco de acabar com essa tradição Quesia, que também é professora, iniciou uma ação com toda comunidade para não deixar que isso ocorresse. Devido à inclusão da educação escolar indígena nas comunidades indígenas de Roraima, a inserção de atividades que trabalham as questões culturais dos povos Entrevista concedida aos autores em setembro de 2015. Quésia Silva é professora e ministra aulas de língua Macuxi.

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tradicionais foi facilitada. Assim foi possível mobilizar professores e alunos para ensinar tucui, parixara e ximidim. Atualmente, a maioria dos jovens sabe participar dançando e cantando junto com os mais antigos nos eventos que acontecem na comunidade. Outro fator discutido foi a diferença entre o pajé e curandeiro. Quesia Silva nos disse que o pajé recebe um tipo de entidade e que essa entidade é capaz de detectar o problema do enfermo. Para isso o pajé faz uso de algumas plantas, fumo e rituais, realizando assim uma espécie de cirurgia espiritual. Nesse momento, Lindinaia Melquior, que também participava da roda de conversa, lembrou e relatou uma experiência que teve com um pajé da comunidade: [...] [meu filho] chorava demais e cresceu o umbigo, ficou grande né, maior que um botão mesmo, assim, ficou grande aí já tavam encaminhando ele pra fazer cirurgia em Boa vista, aí quando o Pajé passou lá em casa de tardezinha viu ele chorando demais, mas chorava muito, aí ele perguntou porque ele tava chorando, aí eu mostrei o umbigo, que ele tava chorando, tava sangrando, aí ele pegou e disse assim, minha filha é, minha filha, compra o cigarro quando for a noite eu vou vir aqui. Aí tudo bem. E nisso já tava sendo encaminhado pra ir pro médico em Boa Vista fazer cirurgia. Aí eu comprei. Eu pedi pro meu esposo comprar o cigarro, comprou e quando foi a noite ele foi lá. Aí eu presenciei né, ele fazendo todo o ritual dele né, incorporando outro espírito no corpo... quando ele fumou e entrou outro espírito né, aí era acho que tipo um venezuelano falando, aí ele falou, ele disse tipo ‘nossa né, você e seu filho quase morriam né’ e eu também, eu quase morria no parto, o meu filho também, aí ele disse, vou fazer cirurgia, aí ele pegou e vi ele fazendo assim com o dedinho né, fez, aí rapidinho ele pediu uma tesoura não sei de quem lá, por que eu não via mais ninguém lá né, só mesmo espírito né, aí ele pegou e disse assim, não vai ser mais preciso você levar seu filho pra Boa Vista, só não deixa ele chorar, não deixa. E uma semana né, em três dias vai tá bem melhor, mas durante uma semana, vai sumir, vai voltar ao normal o umbigo do seu filho. Tudo bem né, enquanto os médicos estavam preparando a remoção, a viagem, realmente, eu não deixei ele chorar, quando tava com três dias não sangrava mais e em uma semana sumiu [...]. Nesta roda de conversa, pudemos entender melhor como é feita uma pajelança, ilustrando alguns processos e rituais empregados, corroborando aquilo que nos explicava a entrevistada. Ainda conforme a entrevistada, o curandeiro atua de forma diferente. Este trabalha mais com as plantas medicinais, chás, rezas e banhos. Uma das plantas muito utilizadas é o pião roxo, em que o curandeiro vai fazendo a reza no enfermo e sacudindo o pião roxo. Depois disso, ele pode recomendar que um chá de uma determinada erva ou planta seja bebido para que o indivíduo melhore.

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4.2.3.3. Culinária Muito da cultura dos povos indígenas do município se manifesta com muita força na culinária local. A damurida (caldo de carnes diversas, com folhas de caruru e pimenta) é o mais comum na culinária local, faz parte do cotidiano do povo indígena e pode ser consumida com beiju e farinha d´agua. A tanajura (formiga saúva fêmea) é também um aperitivo muito apreciado pelo povo local, tanto pelo sabor como pela as propriedades medicinais. Este pode ser consumido cru, assado, frito e também na damurida. Uma curiosidade é que, nos dias que as saúvas voam, todas as escolas no município liberam os alunos para pegar o inseto. Há um projeto de lei na Câmara dos Vereadores para instituir feriado municipal nos três dias em que os insetos aparecem. Cono’repa (soldado de cupim) é consumido como fonte de alimentação, consumido cru com molho de pimenta. Por suas propriedades medicinais combate gripe, pneumonia, asma. Pode-se também fazer dele uma pasta e passar em úlceras e outras inflamações externas. Manivara (cupim fêmea) também é um aperitivo e, como a saúva, é consumida no início do período das chuvas. Muchiua (larva de besouro) é consumido assado e é encontrado em tronco da palmeira de buriti. A rã é consumida assada e na damurida. Lagartas de maniva e mutamba são consumidas assadas e na damurida. Todas essas iguarias fazem parte do cardápio local. Há também o tacacá, feito de peixe com amido de mandioca, e o beiju de mandioca, que não podem faltar nas refeições. Nesta seção ainda, é preciso destacar outro aspecto da cultura culinária local: as bebidas. O caxiri é uma bebida de mandioca brava, que depois de ralada é cozida e colocado em recipiente para fermentar (mandioca com batata, milho, cará, abobora, macaxeira). Pajuaru é outra bebida típica local, bastante consumida na região, também é feita de mandioca. Primeiro é feito o beiju que é “deitado” na folha de maniva ou banana para levedar. Ganha liga consistente, depois é misturado com água e colocado em recipiente para fermentar. Após esse processo, está pronto para o consumo. O sumo de pajuaru ou “whisky do indígena” é um licor concentrado que é aparentemente doce, mas possui um pouco de amargo. Ele tem a fama de deixar quem o consome com três dias de ressaca. Tanik (batata roxa com caldo e cana) e mocororó (caldo de caju) também são bebidas facilmente encontradas nas comunidades do município. 4.3. Eventos culturais no município de Uiramutã As festas e datas comemorativas demonstram o predomínio das tradições dos povos indígenas, porém há diversas comemorações inspiradas em outras culturas, como a festa junina, sobretudo trazidas por imigrantes, além das datas de certos feriados nacionais, como ocorre em 7 de Setembro. Abaixo, no quadro 1, apresentamos diversos eventos que compilamos, os quais fazem parte do calendário festivo da população.

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Quadro 1: Compilação de datas comemorativas e festejos do município de Uiramutã

Fonte: Prefeitura Municipal de Uiramutã e organizações locais. Organizado pelos autores.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após investigarmos o município, podemos afirmar que há muito que considerar em termos culturais, porém também há muito que fazer na construção de uma gestão cultural no município. Esta constatação não pressupõe uma crítica à gestão como um todo, pois, durante a execução deste trabalho, pudemos perceber que diversas iniciativas têm sido tomadas para implantar os órgãos fundamentais da política de cultura municipal. Assim, o “muito que fazer” não indica a inoperância, mas sim o reconhecimento que, apesar das iniciativas atuais, o caminho para a plena cidadania cultural no município demandará tempo e trabalho árduo dos diversos atores envolvidos.

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Pudemos vivenciar a história desta população encravada na arquitetura, nos monumentos e nas histórias orais. Visitamos diversas localidades reconhecidas por todos como patrimônio cultural natural, cujas paisagens derivam de uma geomorfologia privilegiada que, ao longo das centenas e milhares de anos, pode ser estruturada e moldada para o resultado que temos hoje. Da mesma forma que o patrimônio natural envolve o município, o patrimônio cultural material e imaterial permeia todo o cotidiano dos povos residentes ali. Tal fato não nos causa estranheza, tendo em vista a localização do município e sua configuração étnica e demográfica. Assim, podemos concluir ressaltando as potencialidades culturais intrínsecas do local, moldadas ao longo da história. Não podemos afirmar que é necessário “valorizar” a cultura local, porque sabemos que a população se reconhece nas tradições, nos locais sagrados, nas paisagens. Então, julgamos que necessária é a valorização do ponto de vista dos incentivos e do fomento à cultura local, cuja realização por parte do poder público municipal é o que desejamos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988 (com as emendas). BRASIL. Lei n.º 3.924, de 26 jul. 1961. Dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3924.htm. Acesso em 4 jan. 2016. FLICK, U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004. FREITAS, A. Geografia e História de Roraima. Boa Vista: IAF, 2009. GONDIM, S. M. G. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia (Ribeirão Preto), 2002, vol.12, n. 24, p.149-161. IBGE. CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. MARTINS, D. C. Patrimônio Arqueológico. In: BARRETO, Euder, et. al (Org.). Patrimônio Cultural e educação: artigos e resultados. Goiânia, 2008. SILVA, P. R. de F. Dinâmica territorial urbana em Roraima – Brasil. Tese (Doutorado). Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007. TEIXEIRA, L.; POZZI, A.; SILVA, J. L. (org.). Patrimônio arqueológico e paleontológico de Alagoas. Maceió: IPHAN-AL, 2012. UIRAMUTÃ. Lei Orgânica do Município de Uiramutã. Uiramutã: Câmara de Vereadores, 1998.

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INTELECTUAIS E A POLÍTICA CULTURAL NA DÉCADA DE 1930: GUSTAVO CAPANEMA E MÁRIO DE ANDRADE EM MISSÃO Eduardo Augusto Sena1 RESUMO: O marco inicial da institucionalização das políticas culturais no Brasil pode ser arbitrado no ano de 1930, momento de criação do Ministério da Educação e Saúde durante o governo de Getúlio Vargas. A partir de 1934, contudo, entra em cena a figura de Gustavo Capanema, que irá representar verdadeiro divisor de águas na história da instituição, ao arregimentar em torno de si verdadeiro grupo de notáveis do seu tempo. Ao mesmo tempo, na cidade de São Paulo outro grupo de igual importância e qualidade, capitaneado por Mário de Andrade, dará os primeiros passos para a criação da primeira experiência efetiva de política cultural no país: o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Esse ensaio procurar anotar algumas das características desses dois momentos, mas tendo como elo central a figura de Mário de Andrade. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, políticas públicas, intelectuais, identidade nacional

A relação entre Estado e cultura no Brasil tem raízes que remontam ao início do século XIX, com a transferência da corte portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro, ocorrida em 1808, momento que simboliza uma inaudita “presença material e simbólica da elite europeia” (VARELLA, 2014) em terras brasileiras. Período a partir do qual são criadas então as primeiras instituições culturais no país, com especial destaque para a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes e o Museu Histórico Nacional (BOTELHO, 2007), mas certamente a partir de uma perspectiva que objetivava conformar a cultura “num patamar de elevação social que corresponderia à própria distinção de classe, a ser feita entre os brasileiros, tidos como aculturados, e os europeus, tidos como representantes da cultura letrada, sofisticada e ideal” (VARELLA, 2014). Esse impulso inicial não se desdobrou, contudo, em iniciativas destinadas a ampliar o seu alcance ou revestir-se de outra intencionalidade, permanecendo de certa maneira apenas enquanto testemunho de um período bastante singular na história do país. Por esse motivo, Eduardo Augusto Sena é mestre em Ciência da Informação pela ECA/USP e assessor de Projetos Especiais da Fundação Bienal de São Paulo ([email protected])

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concordam diferentes autores que apenas na década de 1930 as políticas culturais serão, de fato, objeto detalhado da ação estatal (CALABRE, 2007; BOTELHO, 2007; CALABRE, 2009). O marco inicial dessa trajetória situa-se em novembro de 1930, data de criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, e que assinala o início do processo de institucionalização das políticas culturais no país, ocorrida no interior do aparelho estatal durante o período do governo de Getúlio Vargas (1930-45). Com efeito, ao longo da década de 1930, é realizado o primeiro esforço de implantação de um sistema articulado de políticas a nível nacional, o que resultou na criação de novas instituições “com o fito de preservar, documentar, difundir e mesmo produzir diretamente bens culturais, transformando o governo federal no principal responsável pelo setor” (BOTELHO, 2007). Outras instituições, existentes desde os tempos do império (acima citadas), também foram incorporadas a esse sistema (BOTELHO, 2007). Embora o Ministério tenha sido criado já no primeiro ano do governo de Getúlio Vargas, a entrada em cena de Gustavo Capanema, nomeado titular da pasta em julho de 1934, é considerado um divisor de águas na história dessa instituição2. Não apenas pela longevidade de seu mandato (CALABRE, 2009)3, mas principalmente pelas emblemáticas iniciativas postas em ação e o incrível grupo de colaboradores com que contou na sua gestão. Especificamente no campo da cultura, isso significou a participação de intelectuais de variadas matizes no desenvolvimento de políticas públicas focadas em diferentes frentes de atuação. Nomes emblemáticos da literatura, das artes plásticas, da arquitetura, da música e da pintura, emprestaram seu prestígio e talento ao empreendimento coletivo, em voga no período, de modernização e de superação do atraso, pelas vias da cultura e da educação, de um país que fora o último das Américas a abolir a escravidão, contava ainda com um enorme contingente de analfabetos e uma população desprovida de aprendizado para lidar com os seus direitos e a participação em uma sociedade livre (BOMENY, 2012). Intelectuais do porte de Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Candido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Manuel Bandeira, Anisio Teixeira, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, entre outros ainda, orbitaram de modo decisivo as ações do Ministério, a ponto de associar seus nomes a políticas que marcaram época em seus campos de atuação e a receber, em conjunto, a denominação de constelação Capanema (BOMENY, 2011). Entre os feitos mais simbólicos e ricos em consequência desse período, podemos destacar dois que perduraram até os dias atuais, rompendo, ainda que a custo, as dificuldades inerenPreviamente a Gustavo Capanema foram titulares da pasta Francisco Campos (de novembro de 1930 até setembro de 1932) e Washington Pires (de setembro de 1932 até julho de 1934). Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/ dossies/AEraVargas1/anos307/IntelectuaisEstado/MinisterioEducacao. Acesso em 15 de janeiro de 2015. 3 Gustavo Capanema exerceu a função Ministro da Educação até o final do primeiro governo de Getúlio Vargas, em 1945. 2

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tes à intricada trajetória das políticas culturais no Brasil. Destacamos incialmente o prédio do próprio Ministério da Educação e Saúde, construído no centro do Rio de Janeiro e hoje denominado Palácio Capanema, considerado “obra exemplar da ousadia de um tempo, responsável pela inclusão do Brasil no cenário internacional da arquitetura” (BOMENY, 2012). Inicialmente, o vencedor do concurso para seleção do projeto de construção do prédio, realizado em 1935, foi Arquimedes Memória, que havia sucedido Lucio Costa na direção da Escola de Belas Artes. O projeto não seria levado a cabo, e no ano seguinte o ministro Capanema solicitou ao próprio Lucio Costa a elaboração de uma nova proposta. Para tanto, organizou-se uma comissão integrada por alguns dos arquitetos desclassificados no concurso (Carlos Leão, Jorge Moreira, Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer e Ernani Vasconcellos), e que contou com a orientação e o aporte intelectual do arquiteto modernista suíço Le Corbusier. Desse modo, formada uma nova e jovem equipe, sob os auspícios do ministro, e contando com tal consultor de peso, outro projeto foi desenvolvido, com renovada mirada e perspectiva, resultando na construção de edifício que é considerado obra pioneira da arquitetura moderna no Brasil (BOMENY, 2012). Outro símbolo sempre lembrado desse período consiste em uma instituição que trilhou um bem sucedido caminho e se consolidou ao longo do século XX: o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPHAN), posteriormente rebatizado de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), denominação que perdura até os dias atuais. O processo de criação do órgão contou com a participação ativa de ilustre personagem que, tal qual Gustavo Capanema, marcaria de forma decisiva os rumos das políticas culturais no país. Trata-se do poeta, escritor e intelectual paulistano Mário de Andrade, figura de proa do Modernismo Brasileiro e dotado de múltiplos talentos, capaz de circular com destreza pela cultura erudita, o folclore e as manifestações da cultura popular. Atendendo a um pedido pessoal do ministro, redigiu, em 1936, o Anteprojeto de Preservação do Patrimônio Artístico Nacional4, instrumento que nortearia a institucionalização do SPHAN. No documento, Mário de Andrade sugeriu compreender o registro, defesa e promoção do patrimônio cultural brasileiro sob o prisma de uma concepção bastante abrangente de bem cultural, antecipando em vários aspectos, especialmente na dimensão do imaterial e simbólico, concepções que, mesmo no âmbito das convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), levariam ainda várias décadas para se cristalizar (TORELLY, 2015). O projeto final de criação do órgão, redigido ao cabo por Rodrigo Melo Franco de Andrade, nomeado o seu primeiro diretor, cargo que exerceria até 1967, não contemplou integralmente suas proposições, sendo “abandonado naquilo que trazia de mais desafiador e avançado para seu A íntegra do documento elaborado por Mário de Andrade está disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ ckfinder/arquivos/Protecao_revitalizacao_patrimonio_cultural%281%29.pdf. Acesso em outubro de 2015.

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tempo: a memória dos grupos populares, das etnias que compõem a brasilidade, da diversidade dos saberes e fazeres do país” (BOTELHO, 2007). De todo modo, a instituição seria criada em janeiro de 1937, por força da Lei n.º 378, e posteriormente regulamentada pelo Decreto-lei n.º 25, de novembro do mesmo ano (CALABRE, 2009). Teria início então um período de intensos trabalhos, que passaria à posteridade como a “fase heroica” do SPHAN, no qual um grupo de notáveis de uma geração empreendeu a tarefa sistemática de identificar e registrar os elementos mais importantes do patrimônio histórico e cultural nacional, superando uma tradição que julgavam amadora no registro do nosso passado. Como a recuperar o tempo perdido nesse processo de passar a limpo a história de um país em grande medida ainda em formação, dedicaram-se a essa tarefa com afinco, utilizando-se principalmente do tombamento como instrumento. Com efeito, Silvana Rubino aponta que o trabalho de tombamento “tem início em 1938 e, até dezembro daquele ano, 215 bens haviam sido inscritos em livros de tombamento” (RUBINO, 1996), o que representava quase a terça parte de um total de 689 bens patrimoniais inscritos durante as três décadas em que Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve à frente da instituição. Contudo, cabe a ressalva que nessa operação o passado a evocar e a valorizar foi claramente delimitado no tempo e no espaço, e o registro dos bens privilegiou sobretudo o bem edificado, com predomínio do imóvel religioso católico e urbano. Além disso, o mapa dos bens tombados no período parece indicar que a geografia do passado nacional concentra-se em estados vinculados a ciclos econômicos – Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e São Paulo, além do Distrito Federal (RUBINO, 1996). Adicionalmente, as opções do período em questão permitem inferir, mais destacadamente, o papel central atribuído ao século XVIII e ao estado de Minas Gerais (terra natal de Rodrigo e cuidado pessoalmente por ele) como os elementos mais importantes de nossa formação histórica. Estado que representava, inclusive, a proto-história da preservação no Brasil, em virtude da ordem régia expedida pela rainha Maria I no ano de 1790, em que solicitava o registro dos monumentos arquitetônicos do ciclo do ouro (RUBINO, 1996). A proeminência de Minas Gerais assentava-se na importância de sua literatura, música, arquitetura e pintura (no qual se sobressaí a obra de Aleijadinho), mas também no fato de que o estado era profundamente lusitano, com uma arquitetura em que eram ausentes os sinais característicos de origem africana ou ameríndia. Dessa maneira, é possível afirmar que, grosso modo, a primeira geração de colaboradores do SPHAN registrou um conjunto de patrimônios históricos e culturais que atribuía grande valor ao elemento reinol de nossa formação (enquanto excluía a herança do elemento africano e indígena), bem como aos bens urbanos edificados de caráter monumental. Nesse processo, as escolhas realizadas na “fase heroica” da instituição relegaram à sombra os conflitos e contrastes de uma sociedade historicamente desigual e multifacetada (RUBINO, 1996).

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Parece evidente que aos poucos a trajetória dessa instituição foi tomando orientação menos complexa daquela expressa em Mário de Andrade no seu Anteprojeto. Importante lembrar contudo que, durante quase uma década inicial, seus integrantes operavam no interior de um Estado autoritário, cujos dirigentes preocupavam-se em forjar uma identidade nacional e celebrar um passado (que ao menos soasse) glorioso, e que nos franqueasse um lugar ao lado das grandes nações civilizadas do mundo ocidental. Aparentemente Mário de Andrade tinha em mente coisa bastante distinta quando redigiu o seu Anteprojeto. De fato, esse documento já representava, em síntese, as concepções e conceitos que vinham sendo formulados por uma personalidade irrequieta e ativa, ávida em também descobrir e formular o sentido de nossa cultura e identidade. Inquietações que lhe faziam companhia desde há muito, e no momento mesmo em que as colocou no papel a pedido do amigo Capanema, já constituíam os nortes de outra instituição que, tendo o próprio Mário de Andrade à frente, pode ser considerada a primeira iniciativa especificamente orientada para o desenvolvimento de uma política cultural no Brasil: o Departamento de Cultura e Recreação da Cidade de São Paulo (CALABRE, 2009). De tal sorte que, se no plano federal contava Capanema com uma verdadeira constelação de intelectuais, que movimentava e fazia vibrar a então capital federal, na cidade de São Paulo outro grupo de igual qualidade e importância também se dedicava, no mesmo período, à tarefa de pensar o país e elaborar cultura e política em chave propositiva, com o semelhante intento de fazer emergir das sombras do atraso um país novo, revigorado, apto à enfim encarar o seu destino manifesto e por em marcha a missão que o programa republicano preconizava e admitia. Se os dois grupos não podem ser vistos simplesmente como polos apartados, visto que se frequentassem e em alguns casos mantivessem mesmo estrita colaboração, é certo que talvez os pontos de partida fossem diferentes. Não era para menos. As duas cidades, já então consideradas as principais do país, tinham passado e trajetória muito distintos. São Paulo era menos populosa, ainda que em franco crescimento, talvez por isso mesmo mais plástica, e os seus atores não estavam diretamente submetidos aos rigores e limites impostos pela atmosfera política e cultural de uma capital federal. Além disso, São Paulo havia sido o palco da Semana de Arte Moderna de 1922, marco explosivo da renovação estética e artística representada pelo movimento modernista, que deitaria raízes profundas na cultura brasileira. Para o crítico Mário Pedrosa, é necessário proclamar “a importância da Semana de Arte Moderna para o desenvolvimento não só artístico e literário do Brasil, como cultural e espiritual” (PEDROSA, 2004). O legado dessa experiência fora vital para as ações do Mário de Andrade e de todo um grupo notável de artistas e intelectuais modernistas, que dela tomaram parte ativamente, e os

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impulsionava em outra direção. Na verdade, em meados da década de 1930 o espanto, o choque e a recusa do cânone já tinham lugar cativo na cidade. DEPARTAMENTO DE CULTURA E RECREAÇÃO DE SÃO PAULO: PRIMEIROS PASSOS E UMA GRANDE MISSÃO O ano de 1934 representou um bem vindo momento de distensão do clima político no país, num período marcado por grande instabilidade política. No caso do estado de São Paulo, certamente havia o que se celebrar. Além da votação de uma nova Constituição pelo Congresso e da anistia concedida aos opositores do regime do presidente Getúlio, beneficiando inclusive os participantes da chamada Revolução Constitucionalista de 1932, que havia posto em choque São Paulo e o governo federal, e fora nomeado um paulista e civil, Armando de Sales Oliveira, ligado ao Partido Democrático, como interventor do Estado. Ato contínuo, este nomeia para o cargo de prefeito da cidade de São Paulo Fábio Prado, membro de tradicional família paulistana, e que mantinha relações com o grupo modernista, Mário de Andrade entre eles (JARDIM, 2015). Um novo grupo se salientava então no poder, formando, como mencionamos acima, uma espécie de versão paulista da constelação Capanema, e que “se mobilizou pela elaboração de um projeto nacional que partiria de São Paulo” (BOMENY, 2012). Integrantes da elite política, intelectual e financeira da cidade, tinham a convicção de que “as questões candentes do Brasil concentravam-se na precariedade da educação oferecida e na falta de valorização da cultura” (BOMENY, 2012). Para dar conta desse intento, são postos em marcha dois projetos principais: a criação da Universidade de São Paulo, obra de Armando de Sales Oliveira a partir de campanha liderada por Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de São Paulo, e do Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo (JARDIM, 2015). Mário de Andrade, que havia sido um dos principais organizadores da Semana de 22 e já então reconhecido escritor, poeta e agitador cultural, é apresentado por Paulo Duarte ao prefeito Fábio Prado como o nome ideal para a direção do Departamento. Após um período de hesitação, aceitaria a função, na qual despenderia todas as suas energias (JARDIM, 2015). O Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo seria então instituído pelo prefeito Fábio Prado através do Ato n.º 861, de 30 de maio de 1935, e a cidade de São Paulo, já então uma metrópole “na qual o moderno e o arcaico conviviam de forma nem sempre pacífica” (PENTEADO, 2015), passaria a contar com um inovador organismo de fomento e planejamento das ações de cultura no município: Planejado a partir de algumas estruturas já existentes, como o Theatro Municipal, o Arquivo Histórico, o Parque Infantil Pedro II e a Biblioteca Municipal, a concretização do projeto representou o esforço sem

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precedentes de reunir diversos equipamentos culturais sob a responsabilidade de uma única instituição (PENTEADO, 2015, p. 19). Mário de Andrade permaneceria à frente do Departamento até 1938, que contou inicialmente com quatro divisões: Bibliotecas; Educação e Recreios; Documentação Histórica e Social; Expansão Cultural. Essa última, cuja chefia coube ao próprio Mário, era responsável pela difusão das mais variadas manifestações artísticas realizadas na cidade, ficando subordinadas a ela os serviços de teatro, cinema, radioescola e discoteca pública municipal (CALABRE, 2009). Em julho de 1936, seria criada uma quinta divisão, de Turismo e Divertimentos Públicos (PENTEADO, 2015). E formulou uma política cultural cujo projeto visava, segundo Antônio Cândido, não apenas a “rotinização da cultura, mas a tentativa de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de humanização” (CÂNDIDO, 1977). O professor e ensaísta Carlos Augusto Calil, experimentado gestor cultural, sintetiza do seguinte modo o espírito desse período: Mário de Andrade participou ativamente de um projeto político da elite paulistana, de cunho social-democrata, que via no acesso à cultura um meio eficaz de suplantar o atraso intelectual e político. O grupo de Paulo Duarte, Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, do qual Mário de Andrade fazia parte, reunido em torno do governador Armando de Sales Oliveira, visava criar instituições que, uma vez este eleito presidente, seriam implantadas no país. São Paulo tornou-se um laboratório de políticas públicas de promoção do bem-estar social pela via da cultura, sem populismo (CALIL, 2015, p.14). Nesse sentido, é importante salientar que o Departamento não era simplesmente afeito às pautas eminentemente culturais, mas também “abrigava ações de Assistência Social, Esportes, Lazer, de Turismo, Estatística e Planejamento, Meio Ambiente, tudo o que se pudesse classificar sob o manto da educação lato sensu” (CALIL, 2015). Esse conceito abrangente de ação, e a decisão de destinar 10% do orçamento municipal para colocá-lo em prática, decisões do próprio prefeito Fábio Prado, simbolizam o prestígio com que contava Mário de Andrade e o Departamento de Cultura. Além disso, sua relevância pode ser aferida pelo fato de que a estrutura da Prefeitura contava com apenas outros cinco departamentos: Obras; Expediente e Pessoal; Higiene; Fazenda; Jurídico (CALIL, 2015). Durante o período em que esteve a frente do Departamento, um conjunto muito significativo de iniciativas foram desenvolvidas, nas mais diferentes áreas, de acordo com o escopo estabelecido, e com a colaboração de nomes importantes da cultura e da arte – Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Roquete Pinto, Francisco Mignone, e mesmo de professores franceses da recém criada Universidade de São Paulo – Claude Lévi-Strauss, Paul Arbousse-Bastide, Pierre Monbeig.

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E como não poderia deixar de ser, em consonância com o ideário modernista e os conceitos expressos no trabalho desenvolvido para o Anteprojeto do SPHAN, a atenção com o patrimônio imaterial adquiriu caráter transversal durante toda a sua gestão: No intuito de investigar aspectos formadores de uma verdadeira “brasilidade”, realizaram-se pesquisas de manifestações da cultura popular no interior do estado de São Paulo e, na Bahia, Camargo Guarnieri participou do II Congresso Afro-Brasileiro. Essas iniciativas culminaram naquele que talvez tenha sido o mais ambicioso dos projetos do Departamento de Cultura: A Missão de Pesquisas Folclóricas (PENTEADO, 2015, p. 21). Projeto realmente ambicioso, a Missão pode ser inclusive considerada símbolo da “institucionalização da experiência de Mário de Andrade como o turista aprendiz que, no final dos anos de 1920, realizara duas viagens vincadas pela perspectiva etnográfica, na esfera das manifestações musicais e das danças dramáticas” (PENTEADO, 2015). Antes ainda, durante a Semana Santa de 1924, Mário já havia tomado parte, junto a D. Olivia Guedes Penteado, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e René Thiollier, na “viagem de descoberta do Brasil”, que percorreu as cidades históricas de Minas Gerais com o intuito de apresentá-las ao poeta franco-suíço Blaise Cendrars (LOPEZ; FIGUEIREDO, 2015). Missão que tem início em fevereiro de 1938, quando parte de São Paulo rumo aos estados do Norte e Nordeste do Brasil um grupo composto por Luís Saia, a quem coube chefiar a expedição; Martin Braunwieser, musicólogo e maestro; Benedicto Pacheco, que desempenhava a função de técnico de som; e Antônio Ladeira, ajudante geral. Entre fevereiro e julho desse ano, visitaram cinco cidades em Pernambuco, dezoito na Paraíba, duas no Piauí, uma no Ceará, uma no Maranhão e uma no Pará. Não se tratava contudo de mera viagem turística. Antes, o papel que iriam desempenhar mais apropriadamente se assemelhava ao de corajosos desbravadores, destinados a uma jornada cujo caráter era exploratório e de pesquisa, contava com propósitos bem definidos e demandava certa urgência na sua execução: prospectar, coletar e registar, em diferentes suportes, as manifestações da cultura popular, com seus ritos, saberes e modos de vida, que se reproduziam nessas regiões. Partiram de São Paulo munidos dos “mais modernos recursos da técnica para o registro fonográfico, fotográfico e cinematográfico das manifestações” (PENTEADO, 2015), e previamente orientados teórica e metodologicamente para a pesquisa etnográfica. Luís Saia havia inclusive sido aluno da antropóloga Dina Lévi-Strauss no curso de Etnografia por ela ministrado entre abril e outubro de 1936, justamente com o intuito de formar pesquisadores especializados em folclore (PENTEADO, 2015).

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A Missão, contudo, iria se revestir de caráter quase heroico. Embora os mais avançados para a época, os equipamentos usados para o registro eram pesados, de difícil operação e inadaptados à mobilidade (CALIL, 2010), o que amplificava as dificuldades já à época naturais ao empreendimento de tal natureza por territórios ainda inóspitos e com escassa infraestrutura. A despeito das dificuldades que enfrentaram no caminho, esses intrépidos viajantes procederam ao registro e coleta de um vasto material, indicativo da rica diversidade cultural espraiada pelo território brasileiro, e que conforma um formidável mosaico de festas, cantos, danças, instrumentos musicais e peças de cultos religiosos5. A experiência, inovadora para a época e inédita na sua execução, pode ser considerada o primeiro esforço efetivo e metodicamente orientado de mapeamento e registro das dinâmicas culturais brasileiras. A urgência a que se impunha essa Missão estava atrelada à necessidade de “registrar as manifestações da cultura popular em vias de desaparecimento, face à industrialização e à difusão massificada de referências culturais estrangeiras por meio do rádio ou do cinema” (PENTEADO, 2015), mas, como salientamos acima, sua artesania era igualmente decorrência da reconhecida contribuição que Mário de Andrade e seus colabores atribuíam a essas manifestações no desvelar de uma estética e identidade genuinamente brasileiras. Esse formidável projeto é contudo realizado nos estertores da gestão de Mário de Andrade à frente do Departamento. Os rumos da política nacional já eram outros quando esses viajantes retornaram a São Paulo. A instituição da ditadura do Estado Novo, no final de 1937, iria por fim ao curto interregno mais arejado de todo o primeiro governo de Getúlio Vargas. Ironicamente, um dos principais precipitadores do golpe deflagrado era justamente “o crescimento da candidatura do paulista Armando de Sales Oliveira à presidência durante o ano de 1937, com perspectiva de ser eleito em janeiro de 1938” (CALIL, 2015). Os estados da federação passariam para a intervenção federal, e o prefeito Fábio Prado, substituído pelo engenheiro e urbanista Prestes Maia, técnico pouco interessado – e mesmo hostil – às ações do Departamento de Cultura. Mário de Andrade é exonerado em maio de 1938 e se muda para o Rio de Janeiro, cidade em que “não encontrou tarefa à altura de seu prestígio e capacidade” (CALIL, 2015). Terminava assim, de modo melancólico, a grande contribuição de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX ao inovador projeto de institucionalização das políticas culturais tornado realidade na cidade de São Paulo por obra de um grupo tanto visionário quanto formidável. Mas não relegado ao esquecimento. “Além dos discos registrados, contendo perto de 1.500 melodias, a Missão trouxe na sua bagagem 1.126 fotografias, 17.936 documentos textuais (cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, notas de pesquisas, notações musicais, letras de músicas, versos da poética popular e dados sobre arquitetura), 19 filmes de 16 e 35 mm, mais de mil peças catalogadas entre objetos etnográficos, instrumentos de corda, sopro e percussão”. Disponível em: http:// www.centrocultural.sp.gov.br/Colecoes_Missao_de_Pesquisa_Folclorica.html. Acesso em 10 de novembro de 2015. 5

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O Departamento de Cultura e Recreação da Prefeitura de São Paulo não teria as atividades encerradas com a saída de Mário de Andrade, servindo mesmo de embrião à atual Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Mas não recuperaria mais o mesmo vigor e elã criativo. De modo bastante expressivo, o farto material da Missão de Pesquisas Folclóricas simbolizou para os anos vindouros um monumento representativo do espírito de Mário de Andrade à frente da instituição, e permitiu uma análise comparada de duas linhas de atuação no campo do patrimônio e de construção da identidade nacional, quando comparado à atuação do SPHAN no período que mencionamos acima. Cuidadosamente sistematizado por Oneyda Alvarenga, grande colaboradora e amiga do poeta, e que permaneceu à frente da Discoteca Pública (que hoje leva seu nome) até o ano de 1968, esse legado está salvaguardado no Centro Cultural São Paulo, e tem sido objeto da atenção de pesquisadores e demais interessados nas dinâmicas culturais mais profundas de um país hoje orgulhoso de sua cultura como ativo inalienável. Constituí um registro ainda vivo e processual, não reificado, de manifestações que ainda hoje, mesmo sob condições as mais difíceis, são reproduzidas em diferentes pontos do nosso território. Em carta a Paulo Duarte, datada de três de abril de 1938, um amargurado Mário de Andrade se queixaria de haver sacrificado por completo três anos de sua vida e falhado naquilo que justificaria tal sacrifício: impor e normalizar o Departamento de Cultura na vida paulistana (CALIL, 2015). Faleceria menos de sete anos depois dessa missiva, nunca recuperado do trauma pela demissão do Departamento de Cultura. Oito décadas depois, com a cômoda distância imposta pelo tempo, é possível rechaçar, de certo modo, tal afirmação. Afinal, mesmo após tanto tempo, é surpreendente notar como as elaborações conceituais e a prática como gestor de Mário de Andrade tenham sido historicamente recuperadas e em boa medida tenham norteado o desenvolvimento de diferentes políticas culturais ao longo de todo esse período. Hoje, em reconhecimento do vigor intelectual de uma personalidade sobretudo visionária, todo um esforço vêm sendo realizado para atualizar o legado desse importante intelectual, à luz dos desafios colocados para o campo cultural na atualidade, em face das enormes mudanças sociais, políticas, demográficas e informacionais que tem no palco no século XXI. A cidade de São Paulo certamente é muito diferente daquela em que viveu (e morreu de amores) o poeta. A política parece permanecer tão fria e insensível aos grandes espíritos, como o era há oitenta anos. Mas, ao menos, as transformações em curso têm permitido as gerações atuais conhecer melhor o servidor público e gestor exemplar que existe por trás do escritor de obras literárias que restaram tão atuais ainda hoje, tal o caso de Macunaíma, o herói de nossa gente.

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São Paulo tem hoje na cultura um dos seus maiores atrativos, defendido com vigor por número cada vez maior de pessoas. Leva seu nome a principal biblioteca pública da cidade, a segunda maior do país, e o acervo da Missão está hoje salvaguardado no Centro Cultural São Paulo, inaugurado em 1982, cuja Discoteca leva o nome de uma de suas grandes colaboradoras, Oneyda Alvarenga. Oxalá o poeta esteja nos vendo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOMENY, Helena. Um poeta na política – Mário de Andrade, paixão e compromisso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012. 186p. BOMENY, Helena. Infidelidades eletivas: intelectuais e políticas. In: BOMENY, Helena. (org.) Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas; Bragança Paulista: Ed. Universidade de São Francisco, 2011. pp. 11-35. BOTELHO, Isaura. A política cultural e o plano das ideias. In: RUBIM, Antônio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre. (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007. pp. 109-132. CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: RUBIM, Antônio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre. (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2007. pp. 87-108. CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. 144p. CALIL, Carlos Augusto; PENTEADO, Flávio Rodrigo; (orgs.). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 2015. 336p. CALIL, Carlos Augusto. O poder de mandarzinho. In: CALIL, Carlos Augusto; PENTEADO, Flávio Rodrigo (orgs.). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 2015. pp.13-17. CALIL, Carlos Augusto. Mário da Cultura Andrade. In: Missão de Pesquisas Folclóricas: cadernetas de campo. NASCIMENTO, Aurélio Eduardo; CERQUEIRA, Vera Lucia Cardim (orgs.). São Paulo: Associação Amigos do Centro Cultural São Paulo, 2010. pp. 3-5. CÂNDIDO, Antonio. Prefácio. In: DUARTE, Paulo. Mario de Andrade por ele mesmo. SP: Hucitec/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977. JARDIM, Eduardo. Mario de Andrade: Eu sou trezentos: vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015. 255p. LOPEZ, Telê Ancona; FIGUEIREDO, Tatiana Longo. Por esse mundo de páginas. In: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Brasília: IPHAN, 2015. pp. 16-43. PEDROSA, Mario. Acadêmicos e Modernos: textos escolhidos III. Otília Arantes (org.). São Paulo: Edusp, 2004. 428p.

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PENTEADO, Flávio Rodrigo. sonhar, respirar, conversar, viver Departamento. In: CALIL, Carlos Augusto; PENTEADO, Flávio Rodrigo (orgs.). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 2015. pp. 18-25. RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, nº 24, 1996. pp. 97-105. TORELLY, Luiz Philippe Peres. O turista aprendiz e o patrimônio cultural. In: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. Brasília: IPHAN, 2015. pp. 11-15. VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2014. 208p.

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PARTICIPAÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICAS CULTURAIS NO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA EM BERTIOGA – APLICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO RÁPIDO PARTICIPATIVO Elisa Selvo Chaves1 RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar a estratégia do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Bertioga no processo participativo de elaboração do Plano Municipal de Cultura, através da mobilização da sociedade civil para o entendimento de seu protagonismo no resultado final, analisando aspectos relevantes da situação atual e propondo o diagnóstico rápido participativo como ferramenta de escuta pública. PALAVRAS CHAVE: Bertioga; Plano Municipal de Políticas Culturais; Diagnóstico Rápido Participativo

1. INTRODUÇÃO Os conselhos municipais de cultura são espaços importantes para a construção de debates e trocas de informação sobre as possibilidades de construção da cidadania cultural dos municípios e nos últimos anos, principalmente após a aprovação do Sistema Nacional de Cultura, em 2012, houve proliferação significativa no campo da instituição desses conselhos, visando promover a participação e controle social e, ao mesmo tempo viabilizar recursos financeiros em todos os níveis de governo. O município de Bertioga busca hoje sua identidade cultural. A alta convergência migratória não conduz somente à vulnerabilidade social, mas traz consigo o potencial de criatividade, conhecimento, diversidade e beleza, premissas essenciais para o diálogo com vistas à paz e ao progresso. O Conselho Municipal de Políticas Culturais de Bertioga procurou, desde o início de sua primeira gestão, integrar-se de todos os mecanismos que promovam a cultura na cidade em suas três dimensões: simbólica, cidadã e econômica e traçar uma rota entre o que somos e o que queremos ser. Têm sido norteadores do processo as Metas do Plano Nacional de Cultura, Presidente do Conselho de Políticas Culturais de Bertioga, graduada em Turismo pela Faculdade Anhembi Morumbi com pós-graduação em Comunicação Empresarial pela Escola Superior de Propaganda e Marketing e especialização em Gestão Cultural pelo SESC. Desenvolveu carreira em treinamento corporativo. E-mail: selvo@uol. com.br 1

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a Agenda 21 da Cultura e os seminários sobre Economia Criativa. No contexto de trabalhar as questões ligadas à quebra da sazonalidade, agregar a participação coletiva da sociedade na produção de bens culturais e artísticos, gerar ‘empregos verdes’ nas áreas da construção civil, pesca e turismo ecológico além de incentivar o empreendedorismo em contraponto à excessiva taxa de informalidade, o Conselho Municipal de Políticas Culturais propõe, como seu principal objetivo, acompanhar a gestão pública na elaboração do Plano Municipal de Cultura. Nesse contexto, tornou-se imprescindível o conhecimento dos contextos geográfico, demográfico, social, econômico e histórico e dos principais desafios a serem enfrentados, aliado a uma série de alternativas de ação e à decisão de legitimar as demandas da população através de escutas ativas e democráticas tendo escolhido como principal ferramenta o Diagnóstico Rápido Participativo, pela facilidade de aplicação e pelo potencial de engajar a população em favor das políticas locais. O sucesso do diálogo dependerá da participação dos setores civis como ONGs, empresas, sindicatos, universidades, meios de comunicação e também da transparência, prestação de contas e livre acesso às informações da gestão pública. 2. COMO É BERTIOGA? 2.1. Aspectos físicos Estância balneária pertencente à Baixada Santista, distante 118 quilômetros da capital, Bertioga possui 491,2 km2 de área. Mais de 90% de seu território consiste em área de preservação permanente. Registra índice pluviométrico de 2.692 mm/ano e a temperatura média anual é de 24ºC. Certificada como Município Verde e Azul, seus 33 quilômetros de costa estão divididos em 6 praias principais. Além das praias e da área de serra, Bertioga distingue-se pelo canal – um braço de mar que separa a cidade da ilha de Santo Amaro (Guarujá), conhecido por sua beleza e tranquilidade, além de ser um excelente ponto de pesca, de onde se avistam pontos turísticos como o forte São João, os píeres e marinas e a balsa que faz a travessia para o Guarujá – e por sua hidrografia composta pelos rios Itapanhaú, Guaratuba e Itaguaré. A avenida Vicente de Carvalho, que margeia o canal, está em processo de reurbanização assim como a orla da Enseada, sua praia central. O município ocupa posição de destaque no cenário regional e estadual devido a sua significativa quantidade de área verde preservada. Bertioga conta com 87,2 km² de área ciliar e apenas 1,4% desse total sofre com a ação do homem. O estado de preservação das áreas ciliares na Unidades de Conservação leva em consideração cursos d´água, nascentes e manguezais que estão inseridos no Parque Estadual da Restinga de Bertioga, Parque Estadual da Serra do Mar, Parque Municipal da Ilha do Rio da Praia e Reserva Particular do Patrimônio Natural. Como prioritário para a conservação da biodiversidade, o município engloba a Terra Indígena do Rio

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Silveiras, situada nos limites leste de Bertioga e avançando pelo Município de São Sebastião, cuja população indígena é assistida pelas duas cidades. 2.2. Demografia Possui 47.645 habitantes segundo o senso IBGE de 2010, com uma população estimada de 53.679 em 2013 (IBGE, cidades@). A população é marcadamente urbana, não havendo predominância de gênero. A densidade demográfica do município – 96,74 hab/Km2 – é a menor da Baixada Santista (IBGE, 2010), sendo que a ocupação territorial ainda encontra-se em transição diferentemente da situação na Baixada Santista onde a ocupação encontra-se consolidada (Instituto Pólis, 2012). Entre as 13 cidades da Baixada Santista e Litoral Norte, Bertioga apresentou a maior taxa geométrica de crescimento anual da população, ressaltando-se o crescimento da população acima dos 60 anos de 3 para 5% em contraste à diminuição do número de jovens até 29 anos, que caiu de 50 para 41% nos últimos dez anos (Instituto Pólis, 2012). Com taxas de migração entre as mais altas do estado e da região em que se insere, 51,2% (NEPO, 2007), principalmente devido ao incremento da construção civil na década de 1970, a etnia original, composta por indígenas e caiçara, vem sendo substituída principalmente por habitantes provindos do nordeste. Nota-se, nos últimos 10 anos, a tendência de aumento dos domicílios de uso ocasional, ao contrário do que vem ocorrendo no litoral norte. A população oscila dos menos de 50 mil residentes até 250 mil eventuais nas altas temporadas (Instituto Pólis, 2012). Os principais vetores de ocupação são os serviços, comércio e empregos públicos. Os rendimentos médios dos bertioguenses são menores do que as médias registradas no estado de São Paulo e no Brasil. Observa-se também que a taxa de informalidade – 47% – é superior às da região, do estado e do país (Instituto Pólis, 2012). O rendimento nominal mensal de 67% dos domicílios encontra-se abaixo de 3 salários mínimos (IBGE, 2010), sendo os menores índices observados nos setores afastados da orla e no interior da Rodovia SP-552. Os maiores valores de rendimento encontram-se próximos à orla marítima e principalmente na Riviera de São Lourenço, onde encontra-se o maior número de domicílios ocasionais. O Programa Bolsa Família beneficiou 2.194 famílias em setembro de 2015, sendo significativo o número de descumprimentos de condicionalidades. Das 69 famílias indígenas cadastradas no município, 57 são beneficiárias do Programa. Observa-se grande necessidade de políticas públicas voltadas à geração de empregos na região. Apesar do padrão de desenvolvimento urbano marcado pela segregação socioespacial, e para além de sua condição de cidade de veraneio responsável pela atração de grande população 2

Rodovia Doutor Manuel Hipolito Rego, conhecida como Rio Santos 705

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flutuante, Bertioga tem vivido nos últimos anos uma queda consistente nos seus índices de criminalidade. O número reduzido de homicídios, latrocínios e roubo de veículos faz da cidade um dos municípios mais seguros da Região Metropolitana da Baixada Santista (Instituto Pólis, 2012). 2.3. Economia Em 2015, o município de Bertioga teve uma arrecadação de pouco mais de 307 milhões. Do total arrecadado, temos como destaque o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e Imposto Sobre Serviços (ISS), que em termos percentuais representam cerca de 36% da arrecadação municipal do exercício. Outra importante receita é a cota parte dos royalties e compensações financeiras da produção do petróleo, que representaram cerca 14% do total arrecadado. Apesar da taxa de crescimento econômico ser superior aos demais municípios, a renda per capita é inferior, ocasionando acentuada vulnerabilidade socioeconômica. Existem na cidade 11 mil empregos formais (RAIS/TEM 2010). A condição de estância balneária garante ao município repasses de verba para investimento em infraestrutura voltada para o turismo e a promoção do turismo regional. Em janeiro de 2014 houve aporte de 15 milhões de reais (Gomes, 2014), entre repasses do DADE3 e da Fehidro4, para a realização de melhorias na cidade. Os esportes náuticos e a pesca são elementos importantes para se levar em consideração no planejamento de atividades culturais. 2.4 . Aspectos político institucionais Administrativamente, Bertioga foi distrito do município de Santos de 1944 até 19 de maio de 1991,quando adquiriu autonomia política, por movimento emancipacionista ainda comemorado O atual prefeito está em seu segundo mandato consecutivo e foi também o primeiro prefeito eleito após a emancipação da cidade. Suas relações com o controle social são recentes. Foram mapeadas aproximadamente 55 organizações da sociedade civil, sendo a mais antiga a dos pescadores, originada em 1928, porém poucas se encontram formalmente institucionalizadas (Instituto Pólis - Projeto Litoral Sustentável, 2013). 2.5. Aspectos culturais Como todo o litoral paulista, Bertioga possui vestígios de ocupação pré-histórica em sítios arqueológicos chamados de Sambaqui. Antes da chegada dos portugueses era habitada pelos índios tupiniquim. 3 4

Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias Fundo Estadual de Recursos Hídricos 706

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Bertioga abriga o primeiro forte documentado do Brasil. Construído em 1532, o Forte São João – tombado pelo Iphan em 1940 – está fortemente ligado à figura do recém-canonizado São José de Anchieta, à fundação da cidade do Rio de Janeiro e ao alemão Hans Staden. A Vila de Itatinga é outro patrimônio de Bertioga que faz parte da história do Brasil. Autêntica vila inglesa, construída em 1910, abriga a primeira usina hidrelétrica do País e ajuda, até hoje, a fornecer energia para o Porto de Santos. Na divisa de Bertioga com o município de São Sebastião, encontra-se a Aldeia do Rio Silveira, localizada em área de 948 hectares que abriga cerca de 500 índios da etnia tupi-guarani assistidos por programas de educação e saúde do município de Bertioga. Por suas origens, a cidade sedia anualmente, no mês de abril, o Festival Nacional da Cultura Indígena com exposição de artesanato, apresentação artística e esportiva das etnias participantes promoção de discussões temáticas voltadas às questões indígenas. Mantém-se a tradição de blocos de carnaval bastante lúdicos e familiares. Os desfiles têm início às 20 horas, terminando por volta das 22 horas. A presença do SESC (Serviço Social do Comércio) é marcante nas atividades culturais desenvolvidas na região central, havendo intensa parceria com a prefeitura para compartilhamento de apresentações artísticas, embora o SESC local não seja aberto ao público. Grupos isolados assumem várias iniciativas interessantes como saraus, dança de salão, apresentações musicais e forte foco em inclusão. Importante iniciativa cultural e turística, o Revela Bertioga5 é um encontro de fotógrafos, totalmente aberto ao público, que revela talentos, desenvolve oficinas, exposições e mesas de debate e proporciona a possibilidade de participação em expedições fotográficas a parques, rios e outros atrativos. 2.6. O Conselho Municipal de Políticas Culturais de Bertioga Foi criado por Lei Municipal em dezembro de 2011 e iniciou sua gestão efetivamente em março de 2012. Atendendo ao princípio da co-gestão, tem composição paritária, sendo quatro membros representantes da sociedade civil e quatro do poder público, além dos respectivos suplentes, podendo qualquer membro ser eleito para a presidência. A sociedade civil é representada por entidades que contenham em seu estatuto atuação na área cultural – sem a presença de especialistas ou notáveis. 3. DESAFIOS 3.1. Infraestrutura urbana Geograficamente o município assemelha-se a um comprido e estreito retângulo com distância de 44 quilômetros entre os extremos, cortado longitudinalmente pela ‘Rio Santos’. As dispersas áreas urbanizadas intercalam-se com grandes áreas desocupadas distribuídas ao 5

http://www.revelabertioga.com.br/

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longo da costa marítima. Não há capilaridade no acesso entre os espaços urbanizados, provocando imensos gargalos no fluxo de trânsito da rodovia, com impacto nas questões de segurança, saúde, acesso a bens culturais, coleta de lixo e muitos outros. O transporte público é precário e lento. Atualmente, não há integração entre transporte urbano e interurbano. Há queixas da população que após a meia noite os ônibus só passam a cada duas horas, o que limita o usufruto de atividades de lazer e cultura. 3.2. Contexto sociocultural O município de Bertioga, considerado estância turística, pouco valorizou seu potencial cultural nos últimos anos apesar de possuir relevante papel histórico. A expansão imobiliária, notadamente durante a década de 1970 gerou (i) convergência migratória, (ii) aumento significativo no número de veranistas, (iii) elevação do custo de vida e notadamente (iv) a dissociação dos saberes e fazeres originais, tanto da cultura local quanto da cultura migrante, causada pela demanda por serviços domésticos. O predomínio das “segundas residências”, 62,18% do total de domicílios, em detrimento da modalidade turística baseada em meios de hospedagem provoca grandes desequilíbrios no espaço urbano, trazendo grandes inconvenientes e desafios, notadamente em déficts de serviços urbanos e significativos passivos socioambientais (Instituto Pólis, 2012). Os comerciantes encontram dificuldades na manutenção de seus empreendimentos devido à constante flutuação de turistas. No que tange as questões culturais, percebe-se que a população flutuante não visita a cidade com esse objetivo. Os proprietários de domicílios ocasionais e convidados, normalmente permanecem em seus condomínios fazendo pouco uso dos equipamentos da cidade e sua interação com a população local faz-se somente através da contratação de serviços domésticos. Há também os visitantes ocasionais, às vezes de comportamento inadequado, que se apropriam dos locais públicos e promovem tumulto, sem gerar renda e sem qualquer interesse em participar de atividades culturais. Quanto à população local, nota-se extremo senso de não pertencimento, de exclusão e baixa autoestima. A oferta de bens culturais existente é considerada elitista por muitos, não existindo estímulo para que desenvolvam a própria produção cultural. Registram-se deficiências na oferta de espaços e equipamentos culturais e problemas de acesso à cultura para a maior parte da população sendo inexistentes os cinemas, teatros e salas de espetáculo (Instituto Pólis, 2012). A ausência de políticas de geração de emprego e renda torna preocupante a dependência da prefeitura e dos grandes condomínios residenciais.

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3.3. Fragilidade das organizações e movimentos populares Há pouca participação ativa da sociedade civil, fruto de um aparente cansaço participativo e perda de dinamismo. Na visão da população o nível de autonomia das organizações da sociedade civil é frágil. A estruturação de muitas das organizações é recente, especialmente nos bairros populares (Instituto Pólis - Projeto Litoral Sustentável, 2013). É perceptível que a organização da sociedade civil em Bertioga está fortemente vinculada ao chamado à participação popular nos espaços institucionais que foram criados pelo Poder Público local, muitos deles vinculados a sistemas nacionais de políticas públicas, sem ter tido tempo para construir uma história ou espaços de organização própria ou autônoma. (Instituto Pólis - Projeto Litoral Sustentável, 2013 – pg 32). A ausência de oportunidades de trabalho no município acaba conduzindo a um clientelismo exacerbado de todas as formas de controle social. A articulação entre as organizações do município é baixa e consequentemente o nível de articulação regional é ainda menor. A ausência de planejamento em políticas públicas gera desafios tanto à efetivação das políticas públicas quanto ao funcionamento dos conselhos. O controle social do orçamento resume-se a algumas audiências públicas nas quais se percebe a baixa capacidade de participação da população. 4. ALTERNATIVAS E AÇÕES DO CONSELHO DE POLÍTICAS CULTURAIS 4.1 Participação do Conselho Municipal de Políticas Culturais em ações relevantes Em suas duas gestões, o Conselho Municipal de Políticas Culturais traçou estratégias para garantir quórum e motivação dos conselheiros. O processo de credibilidade foi estabelecido gradualmente. Com espaço na rádio local para divulgar ações e iniciativas, utilização de redes sociais e permanente articulação, o conselho ampliou sua visibilidade. Discutia-se ainda a melhor forma de comunicação com a Câmara Municipal e optou-se pela utilização da Tribuna Livre6. Houve público expressivo, principalmente considerando o horário, e a mídia contemplou o assunto de forma satisfatória. A capilaridade das ações do conselho estendeu-se também às consultas públicas da Revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentado. Por ocasião do primeiro encontro, não havia, por parte da comissão designada para conduzir os trabalhos, menção à criação de plano setorial de cultura, que passou a ser contemplado após algumas intervenções do conselho. Em reunião com o Núcleo Gestor encarregado da revisão foram detalhadas questões, sugestões e propostas referentes ao Plano Municipal de Cultura, Agenda 21 da Cultura e Economia Criativa – posteriormente entregues em forma de relatório. Mecanismo de participação cidadã que permite expressão ao munícipe que represente um grupo de interesse público, após a sessão ordinária da Câmara Municipal, mediante agendamento prévio.

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Através das referidas dinâmicas, o conselho criou poder de convocação e aumentou sua expressão estando em condições de organizar o diálogo dos principais atores locais para que analisem as questões de cultura como um todo e proponham ações conjuntas, minimizando a sobreposição de determinados setores ou particularidades na definição de políticas públicas. O Conselho Municipal de Políticas Culturais manteve-se cuidadoso com relação a sugestões de que o Plano Municipal de Cultura fosse rapidamente elaborado mesmo que ‘copiado e colado’ de algum plano existente, analisando alternativas e mantendo contato com o representante regional do Ministério da Cultura. Constatando que o município não havia aderido ao Plano Nacional de Cultura, o Conselho promoveu a necessária articulação para que o documento fosse localizado, preenchido e enviado ao Ministério da Cultura. Os prazos estavam sendo observados e o primeiro passo deveria ser a elaboração do Sistema Municipal de Cultura, iniciativa assumida pelo conselho. Em quatro reuniões, que contaram com representantes dos artesãos, fotógrafos, músicos, artistas visuais foi elaborado documento entregue simbolicamente ao prefeito durante a I Conferência Municipal de Políticas Culturais sendo, em seguida, protocolado na Secretaria de Turismo, Esporte e Cultura. Durante dois anos o Conselho oficializou pedido de vistas ao processo e em 2015, constatando que o processo havia desaparecido e considerando que a Secretaria estava sob nova gestão, voltou a protocolar o documento. 4.2. Foco nas Metas do Plano Nacional de Cultura (PNC) O entrosamento com a representação regional do Ministério da Cultura resultou em parceria importante para a definição dos objetivos do conselho. Conhecendo a agenda do Ministério, nossa opção foi priorizar as ações de acordo com as 53 Metas do Plano Nacional de Cultura. 4.3. Reuniões de Capacitação para o Plano Municipal de Cultura Participação requer conhecimento, base essencial para a sensibilização e para a mobilização. Em agosto de 2015, o Conselho e a Secretaria Municipal de Turismo, Esporte e Cultura realizaram o I Encontro de Capacitação para a Elaboração do Plano Municipal de Cultura, com a presença de 27 participantes. Em novembro do mesmo ano, realizou-se um encontro de capacitação de gestores, com a presença do prefeito e secretários municipais. Nas duas ocasiões a presença de Sérgio Azevedo, especialista em gestão e políticas públicas, contribuiu para o sucesso da iniciativa. 4.4. Estímulo ao Debate Público Utilizando, como norteadores, o “Guia de Orientação para a Construção de um Plano Municipal de Cultura, do Projeto MinC – UFBA7”, o “Guia de Orientações para os Municípios – 7

Ministério da Cultura e Universidade Federal da Bahia

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Perguntas e Respostas” (MinC, 2011), o Guia GPS do Programa Cidades Sustentáveis (Programa Cidades Sustentáveis, 2013) e a Agenda 21 da Cultura (Institut de Culture), elencaram-se as premissas e princípios mantendo-se o foco no protagonismo e participação popular sustentando o carácter consultivo, deliberativo e fiscalizador do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Além da observância à legislação aplicável e da consistência técnica do Plano, cuja responsabilidade cabe ao poder executivo, o conselho permaneceu atento às diversas interlocuções permeando a pluralidade dos envolvidos com ênfase em ações estruturantes que devem atender as necessidades e aspirações culturais do cidadão bertioguense ultrapassando a dimensão dos mandatos dos governantes. No Guia GPS8 (Programa Cidades Sustentáveis, 2013) encontramos subsídios para o passo a passo do planejamento com base em informações organizadas, indicadores e visão de futuro a partir de depoimentos dos gestores públicos após o diálogo com a população e o consequente plano de metas a ser consolidado no Plano Municipal de Cultura. De acordo com o Programa Cidades Sustentáveis (2013) O planejamento municipal precisa considerar a dimensão cultural como um dos pilares para o desenvolvimento sustentável. As comunidades crescem e se aprimoram a partir da preservação de suas manifestações culturais, que em particular reforçam um senso de identidade local, motivo pelo qual a gestão municpal deve adotar políticas públicas para a promoção e inclusão cultural 4.5. Escolha da Ferramenta de Escuta Ativa O Diagnóstico Rápido Participativo – que tem sua origem no movimento de pesquisa-ação inspirado em Paulo Freire – proposto no Curso SESC de Gestão Cultural, apresentou-se como uma base sólida para que a sociedade civil exercesse seu efetivo controle social promovendo a cultura em suas dimensões simbólica, cidadã e geradora de trabalho e renda. Sua aplicação, amplamente discutida nas reuniões do Conselho de Políticas Culturais – e avaliada perante as propostas de escutas simples com espaços livres para manifestações, pesquisas on-line abertas ou fechadas, “world café” (ou café compartilhado) ou aplicação de formulários físicos ou eletrônicos – foi acatada como ferramenta de avaliação e mapeamento da realidade cultural de Bertioga. 4.6. Emprego do Diagnóstico Rápido Participativo 4.6.1 Justificativa Os membros do Conselho Municipal de Políticas Culturais levaram em conta a importância do levantamento de demandas, problemas, e informações de natureza qualitativa como base para a elaboração de estratégias de ação, considerando também que a metodologia promove 8

Gestão Pública Sustentável

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a mobilização dos interessados em torno da reflexão sobre a situação atual e visualização de cenários futuros, envolvendo os participantes, não apenas como fonte de informação, mas como agentes de pesquisa. A rapidez que permite, em pouco tempo, reunir e sistematizar informações sobre a realidade diagnosticada eliminava também problemas relacionados à escassez de recursos para o investimento em processos mais demorados e custosos de diagnóstico. E, neste caso, rapidez não está de forma alguma relacionada à superficialidade nem dos relatos nem das avaliações. Segundo Isaura Botelho e José Marcio Barros (Curso SESC de Gestão Cultural, 2013) O Diagnóstico Rápido Participativo é uma técnica de diagnóstico que permite a realização de reflexões críticas e propositivas sobre a realidade, considerando as experiências e as percepções dos participantes da atividade. Estimula a capacidade de reflexão e a busca de soluções a partir da interlocução, da construção de consensos e compromissos 4.6.2. Metodologia Foram realizadas, no total seis (6) oficinas participativas. A primeira, a título de validação da ferramenta, reuniu um grupo de dezoito (18) voluntários, sendo que as outras cinco (5) tiveram ampla divulgação e documentação total, incluindo filmagens e gravações de áudio para efeitos legais. Também por deliberação do Conselho e para melhor refletir a realidade do município, as oficinas foram estabelecidas geograficamente e não por setores de atuação. Dois membros do Conselho assumiram o processo de mediação e condução das oficinas. Como fator de descontração dos entrevistados, as matrizes de sistematização foram substituídas por folhas de papel pardo tamanho A1 e foram distribuídos lápis de cera, canetas hidrográficas e outros recursos de livre manifestação de expressão. Com o objetivo de sanar lacunas referentes ao entendimento do que é o Plano Municipal de Cultura, um resumo do conteúdo das oficinas de capacitação foi exposto aos presentes, que em seguida – com apoio de recursos visuais – eram convidados a formar grupos e expor, sinteticamente, cinco (5) fatores positivos, ou potencialidades, da realidade cultural de seu segmento, classificando-os como 1 (muito positivo), 2 (importante) e 3 (perceptível, mas não tão importante). Os participantes tiveram a oportunidade de expor, argumentar e principalmente de criar sinergias não imaginadas. A etapa seguinte consistiu em traçar a síntese dos cinco principais problemas, na opinião do grupo, para que fossem hierarquizados de acordo com sua frequência, gravidade e possibilidade real de solução, com notas de 1 a 3. A partir da somatória dos pontos, os grupos partiam para a definição do grau de prioridade que dariam ao problema de acordo com sua plataforma de ação estratégica. O desafio final consistiu em apresentar soluções para cada problema, conforme a possibilidade de atuação dos participantes. Para encerrar os trabalhos, que duravam em média 3 horas, cada grupo apresentou seus trabalhos.

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4.6.3. Resultados Durante os trabalhos com o grupo piloto, os principais problemas observados foram: a falta de compreensão do contexto do Plano Municipal de Cultura, a carência de vocabulário e terminologias para tratar as questões culturais e algumas interrupções para exposição de percepções pessoais. Como ponto positivo destacaram-se a motivação, o entusiasmo e a contextualização adequada dos assuntos tratados. Os problemas foram facilmente sanados e a aplicação do DRP nos cinco (5) bairros gerou resultados bastante inspiradores. Em uma escola, a funcionária perguntou por que não íamos lá todos os finais de semana. Um grupo de artesãs surpreendeu pela vivacidade e clareza das apresentações. Técnicos contratados para proporcionar apoio logístico, se valeram de sua condição de munícipes, para contribuir com as pesquisas. A proposta de utilização de material lúdico, substituindo a matriz de sistematização, foi providencial e o “conjunto da obra” será transformado em um painel que ficará exposto durante a Audiência Pública do Plano Municipal de Cultura. O conteúdo do material foi sistematizado, sem grandes dificuldades, pelos próprios membros do conselho. Em uma pasta Excel encontram-se compilados, em 5 (cinco) planilhas, os resultados dos grupos por localidade, seguidos de 2 (duas) planilhas onde foram elencados 8 (oito) Fragilidades e Obstáculos – utilizando os problemas apontados pela população agrupados de acordo com suas semelhanças, e seis (6) Vocações e Potencialidades de acordo com o mesmo princípio. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Participação é uma das características mais importantes de um bom Plano Municipal de Cultura. Para uma participação cidadã é necessário mobilizar, motivar e envolver. O Conselho Municipal de Bertioga propõe-se a atuar como espaço de consulta e debate tendo ainda o objetivo de divulgar as plataformas colaborativas disponíveis para ampliar a troca de informações. Em um momento em que tudo está por fazer, são amplas as perspectivas do Plano Municipal de Cultura de Bertioga. A governança democrática somente ocorrerá se entendermos o cenário cultural como contexto das políticas públicas voltadas à população e não meramente à captação de recursos. A participação da sociedade civil no Plano Municipal de Cultura vai torná-lo mais plural, diverso, humanizando suas propostas na construção dos modos de gestão. Essa participação também é importante na formação de indivíduos ativos, inventivos, vigilantes e capazes de mover a sociedade na busca de soluções inovadoras, assegurando a continuidade de propostas significativas para os objetivos públicos. O diagnóstico é o primeiro passo para conhecermos, de maneira ampla, a situação do município sob a ótica de seus habitantes. Através dessa lente poderemos repensar a complexidade da participação da sociedade na cultura e consequente impacto na qualidade da democracia no desenvolvimento de relações humanizadoras e éticas, sem disputas entre a sociedade civil e o poder público. É a forma de identificarmos como

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chegamos à situação atual, e definirmos através do diálogo intercultural, as estratégias para lidar com os desafios, reconhecer as oportunidades e agir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FARIA, H. M., & VERSOLATO, F. (2005). Você quer um bom conselho? São Paulo: Publicações Pólis. Gomes, A. C. (06 de fevereiro de 2014). Notícias. Acesso em 01 de Maio de 2014, disponível em Prefeitura Municipal de Bertioga: http://www.bertioga.sp.gov.br/noticia.php?idnot=5620 IBGE. (2010). Institut de Cultura. (s.d.). Culture 21. Acesso em 02 de Maio de 2014, disponível em Agenda 21 da Cultura: www.agenda21culture.net Instituto Pólis - Projeto Litoral Sustentável. (2013). Relatório número 6 - Diagnóstico Urbano Socioambiental - Município de Bertioga. São Paulo. Instituto Pólis. (2012). Projeto Litoral Sustentável - Desenvolvimento com Inclusão Social. São Paulo. MinC - UFBA. (s.d.). Guia de Orientação para a Construção de um Plano Municipal de Cultura. MinC. (2011). Guia de Orientações para os Municípios - Perguntas e Respostas. NEPO. (2007). Campinas. Programa Cidades Sustentáveis. (2013). São Paulo: Rede Nossa São Paulo.

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VISÃO PANOMRÂMICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA NA TRÍPLICE FRONTEIRA BRAZIL-GUYANA-VENEZUELA: VIABILIDADE JURÍDICO-ECONÔMICA Emanuel Henrique de Sousa Loureto1 Elói Martins Senhoras2 RESUMO: Este artigo busca apresentar as políticas públicas apoiadas em preceitos jurídicos para analisar sua viabilidade econômica no estado de Roraima voltadas para a cultura na tríplice fronteira entre Brasil, Guyana e Venezuela, embasado em alguns esforços estatais e da iniciativa privada para promoção de atividades que visam a experiência intercultural na região tranfronteiriça. As políticas públicas, muitas vezes dogmatizadas a questões socioeconômicas são apresentadas como um respeitável mecanismo de desenvolvimento regional. Deste modo, observou-se pormenorizadamente alguns eventos locais recorrentes à temática cultural, como meio de explicitar uma realidade de extremo norte inerente ao contexto roraimense com os países vizinhos de raízes culturais e lingüísticas bem distintas e sua disposição de influência sociocultural, capaz de incrementar político e economicamente a realidade amazônica. PALAVRAS-CHAVE: cultura, políticas públicas, integração, tríplice fronteira.

1. INTRODUÇÃO A Cultura envolve todo um sistema de conjuntos de valores, símbolos, bcostumes e tradições de um povo que são passados de geração em geração através das práticas sociais e da vida em sociedade. As manifestações culturais expressas por meio de festas populares são um exemplo da expressão da cultura de um povo, pois elas contribuem para a afirmação da identidade cultural das comunidades em que são realizadas, reforçando a diversidade cultural e consequentemente atraindo expressivo número de turistas. O artigo está dividido em três partes, no qual se destaca na primeira parte a importância das políticas públicas voltadas para a cultura como forma de democratização das artes, bem Graduado em Relações Internacionais (UFRR) e mestrando em Desenvolvimento Regional da Amazônia (NECAR – UFRR) e-mail: [email protected] 2 Professor e pesquisador do Departamento de Relações Internacionais (DRI), do Programa de Mestrado em Geografia (PPG-GEO), do Programa de Mestrado em Sociedade e Fronteiras (PPG-SOF) e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Amazônia (PPG-DRA) da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e-mail: [email protected] 1

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como dos desafios e das dificuldades que decorrem da sua implementação e o embasamento jurídico para sua aplicação. Na segunda parte, aborda-se um pouco da região de tríplice fronteira onde está inserido o estado de Roraima, no qual também se abordará acerca das políticas culturais para a integração que se desenvolvem nessa localidade e dos seus benefícios. A terceira e última parte buscará em mostrar como as políticas públicas para o meio artístico-cultural podem ser efetivas quando firmadas com uma ação paradiplomática3, ou seja, ações por parte de um ator subnacional, neste caso o estado de Roraima, com outros atores internacionais (neste caso Venezuela e Guyana) e sua viabilidade jurídico-econômica, 2. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA No que consta as Políticas Públicas para cultura, acredita-se que por meio destas haverá certa democratização das artes, destarte, há uma série de empecilhos para que isto ocorra, os engajamentos políticos para a área da cultura ainda são poucos, apesar de se perceber uma gradual mudança nesta conjuntura. É necessário, no entanto, antes de adentrar nos meandros políticos acerca do conceito de políticas públicas, entender o conceito de cultura. O autor Roque Laraia (2009) se empenha em conceituar antropologicamente o termo ao fazer uma abordagem histórica, no qual demonstra a origem do termo cultura como sendo junção sintetizada de kultur, palavra de origem germânica com civilization de origem francesa, feita por Edward Tylor (1832 – 1917) no final do século XVIII. Entretanto, já era uma ideia abordada por John Locke (1632 – 1704), Jacque Turgot (1727 – 1781) e Jean-Jacque Rousseau (1712 – 1778), no qual todos expressavam o papel da educação na formação cultural do homem. Ao mesclar duas esferas societárias bem distintas, a cultura sendo soft e a política sendo hard, no qual ambas são indispensáveis em uma comunidade estruturada, deve-se entender o funcionamento das políticas públicas como sendo mecanismo do Estado para melhorar o convívio social. Dessa forma, Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas, já Lynn (1980) a entende como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Outros autores como Peters (1986) segue o mesmo meio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou por delegação, e que influenciam na vida dos cidadãos. [...] Contudo, a definição mais clássica é atribuída a Lowi apud Rezende Segundo Senhoras “O termo paradiplomacia subnacional representa um marco importante para compreender a ação paralela em âmbito internacional de governos locais e regionais através do estabelecimento de contatos permanentes ou não com atores correspondentes em outros países e com entidades públicas ou privadas estrangeiras. [...] Enquanto fenômeno de repercussão nas relações internacionais que quebra o monopólio das relações interestatais do clássico sistema westphaliano de poder, a paradiplomacia roraimense têm relevância positiva no processo de integração regional nos últimos anos e isto não pode ser menosprezado.” (SENHORAS, 2009, p.02) 3

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(2004:13): política pública é ‘uma regra formulada por alguma autoridade governamental que expressa uma intenção de influenciar, alterar, regular, o comportamento individual ou coletivo através do uso de sanções positivas ou negativas. (SOUZA, 2009, p.68) No que diz respeito às artes, as dificuldades quanto à sua democratização estão relacionadas aos altos custos para o acesso aos produtos artísticos, tais como o cinema, teatro, concerto, dentre outros. O estigma de arte como algo supérfluo e desnecessário continua, inclusive para os formuladores de políticas públicas, cuja visão está associada à rentabilidade dos programas voltados para cultura. Deste modo, observa-se de acordo com Dye (2009) que “A política racional é a que produz ‘ ganho social máximo’, isto é, os governos devem optar por políticas cujos ganhos sociais superem os custos pelo maior valor e devem evitar políticas cujos custos não sejam excedidos pelos ganhos”. (2009, p.111) Ocorre também certo conservadorismo por parte do Estado, que estreita o leque de investimentos públicos em áreas de maior rentabilidade, porém os modelos teóricos-empíricos tradicionais não são capazes por si só de abordar todas as questões sociais, por não abordar novos atores. Outro grave problema que aflige as políticas públicas no geral, incluindo as voltadas para cultura, é o baixo grau de formalização das mesmas no que diz respeito ao intercâmbio de informações e recursos. (FARIA, 2003). Assim, observa-se que mesmo que haja o esforço por parte do Estado, a esfera privada e a própria população são atores responsáveis: A perspectiva de política pública vai além da perspectiva de políticas governamentais, na medida em que o governo, com sua estrutura administrativa, não é a única instituição a servir à comunidade política, isto é, a promover políticas públicas. (DYE, 2009, p. 31) Ou seja, mesmo que os esforços para maior valorização da cultura ocorram, o Brasil possui barreiras difíceis de serem superadas, a exemplo da corrupção nas esferas políticas, do déficit cultural no ensino, da falta de interesse por parte dos políticos e da população no geral. Quando se observa estas questões, infere-se a influência da cultura de massa na sociedade atual, pois seria esta uma das causas para desestímulo à presença e participação da população geral em programas culturais, como teatro, sarais, desfiles, concertos, dentre outros. Deste modo, desvela-se os conceitos da Comunicação Social de cultura de massa e indústria cultural, para entender como a mídia é um fator fundamental no âmbito cultural e pode auxiliar no sucesso de políticas públicas voltadas para este campo. A professora Titular da Escola de Comunicações e Artes de Universidade de São Paulo – ECA/USP, Anamaria Fadul, em seu artigo Indústria Cultural e a Comunicação de Massa, utiliza-se das ideias de Adorno e Horkheimer, nas quais explicitam que a cultura de massa norte-a-

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mericana era, por exemplo, bem desenvolvida desde bem antes da alemã ou italiana, contudo era voltada para massificação da cultura. No livro Dialética do Iluminismo, anunciava a decadência da cultura no Ocidente por causa dos meios de comunicação de massa no início do século XX em contraponto com “eldorado cultural” que fora o século XIX. Porém este era muito restrito e falacioso, uns poucos tinham acesso à cultura, enquanto outros muitos trabalhavam em regime semi-escravo nas fábricas com pouquíssimas oportunidades de entretenimento. No livro Indústria Cultural e Indústria de Massa, Adorno e Horkheimer tentam mostrar que faltava seriedade nos grandes meios de comunicação, sejam, eles jornais, revistas, televisão, dentre outros, que se preocupavam somente com as cifras econômicas e “manipulação das consciências”. A gênese do conceito de Indústria Cultural se deu na Escola de Frankfurt, que na verdade era o Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt. Os pensadores “fankfurtianos” tinham enorme aversão por este conceito criado por eles, um deles, Hebert Marcuse, afirmava que “a sociedade de massa contemporânea é uma nova forma de totalitarismo, só que muito mais perigosa, porque este totalitarismo não é percebido como tal.” (FADUL, Indústria Cultural e a Comunicação de Massa). Havia sempre a desconfiança dos novos veículos de comunicação. Baudelaire escreveu um artigo sobre uma exposição de fotos em 1857, no qual se mostrava intolerante em relação à fotografia como uma arte, achava que esta era uma destruição da cultura. A mesma intolerância sobre os novos meios culturais eram expostos na medida em que estes surgiam, Adorno e Horkheimer se posicionavam contrários à ideia de cinema como uma arte: O filme não pode ser considerado arte, porque basta que se olhem as cifras astronômicas que recebem seus diretores – e não podem ter nenhum tipo de preocupação séria com a sociedade, com a cultura ou com a arte. (ADORNO, HORKAIMER apud FADUL, Indústria Cultural e a Comunicação de Massa). Há também os que defendam que a Indústria Cultural propiciou o livre acesso das pessoas a diversos meios culturais, além de beneficiar aqueles que vêem nela uma forma de renda. O acesso a diferentes formas e modos da cultura é muito mais veloz atualmente, com o advento tecnológico-digital as pessoas escolhem o querem ver, e mais, a quando e onde ver. Por outro lado, destaca-se a importância da cultura popular nesse cenário de transformações e difusão cada vez mais veloz de produções culturais. Neste contexto, é notória a garantia jurídica das políticas culturais, como pedra basilar do próprio direito ambiental. Para a autora Cristiane Derani (2008) há uma unidade dialética entre natureza e cultura numa realidade social de indissocibilidade, realidade esta, compreendida pelo prisma das “forças socializantes da natureza”4. Die vergesellschftend Kräfte der Natur. Cultura compreendida como continuação gradual da natureza. HELLER, p. 61 apud DERANI, p.49

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O arcabouço que assegura políticas públicas para a Cultura mostra, desta maneira, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (vide artigos 170 e 225). Ainda que implicitamente, há de ser notado que as questões ambientais se embasam na premissa de uma “natureza humanizada”, o valor que dos recursos naturais, são socialmente atribuídos (DERANI, 2008). Sob a perspectiva do ser humano, não somente como ator, mas também como um patrimônio natural que se é buscado asseverar as leis que garantam a preservação de práticas culturais. Desta forma, convergente com a proteção dessas práticas, o Direito Ambiental busca, de certa forma, também a valorização da cultura nativa e popular brasileira. A cultura popular aparece como manifestação da cultura que parte do próprio povo, sendo muitas vezes mais acessível do que outros meios culturais. Isso, no entanto, não significa que não seja necessária a adoção de políticas públicas voltadas para a cultura popular. Pelo contrário, ela se faz essencial para que haja a valorização da música, das danças, dos artistas e das manifestações que se encontram na cultura popular, bem como na difusão dessa cultura para as gerações futuras para que ela não se perca em meio a tantas informações, inovações e transformações que se vê no mundo. 3. INTERAÇÃO CULTURAL NA TRÍPLICE FRONTEIRA A tríplice fronteira Brasil-Guyana-Venezuela está localizada no ponto mais setentrional do Brasil, ao norte do estado de Roraima. Essa região fronteiriça é caracterizada pela forte multiculturalidade devido à presença de vários povos que habitam a região, tais como brasileiros, venezuelanos e guyanenses, além de diversas etnias indígenas que fazem parte desse contexto fronteiriço. A proximidade entre as cidades fronteiriças dos dois países com o Brasil através do estado de Roraima, as chamadas cidades gêmeas5, apresenta uma diversidade imensa de culturas que estão imersas num ambiente de intensa rede de relações, sejam elas políticas, comerciais, sociais ou culturais. O contexto das relações internacionais de toda essa região é caracterizado pelo intenso fluxo de mercadorias (tanto legais quanto ilícitas), investimentos e serviços que agitam o comércio da região, relações políticas e intenso trânsito de migrantes e turistas. Quanto aos aspectos culturais, quando se fala em uma região multicultural estamos falando da presença de pelo menos três idiomas distintos, costumes, tradições e religiões tão diversas que interagem constantemente nesse espaço de contato. As cidades de Pacaraima (Brasil) e Santa Helena de Uairén (Venezuela), bem como Bonfim (Brasil) e Lethem (Guyana) correspondem às cidades gêmeas localizadas nessa tríplice De acordo com Becker “A presença de cidades gêmeas, isto é, cidades vizinhas localizadas em cada lado fronteiriço, é importante indicador das redes de relações. [...] Como lugar de convergência de redes de relações, as cidades gêmeas rompem com as delimitações fronteiriças oficiais fundadas nas soberanias nacionais, e são mais ativas quando localizadas em fronteiras tripartites.” (BECKER, p.58 e 59, 2009.) 5

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fronteira. Não apenas as cidades gêmeas são delineadas por essa intensa rede de relações, mas também a capital do estado de Roraima, Boa Vista, recebe os reflexos de pertencer a uma região tão plural e diversificada. Boa Vista situa-se a apenas 230 km de Santa Helena de Uairén, na Venezuela, o seu acesso ocorre pela via terrestre através da BR-174. Já Lethem, na Guyana, fica à apenas 125 km da capital de Roraima, onde o acesso se dá por meio da BR-401, o qual foi facilitado pela inauguração da ponte sobre o Rio Tacutu, em 2009, que interliga os dois países. A construção da ponte se mostra como um elemento integrador do espaço territorial Brasil-Guyana. Tal como afirma Oliveira: Esse espaço integrador pode ser interpretado também como um lugar seguro e ao mesmo tempo como um lugar inseguro, que estabelece a diferença entre nós (brasileiros) na margem de cá do rio e os outros (guyaneses) na margem de lá do rio. São interpretações com base nas teorias de fronteiras e nas linhas imaginárias que legitimam e regulam o nosso poder sobre o outro que é estrangeiro no nosso espaço territorial. Espaço integrador que é materializado pelas distintas normas diplomáticas, pelas leis e outros aparatos burocráticos das relações internacionais, que dão suporte para normatização das relações no território da fronteira e da identidade nacional. (OLIVEIRA, 2009, p.4) Oliveira (2009) alega ainda que o diálogo brasileiro com a fronteira guyanense é mais complexo do que com a fronteira venezuelana, pois no caso Brasil-Guyana há a presença de diferentes povos indígenas que convivem com duas culturas nacionais distintas nessa região: a brasileira que é herdeira do reino ibérico e a guyanense que é herdeira do reino anglo-saxão (motivo pelo qual utilizam a grafia em inglês). Enquanto que no caso Brasil-Venezuela, os idiomas e a cultura de ambos os países são herdeiros dos reinos ibéricos, o que facilita o diálogo entre ambos. Coincidentemente no ano 2009, houve a adesão da Venezuela ao Mercosul, o qual foi ratificado em 2012. Este fato pode possibilitar uma maior integração na área fronteiriça, pois com a assinatura de diversos protocolos, sobretudo nos trâmites aduaneiros e de imigração podem possibilitar uma dinâmica local de turismo e comércio com impactos positivos para Roraima (LOBO e NETO, 2010). Assim, percebe-se que as integrações físicas e comerciais entre o estado de Roraima e estes países com os quais faz fronteira estão cada vez mais se consolidando. Entretanto, indaga-se neste artigo quanto à integração no âmbito cultural no contexto dessas relações. Quais as ações voltadas para a integração cultural entre os três países? Quais os benefícios gerados pelos investimentos nessa área para a região? Quais as barreiras impostas para a implementação de políticas públicas culturais?

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4. RORAIMA: PALCO DA INTERAÇÃO CULTURAL NA TRÍPLICE FRONTEIRA Primeiramente, acredita-se que os benefícios gerados pela interação cultural por meio de políticas públicas culturais não somente em áreas de fronteira, como também de políticas culturais voltadas para a população de maneira geral, representa ganhos significativos para a sociedade. Além de permitir um maior acesso aos bens culturais à população, dar maior valorização à cultura local, aos artistas e suas produções, as políticas públicas voltadas para a integração cultural na tríplice fronteira permitem um maior conhecimento acerca da cultura do outro, na construção de confiança mútua e de relações pacíficas e cooperativas com os países vizinhos. Além do mais, um maior conhecimento a respeito da cultura destes países e a construção de boas relações por meio de políticas públicas culturais na região podem auxiliar de maneira positiva no aumento de investimentos, na abertura de novos mercados, no aumento de bens e serviços e do turismo nesses países. Neste sentido a aplicabilidade jurídico-econômica, é apresentada nos artigos 170 e 225 da CF-1988, que confabula a viabilidade de empreendimentos culturais constitucionalmente. Assim, a região amazônica no geral, um objeto tradicionalmente analisado para os estudos ecológicos, revela um escopo muito mais amplo de abordagens. Remete-se então a Lei n. 6.938, de 31 e agosto de 1981 que estipulou as diretrizes para o desenvolvimento de Política Nacional de Meio Ambiente. Assim, questões culturais podem ser inseridas no inciso I do art. 4° da Lei n. 6.938/81, ao afirmar que a Política Nacional do Meio Ambiente visará à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico. As políticas públicas, desta forma asseguradas pela Constituição e por leis que competem à Legislação Ambiental. Observa-se alguns órgãos públicos e privados, desempenhando papel de promotores culturais. A Universidade Federal de Roraima se revela pioneira em Roraima no que diz respeito ações que envolvam o intercâmbio com os Estados fronteiriços, principalmente na área da educação e cultura. O evento “Vozes da Fronteira, que tem como objetivo reunir grupos artísticos do Brasil, Guyana, Suriname e Venezuela durante as atividades comemorativas ao aniversário da UFRR em 2011 e 2012, é uma destas iniciativas. Além de apresentações culturais com a presença de músicos e artistas desses países, ocorrem apresentações de danças típicas, como a venezuelana denominada parranda de tambores, assim como palestras em torno da questão cultural, dentre outros manifestações culturais e ações acadêmicas Alguns eventos realizados pelo Serviço Social do Comércio (SESC - Roraima), também são organizados com a proposta de promover a interação cultural com a Guyana e Venezuela. O “Grito Rock Bonfim” foi organizado com a finalidade de juntar bandas do Brasil e da Guyana na fronteira entre esses países, e o “Fronteira Cultural” com edições em 2011 e 2013, evento no

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qual diversas manifestações culturais de artistas brasileiros, venezuelanos e guyanenses, foram reunidas com a ideia de promover a circulação e a difusão da música, dança, teatro, artes visuais e audiovisual dos três países na cidade de Pacaraima em Roraima, são alguns exemplos dessas ações culturais. Foto 1: “Vozes da Fronteira” – UFRR, 2012

Fonte: Autor Foto 2: Steal Band no “Fronteira Cultural” – Pacaraima 2013

Fonte: Autor

Contudo, poucas são as políticas públicas culturais voltadas para a integração cultural na tríplice fronteira desenvolvidas pelos governos locais. OArraial dasTrês Nações é um dos poucos exemplos que encontramos.

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O “Arraial das Três Nações” já contou com quatro edições entre os anos de 2008 e 2012. De acordo com Jacildo Bezerra6, um dos organizadores do evento, na primeira edição o “Arraial das Três Nações” tinha como objetivo promover a integração do Brasil, e mais precisamente do estado de Roraima, com os demais países da tríplice fronteira no que diz respeito ao âmbito cultural, no rompimento de barreiras para a redução dos preconceitos e a desmistificação dos estereótipos que muitas vezes se constroem com relação às nações vizinhas de Roraima. Para tanto foram trazidos elementos culturais da Venezuela e Guyana, tais como: grupos folclóricos, peças de artesanato, de vestuário, assim como fotografias para a exposição dos países. Para a realização da festa o primeiro passo da ação pública foi enviar representantes do governo de Roraima para os respectivos países no intuito de estabelecer contatos para que realmente houvesse a participação dos países vizinhos. Com a ação firmada, a abertura do evento contou com representantes dos três países, o governador de Roraima representando o Brasil e os cônsules da Guyana e Venezuela. Para quem chegava à festa, logo na entrada era possível obter informações sobre esses países nas barracas que foram preparadas para cada nação, onde tinha comidas típicas, revistas e fotografias dos três países. Para animar a festa, havia três bonecos gigantes que circulavam entre o público, cada qual caracterizado pelas vestimentas que lembravam cada um dos países: “Seu Zé”, no estilo caipira das festas juninas representava o Brasil, “Juanito” a Venezuela e “Mr. Brown”, com enormes tranças ao estilo rastafári que representava a Guyana. O slogan do evento também era representado pelos três personagens que juntos marcavam a união dos três países nessa grande festa. Quanto às dificuldades para a realização do evento, segundo o entrevistado, estava relacionado a algumas questões burocráticas. A maior barreira foi a questão burocrática que a orquestra filarmônica juvenil da Venezuela sofreu para entrar no Brasil. Como a Venezuela ainda não havia entrado para o Mercosul, era necessário certos documentos para entrar no país. Por falta de documentos necessários, a orquestra com mais de 70 componentes foi barrada na fronteira e impedida de se apresentar no evento. Para outras questões tais como a fronteira, o idioma e a receptividade não houve empecilhos para que o evento se concretizasse. Além de entretenimento à população de Roraima, a primeira edição do Arraial das Três Nações foi além das expectativas culturais e superou todas as metas previstas de emprego e movimentação de renda no período da festa. De acordo com dados da Secretaria Extraordinária da Promoção Humana e Desenvolvimento7, o Arraial das Três Nações levou ao Parque Anauá um público de 170 mil pessoas durantes as nove noites do evento, além de 56 atrações, entre bandas de música e grupos folclóricos que fizeram parte da programação do Arraial, envolvendo diretamente mais de 400 artistas. Gerente do Núcleo de Artes da Unidade de Cultura de Boa Vista, localizado no Palácio da Cultura, em entrevista realizada em 01/06/2012. 7 SOUZA,2007 6

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Dessa forma, além de gerar emprego e renda e de aumentar o turismo no período do evento, a população também pôde conhecer mais da cultura dos três países num clima de alegria, harmonia e cooperação. Nos anos posteriores o arraial do Anauá continuou a ser denominado de Arraial das Três Nações. Apesar da menor proporção de grupos vindos da Venezuela e da Guyana nos anos seguintes, o arraial ainda conta com a presença de muitos turistas vindos desses países. Contudo, no ano de 2011 não houve a celebração tradicional do arraial junino promovido pelo governo, a festa do Arraial do Anaúa ou Arraial das Três Nações foi cancelado naquele ano devido à situação financeira pouco favorável do governo ou por falta de vontade política. Infelizmente a falta de investimentos é um empecilho para que algumas políticas públicas culturais deixem de ser efetivadas. As ações que propiciam físicas e comerciais entre Roraima e estes países fronteiriços são mais consolidadas, no âmbito cultural essas ações ainda não são conformadas de modo efetivo. Todavia, os poucos eventos ocorridos no estado explicitam o quão promissor é meandro cultural nas relações internacionais em regiões de fronteira. 5. CONCLUSÃO Apesar de incipiente, os investimentos em cultura estão cada vez mais ativos e se mostram promissores para o desenvolvimento do estado de Roraima. No que diz respeito às ações que envolvem a integração cultural na tríplice fronteira alguns eventos estão sendo organizados para este fim. No entanto, ainda há muitas barreiras a serem derrubadas com relação à efetivação de políticas públicas voltadas para a cultura na tríplice fronteira, principalmente no que diz respeito à falta de incentivos, investimentos ou vontade política. As integrações físicas e comerciais com a Guyana e a Venezuela estão cada vez mais se consolidando, porém a integração no âmbito cultural ainda dá seus primeiros passos. Acredita-se que a integração na tríplice fronteira através da vertente cultural é uma boa maneira de se conhecer a cultura do outro, de se praticar a tolerância e o respeito à cultura alheia, de se promover o diálogo e a cooperação para que haja uma relação positiva e pacífica com os países vizinhos. Além do mais, uma maior integração no âmbito cultural pode significar um maior aumento do comércio, de investimentos, de bens e serviços e do turismo. Para tanto, a adoção de políticas públicas que levem em conta essa vertente cultural se fazem essenciais num ambiente de fronteira, principalmente pela multiculturalidade e diversidade presentes nesse espaço.

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PARTICIPAR E GERIR: ETNOGRAFIA DO COLEGIADO SETORIAL DE DANÇA DO RIO GRANDE DO SUL Emanuelle Maia de Souza1 RESUMO: O presente artigo configura uma análise das relações entre participação política e políticas culturais a partir do caso do Colegiado Setorial de Dança do Rio Grande do Sul. Este estudo foi desenvolvido fundamentalmente a partir da etnografia do referido Colegiado na cidade de Porto Alegre/RS correspondente ao primeiro ano da gestão 2014-2015. No caso analisado, a participação não se dá de forma massiva embora haja um entendimento a respeito de sua importância por parte dos membros do Colegiado para a construção de uma gestão cultural de qualidade. PALAVRAS-CHAVE: Participação política, Gestão Cultural, Políticas Culturais.

O presente artigo configura uma análise das relações entre participação política e políticas culturais a partir do caso do Colegiado Setorial de Dança do Rio Grande do Sul. Este estudo foi desenvolvido fundamentalmente a partir da etnografia do referido Colegiado na cidade de Porto Alegre/RS correspondente ao primeiro ano da gestão 2014-2015. E também pela etnografia de eventos públicos de dança nos quais o Colegiado esteve envolvido direta ou indiretamente na organização. Ressalto, portanto, um olhar antropológico que se debruça sobre aspectos micropolíticos, sobretudo tendo em vista o envolvimento institucional dos sujeitos em um órgão que compõe o atual Sistema Estadual de Cultura do RS. Ademais este trabalho se apresenta como desdobramento de minha dissertação de mestrado em Antropologia Social defendida em 2015 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). Tal investigação se concentrou na produção e circulação de documentos oficiais bem como participação política e engajamento no contexto do Colegiado nos anos de 2013 a 2015. De modo que ao me deparar com o universo das políticas culturais na cidade de Porto Alegre em eventos tais como Conferências de Cultura e os Diálogos Culturais pude perceber a ênfase dada à participação política como elemento de cidadania seguindo a orientação política do governo (PT) do qual se originam essas políticas. No caso analisado, como demonstro a seMestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: manu. [email protected]

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guir, a participação não se dá de forma massiva embora haja um entendimento a respeito de sua importância para a construção de uma gestão cultural de qualidade. Busquei, portanto, compreender essa articulação entre participação e gestão através da etnografia do Colegiado. A partir da qual uma política governamental passa a ser estudada não apenas “do jeito que deveria ser” em termos de funções prescritivas burocráticas mas também como ela se dá nas práticas dos sujeitos que participam do Colegiado. Assim minha principal interrogação é: como o entendimento da participação constrói uma noção de gestão cultural entre os sujeitos que se envolvem com o Colegiado? 1. SOBRE COLEGIADO SETORIAL Os Colegiados Setoriais de Cultura, como anteriormente mencionado, integram a estrutura do Sistema Estadual de Cultura sendo apontado como uma das instâncias de articulação, pactuação e deliberação juntamente com o Conselho Estadual de Cultura, as Conferências Estaduais de Cultura e a Comissão Intergestores Bipartite do Rio Grande do Sul sob gestão da Secretaria de Cultura (SEDAC). Sua função prevista em lei (Lei nº 14.310/2013) é de assessoramento para analisar, debater e propor políticas públicas para cultura, promovendo diálogo entre “sociedade civil” e Secretaria de Cultura. No Rio Grande do Sul são instituídos dez Colegiados, a saber: Artes Visuais, Audiovisual, Circo, Culturas Populares, Dança, Livro, Leitura e Literatura, Memória e Patrimônio, Museus, Música e Teatro. Quanto à composição, do ponto de vista previsto em lei que institui o Sistema Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul, os Colegiados são formados por cinco representantes do “Poder Público”, escolhidos dentre técnicos, especialistas ou servidores indicados pelo Secretário de Estado da Cultura e/ou por órgãos relacionados ao setor. Mas como fundamental incentivo à “participação civil”, a composição dos Colegiados Estaduais possuem o dobro de representantes da “sociedade civil”, totalizando dez membros. Para compor o quadro de representantes da “sociedade civil” não há impedimento prévio para que qualquer cidadão possa se candidatar, embora seja desejável (e é o que normalmente acontece) que seja relacionado profissionalmente ao setor que esteja interessado e somente pode ser eleito se aprovado anteriormente pela plenária. Além disto, os mandatos têm duração de dois anos, a contar a partir da data da posse, podendo haver apenas uma recondução. Desde que comecei a etnografar o Colegiado Setorial de Dança, em outubro de 2013, com a eleição dos delegados responsáveis pela gestão do ano de 2014 – 2016, já se anunciavam como pauta “emergencial” a discussão e elaboração do Plano Setorial de Dança (PSD) que integraria o Plano Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul. Sobretudo, por ter o Rio Grande do Sul aderido “tardiamente” ao Sistema Nacional de Cultura em relação aos demais estados. Além disso, o ano de 2014 sendo ano eleitoral, os membros do Colegiado tinham interesse em finalizar

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e aprovar o plano antes das eleições (que aconteceriam em outubro de 2014) para evitar correr os riscos de com uma possível mudança de governo haver também a rejeição do Plano Estadual. 2. “PEDAGOGIA DA ADESÃO”: ESTRATÉGIAS PARA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA Como já referido, apenas para atuar como delegado no Colegiado era necessário ser eleito pelos demais membros, a participação como não delegado, todavia, era aberta a qualquer pessoa interessada. Porém, por mais esforços que tivessem de divulgação e mobilização de mais pessoas – já que as reuniões compunham cerca de doze participantes – os encontros geralmente aconteciam com praticamente as mesmas pessoas, não variando muito o número de participantes (que são, em geral, bailarinos, coreógrafos, diretores artísticos ou que se reconhecem pela categoria mais abrangente de profissionais da dança); o que, por outro lado, manteve a continuidade dos debates no momento da elaboração do Plano. Sobre essa baixa cota de participação do setor interessado era nítido o incômodo dos membros, por isso a esse respeito considero que esteja relacionado o constante investimento na busca por mais participantes para o Colegiado. Tal investimento se dava fundamentalmente através de discurso pedagógico que consiste em “apresentar” o Colegiado como ponte de diálogo entre a “sociedade civil” e o Estado, colocando-o como possibilidade de engajamento em busca de melhorias para profissionais da dança. Assim, em cada oportunidade de maior contato com o público-alvo (bailarinos, produtores culturais, profissionais da dança) em eventos tais como Encontros da Dança e Mostras Coreográficas, por exemplo, havia uma apresentação do Colegiado Setorial de Dança. As apresentações, em geral, se davam através da exposição sobre a estrutura do Colegiado (sobre o que consistia e quem integrava) e também sobre testemunhos de delegados os quais declaravam a importância do envolvimento com Colegiado para o setor. Em um dos registros do diário de campo tratei sobre o 2º Encontro Estadual de Dança, o qual foi realizado na cidade de Porto Alegre nos dias 27 a 30 de novembro de 2014 e promovido pela Coordenação de Dança do Instituto de Artes Cênicas (IEACen) – órgão vinculado a Secretaria de Cultura do Estado/RS – com outras entidades do setor de dança. Através deste evento foi proposto, além de mostras coreográficas, um conjunto de debates sobre o problema da descontinuidade das ações governamentais, de baixa participação, entre outras questões registradas a partir da etnografia da mesa redonda “Dança, políticas públicas e representatividade”. No decorrer do debate a fala de Paola Vasconcelos, que integrava a referida mesa como representante do Colegiado, me chamou atenção ao fazer uma espécie de relato das ações da entidade até aquele momento. Sua fala buscava demonstrar o quanto o Colegiado supostamente pode contribuir para a transição de “políticas de governo” para “políticas de Estado”. Pude perceber que para além de certa compreensão institucional a esse respeito, sua fala expunha muito

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de experiência pessoal (e política) com o Colegiado: “O Colegiado me ensinou isso (...) que a gente tem que se organizar, construir, cobrar e fazer algo diferente pela dança”. De modo que “organizar, construir, cobrar e fazer” dizem respeito, ainda que não seja de forma específica ao contexto das políticas culturais, a um tipo de aprendizado de gestão. Participar do Colegiado era, conforme seu posicionamento, uma maneira de contribuir politicamente para o setor da dança. Também segundo Paola, não há formação educacional (se referindo à graduação em dança) que dê atenção às políticas públicas. Por isso o Colegiado funciona, a partir dessa perspectiva, como ferramenta de aprendizado sobre gestão cultural e outras possibilidades de ações bem como de familiarização com o arcabouço de tais políticas. Isto é, o Colegiado possibilita tanto o contato com as ações políticas propriamente ditas (tais como as pautas de engajamento, por exemplo), bem como fornece uma espécie de modus operandi para lidar com demandas culturais e funcionamento burocrático de esferas públicas onde são possíveis os diálogos entre demandantes e poder público. Assim, como destaca a pesquisadora em políticas culturais Isaura Botelho: As políticas culturais, isoladamente, não conseguem atingir o plano do cotidiano. Para que se consiga intervir objetivamente nessa dimensão, são necessários dois tipos de investimento. O primeiro é de responsabilidade dos próprios interessados e poderia ser chamado de estratégia do ponto de vista da demanda. Isto significa organização e atuação efetivas da sociedade, em que o exercício real da cidadania exija e impulsione a presença dos poderes públicos como resposta a questões concretas e que não são de ordem exclusiva da área cultural. Somente através dessa militância poder-se-á “dar nome” – no sentido mesmo de dar existência organizada – a necessidades e desejos advindos do próprio cotidiano dos indivíduos, balizando a presença dos poderes públicos. (BOTELHO, 2001:75) E justamente pensando na importância de envolver mais “demandantes”, isto é, profissionais do setor da dança que estes delegados do Colegiado direcionavam seus esforços de divulgação. Já que estes, em alguma medida, necessitavam de políticas culturais para exercerem sua profissão, mas principalmente porque estes eram conhecedores destas “necessidades” do plano do cotidiano como bem ressaltou Isaura Botelho. Os quais são responsáveis por dar uma outra “cara” às políticas culturais no sentido de não ter mais políticas elaboradas apenas por experts, podendo portanto contribuir para direcionamento eficaz da gestão pública a respeito de políticas culturais. Assim como Isaura Botelho assinala a importância do envolvimento dos interessados na gestão de políticas culturas, Claudia Fonseca e Jurema Brites (2006) destacam a importância de investigar a atualização de formas de “participação política” em variados espaços sócio-culturais e chegam a afirmar que se trata de “uma das mais caras utopias modernas: a ampliação dos espaços democráticos” (11). Assim, as organizadoras reuniram em sua obra diversas expe-

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riências políticas, a partir de recortes etnográficos, em outras esferas consultivas e deliberativas desenvolvidas por instâncias governamentais para fomentar a participação tais como Conselhos municipais e estaduais e também os Orçamentos Participativos (OPs). Retomando a necessidade de recrutamento de pessoas, outro exemplo que pode ser relacionado pode ser visto também através de uma página na rede social Facebook cujo nome é “Ações do Colegiado Setorial de Dança do RS”. Criada e gerida por Cláudia Dutra no início de sua gestão (2014 – 2015) como secretária e suplente do Colegiado, com o intuito de divulgação do Colegiado, a página contém dentre outras coisas, dados (uma espécie de currículo profissional) sobre os membros-delegados, atas das reuniões, informações sobre eventos bem como registros fotográficos das reuniões. Dentre esse material divulgado, há dois vídeos que se conformam ao discurso pedagógico ao qual me referi anteriormente: um diz respeito mais ao Sistema Estadual de Cultura e como o Colegiado se insere nesse contexto encenado por Diego Esteves e produzido por equipe do IEACen; o outro produzido por Cláudia mais focado no Colegiado. Utilizando diversos recursos didáticos tais como esquemas, gráficos e figuras, Cláudia é quem faz a narrativa dos elementos e funções que compõem o Colegiado. A seguir apresento uma imagem retirada da rede social Facebook que considero relevante, pois registra a publicação de vídeo apresentando o Colegiado: Figura 1: Difusão de ações na internet

Fonte: Página “Ações do Colegiado Setorial de Dança do RS”. Rede social Facebook (05/11/ 2014)

Tal posicionamento pode ser lido como estratégia de mobilização e adesão, mas também como se a inteligibilidade das ações do grupo passasse pela necessidade da compreensão do

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sistema. Aqui, poderíamos pensar em termos de analogia ao que Das e Poole (2008) apontam como “pedagogia de conversão” para tratar da estratégia do Estado para socializar (bem dizer, “manejar” ou “pacificar”) pessoas consideradas insuficientemente socializadas em termos da lei. No caso do Colegiado sugiro pensar em termos de “pedagogia da adesão” que se interessa tanto em socializar e familiarizar novos membros para compor seu quadro como contar com a presença de sujeitos interessados em suas ações dentro do campo das políticas públicas. Entretanto, é necessário dizer que tal estratégia se mostrou parcialmente eficaz (pelo menos durante o tempo o qual etnografei) já que o Colegiado, quase chegando ao fim do primeiro ano de gestão, realizou novas eleições para preencher algumas cadeiras que estavam em vacância pela ausência de delegados e respectivos suplentes responsáveis. E desta forma, foram eleitos cinco novos membros (Claudia que era suplente foi eleita como delegada) entre delegados e suplentes. 3. SOBRE A NÃO PARTICIPAÇÃO: ALGUNS ELEMENTOS PARA A COMPREENSÃO DO FENÔMENO Pensando na necessidade que o grupo enxerga de obter mais participantes, destaco a perspectiva de Heredia e Palmeira (2012), no qual um dos pontos do trabalho demonstra que importa estudar não apenas aqueles casos (a exemplo de Conselhos) considerados de “sucesso” em termos de participação no sentido de alterarem significativamente a estrutura política no município, por exemplo, mas também traz à tona situações de dificuldades de funcionamento em que os Conselhos existem quase que por uma formalidade. Assim, analiticamente podemos apontar alguns elementos que contribuem para a compreensão do fenômeno da não participação: a) Frequencia das reuniões (engajamento segundo disponibilidade): O Colegiado se organiza através da realização de reuniões que inicialmente eram agendadas de acordo com a disponibilidade dos membros e após os primeiros meses passaram a ser quinzenais. Importa ressaltar tal frequencia para a realização das reuniões porque demonstra o grau de disponibilidade que se exige para garantir presença constante. Assim, geralmente eram compostas por pessoas que foram anteriormente eleitas ou indicadas como delegados, sendo que a composição “efetiva”, diz respeito a três representantes do Estado (que já ocupam cargos públicos que podem ser relacionados ao setor da cultura ou a servidores públicos do setor de licenciatura em dança), e mais nove pessoas que representam a “sociedade civil”. De modo geral, nem sempre iam todas as pessoas eleitas como delegadas (e/ou suplentes) e poucas vezes constatei presença de outras que não estivessem oficialmente requisitadas para estar ali participando dos debates. De certa forma esse quadro possibilita a compreensão de que o grupo reunido no Colegiado tivesse um caráter de compromisso mais “institucional”, no sentido de

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que somente aqueles que ocupam cargos como delegados e/ou suplentes podem ser considerados presenças efetivas. b) Não remuneramento: Relacionada à lei que institui o Sistema Estadual de Cultura gostaria de chamar atenção ao último artigo (Art. 15) que trata especificamente dos Colegiados, no qual se lê: “A participação nos Colegiados Setoriais de Cultura será considerada relevante serviço prestado à sociedade e não será remunerada”. Nenhum dos cargos desempenhados em Colegiado é remunerado, mesmo aqueles que constituem os indicados pelo “poder público” e já são servidores públicos, gozam de sua remuneração normalmente, ou seja, não há adicional ou acréscimo de salário algum em função de seu desempenho como membro. De todo modo, categorizar a participação como um serviço relevante soa quase como justificação pela não-remuneração. c) Centralidade geográfica das reuniões: Em um dos Encontros Estaduais de Dança o Colegiado foi apontado por uma pessoa presente como sendo centralizado demais. Já que com exceção de uma reunião realizada na cidade de Pelotas, as demais sempre ocorreram na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre. Por se tratar de um órgão estadual, a interlocutora que lançou a questão, criticava o fato de que realizar as reuniões sempre na capital poderia representar dificuldades para interessados que residem no interior em participar. Embora fosse consenso entre os debatedores que integravam a mesa redonda de que o Colegiado deveria mesmo expandir pelo interior; o argumento para a centralização das reuniões é que os membros-delegados, sua maioria, moram na capital e região metropolitana. No entanto, a descentralização não ocorreu o que não acarretou a desistência dos poucos delegados que residiam no interior. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Busquei através do presente trabalho destacar a importância da participação política proporcionada pelo chamado “governo participativo” como forma de aprendizado e desenvolvimento de uma noção de gestão cultural. Trata-se de envolver politicamente os sujeitos através da criação de esferas consultivas do ponto de vista institucionalizado – aqui no caso representado pelo Colegiado Setorial de Dança do Rio Grande do Sul. Vale ressaltar, entretanto que não se configura como esfera exclusiva de participação política deste ou de qualquer outro setor. Gostaria de evidenciar que o fenômeno da baixa participação aqui apontado não serve, entretanto, como quesito avaliativo para eficácia desta esfera consultiva – e que também não configura objeto de minha investigação. Ainda que tenha assinalado elementos-chave para uma possível interpretação sobre este fenômeno, tal característica implica talvez num debate de representatividade ou de extensão do órgão do ponto de vista de sua condição de esfera estadual.

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Em outras palavras, não se trata de uma avaliação dos desdobramentos da chamada “participação civil” no que diz respeito à sua efetividade democrática ou eficiência de gestão cultural. Por outro lado, esse mesmo grupo que embora composto por um número não tão expressivo de membros foi responsável pela elaboração do Plano Setorial de Dança do Rio Grande do Sul (PSD), aprovado no dia 1 de julho de 2014 pelo Secretário Estadual de Cultura. E mesmo não cabendo aqui questionar até que ponto tal documento garante a realização ou modificação efetiva das políticas, destaco o modo como é valorizado pelo grupo como fruto do seu trabalho e que tem sido comemorado como documento pioneiro em termos estaduais de diretrizes para políticas públicas do setor. O que de todo modo sublinho que aquilo que, de certa forma, perpassa essas experiências participativas é que seus modos de funcionamento são regulamentados e previstos pelo Estado. Por se tratar de uma “nova” instância, quero dizer, uma instância recente no que se refere a ferramentas governamentais em que é fomentada a participação como fundamento de uma política institucional específica, o Colegiado se apresenta como contexto relevante para pensarmos não apenas a complexidade do fenômeno da participação, mas também como possibilidade de recorte etnográfico que integra a implementação de um sistema mais amplo no que se refere a políticas públicas para cultura contemporaneamente.

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INDICADORES CULTURAIS E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA ABORDAGEM CENTRADA NA EXPERIÊNCIA EM CAMPOS DOS GOYTACAZES Erivan da Silva Dantas Filho1 Allana Pessanha de Moraes2 Martha Maria Gonzaléz García3 RESUMO: Este trabalho tem como eixo temático as Políticas de Cultura relativas à cidade de Campos dos Goytacazes. Desde 2004, tem sido desenvolvido um programa de Iniciação Científica e Extensão, a partir da Officina de Estudos do Patrimônio Cultural do LEEA-UENF4, que busca dar conta de diferentes aspectos relativos à diversidade cultural no município. O uso dos indicadores culturais é hoje um campo em ascensão no que diz respeito às políticas e estudos ligados à cultura. O interesse por dados culturais pela Officina e seu uso na Educação Patrimonial, parte da necessidade de um melhor entendimento da realidade cultural local, relativa à cidade de Campos dos Goytacazes, e da compreensão de cultura por seus habitantes. PALAVRAS-CHAVE: Indicadores Culturais, Cultura, Educação Patrimonial, Memória.

1. INTRODUÇÃO O eixo central da pesquisa aqui analisada é definido no âmbito das políticas culturais. Ao considerarmos que se trata de um objeto de estudo recente, este conceito de políticas culturais ainda não alcançou um consenso entre os teóricos. Canclini, afirma que as políticas culturais resumem-se a um conjunto de intervenções realizadas pelo Estado e outras instituições civis incluindo grupos comunitários a fim de orientar o desenvolvimento simbólico satisfazendo as necessidades culturais da população e obtendo consenso para um tipo de ordem ou de transformação social (CANCLINI, 2001). Graduando em Ciências Sociais pela UENF e Graduando em Letras/Português/Literatura pelo IFF. Bolsista de Iniciação Científica e integrante da Officina de Estudos do Patrimônio Cultural. E-mail: [email protected] 2 Mestre em História e Educação pela Universidade do Porto - Portugal. Bolsista de Extensão e integrante da Officina de Estudos do Patrimônio Cultural.. E-mail: [email protected] 3 Graduada em Engenharia Agroindustrial pelo Centro Uiversitário Matanzas Camillo Sinfuego - Cuba. Bolsista de Extensão e integrante da Officina de Estudos do Patrimônio. E-mail: [email protected] 4 A Officina de Estudos do Patrimônio Cultural constitui-se em um Grupo de Pesquisa (CNPq). Está alocado no âmbito do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico, do Centro de Estudos do Homem – CCH, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. 1

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Teixeira Coelho (1997) considera a política cultural como uma ciência da organização das estruturas culturais. Esta tem como objetivo o estudo dos diferentes modos de preposição e organização de iniciativas no campo cultural, compreendendo suas significações nos diferentes contextos sociais em que se apresentam (COELHO, 1997). Desta forma, estamos de acordo com Marilena Chauí que entende as políticas culturais como uma política de “Cidadania Cultural” e a define como “a cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação” (CHAUÍ, 2006). Ao se falar de Cidadania Cultural, devemos formular uma série de perguntas, que na maioria das vezes não podem ser prontamente respondidas. A ideia de cidadania no Brasil anda a par à ideia de participação e é neste sentido, que as perguntas devem ser direcionadas para entendimento das práticas culturais exercidas pela população. O que as pessoas em Campos dos Goytacazes fazem em termos de cultura? Vão ao cinema ou à biblioteca? Frequentam o museu? Ou preferem assistir a shows musicais? Quando viajam costumam mais ir ao teatro do que quando estão na cidade? De que forma se dá o consumo cultural no município? (Teixeira, 2015, p. 07). Com o objetivo de melhor entender os indicadores culturais e de utilizá-los em relação à realidade cultural local, no âmbito municipal, a Officina iniciou uma pesquisa de iniciação científica centrada nesta abordagem que tem como objetivo principal o desenvolvimento de estudos que possam contribuir à um aprofundamento e reflexão sobre os indicadores culturais, conseguindo reproduzir em dados uma proporção da visão que a população apresenta em relação às práticas culturais na cidade de Campos dos Goytacazes. Deste modo, o objetivo é compreender a noção de cultura por parte seus habitantes. O uso dos indicadores culturais é hoje um campo em ascensão no que diz respeito às políticas e estudos ligados à cultura partindo de um entendimento desta, como construtora de uma identidade e memória na sociedade. 2. CONCEITUAÇÃO E BREVE HISTÓRICO DOS INDICADORES CULTURAIS E DA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL O surgimento dos indicadores de cultura se deu nos Estados Unidos nos anos 1960 como uma ferramenta de política social para dar respostas à necessidade de se conhecer as consequências do crescimento dos movimentos sociais no país. Em 1986, a Unesco criou o projeto Framework for Cultural Statistics/FCS, que antecede o projeto implementado na Comunidade Européia nos anos 1990, sobre estatísticas culturais. Um novo impulso foi dado pela Unesco em 1998, com o Primer Informe Mundial de la Cultura (GETINO, 2010). Na América Latina, países como Argentina e alguns países Andinos (Chile, Peru, Colômbia e Venezuela) apresentam produções em nível nacional, focando no entanto apenas a dimensão econômica da cultura (TEIXEIRA, 2015).

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No Brasil o primeiro Sistema de Informações e Indicadores Culturais/ SINIC, foi fruto de um acordo de cooperação, assinado entre o Ministério da Cultura/MinC e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/ IBGE, em 2004. Alguns pesquisadores da área de cultura consideraram questionável a estratégia do IBGE em adotar como base os critérios de grupo e classe detalhados na Comissão Nacional de Classificação/Cnae, por nele incluírem-se as atividades que não estão de fato relacionadas à criação e às praticas culturais, como a fabricação de aparelhos telefônicos, computadores e artefatos de caça, pesca e esporte (OBSERVATÓRIO, 2007, apud TEIXEIRA, 2014, p.02). Como indicadores culturais, partimos dos conceitos de Satorre e Pfnniger. Satorre, afirma que estes são importantes instrumentos para as pesquisas culturais, pois permitem “ nos aproximar da descrição da realidade da experiência cultural de maneira objetiva e que facilitam seu reconhecimento concreto” (SATORRE, 2011). Já Pfnniger, afirma que o termo indicador cultural seria utilizado para descrever as ferramentas desenhadas a partir de dados que atribuem sentido e facilitam a compreensão de uma informação sobre a área cultural (PFNNIGER,2004). A Educação Patrimonial, tradução do Heritage Education – expressão inglesa, surge no Brasil em meio a importantes discussões da necessidade de se aprofundar o conhecimento e a preservação do Patrimônio Histórico-Cultural. Foi exatamente em 1983 que se iniciam efetivamente as ações de Educação Patrimonial por ocasião do 1º Seminário sobre o “Uso Educacional de Museus e Monumentos”, no Museu Imperial de Petrópolis, RJ. O princípio básico da Educação Patrimonial (TEIXEIRA, 2006): Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado do Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto desses bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural (HORTA, 1999, p.04). É através do conhecimento crítico por parte das comunidades e indivíduos do seu Patrimônio que se dá o processo de preservação desses bens, bem como no fortalecimento dos sentimentos de pertencimento. O Patrimônio é algo herdado dos pais e antepassados. Essa herança só passa a ser nossa, para ser usufruída, se nos aproximarmos dela, se a conhecermos e reconhecermos como algo que nos foi legado, e que deveremos deixar como herança para nossos filhos, para as gerações que nos sucederão no tempo e na história (HORTA, 2005). A Educação em suas formas de mediação, possibilita a interpretação dos bens culturais, tornando-se um instrumento importante de promoção e vivência da cidadania. Consequente738

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mente, gera a responsabilidade na busca, na valorização e preservação do Patrimônio, contribuindo para a formação de: Um sujeito ativo na cena política, reivindicante ou provocador da mutação, da transformação social (...). O direito de produzir, bem como o direito de acesso aos bens culturais, o direito de participar, interferindo no processo de decisões que envolvam a política cultural do país e, por último, o direito à memória histórica (FERNANDES apud AMORIM, 2004, p.78). Ou nas palavras de Freire: Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se as condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura (FREIRE, 1984, p.36). Os problemas pertinentes ao patrimônio cultural requerem do conjunto da sociedade um conhecimento mínimo sobre si mesmo, uma vez que muitos elementos deste fazem parte do nosso quotidiano – como decisões sobre o uso de edifícios históricos, fortalecimento das manifestações da cultura popular, gestões urbanas que alteram o traçado de uma rua, entre outros – e requerem desta mais que opiniões técnicas. Tudo aquilo que envolve o patrimônio cultural supõe um processo de seleção pautada em critérios éticos e políticos. Sem uma “alfabetização cultural”, dificilmente a comunidade pode processar todas as informações necessárias para participar da tomada de decisões. (TEIXEIRA, 2015). Consequentemente estará propício para a criação de uma ética, de ações, trazendo o desejo de não reproduzir o status quo, mas de ação concreta de melhoria das condições sociais globais, do desenvolvimento da comunidade na qual se insere e da requalificação do Patrimônio coletivo acumulado ao longo das gerações, verdadeira riqueza de um povo, herança real que deixamos para os nossos filhos. Deste modo, o trabalho educativo deve promover a elucidação, nas comunidades, quanto à natureza e ao valor dos seus bens culturais, naturais e dos saberes e modos de fazer, a fim de que se possa conhecê-los a promover a construção da memória da população, possibilitando a (re) construção da identidade (AMORIM, 2004). Como reflete Funari: Para o povo, há, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. (...) É comum que os grupos dominantes usem seu poder para promover seu próprio patrimônio, minimizando ou mesmo negando a importância dos grupos subordinados, ao forjar uma identidade nacional à sua própria imagem, mas o grau de separação entre os setores superiores e inferiores

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da sociedade não é, em geral, tão marcado quanto no Brasil (FUNARI, 2004 apud AMORIM, 2004, p.79). As escolas podem e devem participar deste processo de apropriação, através de visitas a museus, arquivos e bibliotecas públicas. Faz-se necessária a estimulação dos alunos pela experiência direta com o objeto de estudo. Para tanto, os professores podem, também, por exemplo, utilizarem objetos culturais na sala de aula ou nos próprios locais onde são encontrados, como peças chave no desenvolvimento dos currículos e não simplesmente como mera ilustração das aulas. Observe a sugestão de metodologia pelo Guia Básico de Educação Patrimonial (ibid, p. 11): São quatro etapas: Observação, Registro, Exploração e Apropriação. 1. Observação: recomenda-se o uso de atividades que estimulem a percepção visual/ sensorial por meio de perguntas, experimentação, jogos, etc. Os objetivos nesta fase são: identificação do objeto, da sua função e seu significado e o desenvolvimento da percepção visual e simbólica; 2. Registro: o uso de desenhos, descrição verbal ou escrita, gráficos, fotografias, maquetes, mapas e plantas baixas, favorecem a fixação do conhecimento percebido, aprofundado da observação e análise crítica, além de desenvolver a memória, o pensamento lógico, intuitivo e operacional; 3. Exploração: nesta etapa parte-se para a análise do problema, levantamento de hipóteses, discussão, questionamento, avaliação, pesquisa em outras fontes como bibliotecas, arquivos, cartórios, etc. desenvolve-se as capacidades de análise e julgamento crítico, interpretação das evidências e significados; 4. Apropriação: o educando já será capaz de recriar, reler, dramatizar, interpretar em diferentes meios de expressão como pintura, escultura, drama, poesia, etc. Esta fase propicia o desenvolvimento da capacidade de auto-expressão, apropriação, participação criativa, valorização do bem cultural. Através destas etapas o trabalho com a Educação Patrimonial torna-se mais fácil e atrativo, pois envolve o trabalho interdisciplinar e participativo entre alunos e professores, além de desenvolver habilidades que ultrapassam o âmbito da sala de aula. Além disso, a educação deve abranger os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações cultura (BRASIL, 1996). 3. EXPERIÊNCIA COM INDICADORES E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM CAMPOS DOS GOYTACAZES Nos estudos em andamento em relação aos indicadores, são considerados os inúmeros resultados e informações já produzidas sobre o setor cultural em nível nacional e estadual que

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foram disponibilizados nos últimos anos5, mostrando uma realidade cultural regional pouco familiar se comparada com a realidade empírica que os membros da Officina se dispuseram a pesquisar. A análise dos indicadores nacionais afirmou a necessidade de um indicador e de informações que englobem de forma concreta a visão cultural da região. A necessidade de uma leitura mais precisa da realidade cultural local, tem sua finalidade também na ligação de um indicador de cultura relacionado às políticas públicas desta área. Sendo um instrumento quantitativo e qualitativo, é chave nas discussões das políticas públicas culturais, também sendo utilizado como avaliador destas. Partimos também do entendimento de que estas políticas devem ser criadas ou melhoradas com o objetivo de socializar a cultura e os equipamentos culturais, ou seja, tornar a cultura democrática e acessível, pois esta é um direito do cidadão, como já mencionado (CHAUÍ, 2006). A construção dos indicadores e a análise dos dados obtidos no âmbito da cultura devem ser vistos como um importante instrumento para os gestores e responsáveis pelas políticas públicas culturais, de acordo com Lluís Bonét i Augustí. Um indicador cultural deve ser um instrumento sintético que permita a formulação de novas políticas culturais ou a manutenção de outras. Segundo este ainda, os indicadores devem ser influenciadores diretos do avance tecnológico e da expressão multicultural da nossa sociedade, sendo instrumento do crescimento da participação democrática dos cidadãos (BONET i AGUSTÍ, 2004). Além da construção de um indicador e do estudo destes, as pesquisas foram também intencionadas de modo a contribuir com os outros interesses da Officina de Estudos do Patrimônio Cultural e principalmente na utilização dos indicadores culturais como base de dados prévia à aplicação dos cursos de educação patrimonial ministrados como parte do projeto de extensão. Os dados referentes à realidade cultural de Campos dos Goytacazes também pretendem contribuir para uma maior reflexão sobre as práticas culturais locais e as políticas públicas municipais voltadas para a promoção e difusão cultural. Neste sentido, os dados levantados nesta pesquisa podem contribuir para estimular estudos semelhantes em municípios vizinhos, o que poderia gerar um conjunto de informações interessantes na região. Segundo Carvalho da Silva para que exista qualidade de verdade nas estatísticas culturais brasileiras, é necessária a existência de uma rede de indicadores que posso mobilizar diversos pesquisadores em diversas regiões, para que dessa maneira seja garantido um sistema de informações de qualidade (CARVALHO, 2008). Para uma melhor percepção da realidade cultural municipal foi sistematizado um questionário, pois este instrumento permite uma tabulação objetiva e consequentemente resultados céleres. A princípio, foram utilizados como dados de referência questionários aplicados e tabulados IBGE. Sistemas de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010. 1ª ed. Rio de Janeiro, 2013. SILVA, Frederico A. Barbosa e ARAUJO, Herton E. Coord: Indicador de Desenvolvimento da Economia da Cultura – Idecult. Brasília: IPEA, 2010.

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pelos pesquisadores da Officina no ano de 2014. Nestes foram obtidos dados referentes aos equipamentos culturais e o público que os frequenta, sendo possível também, entender as condições sociais de acesso à cultura nos espaços analisados. Com base nestes dados foi iniciada a construção de um novo questionário referente ao ano de 2015. Em um primeiro momento o questionário colhe informações socioeconômicas, com o objetivo de conhecer traços do entrevistado como sua escolaridade, idade, cor e sua renda mensal. Após estas informações, foram colhidos dados com intenção de entender a visão que o entrevistado tem da cultura e de suas práticas culturais, incluindo perguntas que tem como alvo a percepção de algumas questões patrimoniais e relacionados aos órgãos de cultura do município. A proposta inicial para número de questionários aplicados era de 300, número que foi alcançado principalmente devido à digitalização deste, ação que proporcionou maior alcance do público, particularmente devido à divulgação nas redes sociais. Como temos trabalhado com os indicadores de cultura, os dados reunidos a partir dos questionários foram produzidos na forma de gráficos, pois dessa maneira podem ser facilmente entendidos por aqueles que o acessarem e por possibilitarem um uso célere nos minicursos de Educação Patrimonial ministrados pela equipe da Officina. Entre as pessoas que acessam estes dados, estão incluídos os próprios pesquisadores, os responsáveis pelas políticas culturais e a sociedade em geral. Os modelos dos gráficos utilizados na pesquisa podem ser vistos a seguir. Gráfico 1: Frequência dos entrevistados no período de um ano ao Museu em Campos/Acervo Officina.

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O gráfico acima, produzido como parte dos dados para um entendimento dos indicadores de cultura, apresenta a frequência em que os entrevistados em Campos visitam o museu em sua cidade. Estas porcentagens nos mostram que 51% dos entrevistados nunca freqüentaram o Museu Histórico de Campos. Dados como estes revelam que embora exista um expressivo número de equipamentos culturais na cidade isso não se reflete nos níveis de apropriação da cultura. O grande índice de equipamentos culturais na cidade não se reflete nas práticas culturais nem no desenvolvimento das políticas de cultura municipais. Gráfico 2: Conhecimento do entrevistado acerca do Coppam/Fonte: Acervo Officina.

O gráfico acima apresenta o conhecimento dos entrevistados em relação ao Conselho de Preservação do Patrimônio Arquitetônico Municipal/Coppam. Uma grande maioria não tem conhecimento do órgão responsável pelas leis de preservação e tombamento do patrimônio em Campos. Mesmo apresentando resultados de maioria negativa em relação ao conhecimento dos órgãos no âmbito cultural, podemos perceber uma porcentagem maior do que esperada empiricamente de conhecedores deste mesmo órgão. Estes dados, além de servirem para os responsáveis pelas políticas públicas também seriam disponibilizados para o público em geral, influenciando e impulsionando o debate acerca da área cultural pelos habitantes locais. Estas discussões se mostram interessantes, pois a partir do momento em que surge um interesse pelas questões culturais, um indivíduo consegue fazer uma leitura da dimensão cultural em que está

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inserido, tornando-o consciente do que Stuart Hall chama de sistema de representação cultural sendo esse sistema, preceptor da construção de uma identidade cultural (HALL,1997). Como já mencionado os dados construídos ao longo da pesquisa foram também utilizados na preparação dos minicursos de Educação Patrimonial ministrados pela Officina neste ano. A partir dos dados obtidos, foram feitas análises sobre as principais carências de informações por parte da população, para que assim, pudéssemos colocar foco nestas questões nos minicursos. Como exemplo, os dados apontaram que a percepção de patrimônio material e imaterial por parte da população era bastante distorcida pois não havia uma percepção correta destes conceitos, o que causava certa confusão. Estes dados nos fazem questionar a capacidade do cidadão campista em intervir nos processos de seleção dos bens patrimoniais a serem preservados. Assim, durante os dois minicursos ministrados, estas informações foram essenciais para a criação do material didático e para as palestras. Os dados são apresentados para os participantes do curso através da apresentação dos gráficos ilustrativos que bem representam a pesquisa, cumprindo deste modo também um dos objetivos já citados, que é tornar os dados disponíveis ao público em geral. Uma das abordagens que buscamos com estes indicadores é confrontar os dados obtidos por meio dos questionários aplicados com os dados disponibilizados pelos órgãos culturais em nível nacional. Esta abordagem pode ser explicada nos resultados dos índices nacionais. No Idecult (SILVA e ARAUJO, 2010), a cidade de Campos dos Goytacazes apresenta um nível alto no âmbito cultural, fato que não é observado nas pesquisas empíricas feitas pelos pesquisadores locais da área cultural. Assim, buscamos compreender o nível de conhecimento do cidadão, a partir da participação, em relação às instituições e órgãos que decidem sobre as questões culturais no município. Os resultados vistos nos gráficos acima apontam para um nível baixo de participação, afirmados no desconhecimento dos órgãos de cultura e na frequência mínima aos equipamentos culturais municipais. Neste sentido, fez-se necessário encontrar uma forma, um caminho e a partir disso, vimos desenvolvermos um espaço de pesquisa, ensino e extensão que valorize a cultura e o patrimônio cultural regional, ao mesmo tempo em que buscamos uma educação mais cidadã, através da Educação Patrimonial. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso dos indicadores de cultura no Brasil como base de dados quantitativos e qualitativos, apresentam resultados céleres e confiáveis acerca das práticas e da visão de cultura por parte da população em uma região, e podem ser utilizados nas atividades relacionadas à Educação Patrimonial. O estudo destes indicadores pela Officina continua por fim, subsidiando e colaborando com o curso sobre as práticas da Educação Patrimonial promovendo assim o conhecimento relacionado à cultura e ao mesmo tempo instruindo sobre a importância dos indicadores culturais

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como ferramenta para o entendimento dos fenômenos culturais, fato que valoriza a cultura e o patrimônio cultural regional, ao mesmo tempo que busca uma educação mais cidadã, através da Educação Patrimonial. Estas pesquisas e ações afirmam o objetivo da Officina, de favorecer ao desenvolvimento de um espaço de pesquisa, ensino e extensão que valorize a cultura e o patrimônio cultural regional, buscando à par a formação dos estudantes e pesquisadores, contribuir ao exercício de uma educação mais cidadã, por meio da Educação Patrimonial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, Rômulo Alves de. Educação Patrimonial e Patrimônio: As representações sociais do Professor de História do ensino Fundamental, da 5ª serie, das redes municipais do Recife e do Cabo de Santo Agostinho. 2004. 235 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2004. BONET i AGUSTÍ, Lluís. Reflexiones a Propósito de Indicadores y Estadísticas Culturales. Portal Iberoamericano de Gestión Cultural. Boletín GC: Gestión Cultural Nº 7, abril de 2004. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394/96, 20 de dezembro de 1996. CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o direito à cultura. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2006. CANCLINI, Nestor García. Definiciones en transición. Buenos Aires: CLACSO, 2001. CARVALHO, Rosimeri da Silva. Indicadores culturais- Reflexões para a construção de um modelo brasileiro. Revista Observatório, 4. São Paulo: Itaú Cultural. 2008. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. FUNARI, Pedro Paulo. Memória histórica e cultura material. Revista Brasileira de História – Memória, História e historiografia, vol 13, nº 25/26. São Paulo: ANPUH, Setembro/92 a Agosto/93. GETINO, Octavio. Algunas experiencias de indicadores y mediciones culturales en América latina. In: CALABRE, Lia – Org. Políticas Culturais: diálogos e tendências. Rio de Janeiro: Ed. Casa de Rui Barbosa, 2010. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997. HORTA, Maria de Lourdes Parreira. Et alli. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília, IPHAN/ Museu Imperial, 1999. _____________. Educação Patrimonial. Disponível em www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2003/ cpe/teimp.htm. Acesso em 2005. IBGE. Sistemas de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010. 1ª ed. Rio de Janeiro, 2013. PFENNIGER, Mariana. Indicadores y estadísticas culturales: um breve repaso conceptual. Portal Iberoamericano de Gestión Cultural. Boletín GC: Gestión Cultural Nº 7, abril de 2004.

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SATORRE, Afons Martinelli (2011): “O uso dos indicadores em pesquisa no setor cultural: salto da estatística para desconstrução dos discurso.” Revista Observatório, 4. São Paulo: Itaú Cultural. SILVA, Frederico A. Barbosa e ARAUJO, Herton E. Coords.: Indicador de Desenvolvimento da Economia da Cultura – Idecult. Brasilia: IPEA, 2010. TEIXEIRA, Coelho. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997. TEIXEIRA, Simonne. “Patrimônio Cultural e Políticas de Cultura: Propostas de ação em Educação Patrimonial. Apreciação sobre a apropriação e uso os equipamentos culturais em Campos dos Goytacazes (Ano III) ”. PROEX/UENF: 2015. TEIXEIRA, Simonne MORAES, Allana et alli. A gente também: Educação Patrimonial e Cidadania. Uberlândia, MG. Revista de Extensão/UFU, V. 5, 2005 – 2006.

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LA “CUESTIÓN NACIONAL” COMO PROBLEMÁTICA AUSENTE EN LOS PROCESOS DE FORMACIÓN DE GESTORES CULTURALES Federico Escribal1 RESUMEN: La emergencia de la gestión cultural como disciplina autónoma, que viene operándose progresivamente en nuestra región desde el último cuarto del siglo pasado ha generado un vasto y complejo dispositivo de ámbitos de formación académica en la Argentina. A la luz de los recientes procesos políticos de recuperación de la centralidad soberanía en el marco de la integración regional, nos permitimos reflexionar acerca de la carencia sistémica de espacios de reflexión y abordaje de la cuestión nacional en estas currículas, sobre la hipótesis de que se están generando técnicos y no cuadros políticos: se enseña el cómo pero no sobre qué; fortaleciendo a partir de este déficit la carencia de agentes que puedan comprender el valor estratégico y la complejidad de la discusión sobre los derechos culturales y la diversidad cultural en nuestro subcontinente en el siglo XXI. PALABRAS CLAVE: Soberanía cultural; políticas culturales; gestión cultural; formación.

La emancipación de la gestión cultural como campo autónomo en el fenómeno social de la creación simbólica en su configuración moderna es –medida en tiempos históricos- una novedad-. Si la comprendemos, junto a Jose Luis Mariscal Orozco “en el centro de los procesos de creación, producción, formación y difusión” (2012: pag 23) tanto en su faceta operativa como en la de soporte creativo para la creación artística, podemos identificar que progresivamente fue ganando independencia en relación a la misma. Como otros ámbitos nacidos a la luz de la hiper-especialización posmoderna, es un campo que se va forjando a la luz de su propio desarrollo: en la Argentina, este proceso de conformación disciplinar comienza a configurarse en la década de 1980 a partir de la difusión de ciertas miradas en torno a la animación sociocultural como las de Ezequiel Ander Egg o Tony Puig Picart o la propuesta geoculturalmente superadora por parte de Adolfo Colombres y su escuela de promoción cultural; pero es recién en la década de 1990 Estudiante avanzado de la Licenciatura en Gestión del Arte y la Cultura por la Universidad Nacional de Tres de Febrero. Ex Director Nacional de promoción de los Derechos Culturales y Diversidad Cultural de la Nación (2011/2015). Integrante del Centro de Estudios Iniciativa Sur. Docente de Procesos de Cambio Cultural y Legislación Cultural en la Tecnicatura en Gestión y Administración de Políticas Culturales del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires / [email protected]

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cuando la disciplina comienza a delinearse más nítidamente y generar marcos institucionales incipientes desde donde legitimar su intervención. Se conjugan la activa participación de agencias de cooperación internacional -principalmente europeas- en la implementación de programas de intercambio y formación cultural, que permitió que toda una generación de gestores se formase a partir de las experiencias y recursos técnicos de los países centrales y la creación de diversas carreras universitarias en gestión cultural que deben considerarse como un factor determinante para la conformación disciplinar y que es donde el presente trabajo busca situar su diagnóstico. Vamos a referirnos genéricamente como “gestión cultural” a la disciplina que engloba el proceso de diseño e implementación de políticas culturales en sus diferentes ámbitos, dimensiones y espacialidades, sin desconocer las tensiones de campo que la utilización de este concepto han suscitado en teóricos suramericanos como el mismo Colombres (2008) o Jose Luis Castiñeira de Dios (2006) por ser una categoría epistemológica eurocéntrica y poco comprensiva en su aplicación de las particularidades histórico – identitarias de nuestra Patria Grande, ni dejar de adherir a las mismas, simplemente para simplificar el abordaje de aquello que nos convoca en este trabajo. Otra de las dificultades intrínsecas del campo es que la gestión cultural plantea para constituirse como disciplina autónoma dentro del campo cultural la múltiple dimensionalidad que la disciplina propone, pudiendo su ejercicio discurrir entre la gestión del patrimonio tradicional y las “bellas artes”, a la intervención en los conglomerados de la industria cultural o creativa, pasando por el universo de las políticas socioculturales y su impacto a nivel comunitario. Añade complejidad y dinamismo la dinámica del desarrollo del campo en la actualidad, con vertiginosos avances de las TICS, la conquista de nuevos derechos basados en el respeto del multiculturalismo, la mutación topológica de redes de comunicación, que demandan una constante actualización y debate de los paradigmas en los que la gestión cultural descansa. Ahora bien, no debemos perder nunca de vista desde donde reflexionamos y en qué dirección: en ese sentido, compartimos que “la dimensión cultural constituye un eje fundamental en la conformación de un bloque latinoamericano que se integre al mundo globalizado” (Garreton: 2008). Nuestra región concentra, conjugadas, biodiversidad y diversidad cultural en una escala y complejidad únicas; y como sustento de su potencia un universo filosófico ontológico invisibilizado y negado, por suerte cada vez menos. La posibilidad de aportar desde Suramérica universos simbólicos y sistemas de valores superadores de la actual configuración de la modernidad globalizada es tangible en la comprensión de la potencia del hilo conductor que une al Buen Vivir postulado por la tradición quechua y aymara, que encuentra en el presidente boliviano Evo Morales su máximo divulgador desde su investidura, con la Tierra sin Mal guaraní, la Comunidad Organizada como paradigma filosófico humanista del peronismo en Argentina y tantas otras corrientes del pensamiento-acción americanas. Son, lo mismo pero no lo igual. El

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reconocimiento de esta potencia, la plena asunción del marco identitario que nos corresponde, y la voluntad de desarrollarnos académicamente desde paradigmas epistemológicos geoculturalmente referenciados son condiciones necesarias para poder proyectarnos en el siglo XXI en el papel que la Humanidad nos demanda. La primera década del siglo trajo de la mano de procesos de democratización popular en una mayoría de los países de la región, una redefinición del rol del Estado, impulsando políticas culturales y asumiendo en ese sentido el mandato de las históricas conferencias de la UNESCO desarrolladas entre la de Venecia en 1970 y sus correlatos continentales que acabaron con Americult en Bogotá en 1978. Es en esta última justamente donde aparece la sugerencia de la Conferencia para que los Estados Miembro asuman la responsabilidad de formar agentes, clasificándolos en las siguientes categorías: a) administradores culturales, b) animadores culturales, c) conservadores del patrimonio cultural, y d) archivistas, museólogos, y bibliotecarios. Es en estos primeros años del siglo que verificamos un crecimiento sustantivo en escala de trabajos académicos que dan cuenta de la conformación disciplinar del campo, lo que hace posible encontrar libros de gestión cultural en las librerías, y hasta editoriales especializada en la temática. En el plano académico en la Argentina actualmente existen seis carreras de grado vinculadas a la gestión cultural, cerca de una decena de cursos de posgrado y una gran cantidad de cursos de pregrado. Lo que intentaremos develar en este trabajo es la presencia –o ausencia- de enfoques ideológicos orientados a la generación de conciencia nacional como vectores dinamizadores de la política cultural a ser generada por los actores en formación. Volviendo a Colombres coincidimos en que “(…) el personal no puede formarse como si fuera a trabajar luego con vientos propicios, en el marco de una cultura reconocida, desarrollada y que goza de plena salud, sin complejo alguno de inferioridad ni vestida con el pobre ropaje de lo periférico. Hay cuestiones que deberá conocer a fondo, como la compleja interacción entre cultura popular y cultura de masas, entre cultura popular y cultura ilustrada, y entre cultura nacional y cultura universal, dialécticas casi borradas hoy por el proceso de globalización neoliberal, el que pretende acabar así con la fundamental dialéctica de lo propio y lo ajeno, que diferencia el campo de pertenencia del campo de referencia. Deberá conocer también los mecanismos de dominación, las formas históricas de penetración cultural, y sobre todo las vías para alcanzar en lo simbólico una desasimilación del modelo dominante y el pleno control de la cultura.” (2008: p. 4) La teoría del control cultural esbozada por Bonfil Batalla (1982) ordena tipos ideales en la dialéctica entre los Pueblos como sujeto en relación a su capacidad de decisión sobre los elementos culturales. Ordena en un cuadro de doble entrada cuatro tipologías de producir, usar y reproducir elementos culturales: en función de lo propio y lo ajeno, tanto en relación con el

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elemento en sí como en la potestad de definir su utilización (el poder cultural), nos habla de culturas impuestas (donde tanto los elementos como la decisión de cómo se utilizan son ajenas al Pueblo), enajenadas (donde sobre elementos propios las decisiones se toman fuera de la Comunidad y sobre intereses ajenos a la misma), apropiadas (donde el Pueblo decide como utilizar elementos culturales “importados”) y –por último- autónomas. En estas, tanto los elementos como la decisión de cómo producirlos, usarlos y reproducirlos son propios. Curiosamente, en contextos sociohistóricos como los descriptos por Colombres, donde el campo de pertenencia aparenta estar borrado por medio de una acción política y comunicacional implacable e ininterrumpida, nuestras casas de Altos Estudios parecen darle una relevancia marginal –cuando se la dan- a la cuestión nacional como universo de problemática académica a la hora de formar aquellos agentes responsables de diseñar e implementar políticas culturales en los diversos niveles y orientaciones. La representación del quehacer del gestor pareciera estar desvinculada en la proyección práctica de lo referido a la necesidad de desarrollar conciencia nacional. En el presente trabajo describiremos la relevancia que se le otorga a estas reflexiones desde una perspectiva curricular: aún en la comprensión de que entre currícula explícita (el plan de estudios) y la implícita (aquello que efectivamente se dicta en el aula) existe un universo de matices dentro del cual cada cátedra y docente en conjunción con el estudiantado resignifican la práctica pedagógica, nos resulta relevante identificar los posicionamientos superestructurales –y sus carencias- a la hora de proyectar los cuadros técnico-dirigenciales de ámbitos estratégicos como el de las políticas culturales en nuestro país. Pasemos al análisis curricular en concreto: la primera carrera de grado del país en lo respectivo a este tema es la Licenciatura en Gestión del Arte y la Cultura de la Universidad Nacional de Tres de Febrero. Creada formalmente en 1998, su primera cohorte comenzó a cursar en el año 20002. En el plano curricular podemos constatar que sobre treinta y cinco materias, solo en dos de ellas aparecen contenidos estrictamente ligados a la georeferenciación específica argentina: al igual que en los restantes espacios formativos que vamos a analizar, lo que se enseña es el “como” gestionar, sobre un enorme desconocimiento del “qué” se gestiona. Recién en el cuarto nivel de la rama de “Lenguajes artísticos” aparece el componente “Artesanía y folclore”, materia que –más allá del enfoque de cátedra- innegablemente deberá sobrevolar las particularidades culturales argentinas. Dicha materia se presenta en el quinto cuatrimestre, el primero del tercer año de cursada, ya en una segunda mitad de la carrera. Incluso es posible recibirse de Técnico en Gestión del Arte y la Cultura sin cursarla. El otro espacio curricular que aporta a un conocimiento de lo propio es “Historia de la Cultura III” donde en un cuatrimestre se sobrevuela por todo lo que aconteció en Suramérica en el plano de lo cultural, con particular detalle en la Argentina, si es que esto fuese posible en tan escaso tiempo. 2

Personalmente, inicié mi vida universitaria en su seno, en 2001.

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La Universidad Nacional de Mar del Plata ofrece otra de las formaciones de mayor datación, que recientemente (en 2014) alcanzó el grado después de una década ofreciendo una Tecnicatura en Gestión Cultural. Si bien se destaca la vocación de vincularse con su territorio –no solo en perspectiva local sino complementariamente ubicándose como el ámbito de formación de gestores culturales para el ámbito provincial bonaerense- no existen referencias puntuales a la construcción de soberanía cultural en el sentido que planteamos inicialmente. Sobre quince materias del plan de estudios original, se repite la inexistencia de expresiones que remitan al lugar específico desde el cual se produce el fenómeno educativo. La “Historia cultural del siglo XX” se visita en tan solo un cuatrimestre, y no hay indicios curriculares de que se profundice desde una perspectiva suramericana o argentina. La Universidad Provincial del Sudeste trabaja una Tecnicatura Universitaria en Gestión Cultural y Emprendimientos Culturales con una currícula de tres años y veintidós materias. Entre ellas, dos materias dedicadas a “Historia cultural” y otras dos a “Geografía cultural”, que han de orientarse a un conocimiento sobre lo propio. Complementariamente, la inclusión programática de un espacio de revisión de “Experiencias de gestión” vincula al estudiantado con el territorio, pero sigue sin garantizar que puedan conceptualizarse las dificultades derivadas de los procesos de colonización pedagógica y penetración simbólica que lo afectan en términos superestructurales. Debemos destacar que se observa una aproximación progresiva a la cuestión en las carreras de reciente formulación, lo que puede tomarse como un indicio de desarrollo de campo profesional. Los siguientes ejemplos se inscriben, en nuestra opinión, sobre esta línea: En el caso de la Licenciatura en Gestión Cultural de la Universidad Nacional de Avellaneda, creada en 2010, ya se visualiza un posicionamiento que asume desde donde se produce el hecho educativo y hacia donde se forman los profesionales encargados de dinamizar el campo cultural. En los objetivos de la carrera se expresa: “El objetivo de la carrera es formar profesionales capaces de concebir, diseñar, implementar, gestionar y ejecutar políticas culturales, proyectos de investigación de las distintas manifestaciones artísticas y de los espacios socioculturales; producir y desarrollar empresas de bienes y servicios culturales; brindar servicios de asesoramiento cultural y de protección del patrimonio material e inmaterial alertando sobre el deterioro y el ultraje del patrimonio cultural urbano y rural; promover las diferentes tradiciones culturales e identidades étnicas y locales, asumiendo un compromiso ético ante la sociedad.” Asimismo, en el plan de estudios postula como uno de los diez puntos nodales del perfil profesional que se busca formar que los estudiantes logren generar diagnósticos socioculturales “con especial énfasis en la región y Latinoamérica”. Si bien no hay espacios curriculares defi-

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nidos en su abordaje sobre la cuestión nacional, es de destacar el ámbito interdisciplinario de “Trabajo Social Comunitario”, que a lo largo de cuatro niveles integra a los estudiantes de las diferentes carreras de la Universidad (Ciencias Ambientales, Turismo, Enfermería, entre otras) y los vincula dinámicamente con organizaciones de base de la región donde la misma está inserta, promoviendo una dialéctica entre academia y territorio que retroalimenta el proceso formativo en una dinámica freireana. A partir de 2009, en la Universidad Nacional de General Sarmiento, también situada en el conurbano bonaerense, funciona la Licenciatura en Cultura y Lenguajes Artísticos. Esta presenta una mayor carga curricular orientada a la reflexión académica desde una posición geoculturalmente referenciada3 y parece haber tenido una vocación de conformarse en ese sentido desde su diseño programático inicial. Se destaca en su currícula asimismo la inclusión de la materia “Culturas Populares, creencias e interculturalidad” que demuestra una vocación por abordar la cuestión de la diversidad cultural, estratégica para nuestro bloque regional. Por último, la Universidad Nacional del Nordeste, de gran historia y arraigo en la región Litoral de la Argentina, con sedes en las ciudades capitales de Chaco y Corrientes (Resistencia y Corrientes, unidas por un puente) lanzó hace escasos años la Licenciatura en gestión y desarrollo cultural. Presenta una fuerte impronta de georreferenciación cultural: con materias específicas desde el primer año de cursada como “Ambiente y territorio en Argentina y el NEA” o “Antropología cultural”, o “Las culturas originarias en el NEA” e “Historia de las artes en Argentina y el NEA” en el segundo. Sobre esta línea, al menos ocho materias sobre treinta y siete totales tienen –desde su enunciación curricular- planteos vinculados al desarrollo de la gestión de políticas culturales vinculadas al territorio desde el cual se forma a los agentes, y con una mirada integradora de lo local, lo regional y lo nacional. Otro aspecto destacable de su plan de estudios es que asigna una particular relevancia a la gestión cultural en el marco del Estado, siendo éste el ámbito primario para el diseño e implementación de políticas culturales con la soberanía como horizonte, en tanto no se encuentra motorizado por el afán de lucro como el campo de lo privado, ni amenazado por su sustentabilidad financiera como suele ser el caso del tercer sector. CONCLUSIONES Como consignamos previamente, el enfoque que prima en el diseño curricular de las carreras de grado sobre gestión cultural en Argentina es una mirada de la técnica por sobre el conocimiento profundo y distintivo de la diversidad cultural constitutiva de la identidad nacional. Son un total de diez materias sobre treinta y cinco: Historia Latinoamericana Contemporánea, Historia Argentina Contemporánea, Problemas del Arte Argentino y Latinoamericano I, Historia Latinoamericana Contemporánea, Problemas del Arte Argentino y Latinoamericano II, Problemas del Arte Argentino y Latinoamericano I, Problemas del Arte Argentino y Latinoamericano I, Arte Argentino y Latinoamericano II, Problemas Culturales Latinoamericanos, Culturas Populares, Creencias e Interculturalidad.

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En la Argentina, los gestores culturales pueden alcanzar un grado de legitimidad académica en el país desconociendo: la matriz identitaria conformada por la convergencia de la matriz indígena junto al mestizaje criollo enriquecido por los aportes inmigratorios y el componente afroamericano, la complejidad de cada uno de estos mundos en particular, las características geoculturales de cada una de nuestras regiones y sus expresiones de la cultura popular –en una Nación lo suficientemente vasta-, los grandes hacedores de la cultura popular nacional, las nuevas tendencias y movimientos artístico-culturales. Notamos que una mayoría de los estudiantes egresan desconociendo la existencia de Atahualpa Yupanqui o que Horacio Salgán está vivo, por nombrar solo dos de los grandes referentes de la música argentina del siglo XX. Como corolario –nobleza obliga- hemos descripto que paulatina y progresivamente cada vez más cátedras comienzan a percibir la necesidad de, cuando no romper con los paradigmas epistemológicos eurocéntricos, al menos complementarlos con autores y miradas geoculturalmente centradas en nuestro bloque regional. Sobre esa máxima de Rodolfo Kusch citada por su colega Carlos Cullen de que “el pensamiento no se toca ni se ve, pero gravita, arraiga sobre el suelo donde se lo produce”, ciertos esbozos de soberanía cultural comienzan a colarse en los contenidos que ciertos docentes incorporan a sus clases, que bien podrían inscribirse en la categoría de Estudios y otras prácticas intelectuales latinoamericanas en cultura y poder que propone Daniel Mato (2003) para superar la mirada eurocéntrica de los Estudios Culturales Latinoamericanos e incluir los procesos de producción y distribución simbólicos que emanan de las experiencias sociales que se dan en nuestro continente y que suelen ser negadas por parte de la academia. Resta ver si este proceso logra consolidarse, profundizarse, y perforar las lógicas institucionales-académicas para generar corrientes epistemológicas autónomas en el marco de las políticas culturales, que permitan abordar sin condicionamientos los problemas particulares que se dan en nuestras sociedades sin el pesado lastre de lo impuesto, con toda la potencia de lo propio. En los albores de este siglo XXI la Humanidad parece estar demandando nuevos enfoques para superar crisis humanitarias, ecológicas y económicas cuyas causas se encuentran en las lógicas imperantes en los centros de poder y que difícilmente encuentren en ellos opciones superadoras.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BONFIL BATALLA, Guillermo. Lo propio y lo ajeno. Una aproximación al problema del control cultural en COLOMBRES, Adolfo (compilador) La cultura popular, México, La Red de Jonás Premiá Editora, 1982 CASTIÑEIRA DE DIOS, Jose Luis. Crítica de la gestión cultural pura en Revista Aportes para el Estado y la Administración Gubernamental, Buenos Aires, Año 12 Nº 23, 2006, pp 79-92

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COLOMBRES, Adolfo. Jugar en el bosque ¿militancia cultural o gestión profesional? Ponencia presentada en el Congreso Provincial de Cultura de la Provincia de Buenos Aires (Argentina), 2008 GARRETON, Manuel. El espacio cultural latinoamericano revisitado en RUBIM, Linda Rubim y MIRANDA, Nadja “Transversalidades da cultura” Salvador, EDUFBA Coleçao Cultura, 2008. MARISCAL OROZCO, Jose Luis. Profesionalización de gestores culturales en Latinoamérica: Estado, universidades y asociaciones, México, Universidad de Guadalajara, 2012 MATO, Daniel. Prácticas intelectuales latinoamericanas en cultura y poder. Sobre la entrada en escena de la idea de “Estudios Culturales Latinoamericanos” en un campo de prácticas más amplio, transdisciplinario, crítico y contextualmente referido en Revista Iberoamericana, Vol. LXIX, Núm. 203, Abril-Junio 2003, Universidad Central de Venezuela, pp 389-400

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O ARTIGO 231 E A VALIDADE DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Felipe Teixeira Bueno Caixeta1 RESUMO: Jurado de morte pelos parlamentares ligados aos setores do agronegócio, mineração e energia, o Artigo 231 da Constituição Federal, ao evocar uma noção de terras tradicionalmente ocupadas, pode promover uma ecologia da política do patrimônio cultural; apreciado à luz dos conflitos ambientais, o Registro surge como instrumento capaz de frear e reverter os projetos de desenvolvimento predatório, o que explicaria a pouca ênfase em sua aplicação pelo Estado capturado pelo grande capital. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Tradição, Conflito Ambiental, Democracia.

A Constituição de 1988 estabeleceu um emaranhado de leis extenso e denso como uma floresta tropical, a legislação e o direito se impõem e sobrepõem em códigos, capítulos, artigos, parágrafos e incisos que regulam praticamente todas as dimensões da vida do cidadão; em 1984 as massas nas ruas não conseguiram eleições diretas, mas os ativistas aportaram o desejo reprimido de Democracia e justiça social na Constituinte de 1988. Nos Artigos 215 e 216, fixaram a responsabilidade do poder público, em colaboração com as comunidades, em promover e proteger o patrimônio cultural por meio de “inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”; no parágrafo 5 do Artigo 216, lê-se: “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”, o Artigo 68 é incontestável, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado pemitir-lhes os títulos respectivos” (Brasil, 1988). Uma segunda frente de trabalho assegurou os direitos indígenas ao território habitado, por meio do Artigo 2312. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as Jornalista e cineasta, mestrando do Programa Cultura e Territorialidades (PPCULT/UFF). [email protected] O Artigo 231 vem sendo atacado pela bancada ruralista no Congresso Nacional, por meio da PEC 215, cuja redação foi aprovada em 27 de outubro de 2015 e consiste de uma grave ameaça aos povos indígenas, quilombolas e ao meio ambiente. Por meio da emenda constitucional, caberá ao Parlamento identificar, reconhecer e fazer a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas, atribuição hoje do Executivo; como trata-se de emenda, não cabe veto presidencial.

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imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (BRASIL, 1988) A década seguinte à redemocratização, diferente do que possa imaginar o ingênuo leitor, não temporalizou usufrutos das conquistas asseguradas na Constituição Cidadã; logo no ano seguinte à promulgação da Carta, com a eleição de Fernando Collor (1989) e nos dois governos Fernando Henrique Cardoso (1994 - 2002), avançou um macro programa neoliberal, que agiu também nas micropolíticas, com efeitos profundos nos processos de subjetivação, com a difusão de uma proposta ideológica generalizante e massiva de que só havia um caminho a seguir, na direção de uma entrada subalterna do Brasil na globalização da economia e mundialização da cultura; os anos 1990, também conhecidos por “A fernandécada” entre os ativistas sociais, localizam uma memória clandestina e vibrante, que é a da resistência de populações tidas por mais fracas como índios, quilombolas, agricultores sem terra e favelados, que saíram da invisibilidade com a Constituição debaixo do braço, remando contra a maré, para mobilizar a defesa de seus modos de vida ecologicamente mais equilibrados e plurais. Os conflitos ambientais, que também podem ser compreendidos como conflitos culturais e identitários, eclodiram na cena pública, evidenciando uma disputa da imaginação social, do território e do modelo de desenvolvimento a ser implementado no Brasil em democratização. De acordo com o estudioso dos conflitos desta natureza, o economista Henri Acselrad, difusor da noção de justiça ambiental3, Conflitos ambientais são aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis, transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos, decorrentes do exercício das práticas de outros grupos (ACSELRAD, 2004, p. 25). Escreve Alfredo Wagner, antropólogo estudioso dos conflitos ambientais e identitários na Amazônia, autor de uma cartografia social junto aos povos da floresta. Na década de 90 foram as chamadas “quebradeiras de coco babaçu” e os “quilombolas” que se colocaram na cena política constituída, consolidaram seus movimentos e articularam estratégias de defesa de seus territórios, juntamente com outros povos e comunidades tradicionais, tais como os “castanheiros” e os “ribeirinhos”. Além destes começaram a se consolidar no último lustro, as denominadas “comunidades de fundos de A Rede Brasileira de Justiça Ambiental, lançada no Rio de Janeiro em 2001, a partir do encontro e articulação dos chamados atingidos e resistentes no território, reúne mais de 200 entidades e movimentos sociais, entre povos tradicionais, centros de pesquisa universitários, terceiro setor e dispõe de um amplo banco de dados reunidos sobre os casos de conflito ambiental, até então disponível pelo sitio www.justicaambiental.org.

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pasto” e dos “faxinais”. Estes movimentos, tomados em seu conjunto, reivindicam o reconhecimento jurídico-formal de suas formas tradicionais de ocupação e uso dos recursos naturais. (ALMEIDA, 2008, p. 19) Como se vê, neste ponto, ao lado da noção de “tradição” no sentido etimológico de dizer através do tempo, “significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado”, conforme normatizou o IPHAN em 2006 (2010, p. 49), noções de “tradição” e “tradicional” aparecem na cena pública pela voz dos resistentes no território, atingidos por conflitos ambientais, culturais e identitários do presente, são termos potentes que expressam reivindicações de movimentos sociais de grupos atingidos por injustiças ambientais e o racismo contra suas culturas, vistas como inferiores, menosprezadas como de coisa de negro, pobre, índio, favelado ou periférico. A posição “a tradição e a cultura estão acabando”, criticada, combatida e menosprezada pelos estudiosos das linhas de Ulf Hannerz (1997, p 3-39), Eric Hobsbawn, entre outros, tornou-se fulcral para grupos tidos por mais fracos frearem projetos do capitalismo predatório que degradam o meio ambiente, rompem sociabilidades festivas e o patrimônio cultural; ao enquadrar o olhar como que por um manual a ser seguido à risca, o olhar antropológico sobre a cultura pode anular a resistência e produzir argumentos que favorecem os contendores na intervenção no território. O reconhecimento jurídico formal das práticas de uso comum, mediante a ação dos movimentos sociais, permite registrar conquistas efetivas, contrariando simultaneamente tanto as interpretações deterministas de que se estaria diante de uma “crise do tradicional” mediante o crescimento demográfico, quanto as interpretações evolucionistas que reiteram uma “crise dos comuns” indicativa de seu trágico declínio ou de uma “tendência inexorável ao desaparecimento. (ALMEIDA, 2008, p. 20) Ainda que não percebessem, ao reivindicarem o reconhecimento jurídico-formal de suas formas tradicionais de ocupação das terras e uso dos recursos naturais, por meio do Artigo 231, quilombolas, indígenas e quebradeiras de coco elaboraram uma ecologia para o patrimônio cultural, evidenciando estar na cultura o instrumento para coibir propostas degradantes do meio ambiente e da diversidade, pelo avanço do agronegócio, da mineração, instalação e operação de empreendimentos poluentes, bem como para criar condições sociais para a reversão das injustiças ambientais que afetam mestres e comunidades de saberes tradicionais, deslocados para os bairros pobres e insalubres das cidades. OS LIMITES DA POLÍTICA PATRIMONIAL Em uma sociedade extremamente desigual, na qual alguns setores detém a capacidade de concentrar para si as decisões políticas, a informação, as riquezas, o acesso à água, à mora-

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dia e ao saneamento, os melhores alimentos, empregos, sistemas de educação, saúde e meios de transporte, enquanto podem localizar sobre as maiorias mais negras e pobres, indígenas e quilombolas, pescadores artesanais, agricultores de subsistência e extrativistas, a carga maior da poluição como os esgotos, os lixões e a contaminação industrial, privando-os da água potável, do alimento, da saúde e da educação escolar, degradando seus ambientes e segregando suas culturas, forçando-os a residir nos trechos comercialmente desinteressantes nas margens inundáveis de rios, encostas e a se empregar nas tarefas mais insalubres e mal remuneradas, em suma, em uma sociedade marcada pelo racismo e as injustiças ambientais, conforme veio a ser designada pelos movimentos sociais esta estratégia de violação de direitos e imposição desproporcional de riscos sobre populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais (ACSELRAD, 2003, p. 63), como o Registro do patrimônio imaterial poderá vir a ter efetividade? Como acreditar que ele poderá angariar o respeito de grupos e instituições nos três poderes, frear a produção das iniquidades socioculturais e ambientais que atrapalham ou impedem os modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, colocando em risco o acervo cultural popular? Com frequência, o tombamento de espaços, lugares e a patrimonialização de formas de sociabilidades festivas, com a justificativa do enobrecimento4 das áreas ou da preservação das culturas, podem acontecer motivados por preocupações turísticas, financistas e comerciais, que pouco levam em conta as pessoas que residem no território e continuam os saberes tradicionais. O pesquisador Tito Bartolomeu escreve que a partir do Governo Médice, 1973, com o Programa Nacional de Reconstrução das Cidades Históricas, por exemplo, houve incentivos ao turismo, ao comércio de artesanato e a espetáculos folclóricos, que Salvador, Olinda, Recife, São Cristovão (Se) e São Luís (Ma) iniciaram políticas de tombamento que atravessaram os anos 1980; ao lado de neutralizar lideranças culturais das classes mais populares e conseguir uma censura prévia de conteúdos, para Frei Tito, a bem intencionada política de Aloisio Magalhães, apropriada e desvirtuada pela ditadura civil-militar, produziu a gentrificação dos centros urbanos históricos, com remoção, segregação e exclusão dos moradores das áreas tradicionalmente ocupadas, bem como logrou a expropriação das culturas, com a difusão de uma certa representação de cultura popular para-folclórica, para tentar referenciar uma imagem do governo com a de um regime nacionalista e ao lado do povo, o que de fato não era o que ocorria. Os danos provocados pela política cultural autoritária e incipiente perduram nas práticas sociais e no imaginário, muitos cidadãos defendem que “no tempo dos militares a atenção para a Cultura era maior”, conforme problematizou o mestre Raimundo Aniceto, líder da Banda Cabaçal Irmãos Aniceto e ilustre morador do município de Crato no Ceará. Mestre Raimundo O pesquisador Bartolomeu Figueroa de Medeiros esclarece que o termo gentrificação é um neologismo da palavra inglesa gentrification, que pode ser entendida como enobrecimento. 4

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conta que em 1976 a Banda Cabaçal Irmãos Aniceto foi levada por apoiadores locais da cultura cratense ao encontro do presidente Ernesto Geisel em Brasília, na ocasião o coração duro do ditador teria abrandado por alguns instantes, ao som e com a dança dos pifes e facões, então ele teria mandado redigir uma carta para o prefeito de Crato, ordenando colocar os irmãos Aniceto, agricultores sem terra, em trabalho com carteira assinada; o prefeito inseriu os irmãos Antônio José e Raimundo Lourenço da Silva na folha da prefeitura, sem a carteira, em cargo comissionado de salário mínimo que depende da boa vontade do político da hora para continuar a receber o provento. Observa-se que a banda dos Anicetos colaborou para a sedimentação de uma imagem de sua terra natal, o Crato, como uma Cidade da Cultura; remunerados para um número de apresentações anuais, a cabaçal foi encaminhada para dois, três ou mais eventos semanais, sem hora extra, recursos adicionais, previdência social ou outros direitos trabalhistas, em atividade incessante a ponto de atrapalhar as roças de subsistência dos músicos agricultores. Ao lado de não incluir os outros mestres, grupos e elementos do patrimônio cultural do Crato na política cultural, o reconhecimento pelo poder público municipal não resultou em melhoria significativa sequer nas condições de vida da família Aniceto, “a depender dos recursos pagos a banda, esposa e filhos morriam de fome”5, disse Dona Raimunda da Silva, viúva de mestre Antônio, o Pife Número 1 do Brasil, falecido em janeiro de 2015. Em tempos democráticos, estará a política patrimonial mais aberta à participação dos principais beneficiários, isto é, até que ponto ela está preparada para incluir, escutar e possibilitar que os mestres da cultura, os continuadores dos saberes tradicionais e resistentes no território falem por si mesmo e não por mediadores, decidam como melhor fazer para desenvolver os bens culturais, sem as intervenções verticalizadas por parte de especialistas, acadêmicos, políticos, gestores, produtores e empresários, sem o risco de serem cortados da folha por expressarem ou assumirem uma posição de autonomia, sem que ao final do processo de patrimonialização, se descubram excluídos de suas terras tradicionalmente ocupadas ou expropriados da sua cultura enobrecida? Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, de 1997 a 2000, ao lado do tombamento do patrimônio de cimento e cal, os prédios históricos, iniciou-se a política nacional do patrimônio imaterial (PNPI) para abranger saberes, festejos, pessoas, formas de sociabilidades; o Decreto 3551/2000, que instituiu o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro” e determinou a organização do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), estabeleceu que após a devida documentação, aprovado o Registro pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, as informação reunidas sobre o bem deveriam constar em um ou mais dos quatro livros tombos: Saberes; Celebrações; Formas de Expressão; Lugares. 5

Raimunda Lourenço da Silva, em depoimento ao autor em 20 de janeiro de 2015, na cidade de Crato no Ceará.

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Como se depreende da consulta aos princípios da política do patrimônio imaterial no Brasil, o PNPI resultou de um diálogo internacional cujo marco inicial teria sido uma reivindicação de um pequeno grupo de países liderados pela Bolívia à UNESCO em 1989; destes estudos, derivou a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. O objetivo do Registro no Brasil não seria assegurar a integridade física do bem por meio de fiscalização, conservação e restauração, “mas propiciar sua continuidade, com base na produção de conhecimento, documentação, reconhecimento, valorização, apoio e fomento” (IPHAN, 2010, p. 23); o Registro opera associado à elaboração e execução de planos de salvaguarda de forma compartilhada com a comunidade proponente, para “definir e organizar ações para a melhoria das condições socioambientais de produção, reprodução e transmissão dos bens registrados”; com o Decreto 3551/2000, o Estado abriu a política pública, visto que “os planos visam a gestão autônoma da salvaguarda desses bens culturais por parte de seus detentores e produtores” (2003, p. 24); no entanto, como era de se esperar, a lógica neoliberal atravessou a formulação da política e em franca contradição com o seu dever constitucional, o Estado se desresponsabilizou sobre a continuidade do bem imaterial registrado: com a previsão de reavaliação a cada dez anos, constatado o fracasso das salvaguardas, “fica mantido o Registro no livro tombo, como referência cultural de seu tempo”. (2003, p. 24) Para o autor Bartolomeu Figueroa, durante o governo FHC, as expressões “intangível” e “imaterial”, ainda que precariamente, ficaram relacionadas ao patrimônio indígena, culturas quilombolas não foram vistas como um bem para o Estado preservar; o pesquisador menciona a desatenção do presidente FHC com os povos de quilombo, para evidenciar o grau de percepção do Estado e da sociedade com as culturas dos descendentes de escravos e quilombolas no Brasil democratizado, ou seja, a dificuldade em incluir nas representações do que seja um patrimônio cultural nacional a ser preservado, a parte desta herança continuada por esta populações. Em 2002, após oito anos de governo FHC e 15 anos do Artigo 68, o Brasil tinha mapeado 743 comunidades remanescentes de quilombo, 71 tituladas e nenhuma constava do INRC (2001). Em meio ao caos social, provocado pela radicalidade da aplicação do modelo liberal, com a flexibilização de leis e direitos em favor dos projetos do grande capital, algo mudou, com a eleição do primeiro presidente de origem de classe popular no Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, em fins de 2002. No primeiro ano do Governo Lula (2003-2010), em 20 de novembro de 2003, o primeiro presidente do PT assinou o Decreto 4887, para regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombo, fortalecendo a Fundação Palmares para o reconhecimento para a titulação pelo INCRA, sem contudo proceder o registro como patrimônio imaterial, atribuição do IPHAN. Durante a gestão de Lula, a sociedade e o poder público compartilharam a confecção de um plano para estruturar um Sistema Nacional de Cultura (SNC), onde ficou evidente a preo-

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cupação com o patrimônio cultural popular, os conflitos identitários, o racismo e a reprodução das injustiças ambientais, a condição social dos mestres populares e a quebra na sequência geracional da transmissão dos saberes. No ponto culminante, artistas, ativistas, pesquisadores e gestores de munícipios de todos os estados participaram de três Conferências Nacionais de Cultura em Brasília. Imagina-se, neste sopro de prosperidade dos movimentos sociais e clamor republicano pela Cultura durante o Governo Lula, que o IPHAN viesse a ter a sua posição fortalecida, em vista da sua missão institucional; aconteceu que o orçamento do Ministério da Cultura, ao qual o órgão está vinculado, ainda que tenha dobrado de 2009 a 2015, já na gestão da sucessora de Lula, a primeira mulher presidenta, Dilma Rousseff, permaneceu em cerca de 900 milhões de Reais por ano após os cortes de julho de 2015; o IPHAN, esforçando-se para avançar o PNPI, com infraestrutura e corpo técnico reduzido, burocracias sistêmicas, metodologias centralizadas, sem recursos, emperrou; pressionado por empreendedores de mega-eventos, portos, unidades fabris, barragens, monoculturas, em vez de atuar no licenciamento, estabelecer e cobrar condicionantes duras, veio a retirar o tombamento de bens como o Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro e do Cais Estelita no Recife para viabilizar as obras; o IPHAN, que precisava ganhar asas para responder ao imenso passivo de demandas do patrimônio material e imaterial, impedir mais danos pela política do crescimento econômico a qualquer custo, pode-se dizer não foi dado nem o exercício pleno das pernas, porque talvez se o tivesse e com ele a autonomia para correr ao lado da lei, seria inevitável a criação de incontornáveis obstáculos a projetos estratégicos para a acumulação de mais capital pelos super-ricos. O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial chegou em 2015 enfraquecido, com 28 bens registrados, os acervos de informações resultantes dos inventários não estão sistematizados, digitalizados e acessíveis ao público. O autor Bartolomeu Figueroa defende que a titulação pelo INCRA confere a posse da terra, enquanto o Registro transforma a continuidade das culturas quilombolas em uma responsabilidade do Estado; o antropólogo mostra que o Registro quando resultante de processos horizontais, compartilhados e participativos, pode configurar uma tática de comunidades mais frágeis e vulneráveis, no seu estudo de caso, os quilombolas, para agenciarem ou repelirem imposições nefastas do poder, defenderem seus modos de vida, estabelecerem compromissos para impedir a degradação das terras. À luz do Artigo 231 e do Registro, conclui que a patrimonialização, conjugada com a posse da terra, amplia a noção esquizo do patrimônio dividido em material e imaterial, transformando o Quilombo em um monumento nacional, inserindo nas referências culturais do país, povos e culturas desprezados e silenciados, colaborando para a superação do paradigma da política patrimonial brasileira associada à preservação de um patrimônio nacional branco, senhorial e católico.

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Michel de Certeau, ao pensar a arte da sobrevivência pelos mais fracos, diferencia estratégia e tática: enquanto a estratégia é vertical, emana do poder, vem de cima para baixo, a tática é definida na horizontalidade, avança da base da pirâmide de baixo para cima, ocorre circunstancialmente e de forma relacional. Para este francês que pesquisou no nordeste brasileiro a língua falada pelos camponeses do sertão pernambucano, as táticas dos mais fracos não seriam de confronto direto com o poder, nem eles assimilariam ou reproduziriam passiva e alienadamente tudo o que o poder lhes impõe: com astúcia, como um palhaço Mateus trampolino, eles agenciam o que lhes é imposto, se apropriam dos signos e valores, os ressignificam e modificam o uso de acordo com suas necessidades, ativando um jogo cuja principal característica é a resistência cotidiana e silenciosa dos tidos por fracos, dominados ou subalternos. Certeau sugere que a partir da ideologia dominante do catolicismo (estratégia do poder), o sertanejo devolveu a religiosidade popular como tática de resistência cotidiana; em suas caminhadas pela cidade, ele vê o sentido com qual os espaços são projetados e os usos que de fato as pessoas comuns fazem dele, transformando-os continuamente em lugares com significados, modos de apropriação, vivências e memórias coletivas diferentes daquelas pretendidas pelo poder. “Essas performances operacionais dependem de saberes muito antigos. Os gregos as designavam pela métis. Mas elas remontam a tempos muito mais recuados, a imemoriais inteligências como as astúcias e simulações de plantas e peixes”. (CERTEAU, 2012, p. 46) Por métis entende-se a sabedoria. Se o Registro pode operar como a tática dos mais fracos, pela qual eles se apropriam dos símbolos e do discurso dominante da patrimonialização, para assim poderem continuar modos de vida com autonomia e maior justiça social coma proteção do Estado, no entanto, uma vez que tal façanha talvez possa não ser conseguida, além do risco do Registro, se obtido, poder vir acompanhado da imposição de novos problemas como a gentrificação, as perguntas centrais deste artigo, em que medida o Registro acrescenta algo ou colabora para fortalecer os grupos resistentes no território e a continuidade dos saberes tradicionais, como em vez de inscrição inócua em livro tombo, que engessa modos de fazer e exclui os mais pobres, conseguirá ser uma política viva e participativa para a transmissão dos saberes, a promoção dos direitos e a conquista de uma vida desejável pelos atingidos pelas injustiças ambientais, permanecem sem resposta. Em breves linhas, buscamos refletir sobre a importância do Artigo 231, jurado de morte pelos deputados ruralistas, para uma urgente e necessária ecologia da política do patrimônio cultural; conclui-se que o INRC e o Registro, como instrumentos para o reconhecimento jurídico-formal das formas tradicionais de cultura, ao envolverem a elaboração de um plano de salvaguarda com os atingidos para a proteção e continuidade do bem ameaçado, poderiam colaborar para fortalecer a permanência dos povos étnicos, pescadores caiçaras, quilombolas e outros

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grupos populares em suas terras tradicionalmente ocupadas, para pensar, coordenar e obrigar cumprir, uma ação interinstitucional vigorosa para uma qualidade de vida desejável em zonas de sacrifício poluídas nas cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACSELRAD, Henri (org). Conflito social e meio ambiente no estado do Rio de Janeiro. 1a ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. 262 p. _______. Liberalização da economia e flexibilização das leis - o meio ambiente entre o mercado e a justiça. In: Revista de Educação, Ciências e Matemática, v.3, n.3, set./dez. 2013 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas. 2ª ed. Manaus: Edição do PGSCA–UFAM, 2008. BRASIL. Constituição do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, 1989. BRASIL. Decreto nº 5.040, de 7 de abril de 2004. BRASIL. Ministério da Cultura. Plano Nacional de Cultura. Brasília, DF, 2012. BULLARD, Robert D. Dumping in Dixie: race, class and environmental quality. Boulder CO: Westview, 1990 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 – artes do fazer. 12a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1994. HANNERZ, Ulf. “Fluxos, fronteiras, híbridos – palavras-chaves da antropologia transnacional”. Mana – Revista de Antropologia Social, Rio de Janeiro, 3(1), p. 3-39, 1997. HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto; ACSELRAD, Henri (org). Justiça Ambiental e Cidadania. 1a ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. 315 p. HOBSBAWN, Eric. “Introdução”. In: HOBSBAWN, Eric; REANGER, Terence (org). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 9-23. IPHAN. Os sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois: Princípios, ações e resultados da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil (2003-2010). 1a ed. Brasília: Ministério da Cultura, 2010. MEDEIROS, Bartolomeu Tito Figueiroa. Quando o campo é o Quilombo: etnicidade, políticas culturais e negociações. Brasília, UNB (Relatório Pos doc, mimeo), 2009. PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de Biopolítica.1a ed. - 2a reimpr. São Paulo: Iluminuras, 2011. 253 p. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. IN: Revista Estudos Históricos, 10, 1992/1. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf.

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LEI MUNICIPAL MURILO MENDES: O MODELO PRECURSOR DE INCENTIVO À CULTURA DE JUIZ DE FORA – MG Fernanda Amaral de Almeida1 RESUMO: A Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Juiz de Fora, Minas Gerais, denominada Lei Murilo Mendes, representa o principal mecanismo de fomento à cultura do município, financiando anualmente aproximadamente sessenta projetos artísticos e culturais. A Lei Murilo Mendes integra um modelo de gestão pública da cultura que prioriza a produção artística local e possibilita que a classe artística execute seus projetos por meio de repasse direto de recursos públicos. PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Políticas Públicas. Lei de incentivo.

1. INTRODUÇÃO A Lei Municipal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Murilo Mendes, destaca-se como uma iniciativa pioneira na área político cultural. Criada em 1994, no município de Juiz de Fora - Minas Gerais, foi a primeira lei de incentivo cultural, originada no interior do Brasil, no modelo de fundo, ou seja, com repasse direto do recurso financeiro ao favorecido, o que possibilita ao artista ou produtor executar seu trabalho sem a dependência da captação de recursos da iniciativa privada Desde 1995 quando foi lançado seu primeiro edital, até o ano de 2016, a Lei Murilo Mendes realizou 18 edições, financiando a produção de 1000 projetos. Esse financiamento resultou na produção de aproximadamente 230 títulos em CDs, cerca de 450 publicações, além de curtas metragens, espetáculos teatrais e oficinas de capacitação artística. Para entender a dinâmica e o desenvolvimento das políticas culturais em Juiz de Fora, é necessário falar do seu órgão gestor de cultura municipal: a Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – Funalfa. A Fundação, que teve sua criação em 1978, além de ser a gestora da Lei

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Coordenadora da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Juiz de Fora, Servidora da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage, Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora. Email: [email protected]

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Murilo Mendes, administra a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, o Museu Ferroviário, o Anfiteatro João Carriço, o Centro Cultural Dnar Rocha, e o Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU). Espaços importantes de vivência da cultura no perímetro urbano do município. A Fundação publica livros, promove atividades destinadas a vários segmentos da sociedade, realiza eventos como o Festival Nacional de Teatro, Corredor Cultural, Corredor da Folia e oportunidades anuais de apresentação de artistas locais e nacionais em Juiz de Fora. A Funalfa também implantou e é a gestora do Conselho Municipal de Cultura e do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural tendo ainda como algumas de suas atividades a de promover periodicamente as Conferências de Cultura e Seminários de Patrimônio. Diante do quadro exposto, percebemos a característica forte de valorização da cultura pelo município, assim como percebemos que a Lei Murilo Mendes não é o único objeto de preocupação e de gerência da Fundação e não se trata da única forma de apoio e disseminação da produção cultural da cidade, no entanto, a Lei Murilo Mendes é certamente o maior veículo de financiamento da cultura local, tanto no que se refere ao montante e recursos financeiros investidos anualmente, quanto em termos quantitativos. 2. A POLÍTICA CULTURAL NO BRASIL Chegar à implantação e aprimoramento de um mecanismo que priorize a valorização do artista local e ao mesmo tempo, que tenha um olhar atento sobre seu impacto diante da comunidade representa entender a cultura como objeto complexo que não pode ser limitado somente à perspectiva artística, mas sim como a conjugação de vários indicadores sociais, econômicos e políticos, segundo cada lugar e tempo em que se apresenta. A UNESCO (1945), organismo das Nações Unidas destinado a questões de educação cultura e ciências, define cultura como “um conjunto de características distintas espirituais, materiais, intelectuais e afetivas que caracterizam uma sociedade ou um grupo social”. (http:// unesdoc.unesco.org/) Entender a cultura como este mecanismo de poder, como uma conjugação do desenvolvimento social e econômico de um país é fundamental para determinar que a cultura seja um dos projetos do Estado. A influência do Estado sob a prática cultural em um país é, sem dúvida, bastante significativa, sendo determinante para aqueles que vivem do “fazer cultural”. Da mesma forma, o modo como cada governo administra suas políticas culturais irá determinar o destino dos recursos para a prática e a fruição da cultura pela sociedade.

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A cultura deve ser entendida como um ponto de partida para todo projeto de nação, para o desenvolvimento social, para as oportunidades econômicas, mercados potentes, empresas inovadoras e cidadãos conscientes. (CHAUÍ, 2006, P. 21) Fazendo um breve histórico das políticas culturais brasileiras, em âmbito nacional, destacamos o período a partir das décadas de 1980 e 1990, quando, com o fim da censura, abriu-se uma nova era para a cultura brasileira, beneficiando vários setores, especialmente o editorial. Em 1985, foi criado o Ministério da Cultura, e em 1986, a primeira Lei de Incentivo à Cultura: Lei Sarney. A partir de então se inaugura uma nova modalidade de Incentivo ao setor cultural. Já na década de 1990, com a posse do Presidente Collor, há um desmonte das instituições culturais: extingue-se o Ministério da Cultura, a lei Sarney, A Empresa brasileira de filmes – Embrafilme, a Fundação Nacional das Artes - Funarte, Fundação do Cinema Brasileiro. Em 1991, houve-se a instituição da Lei Rouanet e a progressiva retomada do financiamento à cultura. Em 1993, há a promulgação da Lei do Audiovisual, concedendo descontos de 100% para empresas que realizem investimentos realizados na atividade audiovisual. No governo de Fernando Henrique Cardoso, o incentivo à cultura baseia-se, fundamentalmente, nos mecanismos de renúncia fiscal nas esferas nacional e municipal. Na gestão da cultura, com a presidência de Luís Inácio Lula da Silva, houve um balanço e crítica aos mecanismos de incentivo no que tange às propostas de mudanças na Lei Rouanet. O Ministério da Cultura passou a atuar, a partir de 2003 na implantação do Sistema Nacional de Cultura e no processo de elaboração do Plano Nacional de Cultura. Uma das principais marcas da gestão de Lula foi o processo de descentralização das políticas culturais. A partir da idéia de “cultura para todos”, o Governo pretendia ampliar o acesso aos bens e serviços culturais e apoiar ações voltadas para integração e inclusão de todos os segmentos sociais, na valorização da diversidade e no diálogo com os múltiplos contextos da sociedade brasileira, nesse sentido foram criados o Programa Mais Cultura e o já citado Cultura Viva. Essa mudança também se alinhava com um dos princípios importantes da gestão de Gil, a federalização das políticas culturais. Nessa perspectiva é que se deu a criação de um Sistema Nacional de Cultura, que consistiu no empenho por parte do Ministério de implantar um sistema de gestão integrado entre as políticas públicas federais, estaduais e municipais. (BEZERRA; WAYNE, 2012 P.6) Importante destacar as atividades direcionadas à implantação de políticas públicas de cultura em todo Brasil, a partir desse período. Nos governos de Lula e Dilma, foram organizados em várias capitais brasileiras Seminários Estaduais tendo como um dos seus objetivos, a implantação do Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura.

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Dentro do Sistema Nacional de Cultura o critério de partilha e de transferência de recursos da União para Estados e Municípios no se dará segundo Índice de Gestão Municipal em Cultura (IGMC) combinado com outros indicadores culturais de modo a se construir um Índice de Desenvolvimento das Políticas Culturais, que vai permitir classificar os municípios e estados em graus de complexidade de suas respectivas políticas culturais, possibilitando o estabelecimento dos critérios de partilha de recursos financeiros. Juiz de Fora merece destaque nesse contexto, enquadrando-se entre os municípios brasileiros com população acima de 500 mil habitantes que possuem mecanismos de fomento à cultura, segundo dados do Ministério da Cultura, sendo o quarto maior município do estado de Minas Gerais, o segundo do interior de Minas Gerais. (MINC, 2010). “Neste sentido, as leis municipais, estaduais e federais de incentivo à cultura, sejam através de mecanismo de mecenato ou fundo de recursos precisam ser conhecidas e utilizadas.” (BARROS, JUNIOR, 2011) Como toda política pública, as políticas culturais necessitam prever, em seu planejamento, as suas fontes e mecanismo de financiamento. No entanto, é a clareza quanto às prioridades e as metas a serem alcançadas em curto, médio e longo prazo que possibilita a escolha de estratégias diversificadas e adequadas para o financiamento de atividades artísticas e culturais. Hoje a produção cultural brasileira deve suas atividades basicamente às leis de incentivos fiscais federais, estaduais e municipais. O financiamento é um dos mais poderosos mecanismos para a consecução de uma política pública, já que é através deste que se pode intervir de forma direta na solução de problemas ou no estímulo às atividades culturais. O incentivo a realização de projetos culturais tem se mostrado um importante instrumento de política pública, permitindo maior desenvolvimento e dinamização das atividades culturais no município, garantindo o acesso da população a bens culturais de qualidade. Assim, a melhor forma do poder público respaldar a cultura é através do aprimoramento das leis de incentivo e da ampliação dos critérios democráticos de aplicação de recursos. 3. MECANISMOS DE INCENTIVO À CULTURA – O MODELO DE JUIZ DE FORA De modo geral os recursos orçamentários destinados a área da cultura, quando existentes, são sempre ínfimos comparados aos de outras áreas e às necessidades culturais dos municípios. A eficiente utilização dos recursos, através de patrocinadores e parceiros, é fundamental para viabilização dos projetos planejados. Neste sentido, as leis municipais, estaduais e federais de incentivo à cultura, sejam através de mecanismo de mecenato ou fundo de recursos precisam ser conhecidas e utilizadas. E no caso específico da Lei Murilo Mendes, o valor repassado anualmente aos artistas cujos projetos são aprovados, tem girado em torno de R$1.000.000,00 (um milhão de reais), o que certamente representa uma cifra relevante.

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As políticas culturais devem ser aplicadas seguindo as mesmas regras e procedimentos adotados em relação às políticas públicas em geral, ou seja, devem seguir um planejamento e respeitar as normas e limites orçamentários As leis de incentivos fiscais representam hoje, no contexto da produção cultural brasileira, a maior fonte de recursos disponível aos produtores e artistas do, sendo o maior estímulo financeiro às atividades culturais do país. Este estímulo tem permitindo maior desenvolvimento e dinamização das atividades culturais também nos municípios, garantindo o acesso da população a bens culturais de qualidade. Assim, a melhor forma do poder público respaldar a cultura é através do aprimoramento das leis de incentivo e da ampliação dos critérios democráticos de aplicação de recursos. A seleção pública de projetos, prática cada vez mais difundida e estimulada pelo Ministério da Cultura nos últimos 12 anos, é assinalada por instrumento de escolha de projetos e iniciativas que promovam o desenvolvimento econômico, social e cultural da população, e apresenta várias vantagens em relação a outras formas de estímulo à produção e ao acesso às expectativas culturais. O grande diferencial do incentivo à produção cultural por meio de seleção pública está na formação de um canal de diálogo entre o poder Público e a sociedade civil, pelo qual se toma conhecimento das iniciativas e ações culturais que existem, além de oferecer espaço para novas idéias e propostas, estimulando assim a criatividade e a diversidade de ações e agentes culturais contemplados. Juiz de Fora, neste sentido, tem sido pioneira e vem procurando adequar os valores patrocinados à realidade da produção cultural da cidade e prestigiar projetos inovadores que tragam retorno para a cidade. O mecanismo de incentivo à cultura de Juiz de Fora se viabiliza através da Lei Municipal Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, criada em 1994, por meio da Lei nº8525/94. Ao longo de sua aplicação, a Lei Murilo Mendes apoiou e vem apoiando inúmeras manifestações nas mais diversas áreas da cultura produzida na cidade de Juiz de Fora. Cada vez mais, a legislação de incentivo às artes em Juiz de Fora vem sendo aprimorada, no sentido de corrigir imperfeições e distorções avaliadas durante sua implantação e execução. Do patrimônio ao cinema, da literatura à música, do teatro à dança, passando pelas artes visuais e manifestações populares, as mais significativas vertentes da produção cultural de Juiz de Fora têm se beneficiado com os recursos da Lei Murilo Mendes para ativar sua criatividade e concretizar projetos culturais que serão direcionados também para o crescimento cultural da cidade e seus cidadãos. Apesar dos recursos serem menores do que a demanda da produção artística da cidade, a aplicação de verbas públicas na área cultural ganhou, a partir da consolidação da Lei Murilo Mendes, transparência e credibilidade.

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Em vinte e um anos de sua existência, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes incentivou, apoiou e fez crescer a produção da cidade de Juiz de Fora em todas as áreas artístico-culturais, do cinema ao vídeo, da literatura à música, do teatro à dança, passando pelas artes plásticas, patrimônio e memória. Para se ter uma ideia da evolução da Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, nos últimos 21 anos de sua existência, em sua primeira edição em 1995, a mesma disponibilizou o recurso de R$100.456,34, tendo 75 projetos inscritos e 37 aprovados, chegando a um valor recorde no ano de 2014, quando disponibilizou uma verba de R$ 1.100.000,00 (um milhão e cem mil reais), contemplando 65 projetos. Como resultado desse incentivo, a comunidade artística contemplada através da Lei Murilo Mendes produz espetáculos de teatro, oficinas de capacitação em diferentes áreas artísticas, livros, CDs e filmes de curta, média e longa metragem. Parte dessa produção, no mínimo 30% desses produtos, são entregues à Funalfa após a conclusão dos projetos. Este material contempla um acervo que hoje conta com mais de 5000 exemplares de livros, 2000 CDs e 500 DVDs e realizar a distribuição dessa contrapartida representa uma maneira de retribuir à sociedade os impostos pagos, que financiam a realização dos projetos culturais. Por ser também um dever do Estado promover o acesso aos cidadãos a bens culturais, a partir de 2011 um método inicial de distribuição proposto pelo atual Superintendente da Funalfa foi implantado. Os produtos oriundos das contrapartidas – livros, CDS, DVDS, ingressos para espetáculos, passaram a ser mais amplamente distribuídos para bibliotecas públicas, comunitárias e particulares, para entidades educacionais e culturais, projetos sociais e para cidadãos que procuram a Fundação. Atualmente, a Fundação distribui, em média, 1500 exemplares de livros, 500 CDS e 100 DVDS mensalmente, demonstrando o grande interesse já despertado na população pelo que é produzido em sua cidade. 4. JUIZ DE FORA – CIDADE DE MURILO MENDES Juiz de Fora tem sido pioneira quando se trata de política pública para a cultura e vem procurando adequar os valores patrocinados à realidade da produção cultural da cidade e prestigiar projetos inovadores que tragam retorno para a cidade. O mecanismo de incentivo à cultura de Juiz de Fora se viabiliza através da Lei Municipal Murilo Mendes de Incentivo à Cultura – Lei Murilo Mendes. Criada em 1994, quando se criou também o FUMIC, Fundo Municipal de Incentivo à Cultura. A existência deste fundo difere a Lei Murilo Mendes de outras leis similares que privilegiam a renúncia fiscal como instrumento de captação de verbas junto ao empresariado. Já que, neste caso, o proponente recebe de maneira direta o recurso para realizar o seu projeto.

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Disponibilizar, à classe artística e produtores locais, um recurso próprio, no modelo de fundo, desde 1995, demonstra o vanguardismo da cidade de Juiz de Fora, afinal, só muito recentemente o Ministério da Cultura passou a indicar que os municípios criem seus próprios fundos. Juiz de Fora, cidade cultural por vocação, berço de Murilo Mendes e Pedro Nava, demonstrou grande avanço ao se tornar a primeira cidade de médio porte, a criar uma lei de incentivo cultural no Brasil. Certamente, trata-se de um modelo revolucionário, diferente da legislação até então existente em todo o país, que tinha como princípio a renúncia fiscal. O modelo de repasse de recursos direto entre poder público e artista é de suma importância, pois retira das mãos do empresariado a decisão sobre quem irá produzir cultura no município, ou seja, são as políticas publicas que irão contemplar as propostas que forem mais interessantes para aquela população. Desde sua criação, a Lei Murilo Mendes foi um mecanismo de financiamento público que evoluiu na medida em que se adaptou às demandas da classe artística, ao mesmo tempo em que se consagrou como uma maneira eficaz de distribuição dos recursos municipais destinados à cultura de maneira democrática, contribuindo para a valorização e fortalecimento da produção artística local. Consolidou-se como um instrumento de apoio efetivo a criações comprometidas com a qualidade. Ao longo dos anos destinou recursos às mais variadas manifestações culturais, do teatro à dança, da literatura à música, do cinema ao vídeo, passando pelas artes plásticas e outras expressões da arte. Ao instituir a Lei Murilo Mendes, criou-se também a COMIC – Comissão Municipal de Cultura, composta por representantes do poder público e da classe artística, sendo essa comissão a responsável pela avaliação dos projetos. A comissão garante transparência ao processo, pois é composta por 7 membros titulares e 7 suplentes, dos quais , 2 titulares e 2 suplentes são eleitos pela classe artística. Ao mesmo tempo, a comissão atenta-se para a diversidade das iniciativas contempladas ao ser formada por profissionais reconhecidos em diferentes áreas artístico- culturais. A definição sobre quais projetos serão contemplados passa por três etapas de avaliação: primeiramente é feita a análise documental, quando uma comissão formada por servidores da Funalfa lê cada projeto e verifica se foram apresentados todos os documentos exigidos pelo edital. A segunda fase consiste em uma análise feita por pareceristas de cada área específica, que atribuem notas de 0 a 100 a cada projeto e os projetos com nota acima de 80 seguem para a ultima fase de avaliação. A terceira e decisiva etapa de avaliação é a análise realizada pela Comic. A comissão, conforme dito anteriormente é composta por membros do poder público e da sociedade civil, sendo que parte da comissão é formada por membros eleitos pela comunidade artística. Essa comissão ,

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assim como os pareceristas, também atribui uma nota a cada projeto. Ao final do processo é feita uma média aritmética entre as duas notas e a nota final será a nota do projeto. A partir dessa nota é feita uma classificação dos projetos em cada área e aqueles que obtêm as maiores médias são contemplados, de acordo com o recurso disponibilizado pelo edital daquele ano. A democratização da Lei Murilo Mendes tem sido ampliada a cada ano. Nas últimas edições, a classe artística contribuiu também com sugestões, visando aperfeiçoar sua legislação, através de reuniões abertas à população com os gestores da cultura na cidade. E a partir de 2010, com o advento do Conselho Municipal de Cultura – Concult, este também passou a propor medidas que buscam o aprimoramento da lei e anualmente avalia o edital, faz suas ressalvas ou ratifica suas exigências. Em quinze anos de sua existência, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes incentivou, apoiou e fez crescer a produção da cidade de Juiz de Fora em todas as áreas artístico-culturais, do cinema ao vídeo, da literatura à música, do teatro à dança, passando pelas artes plásticas, patrimônio e memória. A repercussão nacional e internacional, além das premiações que muitos projetos apoiados pela Lei Murilo Mendes vêm obtendo são indicativos seguros de que a melhor forma do poder público respaldar a cultura é através do aprimoramento das leis de incentivo e da ampliação dos critérios democráticos de aplicação de recursos. Se a cidade já apresentava uma forte raiz nas artes, o advento do incentivo do poder Público favoreceu a ascensão de muitos talentos. Assim, a Lei Murilo Mendes revela a vitalidade da produção da cidade e a necessidade de fomentar as potencialidades criativas. A cidade aos poucos vai tomando consciência da importância no investimento dos artistas e grupos culturais locais e do usufruto dos produtos culturais resultantes dos projetos financiados colocados à disposição da comunidade. Através da Lei é que se tem visibilidade da produção cultural da cidade. A Lei Murilo Mendes é responsável ainda por movimentar a cadeia produtiva e econômica do município, seja através das remunerações pagas às equipes de cada projeto, seguindo cada qual sua planilha de despesas, seja através da prestação de serviços. Gráficas, estúdios, produtoras de vídeo e ouras espécies de empresas apresentam um significativo aumento de sua produção quando os projetos começam a ser executados. Ter um meio efetivo de financiamento da produção cultural, em uma cidade de médio porte como Juiz de Fora, dá a sua comunidade artística, a oportunidade de estar em pé de igualdade, em caráter qualitativo, a muitas produções realizadas nas grandes cidades. O trabalho de um artista, mesmo que por alguns momentos denote solidão, é um processo de troca permanente entre quem cria e o meio em que ocorre a criação, o que nos leva a imaginar que a expressão artística direciona-se, quase sempre, à coletividade. E esse pensamento

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se coaduna à idéia de cultura como um bem inerente ao homem, como objeto meio e fim para o alcance de uma sociedade mais tolerante, mais justa e feliz. Partindo desse pressuposto, tomamos consciência do importante papel do Poder Público, no incentivo e valorização das práticas culturais, sobretudo quando falamos das esferas municipais. Afinal, quem melhor poderá conhecer as potencialidades e demandas de uma cidade que sua própria administração? Quando o gestor público diz que está aprovisionando a população de direitos culturais, deve-se ter atenção, pois, de certa maneira, falar isso é dizer ao indivíduo que ele é livre para criar, produzir e usufruir o que quiser. E nesse sentido, podemos afirmar que cultura e cidadania estão intrinsecamente ligadas, na medida em que a liberdade de criação é absolutamente dependente da liberdade de expressão. A gestão da cultura responsável e consciente deve primar por políticas e ações culturais que tenham por objetivo criar condições para que os indivíduos façam a cultura que desejam usufruir. Se gestão é escolha, deve-se estar atento e zelar pelas transformações vividas pela cidade, seguindo o fluxo contínuo de mudanças dos processos artísticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, José Márcio; JUNIOR, José Oliveira. Pensar e agir com a cultura: desafios da gestão cultural. 1ª ed. Belo Horizonte: Observatório da Diversidade Cultural, 2011. BEZERRA, Jocastra Holanda; WEYNE, Rachel Gadelha. Política cultural no Brasil contemporâneo: desafios e percursos. IV Seminário Internacional de Políticas - Setor de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2013. BRASIL.JUIZ DE FORA Lei Nº 08525, de 27 de agosto de 1994. Cria o Programa Cultural Murilo Mendes, institui o Fundo Municipal de Incentivo à cultura - FUMIC, e dá outras providências. Diário Oficial do Município. Juiz de Fora, MG, 27 ago. 1994. BRASIL.JUIZ DE FORA. Decreto Nº 3120, de 19 de setembro de 1978. Institui o Estatuto da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA. Diário Oficial do Município. Juiz de Fora, MG, 19 set. 1978. CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. MINC. Ministério da Cultura. Sistema Nacional de Cultura. Disponível em: www.cultura.gov.br. Acesso em: 23 de março de 2015. MINC. Ministério da Cultura. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. 2ª edição. Brasília: Ministério da Cultura, 2010.

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PONTOS DE CULTURA: POLÍTICAS PÚBLICAS E A PRODUÇÃO DE UMA SUBJETIVIDADE MAIS AUTÔNOMA Flávia Junqueira1 RESUMO: Partindo da ideia de que as políticas culturais limitam a noção de cultura, defendida por Félix Guattari, pretendemos pensar de que forma um programa de política cultural brasileiro – os Pontos de Cultura, por meio do Programa Cultura Viva – pode ser, a longo prazo, um passo para uma cultura mais autônoma, capaz de subverter a produção de subjetividade capitalística. Este trabalho não tem como objetivo defender ações de um governo específico, mas sim, lançar luz nos possíveis caminhos de autonomia que as políticas públicas deveriam seguir. PALAVRAS-CHAVE: Cultura Viva, Pontos de Cultura, Autonomia, Subjetividade.

1. INTRODUÇÃO Félix Guattari, no livro Cartografias do Desejo, organizado por ele e Suely Rolnik a partir de sua visita ao Brasil no início da década de 80, afirma que o conceito de cultura é profundamente reacionário, à medida que é uma maneira de separar as atividades semióticas, ou seja, de produção de sentido, em esferas pré-determinadas. Ao serem isoladas, essas atividades semióticas são padronizadas, ou, nas palavras dele, “capitalizadas para o modo de semiotização dominante” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 15). Mais longe, ele chega a dizer que a cultura autônoma não existe no nível da produção, da criação e nem do consumo real, apenas dos mercados econômicos e do poder. Para melhor entender a assertiva acima, lembramos os diversos sentidos de cultura que Guattari destaca no livro. A primeira ideia de cultura foi no sentido de “cultivo do espírito”, caso que ele chama de “cultura-valor” porque corresponde a um julgamento valorativo, determinando quem tem ou não cultura. O segundo sentido seria de “cultura-alma coletiva”, ligada à ideia de civilização. Esta ideia, ele explica, é um tanto ampla e ambígua, visto que foi empregada pelo partido nazista, mas também por movimentos de emancipação, por exemplo. Por fim, a outra importante utilização do termo cultura seria no sentido de “cultura-mercadoria”. Neste sentido, Doutoranda em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), linha de pesquisa Tecnologias de Comunicação e Cultura. E-mail: [email protected] 1

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não há um julgamento de valor ou uma ideia de grupo ou povo, mas há a presença de bens, como equipamentos culturais, de especialistas e todos que trabalham em tais equipamentos, além das referências teóricas e ideológicas que a área abarca, contribuindo para a circulação da cultura dentro de um sistema mercadológico (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 17). A tese de Guattari é de que esses três sentidos de cultura permanecem presentes, complementando-se um ao outro. A produção da subjetividade capitalística2 traz uma vocação universal da cultura, essencial para a construção coletiva de trabalho e controle social, mas que também precisa tolerar as minorias, as margens (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 19). Para ele, a principal característica dos modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de ordem do capital, de troca, mas também no controle da subjetivação, o que o filósofo chama de “cultura da equivalência” ou “sistemas de equivalência na esfera da cultura”. Dessa forma, o capital ocupa-se da sujeição econômica e a cultura, da sujeição subjetiva. A grande questão é que, uma cultura que pensa em mercado, precisa de margens convenientes, ou seja, as margens são definidas pelo próprio sistema de produção capitalística. Nas palavras do autor, “nas últimas décadas, essa produção capitalística se empenhou, ela própria, em produzir suas margens, e de algum modo equipou novos territórios subjetivos” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 20). A definição das margens sob o discurso da democracia está na essência da criação das políticas públicas. Definir o que se entende por cultura permite aos governos controlar as culturas periféricas. E de uma maneira geral, na década de 80, contexto da fala de Guattari, os Ministérios da Cultura se consolidavam como órgãos independentes em alguns países como Portugal, por exemplo, ou se abriam para uma cultura mais popular, como foi o caso da França. Poder-se-ia dizer que, neste momento, Ministérios da Cultura estão começando a surgir por toda parte, desenvolvendo uma perspectiva modernista na qual se propõem a incrementar, de maneira aparentemente democrática, uma produção de cultura que lhes permita estar nas sociedades industriais desenvolvidas. E também encorajar formas de cultura particularizadas, a fim de que as pessoas se sintam de algum modo numa espécie de território e não fiquem perdidas num mundo abstrato (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 20). Mas o que acontece de fato, para o autor, é a reprodução do conceito de cultura-valor, em meio aos conceitos de cultura-alma e cultura-mercadoria, sob uma falsa ideia de democracia que, na verdade, mantém os velhos sistemas de segregação. Este seria um discurso modernista Guattari coloca o sufixo “ístico” na palavra “capitalista” para criar um termo capaz de englobar não apenas as sociedades classificadas como capitalistas, mas também setores do capitalismo periférico (ou “Terceiro Mundo”), assim como economias ditas socialistas, mas que funcionam sob “uma mesma cartografia do desejo no campo social, uma mesma economia libidinal-política” (GUATTARI & ROLNIK. 1996, pág. 15). 2

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assumido pelos Ministros da Cultura e especialistas que, embora pregue a difusão da cultura no campo social, omite que essa difusão não se dá de forma justa e homogênea. Aqui no Brasil a política cultural demonstrava seguir os passos europeus3. O Ministério da Cultura ganhou sua independência do MEC em 1985, a partir de um projeto pensado por Tancredo Neves, mas colocado em prática pelo seu sucessor, José Sarney. Faremos aqui um pequeno resumo das políticas culturais no país a fim de compreender um pouco melhor nosso contexto. 2. BREVE RESUMO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL Como afirmado acima, o Ministério da Cultura aqui no país tornou-se independente na década de 80, mas as políticas para a área começaram muito antes, ainda no governo de Getúlio Vargas. Entre 1934 e 1945, o Ministro Gustavo Capanema, quando o órgão ainda era da Educação e Saúde (MES), com a ajuda de intelectuais como Mário de Andrade4, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, entre outros, iniciou um importante processo de “construção institucional do campo da cultura” (CALABRE, 2015, pág. 5). De uma maneira geral, foi um período em que Vargas voltou-se para a construção de instituições em setores onde o Estado ainda não atuava. Nessa época foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico (SPHAN, que depois viraria o IPHAN), assim como o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e o Instituto Nacional do Livro (INL). Não podemos deixar de mencionar também que a radiodifusão teve grande destaque no governo Vargas, tendo ganhado uma legislação específica ainda em 1932. Em 1953 o Ministério da Educação separa-se da Saúde e torna-se Ministério da Educação e Cultura (MEC). Embora a Cultura tenha ganhado mais espaço dentro da pasta, este não foi um período relevante para o campo de fato, visto que o Estado não promoveu grandes ações, além de muito ter investido na consolidação dos meios de comunicação de massa (CALABRE, 2015, pág. 7). Com o período da ditadura militar, a partir de 1964, em contraste com a repressão e censura do regime, foi, assim como no governo Vargas, um momento de institucionalização do campo da produção artístico-cultural, com a criação do Conselho Federal de Cultura, da Fundação Nacional de Artes (Funarte), a Embrafilme, além da recuperação de instituições como a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes, por exemplo. Indo ao encontro do que Guattari destaca como um problema das políticas públicas – a definição de margens e a consequente limitação do campo – podemos dizer que não foi uma coincidência que as principais medidas de políticas culturais pensadas aqui no Brasil, e também Segundo Lia Calabre, “um marco internacional na institucionalização do campo da cultura foi o da criação, em 1959, do Ministério de Assuntos Culturais da França, promovendo ações que se tornaram referência para diversos países ocidentais” (CALABRE, 2013, pág.2). 4 Vale lembrar que Mario de Andrade esteve à frente do Departamento de Cultura de São Paulo de 1935 a 1938, primeiro órgão especificamente criado para a cultura no país (CALABRE, 2015, pág. 6). 3

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em outros países da América Latina, foram nos períodos de maior controle ideológico por parte do Estado, em governos autoritários e ditatoriais. Como nos mostra a historiadora Lia Calabre: Vivemos, na América Latina, em uma conjuntura que guarda muito da herança do processo histórico originado na década de 1930, momento de fortalecimento e modernização dos Estados Nacionais, no qual o campo da cultura, vinculado ao da educação, também foi objeto de elaboração de políticas. Nas décadas de 1960 e 1970, podem ser identificadas novas iniciativas, por parte dos governos, em inserir a cultura no campo das políticas públicas. Em muitos países da América Latina, esse período correspondeu ao dos governos autoritários, às ditaduras militares. A partir da década de 1980, de maneira gradativa e diferenciada, as questões das políticas culturais foram sendo incorporadas aos programas de governo, dentro da perspectiva da construção de sociedades mais democráticas e menos desiguais. No século XXI, a base do conceito de política cultural foi deslocada para a da ação articulada entre o Estado e a sociedade como um todo – nas suas frações organizadas ou não. Ou seja, a premissa é a de que uma política cultural é, por essência, democrática, logo, só pode ser construída de forma participativa (CALABRE, 2013, pág. 3). Voltando à democracia, como afirmado anteriormente, Tancredo Neves tinha entre seus planos dar à Cultura um Ministério próprio, plano que foi colocado em prática pelo seu sucessor José Sarney em 1985. Foi neste período também que surgiu a primeira lei de incentivo fiscal, a Lei nº 7.505, de 1986. A medida, que ficou conhecida como Lei Sarney, recebeu muitas críticas, mas é inegável que ela funcionou como um protótipo para os modelos de financiamento público-privados tão comuns hoje. Mas a cultura ainda viria a sofrer seus piores dias. No governo Collor, em 1990, o Ministério da Cultura foi extinto, substituído por uma secretaria e seus órgãos foram redistribuídos. A Lei Sarney também foi extinta e em 1991 foi editada a Lei nº 8.313, a Lei Rouanet, que também previa o uso de incentivo fiscal para a cultura e que está vigente ainda hoje, tendo passado por algumas alterações (CALABRE, 2014, pág. 142). O período dos governos Fernando Henrique Cardoso foi de valorização na Lei Rouanet, atraindo investidores para a cultura e, consequentemente, deixando nas mãos da iniciativa privada parte significativa do apoio à produção artística e cultural do país. A partir de 2003, com o governo Lula, tem-se a ideia de cultura como direito básico e importante pilar para o desenvolvimento da democracia. Lula nomeou o cantor Gilberto Gil como Ministro da Cultura e foi a partir daí que surgiu a proposta dos Pontos de Cultura, foco de nossa observação. 2.1. Pontos de cultura Os primeiros passos dados pelo Ministro Gil foram em direção à sociedade, no intuito de ouvir os diversos setores da cultura nas instâncias não só federais, mas também estaduais

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e municipais, por meio dos seminários “Cultura para todos”. Segundo Calabre, a grande contribuição destes seminários “foi a de abrir canais de diálogos entre o MinC e os mais variados atores sociais que atuam no campo da cultura” (CALABRE, 2014, pág. 144), criando uma rede de interlocução entre os agentes envolvidos. A proposta de programa para a cultura na campanha de Lula já demonstrava uma compreensão de cultura por uma perspectiva mais antropológica, não limitada às belas artes e às letras (COSTA, 2011, pág. 26). O grande mérito da gestão de Gil foi estar antenada à cultura digital e pensar na inserção da população não apenas pelo acesso a ferramentas, mas aos modos de produção neste contexto, como explica a pesquisadora Eliane Costa: Tomando o computador e a internet como pontos de partida, e não como linha de chegada, o Ministério da Cultura, na referida gestão, foi além da concepção de inclusão digital como mero acesso ao computador, incorporando uma reflexão sobre os usos da tecnologia no campo cultural, bem como a perspectiva da autonomia do usuário e do fortalecimento de uma cultura de redes. Diante do quadro de desigualdade que marca, tanto a sociedade contemporânea, quanto o ciberespaço, o MinC introduziu em suas políticas públicas, no período estudado, a questão dos direitos culturais e da diversidade, procurando fortalecer as oportunidades de acesso aos meios de produção de conteúdos culturais em mídia digital, habilitando, assim, a difusão desses arquivos pela internet (COSTA, 2011, pág. 16). Entre as principais ações desse período está a criação do Programa Cultura Viva5, em 2004, no qual estão inseridos os Pontos de Cultura. O principal objetivo do programa é a ampliação do acesso da população aos meios de produção, circulação e fruição da cultura. Ainda segundo Costa, ele como pilares conceituais a autonomia, o protagonismo e o empoderamento. Nas palavras da autora: A proposta dos Pontos de Cultura inverte a lógica de atuação do Estado: em vez de levar ações culturais prontas para as comunidades, são estas que definem as práticas que desejam fortalecer, com reconhecimento e apoio do governo. Escolhidos mediante edital público dentre iniciativas já desenvolvidas por organizações da sociedade civil há pelo menos dois anos, em localidades com precária oferta de serviços públicos e equipamentos culturais, nos grandes centros urbanos ou em pequenos municípios, e envolvendo populações de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade social, os Pontos de Cultura selecionados tornam-se responsáveis por articular e impulsionar ações em suas comunidades, passando a receber recursos diretos do Fundo Nacional de Cultura – da ordem de R$ 5 mil por mês, por três anos (COSTA, 2011, pág. 76). Vale ressaltar que o Programa Cultura Viva virou Política Nacional de Cultura Viva (PNCV) em 2015, pela chancela da presidente Dilma Rousseff.

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Como Costa destaca, o valor recebido pelos Pontos selecionados é relativamente baixo, mas para grupos e coletivos que não tinham incentivo nenhum, faz uma grande diferença, além da chancela do governo ser importante para que tais grupos tenham sua credibilidade e legitimidade reconhecidas pela sociedade e os poderes públicos locais. E em 2015, completos dez anos de sua criação, houve um importante avanço no programa: a possibilidade de autodeclaração como Ponto de Cultura. Ou seja, por meio de um cadastro nacional, entidades, grupos ou coletivos podem se tornar um Ponto de Cultura sem depender de uma pré-avaliação do governo. Interessa-nos aqui chamar a atenção para a base conceitual do Programa Cultura Viva, visto que ele prega justamente o protagonismo e o empoderamento dos próprios agentes culturais, sendo este um importante passo em direção à construção de uma cultura mais autônoma, que se liberte da ideia de “cultura-valor”. Isto nos leva de volta a Guattari e a ideia de construção de subjetividade. 3. A CULTURA E OS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO Guattari prefere falar em subjetivação, ou produção de subjetividade, ao invés de ideologia, e compara esta produção a uma natureza maquínica, industrial, ou seja, essencialmente fabricada. As máquinas de produção de subjetividade variam de acordo com sua proporção. Podem ser em menor escala, territorializadas, como numa etnia ou uma corporação profissional, ou em escala internacional, como uma produção industrial do sistema capitalístico. Essa produção de subjetividade seria a matéria-prima da evolução das forças produtivas, funcionando como uma economia coletiva do desejo (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 25). A influência na subjetividade age no íntimo dos indivíduos, alterando sua maneira de perceber o mundo e se articular como tecido urbano. Isso o permite afirmar que pensar numa revolução, numa mudança social em nível macropolítico, pode dizer respeito também à produção da subjetividade, e isso deve ser levado em conta pelos movimentos de emancipação (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 26). A ideologia, para ele, fica na esfera da representação, quando a produção essencial do que ele chama de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) é de uma modelização dos comportamentos, da sensibilidade, da memória, das relações sociais, sexuais e até mesmo dos fantasmas imaginários. Para além da ideia freudiana de sujeito, o filósofo prefere falar de “agenciamento coletivo de enunciação”, que não corresponde a um indivíduo ou a uma entidade social predeterminada (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 31). São estes agenciamentos de enunciação que produzem a subjetividade, num processo que implica o funcionamento de máquinas de expressão não só de natureza infra-humana ou infra-pessoal, como a percepção, a sensibilidade, o afeto, o desejo, a representação e etc, mas também de natureza extrapessoal, como sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos, entre ouros. Nas palavras do francês:

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Não existe uma subjetividade do tipo “recipiente” em que se colocariam coisas essencialmente exteriores, as quais seriam “interiorizadas”. As tais “coisas” são elementos que intervêm na própria sintagmática da subjetivação inconsciente. São exemplos de “coisas” desse tipo: um certo jeito de utilizar a linguagem, de se articular ao modo de semiotização coletiva (sobretudo da mídia); uma relação com o universo das tomadas elétricas, nas quais se pode ser eletrocutado; uma relação com o universo de circulação na cidade. Todos esses são elementos constitutivos da subjetividade (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 34). O que Guattari afirma é que a subjetividade é manufaturada, fabricada individualmente a partir do entrecruzamento de determinações coletivas, o que não quer dizer que a subjetividade coletiva seja resultado do somatório de subjetividades individuais. Já o “processo de singularização da subjetividade se faz emprestando, associando, aglomerando dimensões de diferentes espécies” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 37). Enquanto o capitalismo funciona como uma máquina de produzir subjetividades, a singularização seria um caminho para a autonomia. Voltando ao que já foi dito anteriormente, se Guattari afirma que os movimentos de emancipação devem levar em conta que uma revolução em nível macropolítico diz respeito também à produção de subjetividade, podemos dizer que os movimentos sociais e coletivos, por exemplo, capazes de afirmar outras maneiras de ser e outras percepções, são movimentos potencialmente autônomos contra a subjetividade capitalística e podem, portanto, levar a processos de singularização da subjetividade. Numa outra perspectiva, podemos usar outros autores para afirmar a mesma lógica de funcionamento. Michael Hardt e Antonio Negri enxergam nos movimentos sociais um caminho de luta contra o sistema por dentro dele. Recorrem a Deleuze ao citarem que “pertencemos aos dispositivos e atuamos no seu seio” e complementam afirmando que “a chave da ação política hoje, a partir deste ponto de vista, envolve a luta pelo controle ou a autonomia da produção de subjetividade. A multidão se faz compondo no comum as subjetividades singulares que resultam deste processo” (HARDT & NEGRI, 2009, pág. X)6. Negri, desta vez com Maurizio Lazzarato, ao falar da classe operária, afirma que sua própria existência enquanto classe depende de uma recomposição política, um posicionamento de negação enquanto força de trabalho e afirmação de sua autonomia (LAZZARATO & NEGRI, 2001, pág. 17). Em outras palavras, ambos afirmam que é possível uma autonomia, partindo de dentro do próprio sistema, levar à singularização. Enquanto a economia subjetiva capitalística, segundo Guattari, leva a uma infantilização da vida diária, onde “pensam por nós, organizam por nós a No original: “’We belong to the dispositifs, and act within them’. [...] A key scene of political action today, seen from this vantage point, involves the struggle over the controlo r autonomy of the production of subjectivity. The multitude makes itself by composing in the common the singular subjectivities that result from this process”. 6

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produção e a vida social” (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 41), fazendo com que tudo dependa da mediação do Estado – dependência essencial na subjetividade capitalística – o próprio autor, porém, coloca a criação num lugar alternativo dentro dessa lógica: Se considerarmos o que efetivamente se passa no campo da criação artística e científica, jamais encontraremos sistemas de centralização, instituições que controlem totalmente os processos criativos. De algum modo, as produções artísticas e científicas procedem de agenciamentos de enunciação que às vezes atravessam não só as instituições e as especialidades, mas também países e até épocas. Há sempre uma espécie de multicentragem dos pontos de singularização no campo da criação. Isso não impede que haja, num momento ou noutro, um indivíduo criador ou uma escola [...]. Só na cabeça dos generais e dos déspotas da cultura é que existe a ideia de que se possa programar uma revolução, por exemplo, cultural. Por essência, a criação é sempre dissidente, transindividual, transcultural (GUATTARI & ROLNIK, 1996, pág. 36) (grifos do autor). Retomando a questão dos Pontos de Cultura, embora seja um programa governamental, portanto delimitador de bordas, não podemos ignorar que trata-se de uma medida que, de certa forma, subverte essa ordem capitalística a partir do momento em que dá aos grupos a possibilidade de seguirem construindo sua própria cultura, de dentro para fora. Embora Guattari afirme que não há cultura autônoma, apenas dos mercados econômicos e do poder, ele mesmo evoca a criação artística como dissidente e transcultural. Nesse sentido, devemos ficar atentos às ideias potentes que possam, de alguma maneira, ir contra o sistema capitalístico. De maneira crítica não podemos perder de vista que nem sempre a autonomia prevalecerá, pois cada lugar e cada grupo terão suas ideologias e interesses que muitas vezes reproduzem internamente a lógica capitalística, mas devemos lembrar também que o programa Cultura Viva permitiu que grupos como comunidades de jongo, quilombolas ou indígenas7, por exemplo, tivessem acesso a recursos que dificilmente teriam, possibilitando uma mobilização em rede com outras, semelhantes ou não, o que fortalece sua cultura e amplia os horizontes para o futuro das comunidades. Pensando a médio e longo prazo, o impacto educacional e social amplia as chances de um pensamento mais autônomo. 4. CONCLUSÃO OU PONTOS DE POLINIZAÇÃO Podemos também ligar a ação dos Pontos de Cultura à metáfora da polinização do economista Yann Moulier Boutang. O francês usa as abelhas para exemplificar a lógica econômica atual. Na economia política tradicional, o papel das abelhas é o de produzir mel e cera, enquanto na natureza o real e indispensável trabalho das abelhas é a polinização, cumprindo uma A relação completa dos Pontos de Cultura do país está disponível no Mapa Cultura Viva no link: http://culturaviva. org.br/#lat=-0.9774344238459801&lng=-48.136936988976345&zoom=4 (Acesso em: 12 de dezembro de 2015). 7

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importante função para o equilíbrio da vida na biosfera Diante de tamanha importância, o valor da polinização das abelhas não tem preço (MOULIER BOUTANG, 2012, pág. 76). Segundo Boutang, a polinização não é percebida, embora represente ¾ da produção da abelha, enquanto damos importância a apenas ¼ de sua ação, representado pela produção de cera e mel. Fazendo um paralelo com os Pontos de Cultura, enquanto agentes autônomos e empoderados, suas ações repercutem não apenas no imediatismo da chancela Estatal, mas, a longo prazo, funcionam como grandes polinizadores que expandem as linhas limítrofes impostas pelas políticas públicas. Segundo os dados do MinC, desde a criação do programa Cultura Viva, em 2004, foram implementados 4.500 Pontos de Cultura no país, e a meta prevista no Plano Nacional de Cultura é chegar a 15.000 Pontos de Cultura em funcionamento até 20208. Ainda estamos longe de atingir tal meta, e provavelmente não a atingiremos a tempo, mas este certamente é um bom norte. Como proposto ainda no resumo deste trabalho, não pretendeu-se aqui defender um governo específico, mas tentar enxergar uma via alternativa, valorizando uma proposta de política pública com potencial para dar uma real autonomia ao campo da cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALABRE, Lia. Desenvolvimento de políticas públicas culturais. Texto desenvolvido para a segunda edição do Curso de Formação para Gestores Públicos e Agentes Culturais do Estado do Rio de Janeiro, 2015. ______. Política Cultural em tempos de democracia: a Era Lula. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n58, p. 137-156, jun. 2014. ______. Políticas Culturais – Panorama Internacional. Texto desenvolvido para a primeira edição do Curso de Formação para Gestores Públicos e Agentes Culturais do Estado do Rio de Janeiro, 2013. COSTA, Eliane. Jangada Digital: Gilberto Gil e as políticas públicas para a cultura das Redes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. GUATTARI, Felix & ROLNIK, Suely. Micropolítica – cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1996. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2009. LAZZARATO, Maurizio & NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MOULIER BOUTANG, Yann. Revolução 2,0, Comum e Polinização. In: COCCO, Giuseppe & ALBAGLI, Sarita (Org.). Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. Dados dos Pontos de Cultura disponíveis em: http://www.cultura.gov.br/cultura-viva1 (Acesso em: 12 de dezembro de 2015). As Metas do Plano Nacional de Cultura podem ser acessadas pelo link: http://www.cultura.gov.br/ documents/10883/11294/METAS_PNC_final.pdf/ (Acesso em: 12 de dezembro de 2015). 8

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POLÍTICAS DE SALVAGUARDA DA CULTURA IMATERIAL, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DIÁLOGOS ENTRE IPHAN E DETENTORES NA CONSTRUÇÃO DO PROCESSO DE REGISTRO DAS CONGADAS MINEIRAS: O CASO DO REINADO DE SANTO ANTONIO DO MONTE E ARAÚJOS, NA REGIÃO CENTRO-OESTE Francimário Vito dos Santos1 RESUMO: Está em curso pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/ MG, a pesquisa de Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, para embasamento do Pedido de Registro das congadas mineiras. Interessa-nos compreender através da observação participante os processos de construção da política, tendo como foco a mobilização da base social, as parcerias entre os entes públicos e privados e a construção de diálogos com os detentores e a comunidade. É de igual interesse observar as implicações que ocorrem quando o poder público municipal passa a organizar o reinado. O objetivo é refletir sobre o processo de patrimonialização e a diversidade de contextos onde ocorrem os ritos que compõem as festas de reinado em Santo Antônio do Monte e Araújos. Haja vista que no segundo o poder público municipal tem uma grande influência sobre a organização da festa, enquanto no primeiro sua participação é mínima, ficando a cargo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. PALAVRAS-CHAVE: Reinado; Patrimônio imaterial; Pedido de Registro; Políticas Públicas; Participação social.

1. INTRODUÇÃO O culto em louvor a Nossa Senhora do Rosário é antigo e antecede ao período da colonização portuguesa no Brasil. Em território brasileiro, os congados são manifestações artísticas e religiosas, cujas homenagens são recorrentes à Virgem do Rosário e São Benedito. No entanto, outros santos consagrados pela Igreja Católica são inseridos nos festejos como, por exemplo, Santa Efigênia, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio e outros. É na região sudeste, mais precisamente no estado de Minas Gerais, onde há uma maior ocorrência dos festejos. Tanta expressividade contribuiu para que fosse dado início pelo Ministério da Mestre em Antropologia Social pela UFRN. Especialista em Patrimônio pelo Programa de Especialização em Patrimônio – PEP/IPHAN. Professor Adjunto I do Centro Universitário de Formiga – UNIFOR-MG. E-mail.: [email protected] 1

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Cultura, através do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o processo de produção de conhecimento com o objetivo de fundamentar o seu Pedido de Registro. No centro-oeste mineiro, os festejos recebem o nome de “reinado”, em outras regiões são conhecidos por “congadas” e “congados”, noutras por “catupé”, e, ainda, como “moçambique”. Essa pluralidade de termos sinaliza para a existência de um campo de pesquisa diverso e complexo do ponto de vista etnográfico e analítico. Mesmo que o intuito da discussão não trace um apanhado de ideias sobre as origens do folguedo, haja vista que o interesse maior é compreendê-lo a partir de uma perspectiva processual, portanto, antropológica, penso que, em termos introdutório, seja interessante trazer alguns dados a esse respeito. Alguns estudiosos do folclore também contribuem na tentativa de estabelecer marcos temporal e territorial a respeito dos cultos e festividades em homenagens aos santos negros. Para Cascudo (2010) trata-se de um folguedo de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições históricas, os usos e costumes tribais de Angola e do Congo, com influências ibéricas, no que diz respeito à religiosidade. “Especificamente, como vemos e lemos no Brasil, nunca esses autos existiram no território africano” (CASCUDO, 2010. p. 150). Fato esse também percebido pela pesquisadora Eloisa Borges em sua pesquisa de mestrado sobre o reinado em Santo Antônio do Monte. “O congado tem como principais elementos constitutivos as cerimônias de coroamento de reis negros, perpétuos e festeiros, os cortejos processionais, as danças e cantigas” (BORGES, 1997. p. 12). Supostamente, três motivos contribuíram para o processo de fragmentação da totalidade das congadas: transformações histórica, econômica, social e política; a morte dos velhos congadeiros e a perseguição implacável da Igreja Católica, destaca a autora. Em meados do século XX, há no Brasil algumas ações que visam ao registro das práticas culturais criadas pelo povo em todo seu território. Entram em cena os chamados folcloristas. Algumas críticas que se costumam tecer acerca dos textos folclóricos dizem respeito à busca por elementos capazes de definir as origens e, consequentemente, à autenticidade das práticas culturais. Segundo Vilhena (1997), as contribuições dos folcloristas foram cruciais para a definição de um discurso político ideal. Assim, foi possível estabelecer um ideário de nacionalidade brasileira ou “cultura brasileira”. Para alguns pesquisadores, resguardadas as devidas limitações, os resultados desses estudos apresentavam “uma visão simplificadora da realidade, que, muitas vezes, perdia a dimensão e sua riqueza” (COSTA, 2012. p. 65). Assim como Rabaçal (1976), por enxergar a complexidade das manifestações populares em torno de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, optou por nomeá-las de “Congos, Congados e Congadas”, com o objetivo de compreendê-las na sua pluralidade, optei por usar o termo “reinado”, por levar em consideração que nos contextos de pesquisas os quais apresento no artigo – Santo Antônio do Monte e Araújos – é recorrente o uso da referida terminologia

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pelos moradores para a definição desse momento festivo, que acontece anualmente na segunda quinzena do mês de agosto. “Ainda que cada participante tenha uma predileção por tal santo milagroso, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito constituem o denominador comum da devoção da maioria dos congadeiros” (RABAÇAL, 1976. p. 43). Para Costa (2012), que pesquisou as congadas em Serra do Salitre, na região do Alto Parnaíba, os congados representam a aparição de Nossa Senhora do Rosário o que estruturou as comemorações atualmente marcadas pela participação dos ternos. “É o evento mítico situado no tempo do cativeiro, e que a partir dele foi instaurado um reinado idealmente responsável pela conformação da festa como um todo” (COSTA, 2012. 67). Portanto, assegura a autora, “o reinado, garante que a festa seja realizada com muita alegria, dança, cantoria e comida” (Idem). Além disso, a festa de reinado é composta por reis perpétuos, reis congos, festeiros, mordomos e ternos compostos pelos congadeiros. O termo reinado carece de uma reflexão pormenorizada, uma vez que se estrutura a partir de uma complexa rede de significados que interligam o plano das crenças religiosas à vida cotidiana dos congadeiros, reis, festeiros e devotos dos santos padroeiros. O reinado comporta uma gama de ritos: ritual de levantamento dos mastros, coroação de reis e rainhas, pagamento de promessas, cortejos e procissões, missa conga e outras formas de homenagens aos santos. Para entender a amplitude simbólica do reinado e o lugar do culto à Virgem do Rosário nesse festejo religioso, que é o ritual de coroamento de reis e rainhas, Vilarino (2014), com base na fala da rainha conga de Minas Gerais sobre a função de uma coroa nos ritos congadeiros, faz a seguinte ressalva: “A coroa é a confirmação da presença da força protetora da santa junto àquele rei/rainhas coroado” (VILARINO, 2014. p. 100). Outra função, não menos importante que se percebe no contexto do reinado, além do culto à santa e demais rituais que os envolve, é o fato de promover entre os ternos (grupos de dançadores), sobretudo, aqueles compostos por negros, a noção de pertencimento aos ancestrais escravos. Assim, é possível perceber que o reinado “esteve [e está] diretamente associado à escravidão, é uma manifestação religiosa em que seus praticantes rememoram aquele tempo através de seus rituais” (VILARINO, 2014. p. 97). A fina observação etnográfica sobre as “festas dos pretos” associada aos relatos colhidos “parecem associar Nossa Senhora do Rosário à Liberdade e São Benedito ao cativeiro” (COSTA, 2012. p. 54). Elementos que forçam a postura de seriedade, devoção e respeito adotada pelos congadeiros durante os dias de reinado. Assim, após rápida introdução acerca das manifestações festivas em homenagem aos santos padroeiros, o objetivo do artigo é trazer algumas reflexões acerca do processo de patrimonialização e a diversidade de ritos em louvor a virgem do Rosário, com destaque para a festas de reinado em Santo Antônio do Monte e Araújos, sobretudo, no que diz respeito à sua organização. Para isso, trago como exemplo empírico a realidade de Araújos, onde a presença do poder

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público municipal é massiva tanto na estrutura como na organização da festa; enquanto que, no primeiro a organização, implementação e estrutura do evento ficam a cargo da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, junto aos congadeiros e comunidade. De modo que torna-se possível observar as implicações que ocorrem, quando o estado passa a comandar festejos de origem popular. Interessa-nos, também, compreender os processos de construção da política, tendo como foco a mobilização da base social (comunidade e detentores), as parcerias entre os setores públicos e privados, e a construção de diálogos envolvendo os detentores e a comunidade. 2. A NOÇÃO DE RAIZ E O PERÍODO EXTRACOTIDIANO IMPOSTO PELAS FESTIVIDADES DE REINADO Para dar mais consistência à discussão, peço emprestado a Costa (2012) o termo terno de raiz, usado por ela, a partir dos discursos dos congadeiros locais, para pensar meu contexto de pesquisa. “Terno de raiz ou terno legítimo é aquele que mantém as características informadas pela tradição” (COSTA, 2012. p. 127). Nesse sentido, é possível perceber que os ternos de Moçambiques, podem ser pensados a partir da referida categoria. Segundo a tradição, os antigos escravos dançadores do Moçambique eram exclusivamente pessoas mais velhas (os pretos-velhos) que dançavam em círculos vestiam saia, e usavam moringas nos calcanhares e joelhos – chocalhos feitos de cabaça. Costuma-se seguir as cores tradicionais do estilo – branco, azul e rosa em homenagem à Nossa Senhora do Rosário (COSTA, 2014. p. 132-135). Em Santo Antônio do Monte, contexto etnográfico das observações, há vinte e três ternos de congadas, destes apenas três são ternos de Moçambiques, e apenas um, terno de Vilão. Este, além de possuir alguns instrumentos musicais como tambores sanfonas, o que chama a atenção são os bastões ou varinhas – termo comumente falado pelas pessoas da cidade - enfeitados com fitas coloridas, e o fato de seus dançadores portarem chapéus semelhantes aos que são usados pelos militares. Como observa Costa (2012), o Vilão possui uma performance própria mais ligada à dança do que às músicas. A coreografia (ou bailado), que dramatiza um confronto, aparece como aspecto específico do estilo, enfatiza a autora. No que se refere aos ternos de Moçambiques existentes na cidade, apenas dois trajam vestes que representam tradicionalmente as cores usadas por Nossa Senhora (branco e azul), elementos que segundo Costa (2012), podem se caracterizar como terno de raiz, ideia defendida pelos Moçambiques de Serra do Salitre. O outro grupo, chamado de Moçambique São Benedito, seus dançadores estão caracterizados com as cores do santo, ou seja, branco amarelo, marrom e branca2. “As imagens de São Benedito presentes na Serra de Salitre e na região como um todo, além de representá-lo como negro, e vestindo uma roupa franciscana marrom, o que tornou essa cor, junto ao amarelo, representativa do santo nas festas em sua homenagem” (COSTA, 2012. p. 60).

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Em contrapartida, o terno os “Canarinhos da Serra”, descrito pela referida autora, se distancia do conceito de raiz, enfatizado pelos dançadores dos ternos de Moçambiques e do Vilão, sobretudo, a partir do uso de elementos performáticos. Desse modo, “a batida forte e o vestiário inovador, sobretudo, das dançarinas, procuram mais chamar a atenção e, assim, se sobrepor aos outros ternos, do que corresponder ao estilo legítimo” (COSTA, 2012. p. 142). No que diz respeito aos outros dezenove ternos de congadas existentes na cidade, pode-se estabelecer uma relação de aproximação de estilo entre os ternos Beija-Flor e Cateretê da Serra de Salitres, o que nas palavras de Costa (2012) “são desvinculados da tradição, e são mais permissivos quanto às regras, pois trazem apenas meninas entre suas integrantes, além de capitãs” (COSTA, 2012. p. 143). É o caso dos ternos Congada Filhas de Maria e Congada Meninas do Rosário, até onde pude observar. A diversidade dos ritos festivos e devocionais que mesclam elementos religiosos afro-brasileiros e católicos, praticados anualmente em todas as regiões mineiras, a partir de um calendário tradicional, e a noção de pertencimento e fortalecimento dos grupos que através da cultura reafirmam os vínculos com seus ancestrais negros escravos, tudo isso, associado ao caráter festivo que dá um atributo extracotidiano às cidades e comunidades rurais durante os dias de louvores, são evidências que chamam a atenção do Estado brasileiro para viabilizar políticas públicas de salvaguarda que assegurem sua manutenção e reforcem o valor simbólico e material perante os detentores3. O contexto de excepcionalidade impulsionado pelas festividades em homenagens aos santos padroeiros permite que a cidade vivencie um período fora do comum, pois somente “o rito dá asas ao plano social e inventa, talvez, sua mais profunda realidade” (DAMATTA, 1981. p. 31). 3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA NO ÂMBITO DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL E O PROCESSO DE MOBILIZAÇÃO DA BASE SOCIAL Ficam evidentes, com base nas reflexões acima, que as manifestações que fundamentam os ritos festivos em louvor aos “santos pretos”, além de demarcarem um momento especial que rompe com a vida cotidiana, propiciam que os sujeitos devotos possam revisitar as memórias afetivas de tempos antigos e ressignificá-las. Memórias essas que são reforçadas de tempos em tempos, durante as festividades, e contribuem para o fortalecimento da identidade negra dos grupos. As cantigas, danças, adereços, instrumentos e tantos outros elementos ritualísticos que compõem o folguedo são cruciais para que os congadeiros acessem as memórias do cativeiro vivido pelos seus ancestrais, e passem a ressignificá-las através de uma postura É interessante destacar que no tocante à implementação de políticas de salvaguarda o Estado só se manifesta mediante anuência, por escrito, dos principais interessados na manutenção da pratica, no caso os detentores. 3

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de resistência e de lutas. Isso os torna sujeitos autônomos e politicamente conscientes de suas condições de exclusão. O fato de os congadeiros estarem imbuídos desses sentimentos de resistência e luta, foi crucial e serviu de ponto de partida para o início das primeiras ações de mobilização com vistas a salvaguardar as festividades que acontecem no estado de Minas Gerais, em torno do culto à virgem do Rosário. Esforços coletivos de detentores, base social, poderes públicos locais e entidades representativas (associações e irmandades)4, fizeram chegar ao IPHAN, um documento solicitando o Pedido de Registro das congadas mineiras. A partir daí o órgão deu início às pesquisas de mapeamento e identificação através do uso de metodologia própria, o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, que tem como objetivo juntar evidências possíveis para embasar a referida política de proteção. É interessante, nesse caso, destacar o caráter coletivo das ações de solicitação de Pedido de Registro. “As propostas de Registro devem ser necessariamente coletivas, envolvendo, sempre que possível, a representação dos detentores dos bens em questão” (IPHAN, 2010. p. 23). Assim, o caráter coletivo do pedido, junto ao caráter descentralizador da instrução do processo e o caráter transitório da inscrição formam as características que diferem o Registro do Tombamento. Juridicamente, o reconhecimento possui bases legais no Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2001, que institui o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências” (BRASIL, 2000). Ação essa que segundo Laurent Lévi-Strauss sinaliza que “o Brasil tomou iniciativa notável” (2001. p. 23). Sobretudo, porque, durante muito tempo, o estudo e a salvaguarda das formas de patrimônio cultural imaterial, “em particular aquelas ligadas à vida cotidiana e às culturas populares, serem vistas como primos pobres das políticas de conservação do patrimônio, se comparadas com os meios e esforços consagrados às obras de artes e aos monumentos” (LÉVI-STRAUSS, 2001. p. 23). Não resta a menor dúvida sobre a importância de tal instrumento jurídico nas ações de implementação e fortalecimento das manifestações populares existentes no Brasil, em particular, aquelas cujos detentores têm um significativo legado na formação da identidade de brasilidade, como os povos originários, a saber, indígenas e afro-brasileiros, culturas e formas de vidas que, por muitos anos, foram deixadas de escanteio pelo Estado. Em 2008 foi encaminhado, ao Presidente do IPHAN, ofício do Prefeito Municipal de Uberlândia solicitando o reconhecimento das Congadas de Minas como Patrimônio Cultural do Brasil. Esta solicitação foi acompanhada de cartas de apoio dos municípios de Uberaba, Campos Altos, Ibiá, Frutal e Monte Alegre de Minas, e da Associação dos Congos e Moçambiques Nossa Senhora do Rosário de Ibiá, que reiteram a importância desta expressão religiosa e cultural no estado. Após uma série de deliberações junto à prefeitura de Uberlândia e internos ao IPHAN, em 2011 foi enviada cópia do processo de Registro das Congadas de Minas para a Superintendência do IPHAN em Minas Gerais, que a partir de então ficou responsável pelas pesquisas e encaminhamentos necessários à instrução do referido processo. Em julho de 2012 o IPHAN/MG iniciou os trabalhos de inventariamento das Congadas de Minas, utilizando a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais. 4

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Para compreender a complexa história da política cultural brasileira, incluindo os processos de estagnação, descasos políticos, falta de investimentos e tantos outros, Rubim (2010) dá algumas pistas. Para ele, a área de cultura enquanto uma política de estado brasileiro, é marcada por ‘tristes tradições’: “ausência, autoritarismo e descontinuidade” (RUBIM, 2015 p. 11). Não me interessa, no momento, realizar um apanhado de ações políticas com base nas três tradições. De acordo com Rubim (2015), o governo Dilma, no que se refere às ações de políticas culturais tem sido marcado por “descontinuidades”. Os dois anos de experiência atuando como consultor da UNESCO, realizando atividades específicas no Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI/IPHAN, permitiram-me acompanhar a saga que é a descontinuidade de ações já em andamento, sobretudo, por restrições de recursos financeiros. Na maioria das vezes, os técnicos já têm ido à localidade, iniciado um processo de mobilização e diálogo junto aos grupos, além de comprometerem-se moralmente com a continuidade das ações. De repente, de uma hora para outra, vem a informação via chefia imediata de que os recursos destinados ao projeto em andamento foram suspensos, porque o Ministério da Cultura foi atingido com cortes de gastos. Outros casos de descontinuidade de ações dependiam, para assim prosseguir, de suas aprovações no orçamento do ano seguinte. Enfim, os projetos são paralisados e todo um trabalho realizado como os detentores é interrompido, ocasionando entre os integrantes do grupo um sentimento de frustação e descrédito. Foi o que aconteceu às ações do projeto de Pedido de Registro das Congas mineiras, sobretudo, no que tange aos diálogos já em estágio bastante adiantado entre os congadeiros, lideranças políticas municipais e o IPHAN. Não é meu propósito nesse artigo fazer um apanhado dos diversos momentos históricos da política cultural brasileira, mas pontuar algumas ações, sobretudo no âmbito da preservação do patrimônio imaterial, a partir do referido decreto. Nesse sentido, direciono meus esforços para análise de algumas ações que marcam um contexto antes e outro depois das “Políticas Culturais no Governo Lula” (RUBIM, 2010). Anterior ao Decreto, e de importância ímpar, a Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 216, prevê o reconhecimento dos bens culturais imateriais como patrimônio a ser preservado pelo Estado em parceria com a sociedade. O artigo define, também, que o poder público – com a colaboração da comunidade – promoverá e protegerá o Patrimônio Cultural Brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento.   Embora o instrumento jurídico que salvaguarda os bens culturais de natureza imaterial tenha sido sancionado, ainda nas gestões do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso,

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e do Ministro da Cultura Francisco Weffort, com saldo dos bens registrados5, o período de 2003 a 2011, que corresponde às duas gestões do Presidente Lula, que teve como Ministro da Cultura, na primeira gestão Gilberto Gil, e no segundo mandato, o ministro Juca Ferreira, foi definitivamente decisivo para a consolidação e implementação da política de salvaguarda dos bens intangíveis. Foi possível perceber que o período contabilizou o Registro de 21 (vinte e um) bens, distribuídos em todas as regiões do país, e inscritos nos quatros livros6. Diante do quadro de avanços das ações de preservação da política, é crucial fazer um apanhado das transformações, sobretudo, no que se refere às lutas e demandas impostas pelos movimentos sociais. Como bem frisa Soto et al (2010) nos governos democráticos representativos, os direitos políticos dos cidadãos incluem a possibilidade de participar das decisões governamentais (SOTO et al, 2010. p. 26). A autora refere-se ao mecanismo democrático denominado participação social, ou como se costuma falar no dia a dia das ações de salvaguarda de patrimônio imaterial do IPHAN: mobilização da base social, de modo que o diálogo com a sociedade permitiu enfrentar os autoritarismos, enfatiza Rubim (2015). Para melhor elucidar a ideia de participação social nos processos de decisão política do governo Lula, é preciso ir ao cerne da questão: As lutas sociais e o processo de organização popular fizeram com que em 1989 a nordestina Luiza Erundina fosse eleita prefeita do município de São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que por sua vez convidou a filósofa Marilena Chauí para assumir a pasta da secretaria de Cultura. Marilena Chauí instituiu o conceito de Cidadania Cultural, apregoando a cultural como um direito do cidadão (BEZERRA E WEYNE, 2013. p. 06). Estavam, portanto, plantadas as bases que viriam a ser o modelo de política cultural do futuro governo nacional petista, a partir de 2003, acrescenta a autora. Em seu discurso de posse, o Ministro Gilberto Gil (2003) deixa evidente o “início de uma nova fase na política cultural do país”, no sentido antropológico, com a preocupação em “revelar os brasis”, suas múltiplas manifestações culturais, e na retomada do papel ativo do Estado na formulação de políticas culturais, procurando, sobretudo, estabelecer diálogos e compartilhar com a sociedade brasileira a revisão, formulação e execução das políticas públicas de cultura. Nesse sentido, a cultura, pela primeira vez na história do país, passou a ser vista como importante ferramenta de inclusão, cidadania e desenvolvimento. A democratização e acesso aos bens culturais decorrentes da implementação dessas mudanças podem ser percebidas em diversas áreas no campo institucional das políticas culturais. No âmbito das políticas de preservação da cultura imaterial é possível Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, inscrito no Livro de Registro dos Saberes (20/12/2012), e a Arte Kusiwa – Pinturas Corporais e Arte Gráfica Wajãpi, inscrita no Livro de Registro Formas de Expressão do IPHAN, na mesma data. 6 Informações disponíveis no site http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/228. 5

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perceber inúmeras ações, sobretudo, no que tange ao reconhecimento de práticas culturais produzidas por populações até então desmerecidas pelo Estado como grupos indígenas e afrodescendentes, cuja importância é fundamental para formação da identidade brasileira7. O primeiro contato estabelecido entre os congadeiros de Santo Antônio do Monte e o IPHAN se deu em agosto de 2014, por ocasião de uma reunião realizada entre os representantes da empresa terceirizada responsável pela coleta de dados para compor a primeira fase do INRC. Na ocasião, fui convidado pelo presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário a estar presente. A pesquisadora apresentou o projeto, expôs os objetivos, falou sobre a atuação do IPHAN, em seguida, abriu a sessão para perguntas e questionamentos dos congadeiros. As perguntas giraram em torno das interferências do órgão sobre o reinado, desde a imposição de mudanças a recursos financeiros. Após o término da reunião, orientei o presidente da Irmandade a encaminhar um ofício à Superintendência do órgão no Estado de Minas Gerais, solicitando a visita de um técnico para prestar mais esclarecimentos sobre o projeto. Um ofício em resposta chegou à Irmandade confirmando a reunião para novembro de 2014. Próximo à data acertada, o compromisso foi desmarcado sob a alegação de problemas técnicos burocráticos. No ano seguinte, em março, o ofício foi refeito, e eu fui à Superintendência do IPHAN entregá-lo, pois o objetivo era que a referida reunião ocorresse antes das festividades do reinado, que acontecem entre os meses de julho e agosto. Em resposta à solicitação, o órgão agendou uma visita para os dias 10 e 11 de junho de 2015. De fato, o primeiro diálogo entre o técnico e os detentores aconteceu na sede da Irmandade. Na ocasião, o servidor destacou tópicos importantes, como o papel do IPHAN durante e após um processo de Pedido de Registro, deixando explícito que em nenhum momento o órgão interferiria nas dinâmicas das congadas nem na organização do reinado; nem o fato de um bem cultural ser reconhecido com patrimônio cultural em nível nacional implicaria no recebimento de recursos financeiros oriundos do governo. A posição do órgão é de prover políticas públicas de culturas visando à manutenção do bem. No dia seguinte, o técnico reuniu-se com o prefeito, a secretária de Educação e Cultura, e o presidente da Irmandade. Apresentou-se o projeto e a justificativa pela qual as congadas da cidade tinham sido escolhidas para uma pesquisa mais detalhada. Entre os 332 municípios que mantinham vivas as festividades em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, Santo Antônio do Monte estava incluso, e que o passo seguinte das pesquisas seria a realização de Encontros Regionais de congadeiros, em cidades polo, com a presença de pelo menos dois integrantes de cada congada. Imediatamente, o prefeito sugeriu que o evento fosse sediado na cidade, e justificou seu interesse oferecendo o prédio do SEDUC, para a realização do evento, além de Para que tais ações atingissem de forma democrática os mais diversos grupos localizados no interior do país, foram necessárias medidas de reestruturação dos órgãos de cultura. Foi quando, pela primeira vez na história do IPHAN, houve concurso destinado a contratação de técnicos especializados em diversas áreas do conhecimento. 7

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outras parcerias. Justificou ainda, como forma de enfatizar a grandiosidade do reinado perante a região, que várias congadas de cidades vizinhas vêm para a cidade na época dos festejos. O técnico ouviu as propostas e ficou de analisar junto ao superintendente, e que, posteriormente, daria uma resposta. No dia 13 de agosto de 2015, portanto, em pleno reinado, o técnico do IPHAN retornou à cidade para comunicar ao prefeito que o município seria uma das cidades a sediar um dos Encontros Regionais de congadeiros8. Enfim, de acordo com o técnico, o calendário dos encontros estava previsto para acontecer entre os meses de novembro de 2015 e fevereiro de 2016, no entanto, até o momento tais ações ainda não foram executadas. O que se sabe é que, enquanto o orçamento da União, referente ao ano letivo de 2016 não for aprovada, não há expectativas quanto à continuidade das ações do projeto. O cenário que pareceria estar fluindo do ponto de vista da construção de diálogos e mobilização da base social sofreu uma interrupção. O que só reforça de forma direta e contundente a realidade de descontinuidade que se instalou na gestão do governo Dilma. 4. POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A PARTICIPAÇÃO DO PODER PÚBLICO NA GESTÃO: O CASO DE SANTO ANTÔNIO DO MONTE E ARAÚJOS O primeiro contato que estabeleci com os congadeiros de Santo Antônio do Monte partiu de um convite do presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, para que eu participasse de uma reunião com as presenças dos pesquisadores contratados pelo IPHAN e os detentores, cuja pauta era a realização de uma pesquisa sobre as congadas mineiras. O mais interessante ainda estava por vir. Antes do evento alguns participantes me perguntaram sobre o que seria a reunião, e de modo geral, expus, destacando que o instituto do órgão público encarregado é de criar ações destinadas à preservação e continuidade das práticas culturais de relevante valor afetivo para os grupos locais e, consequentemente, para o Brasil como um todo. Após isso, ouvi uma frase meio sussurrada saindo da plateia: “mas nós não aceitamos que o nosso reinado fique como o de Araújos!” Bom, inicialmente, eu senti que a frase soou como uma resistência à presença do IPHAN, por se tratar de um órgão público. A frase, se tornou uma questão a ser melhor investigada. Após a reunião, abriu-se um espaço para os congadeiros se pronunciarem e sanar algumas dúvidas. O presidente da irmandade foi o primeiro a pedir a palavra, e sua observação foi em tom de desabafo, alegando que, durante muitos anos, os “órgãos públicos” gestores de cultura os procuraram para realizar estudos e pesquisas, e colher dados sobre o reinado, fazendo Os Encontros Regionais com os congadeiros, serão realizados em sete municípios mineiros, em data ainda por definir: Divinópolis, Machado, Montes Claros, Santo Antônio do Monte, São João Del Rei, Sete Lagoas e Uberlândia. Conforme documento oficial expedido do IPHAN/MG. 8

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uma série de promessas, e ao final dos trabalhos, nunca voltaram para mostrar seus resultados. É igualmente interessante, que, em sua fala, poder público dá a entender que é uma única coisa, não há distinção nítida se é municipal, estadual ou federal. O poder público trata a cultura com descaso. Depois, eu apurei que tais estudos tinham sido realizados pelo IEPHA - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Como já expus no texto acima, no geral, a grande preocupação dos congadeiros era de que forma o IPHAN iria interferir na organização da festa de reinado. Foi por conseguir associar o desabafo do presidente com a frase que partiu da plateia, antes da reunião ter início, mais a grande questão que foi inerente aos detentores, que resolvi problematizar esse tópico. Depois, em conversas e informações com alguns congadeiros e comunidade em geral, comecei a entender que havia uma diferença entre as festividades de reinado da cidade e aquelas que acontecem na cidade vizinha de Araújos. Ouvi queixas no seguinte sentido: “o reinado virou uma micareta, com trio elétrico, muita bagunça”. “Nós não queremos que aqui fique igual ao que findou o reinado de Araújos”. Mas o que havia contribuído para tal transformação, a ponto de causar tanta resistência por parte dos moradores e congadeiros? A resposta não demorou a vir. O fato é que, em Araújos, a organização do reinado está sob a responsabilidade do poder público municipal, transformando-o numa espécie de “espetáculo alegórico, contrastando com o sentido de missão” (COSTA, 2012. p. 63). Ao contrário do reinado de Santo Antônio do Monte, cuja organização, estrutura e promoção da festa ficam a cargo da Irmandade e da comunidade. A prefeitura apoia, sem necessariamente ter o compromisso de realizá-la. Por detrás das palavras, com ares de desaprovações proferidas pelos congadeiros, estão sentimentos bastante difundidos entre os devotos dos santos padroeiros, a fé e o sacrifício. Para eles o trabalho dedicado para homenageá-los é recompensado pelas graças alcançadas. A essência de existência da festa reside no fato de cada indivíduo se doar e oferecer o que pode. Na maior parte das vezes, as ofertas se dão em formas de serviços voluntários, sobretudo, nos almoços, jantares e outras ações promovidas na comunidade com o intuito de angariar fundos, e durante o reinado, nas preparações das refeições. Para Costa (2012) realizar as festas e participar dos grupos superando o cansaço e as dificuldades financeiras é uma forma singular de expressão de louvor, e mais, é a profunda devoção que enaltece a organização das festas e a participação nos ternos, não as roupas ou enfeites. Motivado pelas inquietações dos congadeiros acerca do reinado de Araújos9, fui observar, sem grandes pretensões, a sua festa. Mesmo que eu nunca tivesse ido à cidade, fiz questão de não pedir ajuda a qualquer informante local, fui sozinho. Era uma manhã de domingo, segundo dia de Não vou ater-me na descrição do reinado da localidade. O propósito é mostrar algumas diferenças em relação à festa em Santo Antônio do Monte, e que seja possível refletir sobre a questão da gestão pública municipal na sua organização.

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reinado. Ao chegar ao perímetro urbano, ainda distante do local dos festejos, em frente à igreja matriz, no centro, ouvi sons de tambores que pareciam vir de todos os cantos. Ao seguir caminho, logo percebi o quanto a cidade estava enfeitada de fitilho, muito brilho. Mais lembrava um céu estrelado com sol a pino. Não que em Santo Antônio do Monte não se usam enfeites, mas eles se restringem à ornamentação de locais estratégicos como o pátio do salão da irmandade, a frente da matriz, e frente às residências dos reis e rainhas congos e perpétuos, e festeiros. Toda a festa se concentrava ao redor da igreja matriz cujo padroeiro é São Sebastião, embora algumas manifestações de louvor aos “santos pretos” estivessem acontecendo por toda cidade, principalmente, motivadas pelas visitas dos ternos. Montado em frente à matriz que estava enfeitada, havia um palco relativamente grande, o que indicava que ele não se destinava apenas às apresentações dos ternos, mas a outros tipos de shows, e uma tenda onde os festeiros recebiam as homenagens dos ternos após o oferecimento das refeições. Em uma das avenidas que ladeava a concentração dos ternos, inúmeros bares e restaurantes, vendendo bebidas e comidas, cada um tocando um gênero musical diferente, cujo repertório ia do axé, passando pelo funk até o forró. Esse cenário espetaculoso e carnavalesco acontecia simultaneamente às apresentações dos ternos na tenda. A outra avenida sediava uma feira a céu aberto, de proporções gigantescas, chegando a dois quilômetros de extensão. Nela, vendiam-se de quase tudo, desde produtos eletrônicos importados, brinquedos, utilidades domésticas, artigos religiosos, produtos de belezas, acessórios de couro, comidas e bebidas variadas. Como se não bastasse o espetáculo massificado na terra, nos ares era possível observar voos rasantes de helicópteros, que proporcionavam passeios para aqueles mais abastados, e, diante de tantas fantasias e enfeites, o que menos os chamavam a atenção eram os ternos de congadas com seus bailados, músicas e devoções. Em resumo, mesmo que as conclusões sejam preliminares há, sim, diferenças marcantes entre as festas de reinado existentes nas duas cidades. O fato é que não me demorei a percebê-las, apenas algumas horas de pesquisa exploratória foram suficientes para compreender os motivos pelos quais os congadeiros de Santo Antônio do Monte oferecem tamanha resistência em entregar a organização da festa ao poder público, seja ele qual for, municipal, estadual e federal. Temem, sobretudo, que a festa se transforme numa espécie de carnaval, e que as congadas e seus ternos se tornem meros acessórios de alegoria diante do cenário fantasioso produzido pelo Estado. A congada ou reinado torna-se, assim, “mais uma apresentação ou um espetáculo do que uma demonstração de fé, o que, segundo os congadeiros da Serra do Salitre, esvazia o seu conteúdo original” (COSTA, 2012. p. 63. Grifo meu).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Escrever sobre as nuances do reinado e suas representações, mas especificamente pensando o recorte das políticas públicas de preservação da cultura imaterial, tem se mostrado para mim um exercício reflexivo prazeroso, porém complexo. A cada texto produzido sobre o tema surgem novas ideias e impulso para continuar a desvendar seus encantos. O tema da mobilização social entre o poder público e os congadeiros, imprescindível no campo do processo de patrimonialização tem sido uma das vertentes transversais aos festejos, em homenagem à virgem do Rosário que mais tem instigado, e se apresenta com mais evidência. A ideia de envolver os principais atores no processo através de troca de diálogos, se conduzido com o devido cuidado e atenção gera produção de conhecimento e fortalece o senso de pertencimento, essencial na manutenção das congadas. Mesmo que a as reflexões acerca da inserção do poder público na organização do reinado, especificamente no contexto da cidade de Araújos, possa parecer um problema, sobretudo, na visão de alguns congadeiros e devotos, penso que se trata de terreno fértil para aprofundamentos futuros. Os conceitos de raiz, alegoria, enfeites, escolas de sambas e espetáculos, abordados por Costa (2012), mesmo tendo sido trabalhados timidamente no meu contexto de pesquisa, foram significativos para compreender as disputas e tensões entre as duas cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2010. BEZERRA, Jocasta Holanda; WEYNE, Raquel Gadelha. Políticas Culturais no Brasil Contemporâneo: percursos e desafios. In: IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS CULTURAIS, 2013, Rio de Janeiro. Anais (on line). Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2013. Disponível em http:// culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2013/11/Jocastra-Holanda-Bezerra-et-alii.pdf. Acesso em 01 de fevereiro de 2016. BORGES, Eloisa. Os devotos do Rosário: devoção e promessa na Festa do Rosário de Santo Antônio do Monte. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Belo Horizonte, 1997. COSTA, Patrícia Trindade Maranhão. As raízes da Congada: a renovação do presente pelos Filhos do Rosário. Curitiba: Appris, 2012. DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1981. IPHAN. Os sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois: princípios, ações e resultados da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, 2010.

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______. IPHAN. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/228. Acesso em 14 de fevereiro de 2016. LÉVI-STRAUSS, Laurent. Patrimônio Imaterial e Diversidade Cultural: O Novo Decreto para a Proteção dos bens imateriais. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 147, p. 23-28. Rabaçal, Alfredo João. As congadas no Brasil. São Paulo: Sec. Cult., Ciência e Tecnologia, Cons. Estadual de Cultura, 1976. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas Culturais no Governo Lula. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas (Org.). Políticas Culturais no Governo Lula. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 09-24. ______. Políticas Culturais nos primeiro governo Dilma: patamar de rebaixamento. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre; CALEBRE, Lia (Orgs.). Políticas Culturais nos primeiro governo Dilma. Salvador: EDUFBA, 2015. p. 11-32. SOTO, Cecília ET AL. Políticas Públicas de cultura: os mecanismos de participação social in RUBIM, Albino Canelas (Org.). Políticas Culturais no governo Lula. Salvador: EdUFBa, 2010. p. 25-47. VILARINO, Marcelo de Andrade. D´África ao Brasil: elementos hi[e]stóricos conformadores e estruturantes do congado belo-horizontino. In: PEREZ, Léa Freitas. et ali. (Orgs.). Variações sobre o Reinado: um rosário de experiências em louvor a Maria. Porto Alegre: Ed. Medianiz, 2014. p. 83-100). VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro -1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

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SOCIOLOGIA DA DIVERSIDADE E DESAFIOS DO PATROCÍNIO À CULTURA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Francis Miszputen1 RESUMO: Este trabalho estuda, de modo sucinto, os conceitos de desigualdade e diversidade, traçando uma linha do tempo na evolução destes conceitos no mundo e no Brasil, e os estende até um olhar para a diversidade cultural brasileira. A partir desses conceitos, discorre sobre os desafios do modelo de fomento à cultura no país e alguns dos efeitos perversos da legislação de incentivo. Conclui-se com uma observação analítica do Prêmio Rio Sociocultural, evidenciando a manifestação prática das questões que se apresentam nesse contexto. PALAVRAS-CHAVE: desigualdade, diversidade cultural, efeitos perversos, leis de incentivo à cultura.

1. APRESENTAÇÃO Este trabalho pretende, incialmente, introduzir - à luz do texto “Desigualdade e diversidade: os sentidos contrários da ação”, de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (Botelho e Schwarcz, orgs., 2011:166) – os conceitos de desigualdade e diversidade. A partir do entendimento sobre a evolução destes conceitos no pensamento mundial e brasileiro, aproveitando não somente o texto em referência, mas também o conhecimento adquirido em outras leituras e aulas, pretende-se descrever, sucintamente, o olhar específico para a diversidade cultural no Brasil de hoje. Ao final, à guisa de conclusão do trabalho, se descreve, também de modo sucinto, um caso de sucesso na parceria público-privada de fomento a projetos socioculturais no estado do Rio de Janeiro, principal área geográfica de atuação do Instituto Cultural Cidade Viva2.

Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais  pelo CPDOC-Fundação Getulio Vargas. Professora Adjunta da Universidade Candido Mendes, nos cursos de graduação e pós-graduação em Produção e Política Cultural. Professora convidada do MBA em Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão, da Fundação Getulio Vargas. Diretora de Projetos do Instituto Cultural Cidade Viva. E-mail: [email protected] | [email protected] 2 Informações sobre a instituição podem ser obtidas no sítio http://www.institutocidadeviva.org.br. 1

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2. DESIGUALDADE E DIVERSIDAE – UMA LINHA DO TEMPO DO PENSAMENTO MUNDIAL

Segundo Guimarães, em nosso texto de base (2011:166), as sociedades modernas, ao redor do mundo, viveram contrastes muito significativos. O surgimento dos Estados-Nação, o capitalismo, a convivência urbana, regidos por valores jurídicos e constitucionais de liberdade e igualdade, contrapunham-se, nos mesmos contextos, às solidariedades étnicas, a formas pré-capitalistas de produção, à vida rural e às hierarquias sociais vigentes desde muito antes da criação desses Estados. Essa oposição gerou uma inexorável necessidade de rearticulação dessas mesmas sociedades, objeto sobre o qual discorremos a seguir. Citando Charles Tilly, em seu texto Desigualdades Duradouras, nosso autor de base nos explica, a partir desses contrastes, o conceito que dá título à obra do citado. Aquelas que Tilly chamou de “desigualdades duradouras” são pares binários de contrastes: branco/negro; homem/ mulher; cristão/judeu; nacional/estrangeiro; heterossexual/homossexual. Estes “pares binários” são alimentados por mecanismos de reprodução: “exploração, barreiras de controle, adaptação, emulação”, nas palavras de Tilly (1998, apud Guimarães in Botelho e Schwarcz, 2011:169). Complementando Tilly, é relevante chamar a atenção do leitor para os “efeitos perversos”, descritos por Raymond Boudon (1979:7), verificáveis quando analisamos as aplicações do pensamento liberal na sociedade moderna. Vejamos: No pensamento liberal, as diferenças de classe são legítimas, desde que o princípio da igualdade de oportunidades seja respeitado. No entanto, as consequências que advieram da legislação criada, em tese para garantir essa igualdade de oportunidades, na sociedade do final do século XIX, início do século XX, foram lutas contestatórias contra os mecanismos de exploração ou barreiras de controle que neutralizavam justamente as políticas que visavam à igualdade de oportunidades, estes últimos, os “efeitos perversos” dessa legislação. Da mesma forma, surgem, na mesma época ou pouco depois, inúmeras ações afirmativas para forçar a criação de contrabarreiras institucionais – políticas de diversidade para impedir que diferenças culturais servissem para reproduzir categorias binárias de oposição. – Que alternativas se apresentaram às lutas contestatórias? Quais as estratégias utilizadas? Ainda segundo Guimarães (Guimarães in Botelho e Schwarcz, 2011:170), o embasamento para enfrentar essas lutas veio através de duas correntes de pensamento: – a visão individualista – que tem por argumento principal que “o preconceito nutre os estereótipos” (2011:170), e propõe uma mudança de comportamento na sociedade como um todo, com o fim do preconceito que gera discriminação e desigualdades sociais; e – a visão socioeconômica – com o argumento de que “ações afirmativas nutrem os pares binários e a proposta consequente de “buscar inovações políticas e organizacionais baseadas em outros princípios: renda, local de residência, etc.” (2011: 170).

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Estas duas visões levaram as nações modernas a tentativas de solução para as desigualdades em diversas frentes: homogeneização cultural dos cidadãos; unificação linguística, religiosa, de costumes; identificação dos indivíduos como membros através de símbolos da nação. As tentativas de implementação dessas medidas acabaram por evidenciar uma nova necessidade: a da adaptação às diferenças culturais, i.e., a necessidade de aceitação e convívio com as diferenças como caminho único e indicado para conviver com as diferenças sem gerar desigualdades, ou pelo menos, minimizando essa possibilidade. Surge, a partir daí, o conceito de diversidade e suas diversas aplicações políticas e práticas. A nação pioneira neste trajeto foi a Grã-Bretanha. A implantação precoce do capitalismo, as tensões geradas por ele, associadas à extensão do império britânico, que implicava em conviver com diferenças fisionômicas, genéticas, linguísticas e religiosas, associados à influência da antropologia social e do desejo do alcance da “igualdade” política, cultural e social culmina com o entendimento da necessidade sem volta do reconhecimento, respeito e “cultivo da diversidade cultural, linguística e religiosa” como condição para aproximar os indivíduos da igualdade e cidadania. Em termos universais, Guimarães produz duas definições muito oportunas sobre o “estado da arte” dos dois conceitos: Desigualdade – “quebra da regra de igualdade de tratamento e de oportunidades na esfera pública”; Diversidade – “expressão cultural, religiosa, linguística, etc. de membros de grupos sociais, especialmente os de minoria política, social ou demográfica”. (2011:172) 3. O PENSAMENTO BRASILEIRO Ainda e sempre baseados em Guimarães, diríamos que podemos começar uma linha do tempo do pensamento brasileiro sobre a - naquele momento não chamada assim - diversidade, com Joaquim Nabuco (1883 apud Guimarães, 2011:173), quando o grande abolicionista lembra, em discurso, o “liberalismo” do Senado ao conceder elegibilidade aos libertos. Saltando para o pós-guerra, Guimarães encontra em Gilberto Freyre o elemento de consolidação da identidade nacional brasileira baseado na mestiçagem como principal promotor dessa identidade. Voltando ao texto de Freyre, entendemos rapidamente por que Guimarães o cita como um marco no reconhecimento da diversidade: reconhecendo o convívio, em todos os níveis, inclusive o doméstico, de indivíduos de raças, religiões e culturas diferentes e fazendo uma quase ode à mestiçagem como o elemento formador da identidade brasileira, Freyre poderia ser considerado o tradutor, por excelência, das primeiras manifestações internacionais de reconhecimento da diversidade. Apesar de não citado no texto de Guimarães, considero que cabe aqui uma lembrança do “homem cordial”, assim denominado por Sérgio Buarque de Holanda (1995;139-197). Suas

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observações, ainda num momento em que o termo diversidade propriamente dito não estava na pauta das discussões, demonstram o estreito convívio entre raças, credos e culturas no Brasil como gerador de um processo identitário que também nos ajuda a compreender por que precisamos considerar a diversidade como elemento formador indiscutível da sociedade brasileira. Guimarães segue com Florestan Fernandes (1965 apud Guimarães, 2011:173). Firme defensor da corrente socioeconômica, apresentada rapidamente aqui na página 3, Fernandes sustenta, segundo nosso autor de base, que as desigualdades sociais são apenas relativamente duradouras desde uma perspectiva estrutural, pois dependem do avanço do desenvolvimento econômico ou do resultado dos conflitos das classes sociais. Chegamos aos anos 70, quando o pensamento ligado ao governo militar segue a linha de que desigualdade de renda e de bem-estar podem ser explicados por exploração e barreiras de oportunidades típicas do Brasil, como a reserva de mercado de trabalho para os imigrantes no início do século XX. Finalmente, passamos pelas décadas de 1980 e 1990 observando o surgimento de novos movimentos negros que pleiteavam: direito ao reconhecimento da diversidade cultural e políticas públicas diferenciadas. Com o ambiente político favorável, esses movimentos tiveram o apoio de indígenas, homossexuais, sem-terra. No entanto, o contexto favorável não foi suficiente para suplantar a morosidade e a apatia governamental. Evidenciam-se naquele momento, portanto, os grandes desafios sociais que o Brasil enfrenta ainda hoje, para lidar com a diversidade de modo verdadeiramente compatível com o pensamento mundial contemporâneo a esse respeito. 4. DESAFIOS DO BRASIL DE HOJE – UM OLHAR PARA A DIVERSIDADE CULTURAL A defesa da autonomia cultural é muito ligada à preservação da identidade coletiva. Cultura e identidade são conceitos que remetem a uma mesma realidade, vista sob dois ângulos diferentes. (Cuche, 1999: 14) Há aproximadamente trinta anos, iniciou-se no Brasil o processo de fomento governamental à cultura através de renúncia fiscal. Nesse modelo de política pública, o governo abdica de receber parte do imposto devido pelas empresas, com o objetivo de que elas utilizem estes recursos no patrocínio às manifestações culturais que receberem este direito através de julgamento do projeto realizado por uma comissão especializada e publicado em Diário Oficial. Este mecanismo se repete, hoje, nas esferas federal, estadual e municipal. Surge a pergunta-desafio: Como conciliar os interesses da iniciativa privada com o benefício sociocultural que os projetos realizados podem trazer aos seus verdadeiros beneficiários, a sociedade brasileira, harmonizando objetivos empresariais com bem-estar social e preservação da identidade cultural brasileira?

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Desde a Semana de Arte Moderna, passando pelo Cinema Novo, o Tropicalismo, entre inúmeros outros movimentos de reforço da identidade cultural brasileira, nossas diversas modalidades artísticas vêm buscando uma aproximação em profundidade com os saberes e fazeres nacionais. No entanto, a despeito destas iniciativas, a própria geografia do Brasil constitui um universo de diversidade. Fazer com que um gaúcho demonstre afinidade nacional com um nativo da Amazônia já representa um enorme desafio; promover uma verdadeira interação e reconhecimento entre o Boi de Parintins e a Milonga da serra gaúcha é, na prática, próximo do inexequível. Daí, a nosso ver, resulta a primeira grande dificuldade na escolha de projetos culturais a serem patrocinados: - Quem é mais representativo da cultura brasileira? Quem tem mais “mérito cultural”, no dizer da legislação de fomento? De fato, não se pode nem deve discutir o mérito cultural de uma ação. A própria identificação de uma manifestação como “cultural” já lhe confere o mérito necessário para ser assim chamada. A questão está muito mais na relação desta manifestação cultural com a comunidade que a originou. Quando nos deparamos com uma apresentação do Jongo da Marambaia, por exemplo, composto por descendentes dos escravos que o trouxeram e fixaram no Brasil, não nos cabe discutir se as práticas que lhe foram agregadas são ou não parte integrante da sua própria identidade. Se existem agora e estão integrados na ação e nas apresentações, passam a ser parte integrante deste fazer e, portanto, do saber que o torna patrimônio cultural imaterial genuinamente brasileiro. Com este quadro em mente, e a título de conclusão, segue, neste último subtema, um exemplo de ação cultural em que a parceria entre os três setores-pilares do nosso modelo de patrocínio – governo, patrocinador, produtor cultural - foi bastante bem-sucedida. 5. O PRÊMIO RIO SOCIOCULTURAL Sucessor do Prêmio Cultura Nota 10, realizado nos mesmos moldes por cinco anos seguidos, o Prêmio Rio Sociocultural explica assim a sua existência, na abertura do seu sítio na Internet: O Prêmio Rio Sociocultural marca presença como um importante reconhecimento às ações socioculturais do Estado do Rio de Janeiro e tem a certeza de contribuir para consolidar a identidade do povo fluminense. Nesta quarta edição, serão distribuídos R$ 100.000,00 em prêmios! Uma realização do RIOSOLIDARIO e do Instituto Cultural Cidade Viva, apoiada pelo SEBRAE/RJ, com o patrocínio da Ceg Rio e da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro – SEC/RJ, Governo do Rio de Janeiro e Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro, ele contabiliza, em três edições, um total de 758 ações inscritas representando a totalidade dos 92 municípios. O Prêmio Rio Sociocultural tem o objetivo de identificar, premiar e dar visibilidade às ações inovadoras, criando potencial para que projetos exemplares se multipliquem.

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Representantes das instituições parceiras formam um Comitê Técnico responsável pela seleção das dez ações finalistas, das quais cinco se consagram vencedoras, sem ordem de classificação, por um Júri de excelência especialmente convidado. Dirigentes, produtores de renome, patrocinadores, alunos de escolas de gestão e produção cultural e formadores de opinião são, também, convidados para formar uma Comissão Especial, dando parecer sobre cada uma das finalistas, constituindo assim um vasto acervo de depoimentos abalizados, fundamental para o futuro dos premiados. Assim, vários vencedores saem do anonimato, conquistam apoios, além de crescerem através do reconhecimento público dado pelo Prêmio Rio Sociocultural. Através do Prêmio Rio Sociocultural, ganharam mais voz, entre muitos outros, os projetos: Ópera de Acari, Lona na Lua e a ONG TemQuemQueira.3 No entanto, apesar de seu grande sucesso no atingimento e superação de seus objetivos, o Prêmio Rio Sociocultural não tem nenhuma garantia de perpetuação. É um projeto cultural como qualquer iniciativa de entretenimento, devendo ser submetido novamente ao enquadramento a cada ano, disputando o patrocínio como se ainda não tivesse comprovado, de forma tão contundente e eloquente, a sua importância. Apresenta-se o desafio: como perpetuar uma ação sociocultural, transformá-la num Programa permanente, que dependa apenas de seus próprios resultados para garantir sua perenização? Lá se vão três décadas de incentivo e permanece a questão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS TEXTO BASE: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Desigualdade e diversidade: os sentidos contrários da ação in BOTELHO, André e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Agenda brasileira. Temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

OUTROS TEXTOS REFERENCIADOS: BOUDON, Raymond. Efeitos Perversos e Ordem Social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. O texto de abertura, os projetos aqui elencados e outros contemplados pelo Prêmio podem ser conhecidos nos vídeos disponíveis em http://www.premioriosociocultural.com.br 3

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A ECONOMIA CRIATIVA COMO POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: O CASO DO ESTADO DO CEARÁ. Francisco Ricardo Calixto de Souza1 Francisco Roberto Pinto2 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo evidenciar que a economia criativa pode ser utilizada como uma política pública fomentadora de desenvolvimento econômico sustentável para o Estado do Ceará. Procuramos demonstrar a necessidade de o governo do Ceará realizar um Mapeamento das Indústrias Criativas do Ceará, assim como foi feito no Estado do Rio de Janeiro pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN). Com apoio em um estudo realizado em 2013, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Panorama da Economia Criativa no Brasil), o artigo tem a intenção de incentivar o desenvolvimento e implementação de políticas públicas integradas focadas na indústria criativa, a chamada indústria do século XXI, baseada na inovação, na criatividade e no simbólico como matérias primas principais. PALAVRAS-CHAVE: Economia criativa, indústrias criativas, Produto Interno Bruto (PIB), desenvolvimento econômico sustentável, políticas públicas.

1. INTRODUÇÃO O sistema de produção capitalista existe na história da humanidade desde a derrocada do feudalismo, na idade média, e a ascensão das ideias do iluminismo, do humanismo e de uma nova classe de comerciantes, os burgueses. Fazendo uma rápida retrospectiva histórica, este sistema econômico passou, no decorrer de vários séculos, por várias fases, a saber: a fase comercial com as grandes navegações e a pilhagem das colônias, com colonizações de exploração, como a que ocorreu no Brasil, por exemplo. Neste sentido, o desenvolvimento econômico de países como Inglaterra, Alemanha, Holanda e Espanha dentre outros, é fruto da acumulação de riquezas e capitais advindos da fase comercial e colonialista deste sistema econômico. Já a fase Mestrando em Planejamento e Políticas Públicas (UECE); Especialista em Administração Pública (FAERPI); Bacharel em ciências econômicas (UFC). E-mail: [email protected] 2 Doutor em Administração pela Universidade Federal da Paraíba (2004), Doutor em Gestão de Empresas pela Universidade de Coimbra (2008), Pós-doutorado pelo PROPAD, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected] 1

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da revolução industrial é caracterizada pelo advento da mecanização da produção, que eleva significativamente a produtividade e, consequentemente, o lucro dos capitalistas. Principalmente na Inglaterra e outros países da Europa, berços desse sistema, observa-se ao longo da História o cumprimento de largas e extenuantes jornadas de trabalho, seguido de baixíssimas remunerações, confirmando a “mais valia” da teoria marxista (Marx, 1967). Mais recentemente, chega-se à fase da revolução eletrônica, com o uso intensivo da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e com processos de produção industriais flexíveis ou enxutos, componentes do modelo conhecido como Toyotismo, com aumento das responsabilidades individuais, agregação de valor com o uso de componentes eletrônicos e informatizados e consequente utilização intensiva de alta tecnologia, principalmente nos países desenvolvidos. Na Europa, nos anos iniciais desta fase do capitalismo os trabalhadores nos países desenvolvidos ganhavam salários com média de valores maior do que o salário dos trabalhadores de países ditos em desenvolvimento. Por conta dos altos custos trabalhistas do Estado de bem-estar social (welfare state) nos países da Europa, as grandes plantas industriais deslocaram-se para países em desenvolvimento com o objetivo de pagar menores salários, o que, na lógica capitalista, faz sobrar um maior excedente, lucro econômico ou mais valia relativa, segundo Marx (1867). Anos após o lançamento da principal obra de Karl Marx – que analisa o modo de produção capitalista, introduzindo os conceitos de mais valia absoluta e relativa, valor de uso e valor de troca – no início do século XXI, John Howkins, autor inglês, introduz o conceito de um novo tipo de indústria ou processo de produção, onde o principal insumo são as ideias, a criatividade e a inovação. A isso chama de economia criativa (Howkins, 2001). O conceito da economia criativa e seu estabelecimento como uma disciplina de estudo ganhou expressão e relevância a partir da década de 2000, como já foi dito. A partir de iniciativas isoladas no começo do século XXI, o que se observa atualmente é que a economia criativa se estende em uma ampla gama de áreas de responsabilidade política e administração pública, segundo Oliveira et al. (2013). Alguns governos no mundo criaram ministérios, departamentos ou unidades especializadas para lidar com as indústrias criativas – como é o caso do Brasil, por exemplo, que contou com uma Secretaria de Economia Criativa (SEC) ligada ao Ministério da Cultura (MinC) na gestão do então Ministro Gilberto Gil (2010 a 2014), cuja Secretária foi a professora universitária e Ex-Secretária de Cultura do Ceará, Claudia Leitão. No entanto, em 2014 o novo Ministro da Cultura (do segundo governo da Presidenta Dilma Rousseff), Juca Ferreira, extingue esta Secretaria e estabelece dentro de sua gestão uma abordagem institucional mais ligada à economia da cultura, que é somente uma parte da chamada economia criativa. É importante ressaltar que o termo Economia criativa é, ainda, um conceito em evolução, e ao redor do mundo são apresentadas diferentes definições e formas de mensuração e caracte-

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rização. Howkins (2001) sustenta a ideia de que a economia criativa se assenta sobre a relação entre a criatividade, o simbólico e a economia. Assim, economia criativa seria, segundo o autor, “o conjunto de atividades econômicas que dependem do conteúdo simbólico – nele incluído a criatividade como fator mais expressivo para a produção de bens e serviços” (HOWKINS, 2001). Para Oliveira et al. (2013), esta forma permite caracterizar economia criativa como uma disciplina distinta da economia da cultura, que guarda grande relação com aspectos econômicos, culturais e sociais que interagem com a tecnologia e propriedade intelectual, numa mesma dimensão, e tem relações de transbordamento muito próximas com o turismo e o esporte. O presente artigo, acerca da economia criativa como política pública fomentadora de desenvolvimento econômico no Estado do Ceará, justifica-se plenamente quando percebemos que a indústria tradicional em todo o Brasil, e particularmente no Ceará, emprega cada vez menos pessoas; diminui seu peso na composição do PIB enquanto o setor de serviços (onde a economia criativa está inserida) eleva sua participação e importância. Vemos, também, que o parque industrial cearense sofre um crescente processo de desindustrialização, com intensa diminuição no número de plantas industriais e que a indústria presente no Estado é intensiva em mão de obra, pouco intensiva em alta tecnologia agregada e apresenta baixos salários, ou seja, é pouco agregadora de maiores rendimentos, que acelerariam o motor da economia do Estado, proporcionando desenvolvimento econômico, maior arrecadação de impostos, com consequente melhora nos indicadores socioeconômicos, como o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Nesse sentido, o objetivo deste artigo é ressaltar a importância da economia criativa como uma nova estratégia ao desenvolvimento da economia do Estado do Ceará, como forma de incentivar a aplicação de políticas públicas para o fomento dessa nova indústria, de forma institucionalmente integrada. Com o objetivo de ressaltar a importância econômica estratégica dada à economia criativa relatamos abaixo um estudo solicitado pelo principal agente financeiro de desenvolvimento regional do Nordeste e a percepção da economista Tania Bacelar acerca deste tema. Em 2014 o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) “patrocina um estudo abrangente destinado a lançar luzes sobre a trajetória recente do desenvolvimento nordestino, identificar perspectivas e apontar desafios e iniciativas estratégicas para o futuro próximo”. Implementou, assim, sob o comando do Escritório Técnico do Nordeste (ETENE) e no âmbito de um Projeto de Cooperação Técnica com o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura – IICA, um trabalho intitulado: “Estudos Prospectivos sobre o Desenvolvimento do Nordeste do Brasil”, no horizonte 2022. Tais estudos foram realizados sob a coordenação técnica da CEPLAN Consultoria Econômica e Planejamento. Nesta perspectiva, a economista, consultora do CEPLAN e Coordenadora Geral do Estudo, Tania Bacelar aponta que:

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Nos anos recentes, o Nordeste viu se expandirem polos onde tais atividades se desenvolveram. Promover a interação entre os cientistas, no NE muito concentrados nas Universidades, com os empreendedores, estimulando a cooperação, é a iniciativa principal a ser patrocinada. Ao mesmo tempo, a economia criativa avança no mundo e, no Brasil, o Nordeste é um celeiro para o desenvolvimento de muitas de suas atividades constitutivas. Iniciativas que apoiem a expansão da produção de cinema, de eventos culturais, design e serviços criativos, atividades associadas à conservação e acesso ao patrimônio natural e cultural, a produção de jogos eletrônicos, entre outras atividades criativas devem ser priorizadas no horizonte 2022. O financiamento adequado das unidades de produção, a oferta de infraestrutura e equipamentos específicos (laboratórios, por exemplo) de apoio aos produtores, a implantação de marcos legais que consolidem o desenvolvimento e a formalização dos empreendedores são iniciativas que podem fazer avançar a economia criativa nos próximos anos. (BACELAR, 2014, p.175). Como podemos observar, para a pesquisadora do CEPLAN a Economia Criativa seria esta nova indústria do século XXI. No entanto, a economia criativa pode vir a ser ou não uma importante fonte de divisas para economia cearense, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável do Estado do Ceará e da Região Nordeste? O presente estudo vai na direção das respostas a essas questões. 2. DEFININDO E DELIMITANDO A ECONOMIA CRIATIVA Com o intuito de iniciarmos um estudo sobre o potencial de impacto da economia criativa na economia formal de um Estado como o Ceará, é de suma importância definirmos o principal indicador afetado pela alteração (positiva ou negativa) no nível de atividade econômica de uma determinada região: o Produto Interno Bruto (PIB). Logo após, passamos a conceituar o que seja a economia criativa, embora de início já afirmarmos que este é um conceito ainda em evolução, para o qual ao redor do mundo são apresentadas diferentes definições e formas de mensuração de seu impacto nas respectivas economias. Procuramos também estabelecer o alcance de sua influência nos países desenvolvidos e em países ditos em desenvolvimento com o é o caso do Brasil. Para a ciência econômica, o Produto Interno Bruto (PIB) representa a soma (em valores monetários) de todos os bens e serviços finais produzidos numa determinada região, durante um período determinado (trimestre e ano são mais usados). O PIB é um dos indicadores mais utilizados na macroeconomia, com o objetivo de quantificar a atividade econômica de uma região, seja ela uma cidade, um estado ou um país. Na contagem do PIB, consideram-se apenas bens e serviços finais, excluindo da conta todos os bens de consumo intermediários. Isso é feito com o

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intuito de evitar o problema da dupla contagem, quando valores gerados na cadeia de produção aparecem contados duas vezes na soma do PIB. 3. O SURGIMENTO DA ECONOMIA CRIATIVA Embora oficialmente não reconhecido pela comunidade acadêmica mundial, o termo economia criativa surge pela primeira vez no mundo no ano de 2001, no Reino Unido, quando o inglês John Howkins escreve o livro The Criative Economy – How People Can Make Money From Ideas; que em uma tradução livre pode ser lido como: “Economia Criativa - como as pessoas podem ganhar dinheiro a partir de ideias”. A ideia central deste livro é a de que os bens e serviços produzidos pela imaginação ganhariam cada vez mais prestígio na sociedade do conhecimento do século XXI. Howkins (2001) sustenta a ideia de que a economia criativa se assenta sobre a relação entre a criatividade, o simbólico e a economia. Assim, a economia criativa é o conjunto de atividades econômicas que dependem de conteúdo simbólico – nele incluído a criatividade, como fator mais expressivo para a produção de bens e serviços. Com o objetivo de fixarmos o conceito, podemos caracterizar a economia criativa como um conjunto de atividades econômicas distintas e maior que a economia da cultura, que guarda grande relação com aspectos econômicos, culturais e sociais que interagem com a tecnologia e propriedade intelectual numa mesma dimensão, e tem relações de transbordamento muito próximo com o turismo e o esporte segundo Oliveira et al. (2013). Em 2008 este tema ganha relevo e as discussões sobre as possibilidades de desenvolvimento de atividades econômicas onde a criatividade agrega valor a estes bens e serviços, são tratadas na Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), que lança o primeiro Relatório Mundial sobre a Economia Criativa – Creative Economy Report 2008, num esforço de aprofundar o conceito e de compilar informações e dados sobre a economia dos bens simbólicos dentro de uma perspectiva mundial. Para a UNCTAD (2008) as indústrias criativas formariam um conjunto de atividades baseadas no conhecimento, que produzem bens materiais e imateriais, intelectuais ou artísticos, com conteúdo criativo e valor econômico agregado. 4. A IMPORTÂNCIA DA ECONOMIA CRIATIVA Mesmo como conceito em evolução, entretanto, do ponto de vista econômico, a economia criativa é um conjunto de segmentos dinâmico, cujo comercio mundial cresce a taxas mais elevadas do que o restante da economia, independentemente da forma de mensuração empregada como metodologia. Para Leitão (2015) produtos e serviços baseados em criatividade e conhecimento têm elasticidade-renda elevada, e mesmo durante momentos de crise econômica seu comércio mundial não foi negativamente afetado,

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Em economia, a elasticidade rendimento da procura é a medida do impacto decorrente de uma variação na renda sobre a demanda (ou procura) de um bem. Ou seja: a elasticidade-renda da demanda mede a variação percentual na quantidade demandada de um determinado bem, diante de uma variação percentual na renda do consumidor. Neste sentido, a economia criativa promove a diversificação econômica, de receitas, de comércio e inovação e pode se relacionar, de forma simbólica, com as novas tecnologias, notadamente as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Iniciativas baseadas na abordagem de economia criativa podem promover a revitalização de áreas urbanas degradas, um exemplo é a iniciativa da UNESCO chamada de “Rede de Cidades Criativas (creative cities network)” ou mesmo o desenvolvimento das áreas rurais com forte herança de patrimônio cultural conforme Oliveira et al. (2013). Em relação ao mercado de trabalho e seus aspectos sociais e econômicos, tem sido documentado na literatura - notadamente no Mapeamento das Indústrias Criativas no Brasil realizado pela FIRJAN em 2008 e mais recentemente em 2014 que as ocupações criativas tendem a pagar melhores salários e tem sido associada a empregos de melhor qualidade, níveis de satisfação acima das ocupações de rotina, por conta do compromisso e senso de envolvimento cultural e criativo. Percebe-se, adicionalmente, que a indústria criativa poderia reforçar a cultura como valores e tradições que identificam uma comunidade ou nação. Além do papel de coesão social e inclusão, este esforço tem o potencial de gerar atratividade turística. Esta é maneira pela qual a economia criativa se relaciona com a cultura e com o turismo. Outra maneira se relaciona ao turismo cultural ou religioso (como seria o caso de Juazeiro do Norte; Canindé e Aracati) centrado no patrimônio cultural. A abordagem da economia criativa pode contribuir para a exploração racional e sustentável desse tipo de turismo e para a preservação do patrimônio material e imaterial, do meio ambiente e para o benefício das populações locais. O Relatório Sobre a Economia Criativa da UNCTAD serviu para aprofundar o conceito e compilar informações e dados sobre a economia dos bens simbólicos dentro de uma perspectiva mundial. Para a UNCTAD as indústrias criativas formariam um conjunto de atividades baseadas no conhecimento, que produzem bens materiais e imateriais, intelectuais ou artísticos, com conteúdo criativo e valor econômico agregado. Sobre o referido Relatório da UNCTAD a autora afirma que: Este Relatório foi um marco no reconhecimento da relevância estratégica da economia criativa como vetor de desenvolvimento, demonstrando, especialmente, a força das indústrias criativas, com uma média de 10% de crescimento anual. Essa mensuração, contudo, é fruto da compilação de dados produzidos pelos diversos países, sem a presença de uma cesta de indicadores e de um tratamento estatístico comum, o que fragiliza os resultados aferidos. Vale ressaltar que, neste Relatório, as metodologias

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quantitativas, em sua grande parte, somente capturam ou mensuram a produção de riquezas das indústrias, ignorando a participação dos micro e pequenos empreendedores, assim como a informalidade em que estão mergulhadas milhões de pessoas, em todo o planeta, que trabalham nestes segmentos. (LEITÃO, 2015, p. 01). Para a UNCTAD, mesmo com a crise financeira mundial de 2008, que provocou uma queda significativa no comércio entre países, entre 2002 a 2011, as exportações de bens e serviços criativos cresceram, anualmente, em torno de 12,1 % nos países em desenvolvimento, chegando a US$ 227 bilhões em 2011 (UNCTAD, 2013), ganhando destaque no comercio mundial. Neste período os Estados passam a investir nos setores criativos e culturais, mesmo enfrentando vários obstáculos que são enumerados por Leitão (2015, pag. 02): • Baixa disponibilidade de recursos para o financiamento de negócios; • Investimento insatisfatório em capacitação dos agentes atuantes em cadeias produtivas; • Pouca infraestrutura, especialmente, no que se refere à distribuição e difusão dos seus bens e serviços. Em consequência, segmentos como áudio visual, literatura, música, moda, design, arquitetura, vão se tornando cada vez mais importantes na composição do PIB de alguns países. Para Leitão (2015) as indústrias criativas se tornaram eixo estratégico de desenvolvimento de países como Austrália, China, Estados Unidos e Inglaterra. No entanto, vemos que o sistema capitalista em sua fase atual globalizada apresenta como característica marcante a sua financeirização, notadamente nos países desenvolvidos da Comunidade Econômica Europeia, onde os investimentos especulativos se sobressaem aos investimentos em produção cuja taxa de retorno é mais lenta. Por outro lado, outra característica são os planos de ajustes neoliberais do Fundo Monetário Internacional (FMI) para serem aplicados nos países em desenvolvimento como o Brasil ou que chegaram em 2014 à grave crise econômica como a Grécia ou Portugal. A produção de riquezas destes países é caracterizada pela exportação de commodities que perdem, gradativamente, sua importância econômica frente à exportação de bens e serviços de alto valor agregado, que apresentam elevada tecnologia. É neste cenário econômico mundial que estudos e pesquisas constatam a evolução do desempenho dos setores criativos mesmo em momentos de crise na economia dos países. Segundo Leitão (2015), esses estudos anunciam a transformação do trabalho, a ampliação do setor de serviços na composição do PIB e a necessidade da constituição de fundos específicos para o financiamento dos setores criativos. Citando alguns jornais e revistas econômicas, a autora aponta que: Nos Estados Unidos, o desemprego cresceu em todas as categorias, mas os trabalhadores dos setores criativos foram os que menos perderam

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emprego e renda nos anos anteriores e posteriores à crise econômica de 2008. Nos setores que empregam mão-de-obra braçal e não-especializada o desemprego subiu de 5% para 9,3%, o dobro da classe criativa. (Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, 2012). E em relação ao impacto econômico dos investimentos em setores criativos na Espanha e em toda a Europa, a pesquisadora aponta que: Segundo estudo recente de pesquisadores da Universidade de Valência, um aumento de 1% na proporção de postos de trabalho nos serviços criativos incrementa entre 1.000 e 1.600 euros o PIB per capita. (La cultura como factor de innovación económica y social; 2012). Programa “Europa Criativa” investirá €1,8 bilhão (2014-2020) para ampliar a competitividade dos empreendimentos criativos europeus e reforçar suas ligações com os segmentos industriais tradicionais. (LEITÃO, 2015, p. 02). Após esta rápida contextualização da importância da economia criativa na economia mundial, passemos a observar como a economia criativa se apresenta no Brasil em relação às ocupações formais e criativas. 5. ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: EMPRESAS E OCUPAÇÕES FORMAIS Em outubro de 2013 o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publica o estudo intitulado: “Panorama da Economia Criativa no Brasil” cujo objetivo foi segundo Oliveira et al. (2013) o de “contribuir para o debate sobre a economia criativa a partir de uma sistematização dos diferentes conceitos e formas de mensuração existentes, para propor algumas formas de mensuração de sua participação na economia brasileira”. Neste sentido apresentamos alguns dados deste Estudo a seguir, com o fim de demonstrar os possíveis ganhos para a economia cearense com a aplicação de políticas públicas integradas que utilizem a economia criativa como fomentadora de desenvolvimento econômico. Em relação aos aspectos metodológicos da análise de dados do estudo do IPEA (2013) sabe-se que a economia criativa pode ser mensurada a partir de duas dimensões: a setorial e a ocupacional. De acordo com a dimensão setorial, o que importa é o setor de atuação da empresa e se este é um setor típico da economia criativa ou não. Por sua vez, de acordo com a dimensão ocupacional, o interesse é na ocupação do trabalhador e se esta é uma ocupação típica da economia criativa ou não. Neste caso, pode haver quatro situações, ilustradas pelo quadro 2. A primeira situação é aquela em que trabalhadores em ocupações criativas trabalham em empresas cuja atividade-fim pertence à definição de economia criativa- por exemplo, atores em uma emissora de televisão. Estes são, na denominação de Florida (2012), os criativos especializados. No sentido horário, a segunda situação é aquela em que trabalhadores criativos não estão trabalhando em empresas cuja atividade –fim seja eminentemente criativa. Um exemplo são os designers que trabalham

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em montadoras de automóveis. Estes trabalhadores são chamados por Florida (2012) de criativos embutidos. O terceiro caso é aquele em que nem a ocupação nem a empresa estão no campo da economia criativa. Por fim, o quarto caso é o das ocupações de apoio, que são aqueles trabalhadores em ocupações não criativas em empresas criativas. Um exemplo seriam os contadores da emissora de televisão. Cabe ressaltar neste estudo, que a literatura não é explícita a respeito da superioridade de um recorte sobre o outro. Além disso, há algumas dificuldades metodológicas associadas ao recorte ocupacional, ou das classes criativas. Quadro 2: Recortes de mensuração da economia criativa

Fonte: Florida (2012). Elaboração dos Autores.

Segundo a terminologia de Florida (2012) o trabalho voluntário ou não remunerado, a identificação de ocupações que ainda não foram codificadas, a informalidade e o fato de que muitos trabalhadores criativos exercem mais de uma ocupação dificultam o enquadramento tanto no recorte ocupacional como no setorial, embora afetem mais o primeiro. No entanto, neste estudo optamos por reportar os indicadores de acordo com os dois recortes: ocupacional e setorial. Assim, a tabela 1 abaixo traz a evolução do número de trabalhadores formais da economia criativa, tanto pelo critério ocupacional quanto pelo setorial. Nota-se que o número de trabalhadores da economia criativa se situa em torno de 2% de acordo com ambos os critérios. No recorte ocupacional, a economia criativa empregou 575 mil trabalhadores formais em 2010, o que representa 1,89% da economia criativa em relação ao total de trabalhadores formais apontados na pesquisa da Rais; de acordo com o critério setorial, foram 583 mil empregados, o que representa 1,91% da economia criativa em relação ao total da Rais (30.485.676 trabalhadores formais).

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Tabela 1: Evolução do emprego da economia criativa e do emprego total (2003-2010)

Fonte: Rais. Elaboração dos autores.

Vemos na tabela acima, que independente da classificação do setor a que pertençam os trabalhadores (recorte ocupacional ou setorial) há uma forte evolução que acompanha e equivale ao índice de participação da economia criativa no Produto Interno Bruto no Brasil, ou seja, oscila entre 1,2 a 2%. As taxas de crescimento anual do emprego na economia criativa não parecem se diferenciar da taxa de crescimento total do emprego, conforme mostrado no Gráfico 1 e no Gráfico 2, a seguir. Chama a atenção o crescimento verificado no ano de 2008 sob o recorte ocupacional, mas este crescimento foi parcialmente corrigido em 2009, sugerindo que talvez esse ano seja fora do padrão.

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Gráfico 1: Crescimento anual do emprego em economia criativa: recorte ocupacional.

Fonte: Rais. Elaboração dos autores.

Gráfico 2: Crescimento anual do emprego em economia criativa: recorte setorial (em %)

Fonte: Rais. Elaboração dos autores.

Analisando a pesquisa realizada pelo IPEA, vemos que com respeito à distribuição dos empregos criativos por área, há diferenças entre os recortes setorial e ocupacional. Os autores da pesquisa afirmam que isso já era esperado. De acordo com o recorte setorial, os segmentos que mais empregam são: publicação e mídia impressa, new media (o qual inclui publicidade, por exemplo), serviços criativos e audiovisual.

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De acordo com o recorte ocupacional, os trabalhadores estão em sua maior parte em ocupações ligadas aos serviços criativos e design (Gráfico 3). Estas diferenças ocorrem devido aos “criativos embutidos” e às ocupações de apoio. Nos segmentos de publicação e mídia impressa e new media, há muitas ocupações de apoio, além dos próprios trabalhadores criativos. Segundo Oliveira et al. (2013) estes são os segmentos que mais empregam trabalhadores, segundo o recorte setorial. Entretanto, pode-se dizer que há vários trabalhadores de serviços criativos (entre os quais se incluem, entre outros, os arquitetos e profissionais de ensino) e também designers em empresas cuja atividade-fim não está exatamente ligada à economia criativa. Gráfico 3: Distribuição do emprego formal por área da economia criativa: critério ocupacional x setorial (Rais, 2010).

Fonte: Rais. Elaboração dos autores.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 2014, a economia do Estado do Ceará apresentou um crescimento do PIB de 4,36%. De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), dentre as atividades que compõem o PIB – indústria, serviços e agropecuária – o setor de serviços (onde

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está inserida a economia criativa), no quarto trimestre deste ano, teve crescimento de 2,89%, em relação ao quarto trimestre de 2013, e menor dos que os 4,51% registrados no terceiro semestre de 2014, crescendo 4,50 %. No ano, o índice ficou em 3,59%. Seguindo a tendência verificada nacionalmente, a indústria fechou em queda, com -1,89% no quarto trimestre, ficando o acumulado no ano também negativo, com 1,87%. No momento da apresentação deste artigo vivenciamos um cenário econômico com o encerramento do ano de 2015, que é apontado por vários economistas e administradores como um ano com forte recuo do nível de atividade econômica. Espera-se num ambiente explícito de recessão uma queda de pelo menos 4,0% no PIB com inflação superior a 10%. É neste cenário econômico que apontamos a necessidade do incentivo através da aplicação de políticas públicas que fomentem o surgimento de negócios baseados na economia criativa. Como vimos nos gráficos apresentados no estudo a aplicação de políticas públicas pelo governo do Estado do Ceará incentivando atividades ligadas às indústrias criativas e à cultura - que hoje é atendida somente pelos editais anuais da Secretaria de Cultura do Estado - acarretariam num forte incremento no nível de emprego total com maiores rendimentos auferidos pelos trabalhadores criativos seja pelo recorte setorial ou ocupacional. Neste sentido, vemos a importância do incremento do setor de serviços no PIB cearense, onde se insere a economia criativa com a realização pelo governo do Estado de um Mapeamento da Indústria Criativa no Ceará, detalhando as cadeias produtivas e os possíveis Arranjos Produtivos Locais (APL) dos empreendimentos criativos ou Clusters como também são conhecidos na literatura de economia no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Ministério da Cultura. Plano da Secretaria da Economia Criativa: Politicas, Diretrizes e Ações (2011- 2014), Brasília: Ministério da Cultura, 2011. BACELAR, Tânia. CEPLAN. Nordeste 2022 - Estudos Prospectivos – Documento Síntese. Banco do Nordeste do Brasil e Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura – Fortaleza: Banco do Nordeste, 2014. FLORIDA, R. The rise of a criative class. Washington monthly, May2002. ________. The rise of the criative class. Revisited. Revisited and expanded. (S.I) Basic Books, 2012. HOHKINS, John. The Creative Economy- How People Can Make Money From Ideas. Penguin Books, 2002, 264p. IPECE- INSTITUTO DE PESQUISA E ESTRATÉGIA ECONOMICA DO CEARÁ. Apresentação do PIB de 2014. www.ipece.ce.gov.br . Acesso em Dezembro de 2015.

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LEITÃO, Cláudia Sousa. Economia Criativa e Desenvolvimento. http://revistasera.info/economiacriativa-e-desenvolvimento-claudia-leitao/ acesso em :outubro de 2015. MARX, Karl. O Capital. Ano: 1867. Tradutor: SANT’ANNA, REGINALDO; Editora: CIVILIZAÇAO BRASILEIRA; Coleção: CRITICA DA ECONOMIA POLÍTICA. OLIVEIRA, João Maria de; ARAUJO, Bruno Cesar de; SILVA, Leandro Valério. Panorama da Economia Criativa no Brasil – 1880 Texto para Discussão. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Brasília, outubro de 2013. UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Nossa diversidade criativa: Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento. Brasília: UNESCO, Ed. Papirus, 1997. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD. Creative Industries Report 2013. Disponível em: . Acesso em: dezembro. 2015. UNCTAD. Conferência das Nações Unidas para o Comercio e o Desenvolvimento. Relatório Mundial sobre Economia Criativa. Brasília, 2010. UNCTAD – UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT.Creative economy report 2010. Creative economy: a feasible development option. U.N., 2010. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT – UNCTAD.Creative Industries Report 2008.Disponível em: . Acesso em: dezembro. 2015.

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EL PLAN DEPARTAMENTAL DE CULTURAS DE COCHABAMBA: PRIMER INSTRUMENTO PARA LA GESTIÓN DE POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURALES EN EL ÁMBITO AUTONÓMICO DEL ESTADO PLURINACIONAL DE BOLIVIA Franz Cabrera Quispe1 RESUMO: Se presenta la propuesta del Plan Departamental de Culturas de Cochabamba (PDCC), primera experiencia de planificación estratégica del ámbito de la gestión pública cultural en Bolivia. El Plan constituye el instrumento base para la aplicación de políticas culturales en el Departamento de Cochabamba y fue realizado respondiendo al contexto institucional y de organización territorial establecido en Bolivia a partir de la promulgación de la Nueva Constitución Política del Estado el año 2011. El PDCC constituye un aporte específico respecto al rol de las culturas en los procesos de desarrollo porque, tomando como base la concepción del Vivir Bien (horizonte de desarrollo del Estado Plurinacional de Bolivia), propone ámbitos de acción específicos para el impulso de políticas públicas culturales. PALAVRAS-CHAVE: Planificación cultural, Políticas Públicas, Desarrollo.

1. INTRODUCCIÓN El año 2009 fue aprobada y promulgada en Bolivia una Nueva Constitución Política del Estado (CPE), que há cambiado notablemente la determinación y estrutura del país. Boliva asume el Vivir Bien como nuevo horizonte y paradigma de Desarrollo y en ese contexto se ha emprendido la formulación del Plan Departamental de Culturas de Cochabamba como instrumento que pretende ser una respuesta al proceso arduo de generación de Políticas Culturales que debe seguirse para la consolidación del nuevo Estado y el logro del Vivir Bien en el contexto de la cualidad autonómica del Departamento de Cochabamba. La intención fundamental es avanzar hacia el ejercicio pleno de los derechos culturales de todos los habitantes del departamento, para ello el Plan Departamental de Culturas de Cochabamba se propone como un instrumento de planificación, a mediano y largo plazo y orienta las acciones del conjunto de instituciones del sector, y de los agentes del campo de las culturas en el Departamento. 1

Economista especializado en Planificación y Gestión Cultural. [email protected]

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2. ENFOQUE CONCEPTUAL 2.1 Vivir bien El Vivir Bien es la noción fundamental que guía la definición de políticas públicas para el desarrollo del Estado Plurinacional. Se trata de un conjunto de conceptos filosóficos que se constituyen en paradigma de desarrollo alternativo a la noción de bienestar como progreso material. Dada la complejidad del planteamiento, no hay aún consenso pleno respecto a la definición del Vivir Bien. Se asume básicamente la definición establecida en La Ley N° 300, Ley Marco de la Madre Tierra y Desarrollo Integral para Vivir Bien, que plantea la siguiente definición: “El horizonte civilizatorio y cultural alternativo al capitalismo y a la modernidad que nace en las cosmovisiones de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, y las comunidades interculturales y afrobolivianas, y es concebido en el contexto de la interculturalidad. Se alcanza de forma colectiva, complementaria y solidaria integrando en su realización práctica, entre otras dimensiones, las sociales, las culturales, las políticas, las económicas, las ecológicas, y las afectivas, para permitir el encuentro armonioso entre el conjunto de seres, componentes y recursos de la Madre Tierra. Significa vivir en complementariedad, en armonía y equilibrio con la Madre Tierra y las sociedades, en equidad y solidaridad y eliminando las desigualdades y los mecanismos de dominación. Es Vivir Bien entre nosotros, Vivir Bien con lo que nos rodea y Vivir Bien consigo mismo” (Ley 071. Art.5, 2) Considerando la definición planteada se puede afirmar que, a diferencia del concepto occidental de “bienestar”, la propuesta del Vivir Bien es la expresión, basada en aspectos culturales, que condensa una forma distinta de entender la satisfacción compartida de las necesidades humanas. La Constitución Política del Estado (CPE), en sus Arts. 7, 8 y 9, incorpora el “Vivir Bien” como principio de la “vida comunitaria”, rescatando la visión de los pueblos indígenas en la que el ser humano ya no es el centro de la organización jurídica.Se entiende que en este contexto, el reconocimiento de la diversidad cultural permitirá asegurar el ejercicio de los derechos, la responsabilidad y obligación social mediante procesos colectivos de toma de decisiones y acción, donde la comunidad es la protagonista e impulsora de procesos y no receptora pasiva de directrices verticales. 2.1.1 Las Dimensiones del Vivir Bien En un ámbito que permita una operativización de los planteamientos mencionados, se han identificado lo que serían las dimensiones del Vivir Bien que harían posible su gestión:

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El acceso a los bienes materiales y el disfrute de ellos. La satisfacción de necesidades materiales de los seres humanos de forma colectiva e individual. Se produce y se consume para satisfacer necesidades, no para acumular ni generar exclusión. La realización afectiva, espiritual y subjetiva. Se refiere al orden subjetivo que permite identificar el bienestar, la sensación de la población en términos de su estado de ánimo y satisfacción compartida en comunidad y en armonía con la naturaleza. Tiene que ver con lo cualitativo de la experiencia humana y se expresa en el reconocimiento a la identidad, el aprovechamiento del tiempo libre y la celebración de la vida. La vida en comunidad (No podemos vivir bien si el otro vive mal). Se considera aquí la responsabilidad colectiva en la toma de decisiones sobre los recursos, el espacio público y las necesidades materiales y espirituales en los distintos niveles territoriales e institucionales. Se refiere también al respeto entre los grupos sociales de diversas culturas y respeto a la diferencia como la base de las relaciones sociales coexistentes. Volver a ser. Supone la recuperación de la identidad cultural y con ello la cosmovisión y principios como la complementariedad, la reciprocidad y otros que aseguran condiciones de equilibrio en las relaciones económicas sociales y ambientales. Armonía con la madre tierra. Implica la renovación en la mirada a la naturaleza superando el enfoque utilitarista; volver a la naturaleza, saber que todo vive y que todo está interconectado e interdependiente, y donde el hombre es una parte más de esa naturaleza y no el centro. La construcción de relaciones de respecto y reciprocidad entre el ser humano y la naturaleza.

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Gráfico 1: Dimensiones del Vivir Bien

Elaboración propia en base a información de MPD: 2009

2.2 Vivir bien y culturas Desde la construcción relativa al Vivir Bien se entiende que las culturas contienen la memoria histórica, las identidades, los territorios, las prácticas sociales, las creaciones y adaptaciones tecnológicas y las cosmovisiones de los pueblos; son, así, la base de la acción humana que genera procesos de cambio. Las culturas son un elemento constituyente de las características de vida de las personas, quedando absolutamente superado el cliché que indicaba que al hablar de cultura se hace referencia sólo al espacio del ocio y las bellas artes. Tomando en cuenta lo mencionado se ha evidenciado que lo cultural representa una parte fundamental del desarrollo porque determina, además de posibilidades de generación económica, el fortalecimiento del capital social de un territorio, entendido como el conjunto de relaciones sociales que identifican una comunidad y que ayuda a establecer sus posibilidades organizativas para acometer desafíos en bien de sí mismos. Se evidencia que las culturas determinan la base real de lo que implica el desarrollo; si bien lo que se busca es satisfacer las necesidades básicas, hay que tener en cuenta el modo en que las necesidades se manifiestan y aspiran a ser cubiertas por los colectivos. A pesar de la pobreza material, la vida de las comunidades se compone de elementos culturales imprescindibles para el mantenimiento de sus capacidades sociales, que también inciden en la superación de sus necesidades básicas (Seminario Internacional Biarritz, 2010).

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En ese mismo sentido, la propuesta del Vivir Bien al tener entre sus bases la valoración de la vida y la búsqueda de la realización de las personas en un ámbito comunitario, afirma que la cultura no es un medio para el desarrollo, sino un fin. Las divergencias culturales, el tejido de la diversidad, dejan de ser impedimentos para convertirse en oportunidades que deben ser tenidas en cuenta como opciones para mejorar las condiciones de vida. 2.3. Planteamiento operativo Para el desarrollo del Plan Departamental de Culturas se ha planteado la siguiente definición de campos operativos desde lo cultural para la gestión de la propuesta teórica del Vivir Bien: Gráfico 2: Ámbitos de acción para la operativización del Vivir Bien desde la gestión cultural

Elaboración Propia

2.4. Concepción de culturas adoptada en el plan departamental de culturas de Cochabamba • Se apunta aquí un conjunto componentes que sintetizan el entendimiento de culturas que adopta la gestión pública departamental de Cochabamba. • La cultura es producción que involucra tanto al individuo como a la colectividad, encontrándose siempre en constante transformación. • Forma parte de la manera en que entendemos, sentimos y vivimos tanto nuestra realidad como la del mundo, así constituye espacio y memoria.

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• Se relaciona a un conjunto de significantes (bienes, valores y costumbres) que nos identifican como miembros de una determinada sociedad. • Involucra procesos de creación y recreación de conocimientos concretos, delimitados y específicos sobre el universo material, científico y técnico; conocimiento que se transmite, recrea y rectifica o confirma de generación en generación. • Comprende características de los procesos de la producción de bienes, expresados en la diversidad de acciones y hechos en los cuales los individuos y las comunidades plasman su saber, sus formas de hacer y su sentido y sensibilidad estética. • Implica el ejercicio de un conjunto de representaciones, percepciones, interpretaciones y valores simbólicos y significados, expresados en lenguajes, costumbres, formas compartidas de ver el mundo y de actuar de modo peculiar y diferente al de otros individuos, pueblos o sectores sociales. • Es un factor de desarrollo y bienestar psicosocial, medio que permite el fortalecimiento democrático y la participación ciudadana. • Es un derecho humano inalienable de todos los habitantes del territorio. • Cabe también apuntar que se asume la visión de horizontalidad en la comprensión de las culturas, es decir, en ningún caso se supone que una cultura sea superior a otra. Así, en el contexto global, todas las culturas entrarían en una suerte de intercambio con el mismo “estatus”, sin embargo, un factor de diferenciación, será tanto las formas como los medios que estas culturas empleen para recibir y externar sus creaciones, patrones de conducta, ideas, producciones, valores, gastronomía, creencias, modelos de vida, etc. 3. PROPUESTA ESTRATÉGICA El Plan Departamental de Culturas de Cochabamba se propone como un instrumento que busca esencialmente el fortalecimiento de identidades y procesos culturales para la convivencia de personas y comunidades en relaciones de armonía e igualdad. En ese sentido, este plan se articula a la visión de construcción departamental enunciada en el Plan Departamental de Cochabamba para Vivir Bien y enriquece, desde un ámbito sectorial, las propuestas para alcanzarla. 3.1. Objetivo y estructura del plan 3.1.1. Objetivo del Plan Departamental de Culturas La visión de futuro o aspiración de la población en cuanto al ámbito de acción de este Plan Departamental de Culturas del Departamento de Cochabamba 2014–2025 es: Afirmar las identidades y los procesos culturales del departamento de Cochabamba a través del diálogo intra e intercultural, la descolonizaci-

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ón y la creatividad social, en ejercicio pleno de los derechos culturales para vivir bien. Este objetivo ha sido construido en un largo proceso de encuentros entre diversos actores territoriales y sectoriales del departamento y se establece como finalidad consensuada para el desarrollo cultural departamental. 3.1.2. Propuesta de Gestión En un primer momento del diseño de los ámbitos de acción del Plan se ensayó la generación de un ámbito específico de acciones correspondiente a cada una de las dimensiones del Vivir Bien, sin embargo la cualidad integral del paradigma, además de la búsqueda de ámbitos de acción cultural adecuados a la institucionalidad departamental han generado cuatro ejes estratégicos de acción diseñados en una secuencia lógica para la estructuración de las propuestas operativas. Gráfico 3: Dimensiones del Vivir Bien y Ejes estratégicos del Plan departamental de Culturas

Elaboración Propia

3.2. Líneas transversales y ejes estratégicos para el desarrollo cultural 3.2.1. Líneas Transversales Las líneas transversales del Plan Departamental de Culturas son enunciados que facilitan el flujo y el diálogo entre los Ejes Estratégicos de acción en diferentes niveles de concreción, armonizando y unificando enfoques y lenguajes.

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a) Descolonización Implica asumir la compleja diversidad de voces, proyectos e imaginarios producidos por las distintas comunidades de la diversidad departamental, también fortalecer la capacidad de autodeterminación de cada comunidade en un proceso básico de liberación y de autonomía en favor de incrementar y garantizar el ejercicio los derechos de los pueblos indígenas, colectivos urbanos y distintos grupos sociales. Descolonizar, en términos interculturales, implica que ya no existe un centro como medida de otras culturas, más bien permite un principio de diálogo entre ellas. La idea es construir un contexto de convivencia mediante la participación igualitaria entre todas las culturas. b) Interculturalidad Alude a la relación respetuosa entre culturas y al establecimiento de relaciones armónicas con otros diversos. Asumir la diversidad desde la óptica de la interculturalidad supone un ejercicio de doble vía: se quiere entender al otro pero también se busca ser entendido por el otro. Al reconocer la diversidad cultural de un territorio, se develan las particularidades culturales de los espacios que la constituyen, lo que implica repensar las maneras de intervención en este ámbito. Supone también una pedagogía que permita entender que la transformación de los individuos se produce en interacción con otros y que el proyecto colectivo es entre diferentes. c) Inclusión La promoción de inclusión implica abordar las ineficiencias institucionales que generan actos de exclusión por parte de distintos agentes y que resultan en desventajas basadas en género, edad, etnicidad, ubicación, situación o incapacidad económica, educativa, de salud, etc. Dado el carácter pluricultural del departamento de Cochabamba, la inclusión cultural requiere que se reconozca y promueva la diversidad cultural como elemento fundamental de las iniciativas.

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Gráfico 4: Líneas transversales y Ejes estratégicos del Plan departamental de Culturas

Elaboración Propia

3.2.2. Ejes estratégicos de acción El conjunto de Ejes estratégicos ha sido definido como un sistema de relaciones conformado por las políticas públicas, sus dimensiones, los programas a impulsarse a partir de estos y los componentes de cada uno de ellos. El conjunto de los Ejes responde de manera integral al objetivo planteado y entre ellos tienen en común su relación con el proceso de la producción cultural del conjunto territorial del departamento de Cochabamba. Se han definido cuatro ejes estratégicos de acción: • Fortalecimiento de Identidades y Territorialidades • Reconstitución del tejido social para la convivencia armónica • Comunidades creativas • Gestión del conocimiento y fortalecimiento institucional 3.2.3. Las Políticas Culturales Las políticas culturales constituyen ámbitos específicos de gestión pública fruto de la organización de los Ejes Estratégicos en temáticas específicas. Son criterios o directrices de acción elegidas como guía en el proceso de toma de decisiones al poner en práctica los ejes estratégicos en niveles institucionales.

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3.2.4. Líneas de acción estratégica Constituyen compartimentos concretos para la implementación de cada una de las Políticas Culturales Departamentales. Se han establecido como perímetros necesarios para dar operatividad a las iniciativas de acción pública para el desarrollo cultural y engloban acciones encaminadas al logro de un objetivo determinado. 3.2.5. Los Programas Son espacios específicos de acción de las políticas culturales y responden al campo definido por las estrategias. Serán incluidos en la programación estratégica departamental y a partir de ellos contaran con recursos y medios para su concreción. 3.2.6. Los componentes de Programa Los componentes de Programa constituyen propuestas de acción concreta, interrelacionadas y coordinadas entre sí. Se materializarán en iniciativas implementadas efectivamente en el territorio del departamento y con participación de todos los actores involucrados. 4. MARCO PROGRÁMATICO 4.1. Eje estratégico 1: Fortalecimiento de identidades y territorialidades Este eje estratégico está fundado en la idea de valoración de los patrimonios tangibles e intangibles propios de las culturas locales como fuentes para la revitalización de las memorias y la construcción de futuro. Promueve el reconocimiento, fomento y salvaguardia de las formas de creación y de las memorias en el conjunto del territorio departamental, y la democratización de las oportunidades de goce y disfrute de las creaciones del patrimonio en general. Plantea también acciones para la afirmación y reconocimiento de las territorialidades como escenarios de prácticas sociales y culturales en la pluralidad departamental. Se busca establecer referentes de la identidad cultural departamental y nacional. En el caso del patrimonio tangible, que alude a las narraciones oficiales construidas por el conjunto institucional de la sociedad y que se materializa en sitios simbólicos, monumentos, parques, edificios, etc., su protección no se plantea sólo por su valor estético o material, sino por ser elementos depositarios de la memoria de prácticas sociales y culturales que les otorgan distintos sentidos. Por otro lado, el patrimonio intangible constituye el conjunto de legados culturales que hemos recibido como herencia relativa a las costumbres de vida; la relación construida con el territorio, las lenguas indígenas, los nuevos lenguajes, los imaginarios colectivos, entre otros.

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Política 1: Política Departamental de Gestión del Patrimonio Cultural para el reconocimiento y empoderamiento social. Tiene el objetivo de Conocer y reconocer la riqueza patrimonial construida por las comunidades y personas del departamento de Cochabamba para impulsar los procesos de patrimonialización incluyentes, participativos y bajo la idea de que la memoria y la creación son elementos edificantes del Vivir Bien. Líneas de acción: • Investigación y Conocimiento de la Memoria Departamental • Protección, Valoración, Conservación y sostenibilidad del patrimonio cultural del departamento • Reconocimiento, Difusión y Comunicación para la valoración social del patrimonio • Participación Social para el respeto de la diversidad cultural 4.2. Eje estratégico 2: Reconstitución del tejido social para la convivencia armónica. Se promueve la construcción positiva de relaciones de convivencia en el territorio departamental. Para ello se busca la edificación de vínculos de interculturalidad e intraculturalidad entre individuos y grupos humanos del departamento con otras regiones del país y el mundo. Se reconoce la pluralidad de las expresiones del territorio y sus diferencias inherentes asumiendo estas no como limitaciones, sino como posibilidades de articulación positiva. Se valida y valora la coexistencia en la diversidad, y en ese marco se promueve la no discriminación y se rechaza cualquier manifestación de racismo y violencia. Se abordan también acciones específicas para la descolonización, acciones y mecanismos para el desmontaje de las trabas y prejuicios heredados del proceso de colonización cultural de los pueblos promoviendo que las oportunidades lleguen a todos. Política 2: Política departamental de descolonización e impulso a la intra e interculturalidad Busca establecer condiciones para la convivencia armónica y encuentro departamental generando de ámbitos de concurrencia y re-conocimiento a través de la reivindicación histórica de las culturas, la construcción dialogada de conocimientos e instituciones y el cuestionamiento de cualquier tipo de discriminación. Líneas de acción: • Interculturalidad, revalorización identitaria, encuentro y diálogo para la construcción de comunidad • Educación ciudadana y descolonización del espacio público para la construcción de comunidad. • Inclusión, despatriarcalización y lucha contra toda forma de discriminación.

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4.3. Eje estratégico 3: Comunidades creativas. Se busca la estimulación y realización de las grandes posibilidades creativas que caracterizan al territorio del departamento de Cochabamba. Se considera un conjunto de iniciativas de respaldo a procesos de creación, producción, disfrute y participación en los flujos y canales de circulación de las expresiones artísiticas y culturales del departamento. Se trabaja también la creatividad ligada a lógicas de producción y circulación económica abriendo espacios para las industrias creativas e iniciativas productivas basadas en la activación de los acervos culturales del territorio departamental. Política 3: Política departamental de formación, producción y difusión de expresiones artísticas e intelectuales para la convivencia comunitaria Se busca promover el acceso igualitario de la población del departamento a la participación y disfrute de las manifestaciones artísticas creativas asumiendo estas como fundamento para la construcción de una nueva ciudadanía. Líneas de acción: • Formación y educación artística y cultural • •

Participación en la producción artística y cultural. Muestra y circulación de manifestaciones artísticas y culturales.

Política 4: Política departamental de desarrollo de la economía creativa e industrias culturales Promoción del desarrollo de capacidades creativas e innovadoras para la puesta en marcha de proyectos de desenvolvimiento económico desde el sector Cultural. Líneas de acción: • Cultura y Desarrollo Económico con Identidad 4.4. Eje estratégico 4: Fortalecimiento institucional y gestión del conocimiento para el desarrollo cultural Para que las prácticas de convivencia pacífica y participación ciudadana puedan ser adecuadamente planteadas y gestionadas es necesario formar personas y colectivos que cuenten con las capacidades necesarias para conducir procesos de desarrollo cultural. Se proponen iniciativas encaminadas al fortalecimiento de las capacidades, principalmente de los servidores públicos. Se busca también la generación de procesos de comunicación para el desarrollo cultural, entendiendo a la comunicación en una perspectiva amplia como un proceso de producción, circulación y apropiación de sentidos.

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Política 5: Mejoramiento de capacidades institucionales para la gestión y difusión del patrimonio y las culturas Fortalecimiento de las capacidades institucionales estableciendo sistemas de colaboración cultural en las administraciones públicas del departamento para gestionar de modo eficiente y constructivo las posibilidades de desarrollo cultural. Líneas de acción: • Fortalecimiento de la institucionalidad pública para el desarrollo cultural • Articulación de Cochabamba con el país y el mundo a partir de su condición de territorio de encuentro e interculturalidad. Política 6: Política Departamental de Comunicación Cultural para el fortalecimiento y la participación comunitaria Promoción de la producción de conocimiento y contenidos ligados al fortalecimiento de las identidades y las culturas e impulsar su difusión para el desarrollo del departamento. Líneas de acción: • Comunicación pública para y desde el território.

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POLÍTICAS CULTURAIS SOBRE OS ARQUIVOS, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA FERROVIA NO BRASIL. Frederico Antonio Ferreira1 Rodrigo Pereira2 RESUMO: Artigo busca examinar as políticas culturais em torno da Memória e do Patrimônio Arquivístico Ferroviário expressas nas normas jurídicas em torno da liquidação e extinção da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) entre os anos de 1999 a 2007. Procurando transcender a perspectiva exclusivamente administrativa, legal e financeira busca-se evidenciar como que as legislações relacionadas aos acervos e as práticas previstas para eles, manifestam os conflitos de ideias sobre as ferrovias e as disputas em torno desta Memória e Patrimônio. PALAVRAS-CHAVE: Rede Ferroviária Federal S.A, Memória, Patrimônio Arquivístico, Legislação, Política cultural.

1. POR UMA INTRODUÇÃO Uma das obras mais famosas do autor brasileiro Heitor Villa-Lobos, conhecida popularmente como “Trenzinho Caipira” é parte integrante das Bachianas brasileiras nº 02 e tem como aspecto mais característico fazer com que os instrumentos da orquestra imitem o movimento que se assemelham ao de uma locomotiva. Essa obra composta em 1930, mostra a importância que as ferrovias possuíam tanto na integração nacional, quanto na formação histórico-cultural de inúmeras localidades no Brasil. Esse destaque das estradas de ferro para o país dá ao assunto uma relevância ímpar. Parte desta importância econômica e da amplitude do tema pode ser medida pelas dimensões da própria malha ferroviária que compunha a então Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – RFFSA. As ferroviais ativas no Brasil, na década de 1990, chegavam aproximadamente vinte e dois mil quilômetros de extensão, contendo seiscentos e sessenta estações e aproximadamente sessenta mil funcionários (RFFSA, 1991). Mesmo atendendo a setores da economia Mestre em História, doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Arquivista do Departamento de Órgãos Extintos – DEPEX – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – MPOG. Contato: [email protected] 2 Mestre em Ciências Sociais (UERJ), mestre em Arqueologia (UFRJ), doutorando em Arqueologia (UFRJ). Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER/IH/UFRJ). Contato: [email protected] 1

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como siderurgia, agricultura, construção e energia (RFFSA, 1991), a empresa foi colocada em liquidação em 1999 (BRASIL, 1993) sendo definitivamente extinta em 2007 (BRASIL, 2007a). Os mais de cento e sessenta anos de existência das ferroviais no Brasil e as inúmeras instituições públicas e privadas envolvidas com sua implantação geraram uma série de registros, seja em bens móveis e imóveis, seja como documentos de caráter arquivísticos, biblioteconômicos ou museológicos de grande valor histórico, artístico e cultural. A sequência de criações e extinções, nem sempre coordenadas e planejadas, de empresas ferroviárias entre 1850 a 2007 contribuíram para a formação do Patrimônio Cultural Ferroviário Brasileiro. Diante disso, este artigo procura contribuir para o debate acerca das Políticas Culturais em torno do Patrimônio Arquivístico Ferroviário Brasileiro, buscando refletir sobre seu valor histórico e social, assim como evidenciar como que as legislações relacionadas aos acervos e as práticas previstas nestas, manifestam os conflitos de ideias sobre das ferrovias e as disputas em torno da Memória e do Patrimônio. Por mais que as medidas tomadas pela administração pública quanto a destes arquivos pareçam meramente rotineiras e despretensiosas refletem as relações de poder intrínsecas à produção e circulação de significados simbólicos vinculados a este conjunto documental. 2. O PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO BRASILEIRO Para fins deste artigo, consideraremos Política Cultural como o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, cujo objetivo seja o de satisfazer as necessidades culturais da população e assim promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas (COELHO, 1997). Dentre os modos concretos como esta pode manifestar-se, tem lugar privilegiado o ordenamento do aparelho burocrático estatal no sentido de viabilizar as iniciativas tomadas pelos agentes públicos no sentido de promover a produção, a distribuição e o uso da cultura assim como a preservação e divulgação do Patrimônio Histórico (COELHO, 1997). Como Patrimônio, ou Patrimônio Cultural, entendemos o bem ou conjunto de bens – naturais ou culturais – de importância reconhecida para determinado lugar, região, país ou mesmo para a humanidade, que passam por um processo de proteção e preservação (COELHO, 1997). Tal concepção coaduna com a perspectiva utilizada pela Constituição de 1988. A Carta Magna classifica como Patrimônio as formas de expressão, os modos de criar, de fazer e viver, assim como criações científicas, artísticas e tecnológicas (BRASIL, 1988). Para além destes já citados, elenca também como sendo Patrimônio as “obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais” (conforme o Art. 216, IV). Além disso, os coloca como responsabilidade do Estado no sentido de que cabe “à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem” (conforme Art. 216, § 2º).

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Nesta perspectiva de compreensão do conjunto dos registros documentais sob a perspectiva de Patrimônio, conforme descrito na Constituição Federal, é possível identificar a formação de um Patrimônio Arquivístico. Entendemos como Patrimônio Arquivístico o conjunto dos arquivos de valor permanente3, públicos ou privados, existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou mesmo de um município (ARQUIVO NACIONAL, 2004). Assim, é possível afirmar que o conjunto de documentos de valor permanente sob a custódia das empresas ferroviárias brasileiras, sejam eles de natureza pública ou privada, formam um Patrimônio Arquivístico. Isto posto, o Estado possui sobre eles uma dupla responsabilidade: protege-los como Patrimônio Cultural assim como promover a gestão destes de modo a garantir sua utilização para quanto deles necessitarem. Podemos definir que as ações desenvolvidas pelo Governo no sentido de proteger, conservar e disponibilizar estes conjuntos de documentos públicos são também Política Cultural. A forma como o Estado organiza seu aparelho burocrático, por meio da legislação, no sentido de viabilizar a gestão documental e as providências para franquear sua consulta são medidas importantes no sentido de atender as necessidades culturais de sua população na construção social de seu passado (MEDEIROS, 2011). 3. OS ESTUDOS RELATIVOS AO PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO Os estudos sobre o Patrimônio Arquivístico Ferroviário muita das vezes aparece como aspecto residual dentro da historiografia acerca das ferrovias no Brasil. Os acervos documentais relacionados às primeiras linhas férreas do país se confundem com o conjunto dos documentos da RFFSA. Os poucos pesquisadores que se voltam para a temática dos arquivos focam-se em casos específicos, restritos aos arquivos de unidades regionais, especialmente as do centro-sul do país. Em contraponto, sobre outras unidades no norte-nordeste há quase que o completo silêncio. Merece destaque positivo os esforços promovidos por Oliveira (2010, 2011, 2012), Carmo (2012), Souza (2010) e Gomes (2013) que tanto em aspectos técnicos relacionados à documentação ou refletindo acerca da memória e do patrimônio ferroviário brasileiro, contribuem para suscitar o debate acerca destes aspectos que parecem secundarizados diante da importância econômica das ferroviais. Essas características de restrição sobre as análises destes conjuntos documentais não permitem sua compreensão total e ofuscam a importância histórica e cultural enquanto patrimônio, assim como as políticas culturais empreendidas pelo Estado sobre eles. Para as instituições responsáveis pelas políticas públicas de gestão do patrimônio cultural ligado à memória ferroviária, especialmente aquelas relacionados a RFFSA, eles são geridos de modo particionado por diversos órgãos como Inventariança da Extinta RFFSA, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Departamento Nacional de Infraestrutura Arquivo Permanente - Conjunto de documentos preservados em caráter definitivo em função de seu valor. Também chamado de arquivo histórico (ARQUIVO NACIONAL, 2004). 3

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de Transporte (DNIT), Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, (MPOG), assim como Ministério dos Transporte (MT) cada um adotando sua própria gestão deste patrimônio arquivístico (BRASIL, 2007a; 2007b). 4. A TRAJETÓRIA DO PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO A história da formação deste Patrimônio Arquivístico Ferroviário se confunde com a própria trajetória das linhas férreas no Brasil. As primeiras estradas de ferro do país datam do II Reinado (FAUSTO, 2012). Os contatos com as firmas europeias traziam consigo métodos e processos de trabalho pautados na burocracia weberiana e com eles a busca por uma maior sistematização do trabalho, através de um maior registro mais apurado das atividades em documentos (BUZELIN, 2009). Diante destas inovações técnicas e administrativas, se formavam os primeiros acervos que comporiam o Patrimônio Arquivístico Ferroviário Brasileiro. A marcha da cafeicultura entre o fim do século XIX e início do século XX fez com que as ferrovias avançassem (FAUSTO, 2012). Neste período algumas firmas ferroviárias passaram a incorporar outras. Esta inclusão trazia consigo a inclusão de mais documentos (BUZELIN, 2009). A medida em que as firmas ferroviárias se fundiam ou eram adquiridas, umas pelas outras, os acervos das primeiras se misturavam com os de sua sucessora ou simplesmente desapareciam, perdendo assim sua unicidade4 e sua integridade enquanto fundo5 documental (BUZELIN, 2009). A partir da década de 1930 o Estado passa a encampar algumas empresas ferroviárias. Durante o governo do presidente Juscelino Kubitscheck (anos) é fundada a RFFSA (BRASIL, 1957). Em um primeiro momento os arquivos eram geridos de modo autônomo por cada unidade (BUZELIN, 2009). Com o Golpe Militar de 1964 tem lugar o processo de geração de um sistema administrativo e de normatização único para toda a empresa (BUZELIN, 2009). Com isso as práticas de gestão de documentos se padronizaram. Os acervos das antigas estradas de ferro são negligenciados e mesclados com os novos registros, perdendo assim sua integridade e organicidade original impossibilitando a compreensão de seu contexto orgânico de acumulação6 (BUZELIN, 2009). Estas unidades enterrariam definitivamente a memória e os resquícios das antigas estradas de ferro que antecederam a RFFSA. Princípio da Unicidade é uma premissa arquivística que postula que os documentos de arquivo devem conservar o seu caráter único em função de seu contexto orgânico de produção, independentemente de sua forma, gênero, tipo ou suporte sobre o qual está registrado (DURANTI, 1994). 5 Fundo Documental é o conjunto de documentos de uma mesma proveniência, equivale à arquivo (ARQUIVO NACIONAL, 2004). 6 Entende-se como contexto orgânico de acumulação às inter-relações existentes entre as funções, atividades e tarefas desenvolvidas por uma entidade, que formam um todo orgânico refletido nas inter-relações de seus documentos que, no conjunto – o arquivo – reflete a missão do seu produtor, determinando seu significado. A perda de organicidade, por acumulação não metódica ou desordem dos documentos, resultaria na perda da sua plena inteligibilidade (RODRIGUES, 2004, p. 47). 4

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Isto posto, é importante frisar que desde os primórdios da formação Do Patrimônio Arquivístico Ferroviário o modo como este foi gerido, seja enquanto empresa privada seja após sua encampação pelo Estado em 1957, atuou em função de sua utilidade para fins administrativos, legais e fiscais, em detrimento de sua importância histórico-cultural. O modo como os arquivos das primeiras ferrovias foi tratado pela empresa estatal refletem, em última análise, o conflito entre duas visões sobre do tema. As transformações gradativas quanto à gestão dos documentais originários da própria RFFSA, assim como os acumulados das antigas ferroviais, antes de serem medidas sem pretensão refletem as relações de poder próprias a produção e circulação dos significados simbólicos ligados a estes arquivos e os aspectos que os vinculam à memória e à formação do patrimônio histórico e cultural. Na década de 1990 a RFFSA sofre os efeitos das mudanças advindas das transformações na conjuntura política pelas quais o país passava, assim como, das transformações nas filosofias gerenciais da Administração Pública. Após um longo processo de enfraquecimento político-institucional a empresa tem parte de suas atribuições compartilhadas por outras estatais (SETTI, 2008). Neste contexto houve o fechamento das cessões relacionadas a informação e documentação nas unidades regionais e a dispensa dos técnicos responsáveis por sua manutenção (BUZELIN, 2009). Isso fez com que estes acervos fossem administrados por outros setores e com isso a uniformidade dos modos de gestão acabasse se perdendo. Dentro do Governo de Fernando Collor (1990-1992), a RFFSA é introduzida no Programa Nacional de Desestatização (PND). A empresa é desmembrada em regiões em 1996 e estas foram disponibilizadas para cessão à iniciativa privada no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Cinco grandes companhias adquirem a concessão destas subdivisões7 (SETTI, 2008). A RFFSA veio a ser extinta em 2007, já no Governo de Luís Inácio Lula da Silva (20032010). Com isso, parte da documentação relativa a funcionários em exercício foram cedidas para as concessionárias (BUZELIN, 2009). Os demais funcionários da RFFSA, assim como bens e recursos que não foram incorporados às empresas concessionárias passaram a ser de responsabilidade da União (BRASIL, 2007a). Para este fim criou-se a Inventariança da Extinta RFFSA (BRASIL, 2007b); dentre suas atribuições estava o tratamento dos acervos arquivísticos e bibliográficos à serem transferidos para os órgãos sucessores responsáveis. A forma como se deu o processo de liquidação, extinção e concessão da malha ferroviária vai influenciar diretamente no modo como o patrimônio arquivístico seria gerido a partir de então. A preocupação com os aspectos econômicos, jurídicos e administrativos e a relativização A Companhia Ferroviária do Nordeste adquire a concessão das linhas no Nordeste, a Ferrovia Centro Atlântica e a Vale do Rio Doce conseguem a concessão de linhas em Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás e Tocantins; A MRS adquire as linhas localizadas no Rio de Janeiro, Sul de Minas e Leste de São Paulo, a Ferrovia Bandeirantes no interior paulista, a América Latina Logística na região Sul e a Novoeste no Mato Grosso do Sul (SETTI, 2008).

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de sua importância histórico-cultural estão patentes nas legislações relativas ao tema8. As Políticas Culturais previstas para os agentes públicos que seriam detentores deste Patrimônio se resumiria a receber, administrar e zelar pela sua guarda e manutenção (BRASIL, 2007b) e mesmo assim, tais premissas seriam de responsabilidade de apenas um dos sucessores. 5. A LEGISLAÇÃO ACERCA DO PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO O debate a respeito da responsabilidade do Estado sobre a produção cultural assim como a formulação de princípios que norteiem a elaboração de política públicas de cultura tem ganhado força nos últimos anos (CALABRE, 2009). A cultura e o patrimônio deixam de ser entendidos como aspectos secundários da ação dos governos e passam a assumir um papel estratégico principalmente no que tange a inclusão social e a diminuição das desigualdades (CALABRE, 2009). Para uma compreensão adequada das políticas culturais desenvolvidas pelo Estado – especialmente aquelas voltadas para a defesa do Patrimônio Arquivístico Ferroviário no período após 2007 – faremos um mapeamento das ações dos governos previstas para o setor nas legislações9 no sentido de garantir a manutenção, a divulgação e a utilização deste Patrimônio. Durante o Governo Fernando Henrique Cardoso as legislações relacionadas a extinta RFFSA foram quase que exclusivamente voltadas para a criação das diretrizes que norteariam a condução do processo de liquidação da empresa. Elas não apresentam determinações acerca dos documentos10. Já durante o Governo de Luís Inácio Lula da Silva a temática volta a agenda política. Entre 2003 e 2007, cinco decretos11 e uma medida provisória12 buscaram terminar com o processo de liquidação da firma e decidir os sucessores dos bens econômicos assim como do patrimônio histórico, cultural, arquivístico e bibliográfico da extinta RFFSA e consequentemente de suas antecessoras. A Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007, pôs fim ao processo de liquidação e iniciou uma nova fase no tratamento dos acervos. Além de determinar as atribuições da recém-criada Inventariança quanto aos documentos e demais bens de interesse histórico cultural, define as instituições sucessoras destes. Diz a norma, em seu Artigo 9º Parágrafo Único, que caberá ao IPHAN “receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, caso o bem seja classificado como operacional, e ainda que o mesmo deverá garantir seu compartilhamento para uso ferroviário (BRASIL, 2007a). Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007 e Decreto nº 6.018 também de 22 de janeiro de 2007. Medida Provisória nº 353, 22 de janeiro 2007, Decreto nº 6.018, 22 de janeiro de 2007, Decreto nº 11483 de 31 de maio de 2007, Decreto nº 7430 de 17 de janeiro de 2011. 10 O Decreto nº 3277 de 07 de janeiro de 1999, assim como o Decreto nº 4109 de 30 de janeiro de 2002, 11 Decreto nº 4839, 12 de setembro de 2003; Decreto nº 5103,11 de junho de 2004; o Decreto nº 6018 de 22 de janeiro de 2007; Decreto nº 11483 de 31 de maio de 2007; Decreto nº 7430 de 17 de janeiro de 2011 12 Medida Provisória nº 353 de 22 de janeiro de 2007 8 9

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Quanto ao enorme patrimônio econômico da extinta gigante das ferrovias brasileiras, os bens móveis e imóveis operacionais seriam destinados ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Quanto a gestão dos recursos humanos ativos ou inativos, estes seria dividido entre o MPOG e a VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A13. Os assuntos relativos a pessoal jubilado com direito a complementação de aposentadoria seria destinado ao MPOG, especificamente ao Departamento de Órgãos Extintos (DEPEX), assim como seus processos trabalhistas, passariam a pertencer a Advocacia Geral da União (AGU). A forma como a legislação definiu a destinação dos acervos documentais que compunham o patrimônio ferroviário brasileiro, existentes na RFFSA, deram as linhas gerais do modo como eles seriam administrados. A distribuição dos arquivos tendo como base aspectos jurídicos, administrativos e econômicos, fracionou o fundo documental por diversos órgãos, fazendo que se repetisse, mais uma vez, a trajetória de perda da identidade dos acervos assim como sua individualidade e a possibilidade de compreensão de seu contexto orgânico de acumulação. Considerando a vaga especificação do legislador enquanto o que venha a ser “bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural” (BRASIL, 2007a) em contraponto à especificação minuciosa no que tange a aspectos jurídicos, de pessoal e os relativos às propriedades da extinta RFFSA (BRASIL, 2007), fez com que o modelo de gestão deste patrimônio sob a custódia desta ignorasse os acervos oriundos das empresas que a antecederam e ainda secundarizava a importância histórica, cultural e como patrimônio destas. Os ditames propostos a estes outros sucessores levam em conta, apenas, sua utilidade para fins jurídicos, econômicos e administrativos. Logo, compromete a sua utilidade jurídica, enquanto instrumento de gestão e mesmo enquanto registro das atividades financeiras. Se já não fosse o suficiente, destina ao IPHAN a completude dos bens de valor histórico e cultural, e não especifica os modos como este deva divulga-los nem prevê nenhuma Política Cultural voltada para a preservação, disseminação, preservação da memória documental das ferrovias no Brasil nos acervos distribuídos pelos outros órgãos sucessores. De modo a regulamentar as normas descritas na Medida Provisória anteriormente citada, no mesmo dia de sua assinatura, é editado o Decreto nº 6 018/2007. Além de dividir a administração fundiária dos terrenos da antiga RFFSA entre o DNIT e a Secretaria do Patrimônio da União – SPU (órgão do MPOG) – ainda arrola o Arquivo Nacional (AN) como destinatário de parte do acervo e como responsável por assessorar a Inventariança no processo de gestão destes à serem transferidos (BRASIL, 2007b). Tal norma, em linhas, gerais não altera o panorama geral do processo de particionamento dos arquivos descritos pela Medida Provisória – com a inserção

Empresa pública vinculada ao Ministério dos Transportes cuja função e construir estruturas para a circulação de ferrovias.

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de órgãos como SPU e AN tal processo se expande – porém o Decreto determina que o processamento técnico dos acervos se deem sob as “normas específicas” (BRASIL, 2007b). A partilha dos arquivos, como o previsto pela legislação, além de priorizar categorias como as relativas à administração financeira, patrimonial e de recursos humanos do órgão extinto, deixa sem sucessor outros conjuntos documentais como a administração geral da empresa e àquela criada no desempenho de suas funções finalísticas. Essa falta de definição leva a uma interpretação discricionária de cada entidade pública quanto ao conjunto documental a ser assumido, aprofundando os embates entre eles e dificultando a coordenação no sentido de uma valorização do Patrimônio Arquivístico Ferroviário como um todo e na concepção de Políticas Culturais comuns. A definição de cinco órgãos sucessores para um acervo que mede aproximadamente quinhentos e sessenta e quatro mil trezentos e trinta e um metros lineares de documentos distribuído em onze Estados, mais o Distrito Federal, (medida superior a distância entre a cidade do Rio de Janeiro/RJ e Vitória/ES) cria uma situação complexa quanto a busca por uma definição de Política Cultural comum a todos eles no sentido de buscar conservar, divulgar e dar acesso a este Patrimônio Arquivístico. 6. O PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO E A LÓGICA ESTATIZAÇÃO-PRIVATIZAÇÃO Apesar das linhas férreas não terem sido necessariamente privatizadas no sentido estrito da palavra, foram entregues – por meio de concessão – à iniciativa privada para exploração econômica. Considerando o interesse predominantemente econômico destas, os aspectos relacionados a preservação da memória e do Patrimônio Ferroviário, assim como a definição de Políticas Culturais em torno destes, ficaram quase que exclusivamente sob a jurisdição do Estado. As iniciativas públicas e privadas no sentido de fusão dos fundos das antigas ferroviais e o fracionamento do acervo da extinta RFFSA demonstram, sob uma ótica ampliada, a própria lógica de construção e desmonte do setor ferroviário. Enquanto na primeira metade do século XX as ferrovias passavam da lógica da iniciativa privada para o setor público, nas últimas décadas do mesmo século há o movimento de desmonte do setor enquanto empresa estatal e sua reconstrução enquanto iniciativa privada (BUZELIN, 2009). Nem na primeira fase, nem na segunda, a compreensão do Patrimônio Arquivístico Ferroviário recebeu um tratamento que possibilitasse sua manutenção assim como divulgação e disseminação. Nesse sentido de se prospectar as Políticas Culturais relacionadas a este Patrimônio é importante frisar que apesar da incúria e dos entraves jurídicos e administrativos gerados pelas sucessivas normas acerca deste, existem iniciativas em órgãos públicos que têm atuado no sentido do manter esta memória.

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O IPHAN – órgão responsável segundo a legislação pela administração, guarda e manutenção dos acervos dos bens de valor artístico, histórico e cultural da extinta empresa ferroviária – tem desenvolvido diversas atividades em torno deles, porém, com uma clara priorização do patrimônio construído em detrimento dos conjuntos documentais. Um ano após o decreto de extinção da empresa ferroviária, o Instituto cria a Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário que intermediaria as relações com a Inventariança – RFFSA (CAVALCANTI, et al, 2012) 14. Buscando dar maior objetividade aos termos citados na legislação ao referir-se a bens de valor artístico, histórico e cultural é publicado uma portaria15 que determina as características dos bens passíveis de serem considerados como de valor histórico-cultural e no ano seguinte emite outra norma interna16 onde estes bens são listados de modo explícito. Neste arrolamento dos bens que formariam o Patrimônio Cultural Ferroviário são listados bens móveis e imóveis e pouquíssimas menções são feitas ao Patrimônio Arquivístico. O desenvolvimento de Políticas Culturais voltadas para estes acervos, por sua vez, recai em problemas típicos de uma instituição pública, como a falta de infraestrutura e condições para o armazenamento destes documentos, a escassez de recursos humanos assim como os problemas próprios do desmembramento dos fundos (PROCHNOW, 2014). Quanto aos demais órgãos sucessores dos acervos pertencentes a extinta RFFSA as Políticas Culturais no sentido de promover a preservação e divulgação do patrimônio histórico assim como incentivar seu estudo e pesquisa, são mínimas, isoladas e desconexas. A Inventariança da antiga empresa ainda está em atuação e procura dar tratamento aos acervos de modo a enviá-los a seus sucessores, logo entendendo que cabe a estes desenvolver tais políticas. A SPU, por sua vez, buscou desenvolver iniciativas junto ao IPHAN no sentido de tornar imóveis incorporados da antiga ferrovia em centros culturais e museus17, porém as iniciativas não foram levadas à frente. Quanto ao DEPEX, subdivisão do MPOG para gestão de ex-funcionários aposentados da extinta Rede, não há menção de políticas culturais, assim como o AN que até o momento atua apenas assessorando a Inventariança quanto a procedimentos técnicos (ARQUIVO NACIONAL, 2015). Assim sendo, o processo de construção de uma Política Cultural relacionada ao Patrimônio Arquivístico Ferroviário, diante da ausência de uma definição geral para as Políticas Culturais neste caso, ainda está em construção. As medidas adotadas, ainda que de forma errática, mostram o interesse político no sentido de superar as limitações pertinentes às legislações acerca Portaria IPHAN nº 208 de 2008. Portaria IPHAN nº 407 de 21 de dezembro de 2010. 16 Portaria IPHAN nº 441 de 13 de dezembro de 2011; 17 Conforme pode ser observado pela notícia veiculada no site do próprio órgão: https://gestao.patrimoniodetodos. gov.br/pastanoticia.2009-07-02.8239097967/spu-ms-promove-o-resgate-da-memoria-ferroviaria-em-ms-atraves-dos-imovies-da--rffsa 14 15

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do tratamento a ser dado ao Patrimônio Arquivístico Ferroviário, porém ainda são pautadas pelo interesse administrativo, legal e econômico e uma secundarização de sua importância histórico-cultural como suporte da memória local, regional e mesmo nacional. 7. A DUPLA RELEVÂNCIA DO PATRIMÔNIO ARQUIVÍSTICO FERROVIÁRIO Assim sendo, a responsabilidade do Estado quanto a condução das Políticas Culturais no que se refere ao Patrimônio Arquivístico Ferroviário possui uma abrangência ampliada. Ao mesmo tempo que deve-se buscar a preservação, divulgação, disseminação da memória das ferrovias enquanto patrimônio de valor histórico e cultural, existe a necessidade de se ter em vista a gestão documental, como instrumento de apoio à administração e como elementos de prova e informação para quantos precisarem deles. Os órgãos estatais sucessores deste Patrimônio Arquivístico, apesar dos tímidos avanços já empreendidos, precisam coordenar suas atividades no sentido de elaborar Políticas Culturais que visem preservar, promover e difundir este Patrimônio de modo a torna-lo acessível, não apenas para os demais institutos governamentais, mas para toda a população afim de torna-lo útil aos cidadãos que dele necessitarem e a manutenção das representações e simbolismos próprios dos grupos sociais que têm nas estradas de ferro um aspecto importante de sua cultura. Conforme Storino (2013), ao se referir a memória e cultura ferroviária, postula que para além da dimensão poética, ou romântica, geralmente relacionada do mundo ferroviário, a sua história e memória estão marcadas por dramas sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2004. _______. Biblioteca do Complexo Fepasa ganha acervo. Disponível em: . Acesso em 12 de fevereiro de 2016.

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______. Decreto nº 4.109, 30 de dezembro de 2002. Dá nova redação aos arts. 3º e 4º do Decreto nº 3.277, de 7 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a dissolução, liquidação e extinção da Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4109. htm>. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. ______. Decreto nº 4.839, 12 de setembro de 2003. Dá nova redação ao inciso I do art. 3o do Decreto no 3.277, de 7 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a dissolução, liquidação e extinção da Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/2003/d4839.htm>. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. ______. Decreto nº 5.103 de 11 de junho de 2004. Dá nova redação ao art. 3o do Decreto nº 3.277, de 7 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a dissolução, liquidação e extinção da Rede Ferroviária Federal S.A.- RFFSA, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2004/decreto/d5103.htm>. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. _______. Medida Provisória nº 353, 22 de janeiro de 2007. Dispõe sobre o término do processo de liquidação e a extinção da Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA, altera dispositivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Mpv/353.htm>. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. _______. Decreto nº 6.018, 22 de janeiro de 2007(a). Regulamenta a Medida Provisória no 353, de 22 de janeiro de 2007, que dispõe sobre o término do processo de liquidação e a extinção da Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA, altera dispositivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/ Decreto/D6018.htm. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. _______. Decreto nº 11 483 de 31 de maio de 2007 (b). Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de 2001, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11483.htm. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. _______. Decreto nº 7 430 de 17 de janeiro de 2011. Dispõe sobre a transferência do Arquivo Nacional e do Conselho Nacional de Arquivos-CONARQ da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/ Decreto/D7430.htm. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. _______. Portaria nº 407, de 21 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o estabelecimento dos parâmetros de valoração e procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º da Lei n.º 11.483/2007. Diário Oficial União, Brasília, 23 de dezembro de 2007. _______. Portaria nº 441, de 13 de dezembro de 2011. Tornar pública a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, instituída por meio da Portaria nº 407, de 21 de dezembro de 2010. Diário Oficial União, Brasília, 19 de dezembro de 2007. BUZELIN, José Emílio de Castro. “RFFSA. Vol. I. Fases Administrativas”. In: Almanaque RFFSA, dezembro de 2009. Disponível em: http://almanaquedarffsa.blogspot.com.br/. Acesso em14 de fevereiro de 2016. CALABRE. Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2009. CARMO, Mônica Elisque do. “O Inventário como ferramenta de Preservação da Memória Ferroviária”. In: Anais do Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. UFF, 2012. p. 1-17.

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CAVALCANTI NETO, José Rodrigues; CARNEIRO, Fernanda Gilbertoni; GIANNECCHINI, Ana Clara. Avanços e desafios na preservação do patrimônio ferroviário pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. In: VI Colóquio Latino Americano sobre Recuperação e Preservação do Patrimônio Industrial, 2011. Disponível em: . Acesso em 02 de junho de 2013. COELHO, José Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997. DURANTI, Luciana. The concept of appraisal and archival theory. American Archivist. Vol.57, Spring, 1994. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14. ed. atual. e ampl. São Paulo: EDUSP, 2012. GOMES, S.H. T. “Centro de Memória e Informação Virtual: o uso das novas tecnologias informacionais no acervo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil” In: Anais do XI Congreso Internacional de Rehabilitación del Patrimonio Arquitectónico y Edificación (el Patrimonio Ibérico). Fundación CICOP, 2012, p.01-06. LANNA, Ana Lúcia Duarte. “Ferrovias no Brasil 1870-1920”. In: história econômica & história de empresas. Nº VIII.Vol.1, 2005, p. 7-40. MEDEIROS, Enderson. “A Patrimonialização e o arquivo enquanto Patrimônio: um olhar antropológico” In: Biblos: Revista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação, 25 (1), jan./jun. 2011, p. 35-45. OLIVEIRA, Eduardo Romero de. “Memória, História e Patrimônio”. In: Perspectivas Contemporâneas da Pesquisa Histórica. 12 (22), jul/dez 2010, p. 131-151. ________. “Museus e Ferrovias: estudo sobre a preservação do patrimônio ferroviário paulista”. In: Labor & Engenho, Campinas, 5 (3), p. 20-31, 2011. ________. “Railways, documentation and railway memory: a documentation assessment of São Paulo State railway companies (São Paulo, Brazil, 1868-1971)”. In: Patrimoine l’industrie/Industrial heritage, 28 (XIV), 2012, p. 27-37. PARADELA, Célia Lima. Desestatização da Rede Ferroviária Federal S/A. Impactos sobre os Recursos Humanos da Administração Geral. 158 f. Dissertação (Mestrado) em Administração Pública. Escola Brasileira de Administração Pública. Fundação Getúlio Vargas. 1998 PROCHNOW, Lucas Mendes. O IPHAN e o Patrimônio Ferroviário: a memória ferroviária como instrumento de preservação. 160 f. Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Patrimônio), IPHAN, Rio de Janeiro, 2014. SETTI, João Bosco. Ferroviais no Brasil um século e meio de evolução/Brazilian railroads: 150 years of evolution. Rio de Janeiro: Memória do Trem, 2008. STORINO, Cláudia Maria Pinheiro. “Parecer sobre o tombamento do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio de Janeiro (RJ). Processo nº 1382-T-97, fl. 42”. In: Atas do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. 03/05/2011. Disponível em Acesso em: 14 de maio de 2013. SOUZA, Murilo Mendonça Oliveira de. “Entre a Ferrovia do Diabo e o Trem Fantasma: uma viagem pela história da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”. In: Campo-Território: Revista de Geografia Agrária. 5(9), Fev. 2010, p. 237-246.

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REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A. Proposta da RFFSA para solução dos Problemas da Ferrovia. Rio de Janeiro: Mimeo, Agosto de 1991. RODRIGUES, Ana Márcia Lutterbach. “Uma análise da Teoria dos Arquivos”. Dissertação (Mestrado). 96 f. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Ciência da Informação. 2004.

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OS SENTIDOS DO SEM SENTIDO: LEMBRANÇAS DO “REDESENHO”1 Frederico Augusto Barbosa da Silva2 RESUMO: O texto é um conjunto de anotações e reflexões sobre a análise de processos de políticas públicas. Tem como objeto-memória as discussões, acordos e desacordos conceituais com Valéria Labrea a respeito do papel da linguagem e de formas possíveis de análise do que significa “dizer” em políticas públicas. Esse diálogo expressa o encontro entre uma perspectiva analítico-sociológica e outra mais próxima das cartografias das subjetividades e dos discursos, algo aparentemente muito próximo do que se chama epistemologias do Sul. PALAVRAS-CHAVE: política pública; linguagem; narrativa; discurso; Cultura Viva; Redesenho;

1. LINGUAGEM E IDEOLOGIA A linguagem expressa o limite do que se pode dizer. Sobre o que esta além da linguagem há o silêncio. Partimos daqui simplesmente para afirmar que a linguagem pode ser usada de muitas maneiras, mas que embora só se possa dizer algo de dentro da linguagem, contar estórias, narrar, analisar e avaliar envolvem usos da linguagem muito diversos. Não reduziremos a análise das políticas pública à adesão a campos ideológicos específicos agenciados por ideia gerais como discurso, narrativa, cultura, estado, sociedade civil, redes, autonomia etc. Mas na análise de programas de ação concretos podemos encontrar este conjunto de léxicos associados em quadros de significação complexos. “Os grupos sujeitados não o são menos no nível dos senhores que dão a si mesmos, ou a quem aceitam, do que no nível de suas massas; a hierarquia, a organização vertical ou piramidal que os caracteriza tem por meta conjurar toda possível inscrição de não-sentido, de morte ou de estilhaçamento, impedir o desenvolvimento de destruições criativas, assegurara mecanismos de auto conservação fundados na exclusão de outros grupos; seu centralismo opera por estruturação, totalização, unificação, substituindo as condições de uma verdadeira “enunciação” coletiva pela organização de enunciados estereotipados apartados a um só tempo do real e da subjetividade (é nessas circunstâncias que se produzem fenômenos imaginários de edipianização, superorganização e castração de grupos). Os grupos sujeitos definem-se, ao contrário, por coeficientes de transversalidade que conjuram as totalidades e hierarquias; são agentes de enunciação, suportes de desejos, elementos de criação institucional; por meio de suas práticas não param de confrontar no limite de seu próprio não-sentido, de sua própria morte ou fragmentação (...) um grupo-sujeito sempre corre o risco de se deixar sujeitar, numa crispação paranoica em que deseja a todo o custo se manter e eternizar como sujeito” (Deleuze, G. Prefácio, In Guattari, F. Psicanálise e transversalidade – ensaios de análise institucional , I deias & L etras , A parecida , SP, 2004, páginas 12 e 13). 2 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). 1

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Então, precisamos de uma inicial e rápida formulação a respeito da linguagem e do uso de assertivas formais (teorias) no processo de análise em políticas públicas. Usar as narrativas como método é diverso de tomar tudo como narrativa, usar dados estatísticos como recurso analítico é diverso de tomá-los como medidas-limite de relações sociais, fazer contas ou usar de proporções numéricas nem sempre é usar teorias econômicas, mas tudo isso envolve o uso de linguagens com estruturações e procedimentos específicos. Para muitos o sentido da linguagem é um referente. Proposições deveriam retratar o estado das coisas. O raciocínio proposicional permitiria a aposição de valores de V ou F para as sentenças. Mesmo com níveis de generalização variáveis a linguagem poderia ser objeto de contraste direto ou indireto com as coisas pela derivação lógica de enunciados protocolares ou observacionais. Pressupõem-se sempre a possibilidade de estabelecimento de valores de verdade em contraste com posições ideológicas. Os discursos não corresponderiam ao real, mas através do discurso ainda seria possível o desvelamento de posições de sujeito particulares e, mais misteriosamente, de dentro do próprio discurso saltariam marcadores de posição. Não é esse tipo de colocação que gostaria de compartilhar. Gostaria de compartilhar algo mais simples, a necessidade de delimitar formalmente sobre o que estamos falando ao fazermos pesquisa, avaliação ou políticas públicas. Nesse caso, gostaria de me apoiar em um conceito difícil e que foi usado de forma recorrente no processo de Redesenho do Programa Arte Cultura e Cidadania- Cultura Viva: O conceito de rede3. 2. ESTORINHA SOBRE COMO O CONCEITO DE REDE FOI PARAR NO REDESENHO Partimos aqui já de resultados da reflexão e não das estórias intricada dos seus múltiplos processos e narrativas. Depois da primeira pesquisa4 o interesse da Secretaria da Cidadania e O processo conhecido por “Redesenho” ou mais propriamente Grupo de Trabalho Cultura Viva – (GT-Cultura Viva) tinha objetivos simples: rediscutir conceitos e estabilizá-los, na forma em que os atores achassem mais conveniente, até mesmo mantendo-os e, por outro lado, resolver alguns problemas pontuais surgidos de pesquisas anteriores: comunicação, monitoramento e acompanhamento. Na prática até mesmo o nome gerou conflitos a respeito dos significados do processo. A desconfiança entre os atores, sintoma das dificuldades estruturais de diálogo, oferecia-se como marcador de significados. 4 . A primeira pesquisa foi seguida foi seguida por um conjunto de entrevistas com gestores federais da cultura, depois por um conjunto de pesquisas de campo e por uma coletânea de artigos sobre o Programa Cultura Viva, inclusive com artigos realizados no âmbito da primeira pesquisa. A ordem das pesquisas é a seguinte: a) Barbosa da Silva, F.A. & Araújo, H.E. Cultura Viva – avaliação do programa arte educação e cidadania, IPEA, Brasília, 2010; b) Barbosa da Silva, F.A. & Midley, S. Políticas Públicas Culturais – a voz dos gestores. IPEA, Brasília, 2011; c) Barbosa da Silva, F.A. e Calabre, L. Pontos de Cultura – olhares sobre o Programa Cultura Viva”, IPEA, Brasília, 2011; d) Barbosa da Silva, F.A. & Ziviani, P. Cultura Viva – as práticas de pontos e pontões, IPEA, Brasília, 2011; d) Barbosa, C. L; Medeiros, R. C. F.; Lyra, V. M. G. Avaliação dos Pontões de Cultura do Programa Cultura Viva. O Olhar dos gestores do Programa Cultura Viva. Relatório da Pesquisa Avaliativa do Programa Cultura Viva. IPEA: Brasília, 2011 (Coordenação de Cultura, IPEA (não publicada); e) Barbosa da Silva. F. A. & Labrea, V.V. Linhas gerais de um planejamento participativo para o P rograma C ultura V iva , I pea , B rasília , 2014. 3

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Diversidade Cultural (SCDC)5 era multiplicar o conhecimento do programa. A segunda rodada de aproximação incluía-se no rol da pesquisa e não da avaliação, incluía imersões nos pontos de cultura, oficina com pontões para conhecer sua atuação e atualização dos dados através de questionário. Não era no seu conjunto uma pesquisa avaliativa. Foi toda pontuada e demarcada pela equipe do primeiro secretário do programa e de seu sucessor. Nenhuma mudança de objetivos foi negociada posteriormente, embora algumas perguntas adicionais tenham sido feitas ou, ao menos, foi assim o entendido, com o objetivo de explorar as possibilidades de escalonamento de valores a serem transferidos. Não tínhamos instrumentos para dar essa resposta. A pergunta não foi abandonada, mas também não foi respondida. A pesquisa com os pontos gerou um relatório que mostrava a complexidade de cada ponto de cultura. Elaboramos tipologias e nenhuma delas permitia inferir qualquer necessidade de mudanças conceituais. Apenas mostravam certa instabilidade semântica ou nos usos diferenciados dos conceitos centrais do programa. Essa instabilidade é um fato. O programa, qualquer programa de ação pública é dinâmico, especialmente aqueles que ainda estão em processo de maturação. As oficinas com os pontões foram muito ricas. Nada de muito novo surgiu dali. Os problemas foram enfatizados. O contexto do programa já era diferente dos primeiros anos heroicos, que permitiram a sua rápida expansão. Voltando aos objetivos da pesquisa, podemos dizer que a ideia era focar nos problemas enfrentados pelos pontões na perspectiva própria dos pontões e mapear as densidades das suas relações em rede. O terceiro elemento era o questionário. O nível de respondentes foi baixo, cerca de 10% do universo total, mas já era um número maior do que o da primeira pesquisa. As tabulações mostraram um pessimismo e críticas importantes. Resolvemos descartar as tabulações por razões simples e técnicas, o já assinalado percentual de retorno, a incompletude de muitos questionários, o que nos obrigava a muitos descartes e, finalmente, a incomparabilidade dos dados de uma pesquisa feita in locu, como na primeira e outra feita pela internet e aparentemente contaminada com dúvidas e desânimos em relação ao programa. O processo de negociação do “redesenho” tem outra história. Voltaremos à estrutura do que foi pactuado mais a frente e na Nota 10 (dez). No momento interessa voltar à questão do papel do conceito formal na análise de política pública, nesse caso, o conceito escolhido é o de rede. Fizemos uma opção analítica já no processo de “redesenho do CV”, passo que não estava previsto inicialmente e que foi o de mostrar que a rede não poderia ser totalizada pela multidão de redes, inclusive por estas advogarem a autonomia (fazer os planos de trabalho) e por pos-

Manteremos o nome SCDC como referência, embora seja uma mescla institucional entre Secretaria da Cidadania Cultural (SCC) e Secretaria da Identidade e Diversidade (SID).

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suírem interesses divergentes do discurso parafrásico6. Discursos análogos não significam o mesmo ainda porque são realizados de diferentes posições estruturais. Interessante que a torção analítica implicava no reconhecimento de conceitos que já faziam parte do próprio sentido do programa, especialmente aquele que se referia a atuar em rede. A questão controvertida era a definição de que tipo de agenciamento ou qual a participação do poder público nisso tudo. Então, situávamo-nos no mesmo nível discursivo, embora em posição desconfortavelmente diversa, como objeto ou alvo de críticas. O maior drama não era representado neste teatro, mas no campo do imaginário político. Valores (ou conceitos) como autonomia, protagonismo, emancipação – e rede - fixavam sujeitos em um espaço de diálogo no qual os componentes constitutivos da linguagem eram compartilhados e configuravam os limites do que se podia dizer. A posição institucional, real ou imaginária, pouco se nos importa, as desconfianças, ancoradas em comportamentos que as solidificavam, afinal o programa estava diante de inúmeros impasses, dizia que o diálogo seria politicamente impossível. A saída honrosa era dizer que o imaginário e a prática se opunham. Assim, mantinham-se os valores e poder-se-ia acusar a realidade de não dispor os meios para realiza-los7. A oposição entre discurso e prática jamais foi a minha posição interpretativa. O simbólico e o prático são constituintes. O que estava comprometido era o diálogo, em parte pelo método desenhado, mas especialmente pela dificuldade de conversar. Algo nos justificava a escolha interpretativa. Os trabalhos avaliativos anteriores mostraram que muito do que se dizia a partir do discurso inaugural se realizava de forma limitada, não apenas por questões de gestão pública, mas também pelas dinâmicas insuficientes da sociedade civil. A separação de tipos de rede e o apontamento da necessidade de demarcação empírica tinha um componente político, seja no sentido de se lançar mão de informações para que os processos de diálogo funcionassem, ou para se delimitar uma agenda a respeito da qual se discutiria e travaria debates políticos. A volta analítica para uma estratégia pragmática tinha uma razão. A colonização do “redesenho” pelo próprio discurso inaugural a interpelar-nos continuamente abria uma janela para conversação com os pontos. Abriam-se espaços para rearticular ações comuns e de interesse mútuo, do Estado e da sociedade civil, qual seja o da construção de uma plataforma digital dialógica. As reuniões Labrea, V. & Barbosa da Silva, F.A, As redes imaginadas do Cultura Viva, VIII ENECULT, Salvador, Bahia, 2012. 7 Passeron, P. & Bourdieu, P. usam de estratégia similar: as pesquisas sociológicas são dispostas no campo de lutas social pelas igualdades. Os discursos oficiais a respeito da desigualdade da escola, por exemplo, mas também do acesso a cultura, poderiam ser apontados como parte de processo ideológicos de legitimação da dominação, enquanto a realidade da escola e das instituições culturais fazem distribuições, mas sempre mantendo uma dinâmica de reprodução das desigualdades estruturais reais. Ver Bourdieu, Pierre e Passeron, Jean-Claude – Los herederos – los estudiantes y la cultura, Siglo XXI Editores, Buenos Aires, Argentina, 2003. 6

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nesse caso foram muito interessantes e promissoras. As dificuldades operacionais mais uma vez limitaram essas possibilidades, dependentes da ação dos próprios pontos, mas também do destravamento de limitações burocráticas. Esta linha, aparentemente promissora, não andou. 3. AO SUL: EPISTEMOLOGIAS DAS HETEROGENEIDADES E SUBJETIVIDADES Teoricamente lidei com um desafio. As epistemologias do sul, que em parte demarcam a maneira com a qual os atores dos novos movimentos sociais se deslocam politicamente, têm como uma de suas características a de posicionar os sujeitos da ação e do discurso no quadro de campos ideológicos, de interesses e institucionais específicos, sendo que eles jamais são totalizados, sendo sempre fractais e relativamente dispersos, o que significa que a união de heterogêneos se dá pela adesão a um referente8 estabilizado em quadros de narrativas coerentes, mas relativamente incomensuráveis entre si. Essas epistemologias abrem margens para ideias de redes, cartografias, transversalidades, ações locais, rizomáticas, emergências, ausências etc. A ação pública caracteriza-se pela ação em escala e por uso de instrumentos de largo alcance, pois formais. Difícil lidar com as “epistemologias do sul” ou diria “pós-modernas”. A ideia de rede também aqui era desafiadora. Os discursos da autonomia, da liberdade e das redes são perfeitos, pois constroem um referente carregado de todos os valores indiscutíveis. E também interpelam e constituem sujeitos. No sentido analítico que emprestamos a noção de rede, a categoria “redes híbridas”, caracterizadas pelas transversalidades9e implícita nas versões de rede que corriam, não fazia sentido, pelo menos para a finalidade de sua construção empírica, pois ela estabelece interlocutores ocultos, que estão no nível das metáforas, do excedente de significado, isto é, estão além de significados literais. Deslizamos por dois deles, em negrito, e simultaneamente encontrávamos limites (comentário que segue a conjunção adversativa): a) as redes híbridas, na percepção corrente, superariam o Estado verticalizado na direção de um Estado democratizado, Estado-rede; entretanto, na literatura das redes híbridas, elas são descritas desde as alianças das altas finanças, dos burocratas juristas dos Estados modernos e até as redes pessoais que sustentam as políticas públicas, b) as redes híbridas carregam água para discursos contra hegemônicos; entretanto, esses discursos não indiciavam quais seriam os suportes sociais concretos para a sua realização, ou as crenças e os valores substantivos a serem compartilhados no fazer político; Conjunto de ideias, crenças, valores, representações. Hipóteses de ação, algoritmos etc. que constituem as motivações para a ação. 9 Ver Guattari, F. Psicanálise e transversalidade – ensaios de análise institucional, Ideias & Letras, Aparecida, SP, 2004 e, especialmente, o prefácio de Gilles Deleuze. 8

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O fato básico para usar a ideia das redes híbridas era a afirmação de que os atores do CV eram profundamente despolitizados, no sentido específico de não disporem de um ideal contra hegemônico e afinidades de crenças em coletivos mobilizados; também não teriam desenvolvido um princípio de oposição concreto estabilizado, muito menos diretrizes concretas para uma reorganização política que escapassem às premissas discursivas do próprio programa (há uma ausência de projeto coletivo e ambiguidades relativamente ao Estado como realizador das políticas públicas). Pessoalmente, acredito que estas hipóteses são bastante complicadas, quase platônicas, em sentido de senso comum, já que opõem o mundo das ideias, real, ao das práticas. Estas deveriam corresponder ao mundo das ideias políticas definitivas. Não sabia, e não sei o que são estas ideias. A ação social é composta por elementos dinâmicos, evidentemente, e o máximo que eu indicava era que as “redes” não possuíam os ingredientes de um movimento social em rede ativado no sentido específico dos movimentos sociais que têm nas mudanças estruturais (relação Estado-sociedade) suas referências. Também era evidente a preocupação das “associações” com as redes das quais eram “nós de rede”, a exemplo das vinculações feitas com atores políticos locais, nem sempre pertencentes ao programa10. Para continuarem atuando, precisavam imediata renovação e potencialização de fluxos financeiros. Parte desse problema implicava não em redesenho, mas em editais que, inclusive, permitissem participação de pontos que já eram parte do programa. Tudo muito simples e ao mesmo tempo sem tradução em iniciativas administrativas. Enfim, vamos o que me interessou nos usos do conceito de rede no “redesenho”. A ideia de rede hibrida não descreve e não ordena categorias analíticas que permita descrições do que acontece nas redes, com os atores, nas suas conexões e projetos. Na verdade, defende ou produz um referente contra-hegemônico, um genérico. Trata-se de uma narrativa, quer dizer, é uma posição no campo de relações. Evidentemente, esta posição narrativa poderia servir como uma luva para vários dos atores que conduziam os processos, pois justificava um interminável e cansativo diálogo poético em torno dos encantos do programa, indiciando um trabalho de Sísifo parafrásico, a justificar a instabilidade e a indecisão política, ou em continuar com mais do mesmo, ainda que o quadro fosse o da criação de fantasmáticas oposições e inimigos. Para mim toda ação é relacional, dinâmica, indeterminada, processual. Toda rede é híbrida. E daí? O que fazer?

Latour, B. chama a atenção para as associações entre “humanos” e “não-humanos” nas redes. Por exemplo, um dispositivo tecnológico não é apenas um instrumento passivo, mas uma agência ou ator rede na ação (actantes ou atuantes), pela simples razão de que sua presença atua. Máquinas, documentos, números, critérios, índices estão todos conectados.

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A escolha do tipo “redes híbridas” é a volta do parafuso. Um artifício habilidoso que tem muitas consequências, caso se aceite todos os seus elementos configuradores11. De novo, usamos a paráfrase mais querida dos admiradores de Wittgenstein, a linguagem pode ser percebida por seus usos, os sentidos são os usos. O caráter performático, fazer existir, mudar o estado das coisas por atos de linguagem ou atos institucionais são práticas de produção de sentidos. Dizer que um programa existe e é uma “rede” implica propor problemas relacionados ao uso do nome próprio, talvez do nome do pai, autoridade que delimita o que é possível ser, dizer e fazer. O que o nome indica? Quais suas relações com as qualidades constitutivas do conjunto de ações que compõem o programa? Dizer o nome próprio implica em reconhecer, dar sentido, criar laços simbólicos. Podemos situar o programa Cultura Viva no campo das palavras vagas, redes de metáforas que o constituem (potência, processos, subjetividades, redes etc.), mas para além do caráter performático das falas sobre o programa, o que são efetivamente os componentes constitutivos do programa?12 4. REDES, REDINHAS E REDÕES. Os problemas são hiatos entre uma imagem da realidade e o que ela efetivamente constitui. A delimitação de problemas não descarta o caráter subjetivo, processual ou simbólico da realidade, mas remete à possibilidade de coordenação das ações, buscando maior efetividade e mesmo eficiência. Se o imaginário associado ao programa não descarta a intencionalidade, senão, a intencionalidade burocrática do Estado e econômica dos mercados, não descarta as possibilidades de coordenação dos atores no quadro de ações sequenciadas e planejadas. Escolhemos a metáfora das redes para exemplificar o problema. Dela derivamos uma série de elementos. Em primeiro lugar, não existia uma rede do “Cultura Viva”, existiam muitas Havia uma posição sobre as redes que gravitava nas perspectivas do redesenho. Trata-se da posição próxima a de Castells a respeito das redes. Para este autor as redes definem as estruturas organizacionais contemporâneas, com as ideias de flexibilidade e adaptabilidade inerentes às rede e que tornam-nas vantajosas sobre formas de organização burocrático-racionais. Do ponto de vista da atividade política a internet possibilita a coordenação de atividades globais e descentralizadas e ainda permitem e facilitam mobilizações e coordenação de ações. Eu, como coordenador do Redesenho por parte do Ipea, via potenciais nisso, mas não eram potenciais de ativismo social no sentido de estabelecimento de um projeto contra hegemônico. Estávamos tratando de um programa com móveis políticos e interesses diferenciados. O ativismo social depende de elementos circunstanciais e de compartilhamento de ideais políticos que não passam necessariamente pela adesão a um programa governamental. Seja como for, a ideia de uma gestão de conhecimentos do programa pressupunha o acesso e uso intensivo da internet para coordenar ações e organizar a gestão. Disso podem vir desdobramentos inusitados em termos de redes e ativação de movimentos sociais. 12 Usamos da analogia entre políticas públicas e paradigmas para descrever as relações entre os planos mais abstratos e discursivos, suas opções e operações reais. As políticas públicas carregam sentidos ideológicos e materiais a um só tempo e, políticas frágeis não são capazes de resolver os problemas que entraram no seu quadro de referências e soluções. Esta analogia vem da sociologia e da análise de política públicas francesa, bastante sensível à produção de sentidos própria da política. Um programa não é uma política e disso decorrem muitos problemas analíticos, a começar do tipo de orçamentação a que é objeto. A analogia funciona a todo a vapor a favor da interpretação, mas deve-se reconhecer que os recursos que um programa mobiliza são muito diferentes daqueles presentes nas políticas. 11

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redes cujas ações de base não poderiam ser qualificadas por uma geral relacionada ao programa (“fazer o que edital diz”), pois as demandas específicas de cada uma delas parecia-nos muito diferentes, já pela denominação genérica das redes temáticas, mas também pelos contextos reais, onde as redes de políticas já exigiam mediações entre atores muito diferentes daquelas que pressupunha o simples repasse de recursos. As conexões entre os pontos de rede também pareciam-nos frouxas. Aqui o problema não era apenas o da conectividade, ademais algo fluido, mas a possibilidade de estabelecer alianças pró-redes mais fortes. Inclusive os dados mostravam que as redes eram percebidas muito mais em relação a outros atores locais do que em relação a atores do próprio programa. Os dispositivos tecnológicos eram evidentemente pouco eficazes em qualquer sentido, seja nas relações entre Estado-sociedade ou de sociedade-sociedade. O potencial de coordenação das ações era pouco explorado. A reconfiguração e disponibilização de meios tinham múltiplos sentidos: a) potencialização das conexões entre atores de forma horizontal, b) gestão estatal de recursos de informação que poderia ir desde a facilitação das prestações de contas até a gestão de conhecimentos, c) Estado como simples transferidor de recursos financeiros e acanhado desempenho na avaliação e acompanhamento. A tipificação das redes tinha outro objetivo. Em primeiro lugar delimitar possibilidades e formações de rede diferenciadas, não imaginávamos que um genérico “redes hibridas” fosse capaz de resolver qualquer problema ao trazer as redes para o campo metafórico do raciocínio prático cotidiano. Aliás, ressalve-se, algo deste raciocínio, do senso prático, do raciocínio de entremeio, híbrido tem algo de interessante. É uma descrição de como o raciocínio natural funciona. Como afirma Deleuze, é um tipo de raciocínio que diz respeito ao fazer como se pode. Evidentemente, há muitos pressupostos aqui, especialmente de que as redes, coletivos e grupos (muitos defendem que os nomes aqui remetem aos mesmos fenômenos) devem ter conexões e meios de coordenação de suas práticas, algo impensável em ações fragmentadas e desconectadas no imenso território nacional13. Nas pesquisas eram muito evidentes os desconhecimentos mútuos de pontos que no mapa eram perfeitamente próximos territorialmente (em alguns casos vizinhos de bairro e de município). A ideia de rede de política, pressupondo mais ou menos participação do ator público, vinha como pressuposto para organizar e conectar atores. Entretanto, algo inusitado acontecia.

Ver Deleuze, G. Prefácio, In Guattari, F. Psicanálise e transversalidade – ensaios de análise institucional, Ideias & Letras, Aparecida, SP, 2004. 13

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As dificuldades do pensamento autoritário ou autonomista em pensar o Estado como parceiro. A construção ideológica do Estado-máquina dominante é muito forte e em geral se desconhece as re-descrições do Estado e das políticas públicas como redes de atores plurais. Como reduzir os excedentes de significações do conceito de rede, ou como reduzir a metáfora das redes a seus sentidos literais ou a descrições bem definidas? Não precisamos apostar em separações muito rígidas entre ficção e não ficção, discurso e realidade, significado do falante e significado literal, mas de descrições conceituais formais úteis sobre o que são redes de políticas. 5. TIPOLOGIA DAS REDES A elaboração de tipos tem finalidades heurísticas precisas e seu uso depende da aceitação de pressuposições de sentido. A pretensão de que um tipo ideal faça sentido nos quadros do senso prático é uma aposta no escuro, ou seja, é altamente improvável de encontrar as condições adequadas de realização. É pouco provável que a delimitação empírico-conceitual do tipo seja entendida nos quadros do raciocínio natural. Seja como for, os tipos não compõem o quadro das epistemologias realistas, uma ontologia das redes, por exemplo, é impossível; a função dos tipos-ideais é organizar instrumentos e pressuposições empírico-conceituais próprias para a descrição da complexidade histórica. A explicação a respeito do funcionamento das redes de política tece diálogos com a literatura das formas corporativas de representação. Apresenta, teórica e empiricamente, os limites desta literatura para descrever novas configurações históricas onde os processos de representação política e a permeabilidades das instituições estatais a outros atores não estatais se torna maior. Ao invés do Estado soberano (ficção jurídico-política da filosofia política moderna), aparecem as políticas públicas e um Estado cuja dinâmica é marcada pela interpenetração com atores múltiplos, sejam individuais ou coletivos (as redes). Assim, a ficção conceitual do Estado como uma máquina decisória e com poder de dominação (“aquele que assina, que tem a caneta”, como nos disseram) contra ou favor da sociedade, depende do gosto ideológico do freguês. Por um lado, a ficção do Estado era descrita como tendo os significados da atuação seletiva em relação a interesses sociais e seus processos decisórios eram configurados pela presença de grupos (organizados em torno da ideia de interesses econômicos de classe), direta ou através de representantes, em agências estatais. Neste caso, existem redes fechadas, pois o Estado é permeável a grupos com histórias muito precisas de diálogo e captura do “fundo público”. Com a complexificação do processo decisório, com a multiplicação das agencias públicas, com a reorganização da administração pública em políticas setoriais e com a desorganiza-

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ção das categorias corporativas, a descrição do funcionamento do Estado em suas relações com a sociedade mudou radicalmente, embora parte desse imaginário tenha permanecido inclusive nas estruturas de organização de conselhos participativos, que dialogam (ou deveriam dialogar) com o Estado em termos de ideias gerais em nome de todos, embora, efetivamente, parte das ações ainda aqui devam ser descritas na sua seletividade característica. Por outro lado, a ficção política desloca o Estado do centro, colocando-o em contextos sociais, quando, então, passa a ser descrito como parte de redes onde circulam atores plurais com referências a objetivos que não se resumem a interesses de classe ou gerais, mas se ligam aos objetivos de políticas públicas, proteção social, realização de direitos difusos etc. A ideia das redes temáticas ganha sentido neste quadro, delimitando os tipos “redes fechadas” (com representação e mediação de interesses globais de programas ou políticas) e “abertas” (com representações e objetivos locais específicos e singulares). A ideia de redes de política é transladada para reconhecer ainda certa gravitação das ações públicas em torno do Estado. As redes temáticas pressupõem outro tipo de mediação de interesses em geral em torno de um conjunto de ações fracamente regulada pelo poder público. Evidentemente, a estrutura de cada política vai condicionar a estrutura das redes tanto de políticas quanto temáticas. Nenhuma dos tipos de rede prescinde do diálogo com a política, no seu sentido de projetos globais em disputa político-ideológica. O que embaralha os tipos de redes é, na verdade, a inclusão de outros elementos. Algo bastante confuso na discussão das redes era a ideia das redes de movimentos sociais. Estes funcionam em outro registro que não é o das políticas públicas. São movimentos acionados por diferentes mecanismos. Antes eram os coletivos operários, clubes e associações, incluindo dos intelectuais e partidos e hoje são movimentos mais ou menos espontâneos ativados em torno de temas e mobilizados a partir de redes de informação digital, sobretudo14. 6. METÁFORA Acabamos discutir o uso do tipo-ideal para descrever as redes. Passamos a discutir a rede como metáfora. O problema mais central da metáfora, desafio para as teorias da linguagem, é saber como ela difere de enunciados ou emissões de sentido literal. A metáfora aponta para um excedente de significações de uma emissão literal15. Essa redução analítica passou a ser central As descrições feitas por Darnton sobre o papel da literatura que circulava em meios alternativos e que configuraram os movimentos revolucionários modernos relativiza a novidade da ideia de rede, mas para não sermos anacrônicos devemos reconhecer os papeis da internet nos novos movimentos socais e formas de demanda política. Ver também Castells, M – Redes de Indignação e esperança – movimentos sociais na era da internet, Editora Zahar, RJ, 2013. 15 Não nos esqueçamos de que há outras formas de sentença cujo sentido excede os sentidos literais, a exemplo da ironia. 14

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tanto para a elaboração e uso dos tipos, quanto para delimitar enunciados de forma a torna-los capazes de descrever concreta e criteriosamente as redes. O problema todo era saber o que os falantes (das redes do CV) tentavam comunicar e porque não diziam o que queriam significar? Porque as redes não funcionavam bem para alguns e funcionavam bem para outros? A primeira parte da resposta tem uma inspiração searleana: a metáfora tem um significado para o falante que se distingue do significado das sentenças e palavras. As metáforas requerem, para terem sentidos, um conhecimento do contexto de crenças e um compartilhamento de suposições de base entre ouvinte e falante. Os significados das sentenças são diferentes das intenções do falante, as sentenças não têm sentido literal, mas a comunicação ainda assim acontece. Searle aponta a ironia e atos de fala indireto como exemplos de ruptura do sentido literal em relação as emissões, entretanto ainda aqui o que se quer significar depende das sentenças. Evidentemente, quando se diz que o CV é uma rede podemos dizer que a emissão tem um sentido literal. Ao dizer que é metafórico, queremos dizer algo diferente. Quando afirmei que era uma metáfora dei um sentido específico: havia um excedente de significações que precisava ser mais bem qualificado e, em segundo lugar, o conceito não tinha precisão tipológica ou descritiva. Pelas pesquisas empíricas, o CV era um conjunto de redes com diferentes graus de conectividade entre si, estruturas e relações com o próprio programa. Apesar de tudo o que se dizia a respeito de redes temáticas, territoriais, digitais etc. os sentidos não tinham estabilidade semântica (e nem precisavam ter para os usos cotidianos) e tornavam as possibilidades de ação intencional difíceis de serem delineadas. Para a razão prática (raciocínio de entremeio, por definição, isto é, empírico e teórico, simultaneamente) esta questão é irrelevante basta que a metáfora produza efeitos simbólicos de crença e ação para sua efetividade. Acompanhados de Searle, nossa questão era passar do significado metafórico para o literal, de forma a definir parâmetros ou critérios empíricos de assertibilidade e, portanto de significação das redes para as políticas públicas. Entretanto, o que importa no momento é que as sentenças tinham algumas condições de verdade definidas temporal e contextualmente. Como se dizia, “O CV é de fato uma rede. Faz reuniões presenciais, virtuais e ainda faz as Teias”. Outros, ou os mesmos em momentos diferentes, afirmavam que “o CV já foi uma rede e agora não é mais” e, ainda, “a rede acabou em 2010, a secretaria (SCDC) não conseguiu manter o processo de produção dos editais” e nem as ações do digital, “as Teias precisam ser revitalizadas”. O argumento mais duro e, talvez mais simples, era o de que ser rede era participar dos editais, fazer o que estava previsto, desenvolver o que já se desenvolvia e que isto já implicava na existência das redes. O que abriu uma janela para tratar as redes na agenda do redesenho foi uma fala de um gestor do programa “não organizamos os

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registros e informações dos funcionamentos das redes”. A informação é a prova dos nove. Ou a informação tem outros usos como, por exemplo, o uso performativo, fazer existir? Não contextualizarei o cenário das falas e as tensões internas e externas que as motiva16 ram . O certo é que estas falas estimularam um novo conjunto de procedimentos e temas de acompanhamento e trabalho17. Na falta da fala ativa das “redes”, que não foram mobilizadas virtualmente e, na ausência de atitude política reflexiva e ativa dos representantes da Comissão – a postura e a apatia eram evidentes – percorremos caminhos previstos, mas com ênfase diferenciada. O conceito de redes poderia ser o objeto de uma reflexão política mais detida. Estas discussões permitiram trazer a questão das formas das redes, depois associadas com dispositivos de políticas (gestão de conhecimento e gestão compartilhada). A primeira forma de gestão é técnica e pressupõem um conjunto de definições que estão longe de qualquer capacidade institucional. O genérico é mais fácil e pressupor que a sociedade civil sabe fazer é um caminho da razão prática. Mas esta proposição, a de que parte dos funcionamentos do programa poderia ser aperfeiçoada a partir de abertura de canais de comunicação, registro de decisões, procedimentos a serem seguido etc. faz parte de qualquer linguagem de accountability de políticas públicas. A segunda parte já se realizava no próprio GT, e mostrava todos os problemas relacionados aos processos participativos. Certamente o próprio GT vivia um problema sério de desenho e de representatividade. Mesmo estabelecendo um conjunto de condições de verdade, o pano de fundo, as suposições de base não estavam estruturadas. Em realidade as redes são mais “termos atributivos”, definindo condições de verdade a respeito do programa, mas sem a delimitação do pano de fundo factual sobre que tipo de coisas o falante esta se referindo. Evidentemente podemos afirmar que eles estão falando de relações horizontais de autonomia de liberdade, de contra hegemonias. Mas temos que concordar que estes conceitos (ou quase conceitos) não definem factualmente e analiticamente os atributos das redes. Também aqui os limites não são muito claros. Como afirma Searle: “uma mulher pode ser corretamente descrita como “alta”, ainda que seja mais baixa que uma girafa que se poderia corretamente descrever como “baixa”18. Estas falas não são isoladas, em geral, para cada uma delas há controvérsias. Para a falta de registro há o contra argumento dos relatórios, dos livros, dos enunciados dos editais, de uma quantidade imensa de dados não explorados. Se as redes estão previstas, se os pontos foram aprovados e as prestações de conta das atividades comprovam que eles realizaram o que estava nos editais, logo, temos redes. Entretanto, é possível questionar se realizar formalmente o que está previsto é fazer rede ou fazer política pública em rede e, assim, seguem-se sucessivos argumentos e movimentos de interpretação. 17 O desenho operacional do Redesenho implicava atacar problemas específicos do programa, a exemplo, de métodos de comunicação e organização de processos, em conjunto com atores da sociedade civil. No final, ganhou a forma de um Grupo de Trabalho em forma de assembleia, o que transformou profundamente os sentidos originais. A intenção original apenas se desdobrou em poucas reuniões específicas para a discussão da implementação de uma plataforma digital. Sem sucesso prático. 18 Searle, J.R. Expressão e significado – estudo da teoria dos atos de fala, Editora Martins Fontes, SP, 2002. 16

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Para Searle a paráfrase de uma metáfora implica na tradução de sentido, a repetição em outros termos, e sempre a custa de uma perda, mesmo expressando boa parte do conjunto de condições de verdade. Não utilizamos a metáfora em sentido tão delicado, apenas para expressar que a metáfora das redes tinha usos imprecisos e retóricos. De qualquer forma, se o “significado de uma palavra é o seu uso”, a ideia de rede expressava certas afinidades e comunidades de crença, não carecendo de maiores análises. Dissemo-lo claramente ao descrever brevemente o CV e suas representações expressas do plano cognitivo, sem realizar uma hermenêutica mais sólida dos níveis discursivos que estavam em jogo19. A ideia das redes passou se constituir em metáforas mortas20 pelos efeitos dos usos rotineiros. Todavia atendia a necessidades semânticas da comunidade de política estabelecida em torno do PCV. Podemos andar por outro caminho: as redes predicavam o programa, sem significado literal e com intencionalidades específicas dos falantes (reunir, compartilhar, legitimar, discutir etc.). Para um ouvinte externo, bastava um mínimo conhecimento a respeito dos significados literais do que são as redes para a compreensão do que se falava. Entretanto, nas tentativas de precisar seus sentidos evidenciava-se um excedente importante de significados. O significado não estava no léxico e também não estava na sentença, mas no falante, no seu contexto e no campo semântico que mobiliza potencialmente. Outro problema era o de relacionar programa, o significado das redes e as consequências disso tudo na ação dos atores/falantes. A metáfora faz bem esta comunicação. Outro caminho era tomar a rede como objeto a ser predicado. Foi o que se fez com o estabelecimento de tipologias de redes. O objetivo era esclarecer e proporcionar condições para refletir a respeito de alternativas de ação de forma mais consistente. Que se decidisse que as redes eram temáticas ou de política (os métodos de ação seriam diferentes) e mesmo que ambas fossem espécie do gênero rede híbrida contra hegemônica, não nos importava muito. Para resolver o problema, pelo menos em parte, estabelecemos uma tipologia de redes, como já vimos. Elas, as tipologias, deveriam ajudar a pensar concretamente as linhas de força das ações: redes temáticas, redes de política ou redes de política pública. Redes mais soltas com fomento e com mínimas intervenções, gestão do programa e forma compartilhada e gestão de redes por seus objetivos locais e específicos. Concentramo-nos instrumentos das políticas, o que achamos mais forte e central, independentemente do que achávamos que seriam redes: a

Barbosa da Silva. F.A.& Labrea, V.V. Linhas gerais de um planejamento participativo para o Programa Cultura Viva, Ipea, Brasília, 2014. 20 Searle, J. R. Ob. cit. pp. 133. 19

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plataforma digital, a gestão de conhecimento, a possibilidade de um instrumento de interação e reconhecimento mútuo e virtual entre os atores. A decisão a respeito da forma da gestão de rede era do gestor em campo de diálogo e interação com a sociedade civil. O máximo que poderíamos fazer na ética da mediação era oferecer uma organização analítica, tentativamente clara, que permitisse melhorar o quadro conceitual da decisão. Na era das epistemologias do sul o gestor tinha muitas possibilidades, inclusive escolher todos os conceitos de rede, um, dois ou mesmo reinventar nos quadros da ação política. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Começamos dizendo que a pesquisa e a avaliação de políticas públicas têm um momento de construção conceitual formal. O momento analítico permite o entendimento do léxico que frequenta as narrativas. E que usaríamos o exemplo do conceito de redes. Este não era o foco inicial do redesenho, que, aliás, era bem singelo, embora complexo: resolver problemas pontuais com a participação das redes. Os objetivos e os métodos do redesenho mudaram desde dezembro de 2011 no lançamento do livro as práticas de pontos e pontões, na Câmara dos Deputados, quando foi combinado, e seu início, no ano seguinte. Alguns dos acordos sobre as operações e métodos mudaram. A ideia de concentrar esforços no conceito de rede foi tardia. O espaço do diálogo do GT definitivamente não funcionou e então imaginamos que a nossa ação poderia se concentrar na ideia de gestão de redes e na criação de mecanismos de gestão de conhecimentos do programa como um todo. Desenvolvemos uma extensa reflexão a respeito de tipos de redes de políticas e dos instrumentos que poderiam ser usados para cada uma delas. Imaginamos uma plataforma digital, aliás, ideia nada criativa, e a possibilidade de trabalhar com tipos de redes diferenciadas. As redes de políticas, as redes temáticas e as redes de políticas públicas já eram tipos de redes que penetraram no programa gradualmente pela incorporação de políticas para a diversidade, políticas comunitárias e outas relacionadas a questões indígenas, patrimônio imaterial, museus sociais etc. O ponto de foco era a plataforma digital de gestão do conhecimento. Naturalmente, como é de conhecimento público, nada disso funcionou. E, fim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barbosa da Silva. F. A. & Labrea, V.V. Linhas gerais de um planejamento participativo para o Programa Cultura Viva, Ipea, Brasília, 2014.

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FORMAÇÃO EM GESTÃO CULTURAL NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Gabriel Medeiros Chati1 RESUMO: O presente trabalho buscou refletir sobre a questão da formação em gestão cultural e suas demandas no contexto brasileiro. A partir de uma breve reflexão teórica, defendeu-se que a questão é central para a definição e efetivação das políticas de cultura, além de ser uma demanda social, presente nas prioridades estabelecidas nas Conferências Nacionais de Cultura e outros marcos institucionais, como o Plano Nacional de Cultura. Foi identificada a oferta de formação superior em gestão e produção cultural a partir de seis universidades federais, apresentando suas principais características e temas. Traçou-se ainda um perfil dos gestores públicos de cultura no Brasil a partir dos dados da pesquisa Perfil dos Estados e Municípios Brasileiros, suplemento Cultura 2014, do IBGE, num cruzamento de dados sobre a estrutura dos órgãos municipais e seus respectivos dirigentes. PALAVRAS-CHAVE: gestão cultural, produção cultural, formação em cultura, política cultural, Munic 2014.

O tema da formação e capacitação na área cultural é recorrente devido a sua importância para o desenvolvimento do campo, gerenciamento das instituições e efetiva implementação da política do setor. Muitos autores o abordaram anteriormente com perspectivas semelhantes, enfatizando a crescente necessidade de preparação de sujeitos críticos para lidar com a diversidade de atividades e agentes que envolvem a gestão cultural (MARTINELL, 2000, 2007; CUNHA, 2005, 2011; RUBIM, 2008; CALABRE, 2008). Entre os elementos que aproximam tais análises parece estar a relação inexpugnável entre cultura e política, numa compreensão de que a formação do gestor ou produtor cultural2 além ter de prover condições para o desenvolvimento

Mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade (Univille, 2012), Bacharel em Produção Cultural (UFF, Niterói, 2007). Professor da Universidade Federal do Pampa, Coordenador do Bacharelado em Produção e Política Cultural, campus Jaguarão/RS. E-mail: [email protected] 2 Ao longo deste trabalho não será feita distinção entre produtor cultural e gestor cultural compreendendo que há mais convergência entre essas funções ou perfis profissionais do que distinções. Em linhas gerais, reconhece-se que o gestor deve lidar com o âmbito político do campo cultural de maneira mais recorrente do que o produtor; este último muitas vezes trabalha focado na execução das ações e não em seu planejamento, tarefa precípua do gestor. 1

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das competências técnicas inerentes à organização da cadeia produtiva3, deve “estabelecer um compromisso com a realidade de seu contexto sociocultural, político e econômico” (CUNHA, 2011, p. 96). Assim, essa formação deve se estruturar enquanto “um processo formativo para esses profissionais, seja no ambiente não formal, seja na academia”, uma verdadeira política educacional que forme sujeitos comprometidos “com a consolidação de uma política cultural democrática e voltada para a transformação social” (idem). Antonio Albino Canelas Rubim, exemplo de pensador que envereda com frequência na temática da formação, entende que o tema da gestão cultural “apresenta-se hoje como revestido de fundamental importância para o desenvolvimento da cultura no Brasil e no mundo e de políticas culturais efetivamente contemporâneas e imaginativas” (2008, p. 47). Rubim compreende que enquanto processo sócio-histórico a modernidade promove uma autonomização (relativa, é claro) do campo cultural em relação a outras esferas societárias, notadamente a religião e a política. Tal processo [...] implica a constituição da cultura como campo social singular, que articula e inaugura instituições, profissões, linguagens, símbolos (RUBIM, 2008, p. 46). Assim, neste contexto de mudança, considerando os gestores culturais como “profissionais dedicados à organização da cultura” (idem), Rubim vai destacar a importância dessa atuação como parte da legitimação do próprio Estado Moderno. É preciso formar sujeitos capazes de construir, propor, executar e avaliar políticas culturais “por meio de expedientes democráticos [...] em lugar de mera coerção, típica de situações autoritárias” (idem). O autor compreende que este campo “exige crescentemente que sejam formados indivíduos para as novas profissões associadas às instituições que funda”, assim, é preciso preparar hábeis mediadores para atuação no complexo campo cultural, sejam estes ligados às instituições culturais (públicas ou privadas), ou ligados a grupos de artistas e organizações comunitárias, associações e demais frentes de trabalho da área cultural. Pensar e planejar o campo da produção, circulação e consumo da cultura dentro de uma racionalidade administrativa é uma prática que pertence aos tempos contemporâneos. A gestão cultural é um campo novo, com fronteiras fluidas, no qual o perfil profissional se encontra em pleno processo de construção (CALABRE, 2008). Como destaca Calabre, há uma emergência de demandas que nascem desse processo de mudança, assim, este trabalho parte do pressuposto que a formação em gestão cultural é questão sine qua non para a implementação de qualquer política cultural, posto que os gestores cumprem papel fundamental na articulação dos agentes e instituições culturais. Exemplos dessas competências de caráter técnico são as relacionadas aos bastidores da produção artística e cultural, desde a divulgação à cenografia, sonorização, figurino, entre outras, das quais os gestores e produtores devem ter conhecimentos gerais. 3

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Por ser atualmente docente de um curso superior que busca formar justamente futuros gestores culturais, senti-me provocado a pensar mais atentamente qual o cenário e as necessidades da formação em gestão cultural no Brasil, sempre na sua relação com as políticas culturais e a partir do contexto das gestões públicas municipais. Também a minha própria formação em produção cultural, algo relativamente recente no país4, impele-me a pensar este cenário. Começo assim essa investigação sem saber quais seriam todas as demandas de formação na área, mas algo parece-me certo a priori: dar conta destas necessidades passa, indubitavelmente, por capacitar indivíduos para nela atuar. 1. UMA DEMANDA SOCIAL REAL Desde o primeiro governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, ocorreu uma série de mudanças na política pública de cultura em âmbito nacional. Durante todo o primeiro mandato até a metade do segundo, o Ministério da Cultura (MinC) foi chefiado pelo músico, compositor e ativista cultural Gilberto Gil (2003 a 2008). O ministro-artista conduziu a pasta a partir de uma premissa que colocava a cultura numa dimensão antropológica que, entre outras questões, extrapola a noção de cultura delimitada ao campo das belas artes. Também outra premissa se instalava naquele momento para a efetiva construção da política de cultura: a participação social. Nitidamente filiada a premissas democráticas, a gestão organizou a primeira Conferência Nacional de Cultura (CNC) no ano de 20055. As conferências, na perspectiva do Sistema Nacional de Cultura (SNC), cumprem a função de reunir a maior diversidade de agentes culturais que, a partir do debate que se inicia ao nível local (através das conferências municipais), apontam suas demandas, anseios e sugestões para o aprimoramento da gestão cultural do país. Assim, a partir dos resultados destas conferências6, considerando que estas reúnem boa parte das necessidades elencadas pelos agentes culturais, fui buscar subsídios que auxiliassem na identificação da percepção sobre a formação em gestão cultural a partir de um documento que é resultado de ampla consulta de caráter público e com efetiva participação popular. As conferências, por questões metodológicas, colocam à Plenária Final a tarefa de definir prioridades frente ao número muito expressivo de propostas a serem avaliadas. Nesse sentido, algumas propostas que chegam até ela (a plenária) podem não constar no documento final. Atualmente são quatro os cursos superiores na área ofertados em instituições públicas federais, sendo o mais antigo deles aquele no qual me formei, o Bacharelado em Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense que no ano de 2015 completou duas décadas. 5 As conferências nacionais acontecem de quatro em quatro anos e, desde a primeira em 2005, aconteceram outras duas (2009 e 2013). 6 Os dados apresentados neste trabalho se focaram somente no resultado da Plenária Final da 3ª CNC, pois, por uma questão metodológica, a última conferência deve considerar as demandas aprovadas nas edições anteriores, atualizando-as conforme o avanço ou estagnação da situação. O documento pode ser acessado em: http://cncvirtual.culturadigital.br/wp-content/uploads/sites/6/2013/12/Propostas_Aprovadas_III-CNC.pdf (consultado em 05/12/2015). 4

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Assim, apesar de compor os anais dos encontros, há propostas que não são qualificadas enquanto prioritárias, caso que não atinge aquelas relacionadas à formação em gestão cultural como atesta a 4ª proposta (1.14), na qual se defende a necessidade de “Criar, desenvolver, fortalecer e ampliar as estratégias para a formação e capacitação em gestão cultural de forma permanente e continuada, envolvendo gestores e servidores públicos [...] e privados, [...] dos diversos segmentos” (III CNC, 2013, grifo meu). O teor desta proposta (assim como de outras em número significativo) aponta claramente para a demanda em formar e capacitar os agentes culturais para a gestão cultural sejam estes servidores públicos ou agentes privados. Para perceber a questão da demanda por formação para além das conferências, busquei outra referência importante, o Plano Nacional de Cultura (PNC) 7. Entre seus objetivos constam “qualificar a gestão na área cultural nos setores público e privado” (XI) e “profissionalizar e especializar os agentes e gestores culturais” (XII). Tais objetivos fortalecem o compromisso institucional na capacitação de pessoas para atuarem na área da produção e da política cultural. Dentre as metas do PNC que dialogam com o temário da formação e capacitação, destaca-se a de nº 18: “Aumento em 100% no total de pessoas qualificadas anualmente em cursos, oficinas, fóruns e seminários com conteúdo de gestão cultural, linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura” (2011, p.12, grifo meu)8. Assim, diante do que apontam esses documentos importantes da política de cultura em âmbito nacional, considero que estamos diante de uma meta-necessidade: a principal necessidade da gestão cultural no Brasil é justamente a de formar gestores para exercê-la. 2. PANORAMA DA OFERTA DE FORMAÇÃO SUPERIOR NA ÁREA DE GESTÃO NO BRASIL A oferta de cursos superiores que se relacionam com a formação em gestão cultural no país é pequena. Considerando somente a rede pública, foi possível identificar seis instituições federais de ensino, entre universidades e institutos de tecnologia, que ofertam cursos na área da produção cultural conforme Tabela 1, abaixo. Entre elas, duas se destacam pelo pioneirismo, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Os primeiros cursos implementados na área no Brasil datam de 1995-96 ofertados por estas universidades. Há uma distinção entre os dois cursos; o primeiro, com uma maior ênfase em artes, é lotado no Instituto de Artes e Comunicação Social, sendo vinculado ao Departamento de Artes. O segundo se apresenta enquanto uma formação em comunicação social que, vinculado a Faculdade de Comunicação, oferta a habilitação em Produção em Comunicação e Cultura. Instituído pela Lei nº 12.343/2010; disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/ lei/l12343.htm (acesso: 18/04/2014). 8 Disponível em: http://pnc.culturadigital.br/wp-content/uploads/2013/07/DOCUMENTO_TECNICO_METAS_ PNC.pdf (consultado em 05/12/2015). 7

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Tabela 1: Relação de cursos em Produção Cultural. Legenda – CC: Conceito do Curso. Dados compilados pelo pesquisador.

O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), câmpus Nilópolis, iniciou a oferta da formação de Tecnólogo em Produção Cultural (2003-2005), passando a Curso superior de Tecnologia em Produção Cultural (2006, em extinção) e hoje conta também com um bacharelado (desde 2012). O IFRN no ano de 2012 estruturou o Curso Superior de Tecnologia em Produção Cultural, hoje curso regular do câmpus Natal Cidade Alta, como atesta a Tabela 1, é o curso melhor avaliado pelo Ministério da Educação. Em 2012 foi aberta a primeira turma do Bacharelado em Produção e Política Cultural na Universidade Federal do Pampa, câmpus Jaguarão, no sul do estado do Rio Grande do Sul. Além do destaque para a relação entre política e cultura, o referido curso se distingue dos demais por 862

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estar localizado em um município distante de uma capital (350 km de Porto Alegre) e em região de fronteira (na divisa com o Uruguai, cidade de Rio Branco). A primeira turma de formandos, composta por 23 discentes de diferentes regiões do país, defendeu seus trabalhos de conclusão em dezembro de 2015. Ainda na Unipampa, mas no câmpus São Borja – também região de fronteira, mas com a Argentina – encontra-se o curso de Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas e ênfase em Produção Cultural, bacharelado ofertado desde 2011. Além destes cursos, recentemente a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, câmpus Santo Amaro, inaugurou o Bacharelado Interdisciplinar em Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas que aborda temas da produção e gestão culturais. Pode-se dizer que o contexto de oferta de formação superior na área da produção cultural é de expansão apesar da localização destes estar concentrada em regiões metropolitanas (Rio de Janeiro, Salvador e Natal). A presença já significativa de cursos no interior (Rio Grande do Sul e Bahia), por outro lado, aponta para uma tendência de descentralização importante. Deste levantamento e análise parcial dos cursos, inclusive dos seus projeto-político pedagógicos, atesta-se que o caráter inter e multidisciplinar está presente em cada um. Os temas enfatizados nas formações e até mesmo as habilitações, apesar de distintas em alguns casos, são complementares e contribuem cada um à sua maneira, para a melhor desenvoltura do gestor cultural. Creio que a promoção de um intercâmbio entre os discentes dos diferentes cursos, na modalidade de mobilidade acadêmica, poderia enriquecer a formação dos formandos, preparando-os melhor para a atividade profissional, proporcionando, inclusive, o conhecimento de realidades distintas regionais e locais. O fato de nenhum dos cursos de graduação identificados neste trabalho ser na modalidade semipresencial ou à distância, aponta para a prevalência da modalidade presencial, em período integral. Considerando que o alcance dessa modalidade é relativamente limitado, é possível repensar essa escolha da gestão dos cursos e instituições de ensino envolvidas na tentativa de implementar uma formação superior que facilite o acesso às pessoas que não tem condições de atender aos cursos presenciais. Tal perspectiva parece-me estratégica para ampliar a oferta e alcance dos cursos, mas é desafiadora na medida em que a prática é elemento essencial para a formação dos produtores-gestores e o arcabouço teórico mínimo ou básico, ainda não foi definido, bastando dizer que a área não dispõe de Diretrizes Curriculares. Assim, garantir que a perspectiva prática e aplicação da teoria seja garantida e chegar a um consenso sobre que temas e áreas do conhecimento são basilares na formação do gestor, são tarefas por fazer. 3. O PERFIL DOS GESTORES PÚBLICOS NO BRASIL Recentemente, em novembro do ano passado, foi publicada pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobre o Perfil dos Estados e Municípios Brasileiros,

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com um suplemento específico de cultura. Tendo como ano base 2014, a pesquisa atualizou o panorama da área cultural em especial no que se refere à gestão pública. Desta pesquisa pode-se obter dados específicos acerca do perfil dos gestores públicos dos 5.570 município do país, informações sobre a estrutura dos órgão gestores estaduais e municipais, nível de institucionalização da política nacional de cultura (em especial aquilo que prevê o Sistema Nacional de Cultura, Emenda à Constituição nº 71/2012), entre outras questões. Para este trabalho, dediquei-me a analisar os dados relativos à formação dos gestores, sua escolaridade e área de conhecimento. Os dados brutos, disponibilizados pelo IBGE através de planilhas eletrônicas, foram manipulados a fim de se obter condições de traçar um perfil destes gestores, numa perspectiva de análise quali-quantitativa. Foram considerados menos relevantes os dados de gestores sem formação superior, e, sobre os que a tem, não foi feita distinção entre os níveis, assim, graduação e pós-graduação são tratadas meramente enquanto “formação superior”. A pesquisa do IBGE traz dados referentes às características dos órgãos gestores de cultura nos níveis municipal e estadual. Atribui-se ao órgão gestor a “responsabilidade [...] de formular e implementar uma política a partir da realidade das Unidades da Federação e dos municípios, não apenas em termos de sua vida cultural, mas também levando em consideração a sua realidade socioeconômica” (IBGE, MUNIC 2014, p. 26). Além do papel do órgão gestor, o IBGE reconhece a necessidade da institucionalização destes quando afirma que A existência de instrumentos de gestão, instâncias de participação e de mecanismos de financiamento é fundamental para dinamizar a política e a economia da cultura, bem como potencializar e alavancar o desenvolvimento das atividades artístico-culturais (IBGE, MUNIC 2014, p. 26). No trabalho, abordo somente os dados referentes aos municípios, cruzando aqueles sobre a conformação dos órgãos com os da formação dos gestores. Infelizmente a Munic 2014 não levantou dados sobre as áreas de formação das equipes destes órgãos, concentrando-se apenas nos gestores máximos (secretários, presidentes, diretores, etc., conforme o caso). Assim, foi a partir dessas informações que procurei neste trabalho identificar as áreas de formação dos gestores públicos municipais, na pretensão de verificar quantos têm formação na área cultural e, mais especificamente em gestão, produção, patrimônio e/ou política cultural. A pesquisa do IBGE estabeleceu a classificação dos órgãos quanto a secretaria exclusiva, secretaria em conjunto a outras políticas, órgão da administração indireta (fundações, por exemplo), setor subordinado a outra secretaria e setor subordinado à chefia do executivo9.

Os dados aqui compilados seguiu a classificação do IBGE, salvo na categoria setor subordinado, onde não se fez distinção quanto ao órgão gestor ser um setor subordinado a uma secretaria ou ao executivo, sendo considerado simplesmente como subordinado.

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Gráfico 1: Área de formação dos gestores públicos municipais, sem distinção quanto à natureza do órgão. Fonte: dados compilados pelo pesquisador com base nos dados brutos da Munic 2014, IBGE.

* Foram consideradas as variáveis da formação superior, em nível de graduação ou pós-graduação; por exemplo, psicopedagogos foram contabilizados enquanto formados em Pedagogia, especialistas em história afro-brasileira foram contabilizados na categoria História, e assim por diante. ** A presença do termo cultura, foi usado como critério para a identificação de um sujeito formado na categoria Cultura, independentemente do nível de formação, desde que superior.

O Gráfico 1 demonstra que a diversidade de áreas de formação dos gestores públicos na área cultural no Brasil é expressiva. O universo estudado aponta que dos 5.570 municípios brasileiros, 5.260 têm órgão ou setor que responde pela gestão da política cultural e 310 (5,6%) não dispõem de aparelho em âmbito municipal para tal; 9 (0,16%) não responderam. Dentre os gestores que respondem pela pasta cultura, 1.493 (26,8%) não têm formação superior e 3.758 (67,5%) a têm, seja em nível de graduação ou pós-graduação. Das informações presentes no Gráfico 1, destacam-se as formações em Pedagogia e Letras, com mais de 30% do total se somadas. Também a presença de áreas das ciências naturais, exatas e sociais aplicadas (Administração, Direito, Ciências Biológicas e Matemática), a princípio menos afeitas à área cultural, chamam a atenção (somadas representam mais de 15% do total). Como esses dados não levaram em conta a natureza do órgão (se exclusivo, conjunto, etc.), há situações em que o gestor responde pela área da cultura concomitantemente à outras, como educação, turismo, esporte, etc. Esse fato explica, mesmo que parcialmente, o elevado número de profissionais ligados à área da educação.

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Em comparação aos dados levantados em 200610, “os municípios com secretarias exclusivas passaram de 4,3% (236), em 2006, para 20,4% (1 073), em 2014, os com secretarias em conjunto com outras políticas passaram de 73,8% (4 007), para 57,3% (3 014), no mesmo período” (IBGE, MUNIC 2014, p. 28). Estes dados apontam, por um lado, para uma especialização ou atenção maior para a pasta e de outro, uma perda de espaço, já que de 2006 para cá “houve um declínio no percentual de municípios brasileiros que responderam possuir alguma estrutura em 2014, passando de 97,5% (5.426) para 94,5% (5.260)” (idem). A seguir apresento um gráfico com o panorama geral das áreas de formação, independentemente da estrutura do órgão gestor. O IBGE não faz uma análise aprofundada das áreas de formação dos gestores, mas compreende que “o nível de escolarização dos gestores e dos funcionários públicos estaduais e municipais no Brasil vem melhorando ao longo do tempo, o mesmo também ocorre em relação aos lotados no setor cultural” (2014, p. 36). Reconhece também que essa questão é importante para a qualificação da gestão cultural, pois “produz impactos positivos no planejamento e nos resultados da ação de governo” (idem). A seguir veremos dados que, além da área de formação superior, consideraram a natureza ou estrutura do órgão, situação na qual esse panorama se altera, conforme o caso. A sequência de apresentação dos gráficos vai de acordo à natureza ou estrutura do órgão gestor municipal iniciando daquela que seria a mais adequada, Secretaria Exclusiva (Gráfico 2), seguida de Órgão da Administração Indireta (Gráfico 3), Secretaria em Conjunto à outras políticas (Gráfico 4), e Setor Subordinado (Gráfico 5).

A primeira vez que a Pesquisa com o Perfil dos Municípios Brasileiros trouxe o suplemento específico de cultura, em 2006. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/2006/ (consultado em 15/01/2015). 10

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Gráficos 2 a 5 (da esq. para dir., de cima para baixo): Área de formação dos gestores públicos municipais, por natureza do órgão.

Fonte: dados compilados pelo pesquisador com base nos dados brutos da Munic 2014, IBGE.

Conforme apontam os dados, temos diferentes conjunturas de acordo com a estrutura do órgão gestor. A maior proporção de gestores com formação na área da cultura se encontra nos Órgãos da Administração Indireta, com 6,59%, estando neste caso empatado com as áreas de Arte e Comunicação, atrás apenas de Administração e Direito (ambos com 9,89%). Na outra ponta, com a menor proporção, temos os Setores Subordinados e as Secretaria em Conjunto, nas quais apenas 1,5% do gestores têm formação específica. Nas Secretarias Exclusivas, em comparação às Conjuntas e Subordinados, o percentual de 3 pontos chama a atenção, apontando que, assim como nos Órgãos da Administração Indireta, é maior a especialização dos trabalhadores. Os dados percentuais são importantes para termos uma leitura sobre qual tipo de estrutura tem absorvido mais trabalhadores especializados, mas isoladamente podem desvirtuar a análise. Nesse sentido, é importante avaliar também os números absolutos envolvidos: quantidade de órgãos, pessoal empregado em cada um deles, entre outros. Infelizmente o número de

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municípios com Órgãos da Administração Indireta é ínfimo (119), proporção de 2,3% do total, e o de Secretarias Exclusivas (1073, ou 20,4%), ainda aquém da necessidade. A seguir, na Tabela 2, em complementação aos dados apresentados nos Gráficos 1 a 5, pode-se averiguar os números absolutos do pessoal empregado por tipo de estrutura e área de formação, bem como sua proporção interna ao tipo de órgão e média geral.

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4. DIFERENTES BRASIS: DESAFIOS À FORMAÇÃO DE GESTORES CULTURAIS NO PAÍS CONTINENTAL Dos 5.570 municípios brasileiros, 80,65% têm menos de 30 mil habitantes. Apenas 11% dos municípios tem 50 mil ou mais habitantes e, se elevamos o recorte para 100 mil e 200 mil ou mais, esse percentual cai para 5,19% e 2,5% respectivamente11. Em termos de representação do conjunto da população de pouco mais de 190 milhões de pessoas, o somatório das populações dos municípios na faixa de até 30 mil habitantes, corresponde a 24,46% (ou 46,6 milhões de pessoas). O somatório da população dos municípios de até 50 mil corresponde a 33,55% do total ou 64 milhões, seguido de 45,25% (até 100mil) e 55,78% (até 200 mil). Na outra ponta da questão temos uma concentração populacional nítida se considerarmos que os 15 municípios (0,27%) mais populosos, com 1 milhão de habitantes ou mais, somados tem 21% da população total (cerca de 40 milhões de habitantes). Analisando os dados aqui reunidos, percebemos que os menores municípios em termos populacionais, aqueles de até 30 mil habitantes, representam cerca de um quarto da população total e os de até 50 mil, pouco mais de um terço do total, um contingente significativo. Uma política de formação de gestores deve assim priorizar esses municípios, o que acaba se mostrando um desafio já que estamos falando em 4.492 (até 30 mil) e 4.954 (até 50 mil) localidades diferentes, respectivamente. Diante deste quadro, é imprescindível a utilização de tecnologias de informação e comunicação para aumentar o alcance e efetividade das ações de formação. Cursos semipresenciais, com conteúdos e processos disponibilizados parcialmente em meio digital, parecem uma alternativa. Não encontrei dados objetivos acerca do número de gestores culturais atuando hoje no país, mas é importante que tenhamos um contingente proporcional a, no mínimo, um por município. Isso significa que, de partida, teríamos de ter 5.570 profissionais capacitados e distribuídos por todo o Brasil, sendo obviamente necessário um número maior de gestores nas cidades com maior número de habitantes. Essas questões devem ser aprofundadas a fim de que se estabeleça, por exemplo, um parâmetro mínimo de gestor por habitante como acontece em outras áreas. É claro que isoladamente a questão da dispersão ou adensamento populacional não diz muito a respeito das necessidades da formação em gestão cultural no Brasil. No entanto, devemos considerar a dimensão territorial e a distribuição da população se quisermos ter um contingente de gestores, devidamente capacitados, para que a cultura se consolide enquanto um campo de atuação profissional, gerador de riqueza e renda.

Todos os dados acerca da população brasileira foram obtidos pelo portal do IBGE e tem como base o Censo brasileiro de 2010. Portal do IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm (acesso em 06/12/2015).

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5. CONSIDERAÇÕES: PRÓXIMOS PASSOS Pelos dados aqui reunidos em espécie de aproximação inicial sobre a questão da formação em gestão cultural no Brasil, entende-se que são inúmeros os desafios em direção à construção de uma resposta adequada a essa demanda. Entre as quais, nessas considerações, destaco a oferta ainda pouco significativa de cursos superiores nas áreas correlatas. Uma estimativa da oferta baseada no número de vagas dos cursos identificados, aponta para pouco mais de 350 vagas anuais. Este número, isoladamente, não corresponde ao número de formandos dos cursos, posto que há evasão por diferentes motivos e os dados sobre egressos são de difícil identificação. Nesse sentido, é preciso estipular métodos e desenvolver pesquisas que acompanhem essa questão da formação e gerem indicadores que subsidiem o planejamento da qualificação profissional na área da gestão cultural. Há de se pensar inclusive na descentralização da oferta de formação com polos regionais localizados em municípios do interior e desenvolver cursos em modalidades semipresenciais. Ainda acerca da formação superior, não obstante a necessidade de se estabelecerem as Diretrizes Curriculares Nacionais, bem como a regulamentação da atividade profissional do gestor cultural, se considerarmos toda a legislação atinente à área da produção, gestão e política cultural hoje em vigor, há balizas suficientes para sua consolidação. Também o reconhecimento social, legal e institucional do ofício de gestor cultural é importante. Hoje tramita na Câmara Federal projeto de lei, de nº 5575/201312, que visa regulamentar a profissão do Produtor Cultural, Esportivo e de Ações Sociais, mais um indício do grau crescente de institucionalização do campo da gestão e produção cultural no Brasil. Finalizo assim minha reflexão acerca das necessidades da gestão cultural no Brasil na qual enfatizei a questão da formação e qualificação da força de trabalho na área, suas limitações e desafios. Também foquei meu levantamento a partir do panorama levantado pela MUNIC 2014, e na oferta de cursos em nível de graduação na rede pública federal, defendendo que alguns desafios ainda se apresentam frente à necessidade de consolidação da formação, entre eles o fortalecimento e reconhecimento pelo Estado dos próprios cursos que oferta e a regulamentação da profissão do produtor cultural.

Projeto de autoria do Deputado Giovani Cherini (PDT/RS); disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0FEE6C4FE1446A8740A7B370D0C779E8.proposicoesWeb2?codteor=1088528&filename=PL+5575/2013 (acesso: 06/12/2015). 12

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALABRE, Lia. Profissionalização no campo da gestão pública da cultura nos municípios brasileiros: um quadro contemporâneo. Revista Observatório Itaú Cultural OIC - n. 6, (jul./set. 2008), p. 66-73, São Paulo, SP : Itaú Cultural, 2008. CUNHA, Maria Helena. Gestão Cultural: Profissão em formação. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2005. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/ handle/1843/FAEC-856N9M/1000000598.pdf?sequence=1 (acesso: 15/02/2016). _______. Formação do profissional de cultura: desafios e perspectivas. Políticas Culturais em Revista, 1 (4), p. 95-105, Salvador, BA: UFBA, 2011. IBGE. Portal do IBGE, Censo 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/ populacao/censo2010/default.shtm (acesso: 06/12/2015). _______. Perfil dos Estados e Municípios do Brasil 2014 – suplemento Cultura. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95013.pdf (acesso: 02/02/2016). MINISTÉRIO DA CULTURA. Resultado da Plenária Final da 3ª Conferência Nacional de Cultura. Brasil, 2013. Disponível em: http://cncvirtual.culturadigital.br/wp-content/uploads/sites/6/2013/12/ Propostas_Aprovadas_III-CNC.pdf (consultado em 05/12/2015). _______. Plano Nacional de Cultura. Brasil, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm (acesso: 18/04/2014). RUBIM, Antonio Albino Canelas. Formação em organização da cultura no Brasil. Revista Observatório Itaú Cultural OIC - n. 6, (jul./set. 2008), p. 47-55, São Paulo, SP : Itaú Cultural, 2008. MARTINELL, Alfons. La Gestión Cultural: Singularidad profesional y perspectivas de futuro. Girona/ Espanha: Unesco, 2000. _______. Políticas culturales y gestión cultural: Organum sobre los conceptos clave de la práctica profesional. Girona/Espanha: Documenta Universitaria, 2007.

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POLÍTICAS CULTURALES EN EL MUNICIPIO DE GENERAL PUEYRREDON: UN ANÁLISIS CUANTITATIVO PARA LA ACCIÓN DESDE LA GESTIÓN CULTURAL Gabriela Adriana Costaguta1 RESUMO: El presente trabajo trata de un análisis cuantitativo de ordenanzas y decretos del Honorable Concejo Deliberante del Partido de General Pueyrredon (Pcia de Buenos Aries. Argentina) y persigue el objetivo de analizar y promover el debate y la reflexión las políticas culturales de este cuerpo en los últimos diez años desde la mirada de la gestión cultural. PALAVRAS-CHAVE: Políticas culturales, Cultura, Desarrollo, Gestión cultural.

1. FUNDAMENTACIÓN La concepción de cultura tiene incontables intentos de definiciones. Dentro de ese universo, podemos afirmar que está constituida por un conjunto de saberes, reglas, normas, costumbres, comportamientos adquiridos, creencias, valores y mitos que se transmiten y se recrean de generación en generación. En este sentido, la cultura encierra en si el concepto de identidad entendido como el sentido de pertenencia a un territorio, que constituye una construcción social en constante transformación y, el de diversidad de las culturas en las que las asimilaciones de una cultura a otra proporcionan desarrollo y crecimiento. En el contexto de definiciones y transformación nos encontramos con el enfoque de Yúdice cuando señala que “El recurso de la cultura sustenta la performatividad en cuanto lógica fundamental de la vida social hoy” (Yudice 2002:43). Comprende así a la cultura, como una herramienta que impulsa las estructuras sociales, políticas y económicas. Entendemos además que la globalización ha provocado que las industrias culturales y creativas, atraviesen fronteras de manera instantánea y las políticas en estos términos deben por un lado afirmarse en términos identitarios y en otros abrirse a la pluralidad y la diversidad. Por su parte, el Estado debe redefinir su rol en el campo de las políticas culturales de manera constante para permitir así el desarrollo cultural. 1

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Pero es también trascendental fijar la relación que existe entre la concepción de cultura que se tiene en un determinado territorio, “los modelos de gestión cultural que se lleven adelante, y el modelo de gestión en que se organiza administrativamente la ejecución de la política cultural”. (Mariscal Orozco, 2007: 30-31) Tomemos la definición de García Canclini “Entendemos por políticas culturales el conjunto de intervenciones realizadas por el Estado, las instituciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social” (García Canclini,1987:26). Y la de Teixeira Coelho: “La política cultural constituye una ciencia de la organización de las estructuras culturales y generalmente es entendida como un programa de intervenciones realizadas por el Estado, instituciones civiles, entidades privadas o grupos comunitarios con el objetivo de satisfacer las necesidades culturales de la población y promover el desarrollo de sus representaciones simbólicas” (Coelho, 2009:241). Ambos autores formulan la intervención del Estado como premisa fundamental guiados por la participación de grupos comunitarios. En este sentido realizamos la investigación con la finalidad de reconocer las políticas culturales de orden municipal en el Partido de General Pueyrredon, Provincia de Buenos Aires, Argentina, y si las mismas se encuentran en consonancia con esta transformación, con la apertura a la cooperación nacional e internacional y con las convenciones que protegen el patrimonio cultural inmaterial y material y el desarrollo sostenible. 2. MARCO TEÓRICO Analizar las políticas culturales en el marco del contexto político contemporáneo ofrece una perspectiva de agudas tensiones que han afectado a todo el planeta. Las políticas neoliberales y la globalización han proporcionado la necesidad, por un lado, de una fuerte reafirmación de lo local por el devenir de un proceso de desterritorialización de los flujos sociales, lo que conlleva una pérdida del poder político estatal, y por el otro la generación de estrategias que permiten asumir los procesos de reformas y actualización con las propuestas de organismos internacionales. Ello requiere además una fuerte participación de la ciudadanía en un marco con flujos de información dentro de un paradigma de democracia participativa comprendiendo a la sociedad como diversa, pluriétnica y multicultural. En relación a lo que venimos mencionando, en el año 2005 la UNESCO aprueba en París lo que constituye un hito a nivel mundial en nuestra materia: la “Convención sobre la protección y la promoción de la diversidad de las expresiones culturales” que promulga en su

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articulado que la diversidad cultural es una característica esencial de la humanidad, de la que constituye un patrimonio común y uno de los principales motores del desarrollo sostenible de las comunidades, los pueblos y las naciones. Además se destaca allí la necesidad de incorporar la cultura como elemento estratégico a las políticas de desarrollo nacionales e internacionales, así como la cooperación internacional para el desarrollo. Considera que la cultura adquiere formas diversas a través del tiempo y el espacio y que esta diversidad se manifiesta en la originalidad y la pluralidad de las identidades. Reconoce la importancia de los conocimientos tradicionales como fuente de riqueza inmaterial y material. A diez años de ese acontecimiento y ante la evaluación que realiza la UNESCO en su informe Anheier y Kononykhina (en Unesco, 2015:11) afirman la necesidad de colaboración permanente entre el Estado y la sociedad civil para el diseño de políticas, pero que entre los retos que enfrenta esta la insuficiencia en la capacidad local y nacional de los países, como así también la carencia de financiamiento y de recursos humanos calificados y por último la falta de concientización del vínculo entre la sociedad civil y la Convención. Estos dos acontecimientos son un mojón que apuntala el período de diez años, de 2005 a 2015, que se ha tomado como base para el estudio de este trabajo. Análogamente la calificación de recursos humanos se viene dando desde diferentes frentes, uno de ellos es la profesionalización de la gestión cultural en donde se encuentra inserto un compromiso metodológico y conceptual para contribuir a la formación de políticas culturales “a partir de nuestra práctica pero también con herramientas teóricas y metodológicas que nos permitan construir el campo académico de la gestión cultural” (Mariscal Orozco, 2007: 38) 3. MARCO CONTEXTUAL El Partido de General Pueyrredon se encuentra en la Provincia de Buenos Aires, Argentina. Su cabecera es la ciudad de Mar del Plata que, según el Ente Municipal de Turismo con sede en Mar del Plata, cuenta con una población estable de 650.000 habitantes y el arribo de turistas anuales en un número que supera los 8.000.0002 de personas. Su ubicación geográfica tiene características preferenciales. Una gran franja costera con playas sobre el Océano Atlántico, un cordón frutihorticola que la rodea y una gran zona de lagunas, bosques y sierras que le ofrecen al entorno un paisaje cultural privilegiado. Su economía se basa principalmente en el turismo, la pesca y los tejidos. Además posee una importante planta industrial con una variada cantidad de empresas. Asimismo Mar del Plata, como consecuencia de una capacidad hotelera enorme instalada para el turismo, es la primera ciudad sede de Congresos y Convenciones del interior del país con un registro de más de 200 reuniones anuales. 2

http://www.turismomardelplata.gov.ar/ 874

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Su contexto político tiene en la actualidad la misma raigambre democrática que el resto del país, con un Poder Ejecutivo a cargo de un Intendente y una pluralidad de partidos que forman el Poder Legislativo a través del Concejo Deliberante, quien aprueba sus resoluciones a través de Ordenanzas, ambas autoridades elegidas por elecciones locales y nacionales. El Poder Judicial depende de la Provincia de Buenos Aires. En el contexto temporal que abarca nuestra investigación, según se señalara al final del punto anterior, gobernaban intendentes elegidos por elecciones libres de dos partidos políticos, la Unión Cívica Radical en un período y Acción Marplatense en dos períodos consecutivos, desde el 2007 hasta el 2015, la que de un partido vecinal pasó a integrarse con el partido gobernante a nivel nacional. 4. OBJETIVOS El presente trabajo tiene como objetivo central • Generar un espacio de análisis, reflexión y debate de las políticas culturales. Y como objetivos específicos: • Identificar las políticas culturales de la región. • Redefinir el rol del Estado en la cultura. • Promover el impulso de procesos de participación ciudadana. 5. METODOLOGÍA La presente investigación se basó en el análisis cuantitativo de 333 ordenanzas, decretos y resoluciones comprendidas, entre los años 2005 al 2015, dictadas en el Concejo Deliberante del Municipio. No se incluyó en el listado a las normas emitidas referidas a bibliotecas (barriales, escolares o de discapacidad). Se trata del primer paso de una investigación que continuará y que permitirá la realización de un seguimiento más profundo y exhaustivo de la legislación, ya que los campos de búsqueda y los ejes temáticos comprenden gran vastedad de análisis. Se tomaron criterios de clasificación para sintetizar la información y presentarla con simplicidad expositiva a los fines de una mejor comprensión de las normas relevadas. De esta manera organizamos una clasificación en tres grupos según los siguientes criterios: Patrimonio, Estructura orgánica, promoción y espacio público y Convenios. 5.1. Patrimonio En este eje predominan las ordenanzas en las que se aceptan donaciones de bienes muebles e inmuebles (43,80%) Y le siguen las de “dar de baja” bienes muebles (33,70%) o donar a

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las Asociaciones de Fomento bienes en desuso del Municipio (6,7%). Todo lo cual representa un total del 84,23% de las ordenanzas relevadas. En cuanto a la preservación del patrimonio y la declaración de patrimonio histórico representa solo un 6,6%. Sobre patrimonio inmaterial en el año 2010 se aprobó la ordenanza que permite crear “El Archivo de la palabra hablada” y en el 2011 otra que ordena desarrollar el “Programa de Protección y Difusión del Patrimonio Intangible del Partido General Pueyrredon” esto representa el 2, 2% del total en el mismo período. La declaración de Patrimonio Cultural y Turístico a las actividades que realizan asociaciones artísticas de carnaval, murgas, comparsas, y otras es del año 2015 y aún no se encuentra vigente.

Fuente: Digesto del Honorable Concejo Deliberante. Elaboración propia.

5.2. Estructura, promoción y espacio público Los reconocimientos a personalidades destacadas de la cultura, a través de la colocación de placas recordativas, la designación de “vecino destacado”, “visitante notable”, la imposición de nombres a salas de teatros o espacios urbanos, distinción al “mérito ciudadano”, declaración de “interés municipal” significan un 27%, el reconocimiento de pago a diferentes actores, músicos y contrataciones el 13,73%, y los premios a la producción artística y sus respectivos reglamentos, el 8,58%. Todo lo cual representa el 49,31% del total. Para la promoción de actividades, permisos para la utilización del espacio público y de inmuebles del Municipio para ferias de artesanías, manualidades y diseño, del libro, de y conciertos el 40%.

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Para la estructura orgánica el 6, 43%, incluyendo en el año 2015 un concurso interno de oposición y antecedentes por única vez para cubrir cargos en la Escuela Municipal de Arte Dramático y la Escuela Municipal de Danza entre otras, En cuanto a Industrias Culturales se crea la División Industrias Culturales en el 2013 y sobre Tics (0, 85%) las ordenanzas son de los años 2014 y 2015 cercanas al final de un mandato. Sobre el Teatro Independiente una ordenanza del año 2009 describe la designación de salas o espacios teatrales independientes, pero en el año 2015 recién se define que trata la “actividad teatral independiente”. También se instituye en el ámbito del Partido de General Pueyrredon el Festival de Cine Marplatense con carácter permanente y se crea la Plataforma Municipal de Música en el ámbito, que incluirá archivos en formato MP3 o similares de artistas locales, creándose por decreto la Dirección de Programas Socio-Culturales y la División Formación y Producción Artística Social y la División Acción Cultural Comunitaria dependientes de la Dirección de Programas Socio-Culturales de la Secretaria de Cultura, aprobando sus misiones y funciones, y que aún no está publicado, todos ellos del año 2015.

Fuente: Digesto del Honorable Concejo Deliberante. Elaboración propia.

5.3. Convenios y Cooperación Convenios varios (mutuales y prestadores) un 90,9% y para cooperación internacional 9,09%, solamente una norma que autoriza al Departamento Ejecutivo a realizar las gestiones necesarias ante el Banco Interamericano de Desarrollo para la obtención de fondos destinados a la preservación del patrimonio histórico de la ciudad de Mar del Plata y especialmente, a la remodelación y puesta en valor del espacio ocupado en el año 2005 por la Estación Terminal de Ómnibus.

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Fuente: Digesto del Honorable Concejo Deliberante. Elaboración propia.

Otra lectura que nos interesó verificar en esta investigación es en relación a los años de elecciones municipales. Durante el período 2005-2015 hubieron tres elecciones (años 2007, 2011 y 2015) Las ordenanzas referidas a cultura ascendieron exponencialmente en esos años representando el 34,82%. Año 2007 2011 2015

Porcentaje 6.30% 12,91% 15,61%

Fuente: Digesto del Honorable Concejo Deliberante. Elaboración propia.

6. CONCLUSIONES De la presente investigación resulta que, en abierta contradicción con la teoría expuesta al comienzo, existe una deficiente capacidad del gobierno para ampliar su concepción de las políticas culturales en el Partido de General Pueyrredon, y que las normas emitidas en el ámbito comunal tienen un espectro limitado al apoyo a las artes y al mantenimiento del patrimonio tangible reduciendo la cultura en esos términos no constatando una apertura a políticas transversales ni al desarrollo de la diversidad cultural. Y no se trata simplemente de ausencia de presupuesto, en muchos casos, como por ejemplo la adecuación de edificios públicos en desuso para

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desarrollo de la actividad cultural, la anomia normativa es alarmante y denuncia un desapego de grandes proporciones por el ejercicio de actividades en tal sentido. El resultado de este análisis afirma la necesidad de proporcionar nuevos enfoques para la realización de políticas culturales que impliquen no solo la diversificación de la legislación sino también la compilación, el seguimiento y la evaluación de impacto previo de las ordenanzas y el directo beneficio que operaría a favor de la cultura y la identidad del poblador, así como la integración de la actividad en los marcos de desarrollo sostenible y la apertura a la cooperación nacional e internacional. O sea, incorporar aunque sea de soslayo el espíritu dogmático de la cátedra expuesto al comienzo de este trabajo. Este también demuestra que en los años de elecciones municipales y con una apariencia más bien propagandística, se incrementan los reconocimientos, la creación de bandas, coros, o promoción de actividades, así como el pago de servicios a diferentes actores culturales. El hecho resulta una demostración demagógica ya que continúan ignoradas las categorías de patrimonio intangible, tics, industrias culturales y creativas, turismo cultural, recursos culturales, y cooperación. Entendemos que recién en esa época quienes impulsan estas acciones recuerdan de una manera casi alegórica que la política cultural es un espacio de intervención crucial referido a la idea de cultura y poder, pero utilizando el concepto como aporte a su propio sostenimiento político más que al capital simbólico, a la participación ciudadana y al desarrollo sostenible. Además, en términos de participación, sigue siendo una convalidación de acciones ya encaminadas más que de intervención original y efectiva en la sociedad civil u organizaciones del tercer sector. Resultan también mínimas las medidas que se encaminaran a la protección y promoción de la diversidad de las expresiones culturales en el territorio del Partido, solo se otorgó en el año 2009 una “Distinción al Mérito Ciudadano” a dos hermanos que a través de un programa de televisión difundían la práctica del surf y otras actividades de entretenimiento. Es evidente que son necesarios otros enfoques metodológicos y otras propuestas políticas para el diseño de políticas culturales que involucren e incorporen a los hacedores, creadores, y profesionales preparados en la temática. Es decir una transformación de las estructuras para que las políticas nos sean solo un mero maquillaje de sistemas patrimonialistas que incorporan en mínimos casos en su argumentación palabras como consenso, participación ciudadana y diversidad sin ejecutarlas en la realidad y menos aún ocuparse de conceptos tales como calidad de vida en el espacio público, fortalecimiento del tejido social, o del “buen vivir”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Z. “La cultura en el mundo de la modernidad líquida”. Fondo de Cultura 2013. 1° Edición. Buenos Aires. (2013) COELHO, T. “Diccionario crítica de política cultural. Cultura e imaginário”. Editorial Gedisa. Barcelona. España. (2009) CORAGGIO, J.L. “Las políticas públicas participativas: ¿obstáculo o requisitopara el desarrollo local?” En: Rofman, A. y Villar, A. (2006). Desarrollo local: unarevisión crítica del debate. Espacio Editorial, Buenos Aires. Pp 1-1(2003): GARCIA CANCLINI, N “Políticas culturales en América Latina. Cultura y sociedad”. Colección Enlace. Grijalbo. Buenos Aires. (1987) LAHERA, E.P. “Política y Políticas públicas”. CEPAL. Santiago de Chile. Chile. (2004) MARISCAL OROZCO, J. L. “Políticas culturales. Una revisión desde la gestión cultural”. Universidad de Guadalajara. Sistema de Universidad Virtual. Guadalajara. México. (2007) MUSTAFÁ, A. “Desarrollo y cooperación cultural” En: Mustafá, A. (compilador) Cooperación Cultural Internacional: problemas, temas y desafíos. Buenos Aires, CICCUS, pp.67-79) (2007) NIVON BOLAN, E. “Las políticas culturales en América Latina en el contexto de la modernidad”. En Hegemonía cultural y políticas de la diferencia. Conferencia presentada al Grupo de trabajo de CLACSO Cultura y Poder “Políticas de la diversidad”. México,UAM-Casa Galván (2011) OCHOA GAUTIER, A.M. “Políticas culturales, academia y sociedad”. En, Daniel Mato (Compilador) Estudios Latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales en tiempos de globalización (Colección Programa Grupos de Trabajo) 221 P. Argentina: CLACSO. (2002) UNESCO “Re I pensar las políticas culturales. Diez años de promoción de la diversidad de las expresiones culturales para el desarrollo” UNESCO. (2015) VICARIO LEAL, F. “Reflexiones en torno a la cooperación cultural”. Cultiva Libros. Madrid, (2012) YUDICE, G. “El Recurso de la Cultura. Usos de la cultura en la era global”. Gedisa Editorial. Barcelona España. (2002)

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O MODELO DE GOVERNANÇA PÚBLICA E AS POLÍTICAS CULTURAIS Gabriela Maria Carvalho Feijó1 RESUMO: A presente pesquisa se insere no campo de administração pública, observa os arranjos institucionais empregados pelo Ministério da Cultura (MinC) brasileiro, especificamente estuda dois programas, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC), sendo que ambos recebem recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Sendo assim, procurou-se analisar tais arranjos frente à ótica de Governança Pública, que explica o atual formato estrutural que trouxe um novo desenho institucional para as políticas culturais, que tem por objetivo a descentralização por meio da municipalização, tendo em vista uma gestão compartilhada entre os entes federados, com maior envolvimento e controle da sociedade civil. Dessa forma, foi realizada uma pesquisa qualitativa onde as informações foram coletadas por meio de análise bibliográfica e documental. PALAVRAS-CHAVE: Ministério da Cultura, Governança Pública, Políticas Culturais

1. INTRODUÇÃO O presente estudo se insere no campo de administração pública e estuda os arranjos institucionais empregados pelo Ministério da Cultura brasileiro para implementar suas políticas culturais. Procura-se aqui analisar tais arranjos frente à ótica de governança pública dentro do processo de políticas públicas. William Jenkins (1978) compreende políticas públicas como um conjunto de decisões que se inter-relacionam e são tomadas por determinados atores, que selecionam os objetivos e meios para alcançá-los tendo em vista uma determinada situação, na qual essas decisões devem estar de acordo com a capacidade de implementação desses atores. Aqui fica clara a existência de múltiplos tomadores de decisão, a importância de atores externos no processo decisório e a orientação da tomada de decisão tendo em vista o cumprimento de metas. Podemos auferir das colocações acima que as políticas públicas fazem parte de um fenômeno complexo que consiste em numerosas decisões tomadas por diversos indivíduos e organizações. Englobam, também, o conjunto de escolhas potenciais ou escolhas não feitas, indo além da esfera legislativa. 1

Mestranda em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo. ([email protected])

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Dessa forma, é possível afirmar que determinadas políticas públicas culturais operam de modo normativo, isto é, são implementadas por força de Lei, ocorrem primeiramente na esfera federal para então atuar nos governos subnacionais, de forma impositiva. A questão cultural foi enquadrada nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal (CF), que instauram o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC). Ao introduzir cultura na CF a questão de acesso e diversificação cultural entra para a agenda formal, e consequentemente para as agendas locais. Surge então um processo de modernização do Estado nacional que exige novos padrões estruturais (SOUZA, 2004). A motivação por trás desse estudo se deu justamente pelo redesenho institucional das políticas de cultura, no caso o SNC, que atrela a distribuição dos recursos do Fundo Nacional de Cultura (FNC) aos entes federados à adesão do sistema e suas demandas específicas, realizados por gestão compartilhada entre governo e sociedade civil. Logo, o presente estudo busca analisar as políticas culturais sob a luz da teoria de Políticas Públicas, tendo por base o modelo de Governança Pública. O diálogo proposto aqui se dá de modo descritivo, caracterizando as políticas implementadas e descrevendo os programas abordados, SNC e PNC, bem como sua forma de financiamento, FNC, para então analisar como as políticas culturais utilizam o modelo de Governança Pública para desenvolver seu processo de implementação. Dessa forma, foi realizada uma pesquisa qualitativa onde as informações foram coletadas por meio de análise bibliográfica e documental. Instrumentos de pesquisa que trouxeram os subsídios necessários para a interpretação e sintetização das informações. Sendo assim, este estudo tem por objetivo identificar o atual padrão estrutural das políticas culturais brasileiras, apontando as diferenças de atuação nas esferas federal e local, buscando assim contribuir com o estudo de Governança Pública. Como objetos de estudo serão abordados o SNC, instrumento de cultura e ponte para o PNC, política norteadora com estratégias, metas e ações definidas, e o FNC, fundo de financiamento para a cultura. Procurou-se responder a seguinte questão: Sob a vertente do modelo de Governança Pública, como se dá o arranjo institucional das políticas públicas de cultura? Buscando contribuir para a literatura de políticas culturais, procurou-se responder esse questionamento e explicar esses novos padrões estruturais. Logo a seção a seguir procura trazer os subsídios teóricos para a análise do modelo de Governança frente aos programas culturais. 2. REFERENCIAL TEÓRICO A idéia de Governança ganha destaque em estudos de políticas públicas, apesar de não haver um consenso sobre sua definição, podendo variar de acordo com o contexto em que é

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empregado. O termo está presente em diversas áreas das ciências sociais, como relações internacionais, ciências políticas e administração. Na literatura de administração pública o termo surge na década de 90 e envolve uma abordagem do modelo de administração pública focada em gestão participativa, mercados e competição. Esse modelo de governança seria capaz de melhor nortear o processo de políticas públicas, isto é, de produzir bens e ofertar serviços públicos. A discussão sobre governança também envolve a necessidade de repensar a lógica de interação entre Estado e sociedade, sendo assim, governança consiste na capacidade do governo de prestação de serviços. (CAPELLA, 2008). Apesar dos diferentes conceitos esse estudo entende o conceito de governança como um modelo horizontal de relação entre atores públicos e privados no processo de elaboração de políticas públicas (KOOIMAN,1993; RICHARDS e SMITH, 2002, apud SECHI, 2009). O modelo de Governança Pública, mais desenvolvido na Europa, opera num sistema aberto, isto é, recebem insumos do ambiente, processam e desenvolvem para o ambiente produtos e serviços acabados. Surge em modelos pós-burocráticos, após crises e reformas do Estado, e se desenvolve em ambientes democráticos e participativos. Isso demonstra uma atuação menos rígida do Estado e uma formulação mais participativa que técnica no processo decisório. Sechi (2009) aponta três impulsionadores do modelo de Governança Pública: o primeiro consiste na “crescente complexidade, dinâmica e diversidade de nossas sociedades coloca os sistemas de governo sob novos desafios e que novas concepções de governança são necessárias” (KOOIMAN, 1993, p. 6. Apud SECHI, 2009); O segundo impulsionador refere-se à inclusão de valores neoliberais e o chamado esvaziamento do Estado, onde se contesta a capacidade do Estado em resolver problemas coletivos; O terceiro abrange a Governança pública como parte do modelo de Administração Pública Gerencial, New Public Management, focando no desempenho e tratamento dos problemas, ou ainda sendo considerada uma de suas vertentes ou um desdobramento desse modelo, “há alguma semelhança entre as duas perspectivas e parece claro que o recente interesse em governança, em parte, tem sido alavancado pela crescente popularidade da administração pública gerencial e a idéia de formas genéricas de controle social” (PIERRE, PETERS, 2000, p. 65. apud SECHI, 2009). Vale ressaltar ainda que a governabilidade não está associada à capacidade de governança: Um governo pode ter governabilidade, na medida em que seus dirigentes contem com os necessários apoios políticos para governar, e, no entanto, pode governar mal por lhe faltar a capacidade da governança. Existe governança em um Estado quando seu governo tem as condições financeiras e administrativas para transformar em realidade as decisões que toma (BRESSER PEREIRA, 1998). O objetivo de estudar a capacidade estatal é para entender porque algumas promessas de melhor governanças são bem sucedidas enquanto outras permanecem inalcançadas. Para

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Fukuyama (2013) esse processo de governança consiste na habilidade governamental de fazer e implementar regras, e entregar serviços seja uma democracia ou não. Essa visão mais pluralista do Estado permite uma inclusão maior e participação de outros atores, que também farão parte do modelo de Governança Pública, em vista de formular as políticas públicas e aumentar a participação da sociedade na gestão, que deixa de ser apenas receptora de serviços. É possível observar o modelo de Governança empregado no processo de formulação e implementação dos programas culturais, como o SNC e o PNC, que operam por gestão compartilhada entre governo e sociedade civil, envolvendo assim outros atores no processo decisório. Para Barbalho (2005, p 8) uma política cultural abrange um conjunto, mais ou menos, “coerente de princípios (conceitos e diretrizes), objetivos (onde se quer chegar), estratégias (como alcançar os objetivos projetados), os meios necessários e as ações a serem realizadas (os programas e projetos concretos)”. Frisa ainda que é necessário haver uma lógica entre as partes desse conjunto, essa definição vai de encontro à própria conceituação de políticas públicas. Em 2005, a questão cultural volta a ser foco de discussão normativa no Brasil e passa a ser mais bem regulamentada na Constituição Federal, alterando os artigos 215 e 216 por Emendas Constitucionais, que institui o Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura, ambos realizados por gestão compartilhada entre governo e sociedade civil, garantindo assim uma melhor regulamentação do campo. Este tipo de medida coloca as políticas culturais brasileiras no rol das políticas sociais, visando a ampliação do acesso e da diversidade, e consequentemente opera de acordo com o tipo de política redistributiva, com base em políticas regulatórias. Partindo dessa orientação redistributiva para as políticas culturais brasileiras o presente estudo irá contextualizar os programas desenvolvidos pelo governo federal e seu processo de implementação no território nacional. Para tanto, a próxima seção procura contextualizar as políticas culturais, aproximando assim essas políticas do modelo de Governança pública, aqui estudado. 3. CONTEXTUALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS A Lei Federal de Incentivo à Cultura – Lei Rouanet – é o principal instrumento para a instituição de políticas públicas para a cultura nacional e tem por finalidade captar e canalizar recursos para o setor cultural. É operada por três mecanismos de financiamento: Fundo Nacional da Cultura (FNC), Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e Incentivo a projetos culturais (Mecenato). No entanto, esses mecanismos não operam da forma planejada. O que vemos é uma grande ênfase ao mecenato, enquanto o FNC e o Ficart não possuem atrativo tributário suficiente para garantirem seu êxito, sendo que o Ficart não chegou a sair do papel.

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Vale ressaltar que o presente estudo não tem por objetivo analisar o processo de financiamento dessas políticas, todavia, utilizou-se aqui do mecanismo do Fundo Nacional de Cultura para explicar os arranjos institucionais adotados para a implementação das políticas culturais, uma vez que este instrumento é responsável pelo repasse de recursos. 3.1. Fundo Nacional de Cultura (FNC) Atualmente, o governo federal utiliza o FNC para implantar seus programas culturais. O fundo possui duas formas operacionais de apoio aos projetos: a primeira é a disponibilização de verba a fundo perdido para pessoas físicas e para entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos. A segunda, a efetivação de empréstimos reembolsáveis para pessoas físicas ou entidades sem fins lucrativos (OLIVIERI, 2004, p. 103). Os apoios são celebrados por meio de convênios, que serão publicados no Diário Oficial da União (DOU) após análise jurídica e aprovação do projeto, sendo que os proponentes podem ser de instituições públicas ou de instituições privadas sem fins lucrativos, o que gera uma certa concorrência entre as esferas pública e privada, ocorrendo também no mecenato, gerando certo desconforto entre as partes que disputam o mesmo recurso federal. O Ministério da Cultura (MinC) defende a importância da cultura para o desenvolvimento do país e busca enfrentar os principais desafios para a cultura, entre eles a necessidade de assegurar a continuidade das políticas públicas culturais em todas as esferas de governo, contando ainda com a participação e controle social, e também, proporcionar estruturas organizacionais e recursos humanos e financeiros. Dessa forma, utiliza-se de instrumentos como o Sistema Nacional de Cultura e do Plano Nacional de Cultura para alcançar esses objetivos, mostrando assim a intenção de articulação entre a esfera nacional e a local, tendo em vista medidas descentralizadoras para a implementação dessas políticas, atreladas ao repasse do fundo nacional. 3.2. Sistema Nacional de Cultura (SNC) A resposta encontrada para solucionar esses desafios foi o Sistema Nacional de Cultura (SNC), criado em 2005 pelo Decreto Nº 5.520, que conta com uma gestão articulada e compartilhada entre Estado e Sociedade, abrangendo todos os entes federados. De acordo com o MinC, o SNC “é um processo de gestão e promoção conjunta das políticas públicas de cultura”. Organizado de modo colaborativo entre “os entes federados (União, estados e municípios) e a sociedade civil de forma democrática e participativa”. O processo de adesão ao SNC ocorre de forma voluntária e se dá através da assinatura do Acordo de Cooperação Federativa, que define os compromissos firmados entre as partes para

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a construção do SNC. Entre eles temos a criação das seguintes estruturas por parte dos entes federados: Órgãos Gestores da Cultura; Conselhos de Política Cultural; Conferências de Cultura; Planos de Cultura; Sistemas de Financiamento à Cultura; Sistemas Setoriais de Cultura (quando pertinente); Comissões Intergestores Tripartite e Bipartites; Sistemas de Informações e Indicadores Culturais; Programa Nacional de Formação na Área da Cultura. Esses elementos devem ser implementados em âmbito federal, estadual e municipal. O SNC foi regulamentado pela Emenda Constitucional n° 71 de 2012 que acrescenta o artigo 216-A a Constituição Federal2, fazendo com que o acesso à cultura seja um direito do cidadão. Esse instrumento de gestão compartilhada de políticas públicas de cultura tem por objetivo: Formular e implantar políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil, promovendo o desenvolvimento – humano, social e econômico – com pleno exercício dos direitos culturais e acesso aos bens e serviços culturais (MINC, 2012b, p. 61). Atualmente, a implementação do sistema vem acontecendo por meio de assinatura do acordo de cooperação, buscando assim o desenvolvimento do SNC entre as partes. É função do Ministério da Cultura – órgão coordenador do SNC – fomentar o processo de adesão3 ao sistema e acompanhar sua implantação. O MinC aponta ainda algumas questões administrativas que reverberam no campo cultural: Esses desafios não são fáceis de serem superados. E essa concepção de gestão se confronta com a cultura política tradicional, que é da descontinuidade administrativa com as mudanças de governo; da competição intra e intergovernos; e da resistência política à institucionalização da participação social, apesar de assegurada na Constituição (MINC, 2011, p.14). O SNC ainda caminha para uma implementação com maior foco de planejamento e continuidade administrativa, uma vez que atualmente apenas 2022 municípios fazem parte desse programa, correspondendo a apenas 36,3% dos municípios brasileiros, apresentando assim uma queda de adesão ao Acordo de Cooperação, que contava com 2327 municípios em 2014. Mostrando assim a dificuldade de continuidade administrativa apresentada no campo cultural. Tentando sanar essa dificuldade de planejamento e continuidade, o MinC atrela ao SNC outro programa cultural, o Plano Nacional de Cultura (PNC) formulado por fóruns, consultas públicas e Conferências Nacionais de Cultura (CNCs), que buscam viabilizar a participação e o “Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais” (CF/88). 3 Atualmente o SNC conta com a adesão de todos os estados e de 2022 municípios, operando de forma pactuada e compartilhada entre governo e sociedade civil. (Dados obtidos pelo Ministério da Cultura. Atualizado em 13/07/2015). 2

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controle da sociedade civil no processo de formulação das políticas públicas culturais. O PNC é apoiado por lei específica, Lei Nº 12.343/2010 e amparado pelo §3º do artigo 215 da Constituição Federal4, sob a supervisão do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). 3.3. Plano Nacional de Cultura (PNC) O PNC define as diretrizes para os próximos 10 anos para a área cultural, e estará vigente até 2020. Para aderir ao PNC as partes interessadas devem primeiramente aderir ao SNC, por adesão voluntária, e qualquer ente federado pode solicitar sua inclusão ao sistema, por meio do Acordo de Cooperação Federativa, já citado. Atualmente o plano é composto de 36 estratégias, 275 ações e 53 metas. No entanto, ao aderir ao SNC o ente está aderindo também ao PNC, pois uma das exigências é a elaboração de um plano de cultura, também de 10 anos, com diretrizes, estratégicas e metas para aquele território. Dessa forma, as partes ingressantes terão acesso aos recursos federais para a cultura, bem como assistência técnica para elaborar o plano. Os estados e os municípios que aderirem ao SNC passam a contribuir para o alcance das metas do PNC, bem como serão incluídos no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), “que tem por finalidade integrar os cadastros culturais e os indicadores a serem coletados pelos municípios, os estados e o Governo Federal, para gerar informações e estatísticas da realidade cultural brasileira” (MINC, 2011, p. 49). Com a implantação do PNC a cultura passa a integrar a agenda dos municípios, estados, Governo Federal e sociedade civil, para tanto o alcance das metas propostas depende de todas as partes integrantes cooperando para atingir os objetivos propostos. Diante do exposto a presente seção procurou apresentar brevemente os programas desenvolvidos para a cultura e sua interação com os entes federados, sendo assim a próxima seção procura aprofundar esse estudo ao aproximar esses programas do modelo de Governança Pública, que traz maiores subsídio para compreender a forma como estes programas são desenvolvidos e implementados.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (...)  § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I -  defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II -  produção, promoção e difusão de bens culturais; III -  formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV -  democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional. 4

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4. ANÁLISE DOS RESULTADOS: O MODELO DE GOVERNANÇA PÚBLICA E AS POLÍTICAS CULTURAIS Nesse novo contexto de descentralização sobressaltam-se os mecanismos horizontais de cooperação, operados por redes que alocam e regulam recursos coletivos por meio da sociedade e outros níveis de governo, sendo que a autoridade e responsabilidade não são mais centradas no Estado e nem repassadas para o setor privado. Sechi (2009) aponta que “essa abordagem relacional e o resgate das redes/comunidades/sociedades como estruturas de construção de políticas públicas, é a grande novidade proposta pelos teóricos da Governança Pública”. Dentro dessa lógica o Estado passa ter de lidar com uma série de redes interorganizacionais, A teoria das redes pretende integrar o mundo das técnicas e o mundo dos agentes. Uma rede é “uma totalidade aberta capaz de crescer em todos os lados e direções, sendo seu único elemento constitutivo o nó” (MORAES, 2000), ou seja, a rede opera em prol da resolução de um problema comum. O Estado permite um maior envolvimento de outros atores no processo de políticas públicas disponibilizando plataformas organizacionais, mecanismos de democracia deliberativas e redes de políticas públicas, como demonstra a proposta do MinC com a implantação de fóruns participativos, consultas públicas e Conferências Nacionais de Cultura. Essa coordenação dos diversos atores envolvidos no processo de políticas públicas é marcada pelas parcerias público-privadas (PPPs) que consistem na “cooperação entre atores públicos e privados de caráter temporário no qual os atores desenvolvem produtos mutuamente e/ ou serviços e onde riscos, custos e benefícios são compartilhados” (KLIJN e TEISMAN, 2003, p. 137, apud SECHI, 2009). Conforme figura explicativa abaixo, a atual construção do desenho das políticas de cultura atrela a distribuição dos recursos, oriundos do FNC, ao processo de adesão voluntária dos entes federados, ao SNC e ao PNC, que por sua vez devem atender exigências como a criação de órgãos gestores responsáveis, planos decenais territoriais, fundos de cultura, entre outros, com auxilio da sociedade civil. Esses programas trouxeram um novo desenho institucional para as políticas públicas culturais que tem por objetivo a descentralização por meio da municipalização, tendo em vista uma gestão compartilhada entre os entes federados, com maior envolvimento e controle da sociedade civil. Todavia, isso não implicou na transferência de capacidade decisória para os estados e municípios, mas sim na delegação de responsabilidade (SOUZA, 2004) sobre a implementação das políticas culturais territoriais. De acordo com a figura abaixo é possível observar que o repasse de recursos federais está atrelado ao ato de adesão aos programas federais, que ocorre de forma voluntária. A implementação desses programas culturais refletem uma maior necessidade de interação entre os entres federados, independente de suas capacidades estatais, que podem variar de acordo com cada estado e município.

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Figura 1: Contextualização e articulação dos programas culturais

Fonte: Figura elaborada pela autora com base em informações disponíveis pelo MinC.

Ao aderir o SNC, o município ou estado, precisa atender as demandas do programa ao criar órgãos gestores de cultura, conselhos, conferências, bem como precisa elaborar um plano de cultura, o que resulta diretamente à adesão do PNC, fazendo com o que o ente federado passe a incorporar o processo de planejamento para o campo cultural, sendo que o repasse de recursos pelo FNC só ocorre frente à adesão aos programas. Estes novos arranjos institucionais foram criados em 2005 e impulsionados em 2010, sendo relativamente recentes. O que se identifica nesse processo é que há uma delegação de responsabilidade para os territórios sem de fato transferir o poder decisório, uma vez que o programa já está estabelecido e vigente. Apontando assim a adoção de um modelo de Governança pública através de políticas descentralizadoras, que desenvolvem as políticas dentro do território impulsionadas pelos programas federais. 889

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A atuação do Estado no modelo de Governança não possui um consenso entre os estudiosos do campo. Alguns enxergam uma diminuição da ação estatal no processo de políticas públicas, pois passam a envolver também atores não estatais nesse processo de elaboração, aqui não teria um ator que se destacasse durante esse processo, mostrando assim uma horizontalidade desse sistema. Todavia, uma outra vertente defende que o Estado mantém seu papel de liderança durante o processo de políticas públicas, pois ao invés de focar-se no processo de elaboração e implementação o Estado voltaria sua atenção para a coordenação e controle, ou seja, há uma descentralização da prestação de serviços para outros atores, mas há um aumento do controle do Estado, que agora passa a atender um ambiente de maior complexidade e com maiores demandas sociais. E é nessa segunda versão de participação estatal que se enxerga o governo federal no processo de implementação de políticas culturais. Diante do exposto é possível assegurar que o Estado mantém seu papel de liderança durante o processo de políticas públicas, pois ao invés de focar-se no processo de elaboração e implementação o Estado voltaria sua atenção para a coordenação e controle, ou seja, há uma descentralização da prestação de serviços para outros atores, governos locais, mas há um aumento do controle do Estado, que agora passa a atender um ambiente de maior complexidade e com maiores demandas sociais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O modelo de Governança Pública apesar de ganhar espaço no processo de implementação de políticas públicas apresenta certa contradição, pois como modelo hierárquico pode dar espaço às questões participativas? O presente estudo não procurou trazer uma resposta a essa questão, mas sim demonstrar como o processo de implementação de políticas culturais se encaixa à Teoria de Políticas Públicas, sob a ótica de Governança Pública. Inicialmente mostrou-se a associação das políticas culturais às políticas sociais, mostrando assim seu caráter redistributivo. Essa tipificação é importante uma vez que ajuda a entender a lógica governamental para essas políticas e conseqüentemente sua reação na sociedade. Posteriormente foram apresentados os programas culturais, o Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional de Cultura, ambos operados por meio indutivos, com base nos recursos do Fundo Nacional de Cultura. Ao executar o processo de indução dos programas federais, no caso o Sistema Nacional de Cultura, não se pensa numa lógica linear que considere as desigualdades econômicas e sociais municipais, o que resulta na existência de capacidades administrativas diferenciadas (ABRUCIO apud GRIN, 2014). Com uma abordagem mais política, percebe-se certa autonomia estatal e um cuidado maior com suas capacidades, em busca de um Estado desenvolvimentista com foco no bem-estar social. Souza (2004) afirma que essa nova governança local que descentraliza ou municipa-

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liza as políticas sociais universais não implica na transferência de capacidade decisória para os governos locais, mas sim na delegação de responsabilidade de implementação, levantando ainda a dificuldade de alguns municípios para implementar as políticas propostas. Dessa forma faz-se importante atrelar o modelo de governança às capacidades estatais, que vão variar de acordo com o ente envolvido, sendo necessário um próximo estudo para desenvolver as necessidades de capacidades locais nos entes federados. Acredita-se que é necessário o entrelaçamento das capacidades através de arranjos institucionais que permitem a implantação de processos de decisão, execução e controle. Sendo assim, essa forte demanda pelo processo de modernização do Estado nacional que exige novos padrões estruturais por parte dos municípios e estados faz com que os entes busquem ampliação de suas capacidades estatais e apliquem o modelo de Governança Pública para atender essa nova demanda, por meio de uma gestão compartilhada. De um modo geral a Governça Pública acompanha o dinâmico processo de empoderamento da sociedade e permite sua ação no processo de políticas públicas através do mecanismo de democracia deliberativa. O próprio envolvimento estatal não é algo consensual podendo ser observado uma descentralização no processo de formulação e implementação, e um aumento do controle e coordenação, como foi possível observar nas políticas culturais. Todavia, o que é possível observar é um entendimento de Governança Pública como algo que vai além do Estado em uma abordagem relacional com atores não estatais, regidos por redes interorganizacionais em prol de um problema comum, nesse caso, a ampliação e a diversificação da cultura.

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SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. 2006. Disponível em:. Acesso em 15 de julho de 2015. SOUZA, Celina. Governos locais e gestão de políticas sociais universais. São Paulo Perspec. [online]. 2004, vol.18, n.2, pp. 27-41. Disponível em: . Acesso em 13 de junho de 2015.

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O LUGAR DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS INTERMUNICIPAIS NA CONSTRUÇÃO DA REDE INTERFEDERATIVA DE CULTURA Gabriela Martins Durães Brandão1 Cícero Nogueira Marra2 RESUMO: Os Consórcios Públicos Intermunicipais (CPI) vêm se consolidando como um instrumento importante para o ganho de escala nas ações municipais e para o desenvolvimento regional cooperativo. Mesmo assim, pouco se sabe sobre o potencial desse instrumento para a coordenação de políticas públicas, sobretudo na área da cultura. Nesse sentido, este estudo expõe algumas dificuldades e avanços na relação cooperativa entre municípios e aponta oportunidades para o aproveitamento dos consórcios na construção de uma rede interfederativa e na coordenação do Plano Nacional de Cultura. PALAVRAS-CHAVE: Consórcios Públicos, Plano Nacional de Cultura, Federalismo, Municípios.

1. INTRODUÇÃO Os consórcios públicos intermunicipais (CPIs) são organizações formadas a partir da cooperação voluntária de dois ou mais entes da federação, responsáveis por executarem a gestão associada de ações públicas a elas delegadas. Uma vez formados, os CPIs se tornam parte da administração indireta de todos os entes da Federação consorciados, podendo assumir a personalidade jurídica de associação pública ou de direito privado. Através deles, se torna possível, ainda, a “territorialização” das políticas setoriais, servindo também como um modelo gerencial e de planejamento microrregional que pode se traduzir em ganhos de escala nos serviços municipais em áreas como saúde, saneamento e, recentemente, a cultura. O presente artigo visa contribuir para a escassa literatura sobre os Consórcios Públicos de Cultura (CICs), através da análise exploratória dos dados provenientes do IBGE (Pesquisa de Informações Básicas Municipais e do Censo Cultural) complementado pelo levantamento bibliográfico. A primeira parte do trabalho tratará dos modelos sistêmicos de descentralização Bacharel em Administração Pública, graduada pela Escola de Governo Paulo Neves de Carvalho – Fundação João Pinheiro (FJP-MG). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental na Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. | [email protected] 2 Bacharel em Administração Pública graduado pela Escola de Governo Paulo Neves de Carvalho – Fundação João Pinheiro (FJP-MG) | [email protected] 1

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e coordenação de políticas públicas federativas criados após a Constituição de 1988; a segunda será dedicada à conceituação do Plano Nacional de Cultura e do Sistema Nacional de Cultura; e a terceira, a uma visão ampla sobre os CICs existentes no Brasil e a aplicabilidade desse instrumento no setor da cultura. 2. OS CAMINHOS PARA A DESCENTRALIZAÇÃO VIA REDES FEDERATIVAS: ALIANDO COOPERAÇÃO E COORDENAÇÃO As crises política, econômica e de legitimidade que levaram ao fim do regime militar (1964-1985) abriram espaço para a descentralização administrativa, tributária e política do Estado, alinhada à “onda neoliberal minimalista” que teria seu auge no Brasil na década de 1990. (FARAH, 2001, p.120). Nos anos que antecederam 1988, os governadores empossados passaram a reivindicar para si maior protagonismo nas políticas públicas locais (FARAH, 2001, p.134, ALMEIDA, 1995, apud RAVANELLI, 2014, p.7) reforçando o consenso, posteriormente vocalizado pela maioria dos membros da constituinte, de que a descentralização era um fim em si e sinônimo da desejada abertura democrática3. Sem dúvida, a reforma que viria com a promulgação da Constituição de 1988 foi mais profunda para os municípios. A responsabilidade assegurada pelo texto constitucional na provisão dos direitos essenciais como os de saúde, educação e assistência social, passou a ser compartilhada com as prefeituras, que, por sua vez, tiveram sua base tributária reforçada4. Finalmente, os municípios foram elevados à categoria de entes autônomos da federação, transformando o Brasil em uma das federações mais descentralizadas do mundo no que se refere à distribuição de recursos tributários e de poder político (SOUZA, 1996). Por outro lado, a descentralização também trouxe consigo sintomas adversos que caracterizam um cenário de “fragmentação institucional” (FRANZESE, 2010; FARRAH, 2001). A ver: o crescimento desenfreado de novos municípios, passando de 3.992 em 1980 para 5.565 em 2010, segundo o IBGE; a competição desses pelas transferências do governo federal ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM); e o uso ineficiente dos recursos públicos, conforme exaltado por Pereira (2014). Nesse sentido, o referido autor adverte que a criação de novos municípios pequenos - com até 10 mil habitantes e limitada escala de produção – “empurram Tanto a esquerda quanto os liberais dos anos 80 defendiam a seu modo a descentralização como condição para ruptura das estruturas tradicionais de poder rumo a um modelo mais ativo e cidadão. Marta Arretche (1996), em oposição, considera que descentralização não é uma engenharia idêntica ao federalismo e questiona a legitimidade dos argumentos de ambos os lados, afirmando que a democracia estaria mais ligada à formação de instituições que reproduzem este valor do que com a escala em que se dão as decisões políticas. 4 Segundo Fonseca e Leite (2011) apud Rezende e Afonso (2004) apesar de seu ímpeto descentralizador, na prática, a Constituição de 1988 implantou um federalismo fiscal duplo: por um lado, criou mecanismos de transferência de grande parte dos recursos de tributos federais – IR e IPI – para estados e municípios; por outro, criou contribuições sociais para financiar as responsabilidades sociais da União. 3

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para cima” os custos médios dos serviços públicos básicos na medida que dificultam o aproveitamento compartilhado de capital e trabalho a ponto de se reduzir o custo unitário de produção. Somado a tudo isso, os artigos 23 e 24, que co-responsabilizam os três níveis da federação na execução de determinadas políticas públicas comuns e concorrentes, garantem mais descentralização e, ao mesmo tempo, sugerem um horizonte de cooperação na ação pública. No entanto, a inexistência de quadros legais e institucionais apropriados para a cooperação e a coordenação intergovernamental facilita a reprodução de relações verticais e horizontais conflituosas na federação, que, por sua vez, oscila de forma ambígua entre a competição e a cooperação (SOUZA, 2005; RAVANELLI, 2014). Essa realidade aprofunda a mencionada fragmentação, que passa a se manifestar ora como sobreposição das políticas públicas no território e desperdício de recursos públicos, ora simplesmente como abandono da ação estatal5. Uma das formas que o Estado vem buscando minimizar os efeitos da fragmentação tem sido a articulação de “redes interfederativas”. As redes são aqui entendidas conforme Abrúcio e Soares, enquanto a “criação de instituições, políticas e práticas intergovernamentais que reforcem os laços entre os entes, sem que se percam o pluralismo e a autonomia característicos da estrutura federativa” (2001, p.48) Considerando que o federalismo é, na leitura de Abrucio (2005), um sistema de governo que pressupõe a soberania compartilhada e o equilíbrio entre a autonomia e interdependência dos pactuantes, o desafio da coordenação de políticas públicas se confunde com o desafio do fortalecimento de redes interfederativas. Os modelos da saúde e assistência social6 são os maiores paradigmas em termos de coordenação interfederativa no Brasil, servindo, inclusive, como inspiração para a organização da rede de cultura a partir de 2002 em diante7. Esforço que foi materializado, anos depois, no recoSobre esse constrangimento, Marta Arretche afirma que: (...) qualquer ente federativo estava constitucionalmente autorizado a implementar programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento. Simetricamente, nenhum ente federativo estava constitucionalmente obrigado a implementar programas nessas áreas (ARRETCHE, 2004, p.22). 6 O tradicional setor de Saúde vem construindo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) um modelo descentralizado através das NOBs (Normas Operativas Básicas) de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Em especial, a partir da NOB-96, o SUS procurou estruturar-se pela responsabilização de cada instância de governo e estimular a parcerias entre governos. Duas diferenças fundamentais separam o Sistema Nacional de Saúde do atual Sistema Nacional de Cultura segundo Abreu (2011): 1) o Conselho Nacional de Saúde (CNS) possui uma influência mais Inter burocrática do que pela sua relação com a sociedade civil e 2) o Sistema de saúde consegue influenciar na gestão do município através das Normas Operacionais Básicas (NOB) com o repasse financeiro. 7 Ainda que a intenção de se construir uma rede de políticas de cultura tenha origem no governo Médici na década de 1970 (ABREU, SILVA, 2008; CALABRE, 2007), os primeiros passos rumo à EC 71/2012, que acrescenta o artigo sobre o Sistema Nacional de Cultura (SNC) na CF, foram dados apenas a partir da gestão Lula/Gilberto Gil. Segundo Zimbrão (2012), dentre os principais marcos dessa trajetória destaca-se a realização da primeira Conferência Nacional de Cultura em 2005; o lançamento do Programa Cultura Viva e a aprovação da Emenda Constitucional nº 48, de 2005, que dispõe sobre o Plano Nacional de Cultura e da PEC 150/2005, que vincula recursos das receitas das esferas de governo à cultura. Vale lembrar que o “Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil” balanço de governo lançado no segundo mandato do ministro Gilberto Gil em 2007, sugeria a aprovação do SNC como um dos pilares para uma futura política cultura cidadã. 5

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nhecimento constitucional de um sistema de direitos culturais complementado pela publicação de legislações infraconstitucionais para nortear a atuação estatal. Isto é, a aprovação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e do Plano Nacional de Cultura (PNC). 3. O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA (SNC) E O PLANO NACIONAL DE CULTURA (PNC) A definição mais concisa (porém não menos correta) sobre o Sistema Nacional de Cultura é dada por Eliardo Filho Na prática o SNC nada mais é do que um conjunto de Propostas de Emenda à Constituição (PECS), acompanhadas de Projetos de Lei (PLs), visando criar regras cogentes que obriguem os gestores públicos em todos os níveis de governo (federal, estadual e municipal) a cumprir com as metas de uma política nacional de cultura. (FILHO, 2011, p.100-101) O minimalismo de Filho não deixa de soar como uma crítica à priorização por parte dos gestores culturais àquilo que chamou de: (busca pelo) “potencial simbólico e de mobilização gerado pelas PECs.” (FILHO, 2011, p.82). Isto é, a opção consciente dos agentes culturais em enfatizar os processos de institucionalização das políticas públicas em relação à (e às vezes em detrimento da) implementação direta. O que, segundo o autor, serviria para garantir a sustentabilidade do projeto no curto e médio prazo, já que elas preenchem um vazio de constitucionalização e minimizam a instabilidade das ações culturais geradas pelo histórico baixo financiamento à cultura e a falta de organicidade da participação popular nas estruturas institucionais que usam estes recursos8. De fato, o Sistema Nacional de Cultura surge somente com a inserção do texto do Art. 216-A da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012. No artigo, o SNC é concebido como um conjunto de instâncias de articulação, pactuação e deliberação (locais, regionais, tripartites, bipartites, nacional) que têm como objetivo ampliar a participação popular e promover a gestão integrada e a articulação entre os entes da federação. Dentre os instrumentos que viabilizam esta integração e articulação estão os planos municipais, estaduais e nacional de cultura. Além dos planos, a ideia central na estruturação das instituições de representação ligadas ao SNC é a da coordenação das ações culturais nos três níveis federais, organizados a partir do Conselho Nacional de Políticas Culturais e da sua relação com a Comissão Nacional de Incentivos Culturais (CNIC) e com a Comissão do Fundo Nacional de Cultura (FNC), três instancias de abrangência nacional. Tudo isso pode ser resumido nas palavras do próprio ex-ministro Gil citado por Abreu e Silva: “O que conseguimos em um primeiro momento com o Sistema Nacional de Cultura foi insatisfatório e insuficiente, porque foi apenas a articulação para a criação e não para a implementação propriamente” (ABREU, SILVA; 2011, p.42) ou ainda, nas palavras de Luiz Eduardo Abreu (2011, p. 92): “o sistema (Nacional de Cultura) ainda é a luta pela sua constituição”.

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Para integrar estados e municípios à construção da rede, o Sistema aposta na estratégia de assinatura de protocolos para criação de conselhos paritários e fundos locais de recursos financeiros para a cultura. Para isso, o congresso normatizou a composição federativa do SNC no § 4º do Art. 216-A, sugerindo uma estrutura mínima para os sistemas distritais, estaduais e municipais9. Segundo o relatório “Cultura em Números” de 2010, 33,9% dos municípios brasileiros teriam aderido formalmente ao SNC10. Um dos instrumentos de gestão previstos no SNC é o Plano Nacional de Cultura (PNC) inscrito na Constituição Federal via Emenda Constitucional nº 48/05 que regulamenta o Art. 215. O Plano foi posteriormente tratado pela Lei 12.343/10 e consiste num planejamento decenal alinhado com os princípios do SNC e organizado sobre cinco estratégias: 1) Fortalecimento a ação do Estado no planejamento e na execução das políticas culturais; 2) Incentivo, proteção e valorização da diversidade artística e cultural brasileira; 3) Universalização do acesso dos brasileiros à fruição e à produção cultural; 4) Ampliação e participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável e 5) Consolidação dos sistemas de participação social na gestão das políticas culturais. Segundo Filho (2011) o Plano aplica de forma explícita ao setor cultural todos os instrumentos constitucionalmente reconhecidos à disposição do federalismo cooperativo. Esses instrumentos – como o planejamento conjunto das esferas de governo, a integração entre as ações de governo e os Planos Plurianuais (PPAs) e os mecanismos de participação social e direito fundamental - possuem outro efeito gradual, mas intenso, de mobilização coletiva, e que para o autor é o aspecto crucial da construção do PNC. A cooperação horizontal também é outro vetor importante do Plano Nacional de Cultura, a ponto de defender abertamente o uso dos CPIs como meio para articulação das ações e dos atores que compõem o setor em seu Artigo 3° Compete ao poder público, nos termos desta Lei: VII - articular as políticas públicas de cultura e promover a organização de redes e consórcios para a sua implantação, de forma integrada com as políticas públicas de educação, comunicação, ciência e tecnologia, direitos humanos, meio ambiente, turismo, planejamento urbano e cidades, desenvolvimento econômico e social, indústria e comércio, relações exteriores, dentre outras. (BRASIL. Lei nº 12.343, de 02 de dezembro de 2010.) Aos Sistemas Estaduais e Distrital de Cultura é facultada a implementação instantânea de três dos componentes descritos (Sistemas de Informações e Indicadores Culturais; Programas de Formação na Área da Cultura; e Sistemas Setoriais de Cultura). Embora não sendo obrigatórios é importante que todos os Estados que tenham condições também instalem esses componentes. (PEIXE, 2013). Todavia, Abreu e Silva (2011) discutem no âmbito do projeto “Mais Cultura” que a administração pública do setor não havia “desenvolvido mecanismos razoáveis para beneficiar os municípios que tinham feito o seu ‘dever de casa’”, ou seja, não há comprovação que os municípios que seguiram à risca as instruções do SNC foram mais beneficiados pelos recursos dos editais. 10 Nesse quesito, o Estado do Ceará estaria à frente dos demais, com adesão de mais de 82,1% de seus municípios ao SNC, seguidos em termos absolutos por Mato Grosso do Sul (69,2%) e Acre (50%). 9

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É preciso lembrar que dois dentre os doze princípios defendidos no SNC no Art. 216-A, destacam a preocupação quanto à construção de um sistema de cooperação de políticas e que, portanto, convergem com os fundamentos conceituais dos Consórcios Intermunicipais de Cultura (CICs) nas redes interfederativas. A ver, os incisos: IV) cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; e V) integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; Assim, buscaremos entender um pouco mais sobre o funcionamento desse instrumento, além de resgatar alguns dados e o que a literatura vem produzindo sobre eles de forma geral no país e no setor da cultura a partir de 2005, marco da publicação da lei geral dos Consórcios Públicos Intermunicipais. 4. OS 10 ANOS DA LEI DE CONSÓRCIOS: PROBLEMAS, INOVAÇÕES E OPORTUNIDADES. Embora o artigo 23 da Constituição já previsse em seu parágrafo único a promulgação de lei complementar para regular “(...) a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (BRASIL. Constituição, 1988) o tema foi reinserido somente em 1998 pela Emenda Constitucional nº 19, que alterou o artigo 24111. Sete anos depois os consórcios foram devidamente regulamentados com a promulgação da Lei nº 11.107/05, a Lei dos Consórcios Públicos, e, mais tarde, com o Decreto n° 6.017/07ª. Desde então, lá se vão 10 anos de aplicação da lei com significantes avanços assim como importantes omissões que serão discutidas a seguir. No que diz respeito à regulamentação jurídica de novos consórcios e antigos, a atual legislação resolve a histórica insegurança jurídica12 admitindo tanto a associação via pessoa jurídica de direito público quanto a de pessoa jurídica de direito privado: no primeiro caso a associação se torna uma autarquia interfederativa e parte da administração indireta de todos os entes consorciados; no segundo caso, uma associação civil sem fins econômicos (todavia, não há obrigatoriedade na adequação ao novo formato público para aquelas já firmadas como associações privadas). Os recursos financeiros são direcionados ao consórcio de três formas, segundo Pereira (2014): 1) Através da prestação de serviços ou pelos bens que fornece, sendo que suas despesas Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998: “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos” (BRASIL. Constituição, 1988.) 12 A possibilidade de atuação consorciada entre entes federados é anterior à lei de 2005, tendo sido prevista em todas as Constituições Federais desde 1891. No entanto, sem lei que as regulamentassem, elas acabariam sendo firmadas enquanto associações de direito privado, o que as colocariam durante longo período a beira da informalidade. Não por acaso, as primeiras experiências surgiriam somente na década de 1960, impulsionadas, por um lado, pelo ainda tímido protagonismo dos municípios em diferentes áreas de políticas públicas, mas principalmente, pela atuação de lideranças políticas interessadas (CRUZ, 2001). 11

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administrativas devem ser diluídas no preço do serviço ou do bem13; 2) via contrato de rateio e 3) via celebração de convênios para entes não consorciados, inclusive com transferência de recursos. Em termos contábeis, o consórcio público deve possuir um orçamento mensal, estruturado em dotações, e aprovado em assembleia. Ainda no rol de inovações, a legislação impacta significativamente a Lei 8666/93 e seus artigos 23, 24, 26 e 112. Isso se traduziu em ampliação dos valores licitatórios14 e novas hipóteses de dispensa de licitação para celebração de contratos, além da possibilidade de licitações compartilhadas e redução de valores de impostos. Por outro lado, podemos listar de acordo com a literatura, uma série de insuficiências no que diz respeito ao financiamento dos CPIs: em primeiro lugar, não há regulamentação para operações de crédito nem previsões de linhas para consórcios públicos: não existe regulação específica, embora o Decreto nº 6.017/07 preveja a contratação de operações de crédito conforme os limites e condições próprios estabelecidos pelo Senado Federal, em consonância com o inciso VII do art. 52 da CF/88. Além disso, a celebração de convênios via transferência de recursos com a União não leva em conta a pessoa física do consórcio e sim a condição de cada um dos consorciados, se utilizando do extrato emitido pelo subsistema Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias (CAUC) de cada uma delas. Trata-se de um erro não somente por ser incompatível à personalidade jurídica, mas também por não contribuir para a estabilidade dos consórcios, já que, segundo a regra, um único município poderia inviabilizar a possibilidade de repasse de recursos de toda uma região. Em relação à flexibilidade nos formatos de CPIs, a redação atual permite que um mesmo consórcio atue em várias áreas de políticas públicas ao mesmo tempo. Para isso, os ditos objetivos que delimitam a área de atuação deverão ser definidos pelos entes de federação que se consorciarem, observados os limites constitucionais”15 e respeitando os “objetivos de interesse comum16”. A lei permite também que o ente se relacione com vários consórcios ao mesmo tempo, podendo este se consorciar em relação a todos ou apenas a uma parcela deles. A associação pode ainda ser firmada entre entes das três esferas de governos da federação e entre municípios não limítrofes. Segundo Borges (2005) essa autonomia ao município consorciado somente pôde ser materializada graças ao exercício de direitos concedidos pela Lei 11.107 como a subscrição e ratificação (integral ou parcial) do protocolo de intenções; a alteração, retirada e extinção do consórcio; e a manutenção de contabilidade e fiscalização próprias. Para essa contratação a licitação será dispensada, conforme versa o art. 2º, §1º, inciso III da Lei nº 11.107/2005. O § 8º da Lei 8666 permite no caso dos consórcios públicos a aplicação do dobro dos valores permitidos para cartas-convite, tomadas de preço e concorrência (quando se tratarem de consórcios formados por até três entes da federação) e o triplo dos valores quando formados por mais de três entes da federação. 15 Art. 2º da Lei n.º 11.107/05 16 Art. 1º da Lei n.º 11.107/05 13 14

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5. CONSÓRCIOS PÚBLICOS INTERMUNICIPAIS DE CULTURA (CICS) NA TEORIA E NA PRÁTICA Há dez anos, o IBGE em parceria inédita com o MinC, publicava o Suplemento de Cultura da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC 2006) que trazia consigo um preocupante raio x da gestão municipal da cultura do ano anterior. Segundo a pesquisa, 84,6% dos municípios brasileiros não possuíam órgãos exclusivos para gerir a cultura; desse número, 72% a possuíam anexa à outra pasta e 12,6%, subordinada à outra secretaria. Essa realidade não alterou em grande medida em 2010. Segundo o Relatório “Cultura em Números” do MinC, somente 4,35% dos municípios possuem secretarias exclusivas de cultura e 11,61% possuem Planos Municipais ou Intermunicipais de cultura. O resultado de ambas pesquisas sugere que o desafio da universalização dos direitos culturais, pregados pelo Art. 215 da Constituição Federal se confunde também com o desafio da revitalização das instâncias locais de poder no setor, marcadas por toda sorte de assimetrias federativas (que podem ser tão desiguais quanto seus indicadores sociais regionais). Tendo isso em mente, a conexão entre instâncias locais, Consórcios Públicos Intermunicipais de Cultura (CICs) e Plano Nacional de Cultura parece lógica: a maioria dos municípios dá pouca importância ou apresenta baixa capacidade financeira e técnica para executar individualmente ações culturais - sobretudo os menores que estão mais distantes do financiamento das capitais e do cuidado das políticas públicas. Por isso, parece razoável que os CICs sejam a ferramenta mais importante e juridicamente mais estável para que as prefeituras somem forças e evitem a atuação fragmentada. Por parte das instituições federais, os CICs podem funcionar como um elo importante à disposição do Plano Nacional de Cultura para coordenar suas ações e conjugar eficiência de recursos, integração regional, e capilaridade nas políticas públicas. Essa conclusão é compartilhada por Luana Vilutis (2013) que enxerga, ainda, quatro metas do Plano Nacional de Cultura nas quais a atuação dos Consórcios Públicos poderia ser determinante: 1) na expansão ou criação de infraestrutura para construção, modernização de espaços culturais tendo em vista a acessibilidade, preservação do patrimônio e ganhos em termos de tecnologia de comunicação; 2) na integração da programação tanto da agenda entre teatros, bibliotecas e museus quanto da logística para seu público via transporte ou plataformas itinerantes de cinema, bibliotecas, teatro, brinquedotecas, etc. 3) no fortalecimento institucional, via capacitação seus gestores e conselheiros de cultura e 4) no Desenvolvimento Regional, ou seja o fomento à economia da cultura, por meio do reconhecimento de territórios criativos com atividades culturais integradas e produção cultural local. Todavia, os dados do relatório “Cultura em Números” de 2010, revelam que os CICs em atividade no Brasil aproveitam parcialmente essa vocação conforme mencionada por Vilutis. A maior parte deles atuam na área de organização de fóruns intermunicipais (67,19%), seguido

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pela itinerância de programação artística e cultural (17,97%), outras atividades (10,16%), pela utilização de equipamentos culturais (3,12%) e, finalmente, pela a manutenção de grupos artísticos permanentes, que apresentou o menor porcentual (1,56%). Outra pesquisa, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE17, permite uma análise em termos absolutos dos municípios que possuem CICs. A edição 2011 mostra que, dos 2.903 municípios brasileiros que participam de no mínimo um CPI, 248 (ou 8,5%) afirmaram possuir no mínimo um CIC. Desse total, 208 (ou aproximadamente 82%) correspondem a municípios de até 50.000 habitantes. Além disso, nota-se a concentração do fenômeno nas regiões sudeste e sul, representando, juntos, cerca de 66% da incidência (94 municípios na região sudeste e 70 na região sul). Não por acaso, os estados da federação com maior número absoluto de municípios com consórcios em cultura são, em primeiro lugar, Minas Gerais com 48, seguidos por Rio Grande do Sul com 39 e São Paulo com 34. Todavia, segundo Prates (2010), os dados não permitem uma análise profunda do fenômeno, já que não revelam o número real de consórcios operantes nem dizem nada sobre a sua densidade institucional, ou seja, sobre a sua fragilidade ou sua consistência. Se há consenso no potencial dos CPIs na articulação de políticas públicas, não se pode dizer o mesmo a respeito dos fatores que induzem ou não a formação de novos consórcios. Caldas (2007) identificou, todavia, duas vertentes teóricas que explicam o fenômeno de forma complementar: a teoria do “enfoque na ação racional”, que credita a formação de novos consórcios a estímulos externos vindos dos estados e União; e a do “enfoque do capital social”, resultante do interesse local independentemente dos estímulos externos. Outros fatores mais específicos também são mencionados por Dieguez (2011) como a estrutura institucional da área de política envolvida, o capital social gerado por um problema em comum e a atuação ativa dos governos estaduais para estimular um padrão mais cooperativo nos municípios. Embora esses quesitos mencionados possam funcionar como quadros teóricos importantes para entender os fatores que induzem ou limitam a formação de novos CICs, pouco se conhece e se escreve sobre casos concretos de consorciamento e, por isso, poucos dados qualitativos estão disponíveis. Os números do IBGE sugerem, por um lado, que o fenômeno possa estar relacionado com a atuação dos estados e da União como indutores, já que todos os municípios entrevistados que se declararam participantes de pelo menos um CIC alegavam o envolvimento do estado de origem na composição, e 146 (ou 58%) alegavam participação da União. Por outro lado, através de levantamento bibliográfico, pudemos destacar duas iniciativas cujo protagonismo das lideranças locais foi mais decisivo na constituição dos CICs. Em primeiro Caldas (2007) alerta para duas limitações para o uso da base de dados do IBGE: 1) Elas permitem comparar os consórcios apenas pela unidade de análise que são os municípios 2) as bases de dados sofreram mudanças metodológicas na forma de categorizar os consórcios públicos e os setores de atuação. 17

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lugar, o CIC “Culturando”, pioneiro no setor e até hoje um dos mais conhecidos. Formado em 2010 pela união de dezoito cidades18 no interior do estado de São Paulo, o consórcio abrange um território de quase um milhão de pessoas e já articulou desde então mais de 25 milhões de reais19 entre convênios com o Ministério da Cultura (MinC) e Governo Federal, além de investimentos do próprio consórcio e receitas de assessoria e consultoria para outros projetos. O custeio é distribuído proporcionalmente pelos consorciados utilizando-se a o índice populacional do IBGE como base de cálculo do valor a ser pago por cada município (SILVA e PASSADOR, 2014). O outro caso a ser destacado é o do atualmente inativo consórcio intermunicipal de cultura das prefeituras de Muriaé, Cataguases, Itamarati de Minas, Leopoldina e Miraí, constituído para fomentar a cadeia criativa e produtiva do cinema, audiovisual e da cultura digital na chamada Zona da Mata mineira, conforme destacado por Vilutis (2006). Enquanto esteve ativo, entre 2012 e 2015, o consórcio oferecia suporte às produções audiovisuais, acesso a serviços municipais, compras governamentais, circulação, e no apoio institucional entre poder público e sociedade civil. O consórcio previa também a articulação estratégica com outras áreas, especialmente com a educação, por meio da certificação técnica via Escola Municipal do Audiovisual em Muriaé e com o Projeto Escola Animada, envolvendo a rede pública de ensino de 10 cidades da região. 6. CONCLUSÃO No âmbito nacional, os avanços na consolidação de uma rede interfederativa de cultura são inegáveis: os principais componentes do SNC já estão constituídos e o PNC já se afirmou como instância ampla de participação (ZIMBRÃO, 2012; FILHO, 2011). Ao mesmo tempo, produtores, agentes e público estão cada vez mais interessados em interferirem nos processos de decisões culturais (CALABRE, 2007). Apesar desses reconhecidos avanços, o PNC deve preencher o “vácuo” na articulação entre essas instâncias e entre os entes federativos e orientar estratégias objetivas de modo a possibilitar sinergias na atuação do para que esse se afirme enquanto um verdadeiro modelo de rede interfederativa. Ainda que o Sistema Nacional de Cultura e o Plano Nacional não tenham regulamentado uma efetiva coordenação interfederativa que mobilize os governos subnacionais para a ação cooperada no setor de cultura, os avanços conquistados pela legislação dos CPIs na última década sinalizam, pelo menos, um horizonte de oportunidades para a Cultura. Segundo Batista (2004) o grande mérito da lei dos consórcios (Lei 11.107 de 2005) foi a ampliação do papel Araçatuba, Ariranha; Barretos; Cajobi; Colombia; Guaraci; Guariba; Jaboticabal; Matão; Monte Azul Paulista; Monte Alto; Orlândia; Pirangi; Pontal; Sertãozinho; Serra Azul; Viradouro e Vista Alegre do Alto. 19 Ao todo foram “7 milhões e 200 mil reais, sendo dois terços do MinC e um terço de contrapartida do Consórcio para o programa “Pontos de Cultura”, R$ 9,17 milhões do Governo Federal para modernização de 13 bibliotecas públicas; a formação de 60 agentes de leitura; 25 Cine Mais Cultura; 22 Pontos de Leitura R$ e10 milhões, assessorando municípios em outros projetos”. (VILUTIS, 2013) 18

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estratégico desses, servindo também como um espaço de diálogo a disposição entre poder público e organizações da sociedade civil, além de facilitar o financiamento e a gestão associada ou compartilhada de serviços públicos via parcerias, convênios e contratos. Isso quer dizer que a maior segurança jurídica que os CPIs gozam após a lei, permite que prefeituras (limítrofes ou não) explorem novos formatos de cooperação e a partir deles, tenham acesso a uma série de vantagens em termos de organização, participação social, controle e incremento nas fontes de financiamento e otimização de recursos culturais municipais. Embora a análise dos dados disponíveis permita relacionar uma forte presença dos governos estaduais na composição dos CICs disponíveis, os casos estudados em profundidade sugerem que a sua formação está ligada à experiência pontual de municípios pioneiros. Por isso, o que se espera, é que novos trabalhos acadêmicos investiguem essas duas influencias na reprodução e longevidade dos consórcios. Essas informações serão determinantes para complementar a estratégia de fortalecimento do Sistema Nacional de Cultura e auxiliar na redistribuição o investimento cultural no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p. BRASIL. Ministério da Cultura. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais. 2.ed. Brasília: Ministério da Cultura, 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2015. BRASIL. Lei nº 12.343, de 02 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário Oficial da república Federativa do Brasil. Brasília, DF, 26 jul. 2000. Disponível em http://www2.camara.leg.br/ legin/fed/lei/2010/lei-12343-2-dezembro-2010-609611-publicacaooriginal-130918-pl.html. Acesso em: 11 dez. 2015. ABREU, L. E. L. (Org.); SILVA, F. A. B. (Org.). As políticas públicas e suas narrativas: o estranho caso entre o Mais Cultura e o Sistema Nacional de Cultura. Brasília: IPEA, 2011. v.1. 226p. ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. O Mais Cultura e suas narrativas. In: SILVA, Frederico Augusto Barbosa da; ABREU, Luiz Eduardo de Lacerda. As políticas públicas e suas narrativas: o estranho caso entre o mais cultura e o sistema nacional de cultura. Brasília: IPEA, 2011. ABRUCIO, F. L. A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de sociologia e política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, jun. 2005. ABRUCIO, Fernando L. SOARES, Márcia M. Redes federativas no Brasil: cooperação intermunicipal no Grande ABC. São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, 2001. 236 p. [ISBN 85-7504-015-4]

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SOUZA, Celina. Reinventando o poder local: limites e possibilidades do federalismo e da descentralização. In São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.10, n. 3, p. 103 – 113, jul-set 1996. TELES FILHO, Eliardo. A Constituição Cultural. In: SILVA, Frederico A. B. da; ABREU, Luiz E. (Orgs.). As Políticas Públicas e Suas Narrativas. Brasília: Ipea, 2011. TELES FILHO, Eliardo. A Criatividade Normativa das Políticas Públicas. In: SILVA, Frederico A. B. da; ABREU, Luiz E. (Orgs.). As Políticas Públicas e Suas Narrativas. Brasília: Ipea, 2011. VILUTIS, Luana. Redes e Consórcios. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. P55 Edições, 2013. (Coleção Política e Gestão Culturais). Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2015. ZIMBRÃO, Adélia. Sistemas nacionais na área de gestão pública: a construção do Sistema Nacional de Cultura. In: congresso CONSAD de gestão pública, 2., Brasília, 2009.

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CONEXÃO CULTURA: DIÁLOGO COM A JUVENTUDE DE MANGUINHOS E MARÉ Hilda da Silva Gomes1 Monique Ramos Garcia da Silva2 Carmen Evelyn Rodrigues Mourão3 RESUMO: O texto relata o desenvolvimento do Projeto “Produção Cultural no território de Manguinhos: olha nós aí”, em seu primeiro ano na Rede Carioca de Pontos de Cultura do Rio de Janeiro. Tem como objetivo, através de ações educativo-culturais, promover a inserção de jovens, moradores dos territórios socialmente vulnerabilizados, como Maré e Manguinhos, no mundo do fazer cultural, estimulando a reflexão sobre as relações entre cultura e identidade, pluriculturalidade e democracia no processo de formação cidadã. Sua proposta pedagógica oportuniza a possibilidade de participação dos jovens em ações culturais comunitárias, seu engajamento em ações profissionais no campo da cultura, valorizando as expressões da cultura local e ampliando as interfaces na rede dos pontos de cultura. PALAVRAS-CHAVE: Territórios e Cultura, Ações educativas, Redes comunitárias.

“ Eu não sabia que a favela podia ser vista como um lugar que tem cultura...” Fábio; Jovem participante do projeto “Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz?” Minha alma (O Rappa) Vivemos um momento de efervescência no contexto das discussões que envolvem o conceito de política cultural tanto em sua atuação como na ação dos agentes envolvidos. Botelho (2001, p. 3) aponta duas dimensões da cultura que deveriam ser consideradas alvos das políticas culturais. A dimensão sociológica que explicitamente constrói sentidos voltados para a cultura Coordenadora do Serviço de Educação em Ciências e Saúde do Museu da Vida/Fiocruz; [email protected] Bolsista do Projeto ‘Produção Cultural no Território de Manguinhos: olha nós ai” / Museu da Vida/Fiocruz; [email protected] 3 Supervisora Pedagógica do Programa de Produção Cultural do Museu da Vida/Fiocruz; carmen.evelyn@yahoo. com.br 1 2

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enquanto aspecto mercadológico e a dimensão antropológica que nos leva ao mergulho da cultura produzida no cotidiano e as interfaces produzidas nas relações estabelecidas com o mundo. A dimensão antropológica nos seduz pois amplia possibilidades no espaço da educação não formal e fomenta novas tessituras nos fazeres e saberes diários. Nestas reflexões e discussões voltamos nosso olhar para a oportunidade de fazer parte de uma grande rede formada por atores e agentes sociais que gera empoderamento, fortalece a autonomia e abre portas para o protagonismo. Esta grande rede se constituiu nos Pontos de Cultura como ações estruturantes do Programa Cultura Viva, desenvolvido pelo Ministério da Cultura (MinC) desde o ano de 2004. Como Barbalho (2008: p. 21) entendemos as políticas culturais como “o conjunto de intervenções práticas e discursivas no campo da cultura” e como um espaço cultural já estabelecido na cidade do Rio de Janeiro, buscamos potencializar em nosso trabalho com os jovens do território de Manguinhos e Maré sua participação como cidadãos e cidadãs que estão no fazer cultural como processo. 1. PROJETO “PRODUÇÃO CULTURAL NO TERRITÓRIO DE MANGUINHOS: OLHA NÓS AI” O Museu da Vida e a juventude do seu território têm uma relação duradoura de pelo menos 12 anos. Esta relação foi inaugurada com o Curso de Formação de Monitores cujo foco era capacitar os jovens para atuarem no apoio à mediação em centros e museus de ciência. Esta primeira proposta vem sob a forma inicial de um curso de os jovens monitores atuavam como apoio ao atendimento ao público visitante do Museu da Vida. A partir de 2012, a proposta sofreu uma inflexão e é criado o Programa de Iniciação à Produção Cultural. A nova proposta ampliou a formação, referenciada numa atividade que investe de forma sistemática na ampliação do capital social e cultural dos jovens. O público é atendido tem faixa etária entre 16 e 19 anos que vive em situação de vulnerabilidade social e por isso prioriza-se a promoção da autoestima e o sentimento de pertencimento que pretende fortalecer a sua identidade social e cultural. Está comprovado nas entrevistas realizadas para o processo seletivo que eles querem investir em sua formação, pois as famílias acreditam e valorizam a educação como instrumento indispensável para a vida de seus filhos. Em nossa sociedade excludente e desigual, essas famílias se deparam com o dilema da escolha entre investir na educação e a necessidade imediata de aumentar a renda familiar, colocando os jovens no mercado de trabalho. A maior ênfase na produção cultural abre uma possibilidade de inserção destes jovens nos processos culturais desenvolvidos neste território, por meio da integração com as iniciativas e equipamentos culturais locais. Pretende-se, através de ações educativo-culturais, oportunizar a participação dos jovens no mundo do fazer cultural, estimulando a reflexão sobre as relações

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entre cultura e identidade, pluriculturalidade e democracia e a importância do acesso à cultura no processo de formação cidadã. Também oportuniza seu engajamento em ações comunitárias e profissionais no campo da cultura, valorizando as expressões locais e articulação com os movimentos sociais. 2. PROPOSTA EDUCATIVA E INTERFACES COM A CIÊNCIA E A CULTURA Buscamos construir uma proposta educativa que também trouxesse o olhar de autores4 que acentuam a primazia dos conteúdos no seu confronto com as realidades sociais, para uma participação organizada e ativa na democratização da sociedade. Nossa preocupação também estava nas perspectivas de instrumental teórico e prático que possibilitasse reflexão sobre a realidade social. A proposta educativa apoia-se em autores (LIBÂNEO, 1989; FREIRE, 1987) que acentuam a primazia dos conteúdos no seu confronto com as realidades sociais, para uma participação organizada e ativa na democratização da sociedade. No contexto da luta de classes, o saber mais importante para o oprimido é a descoberta da sua situação de oprimido, a condição para se libertar da exploração política e econômica, através da elaboração da consciência crítica passo a passo com sua organização de classe. (FREIRE, 1987, p. 39). Para Vygotsky (1998) o homem não tem acesso direto aos objetos, mas acesso mediado, através de recortes do real, operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe, portanto enfatiza a construção do conhecimento como uma interação mediada por várias relações, ou seja, o conhecimento não está sendo visto só como uma ação do sujeito sobre a realidade, como no construtivismo, e, também pela mediação feita por outros sujeitos. O outro social pode apresentar-se por meio de objetos, da organização do ambiente, do mundo cultural que rodeia o indivíduo. De acordo com estes princípios, os objetivos que propomos visam possibilitar a construção de uma leitura mais crítica da realidade e das diferentes demandas sociais, trazendo para o campo da cultura e dos fazeres culturais, o debate sobre as contradições da sociedade onde estamos inseridos. Segundo Morin (2003), a cultura fornece ao indivíduo os sistemas simbólicos de representação da realidade, ou seja, o universo de significações que permite construir a interpretação do mundo real. Ela representa o local de negociações no qual seus membros estão em constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significações. Já o Plano Nacional de Cultura (PNC) apresenta cultura como: Cultivo das infinitas possibilidades de criação simbólica expressas em modos de vida, motivações, crenças religiosas, valores, práticas, rituais e identidades, tecidas em uma complexa rede que caracteriza a diversidade. (BRASIL, 2008, p.11). 4

José Carlos Libâneo e Paulo Freire.

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O PNC afirma que as políticas culturais devem reconhecer e valorizar esse capital simbólico, por meio de fomento à sua expressão múltipla, gerando qualidade de vida, autoestima e laços de identidade entre os brasileiros, desvanecendo relações assimétricas e valorizando a diversidade. Desta forma, oferece instrumental teórico e prático para que os jovens reflitam sobre sua identidade e se apropriem de conceitos fundamentais para construção de conhecimentos que os levarão a se perceberem como cidadãos capazes de transformar sua realidade. Busca ainda “contribuir para a ampliação do capital cultural dos jovens, valorizando a cultura científica, a popularização da ciência e a promoção da saúde” (MOURAO et al, 2015), estimulando a reflexão e discussão sobre a realidade socioambiental de territórios socialmente vulnerabilizados, como Manguinhos e Maré. Para fundamentar a nossa ação pedagógica nos alimentamos das reflexões de  Gohn: O processo político-pedagógico de aprendizagem e produção de saberes envolve a aprendizagm para a cidadania; aprendizagem para atuar no mundo  do trabalho e/ou de desenvolvimento de potencialidades ; aprendizazagem pelo exercício d epráticas que capacitam os indivíduos a se orgnizarem em objetivos comuntários voltados para a solução de problemas coletivos e cotidianso, gerados pela participação em associações, movimentos, foruns, conselhos;aprendizagem pela cultura para potencializar  a leitura do mundo. (GOHN,2010,p.55) Trilla (1998) destaca que a educação não-formal permite além de contribuições de diversas áreas, a composição de diferentes bagagens culturais. Esta compreensão pode fazer com que algumas práticas da educação não-formal se apresentem como uma possível proposta de educação inovadora e transformadora que busca a partir das relações vividas no cotidiano, da valorização de questões não consideradas e outros campos educacionais, fazer emergir as bases de uma relação educacional diferenciada. O trabalho pedagógico aponta para a importância da pluralidade de culturas, reconhecendo os diferentes sujeitos socioculturais e abrindo espaços para a manifestação e valorização das diferenças. A ideia é promover ações educativas que possibilitem a compreensão das conexões entre as culturas, das relações de poder envolvidas na hierarquização das diferentes manifestações culturais, assim como das diversas leituras que se fazem quando distintos olhares são privilegiados. Suas atividades propõem aos jovens exercitar e aprimorar a criatividade e capacidade de expressão através de debates, seminários, dinâmicas de grupo, oficinas de multimídia, fotografia, leitura e escrita, teatro, música, além de oficinas técnicas visando instrumentalizá-los para o planejamento e realização de eventos e atividades culturais. Estas atividades, além de proporcionarem conhecimento na produção cultural, objetivam aguçar a visão crítica sobre a realidade local e global, sendo desenvolvidas na sede do Museu da Vida (Fiocruz) e em outros espaços culturais do território como a Biblioteca Parque de Manguinhos.

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3.AMPLIANDO AS REDES O Programa de Produção Cultural do Museu da Vida passou a integrar, em 2014, a Rede Carioca de Pontos de Cultura com o projeto “Produção Cultural no território de Manguinhos: olha nós aí”5, e será subsidiado pelos próximos 3 anos. Esta rede, mantida pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, abrange 50 instituições representantes das mais variadas formas de expressão artístico-culturais que se articulam em estratégias de fomento de ações culturais locais e regionais, de formação de pessoal, desenvolvimento de capital, entre outras. Com esta integração, o projeto agregou à equipe pedagógica, recursos e potencialização do trabalho educativo, já que foi possível a contratação de três jovens egressas das turmas anteriores e uma profissional de nível superior para provimento de suas atividades administrativas e educativas, através das quais são planejadas as estratégias para melhor inserção dos jovens em ações culturais. Para aprofundamento das questões que estruturam as políticas culturais como “o conjunto de intervenções práticas e discursivas no campo da cultura” apostamos na abordagem do trabalho colaborativo como um espaço que prioriza a responsabilidade coletiva para o desenvolvimento de uma cultura pautada na formação de sujeitos críticos e conscientes de suas possibilidades de atuação no contexto social. O Programa que abriga o projeto, é organizado em módulos que se desenvolvem simultaneamente durante oito meses. Os conteúdos estão centrados em temas que envolvem as relações entre a Ciência e a Cultura, as interfaces presentes nas discussões sobre Identidade, Cidadania e Historicidade, a participação em oficinas de Comunicação e Expressão, a atuação em práticas de produção cultural e estágio em espaços educativo-culturais. Além do aprofundamento nos módulos, estão planejadas dez visitas técnicas com o objetivo de conhecer espaços culturais, ações e expressões artísticas do estado do Rio de Janeiro. As instituições a serem visitadas são definidas tendo em vista abranger a diversidade cultural local e oportunizar o direito à livre circulação dos jovens na cidade do Rio de Janeiro. As visitas propõem o conhecimento sobre a contemporaneidade e a importância da diversidade levantando questões sobre a preservação e promoção do patrimônio cultural. Viabilizam experiências de sensibilização socioambiental, permitem a participação ativa dos jovens na construção de conhecimentos de forma a sentirem-se provocados a enfrentarem os vários desafios oferecidos. Objetivam aguçar a visão crítica sobre a realidade local e global6 a partir de discussões que focalizam questões relevantes ao processo de construção da autonomia e preparação de cidadãos capazes de compreender a realidade social, econômica, política, cultural e o Edital da Rede Carioca de Pontos de Cultura / Secretaria Municipal de Cultura e Sociedade de Promoção da Casa de Oswaldo Cruz nº 12045/2014. 6 Atividades desenvolvidas pela equipe do Projeto Território em Transe/ Coordenadoria de Cooperação Social / Presidência da Fundação Oswaldo Cruz que visa, por meio da construção da história social de Manguinhos, mobilizar o protagonismo local de seus moradores por meio de ações coletivas, na luta por garantia de direitos. 5

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mundo do trabalho para nela inserir-se e atuar de forma ética, visando contribuir para a transformação da sociedade em função dos interesses sociais e coletivos. Os jovens participam de um período de estágio (dois meses) em espaços educativo-culturais como museus, organizações sociais, centros culturais e setores de eventos culturais de unidades da Fiocruz ou de outras instituições públicas. Para o estágio foram estabelecidas algumas parcerias com instituições de grande visibilidade cultural e política neste território como a Biblioteca Parque de Manguinhos7, que não apenas proporcionam oportunidades para os jovens, como também reforçam as iniciativas culturais locais.   Mourão (2014) destaca que a dinâmica de expressão e fruição cultural comunitária contribui para o reforço do tecido social a partir da ampliação das referências comunitárias de pertencimento à história territorial e aos fazeres culturais locais: passo decisivo para a ampliação da participação social e o fortalecimento da democracia e da cidadania. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Plano Nacional de Cultura coloca a integração da cultura com ações de inclusão social, por meio dos Pontos de Cultura, como um de seus principais objetivos. O Museu da Vida, recentemente tornou-se um Ponto de Cultura Carioca, integrando-se assim a esta estratégia da política nacional de cultura. Esta oportunidade ampliou os processos de trabalho e consolida ainda mais a representatividade e ação do Programa de Produção Cultural do Museu da Vida no território onde a Fiocruz está inserida. A cultura no seu sentido amplo, e o enfoque particular na sua expressão e no seu fazer, possibilita uma ampla gama de reflexões e experiências que podem trazer contribuições significativas para os diversos contextos, nos quais os jovens se encontram inseridos. Buscamos instrumentalizar os jovens para que consigam compreender e participar de forma mais crítica da sociedade em que vivem. Vivemos situações onde as emoções se mostram à flor da pele, entendendo que o sorriso e as lágrimas aparecem juntos e misturados. Estas vivências compartilhadas, no desenvolvimento das atividades educativas oferecidas, criam um movimento de construção compartilhada de saberes, promovendo a confiança dos jovens em seu potencial criativo, minimizando conflitos, e também, propondo momentos que possibilitem uma reflexão crítica sobre a realidade e os seus posicionamentos em relação às situações desafiadoras. Nas rodas de conversa realizadas, as discussões sobre política, apontaram as dificuldades que encontramos em exercitar a ética e o respeito às diferenças em situações cotidianas e possibilitaram a ênfase na importância da participação social para a garantia dos direitos individuais e coletivos. 7

www.cultura.rj.gov.br/espaco/biblioteca-parque-de-manguinhos.

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Essa ação representa uma riqueza de práticas pedagógicas que oportuniza o estabelecimento de novas relações educativas, sociais e culturais. Neste momento estamos construindo novas parcerias que viabilizem a inserção dos jovens nos equipamentos culturais locais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBALHO, Alexandre. Textos Nômades: Política, Cultura e Mídia. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2008. 144 p. BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura e políticas pública. Disponível em www.scielo.br . São Paulo: Perspectiva, 2001. Vol. 15, nº 2. BRASIL. Ministério da Cultura. Caderno “Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de Cultura”. Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Brasília, agosto de 2008. Disponível em http://www2.cultura.gov. br/site/wp-content/uploads/2008/10/pnc_2_compacto.pdf. Acesso em 10 de janeiro de 2016. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. 107 p. GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010. 103 p. Coleções questões da nossa época; v. 1. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Ed. 22. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. 120 p. 913

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LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública: A pedagogia crítica-social dos conteúdos, 22. ed. São Paulo: Loyola, 1989. 149 p. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011. 102 p. MOURAO, Carmen et al. Programa de Produção Cultural do Museu da Vida: olhando para o território. In: DUQUEVIZ, Beatris et al. Diálogos sobre saúde e protagonismo infanto-juvenil: ações e desafios para a Fiocruz. Rio de Janeiro: Coordenadoria de Cooperação Social/Fiocruz, 2014. p. 17-29. MOURAO, Carmen et al. Educação e cultura: Ações e desafios do Museu da Vida com a juventude de Manguinhos. In: VII Encontro Regional de Ensino de Biologia RJ/ES: tecendo laços docentes entre Ciência e culturas. Anais do VII EREBIO RJ/ES 1. Ed.; MGSC Editora, 2015. p. 284-288. TRILLA, Jaume. La educación informal. Barcelona: PPU, 1987. TRILLA, Jaume et al. La educación fuera de la escuela: Ámbitos no formales y Educación Social. Barcelona: Ariel Educación, 2003. VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 224 p.

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A PRÁXIS COTIDIANA COMO FATOR CONTRIBUTIVO NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O SETOR AFRO-BRASILERO EM ALAGOAS: DA SOCIEDADE CIVIL PARA A ESFERA PÚBLICA GOVERNAMENTAL. Igor Luiz Rodrigues Da Silva1 Claudia Cristina Rezende Puentes2 Natalia Teles Bezerra3 RESUMO:. Este artigo focaliza para as contribuições elaboradas e construídas a partir de nossas vivências enquanto gestores culturais oriundos do processo de militância do segmento afrobrasileiro. Bem como de um longo processo de pesquisa acadêmica articulando tais vivências à legislação pertinente, com o intuito de contribuir efetivamente para a elaboração de políticas públicas favoráveis à comunidade afro-brasileira, especialmente a alagoana, que detém o marco do “Quebra de 1912” em sua trajetória de construção identitária. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Plano Setorial, Cultura Afro-brasileira, Políticas públicas, Alagoas.

1. INTRODUÇÃO No Brasil do século XXI, muito se tem discutido e problematizado sobre o papel das Políticas Culturais como instrumento de promoção, incentivo e salvaguarda de manifestações culturais existentes no país, sobre a distribuição de recursos, eixos de atuação e alcance dessas políticas. Refletir sobre este campo epistemológico a partir das nossas vivências é importante Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas, Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe; Assessor Técnico da Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas, Professor das Faculdade Mauricio de Nassau e Raimundo Marinho, membro do CONEPIR, membro do Conselho Estadual de Políticas LGBT, atua com pesquisa em cultura popular, cultura afro-brasileira, comunidades quilombolas, diversidade, cidadania e meio ambiente. [email protected] 2 Possui Pós-graduação em Gestão de Instituições de Ensino Superior (FMN-2009). Pós-graduanda em Educação em Direitos Humanos e Diversidade (UFAL). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Administração de Sistemas Educacionais. Atua no segmento de fomento e apoio à produção cultural, membro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, Membro do Conselho Estadual de Direitos e Defesa da Mulher. Pesquisadora do núcleo Híbrido-UNIT. [email protected] 3 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas; Socióloga/ Pós Graduada em Gestão Pública e Gestão Cultural pela UFAL; Assessora Técnica da Secretaria de Estado da Cultura, coordenadora da Rede de Pontos de Cultura de Alagoas, possui pesquisa em cultura popular, religiões de matriz africana e gestão cultural. [email protected] 1

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para que se possa dialeticamente e na práxis, articular novas perspectivas contributivas para o desenvolvimento democrático da cultura em suas múltiplas instâncias e lugares. O Brasil conduzido por suas elites pretendia ser um país branco, “civilizado e europeu. Vivia a contradição de negar mais da metade de sua população, negra, ex-escrava e indígena, queria industrializar-se, mas vivia a barbárie de uma escravidão tardia, um capitalismo dependente, baseada numa economia agroexportadora e enterrada no debate sobre raça, para excluir e negar o caráter positivo da miscigenação na identidade brasileira, com isso comprometendo o desenvolvimento da Nação. O final do século XIX e o início do século XX são marcados por efervescências sociais. A exclusão da população negra, numa combinação entre racismo, discriminação, preconceito e pobreza, torna-se o centro dos debates sobre o destino da Nação. A solução encontrada foi o ideal de branqueamento, com base improvável numa ciência infundada. Num segundo momento pretendia-se estabelecer a cordialidade do “homem” brasileiro, como fruto e resultado da miscigenação, elementos esses que vão servir de fundamento à teoria da democracia racial, no inicio do século XX. Neste mundo real e simbólico de longa duração, polarizado pela cultura de origem judaico-cristão que serviu de ideologia do colonizador e ao estabelecimento do estado brasileiro, a cultura afro-brasileira, numa outra perspectiva, na sua diversidade constitui unidades: nas religiões, nos seus territórios materializados, nos terreiros de candomblé, nas casas de umbanda, na culinária, na capoeira, nos clubes negros (encontrados no sul e sudeste), no samba, no maracatu, e em tantas outras manifestações que se espalham por todos os cantos do país. (NOGUEIRA e NASCIMENTO: 2012: 70). Embora tenha já conquistados e assegurados muitos direitos, a população que se autodenomina afro-brasileira, ainda passa por um processo incurável de racismo, intolerância e inferiorizarão de suas manifestações e práticas culturais que se alastram diariamente, e se apresentam de forma latente nas redes sociais, meios de comunicação e etc.. Nas palavras de Rossano Lopes Bastos: “Como falar em inclusão social diante de um abismo que se afirma cada vez maior devido ao racismo e suas formas mais perversas de exclusão?” (Bastos, 2012: 90). As lutas dos movimentos negros espalhados pelo país foram muito importantes ao longo de todo século XX, durante a ditadura militar, um campo repleto de limitações de liberdade, de direitos, os grupos e movimentos são fundamentais para responder positivamente contra os abusos e absurdos provocados pelos poderio político e militar instaurados no poder desde o golpe de 64. É nesse movimento contrário que surgem os grupos teatrais, musicais e a primeira companhia de teatro negra, como forma também de exaltar a negritude e todo um legado cultural que corre a nação através de uma sociedade marginalizada e excluída.

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As contribuições da sociedade civil, através do movimento negro alagoano, têm fomentado várias ações que vem de encontro à gestão pública, sejam elas a falta de discussão com o próprio movimento ou a falta de recursos para editais que fomentem especificamente a cultura afro-brasileira. A exemplo do próprio MinC que através de suas diversas Secretarias e Fundações abarca o segmento da cultura negra, em Alagoas essa ação é inexistente ou inexpressiva, ao ponto de criarem verdadeiros grupos de ‘ataque’ ao poder público nas esferas estadual e municipal. Mas essas ações do movimento tendem a articular, ao mesmo tempo, de forma dicotômica, a integração de grupos culturais das mais diversas regiões do estado. Como coloca o historiador Douglas Apratto Tenório ( 2015): Estamos descobrindo em nosso Estado a uma descoberta de nossa identidade que sempre esteve vinculada à hegemonia branca, europeia e ibérica. É um fato novo que emergiu nas últimas décadas do século passado e que foi resgatado e influenciado externamente por Brasília através da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, estabelecendo direitos a índios e negros e que teve como ponto alto neste século XXI, em Maceió, a celebração do pedido público do Perdão do Estado ao povo negro pela Quebra dos terreiros em 1912. Negros e índios ainda têm muito caminho a percorrer até alcançar pela sociedade local, muito ciosa de seu sangue e tradição caucasiana, o reconhecimento da importância de suas presenças na história e na formação do povo alagoano. (TENORIO, 2015: 11). A partir da percepção estabelecida a partir da Constituição de 1988, a comunidade afro-brasileira em Alagoas passa a construir suas próprias estratégias na busca permanente pelas suas raízes históricas e valorização da sua identidade. Um bom exemplo dessa integração geradas a partir da zona de conflito do movimento negro e o poder público pode ser caracterizado pelo evento realizado pela UNEAL chamado Xangô Rezado Alto, que esse ano de 2016 está na sua 5º versão. O movimento iniciou no trato do movimento negro com o episódio do Quebra de 1912 que teve como fundamentação as transações políticas oposicionistas ao Governador Euclides Malta. Malta foi eleito Governador, reeleito e usou largamente seu conhecimento e poder para garantir o domínio político, tanto na Assembleia Legislativa, quanto nos municípios. Angariou com sua carreira, muitos inimigos e a oposição instauram o movimento salvacionista, com o objetivo de dar um término à era Maltista. O processo de desmoralização governamental embasado em aspectos de suspeitas de corrupção partilhava da degradação moral. Usando do arquétipo de feitiçaria, a oposição passou a relacionar o político, aos movimentos de Xangô. Os ataques dos adversários de Euclides Malta aparecem sutilmente, enquanto os jornais publicam matérias para demonstrar a associação do político com as casas de Xangô:

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Entre nós, como em todas as cidades brasileiras, o feitiço tem uma influência poderosa na maioria da população e, pouco a pouco, por um phenomeno social digno de estudo, essa influência decisiva, em vez de diminuir ou limitar-se a baixa sociedade, ascende às alturas, prepondera na política. O feitiço decidiu a candidatura do sr.(.....)e, actualmente, o feitiço prepara a eleição do Dr. Euclides Malta no cargo de governador. (Correio de Alagoas. Maceió: 21/02/1906. n.331. Ano III. Pág.2) O Jornal de Alagoas lança a série, intitulada “Bruxaria”, estabelecendo vínculos com as casas de Xangô, especialmente a de Dona Marcelina, na Praça dos Martírios levantando suspeitas de feitiçarias contra os adversários políticos de Malta, como o publicado em 04 de fevereiro de 1912: (..) Um bode sacrificado a Oxalá tinha pendurado no pescoço o retrato do Cel. Clodoaldo da Fonseca (...)Em outras foram achados dois retratos do Cel Clodoaldo e do Dr. Fernandes Lima, sob um montículo de barro fedorento e aluminado por quatro velas de sebo. Eis todo o cortejo bestial que cercava e prestava mão forte ao Governo do Sr. Euclides Malta. (Jornal de Alagoas. “Bruxaria” Maceió, 04/02/1912. Ano V. pág.1) A oposição política forma o grupo denominado Liga dos Republicanos Combatentes, chefiada pelo sargento reformado Manoel Luiz da Paz, que objetiva a agitação popular contra o Governo do Estado. Executando vários atos de perseguição e até mesmo de invasão antes dos terreiros de Xangô, a Liga perturbou os moradores de Maceió. Tomaram à força residências de vários políticos, correligionários de Malta. Muitos deles abandonaram seus cargos e fugiram de Maceió temendo por sua integridade física e de suas famílias. O objetivo dessas ações violentas aos correligionários de Malta era o de retirá-lo do poder, feito que conseguiram, quando da invasão do Palácio do Governo em 29/12/1911. O Governador escapou da invasão e foi refugiar-se em Recife. Com o pretexto de que o governador, pessoas ligadas a ele e membros do Partido republicano Conservador protegiam ou frequentavam as sessões de Xangô. A Liga resolveu então em nome da soberania, destruir as casas do Xangô alagoano. Foi o próprio Manoel Luiz que comandou o pior de todos os episódios de rua que Maceió viveu. Contando com a “incorporação” de alguns militares que estavam insatisfeitos com o salário percebido a Liga fortificou-se e partiu para o Quebra. À meia noite do primeiro dia de fevereiro começou a perseguição aos terreiros de Maceió. Os atos foram de barbárie, com os suspeitos sendo surrados, como no tempo da escravidão, seus corpos foram arrastados pelas ruas como demonstração de força da Liga. Os primeiros terreiros a serem invadidos foram os de Chico Foguinho, de João Funfun, Pai Aurélio e Tia Marcelina, todos na proximidade da Praça Sinimbú. A invasão que mais chocou a comunidade afrodescendente foi a do terreiro de Tia Marcelina.

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Era no terreiro dela que, diziam os adversários de Malta, o Governador contava com a ajuda dos trabalhos de magia. Tia Marcelina, africana, negra da costa, como era chamada. Sobre Tia Marcelina, podemos ressaltar o que nos relata Abelardo Duarte: “Era em Maceió uma espécie de Menininha do Gantois na Bahia. Fora contemplada com a coroa de Dadá, irmão mais moço de Xangô, na liturgia africana; da África proviera à distinção que a sagrara.” (DUARTE, 1974, p. 19) A mais famosa dona de terreiro de Maceió, após encerrar o rito festivo a Oxum, teve sua casa invadida, seus filhos-de-santo agredidos, e ela, teve a cabeça aberta com um golpe de sabre, seu corpo caiu ao chão banhado em sangue, vindo a falecer dias depois. Segundo informações do Babalorixá M.M, enquanto era agredida, Tia Marcelina clamava gemendo, por Xangô ‘Kaô Kabecilé4’, não por ser filha de Xangô, mas por ser ele o Orixá da justiça. Contou-nos também o Babalorixá que após algum tempo o algoz de Tia Marcelina foi secando, primeiro secou-lhe a perna, depois o corpo todo e vindo a falecer. Manoel Martins que havia trabalhado com Malta, também teve seu terreiro invadido pela ação da Liga, todos sofreram agressão e o pai-de-santo teve seu cavanhaque arrancado com epiderme e tudo. Vários chefes de terreiros sofreram as atrocidades em nome da soberania. Os objetos, apreendidos pelos membros da Liga nas invasões eram expostos ao escárnio em desfile pelas ruas de Maceió. Após a cerimônia de zombaria, os pertences desapossados dos Xangôs eram levados para a sede daquela associação onde permaneceram por algum tempo. Algumas peças de Legba foram levadas para a redação do Jornal de Alagoas e expostas por vários dias. Muitos dos pertences dos terreiros de Xangô foram desviados, como as joias, que desapareceram, já os panos usados nos cultos, os ilús e os atabaques, foram queimados na via pública, como prova de poder. Sobre o desaparecimento das joias, Abelardo Duarte nos relata: Ao que parece, muitas peças e objetos daqueles cultos foram fetichistas perderam-se ou foram desviados (...)pulseiras e braceletes de ouro e de prata, colares de coral, anéis de ouro cravejados de pedras semi-preciosas, roubados não se sabe por quem, e de paradeiro até hoje desconhecido. (DUARTE, 1974, p. 11). Na sequência, as peças foram oferecidas pela Liga dos Republicanos Combatentes à Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados do Comércio de Maceió. Esse fato resguardou os restos mais importantes de peças e objetos dos cultos de Xangô existentes em Maceió.O Quebra de Xangô em Alagoas foi a maior perseguição realizada no Brasil aos cultos de origem africana. E não se limitava somente ao âmbito da Liga, várias ações oficiais ocorreram com os mesmos moldes, as milícias atuavam em nome do governo por todo o estado de Alagoas. O silêncio dos ilús e dos atabaques imperou. 4

Saudação ao Orixá Xangô.

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Os remanescentes dos Xangôs voltaram a realizar os cultos aos Orixás, com uma formatação diferenciada, sem o som dos ilús e dos atabaques Essa nova maneira de praticar a religião afrodescendente foi chamada de “Xangô rezado baixo”. Sobre a nova forma de expressão do Xangô, destacamos a observação de Gonçalves Fernandes: Ninguém podia suspeitar o que se passava no interior daquelas casas simples, de arquitetura tosca e fachadas humildes, mas que conservavam em suas salas apertadas um rico oratório trabalhado em madeira, onde se guardavam imagens inofensivas de santos católicos, mas aos quais os fiéis consagravam orações em língua africana. Esses cultos realizavam-se sem música, sem danças, sem toadas (...)sem a presença de objetos litúrgicos que sempre foram a marca desse tipo de cerimônia. (FERNANDES, 1941, p. 28) O governo do estado de alagoas em um ato de reconhecimento às atrocidades cometidas à época do Quebra, levou o então governador Teotônio Vilela Filho na entrega da Comenda Zumbi dos Palmares, em 19 de novembro de 2012 a pedir perdão ao povo de matriz africana do estado. Tal ato teve como ápice a entrega da Comenda à Yalorixá Mãe Neide Oyá D’Oxum, primeira mulher sacerdotisa de matriz africana a ser aclamada por políticos, oriundos daqueles que mataram seus ancestrais em 1912. Na mesma perspectiva de reparação e objetivando atender à demanda imposta pela legislação, em 29 de novembro de 2013, o governo do estado criou o Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial – CONEPIR, órgão colegiado paritário, de caráter deliberativo e integrante da estrutura básica da Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos que tem por finalidade propor em âmbito estadual, políticas de promoção da igualdade racial, com ênfase na população negra, nas comunidades quilombolas, nas comunidades indígenas, nas religiões de matriz africanas e outros segmentos étnicos da população alagoana, com o objetivo de combater o racismo, o preconceito e a discriminação racial e de reduzir as desigualdades raciais, inclusive no aspecto econômico e financeiro, social, político e cultural, ampliando o processo de controle social sobre as referidas políticas. Composto de forma paritária por 26 membros e, como previsto no seu Capítulo II, Art. 3º O Conselho Estadual de Promoção de Igualdade Racial - CONEPIR será composto por 26 (vinte e seis) membros titulares com seus respectivos suplentes que demonstrem comprometimento e\ou sensibilidade com o combate ao racismo e a defesa da igualdade racial, nomeados pelo Governador do Estado. Os 13 membros do Poder Público representam: Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, Secretaria de Estado da Defesa Social e Ressocialização, Secretaria de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social, Secretaria de Estado da Saúde, Secretaria de Estado da Educação, Secretaria de Estado de Políticas sobre Drogas, Secretaria de Estado da Cultura, Gabinete Civil, Universidade Estadual de Alagoas, Instituto de Terra de Alagoas, Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos e Assembleia Legislativa 920

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do Estado de Alagoas. Já os membros da sociedade civil com atuação comprovada na promoção da igualdade racial em âmbito estadual e regional, sendo: 05 (cinco) representantes da população negra, entidades sindicais e sócio-culturais que atuem na promoção da igualdade racial, 02 (dois) representantes dos povos indígenas, 01 (um) representante das comunidades ciganas, 02 (dois) representantes das religiões de matriz africana, 02 (dois) representantes das comunidades quilombolas e 01 (um) representante de Capoeira. Outro importante instrumento de reconhecimento dos direitos e da promoção da igualdade racial, valorizando a cultura afro-brasileira é o 20 de novembro. Instituído por decreto federal, como o dia da consciência negra, em reconhecimento a luta do maior líder de negros escravizados das Américas, Zumbi dos Palmares, que faleceu em 20 de novembro de 1695, na Serra da Barriga. Em 2007, o Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural Palmares, entrega a população brasileira, em especial ao povo negro de Alagoas, o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, como lugar sagrado recebe todos os anos milhares de pessoas que procuram invocar a sua ancestralidade, seus laços de pertencimento e promoção dos direitos. A Serra da Barriga, para além da sua característica de território sagrado, é também um importante cenário de lutas políticas, de reivindicações e formulação de políticas públicas. A partir das manifestações realizadas pelo movimento negro de todo o estado, o governo de Alagoas abre-se para o diálogo e, em um movimento de aproximação, e porque não de interesse político, passa a organizar junto ao movimento afro-brasileiro e o Governo Federal, através da Fundação Cultural Palmares, os festejos do 20 de novembro, com uma programação extensa durante todo o mês, em especial na semana que antecede à data, culminando com entregas de Comendas e outras homenagens a figuras que atuam com destaque na promoção de políticas públicas, favorecendo a igualdade racial e manutenção das tradições. Desde a década de 50 em Alagoas, os religiosos de matriz africana fazem o movimento de êxodo, levando até sete horas de viagem para virem do interior até Maceió a fim de exaltar Iemanjá na festa das águas, comemorada no dia 08 de dezembro, dia da padroeira do estado, Nossa Senhora da Conceição, sincretizada com o Orixá Iemanjá pelos praticantes dos cultos afro-brasileiros, mais especificamente pelo povo do Xangô do Nordeste. São centenas de grupos das mais diferentes nações que se reúnem nas praias de Maceió, entre Pajuçara e Ipioca, sendo que o fluxo maior fica registrado na praia de Pajuçara. Desde as primeiras horas do dia 08, é comum notar a presença de sacerdotes de religião de matriz africana, filhos e filhas de santo trazendo sobre a cabeça as oferendas para Iemanjá em um momento que atraem simpatizantes e transeuntes que, extasiados, acabam interagindo com os religiosos.5 O escrito produzido sobre o dia 08 de dezembro é fruto de um longo processo de acompanhamento das festividades que homenageiam a Rainha do Mar. Desde a graduação em Ciências Sociais, pela UFAL que temos participado de pesquisa de campo objetivando a coleta dos dados acima expostos. 5

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Com a crescente demanda por parte de religiosos optantes pelas religiões neo-pentecostais, especialmente os ligados à IURD, vários conflitos vem acontecendo no dia 08 de dezembro. Para a comunidade de terreiro a manifestação de cultos conflitantes com as atividades já sacralizadas pelos religiosos de matriz africana é uma perseguição aos moldes do Quebra de 1912. No ano de 2010 houve um enfrentamento que quase causou intercorrências graves, com agressões físicas que iniciaram com os seguranças dos religiosos neo-pentecostais. Em ato orquestrado politicamente os evangélicos pleitearam a ocupação da praia da Pajuçara, o poder público, através dos órgãos licenciatórios municipais, concedeu a utilização por parte da categoria de religiosos evangélicos, em detrimento aos praticantes de religião de matriz africana que, historicamente, ocupam as praias nos últimos 70 anos. Em 2015 o movimento de religiosos com o apoio do CONEPIR, acionou o poder público, através de ação no Ministério Público Estadual para garantir a realização dos seus ritos. A ação teve início quando, um dos líderes de matriz africana buscou autorização para o fechamento da avenida para a realização de uma carreata em saudação à Iemanjá e contra a intolerância religiosa no estado. No que foram prontamente atendidos pelo poder público que interviu de maneira a dirimir os problemas que pudessem ser causados em um conflito direto. Tal ação originou-se porque os evangélicos solicitaram do mesmo órgão licenciado, a realização do ato Maceió de Joelhos, no mesmo dia e local que os rituais são praticados pelos religiosos de matriz africana. Após uma verdadeira batalha jurídica, que contou com advogados de peso no estado, praticantes ou não da religião de matriz africana, além do apoio da igreja católica e de alguns representantes da Igreja Batista em Maceió, o movimento religioso e os seus representantes obtiveram a autorização para realizar a carreata, como também a garantia da permanência na praia da Pajuçara até a meia noite do dia 08 de dezembro6. Como desmembramento dessas ações ocorridas no ano de 2015, o movimento afro-brasileiro em Alagoas, lança a proposta para fazer do dia 08 de Dezembro, uma data tombada como Patrimônio Imaterial de Alagoas e assim, assegurar de forma legitima as festividades que vão ocorrer nesta data a partir deste momento. O processo de tombamento é realizado pelo Conselho Estadual de Cultura, vinculado a Secretaria de Estado da Cultura. Vale ressaltar que é um processo longo e que precisa de pesquisas, relatórios e comprovações que assegurem a importância histórica, cultural e social do dia para a sociedade alagoana. Nesse sentido, mais uma vez o poder público, e as esferas governamentais se vêem obrigados a intervir e dar respostas plausíveis a população negra do Estado, como forma de assegurar os princípios constituintes. Também em 2015, o movimento negro e os religiosos de matriz africana solicitaram ao CONEPIR que atuasse de forma a diminuir os casos de intolerância religiosa que estavam ocorOs relatos a cerca do dia 08 de dezembro sobre as constantes batalhas judiciais, são baseados na nossa experiência enquanto militante do movimento afro-brasileiro, enquanto líder religiosa e membro titular do CONEPIR

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rendo nos quilombos alagoanos. Através de denúncias feitas para os representantes do Conselho, do caso de expulsão de uma mulher quilombola de sua comunidade por ser praticante de religião afro-brasileira, como também a liderança do quilombo do Muquém, estava sofrendo insultos em sua porta, por participar do Xangô do Nordeste. A partir dessa solicitação, o CONEPIR acionou seus parceiros e realizou o 1º Encontro de Comunidades Quilombolas e Povos Tradicionais de Terreiro de Alagoas, no quilombo de Muquém. Representantes das mais diversas regiões participaram do encontro, estudantes, religiosos, quilombolas do sertão alagoano e da capital se deslocaram para a cidade de União dos Palmares para uma imersão cultural de grande importância. Observamos que o grande interesse da sociedade alagoana em participar do evento constituiu, sobretudo em contribuir para a promoção de políticas públicas que minimizem as questões de intolerância. Foram abordados vários temas dentro do encontro que durou dois dias. Os objetivos do encontro versaram sobre propiciar e fortalecer o sentimento da pertença cultural das comunidades quilombolas e povos tradicionais de terreiro de alagoas, fomentar estratégias culturais para a preservação do bem imaterial produzido nas comunidades, desenvolver estratégias para a construção e consolidação de redes de proteção social para a população negra, particularmente aos jovens que consolidem na construção de estratégias coletivas para viabilizar a referida rede. Em 2016, o 2º Encontro de Comunidades Quilombolas e Povos Tradicionais de Terreiros de Alagoas já está sendo organizado, debatido, com um formato que possa contemplar ainda mais as comunidades quilombolas espalhadas em todo o estado, bem como o maior numero de terreiros. Em uma ação de aproximação ainda maior com o movimento negro, a Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas, através da Superintendência de Identidade e Diversidade Cultural, colocou como uma ação estratégica no planejamento de 2016, o 2º Encontro, garantindo assim recursos necessários para a sua execução, bem como a participação de outros setores do governo nesse processo de fortalecimento de políticas. Nesse primeiro momento, tentamos construir uma analise baseada nas ações oriundas do movimento afro-brasileiro em Alagoas e que depois de muita luta e reivindicações são absorvidas, em partes, pelos órgãos governamentais, como forma estratégica de apaziguar os ânimos sem que mexa nas estruturas hierarquizantes do Estado, predominando ainda, a política clientelista, patriarcal e de exclusão. Assim, o movimento continua gritando pelos direitos, pela igualdade e pelo respeito as suas crenças e tradições. Por isso é importante a construção e a efetivação do Plano Nacional de Cultura, bem como o plano setorial para cultura afro-brasileira, como fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade mais igual e que todos e todas possam se beneficiar das produções culturais realizadas e fomentadas por eles próprios, como condição básica de demarcação de suas identidades.

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2. O PLANO NACIONAL DE CULTURA E A POLÍTICA CULTURAL Na atual conjuntura, de um esforço continuo na busca pelo reconhecimento da diversidade, da pluralidade, as políticas culturais se constituem como fator importante para a preservação dessa diversidade brasileira, bem como um elemento preponderante para o incentivo a produção dos bens culturais, sem fazer distinção de grupos, sem privilegiar quem tem o maior poder de barganho nas estruturas econômicas. Ao mesmo tempo as politicas culturais também tem como objetivos, garantir o acesso, democraticamente de distintos públicos aos bens culturais, espetáculos e produtos culturais. Os debates sobre as políticas culturais modernas têm como primeiro marco as conferências da Unesco nos anos 1970, nas quais pouco a pouco foi se consolidando, no plano teórico, uma distinção entre dois tipos de políticas: as políticas de democratização da cultura e as políticas de democracia cultural. As primeiras buscavam ampliar o acesso às atividades e aos produtos da cultura da elite, com o objetivo de democratizá-lo. O segundo tipo, então predominantemente “teórico”, buscava, a partir de uma concepção “socioantropológica” de cultura, valorizar e apoiar também as práticas culturais populares (em oposição a apenas as da alta cultura e as da cultura de massa promovida pelos meios de comunicação) (Fabrizio, 1980). (LIMA, et al... 2013: 02). O Plano Nacional de Cultura (PNC) é um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias e metas que devem orientar o poder público na formulação de políticas culturais. Previsto no artigo 215 da Constituição Federal, o Plano foi criado pela Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Seu objetivo é orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. O PNC foi elaborado após a realização de fóruns, seminários e consultas públicas com a sociedade civil e, a partir de 2005, sob a supervisão do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Um marco importante nesse processo foi a 1ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2005, depois de conferências municipais e estaduais. O Ministério da Cultura (MinC) estabeleceu 53 metas, e a lei que estabelece o Plano Nacional de Cultura (PNC) prevê a criação de um comitê executivo para acompanhar a revisão das diretrizes, estratégias e ações do Plano. Esse comitê deverá ser composto de representantes: do poder Legislativo; dos estados e das cidades que aderirem ao Sistema Nacional de Cultura (SNC); do Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC); do Ministério da Cultura (MinC). O Plano tem duração de 10 anos, ou seja, ele é válido até 2 de dezembro de 2020. O Ministério da Cultura (MinC) é o coordenador executivo do Plano Nacional de Cultura (PNC) e por isso é responsável pelo monitoramento das ações necessárias para sua realização. A aprovação do PNC em forma de lei situa a cultura na agenda de cidades, de estados, de outros organismos do Governo Federal e da sociedade. Por isso, sua execução depende da cooperação

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de todos, e não apenas do Governo Federal, para que seja possível realizar as ações e alcançar as metas. O Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) também é responsável por esse monitoramento. Sendo usados indicadores nacionais, regionais e locais que mostrem a oferta e a demanda por bens, serviços e conteúdos, além de indicadores de nível de trabalho, renda, acesso à cultura, institucionalização, gestão cultural, desenvolvimento econômico-cultural e de implantação sustentável de equipamentos culturais. Por isso, o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), gerenciado pelo MinC, é fundamental nesse processo. O Plano baseia-se em três dimensões de cultura que se complementam: a cultura como expressão simbólica; a cultura como direito de cidadania; a cultura como potencial para o desenvolvimento econômico. Além dessas dimensões, também se ressalta no PNC a necessidade de fortalecer os processos de gestão e participação social. Esses tópicos estão presentes nos seguintes capítulos do Plano: (i) Do Estado, (ii) Da Diversidade, (iii) Do Acesso, (iv) Do Desenvolvimento Sustentável e (v) da Participação Social. Além disso, o Plano é composto de 36 estratégias, 274 ações e 53 metas. Os Planos Setoriais Nacionais têm como objetivo garantir que as especificidades próprias de cada setor da cultura sejam observadas e atendidas pelas políticas públicas. Plano Nacional de Cultura está comprometido com o fortalecimento de políticas específicas para os setores. Isso está expresso em suas ações e metas, a saber: Ação 2.2.1 Formular e implementar planos setoriais nacionais de linguagens artísticas e expressões culturais, que incluam objetivos, metas e sistemas de acompanhamento, avaliação e controle social. (Lei n°12.343/2010: Anexo, Capítulo II) Meta 46 – 100% dos setores representados no Conselho Nacional de Política Cultural com colegiados instalados e planos setoriais elaborados e implementados. (Metas do PNC, 2011). A formulação dessas políticas deve estar baseada em processos de consulta e participação da sociedade, como expresso no objetivo XIV do PNC (Artigo 2º, Lei 12.343/2010), o que reforça a necessidade de que o processo de elaboração e de tomada de decisão dos Planos Setoriais seja estruturado num amplo sistema de discussão e reflexão coletiva sobre a atual situação de cada setor. Dentre os 19 setoriais que fazem parte do Plano Nacional de Cultura, apenas 09 possuem seus planos setoriais. Entre os que ainda não possuem, está o de Cultura Afro-Brasileira. A elaboração do plano nasce das demandas dos diversos setores que compõe o segmento afro, que estão debatendo e ampliando a participação, elaborando propostas para que políticas públicas sejam efetivadas, mas por que o plano não foi consolidado? Embora se saiba que por meio da fundação Palmares, muito já se conseguiu realizar, em termos de ações afirmativas, reconhecimento de patrimônio imaterial, eventos temáticos e a valorização das expressões culturais.

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3. NOTAS CONCLUSIVAS Nossa contribuição para a efetivação das políticas públicas lançadas pelas mais diversas esferas do governo, uma vez que cabe à Secretaria de Estado da Cultura, ampliar os princípios que são postos pelo Ministério da Cultura, em consonância à Constituição Brasileira em seus artigos 215º e 216º, que asseguram o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais e que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, tais como indígenas, comunidades quilombolas e povos tradicionais de terreiros, tem sido cotidianamente uma batalha para que, possamos incorporar o conhecimento adquirido dentro da esfera acadêmica e na militância, com o aprendizado que é trabalhar em uma instituição que gere as questões culturais no estado. Tendo em vista que estamos situados em um estado que vem de uma longa tradição de domínio da elite coronelista branca patriarcal, em detrimento à população negra que originalmente constituiu a formação sócio histórica do estado e que, ainda é o principal alvo de políticas excludentes, discriminatórias e violentas, nossas ações devem e são construídas a partir de um longo e cansativo diálogo com os gestores. O que se torna claro hoje em dia, é que muitas pesquisas realizadas pelos pesquisadores das áreas de humanas, estão mais ligadas à temas de interesses do cotidiano, das militâncias políticas, de gênero, sexo, religião, juventude, violência, da promoção e sensibilização para os direitos sociais, culturais, pela busca de políticas públicas que construam a valorização da diversidade cultural, das múltiplas sociabilidades e realizações. Como propõe Eunice Durham (2004): “Estamos em suma, produzindo uma nova e intrigante etnografia de nós mesmos” (2004:14). O pesquisador no cenário atual deve estar buscando dialogar mais com o campo, com as necessidades do campo, com a astúcia militante inerente a todo individuo como um “Animal político”. Assim para Michel Agier: “Esse lugar do antropólogo pode ser definido de duas maneiras: primeiro, é claro, como um lugar social negociado na situação de investigação a partir da qual se pode conceber o engajamento crítico do pesquisador, como expos alhures; em seguida, como lugar intelectual, no sentido de que o antropólogo tem necessidade, hoje em dia, de ferramentas teóricas atualizadas para dar conta da relação contemporânea entre identidade e cultura”. (p.07). O lugar de onde escrevemos este trabalho está situado em relações complexas, de jogos de poderes em que ainda perpetuam velhas práticas políticas, de ideologias de dominação e segregação, de escolhas baseadas nos padrões patriarcais e de elites brancas, que promovem “um resgate” da cultura popular, “resgate” das manifestações da cultura afro-brasileira, situando muita das vezes, esses “resgates” nos interesses políticos.

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POLÍTICAS CULTURAIS PARA A MUSICALIZAÇÃO EM SÃO PAULO: DIÁLOGOS E CONTRASTES ENTRE O VOCACIONAL MÚSICA E O PROJETO GURI. Inti Anny Queiroz1 RESUMO: O presente estudo apresentar dois programas de ensino de música em São Paulo, o Programa Vocacional e o Projeto Guri, estabelecendo um diálogo com o projeto da Orquestra de Instrumentos Nativos do boliviano Cergio Prudencio apresentado no livro “Hay que caminar sonando”. Neste estudo buscaremos descrever e analisar as propostas enquanto políticas públicas para a música e ações de incentivo à musicalização de jovens, observando as propostas em diálogo e pensando em meios de proporcionar um melhor aproveitamento dos programas paulistas. PALAVRAS-CHAVE: música, musicalização, juventude, políticas culturais.

1. INTRODUÇÃO – O CONTEXTO DAS POLÍTICAS PARA MÚSICA NO BRASIL. A produção musical no Brasil e na América Latina, bem como, o ensino de música, mas principalmente a circulação e difusão da música, de certo modo, quase sempre foi pautado por estéticas vindas do exterior, principalmente vindas da Europa e dos Estados Unidos. Para compreendermos ações atuais nas políticas culturais para música é relevante observarmos processos históricos que nos trazem às formas da música e seu ensino como acontecem atualmente. Neste artigo buscamos inicialmente uma análise de um panorama histórico, num segundo momento como contraponto comparativo, a experiência de um projeto de musicalização de jovens na Bolívia e por fim um descritivo sobre duas experiências de musicalização atuais no estado e município de São Paulo, o Vocacional Música e o Projeto Guri. A fase embrionária das políticas culturais no Brasil pode ser pensada a partir da chegada da Família Real Portuguesa no início do século XIX. Este período apresenta claras influências da cultura francesa e demonstra a relevância da cultura proveniente da elite econômica e cultural, isto é, da cultura erudita como prioridade nos investimentos iniciais de políticas culturais no país. Na época, a maior parte da população brasileira era analfabeta, muito pobre e raramente tinha acesso a qualquer um dos produtos dos investimentos em cultura quase sempre feitos para Doutoranda e mestre no Programa de pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH da Universidade de São Paulo – USP. [email protected]

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entretenimento da elite e da nobreza presente. Os feitos do Estado esboçavam uma tendência exclusivista e civilizatória que foram reforçadas com as missões francesas na cidade do Rio de Janeiro a partir dos idos de 1820 e durante todo o século XIX. O fenômeno das missões francesas “se inscreve num quadro mais amplo do que a mera circunstância da presença da corte no Brasil. Foi na verdade, parte do processo de rompimento com a arte colonial barroca, mestiça e autodidata.” (LOPEZ, 1995, p.15) Desde o período colonial e sobretudo após a chegada da Corte de D. João VI ao Brasil, em 1808, a ‘cultura’ foi pensada de duas formas pelas oligarquias políticas e econômicas que se sucederam no poder. De um lado era associada ao conhecimento que certas pessoas – ‘cultas’, acumulavam ao longo da vida. A cultura seria, desse ponto de vista, um privilégio daqueles que ‘naturalmente’ teriam aptidão intelectual, uma minoria letrada num país de analfabetos. De outro, a cultura estava associada somente às artes como a música, a pintura, o teatro, a literatura, de origem europeia. Nessa perspectiva, a ‘sociedade culta’, com ênfase nos artistas, seria aquela que dominasse esses instrumentos sofisticados marcadamente europeus. (MEIRA, 2004, p. 13) A história das políticas específicas para a música tiveram início em 1848 com a fundação também no Rio de Janeiro, do Conservatório Nacional de Música em uma das salas do Museu Imperial. Após a Proclamação de República em 1889, o conservatório passa a ser chamado de Instituto Nacional de Música e amplia suas atividades. Na chamada Era Vargas (1930 – 1945), mas principalmente no período do Estado Novo (1937 – 1945) observamos a criação e implantação de diversos órgãos públicos de cultura que visavam o reforço de estrutura nacional e de um projeto de incentivo à cultura institucional, consolidado e orquestrado pelo governo. O forte apelo nacionalista do governo Vargas possibilitou a criação e o estabelecimento de entidades que privilegiavam a cultura de identidade nacional, ainda que com influência europeia em sua gestão. A Era Vargas foi fortemente marcada por uma nova perspectiva para o país e para a população de modo geral. “Nos anos 30 procurase transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como ‘preguiça’, ‘indolência’, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia do trabalho.” (ORTIZ, 2003, p. 42) Dentre as entidades criadas no governo Vargas uma das mais importantes e que mais demonstravam a tentativa do governo em implantar uma ideologia nacionalista no país foi o Conservatório Nacional do Canto Orfeônico (1942) que tinha como principal articulador o maestro Heitor Villa-Lobos. O conservatório buscava ensinar a música erudita, o canto patriótico e folclórico para jovens músicos cariocas que deveriam atuar como arte-educadores em instituições educacionais.

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O canto orfeônico tem suas origens na França, no início do séc. XIX, quando era uma atividade obrigatória nas escolas municipais de Paris. É um canto coletivo, de característica se organizam conjuntos heterogêneos de vozes. A prática do canto orfeônico não exige conhecimento musical ou treinamento vocal prévio. (CARICOL, 2013, p. 2) Porém, ainda que em dissenso com a política nacionalista de Vargas, a proposta estética musical de ensino do canto orfeônico trazia toda sua metodologia da cultura francesa. O projeto do Conservatório visava além da arte musical, ensinar também preceitos de disciplina e trabalho para que estes pudessem multiplicar os ensinamentos do canto orfeônico nas escolas e atingir assim a juventude estudantil. O canto orfeônico aplicado nas escolas tem como principal finalidade colaborar com os educadores para obter a disciplina espontânea e voluntária dos alunos, despertando, ao mesmo tempo, na mocidade, um sadio interesse pelas artes em geral e pelos grandes artistas nacionais e estrangeiros. (VILLA-LOBOS, 1946 apud WISNIK, 2004, p.179)2 A experiência do Conservatório do Canto Orfeônico ilustra bem como foi pensada inicialmente a musicalização da juventude e seguiu durante muitos anos do século XX em todo país, pautado pelo ensino de música erudita, visando a disciplina como processo civilizatório e a difusão de hinos cívico-patrióticos. A música popular também era ensinada no Conservatório, porém era tratada como Folclore e como um tipo inferior de estética musical quando comparado às obras de música erudita. Villa-Lobos entendia que a música poderia influenciar na construção do caráter de cada indivíduo. Ainda nos anos 1930, em São Paulo, durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura da cidade, o ensino de música e a musicalização tiveram tímida atividade. Nos documentos presentes na obra do autor “Sou um departamento de cultura” (ANDRADE, 2015) é possível encontrar documentos que relatam a doação de um piano pelo Theatro Municipal de São Paulo em julho de 1935 para o ensino de música a crianças num recinto localizado no Parque Dom Pedro. O terceiro piano, de pouca necessidade no teatro, é no entanto necessaríssimo nos parques infantis, onde será utilizado para ensino às crianças de rodas, danças e cantigas tradicionais do Brasil, que o progresso deste município e o seu excessivo contagio com as massas populares de imigrantes, expulsaram daqui. (ANDRADE, 2015, p. 150) Ao longo dos anos, os conservatórios de música públicos e particulares foram sendo instalados num país pobre, que privilegiava a exclusão cultural e permanecia assim carente de investimentos em sua cadeia produtiva de música popular regional. A priorização pelo ensino da Trecho do texto “Educação musical” parte do relatório completo sobre o programa de implantação nacional do ensino do Canto Orfeônico nas escolas, publicado no Boletim latino-Americano de música, Ano VI, Tomo VI, 1ª parte, Rio, 1946.

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música erudita como possibilidade de “civilização” e a compreensão da música popular como música folclórica foi recorrente nos poucos programas governamentais de música implantados até final da ditadura militar. Apenas nos anos 1980 e com a redemocratização foi que este panorama teve alguma alteração. A chegada de diversas escolas internacionais para o ensino particular de música e a implantação de novos programas para ensino das artes começaram uma nova etapa no ensino de música. Foi em 1980, que na cidade de São Paulo surgiu a EMIA - Escola Municipal de Iniciação Artística criada numa pequena casa no Parque Municipal Lina e Paulo Raia. Ainda que a escola tenha surgido durante o período da ditadura militar, desde o início buscou trabalhar com o ensino das artes para crianças entre 5 e 12 anos, principalmente música, teatro, dança e artes visuais de forma reflexiva e democratizante. Atualmente a Escola tem um espaço fixo no bairro do Jabaquara. Em 1995, o então governador de São Paulo Mario Covas cria o Projeto Guri, inicialmente sediado na Oficina Cultural Mazzaropi onde eram atendidas 180 crianças e adolescentes entre 8 e 18 anos. O projeto visava a musicalização como transformação cidadã e atualmente é um dos principais programas de musicalização infantil do governo do estado ao lado da EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo) e do Conservatório de Tatuí. Os três programas são atualmente geridos por Organizações Sociais de cultura em parceria público privada. No ano de 2001, surge na cidade de São Paulo, o programa Vocacional, a partir de um projeto popular chamado “Teatro Vocacional” que privilegiava o incentivo ao artista amador, à criação artística e o empoderamento social pela arte. Também no âmbito da prefeitura de São Paulo, e inspirado na experiência da EMIA, em 2008 nasce o PIÁ – Programa de Iniciação Artística que visa atender crianças de 5 a 12 anos no aprendizado e produção artística. Atualmente os dois programas atendem 2.670 crianças (Piá) e 5.280 (Vocacional) em 74 equipamentos da cidade. Do total de vagas, 16% são para a música. Ainda sobre o ensino de música devemos ressaltar que uma lei de obrigatoriedade do ensino de música nas escolas foi aprovada no ano de 2008 pelo presidente Lula, lei federal 11.769/2008. Esta lei, ainda que esteja sendo aplicada em seu potencial mínimo, permite que professores licenciados em qualquer disciplina possam ministrar aulas de música nas escolas. Não é intenção deste estudo adentrar no assunto sobre o ensino de música nas escolas, porém visto que este tem sido relegado a professores de outras disciplinas e que boa parte das escolas, principalmente públicas, não cumpram com o estabelecido, é possível dizer que o incentivo à musicalização fora do universo da escola regular se faz ainda mais necessário e por isso propomos esta reflexão acerca de dois programas realizados atualmente em São Paulo: o Vocacional Música e o Projeto Guri.

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Para melhor ilustrarmos e completarmos nossa reflexão trazemos a ótima experiência da Orquestra de Instrumentos Nativos da Bolívia de Cergio Prudencio. O diálogo com a proposta de Prudencio permeia nosso artigo não apenas em termos teóricos e de reflexão, mas também como uma possibilidade de diálogo entre diferentes formas de ensino e criação musical. O texto do boliviano deve nos guiar para compreendermos a ideia de musicalização contemporânea e de fortalecimento da cultura popular local. Achamos essencial a esta reflexão a observação da proposta correlata de outro país da América Latina em que os procedimentos técnicos da música erudita orquestral podem (e devem) dialogar com a criação libertária de uma música popular regional. Buscamos assim compreender as especificidades e possibilidades que permitem unir os dois programas para musicalização de jovens que ocorrem em São Paulo. 2. A EXPERIÊNCIA BOLIVIANA DE CERGIO PRUDENCIO. O boliviano Cergio Prudencio em sua obra “Hay que caminar sonando” traz a ideia de um manifesto pela música contemporânea boliviana. Ele fala que o século XX foi o século da interpretação, em que nos limitamos a fazer um culto a arte de épocas anteriores à nossa. Prudencio trata muito bem da questão da reflexão do papel do músico formado por um conservatório, ou mesmo por uma universidade, que tem como futuro (in)certo a entrada em alguma orquestra, ou ministrar aulas de música erudita, ou ainda que seja de música popular, que esta seja nos moldes tradicionais do ensino de música. Prudencio evidencia que atualmente a oferta de músicos é maior que a demanda e se torna cada vez mais um problema para estes profissionais buscar sobreviver de música, principalmente se continuar sendo pela interpretação de uma música feita por outros compositores em tempos anteriores. Ele ressalta que é necessário ter uma mudança de direção e buscar uma música atual, que possa refletir a real música contemporânea. “El problema radica em querer sobrevivir musicalmente em base a un trabaljo que lo han hecho outros y em outro tiempo”3. (PRUDENCIO, 2010, p. 21) Ele acredita que só por meio da criação é possível essa mudança e cita Schoenberg dizendo “Arte é arte nova”. Neste novo momento de mundo é preciso perceber que estamos num período em que temos muitas influências culturais e esta arte nova suscita também a uma nova vivência. Apenas através de novas experiências estéticas seria possível educar o homem de forma permanente para sua sensibilidade e espírito. Para Prudencio a arte deve ser viva. Desta forma, ele justifica e defende a criação de seu projeto da Orquestra de Instrumentos Nativos que deve trazer conteudos da atualidade com a necessidade de trabalhar em busca de expressões novas e relacionadas ao nosso ser social. O conceito de arte muda em função do sistema econômico“ O problema está em querer sobreviver musicalmente com base num trabalho feito por outros e em outros tempos”. 3

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social que se pretende chegar e é por meio desse novo olhar que a musicalização contemporânea e o ensino de música para crianças e jovens deve ocorrer. Prudencio descreve que o trabalho deve ser realizado inicialmente por um desenvolvimento técnico, desenvolvimento da infraestrutura e também com formação e capacitação do elemento humano. Fala da importância da investigação da música indígena, base cultural de todos os países latinoamericanos e como a partir dessas tradições poderão criar novas sonoridades locais. A proposta criada para este novo projeto musical deve se alimentar da pesquisa de musica regional popular, mas com autonomia de criação. Ele acredita que estes novos processos de criação e produção musical tem grande importância na questão da “libertação nacional”, perante uma nova atitude de defesa da personalidade cultural local na construção de uma sociedade nossa. Isto é, para ele, esta nova geração de músicos e de estéticas musicais criadas com referências musicais regionais pode gerar uma força não apenas regional, privilegiando a diversidade estética de cada cidade, estado ou país, mas também num processo emancipatorio de identidade nacional. A busca pelo ensino, pesquisa e por uma música autoral, própria, com elementos locais é para Cergio Prudencio uma forma de empoderamento. 3. CRIAÇÃO MUSICAL, DISCIPLINA E EMPODERAMENTO As experiências do Conservatório do Canto Orpheônico de Villa-Lobos e da Orquestra dos Instrumentos Nativos de Cergio Prudêncio apenas se distanciam dos programas que iremos tratar aqui em termos de tempo e espaço. Não seremos injustos em dizer que alguns princípios destas experiências poderão ser observados atualmente em São Paulo, tanto no Projeto Guri quanto no Vocacional Música. A busca por um diálogo entre estes programas de musicalização incide principalmente em pensar na adolescência, principalmente entre 14 e 18 anos, período em que a música é concretamente apresentada ao jovem, se faz mais presente e pode atuar como uma possibilidade de novos caminhos artísticos ou mesmo como carreira profissional. Primeiramente é importante frisar que os programas Vocacional Música e Guri são notoriamente diferentes não apenas em termos de propostas estéticas, éticas, políticas, mas também em números e abrangência. Porém o que observaremos aqui não serão os resultados quantitativos, mas sim, como foi pensada em cada caso a musicalização desses adolescentes e quais são os pontos convergentes e que se colocados em diálogo poderiam trazer benefícios às propostas, para assim beneficiar ainda mais estes jovens artistas da música e produzir esta nova música evidenciada por Prudencio. O Projeto Guri se mostra maior em termos quantitativos, não apenas por ser um programa estadual, mas por estar vinculado a uma Organização Social (OS), a Santa Marcelina Música, isto é, o Guri não é um programa 100% público, é uma PPP (Parceria Público Privada)

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conta com investimentos públicos, privados e também de outras parcerias público-privadas. Atualmente o Guri está em 316 municípios do estado, atendendo aproximadamente 30 mil crianças e adolescentes de até 18 anos. Foi criado durante a gestão do Governador Mario Covas, como um programa público, porém a partir de 2004 passa a ser vinculado à gestão de uma OS de cultura, flexibilizando sua gestão, que passa a não utilizar mais as regras de gestão pública vigentes e cada vez mais incentivando o recebimento de patrocínio de empresas públicas e privadas via leis de incentivo fiscal culturais. O Guri tem como seus princípios organizacionais básicos: “Promover, com excelência, a educação musical e a prática coletiva da música, tendo em vista o desenvolvimento humano de gerações em formação.”4 (Site do projeto Guri, Quem somos, Princípios organizacionais, 2015) O Programa Vocacional, mais especificamente o programa Vocacional Música, é um programa da Prefeitura de São Paulo, com gestão articulada pelas Secretarias de Cultura e Educação e atende mais de 5000 pessoas/ mês, jovens e adultos acima de 14 anos em 74 equipamentos públicos do município de São Paulo. Tem como princípios do programa: Os seis princípios – o artista-orientador e o coordenador como mestre ignorante, o nomadismo no espaço público, a ação cultural, as relações entre forma e conteúdo, a memória do processo e a apreciação / contemplação – surgiram ao longo dos dez anos de existência do programa, em um processo de pesquisa coletiva – com o qual contribuíram todos os artistas que participaram do vocacional – e são considerados conceitos essenciais à pratica dialógica com o artista vocacionado.”5 (VOCACIONAL, Princípios do Programa) As experiências relatadas nas ultimas edições da Revista Vocare, anuário do programa Vocacional escrito a diversas mãos por gestores, coordenadores artísticos, artistas-orientadores e vocacionados6 demonstra bem que o programa busca articular de forma dialógica, isto é, com total diálogo criativo, toda a proposta pautada principalmente num processo de “pesquisa-ação” em que os próprios vocacionados participam da criação dos métodos e materiais pedagógicos. Este tipo de metodologia evidencia o processo dialógico proposto pelo Vocacional Música em que o vocacionado está em diálogo com seu “outro” e não apenas cria sua música, mas a produz através da troca cultural. O teórico russo Mikhail Bakhtin explica bem o que seriam essas relações dialógicas. (...) relações lógicas ou às concreto-semânticas que por si só carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se Informações do site do projeto Guri disponível em: < http://www.projetoguri.org.br/quem-somos/principios-organizacionais/ > acesso em 10 de julho de 2015. 5 Informações no impresso distribuído pela Secretaria Municipal de Cultura e pelo programa Vocacional. A publicação anual intitulada VOCARE, edição 2013 “As premissas pedagógicas: o material norteador”. 6 O programa chama seus alunos de vocacionados e seus professores de artistas-orientadores e estes devem atuar como mestres ignorantes aquele que não está ali para ensinar, mas orientar e aprender junto com o grupo. 4

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enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles surjam relações dialógicas. Devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ele expressa. São possíveis não apenas entre enunciações integrais mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive uma palavra isolada. (BAKHTIN, 2010. p. 209) Não apenas a proposta estético-metodológica busca esse diálogo, mas a ideia é que os participantes do programa sejam parte ativa-responsiva do mesmo enquanto gestores culturais e territoriais, tornando assim a gestão compartilhada não apenas entre as secretarias de cultura e educação mas também entre todos os envolvidos. Nos encontros dos vocacionados com seus artistas-orientadores, a maior preocupação não é apenas o ensino de música em si, mas como articular a criação e a produção de música para o empoderamento do indivíduo-artista em seu território. Por outro lado, o Projeto Guri, como bem evidenciado em sua descrição de princípios, busca a excelência artística na prática coletiva de orquestra. O ensino de música não é compreendido como processo artístico e sim como ensino musical em que obras de compositores tidos como referência musical, tanto eruditos como populares são interpretadas. Ao contrário do Vocacional Música em que as atividades são idealizadas a partir das demandas de cada grupo de vocacionados, o projeto Guri traz uma proposta mais conservadora de ensino de música ao propor um programa mais rígido a ser cumprido no curso básico de Fundamentos da Música e nas aulas de instrumentos musicais tradicionalmente utilizados em orquestras. A proposta busca ativar por meio de três pilares a música no mais alto grau de excelência: composição, performance e apreciação. As apresentações dos grupos de adolescentes do Projeto Guri são conhecidas pelo formato orquestral e a interpretação de grandes obras da música erudita e popular, bem como pela regular interpretação do hino nacional brasileiro nas apresentações das orquestras participantes do projeto. Tanto o repertório quanto a metodologia do projeto nos remete diretamente aos preceitos de erudição do Conservatório do Canto Orfeônico de Villa-Lobos. Porém este método mais conservador de ensino musical, em que aulas regulares de instrumentos musicais compõem a estrutura base do programa, proporciona aos alunos do Projeto Guri a possibilidade de terem contato com instrumentos musicais de orquestra logo nas primeiras aulas. O investimento em equipamentos e instrumentos musicais é uma das bases do projeto. O patrocínio de empresas públicas e privadas a uma OS de cultura possibilitou que ao longo dos anos o Projeto Guri pudesse manter um grande acervo de instrumentos musicais nos equipamentos em que atua. A não obrigatoriedade de licitação pública para a compra de instrumentos, pois a entidade responsável pelo programa não é um órgão público, permitiu que esse tipo de metodologia pensada para a criação de orquestras mais tradicionais fosse aplicada.

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Por outro lado, podemos observar duas lacunas nesta metodologia. Primeiro, estes instrumentos não pertencem ao patrimônio público paulista, o que nos permite pensar que não há uma garantia de continuidade do programa, bem como considerá-lo uma política pública para música. Em segundo lugar, não há a possibilidade dos alunos do programa levarem os instrumentos musicais para casa e continuarem suas práticas fora do ambiente de aulas. No plano municipal, a dificuldade em relação aos instrumentos musicais é ainda maior. A compra e manutenção de equipamentos e instrumentos musicais para o programa Vocacional Música ainda é um obstáculo, pois boa parte dos equipamentos estão diretamente vinculado a duas secretarias municipais numa gestão compartilhada, a da Cultura e da Educação. Porém os diversos relatos de artistas-orientadores na revista Vocare demonstram que a criação e a produção musical acontecem por meios alternativos como instrumentos em sucata, gravação em computadores das bibliotecas, ou mesmo com o uso de instrumentos e equipamentos de vocacionados e artistas-orientadores. Coincidentemente ou não, parte das aulas do Projeto Guri na cidade de São Paulo acontecem nos mesmos espaços em que acontecem as experiências musicais do Vocacional Música, nos CEUs (Centro de Artes e Esportes Unificados). “A gestão dos CEUs é compartilhada entre as prefeituras e a comunidade, com a formação de um grupo gestor, que fica encarregado de criar um Plano de Gestão, e também conceber o uso e programação dos equipamentos”7 (site CEU) Ao pensarmos que os programas utilizam o mesmo espaço e buscam como princípio fundamental a musicalização, o diálogo entre os dois programas poderia ser naturalmente possibilitado e incentivado por seus gestores. Os CEUs enquanto instituição de parceria entre sociedade civil, governo e prefeitura também poderiam incentivar o diálogo entre os programas bem como a troca artística entre seus participantes. Porém, de acordo com relatos dos artistasorientadores do Vocacional, isto infelizmente não ocorre. Além dos programas serem geridos por diferentes entes federados, as diferenças político-partidárias, bem como as diferentes metodologias de ensino, mantém os projetos separados ainda que dividam os mesmos espaços. Ao retornarmos à experiência de Cergio Prudencio na criação da Orquestra de Instrumentos Nativos, percebemos que nos processos de musicalização é possível pensar em alternativas para a produção de música, como a construção de instrumentos. Esta possibilidade é utilizada no Vocacional Música, não apenas como uma alternativa, mas como uma necessidade, visto que entre os vocacionados de música, muitos deles não tem condições financeiras de comprar um instrumento musical e os do Projeto Guri não são compartilhados com o Vocacional. Um dos relatos trazidos na Revista Vocare que conta a trajetória de Edison Pereira, 52 anos, atualmente em situação de rua, ilustra bem este panorama e como as dificuldades são superadas. Sobre os CEUs. Disponível em: < http://ceus.cultura.gov.br/index.php/home/o-programa> acesso em 13 de julho de 2015

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“Sua vivência na rua, como sua profissão de coletor de materiais recicláveis, se faz presente em suas composições. Edison traz a ideia de reciclagem estilística e sonora para as suas composições, através de uma liberdade harmônica, melódica e rítmica.” (Revista Vocare, 2013, p. 16) Por quase não terem instrumentos para uso, os vocacionados “improvisam” suas experiências, principalmente utilizando a tecnologia disponível nos computadores dos CEUs. A composição musical coletiva de diversos grupos só foi possível através do uso de softwares de música. Esta nova modalidade digital musical proporcionou uma extensa produção aos vocacionados, principalmente para os interessados no RAP8. Acompanhando uma orientação de Fernando Diniz, no extremo sul de São Paulo. Ele buscou aproximar a música das realidades vividas por seus vocacionados em suas comunidades, trazendo para a orientação três canções que se relacionam com o trânsito caótico vivenciado diariamente na estrada M’ Boi Mirim: A ponte (Lenine e GOG), Da ponte pra cá (Racionais MCs) e Triunfo (Emicida). (Revista Vocare, 2013, p. 64) Os vocacionados participam não apenas de composições de novas músicas, mas aprendem um pouco da chamada “Cultura remix” tão comum na criação musical do RAP. Desta forma ressignificam a cultura periférica a partir de seus olhares experiências e histórias de vida. Seja uma produção nova para o movimento Hip Hop de São Paulo, seja uma canção do coral das senhoras da terceira idade de uma biblioteca, seja o grupo de adolescentes que tocam violões nas tardes após a escola, o Vocacional atua com poucos equipamentos mas com muita criatividade. O programa busca em cada vocacionado a nova música do fundo da alma e com seu tom territorial. A música urbana de São Paulo ganha novas possibilidades ao ser pensada como processo dialógico de troca cultural e empoderamento periférico. O mesmo empoderamento social e identitario que Prudencio buscou em seus meninos da Orquestra de Instrumentos Nativos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas públicas de música no Brasil, mais especificamente em São Paulo, assim como mostrou Cergio Prudencio, deveriam não apenas pensar em alternativas e novos modos de incentivar a musicalização, mas sim buscar meios de otimizar equipamentos, ampliar o diálogo entre os programas dos diferentes entes federados, bem como pensar em novos modos de produção musical, com a inclusão da produção digital de música num projeto mais conservador como o Guri. O RAP (Rhythm and Poetry) é um dos quatro elementos do movimento Hip-Hop que se completa com outras linguagens como a dança dos B-Boys, o improviso e a arte dos MCs e o grafite. O movimento Hip-Hop paulistano é conhecido com um dos mais importantes do país.

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As experiências de musicalização em São Paulo, mais especificamente do Programa Vocacional Música e do Projeto Guri, ainda que tragam olhares, ideologias e métodos diferentes, buscam a musicalização como processo coletivo. Ainda que uma preze pela excelência musical e a outra pelo empoderamento social a partir da música, ambas tem pontos de diálogo na musicalização em grupo. Fica claro que as maiores barreiras para que este diálogo concreto entre os dois programas ocorra não são espaciais, mas sim políticas e burocráticas. As condições de diálogo são favorecidas pelo compartilhamento de espaço, mas seus gestores, enquanto funcionários de instituições públicas de diferentes vertentes partidárias, nada podem fazer para que este diálogo artístico ocorra. Neste mundo contemporâneo em que as diferenças políticas estão acima das necessidades públicas quem realmente perde são os participantes dos dois programas, que poderiam juntos criar um novo e rico movimento musical na cidade com a maior diversidade artística da América do Sul.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mario. Me esqueci completamente de mim sou um departamento de cultura. Organizadores Carlos A. Calil e Flavio Penteado. São Paulo: Imprensa oficial, 2015. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]. CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. CARICOL, Kassia. Panorama do ensino musical. 2013. Disponivel em: < http://www.amusicanaescola. com.br/pdf/PanoramaEnsinoMusical.pdf > acesso em 10 de julho de 2015. LOPEZ, Luiz Roberto. Cultura brasileira: de 1808 ao pré-modernismo. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1995. MEIRA, Marcio Augusto Freitas de. Para uma política pública de cultura no Brasil. Ministério da Cultura. São Paulo. 2004. Disponível em: acesso em 02 de julho de 2015. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2003. PRUDENCIO, Cergio. Hay que caminar sonando. La Paz: Artelibro,2010. VOCARE. Revista do Programa Vocacional. Ano 3. Sec. Educação & Sec Cultura. São Paulo: Serrano, 2013. _______, Revista do Programa Vocacional. Ano 4. Sec. Educação & Sec. Cultura. São Paulo: Windgraf, 2014. WISNIK, José Miguel. Getúlio da paixão cearense, Villa-Lobos e o Estado Novo. IN: Música. Coleção O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004.

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A POLÍTICA CULTURAL DO EXÉRCITO Iracema A de Alencar1 RESUMO: Considerando que o Exército se afasta do campo político, a partir da Constituição de 1988, a instituição buscará novas áreas de atuação e, principalmente políticas de aproximação com a Sociedade. Na perspectiva aqui adotada uma das áreas mais profícuas para estabelecer essa aproximação será a cultura e, a educação, como meio de qualificação do seu corpo profissional, que atuará em uma nova dinâmica relacional. Por isso, faremos um breve estudo da política cultural do Exército implementada, a partir dos anos ‘90 e que constituirá um verdadeiro espaço de fronteira, considerando todas as articulações e possibilidades de projetos e formações identitárias que este propiciará. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Exército Brasileiro, Identidade, Fronteira, Ensino

As Forças Armadas se organizaram no período do Congresso Constituinte, para manter o dispositivo constitucional que lhes assegurasse, além da defesa da pátria e dos poderes constitucionais, a incumbência da manutenção da lei e da ordem, que significou a sua própria identidade, pois estava intrinsecamente ligada à autonomia institucional constituída e a seu papel no sistema político. Ou seja, a Constituição de 1988 reconheceu a necessidade histórica e militar das Forças Armadas e, por outro lado, a sociedade civil lhe concedeu grande autonomia, ficando à parte das questões relativas à temática militar. Na Constituição de 1988 a representação política da nação reconhece a necessidade histórica e militar das Forças Armadas, mas o Poder Legislativo pouco se ocupa de tudo que diga respeito ao aparelho militar e à defesa nacional. Quando o faz substantivamente encontrase, em geral, na dependência de iniciativas do executivo; quando opera no plano da generalidade, prende-se a uma visão equivocada do aparelho militar como provedor de atendimento social. A sociedade civil, o governo e o legislativo relegam o aparelho militar ao seu próprio cuidado, como se os temas militares fossem “coisas de milico”, não merecendo um tratamento efetivamente nacional (OLLIVEIRA, p.3). Uma das hipóteses levantadas pelos pesquisadores Samuel Alves Soares e Eliezer Rizzo, quanto à opinião de parlamentares e militares ao que tange essa questão seria a teoria da 1

ALENCAR, Iracema A de. Mestre em História Comparada (PPGHC) - UFRJ. Email - [email protected]

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inexistência de risco iminente. Em uma visão funcionalista, muitos parlamentares consideram que não se pode reconhecer uma alta prioridade às questões militares quando inexistem ameaças de guerra. Não havendo ameaças, ou não sendo percebidas enquanto tais, elas não se transformam em questões políticas; portanto não sensibilizam os partidos e os eleitores. Por não fazerem parte do cotidiano do sistema político nem de suas preocupações de médio prazo, os temas militares não chegam até a opinião pública, não fazem parte das agendas eleitorais e não dão voto aos candidatos nem aos partidos. A falta de uma questão perceptível de defesa nacional, apresentada pela suposta falta de risco iminente, desobriga o sistema político a pensar além dos termos imediatos. Porém, este círculo vicioso simboliza também a percepção que os militares têm de sua própria condição: funcionários públicos dedicados, mas não reconhecidos, cuja missão externa (a defesa do país contra um inimigo estrangeiro) é mal percebida e cuja dimensão da missão interna (a defesa do país contra o inimigo interno – instituições ou grupos que interfiram na lei e na ordem do país) é mal acolhida, embora estimulada em situações de crise política. As Forças Armadas são instituições de natureza política, pois o Estado é entidade política e as Forças se destinam a apoiá-lo na implantação ou defesa de suas políticas, a serviço da sociedade. Essa condição de figuras políticas faz com que a existência, o preparo e o emprego das Forças Armadas dependam fundamentalmente da vontade da sociedade manifesta através dos seus canais de influência política e da decisão do Estado de as usarem como instrumento para defender e ter segurança, para defender e dar segurança à Sociedade, para sobreviver e se impor, mesmo em condições adversas; dependem enfim da existência de claros objetivos políticos, sem os quais não é possível legitimar o uso da força (FLORES, 28-35). Ressaltamos, porém, que a visão da inexistência de um “perigo iminente” leva a Sociedade e o Estado a uma perspectiva apática em relação à defesa nacional e a não produção de projetos solidários, causando uma redução da mística que sustenta as Forças Armadas: sua neutralidade sociopolítica, sua coesão interna e sua articulação com a Sociedade. Outro caso seria o conceito de integridade ou de soberania nacional que perdera o apelo e consistência2. Uma situação assim caracterizada não sensibiliza a Sociedade em relação à defesa nacional e às Forças Armadas, induzindo, concomitantemente, à perda de confiança mutua entre a Sociedade e as Forças Armadas e à emersão de dúvidas na Sociedade quanto à razão de ser das Forças Armadas. As quais comandadas pelo natural instinto corporativo de autodefesa, são propensas a não reconhecer a sociedade e o Estado como inspiração e guia das instituições Neste caso vemos claramente a ação de Organizações Não Governamentais e Laboratórios Farmacológicos Internacionais divulgando, via internet, campanhas de defesa do território da Amazônia como área livre de interesse mundial. Alegando, além de sua diversidade biológica, a não condição do governo brasileiro em implementar políticas de proteção desta área do nosso território.

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militares. Resulta, naturalmente, destes fatos certa orfandade funcional e a consequente propensão para o aumento da autonomia corporativa militar.3 No entanto, essas percepções encontram abrigo na estrutura estatal que não foi corretamente equacionada na Constituição de 1988 no tocante às missões militares, à natureza das Forças Armadas e à direção política sobre elas. Nada está previsto no plano da corresponsabilidade do Executivo e do Legislativo, mas tudo conduz a uma acomodação entre Forças Armadas e esses poderes. Em resumo, cabe exclusivamente ao presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas, deliberar sobre seu emprego derivado de declaração de guerra apreciada pelo Legislativo (art. 84, XIX, da Constituição) e para a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem no plano nacional (Lei complementar n° 97/99). Quanto ao Legislativo, além de deliberar sobre os recursos orçamentários destinados às Forças Armadas, cabe-lhe a iniciativa não exclusiva do referido emprego militar no plano nacional, a deliberação sobre a decretação do Estado de Defesa (art. 136, SS 4° a 6°), a constituição de comissão de acompanhamento para fiscalizar a execução do Estado de Sitio ou Estado de Defesa (art. 140) e a autorização para a declaração de guerra e a celebração da paz (art. 84, XIX e XX). A ausência de um projeto que pudesse ser entendido como nacional, ao contrário do vigente durante os anos de governos militares, em boa medida ajuda a explicar a crise de identidade enfrentada pelos militares brasileiros. Noutros termos, a indefinição de como e para que deveria estar estruturada a Instituição Militar, simultaneamente ao desinteresse dos governos civis em definir, em virtude dos interesses nacionais, quais eram as questões de projeção e de defesa em nosso país, são fatores que seguramente ajudaram a sedimentar a aludida crise. No entanto, durante o primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a definição prática de uma missão militar de ordem interna por parte do presidente da República, ao lado do consentimento das Forças Armadas – sobretudo o Exército – em efetuarem missões desse tipo, constituem a nosso ver um autêntico turning point. Em nossa perspectiva, isso levou ao início da superação da crise de identidade militar e à construção de um novo tipo de influência por parte dos quartéis. Diante deste cenário o Exército Brasileiro, a partir dos anos ’90 inicia um processo permanente de atuação no campo da cultura. É claro que desde o século XIX havia a preocupação com a cultura, no que tange a preservação da memória da instituição. Podemos dizer: que o Museu do Exército, inaugurado em 1865; a fundação em 1881 da Biblioteca do Exército; a criação em 1882 da Revista do Exército Brasileiro; a criação da Revista Defesa Nacional, em 1913 e a fundação do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, em 1934, foram os acontecimentos que marcaram os primórdios da atuação na área cultural, no âmbito da Força Terrestre. Vale lembrar que a autonomia é uma tendência inerente às organizações lineares e burocratizadas civis e militares, constituindo-se em permanente desafio para o controle político. Ela não é, portanto, um problema apenas militar.

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A Diretoria de Assuntos Culturais, Educação Física e Desportos – DACED, criada em 31 de março de 1980, pelo decreto nº 84.608 daria assistência aos assuntos culturais no que se relaciona às áreas de museologia, arquivologia, historiografia e biblioteconomia, pois tornava o Museu Histórico do Exército, criado pela portaria nº 061 de 1986 e instalado no Forte de Copacabana, um importante ponto turístico do Rio de Janeiro e sede do Arquivo Histórico do Exército, que possui um valioso acervo de fontes primárias acerca da História do Brasil. Mas somente na década de 90 implementou-se uma política autônoma da instituição, projetando a área cultural de forma mais evidente, dedicando-se exclusivamente à preservação e a difusão do acervo, que compõe o patrimônio histórico do Exército, à pesquisa da História Militar e à manutenção dos valores que norteiam a Instituição. Assim, pelo decreto presidencial nº 99.735, de 27 de novembro de 1990, a DACED foi transformada em Diretoria de Assuntos Culturais (DAC), desvinculando-se esse território da área de educação física e desportos, atuando como órgão técnico-normativo da cultura militar do Exército Brasileiro. A partir deste novo horizonte torna-se fundamental a criação de uma diretoria totalmente voltada para a cultura e suas áreas de influência, como a museologia, a pesquisa e o mercado editorial. Antes a cultura era vista como mera mantenedora da história da Instituição, com os históricos das Organizações Militares, história de seus patronos e, em datas comemorativas, a organização de algum tipo de exposição do seu acervo “histórico”. A Diretoria de Assuntos Culturais vai de encontro aos novos rumos sociedade brasileira, que, a partir do final da década de 90 desenvolve várias frentes de valorização e incentivo à cultura nacional, como criação de leis de incentivos fiscais, implantação de projetos e avaliação de cursos de nível superior e de pós-graduação, no intuito de qualificar mão-de-obra para as novas tecnologias do mercado. Inserida no Departamento de Ensino e Pesquisa, a Diretoria de Assuntos Culturais será responsável pela aproximação do Exército aos novos campos do conhecimento e, consequentemente, do poder. Na atualidade a temática do patrimônio cultural continua relacionada à questão das identidades, mantendo a referência ao pertencimento nacional. A instituição Exército Brasileiro, em vários documentos, se coloca como detentora do patriotismo e valores cívicos do país. Segundo José Murilo de Carvalho os militares se sentem os “donos absolutos do patriotismo e credores da gratidão da pátria”. Em seu artigo “O cólera das legiões” ele faz uma breve análise do posicionamento dos militares diante da nova configuração política do país desde o início dos anos 90. Neste contexto, segundo ele, os civis admitem a necessidade e a importância das forças armadas, mas as querem sob a supervisão democrática e adaptadas às circunstâncias do país e do mundo (CARVALHO, 356-358).

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1. POLÍTICA CULTURAL DO EXÉRCITO Segundo Mario Chagas a ação política invoca a memória, seja para afirmar o novo, seja para ancorar o passado na experiência que se desenrola no presente. É esta ação que faz coincidir memória, identidade e representação nacional. As instituições que tratam da preservação e da difusão do patrimônio material e imaterial articulam e se tornam, concomitantemente, campos discursivos, centros de interpretação e arenas politicas. A memória política ao ser invocada reconstitui o tempo passado, mas faz dele uma leitura influenciada pelas experiências daquele que lembra. Essa memória é construção que se atualiza no presente e projeta-se para o futuro. Para atualizar-se e projetar-se de um tempo em outro a memória lança mão de diversas fontes, com intenção pedagógica, um desejo de articulação entre os que foram e os que vieram depois, uma vontade de formar e produzir continuidades. É possível recortar o passado, conferindo-lhe um sentido atualizado, rearticulado no contexto, e dotado de significado (CHAGAS, 137-139). O Sistema Cultural do Exército (SCEx) definido pela Portaria n° 615 do Estado Maior do Exército, de 29 de outubro de 2002, é formado por todos os comandos em todos os níveis (todas as unidades militares são parte do sistema). Ele tem por finalidades a coordenação da execução dos objetivos culturais e o estabelecimento de um canal técnico entre os diversos comandos militares. O SCEx atuará alinhado com o Sistema de Comunicação Social e com o Sistema de Ensino. Cabe ao Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), por intermédio da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx), a responsabilidade pelas atividades culturais no Exército Brasileiro. Ainda fazem parte do Sistema Cultural do Exército a Fundação Cultural do Exército, a Biblioteca do Exército, o Arquivo Histórico do Exército e o Centro de Comunicação Social do Exército. Os objetivos do Sistema Cultural do Exército são: 1) Participar do desenvolvimento cultural do país, como integrante do Sistema Cultural Nacional. 2) Estabelecer novos laços culturais e ampliar os já existentes, tanto no País como no exterior. 3) Projetar a imagem do Exército a partir dos seus valores culturais. 4) Divulgar as realizações da Instituição nos campos da obtenção do conhecimento, das artes e das manifestações comportamentais. 5) Preservar, restaurar, recuperar e divulgar o patrimônio material histórico, artístico e cultural do Exército. 6) Incentivar a preservação das tradições, da memória e dos valores morais, culturais e históricos do Exército.

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7) Estimular, no público interno, o interesse pela preservação do meio-ambiente e pela melhoria da qualidade de vida. 8) Maximizar a difusão, nos públicos internos e externos, de sentimentos de nacionalidade, patriotismo, amor fraterno e mútua compreensão social. 9) Incentivar os procedimentos destinados ao enaltecimento dos feitos e dos vultos importantes da vida nacional. 10) Promover a preservação do patrimônio imaterial de interesse para o Exército. Observamos que em vários pontos do Sistema Cultural do Exército tem-se a preocupação latente de preservação do patrimônio cultural do Exército como parte integrante da história do país, preservação de valores culturais formadores de nossa nacionalidade e patriotismo. Além disso, sempre em aproximação, ou melhor, como formador da sociedade brasileira. O destaque dado a esses temas pode ser interpretado como uma estratégia de exercício de poder no campo da cultura imaterial e da história do país. O sistema cultural do Exército possui uma política de ação que regula principalmente as atividades culturais, com destaque para as em negrito, que devem: a. ser conduzidas para incidir, positivamente, na motivação e na coesão dos Quadros e para manter a boa imagem da Instituição, junto à população brasileira; b. ser direcionadas para facilitar o cumprimento da missão constitucional do Exército e consentâneas com as características próprias da atividade-fim da Força Terrestre; c. estimular os públicos externo e interno a conhecer e valorizar os feitos da nossa História Militar, incentivando o culto aos símbolos da Pátria e aos heróis nacionais; e d. fomentar o desenvolvimento cultural no âmbito do Exército Brasileiro, buscando: 1) elevar o nível cultural dos quadros; 2) incutir nos quadros os conceitos positivos, já mencionados, da modernidade resultante da evolução social, intelectual e comportamental da humanidade 3) preservar os atributos éticos e os valores que devem ornar o caráter dos militares e da própria instituição militar; 4) preservar a memória e o patrimônio histórico, artístico e cultural do Exército; 5) apoiar a criação e a difusão das manifestações e dos bens culturais; 6) firmar convênios para obter recursos destinados aos projetos culturais; 7) interagir os militares do Exército com as demais Forças Armadas e com a sociedade em geral, por meio do estreitamento dos laços culturais; 8) aperfeiçoar a Doutrina Militar Terrestre por intermédio da pesquisa da nossa História Militar; e 9) ampliar o nível de conhecimentos sobre a conjuntura internacional e a História de outros povos, por intermédio de intercâmbios culturais com países amigos.

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É fundamental destacar que consta na portaria do Sistema Cultural do Exército como principais funções: “b) Prever, em simultaneidade com as ações de preservação do patrimônio, pesquisa histórica e divulgação, mecanismos de influência intelectual sobre o público interno e externo, num processo contínuo de desenvolvimento e aperfeiçoamento de mentalidade coerentes com a realidade social do País e com a evolução da humanidade. c) O Exército é parte da Sociedade Brasileira, por ela criado e nutrido, e para ela são dedicadas as suas ações. Por conseguinte, a harmonia entre as entidades militares e as civis deverá ser total, com seus integrantes interagindo em ambiente de cortesia recíproca e irmanados, para atingir os anseios do povo brasileiro.” (ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO. Portaria n°615 de 29/10/2002, grifos nosso) Dentro deste contexto de inserção do Exército no campo cultural, a Diretoria de Assuntos Culturais, criada em 1990, será o órgão normativo que irá atuar diretamente nesse processo de aproximação com a sociedade civil através da cultura. Suas principais funções serão de estímulo à elaboração de projetos, produção de normas e controle das atividades para preservação, difusão e controle do patrimônio histórico, artístico e cultural do Exército; qualificação dos quadros no âmbito cultural; fiscalização e execução de programas e atividades culturais; dinamização de trabalhos do Conselho de Assessoramento Cultural e coordenação de sua ligação com o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e com a Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHMTB); interagir com a Fundação Cultural Exército Brasileiro no desenvolvimento de projetos e/ou atividades culturais de interesse da Força e elaboração do Plano Básico de Cultura do Exército. A partir desta breve análise da legislação pertinente à Política Cultural do Exército e ao seu Sistema Cultural podemos identificar o esforço do Exército Brasileiro em buscar um espaço no cenário cultural nacional. O Exército se reconhece como fundamental na dinâmica da vida do país e compreende a proficiência do Sistema Cultural como canal perene e fértil de sua comunicação com outros setores da Sociedade Brasileira, em particular com as demais Forças e com o Sistema Internacional. Além disso, vê a atividade cultural como influente estímulo ao patriotismo e ao orgulho pela nacionalidade, pois como parte da História do país possui um rico patrimônio histórico e artístico cultural nas organizações militares (OM), que devem ser divulgados. Além disso, como a própria portaria que regula o Sistema Cultural do Exército define, os objetivos de suas ações são de prever, em simultaneidade com as ações de preservação do patrimônio, pesquisa histórica e divulgação, “mecanismos de influência intelectual sobre o público interno e externo, num processo contínuo de desenvolvimento e aperfeiçoamento de mentalidade coerente com a realidade social do País e com a evolução da humanidade. O Exército é parte da Sociedade Brasileira”, por ela criado e nutrido, e para ela são dedicadas

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as suas ações. Por conseguinte, “a harmonia entre as entidades militares e as civis deverá ser total”, com seus integrantes interagindo em ambiente de cortesia recíproca e irmanados para atingir os anseios do povo brasileiro. (ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO. Portaria n°615 de 29/10/2002. Grifo nosso) A preocupação em criar uma diretoria voltada para cultura é interpretada por nós como um projeto de aproximação, melhor, ocupação de um espaço na sociedade brasileira ligado no campo cultural. As medidas tomadas por essa diretoria e os vários convênios firmados são resultados dos contatos das tradições castrense e civil. A preocupação em estabelecer uma imagem acadêmica e científica é o resultado da bricolage dos elementos destas duas tradições. Ou melhor, há no Exército a busca por um perfil mais próximo dos centros de cultura, estabelecendo diretrizes e novos valores para o ensino e a cultura castrense. Vemos claramente todas essas ações como esforços de participar do desenvolvimento cultural do país, como integrante do Sistema Cultural Nacional. De maneira a projetar a imagem do Exército a partir dos seus valores culturais. Entendemos essa projeção de imagem como uma atualização de sua identidade cultural, adequando-se aos novos tempos. Uma vez que consideramos que a identidade é construída a partir das relações e não estritamente de sua organização institucional, o campo cultural será formador de fronteiras, em que as relações com a sociedade civil se estabelecerão possibilitando a atualização de sua identidade, a partir das apropriações de novos elementos. 2. CONCLUSÃO A partir dessas breves considerações sobre a legislação pertinente à Política Cultural do Exército e ao seu Sistema Cultural podemos identificar o esforço do Exército Brasileiro em buscar um espaço no cenário cultural do Brasil. O Exército se reconhece como fundamental na dinâmica da vida do país e compreende o Sistema Cultural como canal perene e fértil de sua comunicação com outros setores da Sociedade Brasileira, em particular com as demais Forças e com o Sistema Internacional. Além disso, vê a atividade cultural como influente estímulo ao patriotismo e ao orgulho pela nacionalidade, pois como parte da História do país possui um rico patrimônio histórico e artístico cultural nas organizações militares (OM), que devem ser divulgados. Além disso, como a própria portaria que regula o Sistema Cultural do Exército define, os objetivos de suas ações são de prever, em simultaneidade com as ações de preservação do patrimônio, a pesquisa histórica e a divulgação, mecanismos de influência intelectual sobre o público interno e externo, num processo contínuo de desenvolvimento e aperfeiçoamento de mentalidade coerente com a realidade social do País e com a evolução da humanidade. O Exército é parte da Sociedade Brasileira, por ela criado e nutrido, e para ela são dedicadas as suas ações. Por conseguinte, a harmonia entre as entidades militares e as civis deverá

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ser total, com seus integrantes interagindo em ambiente de cortesia recíproca e irmanados para atingir os anseios do povo brasileiro. Vemos claramente todas essas ações como esforço de participar do desenvolvimento cultural do país, como integrante do Sistema Cultural Nacional. Com isso, procurase projetar a imagem do Exército a partir dos seus valores culturais. Entendemos essa projeção de imagem como uma atualização de sua identidade cultural, adequando-se aos novos tempos, uma vez que consideramos que a identidade é construída a partir das relações e não estritamente de sua organização institucional. A identidade cultural do Exército está expressa como consequência e não como um objeto dado. Sua formação é a partir do patrimônio material e imaterial, e como uma consequência dele. A Instituição em determinado momento de seu desenvolvimento, o elege como elemento que deve ser conservado como valor que transcende seu simples uso (ARJONA, 11-19). A aproximação com os espaços civis de cultura e seus projetos, que influenciaram diretamente na política cultural do Exército, estabeleceu espaços de fronteiras. As fronteiras são os lugares onde as comunidades são diásporas e os limites não imobilizam, mas, curiosamente, são atravessados. Frequentemente, é nas regiões fronteiriças que as coisas acontecem: a hibridez e a colagem são algumas das expressões usadas para identificar qualidades nas pessoas e em suas produções (BARTH, 1969). O conceito de fronteira nos remete a outras possibilidades de análise do processo de construção da política cultural do Exército. Ao considerar as relações estabelecidas entre o Exército e as instituições culturais civis um espaço de fronteira é preciso dizer que esta interseção conduz a uma nova identidade da instituição, ou seja, para nós sua identidade é fluida e se estabelece a partir de suas relações e não estritamente sua organização institucional. Nesta perspectiva, a criação de um órgão para gerenciar e normatizar a cultura do Exército foi fundamental na aproximação com a sociedade civil. O projeto seria a apropriação de elementos da política cultural das instituições civis, no intuito de construir uma nova identidade cultural do Exército Brasileiro. A partir desta nova identidade a instituição ocuparia uma posição mais dinâmica no cenário sócio-político do país. A construção desta identidade está sendo feita a partir dos esforços em modificar o ensino, modernizando-o, pois, como mencionamos, para ter seu discurso reconhecido é necessário que ele seja proferido por agentes qualificados, pois só assim tornar-se-á legítimo no campo em que busca exercer o poder. A superação da perda do espaço político pelo ganho do espaço cultural será base de todo esse processo de formação de fronteiras, inserção de novos elementos em sua cultura, construindo uma teia de princípios norteadores de uma nova identidade, cujos interesses principais serão os da construção de uma memória associada à valorização da cultura e do ensino.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEGISLAÇÃO BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. DECRETO PRESIDENCIAL nº 99.735, de 27 de novembro de 1990. ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO. Portaria n°615 de 29 de outubro de 2002. ___. Decreto nº 84.608, de 31 de março de 1980. ___. Portaria nº 061 de 19 de dezembro de 1986. LEI COMPLEMENTAR n° 97 de 9 de junho de 1999.

LIVROS E ARTIGOS ARJONA, Marta. Patrimônio cultural e identidade. Havana: Editorial Letras Cubanas, 1986. BARTH, F. Ethnics Groups et boundaries. The social organization of culture difference. Bost: Little Brown, 1969. CARVALHO, J. M. Pontos e Bordados. Escritos de História e Política. Minas Gerais: UFMG, 1999. CHAGAS, M. Memória política e política de memória. In: ABREU, R. e CHAGAS, M. Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2003. p. 137-166. FLORES, Mário César. Bases para uma política militar. São Paulo: UNICAMP, 1992. OLLIVEIRA, Eliezer Rizzo. O presidente, o congresso e a defesa nacional. Correio Popular, 25-6, 1996.

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PORQUE A CULTURA É UMA POLÍTICA SETORIAL? Irmina Anna Walczak1 Frederico Augusto Barbosa da Silva2 Juliana Veloso Sá3 RESUMO: O campo das políticas públicas tem como um dos seus desafios a multiplicação das fontes e aumento dos seus recursos e, para tal, aguarda definições a respeito de vinculação constitucional de recursos tributários. O texto que segue discute outra parte do desafio do financiamento que é a organização da sua gestão. Também discute a necessidade de consolidação de um orçamento único por esfera de governo, a definição de fundos próprios sob a deliberação de conselhos de cultura setoriais. Para tal, vislumbra a também necessária discussão do escopo de financiamento da cultura, sua abrangência e de classificações orçamentárias adequadas a processos de deliberação e accountability. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, financiamento, políticas setoriais.

1. INTRODUÇÃO A cultura é fluida, móvel e localizada no tempo e no território. Pode-se dizer que seus dinamismos não são abstratos e nem anteriores às relações sociais e institucionais, mas que são constitutivos, isto é, se expressam ou que são dimensões das relações cotidianas, estas, por sua vez, mais ou menos formais ou institucionais. Nossa intenção é explorar a cultura como objeto de política pública. Evidentemente, a cultura seguirá sua trajetória de forma inabalável, continuará fluida, móvel e localizada, independentemente do que possamos dizer. Continuará sendo parte das instituições e do cotidiano. Continuará sendo dimensão ou adjetivando a economia (economia da cultura), a política (cultura política, cidadania cultural) e o simbólico (artes, culturas comunitárias e identidades coletivas) ou permanecerá em suas formas objetivas e subjetivas. Nada do que possamos dizer demoverá Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, Assistente de Pesquisa do Ipea. irminawalczak@ gmail.com 2 Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor do Mestrado em Direito e Políticas Públicas, UNICEUB/Brasília. [email protected] 3 Mestre em Sociologia pela Universidade de Brasília, Assistente de Pesquisa do Ipea. [email protected] 1

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a cultura dos seus caminhos. Entretanto, gostaríamos de manter a ideia de cultura como objeto de política pública, mas também discutir um sentido literal para as políticas culturais setoriais. Queremos asseverar exata e literalmente o que significa dizer que as políticas culturais são parte de uma política setorial. Em nossa discussão propomo-nos a enfrentar um conjunto de questões e articulá-las em torno de saber como as políticas públicas funcionam. Assim, ao que parece, ao resolvermos essa discussão, resolvemos uma parte de problemas que tem interesse intrínseco para os atores, mas que são falsos problemas, pelo menos na perspectiva muito particular na qual pretendemos elaborá-los. Antes de tentar resolver o problema é necessário formulá-lo de forma mais definida. Não desejamos voltar à discussão dos conceitos de cultura, por ser em grande parte já reconhecida, mas passamos por duas abordagens, legitimismo e pluralismo que nos permitirá uma primeira aproximação do tema da política cultural como política setorial, autônoma e especializada. 2. ESCOPO DAS POLÍTICAS CULTURAIS - LEGITIMISMO E PLURALISMO O campo da cultura mantém-se em movimento e constante transformação, o que repercute nas relações entre cultura e Estado. Da mesma forma, o conceito de cultura é um produto histórico e apresenta uma diversidade de sentidos, que vão se transformando ao longo da história em função dos referenciais de política e das relações de força dos atores envolvidos. É possível compreender a cultura como o conjunto das artes, um sistema de significados e valores ou um modo de vida4– em uma abordagem sintética. Quaisquer das ideias modernas de cultura sublinham a capacidade humana de compreender e de construir uma ordem social. Pode-se associar cada modalidade de política pública a um conceito de cultura, a objetivos específicos e a determinados instrumentos de intervenção. Se tomarmos como exemplo as políticas de produção e difusão cultural nas modalidades de políticas de democratização cultural e políticas de democracia cultural, a primeira concebe cultura no sentido das artes legitimamente reconhecidas, as belas artes (teatro, ópera, museu, etc.). A segunda modalidade está estreitamente ligada a uma concepção de cultura como modo de vida, próxima do sentido antropológico, plural e cotidiana. Além de partir de conceitos distintos, os objetivos e instrumentos priorizados em cada tipo de política cultural citado também se diferem. Políticas de democratização cultural visam ampliar o acesso à cultura consagrada. Para isso, se valem de instrumentos de intervenção como equipamentos culturais voltados para a difusão da “alta cultura”, orquestras públicas e eventos artísticos com entrada subsidiada. As políticas de democracia cultural buscam apoiar a produção simbólica de segmentos sociais diversos. Seus instrumentos de política são, por como indicado 4

Williams, Raymond. Marxism and literature. Oxford, New York: Oxford University Press, 1978, p.13.

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por Lima (2013) o fomento à cultura popular e comunitária5. Acrescentamos que a discussão a respeito da democracia cultural, políticas culturais de vizinhança, política culturais comunitárias carecem de discussões mais elaboradas. Muitos são os instrumentos de para a cultura popular e comunitária, se consideramos as comunidades afrodescendentes, ribeirinhos, extrativistas etc., o fomento será um instrumento limitado. Seja como for, considerando a ideia de cultura legítima e pluralista, também podemos ter diferentes modalidades de políticas culturais, mas nos limitamos, por economia, aos tipos diretamente marcados6. Uma modalidade de política está orientada para a promoção do acesso à cultura legítima a um maior número de pessoas, para que esse tipo de produção não se mantenha restrito às elites. A outra, que se originou de críticas dirigidas à democratização, reconhece que existe uma pluralidade de produções culturais, sejam elas populares ou comunitárias, que são igualmente legítimas e importantes, e que é um direito participar desses processos culturais. No Brasil, os direitos culturais, de acordo com a Constituição de 1988, referem-se ao direito de produzir, fruir, transmitir bens e produções culturais e reconhecer formas de vida7. Voltaremos a essa questão à frente. Por enquanto, assinalamos que não apenas as artes mas também a cultura do cotidiano são objetos de política cultural, ou seja, as formas e condições de vida, as formas de participação, expressão e criatividade no contexto social – concepção essa que se aproxima daquela de cunho antropológico e converge com as políticas de democracia cultural. As ações públicas produzem referencias setoriais na medida das relações e representações produzidas pelos atores. Alguns recolocam as questões e modificam os sentidos propostos pela Constituição, propondo novos instrumentos de ação e focos. Essas proposições tanto significam ajustamentos como antecipações de novos sentidos, nem sempre compartilhados em paradigmas de políticas, mas articulando novas significações, foi o que aconteceu com a proposta da Agência nacional do Cinema (ANCINE), com a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e com o Programa Arte Cultura e Cidadania-Cultura Viva. Mudanças de paradigmas nas políticas culturais trazem consigo mudanças de concepção da cultura, outros objetivos e instrumentos a serem mobilizados. Mas a presença de paradigmas diferenciados não implica na substituição de um por outro. Muitas vezes paradigmas relativamente incomensuráveis coexistem. Legitimismo e pluralismo como constitutivos de referenciais alternativos de políticas culturais mantêm estreita relação com duas abordagens a respeito das práticas culturais. Ambas Lima, Luciana Piazzon Barbosa; Ortellado, Pablo; Souza, Valmir de. “O que são as políticas culturais? Uma revisão crítica das modalidades de atuação do estado no campo da cultura”. Anais do IV Seminário Internacional Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2013, p.5. 6 Passeron, J. O raciocínio sociológico – o espaço não popperiano do raciocínio natural, editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1995. 7 Barbosa, Frederico et al. “A Constituição e a Democracia Cultural”. Políticas Sociais – acompanhamento e análise nº 17. Brasília, Ipea, vol. 2, 2009, p.227-281, pg. 239. 5

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pautam-se na ideia de que as práticas culturais se relacionam com processos de socialização referindo-se a disposições incorporadas, ou habitus, que vem a ser um conjunto de saberes e fazeres incorporados, “estruturas interiorizadas, esquemas comuns de percepção, de concepção e de ação”8. De acordo com a vertente legitimista, o acesso aos bens de cultura de maior legitimidade requer disposições adequadas para reconhecê-los e apreciá-los. As instituições culturais, juntamente com a escola e a família, seriam as principais responsáveis por desenvolver no público as competências necessárias para fruir determinados bens e, assim, universalizar o acesso a eles. Vê-se logo a semelhança com as premissas da democratização cultural. Com caráter marcadamente macrossociológico, a abordagem legitimista mostra sua relevância nas análises estatísticas, em que o maior número de consumidores de cultura está entre aqueles com maior grau de escolaridade e maior renda, em outras palavras, maior capital cultural e econômico, considerando grande parte das práticas culturais, como a ida a teatros, danças, cinemas, museus, etc9. Em convergência com a democracia cultural, o disposicionalismo pluralista reconhece a pluralidade de práticas realizadas pelos indivíduos, a multiplicidade de interesses e de formas de engajamento nas práticas culturais. Desse modo, revela-se bastante afinada com a complexidade do contexto cultural atual, em que a cultura legítima convive com outras tantas produções culturais de menor reconhecimento social, mas igualmente legítimas na escala dos indivíduos e grupos de socialização. E todas as possibilidades de práticas podem ser combinadas para participar o universo dos diferentes atores sociais: pessoas que gostam de teatro e ópera, mas não perdem uma estreia de Star Wars; dançam break, forró e balé clássico; frequentam assiduamente os cinemas de arte, mas também assistem aos filmes mais “comerciais” com amigos ou familiares. O disposicionalismo pluralista propõe uma abordagem analítica à escala do indivíduo e, assim, torna compreensíveis os números das estatísticas que escapam dos padrões esperados, como por exemplo, pessoas de baixa escolarização que frequentam museus de modo intensivo ou que simplesmente gostam de obras consagradas. Por outro lado, parte das instituições culturais prefere atenuar fronteiras. É comum que no mesmo momento em que um museu expõe um conjunto de graffitis, apresente ópera, realize apresentações de grupos profissionais de break. Difícil estabelecer fronteiras precisas entre o que é cultura legítima, massiva e popular. Todas estas classificações estão enraizadas em determinados contextos históricos. Com as fronteiras borradas, fica mais complicado selecionar um conjunto de bens culturais que merece o apoio do Estado para sua produção e difusão e outros que não, a exemplo do que propõe a democratização. Bourdieu, P. O senso prático. Livro 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p.99). A exemplo da pesquisa do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) sobre práticas culturais dos brasileiros realizada pelo Ipea em 2014 (circulação restrita).

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Mesmo que o legitimismo e o pluralismo encontrem no equipamento cultural um instrumento chave de política, as duas abordagens propõem formas distintas de ação pública. A primeira busca promover políticas culturais de formação de público por meio da escola e dos equipamentos culturais, sendo estes instituições ofertantes, em geral, especializadas. O pluralismo requer das instituições culturais estratégias flexíveis e envolvimento com os públicos específicos. O que demanda não apenas redes de equipamentos públicos, processos de fortalecimento das instituições e da relação entre elas, e processos de profissionalização de quadros técnicos para atuação nesses espaços, como no caso do legitimismo. Na abordagem pluralista as instituições precisam ser capazes de entender as demandas dos seus públicos específicos. É preciso que haja um ajustamento da oferta com a demanda. As ações devem multiplicar as possibilidades de socialização e exposição a bens simbólicos, visto a relevância desses processos no estímulo às práticas culturais. Como foi dito em outro contexto, O papel do Estado no fortalecimento dos processos de formação de “uma cultura da cultura” é central, afinal, o funcionamento dos mercados deixado a si mesmo pode significar o recrudescimento de desigualdades e exclusões, no caso do legitimismo, e de empobrecimento das condições de desenvolvimento das sociabilidades, das possibilidades de exercício de prazer estético e fruição cultural aberta aos indivíduos, no caso do pluralismo. Portanto, as políticas culturais estariam, por um lado, situadas em relações íntimas e sinérgicas com os processos de universalização ou, simples e diretamente, seriam parte dos processos de reprodução das desigualdades e distinções sociais e, por outro lado, deveriam oferecer condições para as práticas estruturadas e plurais, mesmo que temporárias e de baixo engajamento reflexivo (Barbosa e Sá, 2015). 3. POLÍTICA (INTER)CULTURAL – AS PROMESSAS Em 2003, o presidente Lula assumiu o cargo e nomeou como Ministro da Cultura Gilberto Gil. A partir deste momento, o mencionado conceito antropológico de cultura tomou conta dos discursos do Ministério. Ainda na sua fala de pose, o músico referiu-se a “do-in antropológico” fazendo referencia a uma técnica de massagem chinesa que busca, através de estímulos nos pontos certos do corpo, um funcionamento equilibrado do organismo. Esse tratamento especial seria dado à cultura brasileira visando à inclusão de todas as vertentes e modos de produção e consumo cultural, em especial, as formas de vida cultural, suas representações e sentidos marginalizados e excluídos por anos das políticas feitas para as belas artes. Num trecho que já se tornou emblemático, o Ministro disse: (...) toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido

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de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país (Gil, 2003).10 Lançando mão do conceito antropológico de cultura, o Ministro assumia o compromisso institucional de reconhecer a importância de toda e qualquer produção artística, assim como o modo de vida; abraçava a diversidade e a diferença cultural e propunha igualar o fazer popular às artes: “Não existe o que existe é cultura”11. Em consequência, comprometia-se a criar uma política cultural que atendesse a diversidade das expressões artísticas com suas especificidades, uma política que respondesse a toda uma nação, sem referir-se mais às antigas dualidades. Além disso, com a metáfora de “casa” prometia abertura do Ministério à sociedade civil e estabelecimento de um diálogo constante com comunidades, produtores, artistas e acadêmicos: “(...) quero que esta aqui seja a casa de todos os que pensam e fazem o Brasil”12. Enfim, pautado nos conceitos de reconhecimento, identidade, horizontalidade e participação, o projeto político de Gilberto Gil para a cultura brasileira aproximava-se, pelo menos discursivamente, à interculturalidade, entendida como um campo híbrido, fluido, polissêmico, criativo e promissor da diferença, ou seja, um campo de convivência e construção histórica de projetos ou das políticas que coloca no centro da discussão as questões do respeito da diversidade cultural e do reconhecimento social como vínculo fundamental entre os indivíduos. A ferramenta base desta ideologia13 é o diálogo dialogal que exige a presença e a participação do outro para a sua sustentação. Na necessidade de abertura ao outro, exige a construção ou a internalização de uma nova consciência - a de que os nossos critérios não são absolutos - o que faz com que a troca seja realizada não só a partir de conceitos, mas também a partir do pensamento simbólico que se situa entre o objetivo e o subjetivo, sem deixar espaço para a omissão ou a exclusão de alguma das partes, sendo que nada existe sem interação com o outro. O Programa Cultura Viva, criado através da Portaria Ministerial 156/2004, tem sido uma tentativa de trazer ao plano das políticas culturais as vontades políticas referidas no discurso. Se entendemos as políticas culturais como “um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas e orçamentárias e procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural

Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília: Ministério da Cultura. Disponível em: http://www1. folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44344.shtml Acessado em 13/02/2016. 11 Ibid. 12 Ibid. 13 Pode ser vista também como uma meta narrativa ou série de estratégias para administrar problemas das sociedades multiculturais e coloniais. 10

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do Estado”14, o programa é uma associação desse conjunto de elementos com uma dose de inovação. Ele trouxe uma inversão na lógica de organização da política cultural – deslocou o uso de recursos financeiros do equipamento para o apoio às associações que já desempenhavam um papel de produtores artísticos e mobilizadores comunitários. Mudou o eixo do produto para o processo. Estabelecimento das regras que isentam os grupos postulantes da necessidade de um registro formal foi crucial para a participação de muito grupos marginalizados e, com isso, para o fortalecimento da democratização cultural. Os pontos de cultura, com diversas capacidades de operação e em diferentes níveis de agenciamento tornaram-se espaços experimentais, abertos às manifestações artístico-culturais de uma localidade. A gestão compartilhada, realizada pelos membros da sociedade civil, e uma maior participação da sociedade civil na formulação, avaliação e no redesenho do Programa permitiram um avanço em direção à prática intercultural. Contudo, ainda existem mais expectativas criadas nas narrativas do que as práticas. No citado anteriormente discurso de posse ao cargo do ministro, Gilberto Gil traçou uma promessa de equiparar a cultura à economia, à política e à saúde. Isto é, de reconhecer o real valor da área cultural e investir nela como numa área estratégica, assim como é feito naquelas outras instâncias. Segundo o Ministro, seria por meio da “cultura” que se poderia reforçar a autoestima da população brasileira e realizar um novo e promissor modelo de desenvolvimento. A transversalidade fazia parte do plano de reforçar a importância da cultura e explorar seu potencial como um elo entre diversas políticas públicas e programas do Governo Federal. Embora continuadamente evocado, o conceito permanece no campo da teoria, o que, de um lado, poderia ser atribuído à tradição de setorialidade das políticas públicas no país, e de outro, ao fato da cultura não ser bem-vinda nas discussões referentes à demarcação das terras, aos programas de moradia ou sistemas de transporte público. Enfim, durante últimos doze anos, as idéias do reconhecimento da diversidade, da política pautada no dialogo, etc. tem permeado as narrativas produzidas pelos ministros e seus secretários. Enquanto as práticas não se materializem, servem as promessas repetidas como mantras: Em 2003, o orçamento do MinC era de mais ou menos R$ 287 milhões. Em 2010, eram R$ 2,3 bilhões. Isso nos garantiu a possibilidade de expandir o conceito de cultura. Passamos a incorporar no MinC a visão antropológica de que tudo que ultrapassa o plano funcional e entra no plano simbólico chega ao plano da cultura, e portanto interessa ao ministério. Moda, gastronomia, arquitetura, toda a produção simbólica popular do país (Ferreira, 2016).15 Lima, Luciana Piazzon Barbosa; Ortellado, Pablo; Souza, Valmir de. “O que são as políticas culturais? Uma revisão crítica das modalidades de atuação do estado no campo da cultura”. Anais do IV Seminário Internacional Políticas Culturais – Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2013, p.1. 15 Entrevista concedida pelo ministro Juca Ferreira ao portal Nexo, datada em janeiro de 2016. Disponível em: http:// www.cultura.gov.br/banner-1/-/asset_publisher/G5fqgiDe7rqz/content/-somos-um-ministerio-pos-crise-diz-juca-ferreira/10883 Acessado em 13/02/2016. 14

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4. QUE SIGNIFICA POLÍTICA SETORIAL? Em primeiro lugar, significa que o conjunto de políticas, programas e ações possui todos os elementos de estruturação institucional que traça fronteiras e competências claras em relação às suas finalidades16. Não queremos com isso trazer de volta a fluidez e complexidade da cultura. Também não queremos abandoná-las. Na verdade, a cultura não é objeto de políticas públicas. Jamais foi. Deixemo-la em seu caminho natural. As políticas públicas são produtoras de significações, são normativas, são parte de culturas políticas e não são universais; em muitos casos os valores acionados pelas políticas públicas, a exemplo da presença do Estado, são incomensuráveis com outros, que não admitem-no. A existência de ações públicas organizadas faz conviver então valores e formas de ação ademais contraditórias e até antagônicas. A presença do Estado como núcleo semântico da ideia de política pública é um fato, embora as modalidades e intensidades empíricas de sua intervenção e imposição possam ser muito variadas de política a política. Enfim, as práticas culturais, tradicionais ou não, comunitárias ou não, são tensionadas e modificadas pelas políticas públicas. A pressuposição de um conceito operacional de cultura para a política pública implica em escolhas entre valores, na descrição de formas organizacionais e de como a ação terá sequência. A ação pública muda ritmos, dá densidades e modula a cultura. O que desejamos é expressar a diferença entre a ação territorial, que é necessariamente transversal e intersetorial, tendo por objeto problemas concretos, e as setorialidades, que têm como objeto questões delimitadas e construídas para separar âmbitos de atuação específicos. A lógica setorial desenvolve lógicas de reprodução autônomas, o que implica em trabalho de ampliação de recursos direcionados. As políticas culturais são territoriais, com estruturação setorial. Os desenvolvimentos culturais que expressem a diversidade ou a interculturalidade, abrangem não apenas formas de reconhecimento de culturas, mas também as possibilidades de troca, discussão, enriquecimento mútuo e desenvolvimento de projetos comuns17. No entanto, o Brasil tem uma estrutura de política cultural setorial, aliás, a setorialização crescente das políticas públicas permite a economia da ação, a instrumentalização e racionalizaPierre Muller define o setor como uma reunião e objetivos e papéis sociais estruturados em trono de uma lógica vertical e autônoma de reprodução. Também propõe que a lógica setorial se dá em trono de profissionalizações específicas. Nada a obstar, desde que se reconheçam a presença de formas institucionais que dão unidade à atuação de atores específicos. A profissionalização da administração pública brasileira, sua forma organizacional e a história da acomodação de contradições das políticas setoriais do poder executivo exigem a distribuição de competências digamos “setoriais” por diferentes órgãos. A lógica profissional no Brasil envolve a formação de redes corporativas que não se limitam, ou nem sempre, a um órgão específico. O que é importante assinalar para o nosso ponto de vista é que a lógica setorial agrupa e atua sobre apenas um aspecto da vida social. Ver Muller, P. Un schéma d´analyse des politiques sectorielles, in Revue française des Science politique, 35ª année, no 2, 1985, pp. 165-189. 17 Barbosa da Silva, F.A. & Araújo, H. Indicador de desenvolvimento da economia da cultura. 16

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ção da operacionalização administrativa, mas dificulta a coordenação e resolução de problemas relacionados às garantias de direitos constitucionalizados. É difícil resolver, por exemplo, a questão do o acesso às linguagens das artes em específico, ou às formas de cultura, em geral, sem uma educação que dialogue com as suas referências comunitárias, ou o acesso à educação, como lógica setorial, sem distribuições econômicas. É difícil falar de garantias de direitos quilombolas ou indígenas, sem distribuições econômicas, reconhecimento de titularidades ou direitos de uso de terras tradicionais, mas também de acesso, educação, saúde, moradia e mesmo de crédito produtivo etc. Esses temas são constitucionalizados na cultura, têm diferentes posições nas políticas setoriais, mas forte interpelação na política setorial de cultura, ou seja, no Ministério da Cultura (MinC)18. O objeto das políticas culturais são as relações simbólicas e estas envolvem a criatividade, a produção, a circulação, a difusão e a distribuição, mas também a conservação, a memória, o patrimônio material e imaterial, as artes, mas também tradições e identidades. Enfim, as relações simbólicas e ação pública envolvem efeitos de poder. Aqui enfrentaremos a reflexão a respeito da natureza da ação pública e da sua forma organizacional mais elementar, por isso assinalamos não termos, necessariamente, que fazer escolhas a respeito de um conteúdo específico de cultura e nem de um genérico, excessivamente amplo. Não precisamos do conceito de cultura, mas de um escopo de áreas de ação. Os discursos mais gerais, os “sentidos antropológicos”, as “epistemologias do sul”, as “cartografias das subjetividades”, os “resgates das culturas populares”, o “acesso a bens culturais”, a “autenticidade da cultura”, o “desenvolvimento da cultura”, ademais de serem metáforas19 muito importantes para as políticas culturais, fogem das nossas competências e não poderiam nos servir de objeto aqui, então, deixamo-los para aqueles mais capazes. Queremos indicar os elementos aparentemente triviais, embora centrais e necessários das políticas públicas. Em primeiro lugar, que as políticas públicas pressupõem a presença de órgãos estatais. A presença autônoma de outros atores não está, por pressuposto, descartada, Mesmo em políticas culturais voltadas para a arte, a intervenção do Estado em suas múltiplas frentes é demandada, embora estas venham a ser acionadas desde o setorial. Pudemos ver este aspecto no processo de formulação do Plano de Cultura do Distrito Federal (DF), quando os grupos e representantes das artes da “periferia” apontaram para o fato de que a atuação dos órgãos de segurança do próprio Distrito Federal não condizia, em relação a alguns movimentos culturais das cidades satélites, com o comportamento de reconhecimento de direitos. Ver Barbosa da Silva, F.A & Veloso Sá, J. Políticas sociais – acompanhamento e análise, no 24, IPEA, Brasília, DF, 2016. 19 Aceitamos o problema tal qual o colocado por John R. Searle; “O problema da metáfora diz respeito às relações entre, de um lado, o significado da palavra e da sentença e, de outro, o significado do falante ou o significado da emissão. (...) Entretanto, sentenças e palavras possuem somente os significados que possuem. Em termos estritos, sempre que falamos do significado metafórico de uma palavra, expressão ou sentença, estamos falando do que um falante poderia querer significar ao emiti-las em divergência com o que a palavra, expressão ou sentença realmente significa”. In “Expressão e significado”, Martins Fontes, SP, 1995, página 123. As expressões genéricas ou retóricas em políticas públicas nem sempre são instrumentos dela, mas da política das políticas públicas. Portanto, seu espaço analítico é diferente. 18

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mas estes se coordenam ou são coordenados por ideias, princípios, regras ou programas de ação estabelecidos no quadro de normas constituídas pelo poder público. Em segundo lugar, o que define as políticas públicas não são as ideologias gerais ou os discursos sobre seus objetos, mas suas relações com instrumentos de ação pública. Mas, então, o que define os limites de uma política setorial de outra? A cultura faz interfaces com outras políticas. A cultura compartilha de ideias e objetivos comuns com aquelas políticas, a exemplo, da ideia democratização, da participação, da equidade, do reconhecimento de identidades múltiplas etc. Tem ações comuns com a educação, com a juventude, com as comunicações, com o audiovisual, com as tecnologias digitais, com a organização e uso dos espaços urbanos etc. Também tem instrumentos comuns: programação orçamentária, metas, objetivos, definição de públicos, instrumentos de conveniamento, contratação, fomento e financiamento, bolsas, premiações, indicadores, definição de produtos, inscrição em peças político-jurídicas como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA), Plano Plurianual (PPA), leis, medidas provisórias, decretos, portarias, tudo justificado pela própria Constituição. Têm-se ainda planos, políticas, programas que em geral são definidos setorialmente, mas que fazem apelos a mediações intersetoriais e a transversalidades. Assim, a setorialidade organiza programas, dispõe orçamentos e elenca ações, mas também permite na própria organização setorial processos de ação e orçamentação que envolvam diferentes órgãos. Em resumo, o ponto central é a presença de órgãos capazes de agir e que tenham competências setoriais e capacidades de mediação em função de referenciais de ação compartilhados, a exemplo, do desenvolvimento cultural, democracia cultural e reconhecimento das culturas formadoras. 5. POLÍTICAS CULTURAIS CONSTITUCIONALIZADAS E O ORÇAMENTO DA CULTURA A Constituição de 1988 definiu um escopo amplo de atuação como âmbito dos direitos culturais. Originalmente o MINC se organizou formalmente para abranger o previsto constitucionalmente. Políticas para as artes, para o patrimônio material e imaterial, para os quilombos, para o livro, leitura e literatura e para a memória. Entretanto, grande parte das ações ficou fora do escopo das atribuições formais do MINC, como as políticas indígenas e os arquivos, e para parte das ações o ministério não tinha como alcançar, a exemplo de ampla política de livro e leitura. As mudanças políticas também trouxeram novas questões e deslocaram a agenda política cultural. A questão da igualdade racial ganhou uma secretaria e para lá se deslocou o problema das terras de quilombos; o cinema e audiovisual ganharam uma agência que toca questões de outros setoriais; a questão indígena continua sendo de competência de outros órgãos, mas ganhou pequena visibilidade na cultura; as questões de gênero ganharam uma secretaria específica no caso

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das mulheres e visibilização em políticas do MINC na forma de editais de valorização e apoio aos movimentos LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Dados estas transformações, qual seria o escopo de orçamento e, especialmente, um orçamento setorial da cultura? Estamos nos adiantando à discussão, por esta razão nos justificamos brevemente. O orçamento do MINC é proposto pelo próprio MINC e por esta razão não há problemas. O setorial indica um rol e ações e propõe-se a realiza-los através dos orçamentos. Pode discuti-lo em órgão de participação e a peça orçamentária deve traduzir planos ou políticas. O acompanhamento de outras políticas, entretanto, aponta que a definição de escopo de um orçamento é algo relevante e delicado, especialmente em contextos de restrições fiscais. As vinculações na área de saúde constituem-se em exemplo desse caso20. Saber se o FIES ou os gastos tributários indiretos compõem ou não os recursos previstos constitucionalmente para a educação são outros exemplos21, assim como as definições de escopo na área de assistência social, aumentam ou restringem os recursos da área, tanto no governo federal, quanto nos Estados e municípios22. A questão não é discutida na área cultural, portanto, não é um problema a que se deva adiantar. Entretanto, as propostas de emenda constitucional que vinculam recursos, apesar de definirem percentuais de receitas líquidas a serem destinadas à cultura, provavelmente exigirão a definição de métodos de acompanhamento da destinação de recursos para a área e de aplicação dos novos critérios. Esses métodos geraram os sistemas de orçamento de políticas de saúde (SIOPS), assistência e educação (SIOE) e, mais importante, permitem a produção de informações de base para desvendar a participação dos setoriais nos dinamismos econômicos.

Na área da saúde a grande controvérsia se dá em torno das vinculações de recursos e da aplicação de seus critérios. 21 O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um programa vinculado ao Ministério da Educação (MEC). Financia a graduação na educação superior em instituições privadas que tenham avaliação positiva pelo MEC e na forma da Lei 10.260/2001. O financiamento, a partir de 2010, era realizado a taxa de juros de 3,4% a.a., o período de carência é de 18 meses e o e amortização para 3 (três) vezes o período de duração regular do curso, acrescido de 12 meses. O Agente Operador é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A partir do segundo semestre de 2015 a taxa de juros passou a ser de 6,5% ao ano para contribuir com a sustentabilidade do programa e responder às condições do ajuste fiscal. 22 Na assistência social, conforme diz José Lucas cordeiro, “o orçamento nacional da política de assistência social é elaborado tendo como referência os PMAS e PEAS. Este, por sua vez, é submetido à aprovação do CNAS e, uma vez aprovado, é encaminhado é encaminhado à Secretaria de Planejamento e Orçamento, que se incumbe de agrega-lo à peça orçamentária do governo federal e apresenta-lo à apreciação do legislativo”. Segue, agora problematizando: “a fim de possibilitar a descrição desse processo, é necessário definir em primeiro lugar, qual é efetivamente o orçamento da assistência social. Nesse sentido, é possível indagar se ele é: composto de todas as ações classificadas na função Assistência Social na estrutura de governo; apenas o orçamento pertencente (ou vinculado) ao órgão gestor da política de assistência social; e, se, por sua o orçamento do Fundo de Assistência Social” página 41.Acrescenta adiante que “a falta de padronização, implicando a falta de informações, revela a necessidade urgente de esforços no sentido de que todos os entes federativos disponibilizem para a sociedade todas as informações necessárias para que se possa acompanhar a atuação do governo”, página 52. Cordeiro, José Lucas, Política de Assistência Social no Brasil – heterogeneidade no trato do orçamento, Editora da UnB, Brasília, 2014. 20

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A Constituição de 1988, sendo programática, contém a definição de escopo das políticas culturais, inicialmente no seu artigo 215 “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Indica a proteção das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos presentes no processo civilizatório nacional. Como objetivos a serem realizados através do instrumento do Plano Nacional de Cultura (PNC) de natureza plurianual, fala da defesa e proteção do patrimônio cultural brasileiro, da produção, promoção e difusão de bens culturais, da formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões, da democratização do acesso aos bens de cultura e da valorização da diversidade étnica e regional. O artigo 216 amplia o escopo e define outros instrumentos de política. O patrimônio cultural é definido como de natureza material e imaterial, pode ser tomado individualmente ou em conjunto, é portador de referência à identidade, à ação e, à memória dos diferentes grupos abrangendo formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Define métodos (“com a colaboração da comunidade”) e instrumentos (“por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”) e que “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”. Segue falando de incentivos à produção e acessos a bens, instrumentos jurídicos de penalização a danos e ameaças ao patrimônio e “tombamento de documentos de bens e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. O artigo 216A faz longa e repetitiva referência ao escopo da cultura e objetivos do Sistema Nacional de Cultura: “Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais”. Nesse artigo expressa-se a ideia do federalismo cooperativo. Define como componentes do SNC: “a cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural, a integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas, a complementaridade nos papéis dos agentes culturais, a transversalidade das políticas culturais, autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil, a transparência e compartilhamento das informações; a democratização dos processos decisórios com partici-

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pação e controle social, a descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações, a ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura e que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias”. O artigo da Constituição elenca elementos da estrutura do SNC como modelo para as respectivas esferas de governo: órgãos gestores da cultura, conselhos de política cultural, conferências de cultura, comissões intergestores, planos de cultura, sistemas de financiamento à cultura, sistemas de informações e indicadores culturais, programas de formação na área da cultura, sistemas setoriais de cultura. Como se vê, a Constituição Federal fincou marcadores gerais a respeito dos direitos culturais. Embora algo do que já se fazia em termos de políticas culturais setoriais tenha deixado traços no texto e nas suas normas gerais, inclusive deixando claras certas orientações e instrumentos, as realidades políticas introduziram, na própria estrutura normativa constitucional, outras demandas e concepções, para cuja realização são necessários outros instrumentos. A coordenação de ações interfederativas e seu acompanhamento ou monitoramento por órgãos participativos, por exemplo, exigem orçamentação clara, bem como informações adequadas de execução e até de resultados. Além, disso, os setoriais de cultura, os órgãos, conselhos e fundos, são definidos como instrumentos centrais do SNC e para a realização dos objetivos culturais. Entrementes, as informações dizem que há uma lacuna na maturação da setorialização da cultura na esfera municipal, como podemos perceber pelos Mapas 1A e 1B a seguir que revelam o hibridismo da cultura com outras áreas e ausência de estruturas autônomas. Sabe-se que o mesmo padrão também acontece nas UF´s.

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Mapa 1A: Setorialidade da Cultura – Presença de Órgão de Secretaria Cultural Intersetorial

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2006.

Mapa 1B: Setorialidade da Cultura – Presença de Órgão Gestor Autônomo

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2006.

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Em 2014, 98% dos municípios já tinham estrutura na área cultural (308 dos 5.560 municípios não tinham nenhuma estrutura cultural). Apenas 20% tinham secretaria exclusiva. Se a lógica setorial diz que os órgãos, como instâncias, transformam seus objetivos em objetivos finais setoriais, MINC, Secretarias Estaduais, Secretaria do Distrito Federal e Secretarias Municipais assimilam os seus desenvolvimentos aos objetivos da democratização e democracia cultural23. Já nos alongamos demais. Para finalizar esta seção, lembramo-nos que para a discussão da programação de ações de políticas públicas e seu acompanhamento são necessários conhecimentos específicos e informações adequadas a respeito do desempenho orçamentário e dos resultados. Sejam quais forem as definições de escopo ou abrangência da cultura, deve-se ter uma procedimentalização e formalização, do contrário seria impossível qualquer participação social na discussão das políticas. Um pouco de conhecimento sobre orçamentos mostra que apesar das formalidades, o orçamento é uma peça jurídica que tem certa plasticidade. Todavia, em políticas nacionais federativas, quando o esforço fiscal alocado para a área ganha significação, o bom uso do recurso público, que implica transparência e possibilidade de discussão racional, exige um mínimo de formalização e procedimentalização. Esses elementos deslocam questões gerais de legitimidade da ação para seus resultados, condições de aperfeiçoamentos e melhoria no funcionamento da poder público. Outra questão é saber se a execução dos recursos culturais realizados em outras setoriais deverá ser caracterizada como recursos da cultura. Como a vinculação ainda não aconteceu, não é necessário sofrer por antecipação, embora essa discussão possa ser oportuna para discutir a institucionalidade da cultura nos Estado, Distrito Federal e municípios, já que sabemos que os setoriais da cultura são ainda em grande parte siameses da educação, dos esportes e do turismo. Seja como for, é necessário realizar harmonização das contas e orçamentos da cultura. É um desafio e uma oportunidade de melhor dimensionar o quanto já se avançou na institucionalização das políticas culturais. Os impactos da cultura no dia-a-dia das populações e comunidades são reais como já se viu em inúmeras pesquisas, mas há muito ainda a se fazer para qualificar a administração pública em geral e para o convencimento, através de argumentos menos etéreos, de que aumentar os orçamentos, não apenas para realizar direitos culturais, mas para ampliar e solidificar definitivamente a democracia cultural vale a pena, além de permitir maior participação social e mais qualificada.

A estrutura organizacional dos setoriais locais é muito diversa e pode ser contemplados por outras formações institucionais, a exemplo de autarquias, institutos e fundações. As conexões disso tudo com orçamentos, órgãos de participação, orçamentos e transferências de recurso são muito variadas. No entanto, não se descarta a possibilidade desta variedade poder ser coerente com a setorialização e com os valores de participação, accountability e democratização da cultura como parte de políticas púbicas. 23

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA DA SILVA, F.A. & Walczak, I.A.; Sá, J.V. As práticas culturais no raciocínio sociológico. ANAIS DO XVII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, Porto Alegre, 2015. BARBOSA DA SILVA. F.A.; Sá, Juliana Veloso. Políticas Sociais – acompanhamento e análise n. 24. Brasília, Ipea, 2016, no prelo. BARBOSA DA SILVA, F.A. et al. “A Constituição e a Democracia Cultural”. Políticas Sociais – acompanhamento e análise nº 17. Brasília, Ipea, vol. 2, 2009, p.227-281. BOURDIEU, Pierre. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2007. _______. O senso prático. Livro 1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. CORDEIRO, José Lucas. Política de Assistência Social no Brasil – heterogeneidade no trato do orçamento, Editora da UnB, Brasília, 2014. LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004. LIMA, Luciana Piazzon Barbosa; Ortellado, P.; Souza, V. O que são as políticas culturais? Uma revisão crítica das modalidades de atuação do estado no campo da cultura. ANAIS DO IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLITICAS CULTURAIS - Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 2013. MULLER, P. Un schéma d´analyse des politiques sectorielles. In: Revue française des Science politique, 35ª année, no 2, 1985, pp. 165-189. SEARLE, J.R. Expressão e significado, Martins Fontes, SP, 1995. WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. Oxford, New York: Oxford University Press, 1978.

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A HETEROGENEIDADE DA POLÍTICA CULTURAL CONTEMPORÂNEA: AS MÚLTIPLAS FORMAS DE GESTÃO DOS EQUIPAMENTOS CULTURAIS PÚBLICOS Jackson Raymundo1 RESUMO: Apesar dos avanços institucionais das últimas décadas, a política cultural no Brasil ainda apresenta desafios profundos para a sua plena consolidação em todas as esferas. Os progressos legislativos, orçamentários etc. convivem com ameaças constantes de retrocessos. Nesse quadro, estão os equipamentos culturais públicos, boa parte deles anterior aos próprios órgãos governamentais da área. A ampliação da noção de cultura e da dimensão dos direitos culturais, bem como as mudanças no âmbito administrativo, complexificaram os desafios da gestão cultural, particularmente nas instituições públicas, fundadas sobre outras bases. Assim, torna-se comum a busca por soluções heterogêneas na administração de equipamentos culturais públicos, seja através de fundações, consórcios, parcerias com associações de amigos ou organizações sociais, alv PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Instituições culturais, Associações de amigos, Organizações sociais, Consórcios públicos.

1. INTRODUÇÃO A cultura deve ser compreendida tanto como um direito humano, indicado pelo artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quanto como um direito fundamental, previsto pelo artigo 215 da Constituição Brasileira. O direito à fruição artística e à memória são basilares tanto para a cidadania individual quanto para a afirmação da identidade e diversidade cultural de um povo. E não é só isso: a cultura deve também ser lembrada como segmento econômico, gerador de emprego e renda. O fomento e a garantia dos direitos culturais pelo Estado, no entanto, continuam a ser um déficit em nosso país. A gestão pública na área da Cultura teve avanço nas últimas décadas, através da consolidação de leis de financiamento da produção cultural e do patrimônio histórico e artístico, como na década de 90, do aumento substancial do orçamento para a área e da ampliação do Graduado e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estudante da Especialização em Administração Pública Contemporânea da UFRGS. Servidor da Câmara dos Deputados. E-mail: [email protected]. 1

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conceito de cultura, nos anos 2000, e da institucionalização de sistemas e planos de cultura em todos os níveis, na corrente década. O Ministério da Cultura, que possui três décadas de existência (ressalva: nos mais de dois anos do governo Collor, deixou de ser ministério para se tornar secretaria), apesar do incremento, segue tendo um orçamento bastante inferior a outras áreas2, além de dificuldades de execução acima da média3. A prática administrativa, porém, não se restringe ao nível “macro” (políticas públicas nacionais), como as políticas citadas anteriormente. A sua consolidação depende de um eficiente funcionamento do “meso” (políticas regionais, estaduais e setoriais) e, sobretudo, de sua plena realização no plano “micro” (prestação de serviços na “ponta”). Dados de 20104 apontam que apenas 4,35% dos municípios brasileiros possuem secretaria exclusiva de cultura, enquanto em 73,85% a área está junta de outras; em 2,67% dos municípios, ainda, havia uma fundação pública de cultura. A presença de centros culturais nas cidades deixa muito a desejar: 24,80%. Assim, sendo o foco desta disciplina a gestão dos serviços públicos, o estudo se concentrará na prestação de serviços na área da cultura, aproveitando experiências de parceria do Estado com o Terceiro Setor. Mais detidamente, o estudo de caso será desenvolvido a partir de uma forma de gestão (ou de cogestão, ou de apoio à gestão) de equipamentos culturais exercidas por organizações da sociedade civil: as Associações de Amigos, sobretudo a realidade do Rio Grande do Sul, comparando com outros modelos, com o das Organizações Sociais, aplicadas no Estado de São Paulo. 2. O ESTADO NA GESTÃO DA POLÍTICA CULTURAL A relação do Poder Público com a cultura, até o final do século passado, se dava basicamente através da administração de equipamentos culturais, da conservação do patrimônio histórico e artístico e do financiamento a determinadas linguagens – este, por vezes ligado a estratégias propagandísticas de governos, como foi o caso do cinema em diversos momentos da História. Muito antes de existir órgãos próprios de política cultural, o Brasil já possuía instituições públicas de cultura. Data de 1810 o mais antigo equipamento cultural do país: a Biblioteca Nacional, sediada na então capital Rio de Janeiro; em 1818, D. João VI funda o Museu Nacional (também no Rio). No Rio Grande do Sul, o Theatro São Pedro foi inaugurado em 1858; em 1877, iniciam-se as atividades da Biblioteca Pública do Estado; e, em 1903, o então presidente MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO. Lei Orçamentária Anual 2015. Disponível em: . Acesso em 07/08/2015. 3 FOLHA DE S. PAULO. Orçamento dobrou desde 2009, mas gastos da Cultura estão estagnados. Matéria de 02/06/2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/06/1636662-gastos-do-ministerio-dacultura-estao-estagnados-ha-cinco-anos.shtml. Acesso em: 07/08/2015 4 MINISTÉRIO DA CULTURA. Cultura em números: anuário de estatísticas culturais - 2ª edição Brasília: MinC, 2010. 2

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(equivalente a governador) Borges de Medeiros cria o “o Museu do Estado”, transferido, dois anos depois, para a casa do ex-presidente provincial Júlio de Castilhos, recebendo o seu nome – Museu Júlio de Castilhos. A menção a essas instituições serve para demonstrar o quão antiga é a presença do Estado na área cultural. A novidade estabelecida nas duas últimas décadas reside numa concepção mais ampla de cultura. Nela, o Estado não deve se limitar a gerir os seus próprios equipamentos, mas também fomentar a produção artística protagonizadas pela sociedade civil (o que se materializaria em editais de fomento, criação de fundos setoriais, leis de renúncia fiscal etc.). Mais adiante, e sob outra perspectiva, o conceito de “cultura” se alarga: convivendo com a visão tradicional e consagrada que relaciona a cultura com as artes, ganham força uma visão mais antropológica e também a noção de “cidadania cultural”. A política cultural é marcada pela instabilidade. Mesmo equipamentos culturais “antigos” podem enfrentar crises sérias e serem repentinamente fechados, como ocorreu com instituições como o Museu Nacional, no início de 2015. Ou perspectivas que pareciam consolidadas, como o apoio do poder público ao carnaval - algo que vem desde a década de 1930, pelo menos -, de uma hora para outra são postas em xeque, tal como no início de 2016, quando se disseminou, com intensidade inédita, um discurso opondo o carnaval aos investimentos em saúde (se um dia a implicância é com o carnaval, no outro dia pode ser com qualquer outra manifestação cultural)5. A manutenção ou ampliação das políticas culturais depende tanto da capacidade orçamentária do ente público, quanto da vontade política do governante da ocasião. Por vezes, iniciativas importantes são descontinuadas pelo simples fato de terem sido criadas por um governo anterior – quando não a própria existência de uma secretaria específica é desfeita, mesmo que haja ações consolidadas. Se em áreas como saúde, educação e segurança as políticas “de Estado” são mais perceptíveis e o acompanhamento da sociedade é mais direto, o mesmo não ocorre na cultura; enquanto naquelas áreas o cidadão se sente em condições de reivindicar (atendimento médico eficiente, escola de qualidade, policiamento ostensivo...), na cultura, via de regra, as reivindicações são protagonizadas (quando não restritas) aos atores da própria comunidade. A efetividade da política cultural comumente esbarra nas dificuldades advindas do emaranhado de legislações e procedimentos administrativos – muitas vezes, incompatíveis com a realidade do tema. Para exemplificar, pode-se destacar o pagamento de cachês a artistas é precedido de uma série de exigências que, no intento de serem moralizadoras, causam constrangimentos desnecessários: um ator, ou músico, tem características identitárias de seu trabalho que são suas. Outro exemplo é a contratação de profissionais para o desenvolvimento de tarefas auxiliares que 5 Sobre o tema, fiz um texto, intitulado “A folia dos outros”, que foi publicado no Caderno PrOA, do jornal Zero Hora, em 24/01/2016 (disponível aqui: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2016/01/municipioscancelam-o-carnaval-em-nome-de-projetos-de-saude-4958389.html).

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pouco cabem ao Estado, como projetor (de cinema), cenógrafo, bilheteiro etc. Por fim, um terceiro exemplo é a compra de equipamentos: a Lei 8.666/93, que versa sobre as licitações e contratos da Administração Pública, possui limitações na área da cultura que desafiam qualquer gestor: se um órgão precisa comprar um determinado tipo de piano, deve ser aquele piano, que por vezes não tem empresa produtora concorrente, ou não há as três necessárias para emitir orçamentos e abrir um processo. Além disso, há casos de “gigantismo” estrutural da cultura em certas localidades – sem correlação orçamentária. Em outras palavras, um excesso de instituições, incompatível com a proporção do erário público destinada à área. É o caso da política estadual da cultura no Rio Grande do Sul, que será esmiuçado adiante. 3. DISTINTOS MODELOS DE GESTÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE CULTURA A gestão pública da política cultural no Brasil, e particularmente dos equipamentos culturais, se estrutura basicamente a partir de cinco possibilidades: a) Prestação Direta, através da Administração Direta - ministério, secretarias estaduais e municipais, diretorias, coordenadorias etc; b) Prestação direta, através da Administração Indireta – em forma de autarquias ou fundações públicas, de direito público ou privado; c) Prestação indireta, através de contratos de gestão com Organizações Sociais (OSs); d) Prestação indireta; através de termos de parceria com OSCIPs e/ou convênios com Associações de Amigos; e) Consórcios públicos. Além disso, é comum a cessão de uso de algumas áreas das instituições, a fim de atender finalidades comerciais (lojas de souvenirs, livrarias, cafés, restaurantes etc.), para as Associações de Amigos, com o objetivo de reverter a renda gerada pela utilização desses espaços para a própria instituição. O primeiro modelo de gestão é o mais presente em todas as esferas federadas: segundo a pesquisa Cultura em Números6, coordenada pelo Ministério da Cultura, apenas 2,51% não possuíam nenhuma estrutura específica de cultura no ano de 2010. Os desafios apresentados pela política de cultura possuem peculiaridades em relação às demais áreas, como exposto no item anterior, que esbarram ou se complicam nas limitações legais (pagamento de cachês, compra de equipamentos etc.). Com a ampliação do escopo do que vem a ser “política cultural”, as necessidades de presença do Estado também aumentaram: hoje, não basta administrar seus próprios, e sim fomentar o desenvolvimento de ações lideradas por grupos da sociedade civil. Além disso, é crescente o reconhecimento por parte do Poder Público de novas linguagens artísticas e manifestações - algumas, não são novas em existência, mas no reconhecimento como manifestação cultural. Cada linguagem demanda atenção e políticas específicas. Dentre as mais comuns, estão: cinema e vídeo, música, teatro, dança, circo, artes visuais, design e 6

Idem.

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moda, fotografia, patrimônio, arquitetura, museus, culturas tradicionais, carnaval, gastronomia, capoeira, artesanato, cultura digital, bibliotecas, livro e literatura. Para o Estado dar conta de tamanha heterogeneidade de expressões, sujeitos e trajetórias, foram criados tanto órgãos para as linguagens especificas quanto os colegiados setoriais - hoje, são 17 colegiados em nível nacional (complementados por grupos de trabalho, fóruns etc.), mesclando representações majoritárias da sociedade civil com as do poder público, replicados também nos Estados. Diante de tantas responsabilidades institucionais, e das inevitáveis limitações orçamentárias, como fica a sustentação das instituições culturais – algumas delas, como já dito, bem anteriores inclusive à noção de política cultural? É aí que entram os outros modelos de gestão anteriormente citados. A alçada de uma instituição à categoria de autarquia ou fundação, adquirindo maior autonomia administrativa e financeira, não obedece a critérios muito claros. As razões, em geral, estão ligadas a conjunturas políticas. No Rio Grande do Sul, das 34 instituições ligadas à Secretaria da Cultura, três são fundações – pertencentes à Administração Indireta, portanto –, enquanto todas as demais são subordinadas à Administração Direta. O modelo de gestão de cada uma é distinto: a Fundação Teatro São Pedro é pública de direito privado; a Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, autarquia; já a Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore é público de direito público. Pode-se citar, ainda, a Fundação Cultural Piratini (responsável pela TVE e a Rádio FM Cultura, subordina, nos últimos anos, à Secretaria de Comunicação), que também é fundação pública de direito privado. Distinta é a situação das fundações responsáveis pela centralização das políticas para as artes. No plano federal, há a Fundação Nacional de Artes (Funarte), e em diversos estados e municípios existem fundações nesses moldes, que podem exercer um papel complementar à secretaria exclusiva, ou substitutivo a ela. Exemplos: Fundação Cultural do Estado da Bahia, concomitante à secretaria estadual, e Fundação Municipal de Arte e Cultura de Gravataí (RS), que administra toda a política para a área, devido à inexistência de uma secretaria municipal. No terceiro tópico, está a prestação indireta dos serviços, baseado no firmamento de contratos de gestão do Estado com Organizações Sociais (OSs) para a administração de equipamentos e ações culturais. O modelo, adotado principalmente no Estado de São Paulo, será mais detidamente trabalhado a seguir. O quarto modelo, também de prestação indireta, é aquele cuja base se dá através de termos de parceria do Poder Público com OSCIPs, ou ainda convênios com Associações de Amigos. É o mais comumente utilizado para a gestão de equipamentos culturais públicos. O Rio Grande do Sul, que possui um considerável número de instituições públicas estaduais, serve de exemplo (o item 4.1 fará Estudo de Caso acerca do tema).

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Os consórcios públicos, citados na quinta possibilidade, estão consolidados como modelo de gestão para facilitar a circulação de serviços e a compra de objetos, sobretudo em áreas como saúde e saneamento. Geralmente se estruturam a partir de municípios com considerável homogeneidade geográfica, econômica, social e cultural, próximos topograficamente e apresentando uma relação de interdependência. Na cultura, porém, ainda é um formato de uso incipiente. O caso destacado é o Consórcio Intermunicipal Culturando (CIC), que reúne 25 municípios do Norte do Estado de São Paulo. O consórcio já firmou quatro convênios com o Ministério da Cultura, estabeleceu parcerias com diversas universidades e ofereceu curso livre em gestão cultural. Seu escopo de atuação, segundo o estatuto, não se limita aos municípios consorciados, podendo prestar serviços para fora deles. Como situação negativa envolvendo consórcios, está a vedação do repasse de recursos pela União a municípios inadimplentes, o que, numa relação colegiada, prejudicaria a todos. 4. ESTUDO DE CASO: AS ASSOCIAÇÕES DE AMIGOS DAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL O Rio Grande do Sul é uma das unidades da federação com maior número de instituições culturais. Há “institutos” para diversas linguagens artísticas (do Patrimônio Histórico e Artístico, do Livro, da Música, de Cinema, de Artes Visuais, de Artes Cênicas) e mais de duas dezenas de equipamentos: museus, bibliotecas (inclusive de bairro, em Porto Alegre), teatros, cinemas, discoteca, arquivo histórico, casa de cultura, orquestra... Todos próprios do governo estadual, alguns localizados em lugares privilegiados da Capital gaúcha, em verdadeiros cartões-postais da cidade e do Estado. Dar conta de tudo isso é um desafio imenso para qualquer gestor. Num Estado bastante apegado a suas tradições (o que inclui suas instituições consagradas), como é o Rio Grande do Sul, as coisas acabam, no decorrer dos anos, se naturalizando e adquirindo “pernas próprias”. A “autonomia” pode ser positiva ou negativa, dependendo, quando não há mobilização da sociedade, da prioridade dada pelo governo da ocasião. O governo 2011-2014, liderado por Tarso Genro, verificou, logo em seu início, uma necessidade de diagnosticar a situação de cada instituição cultural, assim como a situação de cada associação de amigos e sua relação com os próprios do Estado. Por isso, o governador criou a Comissão para Avaliação das Associações de Amigos de Instituições ligadas à Secretaria da Cultura, instituída pelos Decretos nº. 47.851, de 22 de fevereiro de 2011, e nº. 47.944, de 11 de abril de 2011. A Comissão foi composta, na titularidade, pelo coordenador jurídico da Secretaria da Cultura, pelos diretores do Departamento Artístico e do Departamento Administrativo (este, à época dirigido pelo autor) e por membro da Procuradoria-Geral do Estado. Durante mais de quatro meses, a Comissão realizou oitivas com praticamente todos os diretores das 34 instituições culturais ligadas à Secretaria da Cultura e com os representantes

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das respectivas Associações de Amigos. O quadro, em linha geral, era de absoluta falta de uniformidade de padrões e realidades, seja por falta de presença do Estado na sustentação às instituições, seja por interesses privados absolutamente enraizados. A legislação gaúcha acerca das Associações de Amigos, que tem como base a Lei Estadual nº 9.186/19907, dá conta, principalmente, da possibilidade de cessão ou autorização de uso de espaços das instituições para finalidades comerciais. Pouco avança em relação à intervenção na gestão, sobre quais os limites e possibilidades e os papéis exercidos pelos diferentes agentes. Nesse vazio legal8, e nos vazios administrativos deixados pelo Estado, o improviso acabou predominando, chegando a situações quase inverossímeis. A possibilidade das Associações de Amigos se financiarem está prevista na Lei nº 9.186/1990. Em seu §3º do artigo 5º, estabelece que “a Associação poderá reservar até 30% dos recursos recebidos para a sua própria administração e manutenção”. No entanto, em diversas situações isso não ocorria. Por exemplo, uma associação, que se dizia apta a ser “amiga” de qualquer instituição, fazia uso de salas do Estado e oferecia cursos com o nome do equipamento público, porém fazendo apenas repasses semanais à direção, longe de atingir os 70% exigidos por lei (e somente após o pedido e justificativa da direção da instituição e o aceite da presidência da associação). Como demonstração da diferença de procedimentos, pode-se citar as bilheterias dos teatros. Em um deles, toda a renda que ficava com a instituição (15%, já que o restante vai para a produção do espetáculo) ia para o caixa único do Estado, sem passar pela Associação. Em outro, os recursos eram direcionados à entidade de amigos, não passando pelo Tesouro. Os casos mais comuns, porém, estavam na diferença de sincronia entre o diretor da instituição, indicado pelo governo, e as direções das associações - às vezes com dinâmica eleitoral própria, outras vezes fomentadas por quem está na gestão do equipamento. Intrigava a absoluta dissintonia entre os procedimentos de uma instituição para outra, assim como o corrente fato (tratado como natural) de servidores do Estado trabalharem, na prática, como servidores da associação, inclusive mexendo com dinheiro em espécie. Mas a situação majoritária nessas instituições, contudo, era de liderança “redobrada” por parte do diretor da instituição, que, por um lado, administrava os recursos oriundos do Estado, por outro, aqueles vindos diretamente da arrecadação associativa. A referência em legislação sobre as Associações de Amigos, no Rio Grande do Sul, é a Lei Estadual nº. 9.186, de 27 de dezembro de 1990, que “dispõe sobre a cedência de áreas em instituições estaduais de cultura e dá outras providências”, regulamentada pelo Decreto nº. 33.836, de 31 de janeiro de 2001, alterado pelos Decretos nº. 33.876, de 1º de março de 1991, nº. 39.986, de 18 de fevereiro de 2000, nº. 41.158, de 29 de outubro de 2001, nº. 41.871, de 9 de outubro de 2002, e nº. 45.178, de 20 de julho de 2007. 8 No plano federal, a legislação acerca das Associações de Amigos está prevista no Estatuto dos Museus (Lei nº 11.904/2009), com o reconhecimento e a previsão de atribuições dessas entidades. 7

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Por fim, cabe destacar que a criação pelo Estado de mecanismos mais amplos e horizontais de financiamento da cultura acabou por gerar uma consequência em relação às instituições culturais. Sempre com necessidade de recursos para desenvolver seus projetos, os equipamentos públicos, através das associações de amigos, disputam editais públicos com entidades privadas da sociedade civil. Se não há uma vedação legal, há uma inevitável possibilidade de questionamentos éticos. 5. CONCLUSÃO: LIMITES, PROBLEMAS E POSSÍVEIS CAMINHOS A gestão da política cultural exige da Administração Pública a necessidade de ser criativa e estar preparada para lidar com processos completamente heterogêneos. Enquanto na saúde, ou na educação, é possível se pensar na construção de grandes redes, com equipamentos e produtos idênticos e, portanto, de compra massificada, na cultura essa massificação torna-se mais complexa. Agregado a isso, está a própria reflexão do papel que efetivamente deve caber ao Estado no âmbito da cultura: criador/gerente ou fomentador/patrocinador? A resposta que parece ser a mais adequada é: os dois. A preservação da memória e a existência de espaços culturais que não sigam a lógica do mercado (a busca incessante pelo lucro) são direitos culturais essenciais e inalienáveis as quais o Estado não pode fugir. Se o Estado é pouco presente, acabam prevalecendo os interesses comerciais da iniciativa privada, que, na área cultural, geralmente são definidos pelo setor de marketing das empresas. Por isso, mais importante do que as leis de renúncia fiscal que permitem à empresa seguir sua estratégia comercial, são os fundos que irão financiar a produção artística de forma republicana e transparente - lembrando, seja dinheiro de leis de incentivo ou de fundos, a fonte sempre é a mesma: o orçamento público. Dentro da “criatividade” necessária, o Estado de São Paulo, na esteira do Programa Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), liderado pelo então ministro BresserPereira em meados dos anos 1990, tem transformado o sistema de gestão, ou cogestão, dos equipamentos públicos de cultura. Em vez das Associações de Amigos, a qualificação dessas, ou de outras associações da sociedade civil, como Organizações Sociais (OSs) – o termo é um dos mais importantes elementos do PDRAE. Inicialmente adotado pelo Governo do Estado de São Paulo apenas nas áreas de saúde e cultura (e a partir de 2009 também em esporte e pessoas com deficiência), em 2005 a qualificação passou a ser feita também na cultura. Como preconiza os princípios das OSs, foi repassado ao Terceiro Setor a gestão de equipamentos e serviços públicos, mediante o firmamento de contratos de gestão. A importância dessas organizações no orçamento para a área é grande: em 2010, por exemplo, respondeu a 54,6%. A experiência paulista de Organização Social permite problematizar o conceito de “publicização”, assim como a própria concepção inicial de Organizações Sociais formulada

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por Bresser-Pereira. Neles, estavam previstos o controle social do equipamento público, através de um conselho de administração, afora o fato (implícito) de a OS estar vinculada a uma instituição específica. No entanto, o que tem acontecido é uma mesma organização comandar diversos espaços e programas estaduais, possuindo apenas um conselho de administração para todos. Tornam-se, assim, praticamente “subsecretarias” de um Estado que se omitiu de fazer a administração direta, mas que garante polpudos repasses. Os desafios da gestão pública de cultura passam por um aprimoramento dos modelos já existentes, como o das fundações públicas, das Associações de Amigos, o das OS etc., mas também por um debate com o Legislativo e Tribunais de Contas sobre a necessidade de atualização dos procedimentos administrativos à realidade do meio cultural. Tal atualização pode significar também uma maior presença do Estado na gestão de seus equipamentos culturais pela via da prestação direta exercida pela Administração Indireta (fundações públicas, autarquias). Ao possuírem estatuto jurídico diverso da Administração Direta, as fundações ou autarquias permitem uma flexibilidade maior na concretização de ações, além de poderem centralizar as distintas linguagens artísticas num órgão só. Todavia, hoje as limitações também atingem esses órgãos, mesmo que numa intensidade menor em relação à Administração Direta. O modelo de Associação de Amigos não parece estar superado. No entanto, carece de renovação na sua existência, que passam: 1) por uma padronização, mesmo que elementar, de seu caráter, seu papel, suas possibilidades e seus limites; 2) pela incorporação plena da noção de “controle social”, com o firmamento de conselhos transparentes e escolhidos de forma democrática; 3) pela mobilização social para que tenham quadro de associados relevante, instigando a participação da sociedade civil nas instituições públicas. Outros modelos de gestão podem ser pensados ou aprimorados. Toda novidade, porém, dificilmente será aplicada arbitrariamente pelo Executivo, dado o emaranhado de obstáculos, necessitando ser dialogada com os demais poderes e os órgãos de fiscalização e controle - e, é claro, contando com a participação da sociedade civil.

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PERSPECTIVAS E DESAFIOS DO PLANO NACIONAL DO LIVRO E LEITURA (PNLL) Jailton de Araújo Lira1 RESUMO: O objetivo desse artigo é analisar como os desdobramentos do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) se inserem na criação de Planos Municipais do Livro, Leitura (PMLL), bem como apresentar a importância da participação das bibliotecas comunitárias liderando o processo de construção desses planos municipais. Tal inserção na condução desse processo evidencia como as bibliotecas comunitárias ampliam não apenas a participação política desses espaços, mas fundamentalmente amplificam o conceito da biblioteca redefinindo parâmetros ao colocá-lo na mesma perspectiva da política pública ao dar mais visibilidade as bibliotecas ao inserir a letra B na sigla dos planos. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Política Pública, PNLL, PMLL, Bibliotecas Comunitárias.

1. INTRODUÇÃO Gostaria de começar apresentando um aspecto que serviu como insight e que reconfigurou a forma como vinha conduzindo esta pesquisa, aconteceu durante o VI Seminário de Políticas Culturais realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa em maio de 2015, ao participar das discussões referentes às Políticas Culturais Setoriais: Livro e Leitura. Logo após as apresentações, as perguntas na sua maioria eram direcionadas a um dos temas, no caso sobre Instituto Nacional do Livro (INL) e nenhuma indagação ao quadro atual da política do livro e leitura foi feita. Mediante essa constatação, perguntei aos palestrantes como avaliavam a atual política do livro e leitura no cenário nacional. O intuito do questionamento era partilhar as impressões sobre o atual momento do setor, apesar de não haver comentários sobre o questionamento busquei estabelecer um paralelo entre o INL e o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) referente à condução política do INL que era verticalizada e centralizada já o PNLL funciona mais como um indicador e sua efetivação

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades – PPCULT - Universidade Federal Fluminense – UFF. Bacharel em Biblioteconomia. [email protected] 1

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só é possível por uma maior descentralização em sua execução ficando a cargo dos estados e municípios criarem seus planos estaduais e municipais. Apesar da reformulação do questionamento o que se seguiu foram conversas abertas em que aproveitei para elencar os atores envolvidos, as cidades que estão com seus planos aprovados ou em pleno curso e só a partir daí me dei conta que não tinha atentado que essa descentralização produziu desdobramentos que me auxiliaram a repensar a pesquisa e que apresentarei nos próximos capítulos como, por exemplo: a mudança de foco na condução na Política de Estado, a adesão e protagonismo dos atores que atuam nas bibliotecas comunitárias na condução dos debates para a aprovação dos planos municipais do livro e leitura, as disputas envolvendo esses novos atores com os velhos dilemas do setor, a inclusão da letra B na sigla do PMLL. Foi graças a uma pergunta não respondida que atentei que as perguntas certas ainda não tinham sido feitas e só depois delas é que consegui explorar melhor o desenvolvimento da pesquisa. 2. MUDANÇA DE FOCO NA CONDUÇÃO DA POLITÍCA DE ESTADO A primeira experiência governamental que concebeu maior importância à cultura enquanto política de Estado ocorreu no Departamento de Cultura de São Paulo, na direção de Mário de Andrade servindo posteriormente como modelo para a esfera federal. É no Governo Vargas que esse investimento político fica mais evidente e a cultura passa a ter um papel mais efetivo no planejamento e na execução de ações em âmbito nacional. Com a articulação do Estado e a crescente importância dada às questões da formação e valorização de uma identidade nacional, aliadas pela atuação vigorosa de intelectuais, educadores e artistas possibilitou pensar e estruturar com a nova configuração política, todo um aparato estatal que se dedicará a criação de uma política cultural, como observa Rubim: [...] A política cultural implantada valorizava o nacionalismo, a brasilidade, a harmonia entre as classes sociais, o trabalho e o caráter mestiço do povo brasileiro. A potência desta atuação pode ser dimensionada, por exemplo, pela quantidade de instituições criadas, em sua maioria já no período ditatorial. Dentre outras, podem ser citadas: Superintendência de Educação Musical e Artística; Instituto Nacional de Cinema Educativo (1936); Serviço de Radiodifusão Educativa (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Serviço Nacional do Teatro (1937); Instituto Nacional do Livro (1937) e Conselho Nacional de Cultura (1938). Também não é mera casualidade que este período esteja entre os mais contemplados em termos de estudos. (RUBIM, 2007, p. 16-17) Aqui cabe uma apresentação mais detalhada do Instituto Nacional do Livro (INL). O instituto foi criado através do decreto-lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937 tendo como objetivos principais a publicação da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Portuguesa, a

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edição de obras de interesse para a cultura nacional, estímulo ao mercado editorial e a criação de bibliotecas públicas. Sua estrutura administrativa era centrada em três seções, a saber: Seção de Enciclopédia e Dicionário, Seção das Publicações e Seção das Bibliotecas. Essas seções cumpriam na concepção de Oliveira (1994) o papel de braço intelectual, editorial e distribuidor do INL cuja principal ocupação era centrada na produção e distribuição do livro, relegando assim as bibliotecas uma atuação secundária como meros receptores do material bibliográfico editado por ela, não posso esquecer-me de mencionar que das três seções, a seção das bibliotecas era a única que não tinha representação no Conselho de Orientação. Este Conselho de Orientação era composto por cinco membros que eram nomeados pelo Presidente da República cuja função era elaborar o Plano da Enciclopédia e do Dicionário e exercia influência no referido órgão. A centralização de tais objetivos, não foi capaz de produzir ao longo da sua trajetória um legado que creditasse a eficácia de sua política livresca e muito menos legitimou as bibliotecas públicas como espaços dinâmicos. Em decorrência disso e do desinteresse estatal em reformular sua ação, ocorre o desmonte do INL em três fases: à primeira em 1973 quando da transferência de toda sua linha editorial para as editoras comerciais, depois sua fusão com a Biblioteca Nacional em 1987 originando a Fundação Nacional Pró-Leitura e por fim ocorre a extinção desse órgão em 1990, transferindo para a Biblioteca Nacional suas atribuições. Como vimos à centralização não alcançou as metas estabelecidas e o setor não conseguiu fortalecer-se em âmbito nacional. Porém, é na gestão do governo Lula com o Ministro Gilberto Gil responsável pela pasta da Cultura que ocorre a reformulação das políticas do livro, leitura e bibliotecas. O PNLL é fruto de intenso debate ocorrido em algumas regiões brasileiras com o objetivo de recolher opiniões dos diversos setores envolvidos com a área e a soma desse material serviu como base na formatação dos seus quatro eixos de atuação apresentados a seguir. • Democratização do acesso • Fomento à leitura e a formação de mediadores • Valorização do livro e a comunicação • Desenvolvimento da Economia do livro Os eixos servem como referenciais norteadores importantes para os estados e municípios criarem seus planos estaduais e municipais, adaptando às suas realidades locais, descentralizando a execução de tomada de decisão. A interlocução dos Ministérios da Educação e Cultura visa somar esforços na atuação do PNLL evitando assim a duplicidade ou fragmentação de investimentos de recursos humanos e financeiros.

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3. NOVOS ATORES, VELHOS DILEMAS A participação social na construção de políticas públicas garante a ampliação de direitos e estabelece um maior controle social aos organismos responsáveis pela execução dos recursos públicos. O primeiro Plano Municipal do Livro e Leitura (PMLL) aprovado no país foi o de Porto Alegre, apesar da aprovação do PNLL ter ocorrido em 2006 somente em 2010 são dados os primeiros passos com o intuito de mobilizar o município para a importância do tema. O intenso debate com a sociedade civil organizada e entidades governamentais levou a aprovação do primeiro PMLL em 2013. A liderança no processo de discussão das bibliotecas comunitárias na formulação dos Grupos Temáticos (GTs) ou Fóruns é uma das marcas dessa trajetória porto alegrense cujo objetivo é à criação do documento que servirá de base para a política do setor2. Apesar dos sete anos decorridos, período que compreende a aprovação do PNLL e do PMLL de Porto Alegre há uma mobilização de cunho politico intensa. Michel de Certeau (1994) afirma ser possível observar nas práticas cotidianas indícios de resistências no microcosmo da sociedade. Resistências essas capazes de desenvolver estratégias que fragilizam e subvertem a ordem dominadora. Em seu livro A invenção do cotidiano o autor “está mais preocupado com a prática de apropriação e o uso da mesma por grupos ou indivíduos”. Podemos perceber essa apropriação por parte do movimento de bibliotecas comunitárias que vem pleiteando a aprovação dos planos municipais. Essas lutas demandam tempo e engajamento junto às esferas do poder, disputas que percorrem velhos dilemas da estrutura estatal como a burocracia, o autoritarismo e as fragilidades institucionais. Nesse cenário parece difícil superar as rotinas do modelo político brasileiro. Todavia, como bem caracterizou Certeau é na movimentação de posições que os grupos irão perceber as brechas para evitar sua desarticulação assim o conceito de tática de se encaixa perfeitamente no desafio de reconfigurar posições: [...] “chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’, como diEssa marca criada por Porto Alegre apresenta um dado importante: sendo as bibliotecas comunitárias desprovidas de reconhecimento no campo biblioteconômico sua atuação no campo político acaba lhe proporcionando outro tipo de reconhecimento e ao mesmo tempo lança suas demandas na construção de um projeto mais amplo sobre o que é Biblioteca. Discutiremos esse aspecto com mais detalhamento no capítulo 4.

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zia von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (CERTEAU, 1998, p. 100-101). Assim, logo após a aprovação do plano de Porto Alegre, outras cidades brasileiras começam a buscar informações junto aos membros que fizeram parte do GT do PMLL desta cidade. Com o intuito de trocar experiências para facilitar o encaminhamento político. Saber o “caminho das pedras” é fundamental para evitar um maior desgaste de tempo, visto que o tempo político é diferente das demandas dos proponentes. Com essas trocas de informações, paulatinamente a ideia de uma rede começa a ser construída, novos desafios surgem e com isso vão reformulando suas ações, mas sempre numa perspectiva de aprender na prática e dialogando com quem já passou por situação similar. Essa incidência política colaborativa é fundante dessa fase de construção dos planos em que se evidenciam disputas e ao mesmo tempo mecanismo colaborativos fortes. 4. PLANOS MUNICIPAIS DE LIVRO E LEITURA Nesta seção gostaria de apresentar um pouco do histórico das cidades que estão com seus planos aprovados ou em via de aprovação. Tais percursos apresentam os aprendizados produzidos, os desafios inerentes às agendas públicas e o empoderamento que estão ocorrendo por parte dos grupos envolvidos. Todavia, tecer afirmações sobre o sucesso alcançado por Porto Alegre precisa ser relativizado, pois um dos problemas postos é a questão orçamentária. O orçamento de Porto Alegre é de aproximadamente R$ 300.000,00, valor este não fixado em termos percentuais da arrecadação municipal, ou seja, caso haja algum remanejamento de recursos por necessidade da administração municipal esse valor poderá ser alterado. Continuando a análise pelo prisma do orçamento, nos deparamos com o caso da cidade de Nova Iguaçu que teve seu plano aprovado duas vezes, sendo a primeira por efeito de manobra política do legislativo anulada e a segunda com apoio de todo o legislativo aprovada e dotado de percentual de 2% do orçamento municipal.

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Nova Iguaçu conseguiu garantir a dotação orçamentária e o grupo que liderou a aprovação do plano vê à necessidade de criar mecanismos de monitoramento visando não deixar o plano se tornar letra morta. Para isso esses grupos precisam entender o funcionamento dos três mecanismos que regulam os gastos públicos, são eles: Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). As cidades de Salvador (2013) e São Paulo (2014) também aprovaram seus planos sem dotação orçamentária, porém no plano de São Paulo está previsto a criação de um fundo para a execução dos projetos previstos. No caso de Recife, Belo Horizonte, e Rio de Janeiro já estão com GTs ou Fóruns trabalhando para aprovação de seus planos. Já as cidades de São Luís e Duque de Caxias ainda estão na fase de aprovação do GT ou Fórum. Apresentamos os diferentes estágios que as cidades estão passando no quadro abaixo:

Município

Formação de GT/Fórum

Aprovação do Plano

Porto Alegre

SIM

SIM

Salvador

SIM

SIM

Nova Iguaçu

SIM

SIM

São Paulo

SIM

SIM

Recife

SIM

--

Fortaleza

SIM

--

São Luís

*NÃO

--

Duque de Caxias

*NÃO

--

Belo Horizonte

SIM

--

Rio de Janeiro

SIM

--

*Em processo de oficialização

5. A INCLUSÃO DA LETRA B De acordo com Bourdieu (1989, p.28) ao nos depararmos com nosso objeto de pesquisa um aspecto que devemos pensar é “tomar para objeto o trabalho social de construção do objeto pré-construído: é ai que está o verdadeiro ponto de ruptura”. Para isso buscaremos identificar as condições de sua pré-construção. A circulação de livros e ideias no período colonial já era vista como um perigo que deveria ser combatido, imagine a criação de uma Biblioteca. Tais proibições tinham como pressupostos a manutenção da condição escravocrata alinhados com a metrópole. 980

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Posto isso é impossível pensar a criação de bibliotecas para um público que não podia ter acesso, devido sua condição social de servidão. Aos poucos abastados que tinham condições de transitarem no regime educacional e ter acesso aos livros era possível em suas residências à existência de bibliotecas particulares, outro extrato social que dispunha de tal dispositivo eram as ordens religiosas que dispunham de material para catequisar as novas almas. Essa abordagem histórica é necessária, pois se a Biblioteca não está ligada a uma condição de direito e sim de privilégio temos ai um ponto inicial a nos determos. Sabemos que tais proibições serão extintas com a vinda da família real que permitirá a circulação e produção de impressos, porém somente a Imprensa Régia tinha autorização para tal, o que aponta para o segundo ponto, com isso cria-se o monopólio do que poderia ser editado e distribuído e por fim o restrito grupo de quem teria acesso a essa produção visto que a grande maioria da população era analfabeta. A construção social da Biblioteca e sua relação com a estrutura social brasileira foi baseada inicialmente por intermédio de privilégios, monopólio e circulação restrita. Como já foi observado, tivemos nos anos 30 do século passado uma nova ressignificação da Biblioteca brasileira através do INL, com intuito de acabar com os privilégios de poucos e ampliar a circulação, porém sem perder de vista o monopólio do projeto de Biblioteca que seria construído nesse período. O desafio posto atualmente na construção do PNLL é justamente romper com essa constituição histórica de monopólio do significado da Biblioteca brasileira, alguns elementos apontam para este exercício de ressignificação como a inclusão da letra B (de Biblioteca) na sigla dos planos municipais, orientação essa fruto de intensos debates que viam a necessidade de legitimar a biblioteca. Aqui usaremos a concepção de campo de Bourdieu com o intuito de elencar as relações produzidas e as disputas em curso analisando como podem contribuir para a construção de um modelo que possa dar conta de entender esse sistema de relações: [...] A noção de campo é, em certo sentido, uma estenografia conceptual de um modo de construção do objeto que vai comandar – ou orientar – todas as opções práticas da pesquisa. Ela funciona como um sinal que lembra o que há que fazer, a saber, verificar que o objeto em questão não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial de suas propriedades (BOURDIEU, 1989, p. 27). Nosso modelo irá se debruçar em três campos, apresentamos o quadro abaixo com a configuração de cada campo e suas características referentes a grupos, interesses e disputas:

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Econômico

Biblioteconomia Social

SUBCAMPOS

INTERESSES

17 a 20 de maio de 2016 DISPUTAS

Gestores públicos, Legisladores.

Monopólio das decisões

Manutenção do conceito de biblioteca

Editoras, Livrarias

Ampliação do Mercado Consumidor

Maior participação política nas decisões

Bibliotecas Públicas, escolares.

Ampliação de Instituições Oficiais

Fortalecimento das Bibliotecas

Bibliotecários

Reconhecimento profissional

Valorização salarial

Bibliotecas Comunitárias

Reconhecimento destes Espaços

Ampliação do conceito de biblioteca

O esquema apresentado acima busca explicitar como cada campo está composto apresentando seus interesses e disputas. No entanto, um desses campos que denomino Biblioteconomia Social, possui um maior número de subcampos e está numa forte movimentação interna muito motivada pela criação dos planos municipais. 982

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A construção de novas representações na Biblioteconomia apresenta-se como uma possibilidade de ampliar o diálogo com outros grupos para um fortalecimento da área. É justamente essa ampliação do conceito de bibliotecas que percebo como grande elemento desse processo, visto que essa ressignificação conceitual vem construindo um novo marco histórico na política do setor: [...] E apesar disso, os homens não definem, habitualmente suas ansiedades em termos de transformação histórica e contradição institucional. O bem-estar que desfrutam, não o atribuem habitualmente aos grandes altos e baixos das sociedades em que vivem. Raramente têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial; por isso, os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de evolução histórica de que podem participar. (MILLS, 1969, p. 10). Observamos como essa prática, nos remete ao conceito de Habitus de Bourdieu, assim podemos depreender que nesse primeiro momento as bibliotecas comunitárias disputam uma ressignificação da biblioteca, o fato desses espaços não estarem no escopo institucional oficial pode ser uma tentativa de entender esse estágio, por isso essa conceituação de habitus é importante: [...] Sistema de esquemas geradores de práticas que, de maneira sistemática, exprime a necessidade e as liberdades inerentes à condição de classe e a diferença constitutiva da posição, o habitus apreende as diferenças de condição captadas por ele sob a forma de diferenças entre práticas classificadas e classificantes – enquanto produto do habitus – segundo princípios de diferenciação que, por serem eles próprios o produto de tais diferenças, estão objetivamente ajustados a elas e, portanto, tendem a percebê-las como naturais. (BOURDIEU, 2007, p. 164). Ou seja, essa concepção de uma estrutura que condiciona o indivíduo em suas práticas que quer estabilizar um posicionamento dos agentes sociais com vias de naturalizar as práticas e seu modo de reprodução está no cerne da relação entre campo e habitus: [...] a teoria da prática de Bourdieu está ancorada na tese da existência de uma inter-relação causal entre as matrizes socialmente adquiridas de produção da conduta individual (habitus), de um lado, e as propriedades estruturais dos contextos de socialização, atuação e experiência dos agentes (campos), de outro. (Peters, 2013, p.52) Entretanto, a própria estrutura pode fornecer os elementos para que essa estabilização se altere fazendo com que os agentes operem diretamente no campo, alterando e reivindicando novos procedimentos agênticos buscando novas possibilidades de se pensar a construção social, operando diretamente nas brechas: [...] as abordagens objetivistas interrompem precocemente seu trabalho na fase do registro de tais regularidades ou propriedades estruturais, privando-se assim do diagnóstico dos princípios ou mecanismos agênticos

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capazes de responder pela geração e reprodução histórica dos padrões societários observados. Nesse sentido, na ausência do exame dos verdadeiros motores ou matrizes subjetivas de conduta através das quais a agência dos atores é produzida e organizada de modo a engendrar a existência de regularidades institucionais, as perspectivas objetivistas são espuriamente levadas a passar da hipótese do coletivo à sua hipóstase, a confundir “o modelo da realidade” com “a realidade do modelo”, reificando abstrações conceituais como “sociedade”, “classe” ou “modo de produção”, isto é, concebendo-as como entidades autônomas capazes de “agir” à maneira de agentes históricos concretos. (Peters, 2013, p. 50) Todo o engajamento estético-político das bibliotecas comunitárias em dar visibilidade a importância da instituição Biblioteca demonstra a importância que esse espaço ainda tem e mostram como sua função social ainda precisa se fortalecer. As redes construídas por esses grupos demonstram a necessidade de um diálogo entre a classe bibliotecária e esses agentes que possuem outra dinâmica de atuação, mas que via o campo político vem se fortalecendo. É justamente esse interesse em comum que pode criar uma possibilidade de fortalecer uma prática como observa Rancière: Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividades que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (Rancière, 2009, p. 15) 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse artigo apresentou os desdobramentos do PNLL em diálogo com a atuação de bibliotecas comunitárias na construção de Planos Municipais do Livro e Leitura. Tal participação das bibliotecas comunitárias na construção dos PMLL’s no território nacional deu maior visibilidade à articulação política desses grupos em defesa da instituição Biblioteca. Outro aspecto importante da atuação desses grupos foi a inclusão da letra B em suas siglas, muito mais que a inclusão de uma letra é a escolha política em evidenciar qual seu interesse nesse projeto e como as possíveis parcerias com a classe bibliotecária pode ainda dar mais força a esse movimento que se constitui como uma nova possibilidade de pensar a Biblioteca brasileira com grupos diversificados, mas com interesses em comum.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP: Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. BRASIL. Decreto-Lei nº 93, de 21 de dezembro de 1937. Cria o Instituto Nacional do Livro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, v. 76, n. 295, p. 25586, 27 dez. 1937. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 : artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. OLIVEIRA, Zita Catarina Prates de. A Biblioteca “fora do tempo”: políticas governamentais de bibliotecas públicas, 1937-1989. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 1994. PETERS, Gabriel. Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo (SP), v. 28, n. 83, p.47-71, Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental ; ED. 34, 2009. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre (Org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. (Coleção Cult).

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DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL CULTURAL E GESTÃO SOCIAL: OS TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE DA BAHIA Janaína Santos Dias1 Angeline Coimbra Tostes de Martino Alves2 RESUMO: O trabalho apresenta uma análise preliminar da Política de Desenvolvimento Territorial Cultural do Estado da Bahia implementada desde 2007. Faz parte de uma pesquisa em andamento baseada na análise de documentos oficiais e não oficiais e na realização de entrevistas com técnicos ligados à formulação e à implementação da política “Territórios de Identidade” ecomatores sociais. O objetivo é buscar compreender em que medida a abordagem sociocultural dos “Territórios de Identidade da Bahia”se enquadra no referencial da gestão social e em que aspectos vêm horizontalizando e criando novos paradigmas para a ação do estado nas suas estratégias de desenvolvimento. PALAVRAS-CHAVES: Desenvolvimento Territorial, Cultura, Gestão Social, Participação Social

“[...] trabalhamos com o elemento cultural, mas não com aquela cultura que a gente classificou como nas manifestações, mas sim a cultura do modo de vida. Nós estamos propondo que o modo como se organiza a sociedade é um processo cultural” (SERPA, 2015). (Trecho de Ubiramar Bispo - Coordenação Estadual dos Territórios – CET, Bahia)

1. INTRODUÇÃO Este trabalho analisa em que medida a política de desenvolvimento regional do estado da Bahia, denominada “Territórios de Identidade”, se insere na lógica da gestão social e valoriza a participação cidadã, bem como suas implicações e repercussões no âmbito governamental. São analisados os resultados parciais da pesquisa empírica de dissertação de mestrado da primeira autora. Trata-se de um estudo de caso, baseado na análise de documentos oficiais e não Economista, mestranda do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGAd UFF) na Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected] 2 Economista, especialista em Administração Pública e mestre em Administração (PPGAd UFF) pela Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected] e [email protected] 1

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oficiais e na realização de entrevistas com técnicos ligados à formulação e à implementação da política “Territórios de Identidade” e atores sociais estudiosos do tema. A revisão bibliográfica examina conceitos e perspectivas teóricas relacionadas com desenvolvimento, territorialidade, cultura,gestão social e a participação social segundo a ótica da teoria habermasiana da democracia deliberativa. O objetivo é buscar compreender como a abordagem territorial cultural dos “Territórios de Identidade da Bahia” introduz em seu desenho e implementação a gestão social e em que aspectos vêm horizontalizando a ação do Estado nas estratégias de desenvolvimento. Essa perspectiva suscita ainda as seguintes questões: até que ponto um projeto político de desenvolvimento territorial, que prioriza a dimensão sociocultural como vetor estratégico, vem aproximando a sociedade e o Estado na articulação das políticas públicas do estado? E se há protagonismo dos atores locais, pluralismo nos espaços públicos colegiados e participação cidadã na dinâmica social, política, cultural e econômica do Estado. Desde os anos 2000, tem havido grandes transformações e desafios na vida social, política, econômica e cultural brasileira. Transformações significativas vêm ocorrendo no ritmo e no modo do país se desenvolver num caráter mais amplo, sustentado, democrático e inclusivo, que ao mesmo tempo vem criando oportunidades e impondo desafios para a sociedade, para o Estado e para as relações Estado-sociedade. A regionalização do estado da Bahia a partir da abordagem cultural que vem considerando toda a diversidade cultural, ambiental, econômica e social existente nesse estado, estabeleceu umnovo paradigma na formulação das políticas públicas e ao invés de governar “para” a sociedade, passa a governar “com” a sociedade, respeitando a organização espacial, a que a população se sente pertencente, e naturalmente estabelece seus vínculos e interrelações (SEPLAN, 2016). A política é estruturada a partir da gestão social nos 27 territórios de identidade do estado utiliza-se de diversos instrumentos como: o Plano Plurianual Participativo (PPA-P), que fomenta a participação social por meio dos Colegiados Territoriais de Desenvolvimento Sustentável (Codeter´s), os Diálogos Territoriais, o Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (PTDS) e Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e demais instâncias que são espaços de representação e delegação territorial. Chauí (2009) destaca que uma prática de representação política é autêntica quando a participação popular é política e democrática e é capaz de produzir suas próprias leis, as normas, as regras e os regulamentos, que dirijam a vida sociopolítica e que a democracia exige a ampliação da representação pela participação e pela descoberta de outros procedimentos que garantem a participação como ato político efetivo, que aumenta à medida que há a criação de um novo direito. A autora também salienta que falar de participação na construção de políticas públicas significa dar voz e visibilidade aos agentes sociais e desconstruir a hierarquia das diferenças através do diálogo.

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O trabalho será desenvolvido em três seções, além dessa introdução e das considerações finais. A primeira tratará da questão do desenvolvimento territorial, a segunda da gestão social com enfoque na teoria habermasiana e a terceira trata da questão da identidade nos territórios e da gestão social, onde serão apresentados dados empíricos do caso em estudo. 2. DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL As discussões com ênfase nas questões regionais foram retomadas no âmbito do governo federal a partir dos anos 2000 e a concepção territorial vem se fortalecendo desde então.Políticas de intervenção nos espaços vêm sendo propostas como uma mudança no objeto de ação, de um setor específico ou de um ator social, para um novo objeto relacionado com as diferentes dimensões que caracterizam o território e tem contribuído para a ampliação do entendimento do território, como expressão política organizada no espaço, de suas identidades e práticas culturais. A incorporação territorial cultural nas políticas de desenvolvimento no Brasil3, desde os anos 2000, vem acarretando significativas mudanças no modelo de atuação do Estado dentre as quais se destaca a valorização das iniciativas e dos atores locais em detrimento do padrão vertical e descendente, que historicamente caracteriza a estratégia estatal para o desenvolvimento (ZANI e TENÓRIO, 2014). A abordagem dos “Territórios de Identidade da Bahia”, assim como os Territórios de Cidadania do Governo Federal,é inspirada na regionalização do país pelo programa Territórios Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) a partir de 20034. A política de desenvolvimento da Bahia é estruturada a partir do território5, o que implica a multissetorialidadedo desenvolvimento e o envolvimento plural de atores. Também implica ações e políticas

Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, 2006. Disponível em: www.cultura.gov.br/programaculturaldesenvolvimentobrasil. 4 A configuração dos Territórios de Identidade teve como principal indutor o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que, em 2003, através da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), introduziu o Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat) com o objetivo de “promover o planejamento e a autogestão do processo de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e o fortalecimento e dinamização de sua economia. Disponível em: http://www.seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=51 5 No início do ano 2007, o Fórum Baiano de Agricultura Familiar reivindicou o reconhecimento, a adoção e o estabelecimento dos 26 territórios de identidade da Bahia (hoje o estado possui 27 territórios de identidade) como diretriz básica do planejamento público estadual, junto ao secretário do planejamento estadual e a partir de então outras secretarias de governo foram envolvidas no processo, o que resultou numa mapa com as novas regiões do Estado que passou a ser utilizado como instrumento de orientação para a promoção do desenvolvimento social em todo o território baiano norteando a concepção dos Plano Plurianual PPA 2008/2011 e PPA 2012/2015 e PPA 2016/2019.A política dos territórios como unidades de planejamento norteou também o programa do governo federal Territórios da Cidadania em 2008 (SERPA, 2015, p.24). 3

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implementadas a partir do processo deliberativo e dialógico6 e que esses sejam aderentes ao cotidiano das pessoas, das instituições e economias locais de modo que possam ser construídos entre atores e setores e que gerem capacidades e possibilidades de transformação social. O desenvolvimento territorial parte do reconhecimento de que a sustentabilidade do processo de desenvolvimento territorial é tributária do envolvimento ativo das forças sociais nele presentes, o que pode garantir a aderência do processo à dinâmica socioeconômica vivenciada no território (MDA, 2005). A participação é entendida a partir da ideia de gestão social7, que é concebida como envolvimento dos diferentes atores do território em todas as fases da política de desenvolvimento, desde a mobilização dos agentes até a avaliação das ações implementadas nos territórios e o controle social. Os Territórios de Identidade da Bahia são uma importante ferramenta para o planejamento governamental do Estado, como objetivo de promover de maneira integrada o desenvolvimento sociocultural dos 27 territórios baianos, que são unidades de planejamento das políticas públicas do Estado. O conceito de território trabalhado pelo governo da Bahia é: o território é conceituado como um espaço físico geograficamente definido, geralmente contínuo, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições e uma população com grupos sociais relativamente distintos que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e territorial. (SEPLAN-BA)8. Ao incorporar a dimensão territorial como base de operacionalização das ações numa abordagem sociocultural, na qual as identidades territoriais e o sentido de pertencimento dos Os primeiros Diálogos Territoriais ocorreram entre os meses de abril e junho de 2010, visando a promoção de uma discussão sobre política territorial, o fortalecimento do papel dos membros do CAPPA (Conselho de Acompanhamento do PPA), com maior integração junto aos Colegiados Territoriais e a prestação de contas das ações de governo, desde 2007, nos Territórios de Identidade.Uma das iniciativas mais importantes dos Diálogos Territoriais foi a exposição sobre as realizações do governo a partir das demandas apresentadas pelos territórios durante o PPA-P (2008-2011). Os Diálogos Territoriais aconteceram nos 27 Territórios de Identidade, com a participação de aproximadamente 2,6 mil pessoas. Em 2013, ocorreu o segundo Diálogos Territoriais, em 20 Territórios de Identidade, como o objetivo do governo prestar conta das suas ações e submeter à avaliação dos Territórios sua execução do PPA (2012-2015) seus programas para a avaliação popular. Ver em http://www.seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/ conteudo.php?conteudo=46. 7 As bases normativas da gestão dos Territórios de Identidade da Bahia desde implementado desde 2007e do Programa Territórios de Cidadania do governo federal lançado em 2008 foram delineadas a partir dos Territórios Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) desde implementados desde 2003 que possui dentre outras norrmas: (a)a integração de políticas públicas a partir do planejamento territorial; (b) ampliação dos mecanismos de participação social na gestão das políticas públicas para o desenvolvimento do Território calcados no pluralismo dos atores, no processo deliberativo dialógico e que estes sejam aderentes ao cotidiano das pessoas, instituições e economias locais (MDA,2003). 8 Disponível em: www.seplan.ba.gov/mapa.br 6

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agentes sociais possam ser centrais no planejamento e na gestão estatal das políticas públicas, o estado da Bahia vem, desde 2007, ativando um modelo de gestão social9. A estratégia põe ênfase nas relações sociais, que possibilitem modificações e transformações econômicas, sociais, políticas e culturais capazes de se adequarem à situação específica de cada território e na forma como cidadãos e grupos interagem, valendo de seus recursos disponíveis de modo a responder com efetividade aos desafios encontrados em meio à diversidade do estado. Dessa forma, a ideia de desenvolvimento territorial cultural é indissociável da ideia de gestão social e controle social (TENÓRIO et al., 2008, p.158). 3. GESTÃO SOCIAL A gestão social tem sido vista como um processo dialógico, de decisões compartilhadas entre os agentes envolvidos (BOTREL et al., 2011). Os autores chamam a atenção para o fato de que diferentemente da gestão estratégica, que é pautada pelo mercado, cujo objetivo central é o lucro, necessitando para isso excluir os competidores, a gestão social se pauta na solidariedade, onde os participantes têm voz ativa. Assim, deixam claro que enquanto a primeira é pautada no indivíduo, esta se pauta na coletividade. A participação social é elemento fundamental da gestão social, pois é a partir dela que a coletividade assume um papel ativo nas decisões públicas e no controle social, permitindo que o espaço público e político e a sociedade civil e sua infraestrutura, tenham função de garantir uma força integradora e autônoma da prática do entendimento entre cidadãos. Segundo Jürgen Habermas (1995, p.41), “a participação [é] uma prática comum, cujo exercício é o que permite aos cidadãos se converterem no que querem ser: atores políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais”. O elemento argumentativo no interior do processo deliberativo, como tendênciacontemporânea, surgiu na teoria democrática a partir dos anos 1970 (AVRITZER, 2000). Parece adequado, quando se trata de estudos acerca de participação social, cidadania, controle social, desenvolvimento local e territorial, cujo a priori é a possibilidade de diálogo entre partes distintas e interesses diferenciados, utilizar para análise a teoria habermasiana da democracia deliberativa, que tem por princípio a racionalidade intersubjetiva. Habermas demonstra que é necessário ir além de uma razão subjetiva, propõe uma mudança de paradigma, a intersubjetividade, o processo de decisão dialógico (VITALE, 2006). A sociedade contemporânea, para avançar na emancipação da razão moderna, precisa superar o individualismo e avançar na intersubjetividade, na solidariedade. Fortalecer a razão dialógica, argumentativa, comunicativa, é avançar na democracia. 9 Em seus documentos oficiais o estado da Bahia utiliza o conceito de Gestão Cultural como pressuposto de suas políticas territoriais. Maiores informações ver em: http://www.seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=46

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Assim, um importante conceito do autor é o de espaço público ou esfera pública, que ele considera como um fenômeno social elementar e que pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões. [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado para o entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana. [...] O espaço de uma situação de fala, compartilhado intersubjetivamente, abre-se através das relações interpessoais que nascem no momento em que os participantes tomam posição perante os atos de fala dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias. Qualquer encontro que não se limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade comunicativa que uns concedem aos outros, movimenta-se num espaço público, constituído através da linguagem. Em princípio, ele está aberto para parceiros potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou que poderiam vir a se juntar. [...] os processos de formação de opinião, uma vez que se trata de questões práticas, sempre acompanham a mudança de preferências e de enfoques dos participantes – mas podem ser dissociados da tradução dessas disposições em ações. Nesta medida, as estruturas comunicacionais da esfera pública aliviam o público da tarefa de tomar decisões; as decisões proteladas continuam reservadas a instituições que tomam resoluções. Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo com temas e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transformadas em opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de que “gozam”. [...] Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa esfera. Nessa luta não se aplica somente a influência política já adquirida (de funcionários comprovados, de partidos estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais como o Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o prestígio de grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de esferas públicas especiais [...] a influência política que os atores obtêm sobre a comunicação pública, tem que apoiar-se, em última instância, na ressonância ou, mais precisamente, no assentimento de um público de leigos que possui os mesmos direitos. [...] temos que fazer uma distinção entre atores que surgem do público e participaram na reprodução da esfera pública e atores que ocupam uma esfera pública já constituída, a fim de aproveitar-se dela. Tal é o caso, por exemplo, de grandes grupos de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas de funções, que exercem influência no sistema político através da esfera pública. Para preencher sua função, que consiste em captar e tematizar os problemas de sociedade como um todo, a esfera pública política tem que se formar a partir dos

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contextos comunicacionais das pessoas virtualmente atingidas (HABERMAS, 1997, p. 92-94). Desde sua origem, este conceito tem algumas características ligadas ao debate democrático contemporâneo. A ideia é de um espaço onde os indivíduos interagem, debatem as decisões tomadas no âmbito político, pelas autoridades, como também avaliam o conteúdo moral das diferentes relações existentes na sociedade e apresentam suas demandas ao Estado. Os indivíduos discutem e deliberam sobre questões políticas na esfera pública, adotam estratégias para chamar a atenção da autoridade política (AVRITZER, 2000). De acordo com a teoria habermasiana, o processo de decisão governamental necessita de sustentação por meio da deliberação dos indivíduos racionais em fóruns amplos de debate e negociação. No entanto, a deliberação não é resultado de uma agregação de preferências fixas individuais. A deliberação resulta de um processo de comunicação, em espaços públicos, que antecede e auxilia a própria formação da vontade dos cidadãos (FARIA, 2000). Nesse sentido, segundo Habermas (1995), quando as formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas, a política dialógica e a política instrumental entrelaçam-se no campo das deliberações. Tudo gira em torno das condições de comunicação e dos procedimentos que outorgam à formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas, sua força legitimadora. Para Avritzer (2000), Habermas faz uma tentativa sociológica de reincorporar a argumentação ao mundo social. A dinâmica dessa tentativa é supor a presença de um mundo com pré-interpretações distintas e propor uma solução para o problema sociológico da produção da ordem que envolva o consenso argumentativo das partes sobre as características da ordem social em disputa. A isso o filósofo alemão denomina ação/agir comunicativo, nas próprias palavras do autor: O agir comunicativo depende de um processo de interpretação cooperativo em que os participantes se referem simultaneamente a algo no mundo subjetivo, no mundo social e no mundo objetivo; mesmo que no ato de sua manifestação ele consiga enfatizar respectivamente apenas um dos três componentes. Os falantes e ouvintes utilizam o sistema de referência dos três mundos como uma moldura no interior da qual tecem e interpretam definições comuns relativas à situação de sua ação. Nesse sistema de referência, eles não se referem diretamente a algo no mundo, mas relativizam suas próprias exteriorizações tendo em vista a possibilidade de que o outro ator venha a contestar a validade delas (HABERMAS, 2012, p. 221). O problema da intersubjetividade tem a ver com a possibilidade de sujeitos variados compartilharem o mesmo mundo da vida. Este entendido como o mundo subjetivo, objetivo e social de cada indivíduo.

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O mundo moderno, destaca Vitale (2006), trouxe consigo um dilema complexo. O processo de fragmentação da sociedade, representado também pelo individualismo liberal, gerou um desequilíbrio nas esferas de valor. As instituições surgidas com o Estado moderno e o sistema capitalista prevalecem sobre as outras esferas de valor. O individualismo prevalece sobre a solidariedade, por exemplo, tão importante para o bom desenvolvimento democrático, inclusive na versão deliberativa habermasiana. Confome a autora, Habermas denomina esse processo de colonização do mundo da vida por imperativos sistêmicos, o que constituiria numa sociopatologia. A colonização do mundo da vida é como o que ocorre na atualidade, a economia e a administração pública, seus valores se sobrepondo aos valores culturais, sociais e éticos dos sujeitos e da coletividade. Na teoria democrática deliberativa habermasiana, a racionalidade instrumental e a racionalidade argumentativa devem conviver, com a segunda legitimando a primeira. Não o contrário, como ocorre no processo de colonização do mundo da vida. 4. TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE E GESTÃO SOCIALL Serpa (2013) destaca que,pela primeira vez, um governo estadual sinalizou a possibilidade de construção de uma gestão participativa, estabelecendo e criando instâncias de diálogo com movimentos sociais e a sociedade civil organizada no sentido de levar em conta as demandas e propostas levantadas pela população (Idem, p.51). No início de 2007, foi realizado o PPA Participativo10 do Estado da Bahia, que foi o primeiro passo do governo em direção a abertura de canais efetivos de diálogo com a sociedade baiana. AS plenárias do PPA participativo ocorreram nos 27 territórios de identidade, foram registradas mais de 806 demandas sociais, mas as metas do PPA hoje são territorializadas. O Plano Plurianual de 2008/2011foi elaborado a partir do PPA participativo passando a ser metodologia e instrumento de gestão dos PPAs 2012/2015 e 2016/2019. Ao longo dos últimos quatorzes anos, o governo do Estado da Bahia vem tratando a política territorial como política de Estado, a lei 12.214 de 29 de dezembro de 2014, que dispõe sobre os princípios, diretrizes e objetivos da Política de Desenvolvimento Territorial do Estado da Bahia, institui o Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial (Cedeter)11 e os Colegiados Territoriais de Desenvolvimento Sus-

Destaca-se que foram capturadas mais de oito mil propostas formuladas pelos representantes da sociedade civil organizada em cada um dos vinte e sete territórios e cerca de doze mil pessoas contribuíram apresentando propostas (IPEA, 2015). 11 O Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial (Cedeter) é um órgão de caráter consultivo e de assessoramento, vinculado à Seplan, com a finalidade de subsidiar a elaboração de propostas de políticas públicas e estratégias para o desenvolvimento territorial sustentável e solidário do Estado da Bahia. Foi, primeiramente, instituído pelo decreto n.º 12.354, de 25 de agosto de 2010, e, posteriormente, pela Lei 13.2014/14. Mais informações ver em: http://www.seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=51. 10

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tentável (Codeter´s)12, o Comitê de Acompanhamento do Plano Plurianual (CAPPA)13, o Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (PTDS)14, o Plano Plurianual Participativo (PPA-P), o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE)15. A Bahia foi também o primeiro estado a criar a rede estadual de territórios, denominada de Coordenação Estadual dos Territórios de Identidade da Bahia (CET). Esta rede inspirou a criação de similares em vários estados da federação e organização da Rede Nacional de Territórios (MDA, 2016). Ubiramar Bispo, da Coordenação Estadual dos Territórios (CET) ressalta que: a política territorial desenvolvida no estado tem caráter finalista se constituindo como um instrumental que dá suporte a integração das políticas setoriais. A CET articula em rede os colegiados territoriais no Estado da Bahia, estimulando o diálogo entre os territórios e a consolidação e fortalecimento dos colegiados e mediação de conflitos (SERPA, 2015, p.27). O estado da Bahia possui um meio físico diverso, culturas diversas e formas de interagir no espaço também diversas. Thiago Xavier, atualmente Diretor de Planejamento Territorial do estado,ressalta que O estado é muito diversificado e por isso ter formulado políticas homogêneas dentro dessa diversidade transformou o ativo do estado que O Colegiado Territorial de Desenvolvimento Sustentável (Codeter) é o fórum de discussão e de participação social presente em todos os Territórios de Identidade. Trata-se de um espaço de planejamento, cogestão e concertação de políticas públicas, programas e projetos. Cada Território de Identidade possui um colegiado, composto por representantes de organizações da sociedade, que representam toda a diversidade social do território, e de órgãos e instituições públicas municipais, estadual e federal. O Codeter tem composição paritária com, pelo menos, 50% da sociedade civil e o máximo de 50% do poder público. A consolidação dos colegiados significa a construção de políticas públicas de forma mais democrática, transparente e participativa. Mais informações ver em: http://www. seplan.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=51. 13 Com a criação do Comitê de Acompanhamento do Plano Plurianual (Cappa), o governo fortaleceu os instrumentos de transparência. O Cappa é composto pelos representantes da sociedade civil eleitos para comporem o CEDETER, sendo onze titulares. Sua função é acompanhar a execução do Plano e mediar o diálogo entre a sociedade e o Estado. A SEPLAN fornece os insumos sobre o PPA e o Comitê faz suas incursões, recomendando possíveis ajustes, além de apresentar aos territórios suas impressões Maiores informações ver em:.http://www.seplan.ba.gov. br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=51. 14 O Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (PTDS) é o principal instrumento orientador das estratégias e intervenções no Território. Tem como objetivo facilitar a articulação e a implementação de programas e projetos que viabilizem o desenvolvimento territorial sustentável. Ele é resultado do amplo processo de sensibilização, mobilização e construção coletiva dos principais atores do Território, tanto do poder público, como da sociedade civil organizada.O PTDS é um instrumento elaborado pelo território e para o território, qualificando significativamente as suas demandas e proposições para os órgãos públicos nas diversas esferas. O Governo Estadual pode, inclusive, consultá-lo para elaboração de suas políticas para os territórios.A maioria dos 27 Territórios do Estado da Bahia possui um PTDS elaborado ou estão em fase de elaboração. Maiores informações ver em:http://www.seplan.ba. gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=51. 15 O Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) é um instrumento de gestão que orientará os investimentos públicos e privados. Sua importância para a Bahia está em apontar, através de lei:As áreas adequadas à implantação de arranjos socioprodutivosespecíficos;Os locais que devem ser protegidos devido à maior vulnerabilidade ambiental;As regiões que se encontram degradadas ou em estado de degradação que deverão ser objeto de ações de recuperação. Maiores informações ver em: www.zee.ba.gov.br. 12

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é justamente a sua diversidade em um passivo que é a desigualdade regional que ainda persiste em todo o estado, o diretor de planejamento territorial expõe que 80% da arrecadação de todo o estado vem do território metropolitano de Salvador e que isso é uma grande pobreza para o estado, pois o estado não consegue se desenvolver mais, pelo nível de concentração extremamente elevado e pelo tamanho e potencialidades do estado isso não se justifica. Os Territórios de Identidade força o estado a pensar políticas públicas específicas para cada território e que esse é o desafio da gestão estatal; pensar as políticas a partir da diversidade e estimular as articulações intersetoriais e as transversalidades e para isso é necessário trazer a população a participar desse processo, pois o estado precisa ser mais eficiente no processo de gestão e formulação das políticas e eficaz na execução das mesmas e para isso é importante promover um processo de concertação para atingir os objetivos que as políticas pretendem, que é alavancar o desenvolvimento sustentável do estado, a melhoria da qualidade de vida a partir das potencialidades locais, modos de vida e culturas locais nos territórios. A Bahia foi o estado que mais aperfeiçoou e sofisticou os instrumentos de política territorial e de participação social. O primeiro passo foi o primeiro PPA-P terrritorializado (metas territorializadas) e o estado acompanhou a mudança metodológica do PPA, passando o PPA a ter um caráter estratégico reforçando a função planejamento a Bahia foi o estado que mais aderiu a esse novo modelo que acreditamos ser uma modelo que comunica melhor dentro do governo e para a sociedade quais são as entregas em produtos e serviços que o estado pretende fazer e traz com muitas clareza de linguagem comunicação quais são os programas e compromissos e quais setores que irão participar destes compromissos, quais suas metas e iniciativas descrevendo e quantificando essas entregas colocando quais os indicadores de partida e onde se quer chegar ao final do PPA. Essa estrutura facilita o processo de participação social, a sociedade é chamada a participar, esse ano de 2015 estamos indo para o terceiro PPA-P e a cada ano de escuta tentamos evoluir na gestão, hoje já está inserido no sistema coorporativo de planejamento do estado a escutas não como uma coisa a parte, mas todas as demandas territoriais e setoriais são inseridas no FIPLAM16 que já funciona há três anos. FIPLAN-BA é o Sistema de Informações Contábeis e Financeiras do Estado da Bahia – SICOF visa promover o redesenho dos processos que compõem a estrutura de gestão e operacionalização da programação governamental, do orçamento, da execução orçamentária, da execução financeira e da contabilidade pública, envolvendo as atividades e procedimentos das áreas de planejamento e finanças e permite que em uma única ferramenta sejam sistematizados os processos de elaboração dos instrumentos de planejamento, de monitoramento e avaliação da execução orçamentária, assim como as ações de gestão orçamentária, financeira, contábil e patrimonial no âmbito da Administração Pública Estadual, inclusive com a possibilidade de abranger as empresas públicas e as sociedades de economia mista não dependentes integrantes da estrutura governamental. Maiores informações ver em: http:// www.portalfiplan.ba.gov.br/.

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Conforme Antônio Canelas Albino Rubim, Secretário de Cultura do estado, no período de 2011 a 2014, a regionalização e reorganização do estado em Territórios de Identidade é uma conceituação muito cara ao campo da cultura, pois além de falar em território, fala sobre identidade, ou seja, onde há a ideia de identidade daqueles lugares e locais, que pertencem àquele território, é fundamental e obviamente que a noção de identidade está ligada à cultura. Isso porque introduz na própria classificação dos Territórios de Identidade, que a cultura é importante, que a cultura faz parte da classificação do estado. Desde o início, em 2007, na gestão de Márcio Meirelles, que a Secretaria de Cultura (SECULT) foi a secretaria que levou mais a sério a reorganização do estado em territórios de identidade. A SECULT foi quem mais se apropriou deste conceito. O ex-secretário ainda observa: Desde 2009 até hoje têm sido realizadas as conferências territoriais de cultura, um fato inédito no país, pois sempre acontecem as conferências municipais e estaduais e setoriais. Uma inovação, se não me engano, a Bahia é o único estado onde ocorrem conferências territoriais. São vinte e sete territórios de identidade, foram realizadas vinte e sete conferências territoriais. Eu gostaria de falar sobre as conferências, pois elas são muito importantes. Na minha gestão já eram tradição, as conferências de cultura, em 2011 ocorreu e em 2013 nós resolvemos então qualificá-las no seguinte sentido: em geral há aquela conversa de que as conferências nunca dão em nada, então em 2013 fizemos um levantamento de todas as conferências territoriais anteriores e do que foi demandado em 2007, 2009 e 2011 e chegando em 2013, na Conferência Estadual de Cultura, expusemos todas as demandas e apresentamos tudo o que foi feito e tudo que não foi feito, porque achamos importantíssimo que as pessoas vissem primeiro o que pediram, uma memória e visão de cada território, uma memória do que foi alcançado para deslegitimar, inclusive a fala de que as conferências não dão em nada, que essa falação não serve pra nada, provamos por A+ B que aconteceu isso e aconteceu aquilo e como isso tudo tem a ver com as demandas colocadas e, por fim, as coisas que não foram feitas e disso saiu um caderninho, por exemplo, o Território do Sisal tem um caderninho que diz tudo isso, o Território do Extremo Sul também tem um caderninho que diz tudo também. Essa ação é uma maneira que chamamos de devolutiva, é uma maneira de se devolver à comunidade uma memória das conferências territoriais para que demandas que já foram atendidas não se repitam, por exemplo, e também como respeito e para dizer que levamos a sério as conferências e fazer um acúmulo sobre o pensamento do território. Considero essa ação muito positiva, dando um “plus” às conferências, elas ficaram num patamar mais interessante,a meu ver,um desdobramento extremamente positivo. Lula Dantas, representante da Comissão Nacional de Pontos de Cultura (CNPdC) e também integrante e fundador da Associação do Culto Afro Itabunense-BA, que promove oficinas

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gratuitas de tradição oral, artesanato, capoeira, cultura digital, teatro e dança no estado diz que a associação existe desde 1987 e, em 2008, com o processo de territorialização das políticas culturais pela SECULT se transformou em Ponto de Cultura (conveniado inicialmente à Secretaria Estadual de Cultura (SECULT), hoje ao Ministério da Cultura (MinC) e, a partir de então, os trabalhos da associação tiveram mais visibilidade, hoje a associação tem assento em diversos conselhos e fóruns municipais, estaduais e nacionais ligados à cultura como o Conselho Setorial de Cultura Afro Brasileira. A respeito de sua militância e participação nas políticas do estado Lula expõe: Sou babalaxé no terreiro de AséOyaFunké, comunidade de nação Ketu dedicado a orixá Oya. A associação cultural hoje é ponto de cultura e funciona há quarenta anos no mesmo local na minha comunidade em Itabuna e que através da divulgação e promoção da cultura da sua comunidade e que após virar Ponto de Cultura a visibilidade aumentou e nos envolvemos em movimentos sócio-culturais e entramos em campos de batalha antes inimagináveis para os povos de culturas tradicionais. È evidente que não foi de dez anos pra cá que estamos lutando por direitos, reconhecimento e acesso, estamos na luta há muitos anos. Há quinhentos anos que meu povo luta por direito ao território, à cidadania e à identidade. Enquanto comunidade tradicional e cultural negra chegamos há um reconhecimento institucional através do Ponto de Cultura que vem nos dando certa visibilidade e possibilidade de articulação política com outros movimentos e lideranças que tem enriquecido muito nosso processo de formação enquanto militantes e possibilidades de interação. Ainda estamos na luta por nossa cidadania cultural, pois isso ainda é utópico e surreal no nosso país, o que foi criado e instituído é ainda muito pouco, os espaços onde temos visibilidade a luta e a defesa por direitos são ainda muito limitados para a efetividade de nossa cidadania e diversidade, digo que existe ainda uma distância muito grande do Estado que queremos para o Estado que temos, somos o país que expressa a diversidade cultural que tem uma mescla de povos e processos civilizatórios múltiplos. A cultural nos leva a uma participação social ainda muito nova em espaços de representação política. Penso que a cultura, a pasta da cultura, as políticas culturais devem fazer o papel de interlocução e dizer para o resto do Estado, para as outras pastas e para a sociedade o que representa e o que é a nossadiversidade que sem acesso aos meios de comunicação, sem autonomia esses grupos sempre estarão á margem, mesmo que o discurso seja de culto ao protagonismo, empoderamento da sociedade civil.O que vivemos ainda é muito distante do que queremos como direitos. A participação social e política dos diferentes grupos culturais em espaços públicos, conselhos fóruns ainda é pouca e é necessário que diálogos entre os movimentos sociais e entre as lideranças se intensifiquem. Existe ainda a necessidade de que tenhamos assento e representatividade nas diversas pastas políticas.

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Na atuação e nas ações da Secretaria de Cultura Estadual (SECULT) e sua estratégia da participação da sociedade civil nas diversas etapas de construção e formulaçãoda política de desenvolvimento regional da Bahia como um todo se percebe a existência de alinhamento com o governo federal, desde a implantação da política dos Territórios de Identidade, os governo estadual e federal são do mesmo partido político; as questões conceituais e metodológicas a respeito do planejamento de médio prazo, os macros objetivos de longo prazo focados em aspectos sociais e culturais e a própria territorialização do planejamento reforçam a noção de alinhamento (IPEA, 2015, p.15)17. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho buscou-se, a partir de uma análise parcial da política de desenvolvimento territorial e cultural do estado da Bahia, avaliar em que medida a gestão social, conceito fundamental e pressuposto da gestão das políticas do estado, é valorizada na construção das políticas e como vem aproximando a sociedade e o estado nesse processo. Nanova regionalização territorial do estado da Bahia,a partir de critérios socioculturais, tendo os Territórios de Identidade como unidade de planejamento,percebe-se um avanço no que se refere à gestão social das políticas, na criação e institucionalização de instâncias de representação e participação social e na construção de espaços públicos de participação ativa e diálogo da sociedade civil no processo de construção das políticas, especialmente no campo cultural, o que vem de certa forma expressando um novo paradigma na relação Estado-Sociedade, conforme expõe Antônio Rubim, secretário de cultura do estado durante o período 2011-2014. De acordo com Castro (2005), a regionalização do estado baseada em critérios socioculturais enfatiza as dimensões política, simbólica e cultural na caracterização do estado em territórios e nessa caracterização está inserida a consciência regional e identidade territorial. Em sua fala, Antônio Albino Rubim, se refere a um constructo sociocultural que se manifesta enquanto representação da realidade. O território também se caracteriza como um espaço de disputa e de poder, base para essa representação que é apropriada e reelaborada pelos diferentes grupos de interesse que se mobilizam para defender seus interesses territoriais. A institucionalização da participação social nas políticas públicas guarda suas contradições com as práticas discursivas e com as práticas políticas e estas estão relacionadas à atuação do Estado como agente tensionador da relação com a sociedade. Conforme Coutinho (1980), a socialização da participação política não passa somente pelas formas institucionais que assumem em determinado momento, mas sim no processo pelo Sobre o alinhamento dos Territórios de Identidade com o governo federal ver também: SEPLAN, BAHIA. Secretaria de Planejamento. .Plano Plurianual 2012–2015: alinhamento conceitual e metodológico. Salvador:[s.n.], 2011b e MINISTÉRIO DA CULTURA. Programa Cultural para o Desenvolvimento do Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, 2006, 49p. 17

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qual a política se socializa e progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. A participação social no ciclo das políticas territoriais da Bahia vem se mostrando capaz de produzir a aprendizagem política dos diferentes grupos da sociedade, possibilitando a experimentação de novas formas de atuação e organização, que possam alterar a correlação de forças e o cenário político para além das inovações inscritas nos programas governamentais. Lula Dantas em sua fala expõe com clareza esse aspecto. Nesse sentido, também Habermas, em sua teoria do agir comunicativo, tem por foco o processo democrático, dialógico. Diferentemente de autores liberais como Schumpeter e outros, que se atinham ao momento da decisão. A razão intersubjetiva no espaço público, parte da ideia de que a ação administrativa do Estado tem por legitimação o processo democrático de criação de demandas nesse espaço público, oriundo de um processo dialógico entre os indivíduos interessados, que discutem e chegam a uma opinião, responsabilizando-se e comprometendo-se com ela. O que traz uma ideia de coesão social, a que a cultura está intimamente ligada. A incorporação da nova metodologia do Plano Plurianual e as conferências territoriais são um avanço em termos de modernização da administração pública, mas ainda muito deve se aprimorar na efetiva incorporação da participação social nas políticas territoriais como políticas de estado e nos mecanismos de controle social, comoo monitoramento e avaliação das políticas pela sociedade de todos os territórios de identidade do estado. A gestão social do desenvolvimento territorial cultural dos Territórios de Identidade da Bahia deve ser vista como parte de um processo de mudança gradual e contínua, que tende a consolidar-se somente na medida em que a sociedade de fato se aproprie das políticas de estado e os resultados conquistados se acumulem, formando um ciclo virtuoso de redução das desigualdades persistentes no estado da Bahia,como salienta ThiagoXavier, e ocorra aumento quantitativo e qualitativo da participação social, propiciando decisões mais acuradas para a gestão das políticas territoriais, para a sustentabilidade das conquistas e promover o desenvolvimento. O representante do movimento social deixa claro que ainda falta muito para que haja uma verdadeira participação social, talvez seja necessário conhecer mais de perto como o processo e a interação dos atores funciona. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVRITZER, Leonardo. Teoria Democrática e Deliberação Pública. São Paulo: Lua Nova, n. 49, 2000. pp. 25-46. Disponível em: . Acesso em: 12jul2014. BAHIA. Governador, 2010- (Jaques Wagner). Plano Plurianual-PPA: 2012-2015. Salvador,BA: SEPLAN, 2011 a. ______. Secretaria de Planejamento. Cartilha do Plano Plurianual-Participativo 2012-15.

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ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO CULTURAL NA BIENAL INTERNACIONAL DE ARTES DE SÃO PAULO: ENTRE A GESTÃO DO PÚBLICO E A MEDIAÇÃO ARTÍSTICA Jessica Seabra1 RESUMO: O tema da mediação cultural readquiriu relevância desde meados da década de 90 nos discursos políticos e programáticos que apelam à formação e atração de públicos para a cultura. Este apelo, muito associado ainda aos princípios da “democratização cultural”, revelam também as preocupações na manutenção de instituições culturais em um contexto em que o poder público tende a desvincular-se do financiamento à cultura. Estas preocupações têm suscitado o aumento dos chamados “serviços educativos” e de novas estratégias de mediação cultural. Este artigo procura mostrar um breve histórico de como vem sendo realizadas as ações educativas na Bienal Internacional de Artes de São Paulo em consonância com estas mudanças. Por fim, procura apontar a influência da chamada “virada educacional” nas mostras recentes da Bienal. PALAVRAS-CHAVE: Bienal Internacional de Artes de São Paulo, mediação cultural, políticas culturais, virada educacional.

1. INTRODUÇÃO Desde meados da década de 80 muitas instituições culturais passaram a lidar com um novo e crescente contingente de visitantes-consumidores, atraídos por políticas culturais que sublinham a importância do desenvolvimento de programas de formação e atração de públicos para as artes e a cultura. Nesse cenário, as chamadas ações educativas passaram a ser uma necessidade, tanto em termos propriamente educativos - para “qualificar” o encontro do público com a arte, quanto em termos operacionais - para gerir o público massivo dentro do espaço expositivo. A ampla divulgação de diversos tipos de bens culturais até então restritos a certas camadas sociais que se seguiu elevou a mediação cultural a um imperativo social (LAMIZET, 1999), numa visão que sublinha a importância da cultura para a construção da cidadania. À medida que “a cultura se faz visível pela mediação” 2 (LAMIZET, 1999, p.15), as políticas culturais surgem como uma interpretação institucional da mediação cultural, esta entendida como um Mestranda do programa de pós-graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP). Email: [email protected] 2 Tradução da autora “la culture se donne à voir par la médiation” (LAMIZET, 1999, p.15) 1

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trabalho de representação de um lugar social. Nesse sentido, a mediação cultural é um conjunto de atividades produtoras de representação e significação que numa dialética entre o individual e o coletivo: (…) constitui as formas culturais de pertença e de sociabilidade dando-lhes uma linguagem e dando-lhes as formas e os usos pelos quais os atores da sociabilidade apropriam-se dos objetos constitutivos da cultura que funda simbolicamente as estruturas políticas e institucionais do contrato social. 3 (LAMIZET, 1999, p.9). Esta visão está associada à construção de determinados cânones de sociabilidade no espaço público, entendidos em um sentido ideal, enquanto contexto particularmente favorável ao desenvolvimento de uma nova sociabilidade e de cidadania ativa. Este é um entendimento profundamente associado aos princípios republicanos franceses4 da “democratização cultural”, os quais defendem a importância do acesso às artes e à cultura e que, cada vez mais, encontra nas práticas e consumos culturais um elemento de reforço dos sentidos de coesão social e de qualificação das competências individuais. (QUINTELA, 2011) Apesar do contexto mais recente de retração do papel do Estado enquanto agente impulsionador de atividade artísticas e culturais e das críticas a esta visão sacralizada da cultura, constata-se que ela ainda sustenta, do ponto de vista ideológico, o desenvolvimento de muitas políticas culturais contemporâneas. No Brasil, sob o auspício de leis de incentivos fiscais, ocorreu um notório aumento do número de eventos e projetos culturais. Tal proliferação está associada à entrada de novos agentes institucionais na cena cultural, a exemplo de grandes grupos econômicos, que lançando mão das leis de incentivo passaram a consolidar sua presença no meio cultural como forma de distinção social. O maior exemplo é a Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei n. 8.313, de 1991), conhecida como Lei Rouanet, bem como suas congêneres criadas pelos governos estadual e municipal. Estas promovem incentivos fiscais5 usados como instrumentos de um novo modelo de gestão que foi implementado para administrar os bens culturais a partir da criação das Organizações Traduzido pela autora: “c’est le sens de la médiation qui constitue les formes culturelles d’appartenance et de sociabilité en leur donnant un langage et en leur donnant les formes et les usages par lesquels les acteurs de La sociabilité s’approprient les objets constitutifs de la culture qui fonde symboliquement les structures politiques et institutionnelles du contrat social.” 4 A partir do pós-II Guerra Mundial, no âmbito do processo de constituição do Estado de Bem Estar Social na Europa do Norte e Centro, o setor cultural veio a ser considerado como um dos domínios de competência e atuação direta do Estado, fundamental para a criação de melhores condições de bem-estar e para o reforço da coesão social. (QUINTELA, 2011, p.4) 5 Pessoas jurídicas e físicas podem investir na cultura através da Lei Rouanet, em forma de patrocínio ou doação. Para exposições de artes visuais é permitida a dedução de até 100% do valor da doação ou do patrocínio no imposto a pagar. No caso do patrocínio, tem-se o direito à publicidade do patrocinador, o que faz com que os apoiadores, além da isenção fiscal, estejam investindo também na imagem institucional, como mais um valor agregado à marca de sua empresa. 3

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Sociais (OS) e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), com a Reforma do Estado no Brasil, iniciada em 1995. Subordinadas à Secretaria Estadual de Cultura, estas instituições representam um novo modelo de gestão de serviços públicos no qual o Estado delega a grupos selecionados a condução de instituições públicas e de seu patrimônio. Tais políticas culturais contemporâneas inseridas na chamada “virada educacional”, que será objeto de breve debate no presente artigo, relacionam-se ainda a movimentos mais amplos, como a ressignificação de grandes exposições no modelo bienal em um novo contexto geopolítico. As últimas duas décadas presenciaram um imenso crescimento da quantidade de bienais internacionais, em especial de arte contemporânea. De acordo com Marieke van Hal, diretora fundadora da Biennial Foundation6 e pesquisadora do departamento de curadoria do Royal College of Art, nesse período surgiram aproximadamente cem bienais de arte contemporânea ao redor do mundo, inseridas no que pode ser considerado um processo de globalização do sistema artístico internacional até então restrito aos grandes centros da arte moderna: Nova York, Londres, Paris e Berlim. Com isso, há a presença relevante de muitos países e regiões emergentes com bienais criadas recentemente, como Bruxelas, capital da União Europeia; Rússia, Índia e China, pertencentes aos BRICS; Singapura, pertencente aos Tigres Asiáticos, além de países do Oriente Médio. Spricigo (2009) aponta para a coincidência cronológica desse “efeito Bienal” com o processo de reestruturação geopolítica após a queda do Muro de Berlim, no qual diversas cidades buscaram se reposicionar em um novo cenário global descentralizado que superava a polarização política entre Ocidente e Oriente vigente durante a Guerra Fria. A partir da década de 1990, as importantes mudanças no cenário político e econômico mundial implicaram, entre outras coisas, a saída do Estado como o grande investidor e o declínio de temas como a produção massificada e o planejamento das cidades e sua substituição pela gestão empresarial do espaço urbano (ARANTES, 1999). Nesse contexto, as bienais direta ou indiretamente inserem-se em estratégias competitivas para reposicionar as cidades no panorama mundial, com uma crescente convergência entre cultura e economia. Nesse sentido, há uma concorrência por capital simbólico7, por quotas de mercado e por monopólios. Por outro lado, há as demandas políticas e econômicas locais por Organização independente que opera como uma plataforma para coletar e difundir informações sobre as bienais. Mais informações no site . 7 De acordo com Pierre Bourdieu, o poder simbólico é “o poder invisível o qual pode ser exercido com cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 8). O autor reconhece que os sistemas simbólicos, tal como a arte, exercem poder estruturante na sociedade porque são estruturados. Essa estrutura diz respeito a símbolos capazes de contribuir com uma maior integração social, uma vez que formam consensos sobre a realidade, facilitando assim a reprodução da ordem social. (BOURDIEU, 1989, p. 10). Bourdieu observa ainda que há uma proximidade de interesses entre os detentores do poder simbólico e os detentores do poder temporal, político ou econômico. Ver mais em: BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 6

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significação cultural e por supremacia, exacerbando as singularidades de determinadas culturas e locais. Essa fusão entre a promoção de culturas locais e os interesses econômicos das cidades que abrigam essas exposições corresponde a uma ligação intrínseca entre cultura e economia e diz respeito, nas teses de Jameson (1991) e Harvey (2007), à transição de um regime de monopólio para um regime crescentemente estetizado e transnacional de capitalismo, que promove o consumo individualizado e a fragmentação do espaço urbano. Neste contexto, as bienais com toda a carga simbólica dos locais em que estão inseridas, contribuem no estabelecimento de nichos de mercado e na atração de um público internacional para gerar capital cultural, assim como novas fontes de renda através do turismo de arte. A Bienal Internacional de Artes de São Paulo recentemente vem se alinhando com tendências do mundo globalizado da arte, reinserindo-se em um mapa cultural. Dentre essas tendências está a chamada virada educacional, onde programas educativos tem se alinhado fortemente com as políticas culturais da instituição e da cidade de São Paulo. Com isso, o presente trabalho propõe mostrar um breve histórico das ações educativas ou de mediação que vem sendo realizadas na Bienal de São Paulo. É mostrado de forma sucinta o conjunto frequente de técnicas que utiliza e disponibiliza aos mediadores, de forma a constituir um entendimento geral que articula a narrativa dominante do espaço, própria à chamada arte contemporânea de seu tempo. Será investigado como o Educativo articula esta mudança na experiência da recepção coletiva da obra de arte ao mesmo tempo em que passa a constituir-se como uma importante ferramenta na estratégica de formação de público. Com isso, pretende-se observar como o Educativo Bienal, criado, entre outras causas, como contrapartida social das verbas captadas, recentemente transformou-se em um signo de sucesso de público, e, portanto, de visibilidade das marcas relacionadas à Bienal. 2. BREVE HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO NA BIENAL DE ARTES DE SÃO PAULO O curador Bruce Ferguson, que coeditou o influente livro Thinking About Exhibitions (1996), aponta para a existência recente do que ele denomina de “bienais discursivas”. O termo refere-se ao fato de que conferências, eventos interdisciplinares, workshops, atividades educacionais, e discussões públicas tem se tornado elementos cada vez mais importantes nesses projetos. Essa expansão para além da exposição em si, abrangendo mais do que obras de arte, demonstra como as bienais configuram-se agora como veículos para a produção de conhecimento e debate intelectual. Desta forma, o discurso, através do uso da linguagem, pode ser considerado uma forma de produção de conhecimento, em que a linguagem é entendida como um sistema de representação.

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Essa discursividade se destaca no campo das exposições também nas práticas de mediação, mas adquiriu um caráter de participação ativa e de troca entre mediador e visitante muito recentemente. Usualmente, no Brasil, quando se fala de mediação da arte, adota-se, (…) via de regra, (…) o ponto de vista da educação (da arte), dos projetos pedagógicos, serviços e programas educativos de museus, universidades e instituições culturais – um lugar (ainda) coadjuvante, ou não plenamente incorporado, e de interesse secundário por parte do campo (ou seria do sistema?) da arte. (GONÇALVES, 2013, p.70) Dessa forma, a curadoria das mostras e as práticas de mediação são frequentemente apartadas, “concebidas como processos distintos: comunicáveis, mas hierarquicamente distantes” (GONÇALVES, 2013, p.70). Isso ocorre devido a uma ideia errônea de que a mediação se constitui como uma tentativa de tradução da curadoria, esta detentora do discurso, verdadeiro, da arte. Daí também a ideia de que a mediação se constitui como um ensino, uma educação, através da qual são transmitidos conhecimentos aos visitantes. Essa ideia imperou nas práticas de mediação na Bienal de Artes de São Paulo entre 1951 e 1984, período que se constituiu por “Propostas Educacionais em História da Arte”, realizadas por historiadores de arte, de acordo com Minerini Neto. A partir de 1985, com a chegada da equipe coordenada pela arte-educadora Ana Cristina Rocco Pereira de Almeida, as iniciativas calcadas na história da arte seriam compartilhadas com “visitas e atividades específicas para crianças e adolescentes, para os quais deixará de imperar a transmissão de valores da história da arte”, de modo a “acolher leituras e interpretações manifestas por cada participante”, (MINERI NETO, 2014, p.25), iniciando o período caracterizado por “Propostas Educacionais em Arte/Educação”. Essa postura, que vê os visitantes como interlocutores e o papel da mediação o de procurar um debate que considere a identidade e o background de cada participante, procura subverter a lógica que subjulga a prática, que nega sua qualidade criativa e intelectual. É uma postura que vê a mediação também como um processo curatorial, porque ela “envolve escolhas, construção de narrativas, precisão no recorte, conhecimento histórico e postura política (sim!)” (GONÇALVES, 2013, p.71). Em última instância, vê as práticas de mediação também como artísticas, o mediador como artista, algo como buscar recuperar a virada antropológica no mundo da arte contemporânea, ocorrida na segunda metade dos anos 1990, também no campo da mediação da arte. Explicamos: para Hall Foster, o “artista como etnógrafo” era tipicamente um visitante internacional sancionado vindo de fora da cultura local com a qual ele estava se envolvendo. Paul O’Neill em seu livro The Culture of curating and the curating of culture(s) (2012) traça esse fenômeno como um modo de problematizar o papel do curador que estabelece uma representação descontextualizada da arte não-ocidental – uma visão que olhou para preocupações formais e estéticas ao invés de especificidades socioculturais. De modo análogo, poderíamos pensar no mediador como etnógrafo, como aquele que problematiza os contextos

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culturais dos visitantes, mais do que simplesmente transmite informações, esforçando-se no sentido de imiscuir arte e vida. Essa ideia vai ao encontro da afirmação de Nicolás Paris (apud GONÇALVES, 2013, p. 72), artista e educador colombiano, conhecido internacionalmente por seus projetos de arte e pedagogia: Trabalhar no âmbito cultural pressupõe, inevitavelmente, uma “pedagogia instável”, como diria Irit Rogoff, onde o significado não é inerente aos espectadores/participantes, nem imposto por uma autoridade, mas ganha vida no momento mesmo da atualização. Essa visão não estava presente até 1985 na Bienal de Artes de São Paulo, como visto, embora a Bienal apresente em seus discursos a função educacional como fundante, desde a primeira edição, em 1951. É controverso: embora tenha sido criada originalmente como uma exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que chamava para si a tarefa de estender a pregação da modernidade para o grande público, nada que afirmasse sua função educativa constava nos estatutos da Bienal, até 1966, quando foi inserida a necessidade de realizar palestras. Esse item foi retirado em 1984 e “desde então nada consta sobre educação nos estatutos, que passaram por dois novos e recentes ajustes em 1998 e em 2009” (MINERI NETO, 2014, p.89). De acordo com Mineri Neto, os questionamentos trazidos pelos visitantes na primeira edição da Bienal fez com que os comissários de cada delegação de países na mostra representados conduzissem visitas aos espaços destinados aos artistas de seu país. Essa ação foi denominada “passeios explicativos”, nos quais, em sintonia com preceitos modernistas, a arte moderna era explicada aos visitantes a partir de conhecimentos postulados na história da arte. Na edição seguinte, a Bienal além de preparar uma pequena equipe para a oferta de passeios explicativos, organizou o plano didático estruturado em ciclos de conferências por artistas, críticos nacionais e estrangeiros, chefes de delegações e membros do júri, e cada sala apresentava um cartaz que conduzia o visitante. Esse modelo começou a se esgotar na mostra “Tradição e Ruptura” realizada em 1984 e 1985. A partir dai as mediações na mostra deixaram de ser orientadas majoritariamente pela história da arte para se abrir às proposições da arte/educação a partir da 18ª Bienal em 1985. A preocupação em instruir as classes populares e inicia-las na arte moderna foi uma das tônicas de vários discursos que justificavam a Bienal de São Paulo, entre eles o de Mário Pedrosa (1986). Mas antes disso, já em 1930, Mário de Andrade pensava na criação de museus modernos com ensinamentos ativos. Tratando do acesso à cultura no Brasil, Mário de Andrade escreve: Num país como o nosso, em que a cultura infelizmente ainda não é uma necessidade quotidiana de ser, está aguçando com violência dolorosa o contraste entre uma pequena elite que realmente se cultiva e um povo abichornado em seu rude corpo. Há que forçar um maior entendimento

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mútuo, um maior nivelamento geral de cultura que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos, e em consequência lhe dê uma validade verdadeiramente funcional. Está claro, pois, que o nivelamento não poderá consistir em cortar o tope ensolarado das elites, mas em provocar com atividade o erguimento das partes que estão na sombra, pode-as em condição de receber mais luz. Tarefa que compete aos governos. (Mário de Andrade apud DUARTE, 1977, p.152-153. Grifo nosso). Esse “nivelamento geral de cultura” não se assemelha em nada com “a dissolução de algumas fronteiras e divisões fundamentais, notadamente o desgaste da velha distinção entre cultura erudita e cultura popular” que Jameson (1985, p.16) aponta como uma das características da pós-modernidade, mas sim à ideia de democratização do acesso à cultura, ao conhecimento científico e aos bens simbólicos, de um projeto moderno, ideia essa que passa pela indústria cultural, pelos meios massivos de comunicação e pela oferta de produtos e bens tecnológicos. E ainda assim, é uma ideia corrente hoje nas políticas públicas no Brasil que alçaram a cultura a carro-chefe. Associada a processos de “revitalização urbana”, de grande apelo midiático, capazes de atrair grande volume de visitantes, vem promovendo o enobrecimento urbano de áreas da cidade e consequente gentrificação, além de uma espécie de substituição da educação. É como se a democratização do acesso a cultura fosse empurrada com capacidades redentoras de inclusão social, em um sistema que prioriza investimentos a curto prazo em cultura em detrimento de investimentos a longo prazo em educação. Isso fica mais claro na passagem em que Mário de Andrade concebe o museu como lugar de educação: Sim, temos enorme necessidade de escolas primárias e de alfabetização. Mas a organização intelectual de um povo não se processa cronologicamente, primeiro isto e depois aquilo. Tanto mais em povos crianças e contemporâneos como o nosso, com avião, parques infantis, radio, bibliotecas públicas, jornal e impossibilitados por isso de qualquer Idade Média. Não entreparemos, portanto, no sofisma sentimental do ensino primário. Ele é imprescindível, mas são imprescindíveis igualmente os institutos culturais em que a pesquisa vá de mãos dadas com a vulgarização, com a popularização da inteligência. (…) São Paulo entrou ultimamente numa corrida que, por felicidade, não é armamentista, é cultural. (…) Não basta ensinar o analfabeto a ler. É preciso dar-lhe contemporaneamente o elemento em que possa exercer a faculdade nova que adquiriu. Defender o nosso patrimônio histórico e artístico é alfabetização. (Mario de Andrade apud DUARTE, 1977, p.153-154). Hoje, se substituirmos os “parques infantis, radio, bibliotecas públicas, jornal” por celulares, tabletes, informações em rede, mundo digital-virtual, e variadas tecnologias, o discurso se manteria atual e similar a discursos aplicados como justificativa para as políticas públicas culturais que vem sendo implantadas em São Paulo e no Brasil. Através de um novo modelo de gestão

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de serviços públicos no qual o Estado delega a grupos selecionados a condução de instituições públicas e de seu patrimônio, tem ocorrido uma fusão entre cultura e capital que fez com que a própria estrutura dos museus fosse transformada, qualquer que seja a forma histórica em que se apresente. Passaram de local de uma cultura de elite a polo midiático de atração econômica, visitados por um número cada vez maior de consumidores de arte de classe média. (WU, 2006; ARANTES, 2005). Essa mudança faz parte do que Otília Arantes denomina de nova cultura dos museus8, na qual estas instituições passam a apresentar uma atitude cada vez mais hedonista. Aliás, parece relevante que o mencionado texto de Mário de Andrade tenha sido republicado no final da década de 70 em uma publicação patrocinada pela então Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia. Esta iniciativa foi contemporânea internacionalmente ao início de um grande afluxo de capital corporativo nas instituições de artes visual impulsionado pelas políticas de livre mercado e no ethos da década de Reagan e Thatcher. A partir dos anos 1980, as empresas transformaram museus, galerias de arte e grandes exposições em seus próprios veículos de relações públicas, assumindo a função, e explorando o status social que instituições culturais têm na sociedade. (WU, 2006). O que se veicula indiretamente é que “ao patrocinar instituições de arte, as corporações apresentam-se como partilhando de um sistema de valores humanista com museus e galerias, disfarçando seus interesses particulares com um verniz moral universal.” (WU, 2006, p.147-8). Na década de 1980, com a criação do cargo de curador chefe na figura de Walter Zanini, o discurso da Bienal esforça-se em falar da contemporaneidade da arte brasileira, colocada em patamar de igualdade com as manifestações internacionais. Essa transformação do espaço expositivo em que as obras passaram a ser separadas pelo viés da analogia de linguagem e não mais no modelo veneziano de representações nacionais fez necessária a distribuição ao público de um folheto com orientações e sugestões de roteiro através dos núcleos curatoriais, além do serviço de monitores e um vídeo na entrada da exposição apresentando como era feita uma Bienal. (MINERI NETO, 2014, p.101). Já na década de 90 a Bienal seria marcada por “um processo de constantes crises, com artistas e agentes culturais em oposição, conflito, negociação e aceitação no mercado de arte e na indústria da propaganda e dos negócios” (ALAMBERT e CANHETE, 2004, p.189). Paralelamente a Bienal se firmava como uma grife de sucesso, atraindo um público cada vez maior. Nesse sentido, a gestão de Edemar Cid Ferreira na presidência da Bienal, entre 1993 e 1997, Na convenção da crítica, a cultura dos museus, de acordo com Fabbrini, “teve início em 1977, com a inauguração do Beauborg, o Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Georges Pompidou, em Paris, de Richard Rogers e Renzo Piano; consolidou-se com a filial do Museu Guggenheim, na cidade de Bilbao, em 1997, de Frank O. Gehry; e atingiu nova fase, de expansão para o Oriente, nos anos 2000, com os projetos de franquias do Beaubourg em Xangai, na China, e do Museu do Louvre, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos” In: FABBRINI, Ricardo N. “A Fruição nos novos museus”. Revista Especiaria n19., 2009, p.245. Disponível em:

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teve muito a contribuir. Ávido por publicidade, Cid Ferreira estabeleceu laços estreitos com a imprensa. A equipe de monitores voltou a ser destaque na mídia, mostrando que aquela gestão na Bienal tinha por objetivo promover a educação das massas, mesmo argumento usado nas primeiras Bienais, que, agora, atrelava-se ao interesse econômico de atrair patrocinadores. (MINERI NETO, 2014, p.162). A partir de então as parcerias se tornariam cada vez mais numerosas. Lilian Amaral aproximou a Bienal de São Paulo da FDE – Fundação para o desenvolvimento da Educação e também do Serviço Social do Comércio (SESC), ao conduzir ação educacional para a 23ª edição. Essas parcerias, em associação com a grandiloquência do presidente da Fundação Bienal fez com que o número de monitores crescesse, objetivando atender todo o público que passasse pela Bienal. Com isso, qualquer pessoa que chegasse à exposição poderia solicitar acompanhamento de um monitor, ainda que a coordenação aconselhasse a formação de grupos de visitas a fim de assegurar a disponibilidade de seus monitores. Com números oscilantes, falou-se entre 110 e 130 monitores. Outros números surpreendem: (...) Diariamente, a Fundação Bienal, por meio da Coordenação da Ação Cultural Educativa e Monitoria, oferece vagas para professores de artes e áreas afins das redes pública e particular de ensino e para orientadores pedagógicos da rede municipal para o curso de Formação de Mediadores em Artes. São 4 mil vagas para os professores interessados e 800 para os coordenadores pedagógicos da prefeitura (…). O curso compreende uma palestra sobre o tema Desmaterialização da Arte no Final do Milênio, comenta a história da Bienal e sua relação com a cidade de São Paulo propõe exercícios de leitura da obra de arte, realiza visitas comentadas e orientadas por interlocutores-monitores no espaço expositivo e propõe uma discussão final sobre como preparar os alunos para as visitas e os interessarem sobre arte contemporânea. (GUIA VOGUE, 1996, s/p apud MINERI NETO, 2014, p.168) No entanto, essa profissionalização das ações educativas ainda encontrariam dificuldades em gerir o número cada vez maior de visitantes no espaço expositivo. Um exemplo foi a 25ª edição que a partir de um convênio firmado com a Secretaria de Estado da Educação, no qual esta subsidiou a compra de ingressos, investindo cerca de um milhão de reais e a Fundação Bienal, como contrapartida, responsabilizou-se pela realização de visitas monitoradas de cerca de 200 mil estudantes e professores. Entretanto, quando esse convênio foi firmado, já estava em curso a formação dos mediadores já selecionados. Percebeu-se que a demanda havia aumentado demasiadamente e não havia orçamento disponível para contratar novos mediadores e nem tempo para formá-los. A solução encontrada foi gravar e exibir um vídeo no Pavilhão da Bienal para contextualizar a exposição a estudantes e professores que, sozinhos, assistiam ao vídeo e se autoconduziam pela exposição. Mirian Celeste, coordenadora de educação da mostra, descreve:

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O vídeo foi feito como a tábua de salvação, pois tivemos de assumir a visita de 200.000 alunos da rede estadual, no meio do caminho, em troca de verbas conseguidas pela Fundação Bienal. Não haveria possibilidade de contratar educadores para toda esta turma. (...) Foi uma operação de guerra, pois queríamos honrar os compromissos, tanto o Programa de Ação Educativa como a FDE – Fundação de Desenvolvimento da Educação. Para que a visita fosse viabilizada com um mínimo de mediação possível traçamos um projeto – Jovens Protagonistas: contratamos alguns educadores para este projeto que ficavam nos espaços com camiseta identificatória do projeto, oferecemos a todos os educadores que acompanharam as turmas o guia da Bienal além de algumas dicas e regras do espaço e todos os grupos começariam a visita vendo o vídeo no auditório do MAC. Eram longas filas na rampa externa com entrada, se não me engano, onde 458 alunos (lotação completa) entravam no auditório de uma em uma hora, com uma estratégia para entrada e saída para perder o menor tempo possível. Dalí saíam acompanhados pelos professores. (Martins, 2014, e-mail apud MINERI NETO, 2014, p.189-190). Esse nos parece um exemplo radical de massificação da experiência de recepção coletiva da obra de arte. Nela, a relação distraída com a obra de arte “não é mais do que apreensão superficial e maximamente interessada da obra enquanto bem de consumo” (ARANTES, 1993, p.240) em um sistema que proporciona uma experiência cansativa de contato com obras de arte, numa perspectiva ainda pior do que aquela dada por Valéry (1993, p.54), pois à “justaposição de produções que se devoram umas às outras” são somadas horas de espera antes de adentrar a exposição. Essa situação mudou um pouco recentemente. Embora com público crescente a cada edição, atraindo cerca de 500 mil pessoas, a Bienal de Artes de São Paulo tem se empenhado em promover diálogos entre seus diferentes agentes - curadores, artistas, educadores, públicos e equipes internas – que suscitem a proposição de diferentes estratégias de fruição das obras e dos projetos. As ações e as parcerias propostas pelo Educativo Bienal são avaliadas e analisadas de diferentes maneiras, gerando parâmetros qualitativos, fundamentais para o aprimoramento de propostas, mostras itinerantes e próximas edições. Essa postura se fortaleceu com o fortalecimento das próprias ações educativas, antes em evidente descontinuidade, com a presença de novas equipes educativas a cada nova mostra bienal. A partir da criação do Educativo Permanente, em 2011 sob a curadoria de Stela Barbieri, as propostas de fruição na exposição foram organizadas nos grandes eixos conceituais “encontro”, “diálogo” e “experiência”, que propõem diferentes eixos de atuação, voltados para qualquer pessoa com interesse em conversar sobre arte. Nesse contexto, cursos, conversas, visitas e ações de ateliês são adaptados às necessidades dos participantes e outros florescem da convivência com o público. Também aos mediadores é dada maior autonomia na decisão de como interagir com cada público, podendo trazer sua própria perspectiva dentro da visita.

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Com isso, abrem-se pequenas possibilidades de fruir a exposição da maneira como se quiser: deixando a ingenuidade do lado de fora da exposição, sem tentar dar conta de tudo o que é exposto, e através da seleção de algumas poucas obras através de um olhar detido e moroso, pensar na fruição na perspectiva do artista. Ou ainda, se o visitante-interlocutor preferir, dar uma pausa para as selfies, em um registro contemporâneo mais próximo do fruidor-consumidor de Baudrillard. 9 Citam-se aqui as selfies para não deixar esquecer que esse afluxo de um grande contingente de pessoas formando um verdadeiro fenômeno de grandes exposições que atraem longas filas são expressão enfática de um processo de estetização do social10. Para Otília Arantes (1993) os museus – e, dizemos nós, as grandes exposições como as Bienais - tem adotado uma postura hedonista frente à estetização deles próprios e da vida. E essa postura, mais do que simplesmente requerida pelo próprio funcionamento da sociedade de consumo, é uma questão de políticas públicas, ainda que de fundo claramente econômico. 3. A VIRADA EDUCACIONAL NAS BIENAIS DE SÃO PAULO Como demonstrado, a gradativa profissionalização dos serviços educativos na Bienal aconteceu como resposta a novos imperativos políticos, econômicos e sociais, em um momento de mudança das políticas culturais, que passaram a ser conduzidas por mecanismos de incentivos fiscais. Salienta-se o uso de técnicas oriundas das áreas do marketing e da gestão, tendo como objetivo delinear estratégias capazes de dotar a Bienal de maior visibilidade, alargando sua audiência e potenciais patrocinadores. Em face deste contexto, ocorre certa subversão dos motivos que fundamentam a existência de equipamentos como o Educativo Bienal, de maneira que a Bienal parece “moldar” seus objetivos de forma a justificar os apoios públicos. Relegando, dessa forma, o Educativo a contrapartida social. Entretanto, a educação recentemente tem ganhado importância de modo a deixar de ser um serviço educativo para se tornar característica fundante de diversas instituições, processos artísticos e curatoriais. De acordo com Paul O’Neill e Mick Wilson, autores do livro Curating O fruidor-consumidor insere-se na perspectiva de Baudrillard de que na atual sociedade de consumo os objetos não são mais tomados isoladamente, mas sempre em relação com os outros, valendo não mais pela sua utilidade singular, mas sim pela sua representação. Nesse ambiente em que tudo é misturado e homogeneizado, também a cultura é integrada, convivendo com a vida cotidiana. Com isso, a cultura se torna também ela objeto de consumo, passando a ser consumida como representação de bom gosto. Esse processo é chamado de culturalização da cultura por Baudrillard. Ver mais em: BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991. 10 Diversos são os estudos (entre eles os de Frederic Jameson, David Harvey, Mike Featherstone, Zygmunt Bauman, Jean Baudrillard e Otília Arantes), sobre a sociedade dita pós-moderna que enfatizam o apagamento das fronteiras entre arte e vida cotidiana e o colapso das distinções entre alta cultura e cultura popular ou de massa. À essa “desestetização” da arte haveria um momento complementar de “estetização do social” ou estetização da vida cotidiana, quando o ato de consumir deixou de ser necessário para se tornar estético e, além disso, sinônimo de reconhecimento e felicidade. 9

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and the educational turn (2010), formatos, métodos, programas, modelos, condições, processos e procedimentos educativos tem penetrado as práticas curatoriais e artísticas contemporâneas e seus concomitantes quadros críticos. Este fenômeno está inserido na chamada “virada educacional”, que é: Oriunda em certa medida da chamada virada social; por outro lado, de uma crítica ao mercado da arte e ao capital cultural, (…) entre tantas outras possíveis origens, (…) consiste em uma mudança radical nas maneiras de atuar e existir, principalmente, de artistas e curadores, em que o foco da criação e organização de objetos de arte se desloca para a produção de espaços dialógicos e situações de convívio, tendo como uma de suas bases teóricas principais, a pedagogia crítica e investigações experimentais e mais radicais realizadas no campo da educação na década de 1970. (GONÇALVES, 2006, p.17-18) Nesse sentido, em uma tentativa de ampliar o potencial crítico social da arte as curadorias de edições recentes da Bienal utilizam-se de discursos e estratégias que colocam as relações humanas no centro da criação e interpretação da arte contemporânea. É o caso, por exemplo, da estética relacional e da arte participativa, em estreita colaboração com a comunidade. Questiona-se, nos diversos âmbitos da arte, da produção ao consumo, a tradicional relação entre o objeto de arte, o artista e os públicos. Podem ser citadas neste contexto as 27ª edição (2006), na qual a curadora Lisett Lagnado privilegiou aspectos da globalização cultural tais como migrações, terrorismo, subjetividade etc.; ou a 29ª edição (2010) que contava com áreas intituladas “Terreiros”, espaços com diversas atividades que faziam alusão a espaços públicos como praças, entendidos como o lócus da ação política. Essas mostras parecem buscar uma práxis educacional cada vez mais expandida, em consonância com “práticas colaborativas e interdisciplinares” que se aproximam do mundo da vida, estetizando elementos do presente na forma artística. Com a penetração da educação e suas consequências ativas nos mais diversos âmbitos artísticos acredita-se na tendência da diminuição da autonomização organizacional da função educativa no Educativo Bienal. Esta autonomização é consequência da visibilidade do trabalho educativo e do sucesso da sua programação e se traduz muitas vezes no isolamento das programações do Educativo e das exposições. Isto reforça sua condição subserviente da função principal da Bienal – criar e mostrar as obras artísticas, enquanto manifestações da cultura erudita. Ou seja, a tendência, acredita-se, é que o serviço educativo lentamente deixe de ser percebido como um “mal necessário” no caminho de uma democracia cultural e afirme-se como um espaço de experimentação e troca.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. As Bienais de São Paulo: da era dos museus à era dos curadores (1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004. ARANTES, Otília (1993). Os novos museus. In: O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Edusp, 1993. _______. (1999) Urbanismo em fim de linha. São Paulo: Edusp. _______.(2005) A “virada cultural” do sistema das artes. In: Margem Esquerda, nº6, 2005. DUARTE, Paulo. Carta de Mário de Andrade a Paulo Duarte em 1937. In: Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: HUCITEC, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977. HARVEY, David. (1989) A condição pós-moderna. 16ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. GONÇALVES, Hoff Mônica. A virada educacional nas práticas artísticas e curatoriais contemporâneas e o contexto de arte brasileiro. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. _______.Mediação (da arte) e curadoria (educativa) na Bienal do Mercosul, ou a arte onde ela “aparentemente” não está”. Trama interdisciplinar - v.4 - n.1 - 2013. Disponível em: JAMESON, Frederic. (1985) Pós-modernidade e sociedade de consumo. São Paulo: Novos estudos Cebrac. v. 12, 1985. _______.(1991). Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996. LAMIZET, Bernard. La médiation culturelle. Paris: L’Harmattan, 1999. MINERINI NETO, José. Educação nas bienais de arte de São Paulo - Dos cursos do MAM ao Educativo Permanente [tese de doutorado]. São Paulo: Escola de Comunicação e Arte - Universidade de São Paulo - ECA-USP, 2014. O’NEILL, Paul. The Culture of curating and the curating of culture(s). Cambridge: MIT Press, 2012, pp. 51-85. O’NEILL, P.; WILSON, M. Curating and the educational turn. Londres: Open Editions; Amsterdam: De Appel, 2010. QUINTELA, Pedro. Estratégias de mediação cultural: Inovação e experimentação no Serviço Educativo da Casa da Música. Revista Crítica de Ciências Sociais, n.94, 2011, p.63-83. SPRICIGO, Vinicius. Relato de outra modernidade: contribuições para uma reflexão crítica sobre a mediação da arte no contexto da globalização cultural. [tese de doutorado] São Paulo, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 2009. VALÉRY, Paul. O problema dos museus. Tradução de V. Novis. Revista MAC, São Paulo, n.2, p.53-5, Nov. 1993. WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: A intervenção corporativa nas artes desde os anos 80. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006.

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INSTITUTO PRETOS NOVOS: A MÃE ÁFRICA NOS PROVOCA A REPENSAR AS POLÍTICAS CULTURAIS João Guerreiro1 RESUMO: A partir de uma obra de expansão de um imóvel residencial, em uma área onde recursos de valorização imobiliária vem provocando um intenso processo de intervenção urbana na Cidade do Rio de Janeiro, surgem demandas para se pensar os limites e possibilidades de uma política cultural que dê conta da diversidade cultural e de agendas. O artigo visa mostrar a constituição do Instituto Pretos Novos - e o processo de negociação e conflito entre essa instituição e os gestores de políticas públicas culturais do Rio de Janeiro. PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, Patrimônio cultural, Memória, Instituto Pretos Novos, Sociedade civil.

1. INTRODUÇÃO Este trabalho busca apresentar uma das ações de políticas culturais realizadas fora do espaço público estatal na zona portuária do Rio de Janeiro. Busco debater a importância do surgimento da “sociedade civil” no sentido gramsciano para a implementação de políticas culturais dos/por/ com representantes de instituições que acabaram alargando as fronteiras do fazer “a” política. Pretendo mostrar o processo de constituição de uma instituição sem fins lucrativos – Instituto Pretos Novos – que impacta o olhar do poder público sobre a região denominada de “Pequena África” e a importância do reconhecimento das políticas culturais produzidas nos territórios, em espaços públicos não estatais. A partir de uma demanda por apoio financeiro/técnico e de reconhecimento de um espaço de memória invisibilizado nos últimos 150 anos, iremos debater os limites e possibilidades de se pensar uma política pública cultural a ser produzida em conjunto com atores culturais que ressignificam territórios para além da lógica do mercado.

Doutor em Políticas Públicas de Cultura pela UFRJ, professor e coordenador do Bacharelado em Produção Cultural no IFRJ/Campus Nilópolis. [email protected]

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2. A SOCIEDADE CIVIL E OS FAZEDORES DE POLÍTICA CULTURAL No bojo do processo de redemocratização pelo qual o país inicia notadamente a partir das décadas de 1970-1980, os embates, negociações, conciliações e resistências levaram a sociedade brasileira a algumas (re)conquistas, como o direito de associação, reinstitucionalização de partidos políticos, incluindo alguns que se diziam representantes da classe trabalhadora, e o voto universal. Saindo de um processo de ditadura militar que durou 19 anos, podemos dizer que surgiu (ou se fortaleceu), pós-1980, o que Gramsci denominou de “sociedade civil” (sindicatos, partidos políticos, igrejas, instituições civis, entre outras) ou uma esfera pública não estatal. Segundo Coutinho (1997), esta esfera pública não estatal faz com que o Estado precise negociar com esta “sociedade civil” e, assim, se amplie. Ainda segundo Coutinho, o Estado ampliado gramsciano não pode se legitimar apenas pela coerção/repressão. Ele precisa gerar consensos e, para isso, precisa atender outros segmentos sociais que não apenas os da classe burguesa. Foi, portanto, pelo processo de obtenção de direitos de cidadania que foi possível a ampliação do Estado, o que possibilitou a sua permeabilidade às demandas das classes sociais até então não representadas. Cabe ressaltar que a simples ampliação do Estado e o surgimento de novos representantes na relação de poder dentro deste mesmo Estado e no interior desta sociedade civil (que por si só também é heterogênea), não garantem avanços em direção a uma radicalização/universalização da cidadania. Este movimento é também heterogêneo e um processo de avanços e recuos. Com efeito, no final da década de 1970, outras esferas públicas passam a se constituir na defesa de um projeto de retorno à democracia formal tendo como base a defesa dos direitos humanos – origem do que foi definido por Dagnino (2004) como o início de um processo de cidadania ampliada no Brasil. Segundo esta autora, instituições como a igreja católica, sindicatos e familiares de perseguidos políticos iniciam um movimento de defesa pela volta ao Estado Democrático de Direito, tendo como pano de fundo a defesa pela volta dos exilados políticos. Nos anos de 1980, um novo projeto político participativo e democratizante surge a partir da Sociedade Civil e, importa deixar claro, não a partir da absorção e/ou permissão do Estado: questões como direito a ter direitos e de disputa na construção dos significados destes direitos norteiam este projeto. Amplia-se a noção de cidadania que, até então, na discussão acadêmica brasileira, ainda era fortemente influenciada pela concepção marshalliana2 dominante desde o final da década de 1940. Tem-se início uma luta pelo reconhecimento do direito da mulher às decisões sobre seu corpo, a um projeto de desenvolvimento que levasse em conta o meio ambiente, direitos de grupos minoritários, enfim, uma série de pressões e lutas sociais - anteriores até ao 2

Para uma discussão sobre a concepção marshalliana de cidadania, ver Coutinho (op. cit.).

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período ditatorial - que conquistam espaços de debates e, muitas destas demandas são acolhidas pela chamada Constituição Cidadã de 1988. Segundo alguns autores3, neste período surgem, também, discussões sobre a possibilidade de articular um projeto dentro do Estado, ampliando a esfera pública com participação dos representantes dos setores organizados da sociedade na formulação das políticas públicas. O debate era sobre a constituição de novos agentes políticos. Buscava-se romper com a dicotomia Sociedade Civil (representando o bem) versus o Estado autoritário (o mal). Entretanto, logo após a promulgação da Constituição de 1988 vem a primeira eleição direta para presidente do país após 29 anos. Esta seria a primeira eleição universal no Brasil: apesar das mulheres poderem votar desde 1933, apenas com a Constituição de 1988 os analfabetos adquiriram este direito. Como resultado dessa eleição, um projeto de corte neoliberal vai conduzir a sociedade brasileira a partir do ano 2000 até 2002. Neste projeto, avaliamos que há uma redefinição do espaço de atuação da sociedade civil junto ao aparelho de Estado e, os grupos que se articularam, inicialmente no movimento “Diretas Já” e, posteriormente, nos debates que levaram a promulgação da Constituição de 1988 se vem alijados do processo de construção de uma democracia participativa. Muitos desses atores sociais vão atuar em diversas outras instâncias – como governos estaduais, municipais etc. – implementando processos de participação popular em diversas áreas. Sustentamos neste artigo que, mesmo com um hiato de 15 anos entre a constituição de 1988 e a eleição de 2003, o projeto de ampliação do Estado no sentido gramsciano se rearticula e vai ter no Ministério da Cultura, no período de 2003 à 2010, seu principal exemplo de funcionamento4. A constituição das políticas culturais a partir dos processos de Conferências Municipais, Estaduais e Federais de Cultura, além do fortalecimento dos espaços de participação de representantes da sociedade civil nos mais diversos níveis de governo – Conselhos de Políticas Culturais com caráter deliberativo – vai fomentar a ampliação e o reconhecimento de ações culturais antes invisibilizadas. Mesmo com tensões, enfrentamentos e negociações, a forma de fazer política cultural vai descer o planalto e também será percebida no porto do Rio de Janeiro.

3. PROGRAMA CULTURA VIVA: ENTRE AS INTENÇÕES E OS RESULTADOS ALCANÇADOS A implementação de uma proposta de política cultural ativa – mesmo que no governo Lula os recursos desta política fossem ladeados à utilização dos recursos de renúncia fiscal e de parcerias, assim como em governos anteriores - foi uma das marcas da gestão Gil/Juca do Ver Dagnino (2004) e Chauí (2006), entre outros. Para uma discussão sobre o processo de constituição do programa de política cultural que vigorou no MinC entre 2003 e 2010, ver o documento A imaginação a serviço do Brasil, 2002.

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Ministério da Cultura, entre 2003/2010, e, principalmente do discurso oficial. Entretanto, nesta formulação de política cultural, só no último ano de gestão foi possível apresentar uma proposta alternativa ao direcionamento da política pública de cultura dos departamentos de marketing das grandes empresas privadas em direção a um fundo público de cultura. Sem dúvida, o grande expoente dessa novidade que veio do Planalto Central foi o então Programa Cultura Viva, baseado nos pontos de cultura, fortalecimento da cultura digital, e busca de reconhecimento de ações culturais produzidas por seguimentos da sociedade que, anteriormente, não eram vistos como fazedores de cultura. Apesar da ousadia do programa, principalmente em inverter o fluxo dos parcos recursos do MinC em direção às periferias e grupos/coletivos culturais fora do alcance da indústria cultural, os resultados não chegaram nem perto da meta traçada. Em entrevista5 realizada com o então ministro Gilberto Gil durante a Teia 2007 (GIL, 2007), este disse que a meta era saltar do número de 650 Pontos de Cultura até então existentes, para o total de 20.000 (vinte mil) ao término do mandato, no ano de 2010. Entretanto, o número de Pontos de Cultura chegou a 3.190. O principal motivo apontado pelo ministro foi que os recursos previstos (R$ 4,8 bilhões) não chegaram “aos cofres” do MinC. As críticas feitas em relação à pouca abrangência, falta de recursos e difícil conectividade entre as ações do Programa Cultura Viva nos parecem relevantes. Entretanto, uma avaliação de tal programa deve observar que havia uma luta política que vinha/vem sendo travada dentro do Estado brasileiro. Levando-se em conta o que Coutinho (1997) enfatiza do conceito gramsciano de guerra de posições, sugere-se que a sociedade civil ocupou, no período de 2003 a 2010, um novo espaço dentro da esfera pública – neste caso no governo. Grupos até então marginalizados das ações oriundas de políticas públicas culturais, passaram a operar junto ao Estado no desenho e na implementação de um projeto democratizante e participativo no interior do Ministério da Cultura (MinC). Sustento, também, que após 2010, esses grupos perdem espaço no MinC e há um retrocesso nos ganhos obtidos no período anterior. Poderíamos afirmar que em um cenário eleitoral em que o então candidato da oposição derrotado – Senador José Serra – tivesse saído vitoriosa da eleição, dificilmente teria tanta facilidade em desmontar o Programa Cultura Viva, dada a articulação dos movimentos socioculturais. A ironia do destino, então, foi que esse papel ficou nas mãos do governo de continuidade administrativa. Se o Programa Cultura Viva se notabilizou pela receptividade das principais demandas coletivas do segmento cultural participativo, sabemos que a busca pela construção de espaços de participação social, a partir das demandas e lutas políticas, não se restringiu à área cultural, nem nela surgiu. 5

Entrevista concedida à Maíra Lemos. Teia na Tela. DvD da Teia 2007.

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Contudo, essa luta pela ampliação dos espaços de participação extrapola a relação entre o MinC e os movimentos socioculturais e vai informar ou mesmo influenciar outras relações de construção de formulação da política cultural em outras esferas e regiões. Na região portuária do Rio de Janeiro, que vem sendo objeto do maior investimento público do estado por conta dos megaeventos esportivos (Copa das Confederações de 2013, Copa FIFA de Futebol de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), temos uma ressonância das lutas pela participação dos atores locais nas definições da macropolítica cultural e, também, na forma de se relacionar com este novo ator social da região: o interventor urbanístico. E, apesar de a zona portuária estar no centro de negócios de um município que se vê cosmopolita ou mesmo global, são as expressões culturais locais que vem entrando na cena de negociação como representantes da sociedade civil junto ao poder público. Dentre essas expressões culturais, irei me deter sobre uma em especial: o Instituto Pretos Novos (IPN). O faço por entender que IPN foge ao padrão de constituição de uma instituição de defesa do patrimônio material/imaterial, por ter surgido a partir do descaso do poder público brasileiro com a herança de uma época que muitos querem esquecer ou ocultar e, ao mesmo tempo, pelo acaso em que um importante achado histórico se torna público. 4. INSTITUTO DE PESQUISA E MEMÓRIA PRETOS NOVOS – IPN6 Mesmo separado de ti pelo Atlântico Minha trilha são seus românticos cantos, Mãe! Me imagino arrancado dos seus braços. Que não me viu nascer, nem meus primeiros passos. (GOG)7 Quando falamos do IPN – Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos – devemos levar em conta a situação excepcional do processo de constituição desta entidade privada sem fins lucrativos. Há 20 anos, em janeiro de 1996, por ocasião de uma obra de reforma na casa de n.° 36 da Rua Pedro Ernesto, Bairro da Gamboa, os moradores se depararam com ossadas. Após os operários, que buscavam espaço para fazer fundações estruturais, retirarem diversos ossos que, segundo a moradora e atual diretora do IPN, Ana Maria Merced, preencheram seis caixas de papelão, acharam que poderia se tratar de algum cemitério clandestino ou de vítimas de uma chacina. Em conversas com vizinhos, especialmente com um que tinha interesse e estudava a história da região, descobriram sobre a existência de um possível Cemitério de Pretos Novos. 6 7

Essa seção é baseada em GUERREIRO, João (2013), capítulo 4. Trecho do RAP Carta à Mãe África, de GOG. Fonte: http://letras.terra.com.br/gog/872766/

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Procuraram ajuda de arqueólogos e historiadores através de um amigo do Centro Cultural José Bonifácio. Com a notícia, a prefeitura do município foi contatada e Merced e seu companheiro, Petruccio, receberam uma visita de técnicos da prefeitura e de uma equipe de arqueólogos levada por eles. A consequência foi uma primeira escavação no quintal da casa que durou quatro meses. Foi confirmado que a residência estava sobre um antigo Cemitério. Constatou-se que se tratava de um cemitério denominado de Pretos Novos. O cemitério recebeu esse nome por ser um local onde foram depositados os restos mortais de milhares de africanos que foram escravizados e trazidos para o Brasil. Muitos que lá estão, chegaram ao país já mortos. Outros morriam assim que chegavam, e outros, também enterrados nesse cemitério, teriam morrido no processo de trabalho. Em comum, segundo Merced, está o anonimato desses africanos. O Cemitério dos Pretos Novos foi construído em 1770 e desativado em 1831. Se o Oceano Atlântico, chamado por Paul Gilroy como o Atlântico Negro, é para muitos estudiosos das ciências sociais o lugar das trocas culturais exercidas durante a diáspora africana, no auge da escravização da população negra, o cemitério acompanha esta trajetória pelo Atlântico. Sempre próximo aos mercados de escravos nas praias, os cemitérios tornaram-se o fim da diáspora para muitos. O casal encontrou 5.563 fragmentos que posteriormente permitiram identificar 28 corpos. Ao observarem a riqueza de material que havia sido descoberto pelos moradores, a prefeitura sugeriu uma pesquisa no terreno da residência. Resumindo: três anos depois, a pesquisa não tinha sido concluída, Merced e Petruccio foram morar no auditório da empresa da família e sofreram todo o tipo de pressão para terem sua residência desapropriada. Em qualquer momento, porém, foram oferecidos recursos financeiros para compensar o transtorno e para ressarci-los pelas escavações que começaram a comprometer a estrutura do imóvel. Ao retornar ao imóvel, a família tinha que resolver o que fazer daquele momento em diante. Optou-se por reformar a residência, adquirir a casa ao lado e, de forma autônoma e sem financiamento público, construir um centro de memória dos Pretos Novos na região da Pequena África. Portanto, uma demanda geográfica cultural fez com que surgissem praticantes que optaram privadamente por preservar um possível patrimônio público, parte da história da Pequena África. Cabe ressaltar, que quando foi feita essa escolha, nenhum sinal ou potencial de financiamento ou investimento público foi acenado em direção ao IPN. As obras de reforma do imóvel que, conforme salientado, teve a sua estrutura comprometida a partir de 1996 com as escavações, ocorre em 1998 com recursos exclusivos do casal proprietário da residência. Se o poder público local, até 1999, só apresentou proposta de desapropriação, o novo governo empossado no ano de 2000 procura os proprietários com propostas de parcerias, mas as conversas não chegaram a concretizar qualquer aporte financeiro no que já

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se desenhava como um centro de memória da Pequena África, com ênfase na história e pesquisa sobre o Cemitério dos Pretos Novos. As escavações que até então estavam paralisadas deveriam ser retomadas em 2001, a partir de uma parceria entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Instituto de Arqueologia do Brasil8 (IAB). De acordo com informações veiculadas pela imprensa9 na ocasião, o financiamento para a escavação do quintal da casa do IPN era de cerca de R$ 240 mil (duzentos e quarenta mil reais). Entretanto, de acordo com Merced, nem as escavações, nem a pesquisa realizada pelo IAB foram concluídas. Com relação às pesquisas iniciadas pela bioarqueóloga Lilia Machado, do IAB, elas foram interrompidas em 2005, com o falecimento da pesquisadora. Assim, no ano de 2011, segundo Sheila Souza (SOUZA, 2012), um grupo de pesquisadores com experiência em estudos sobre populações do passado, retomou as pesquisas sobre os remanescentes humanos encontrados no antigo Cemitério dos Pretos Novos. Com base nessa pesquisa está sendo possível identificar a origem regional dos africanos escravizados que aportaram no Caís do Valongo10. Mesmo com dificuldades que poderia levá-lo ao recuo, mas, ao mesmo tempo, com incentivos de estudiosos, pesquisadores, turistas e ativistas do movimento negro, o IPN é fundando em 2005, ou seja, quase dez anos após a descoberta do Cemitério dos Pretos Novos, como nos explica Merced em entrevista. O IPN tem por finalidade propor reflexões, estimular projetos educacionais e de pesquisa, para a preservação da memória relacionada aos fatos e acontecimentos afins ao período da escravidão legal, com seus desdobramentos nos dias atuais, analisando suas consequências ao longo do processo civilizatório, incorporados à diversidade inter-étnica que compõe a totalidade do povo brasileiro. (MERCED, 2013) Depreende-se da conversa com Merced, que antes da institucionalização do IPN foram feitas diversas tentativas junto ao poder público, seja para a manutenção do espaço, seja para financiar atividades de pesquisa. Ambas tentativas fracassaram. As hipóteses levantadas para essas negativas são várias: dificuldades de obtenção de recursos públicos pela falta de uma personalidade jurídica; falta de documentação; desinteresse do poder público local e; dificuldade de formatar projetos de acordo com as exigências apresentadas pelos editais. Mas, a despeito A página eletrônica do Instituto informa que o IAB foi fundado em 29 de abril de 1961. É uma instituição particular de caráter científico-cultural, sem fins lucrativos (ONG), que tem por MISSÃO a dedicação integral à Pesquisa, Ensino e Divulgação da Arqueologia Brasileira. A sede do IAB, no município de Belford Roxo (RJ), é credenciada junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para Guarda de Acervos Arqueológicos. 9 Jornal Folha de São Paulo, 20/11/2001. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u40857.shtml. Acesso em 16 março 2013. 10 Souza (2012) apresenta nesta pesquisa os avanços obtidos na identificação dos traços genéticos e culturais extraídos das arcadas dentárias encontradas e a utilização de recursos da pesquisa forense que possibilitaram a conclusão da diversidade de origens dos africanos escravizados. Ver Revista Ciência Hoje, nº 291, ano 2012. 8

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dessas dificuldades e mesmo com recursos próprios, no ano de 2005, o casal adquiriu mais dois imóveis vizinhos, visando expandir o terreno das escavações e do projeto. Perguntada sobre os financiamentos públicos do espaço antes do ano de 2003, a resposta de Merced foi direta: mantido exclusivamente pelo esforço do casal de proprietários do imóvel, auxiliados pelo trabalho e valores voluntários de pessoas de diversos segmentos da sociedade civil identificadas com os ideais da promoção da igualdade racial e social do Brasil (2013). A partir de 2003, conforme hipótese sustentada nesse artigo, a construção de fóruns locais, estaduais e federal de discussão e desenho de uma política cultural participativa, indiretamente beneficia o IPN. A horizontalidade da discussão, que vai apontar para a implantação do Programa Cultura Viva e os pontos de culturas, é decorrente de ações gestadas no seio da sociedade civil e representa o acúmulo de musculatura de um participante no campo político até então sem ser ouvido: o praticante. Essa nova conjuntura política, onde os fóruns e conselhos de cultura se fortalecem, transborda e é propiciada por instituições como IPN, que embora não esteja vinculado ao Estado, passa a recorrer a ele não como gestor, mas como possível parceiro financiador dos projetos. Percebemos que, a partir do ano de 2003, ao lançar o então programa Cultura, Educação e Cidadania, o Ministério da Cultura tem como uma das suas ambições “promover” o protagonismo e a emancipação social, garantindo o acesso aos bens culturais necessários para a expressão simbólica e artística. E, além dessa retórica criticada como passível de representar o dirigismo estatal, articula e possibilita a constituição de fóruns de debate como lócus de formulação de propostas coletivas de políticas públicas de cultura. Estamos argumentando aqui que, no âmbito do Ministério da Cultura, as forças políticas da sociedade passaram a ter um papel participativo e não apenas representativo. Até porque as representações conquistadas pelos setores no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) são importantes na medida em que os representados participem dos fóruns de construção dessas representações. É nos fóruns municipais que percebemos os praticantes interferindo na constituição das políticas. As dificuldades apresentadas pelo casal que dirige o IPN possibilita-nos entender porque, em 2003, quando estava programada a primeira exposição itinerante com parte do material até então escavado, pesquisado e catalogado, a mesma resultou apenas na exposição de imagens. A viabilização da circulação do material seria obtida a partir do financiamento da exposição itinerante por parte da Companhia Docas do Rio de Janeiro, autoridade portuária subordinada à Secretaria dos Portos do governo federal. Entretanto, os recursos não foram suficientes para garantir a integridade, segurança e conservação das ossadas. Com isso, a circulação e apresentação das ossadas foram suspensas.

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Seguindo os conselhos recebidos por amigos, representantes do poder público e de outras instituições, Merced e Petruccio resolveram constituir uma personalidade jurídica para buscar viabilizar recursos para que o IPN cumprisse sua finalidade. Ao ser perguntada sobre os principais motivos ou dificuldades que enfrentaram para acessar as fontes de financiamento, a resposta de Merced ressaltou a complexidade da elaboração dos projetos e de enquadramento dos projetos por eles elaborados nos editais e convênios que, a princípio, poderiam beneficiá-los. Aqui nos deparamos com uma das principais críticas ao modelo adotado pelo poder público no âmbito do conveniamento ou contratação de instituições relacionadas à Cultura e em suas diversas instâncias. A lei que regula as ações nessa área é a Lei Geral de Licitações, Lei 8666/93, que diz em seus primeiros artigos e parágrafos: Art. 1o Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei, além dos órgãos da administração direta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Art. 2o As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei. Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada (BRASIL, 1993). Não nos prenderemos a uma análise crítica da referida lei, mas importa sublinhar que ao vincular qualquer tipo de contratação de qualquer instituição aos requisitos dessa lei, regulam-se convênios e contratos de instituições como IPN da mesma forma com que se regularam a construção e reforma de estádios de futebol para a Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014, ou mesmo para os equipamentos esportivos destinados aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos – Olimpíadas Rio 2016. Ou seja, o preenchimento dos formulários e comprovações documentais solicitados é muito além da capacidade administrativa de quem produz arte ou permite a fruição de bens imateriais, como pudemos observar nas ações do IPN. Sob o forte argumento de que recursos públicos devem ser utilizados com transparência e controle social, acabou-se criando entraves, às vezes intransponíveis, para praticantes e instituições de pequeno porte que os representem. No caso dos convênios realizados junto aos

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Pontos de Cultura, segundo estimativas do Ministério da Cultura de 2007, 90% destes ficaram inadimplentes por não conseguirem prestar contas de acordo com a legislação. A razão é fácil de ser percebida. Grandes instituições culturais como AfroReggae, Central Única de Favelas (CUFA) e Ação da Cidadania já possuem expertise e pessoal qualificado na atividade meio de administração, o que facilita a elaboração dos projetos e as posteriores prestações contas. Os recursos advindos de projetos como o Ponto de Cultura – média de R$ 5 mil (cinco mil reais) por mês – vinham se agregar a outros recursos de outras fontes que elas conseguiam movimentar. Já os pontos de cultura que iniciaram a institucionalização das suas atividades após esse reconhecimento, via Programa Cultura Viva, não tiveram, na esmagadora maioria das vezes, oficinas de elaboração de projetos ou de prestação de contas, apesar de algumas caravanas com técnicos da área cultural que visitaram algumas cidades quando os editais foram publicados. Assim, agentes culturais de pontos de culturas localizados em áreas informais das cidades – favelas, loteamentos irregulares, ocupações etc. – ou moradores de pequenos municípios e áreas rurais não tinham como adquirir os materiais de consumo ou equipamentos a não ser no comércio local. Tivemos, então, centenas de recibos de compra de materiais sem o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica dos estabelecimentos. Acreditar que todos os pontos de cultura nessa situação tiveram intenção de burlar a lei seria muito extremo. Mas, segundo a Lei 8666/93, intenção e dolo tem o mesmo resultado. Defendemos que o problema foi utilizar a referida lei para regular os contratos e convênios com o Ministério da Cultura sem, por um lado, qualificar todos os proponentes que tiveram os projetos deferidos, e sem ter contingente de pessoal para realizar essa árdua tarefa. Como o decorrer do tempo e com as experiências de outras formas de reconhecer ações culturais informais – como, por exemplo, o Prêmio Myriam Muniz concedido pela Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) – a forma de reconhecer os espaços culturais que atuam como um ponto de cultura se modificou. Buscou-se diminuir a burocracia, possibilitar que pessoas físicas participassem de editais e premiações e, com isso, alargar o horizonte de visibilidade de ações culturais. Entretanto, o Tribunal de Contas da União ainda não reconhece as premiações como uma ação legal, o que vem gerando processos contra gestores públicos que a vem utilizando. Por outro lado, surgiram diversos escritórios, instituições e consultores especializados em elaborar projetos culturais, enquadrá-los nas leis de incentivos fiscais nas diversas instâncias de poder e realizar prestações de contas. Não estando esses gastos discriminados nas rubricas dos editais, acabaram gerando custos administrativos acima dos que eram esperados, tanto pelo poder público, quanto pelos praticantes. Retornando ao caso específico do IPN, vamos verificar que só no ano de 2010, após a descentralização das políticas de fomento à cultura via edital para os Estados, ele se beneficia com um projeto de Ponto de Cultura. Mas gostaria de salientar que é a partir de 2003 que essa

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instituição consegue dar prosseguimento às pesquisas e exposições itinerantes das ossadas e fragmentos de artesanatos achados no sitio arqueológico onde estão inseridos. O casal dono da residência e, depois, implantadores do IPN, teve duas opções ao se deparar com as ossadas nas escavações: esquecer ou “desescondê-las” 11. Em entrevista à Bolivar Torres, em 2007, Merced lembrou: logo que apareceram os primeiros ossos, me avisaram que eu não devia falar com ninguém, para não dar confusão, mas eu sabia que aquilo não podia ficar esquecido. Havia uma história, uma história bonita e sofrida – e ela precisava ser contada” (MERCED apud TORRES, 2007). Esses dois personagens praticantes da cultura material da Região Portuária hoje tem o IPN, que conta com área de exposição permanente do material do sitio arqueológico, uma área de exposição temporária – que irá abrigar exposições externas – e uma sala multimídia para palestras, projeções etc. Finalmente, em 2010, foi selecionado o projeto que deu origem ao Ponto de Cultura Pretos Novos. Tendo uma opção político pedagógica, o Ponto de Cultura vem realizando oficinas para diversos alunos, professores, guias de turismo e pesquisadores. No ano de 2010, as oficinas tiveram a participação de 640 pessoas. No ano de 2011, a participação foi de 911 pessoas e, em 2012, mais mil pessoas fizeram as oficinas. Assim, lançando mão de uma demanda criada com a lei 10.639 que torna obrigatória nas escolas o ensino da história e da cultura afro-brasileira, o IPN encontrou meios de alcançar o tão desejado financiamento estadual/federal para contemplar uma demanda da sociedade civil por fazer valer os seus “lugares de memória”. Pierre Nora nos lembra que: os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não tivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arranCélio Turino, gestor do programa Cultura Viva durante a gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira, falou em diversas entrevistas que o papel dos Pontos de Cultura era “desesconder” a cultura gestada nos porões da sociedade e que nunca foi reconhecida pelo Estado ou pelo mercado. O neologismo desesconder significa, portanto, ampliar a visibilidade das ações culturais ao invés de criar novas ações. 11

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cados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. (NORA, Pierre, 1993. p.7). Trata-se, na verdade, do que fica de um tempo no outro. O que fica do Cemitério dos Pretos Novos nas nossas vidas através da opção exercida pelo casal dono da residência. O espaço do IPN é, ao mesmo tempo, um lugar simbólico - onde ocorre a formação de uma possível identidade e de um pertencimento de um grupo social - e material, pois representa, através das ossadas recuperadas, o registro físico e de como se produziu e reproduziu a vida social do país em um determinado (e triste) tempo da nossa história. Mas já não mais possui a função de cemitério: agora, recontextualizado, se transformou em patrimônio. Hoje, 20 anos depois do início das obras de expansão da casa de Merced e Petruccio, o IPN se tornou um Ponto de Cultura reconhecido pelo poder público e vem recebendo apoio da Concessionária Porto Novo e da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária (CDURP). Apesar dos recursos serem sazonais, o instituto vem conseguindo realizar Oficinas de Histórias gratuitas através do Projeto Memorial Pretos Novos e realizando exposições em sua sede. 5. DESAFIOS DA POLÍTICA CULTURAL A PARTIR DO EXEMPLO DO IPN O caso do IPN nos possibilita pensar que a radicalidade da política cultural deve compreender a integração dos diversos agentes culturais na definição de ações e metas a serem alcançadas. De uma escavação para a ampliação de um imóvel residencial à descoberta de um patrimônio cultural de importância reconhecida por parte da sociedade, está o gestor público e a alocação de recursos. Uma política cultural que se queira abrangente tem que ser flexível, com prazos de revisão e, principalmente, ser produzida coletivamente. Os conselhos municipais de políticas culturais devem ser o locus de definição da política cultural a ser implantada pelas secretarias municipais de cultura. Mas, também, a necessidade de integração entre os setores da gestão pública se mostra importante neste caso, que parece fugir à regra de constituição de uma demanda social, mas que é, na prática, mais corriqueira do que imaginamos. Ou será que a dinâmica cultural pode ser prevista em planejamentos fixos, físicos e sólidos? Ao lidarmos com o cultural devemos ter em mente as exceções, as inovações e as criatividades dos grupos culturais e demais agentes envolvidos. Cabe salientar que incorremos a todo o momento no risco de reificar a “cultura”, como se ela existisse de fato. Defendemos que a cultura é uma invenção móvel e variável, fruto do conflito de diversos interesses em disputa e que, em essência, não há nada em si mesma que seja a cultura. O caso do IPN serve para reforçar a nossa certeza.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANJOS, Ana Maria de la Merced Gonzalez Grana Guimarães dos. Entrevista concedida a João Guerreiro. Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 2013. BRASIL. Lei nº 8.666, de 23 de junho de 1993. Lei da Licitação. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em 19 abril 2013. CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural: o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006. COUTINHO, C. Notas sobre cidadania e modernidade. Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro, vol 1, nº 1, 1º semestre de 1997. DAGNINO, Evelina. Cultura, cidadania e democracia: a transformação dos discursos e práticas na esquerda latino-americana. In: ALVAREZ, Sônia, DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo (orgs.) Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino Americanos: Novas Leituras. Editora da UFMG, 2000. P. 61-102. _______. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? Em Daniel Mato (coord.), Políticas de ciudadania y sociedad civil en tiempos de globalizacion. Caracar: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004. P. 95-110. GIL, Gilberto. Entrevista concedida a Maíra Lemos. Teia na Tela. Belo Horizonte, nov. 2007. DVD 03, Teia 2007. Gilroy, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. GOG. Rap Carta à mãe África. Disponível em: http://letras.terra.com.br/gog/872766. Acesso em 14 fev. 2016. GUERREIRO, João. Quando o centro é a periferia: dinâmica cultural na região portuária do Rio de Janeiro. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Rio de Janeiro, 2013. 267f. INSTITUTO DE ARQUEOLOGIA DO BRASIL. Portal do IAB. Disponível em http://www.arqueologiaiab.com.br/. Acesso em 12 fev. 2016. NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, 1993. P. 7-28. PARTIDO DOS TRABALHADORES. A imaginação a serviço do Brasil. Programa de Políticas Públicas de Cultura da Coligação Lula Presidente. São Paulo, PT, 2002. Disponível em http://www. fpabramo.org.br/uploads/aimaginacaoaservicodobrasil.pdf. Acesso em 10 fev. 2016. SOUZA, Sheila M. de. et. alli. Cemitério dos Pretos Novos: técnicas modernas ajudam a compreender questões da escravidão. In: Revista Ciência Hoje, nº 291, abril 2012. p. 22-27. TORRES, Bolivar. Desenterrando a história. Revista Viva Favela. Disponível em http://novo.vivafavela. com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=87&infoid=45043&from_info_index=261. Acesso em 12 fev. 2016.

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VASSALO, Simone P. Memórias em conflito: o Instituto dos Pretos Novos e as releituras da história da Zona Portuária do Rio de Janeiro. 34º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, 2010. Disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=1593&Itemid=350. Acesso abril 2013.

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MAPEANDO MESTRES E MESTRAS DOS SABERES POPULARES TRADICIONAIS José Jorge de Carvalho1 Letícia C.R.Vianna2 Flávia S.Salgado3 RESUMO: O documento traz resultados gerais da pesquisa realizada no âmbito do Projeto Encontro de Saberes. Trata-se de um mapeamento de mestres e mestras dos saberes populares tradicionais convergente com o Programa 1.1 do Plano Setorial para as Culturas Populares do Ministério da Cultura. Foram mapeados 1.127 mestres identificados por meio de políticas públicas federais e estaduais recentes; e formulados indicadores básicos relativos ao alcance destas políticas. PALAVRAS-CHAVE: Mapeamento de Mestres, Saberes Populares; Encontro de Saberes; Inclusão no Ensino e Pesquisa

É com satisfação que o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI/UNB/CNPq) apresenta neste Seminário os primeiros resultados do Projeto Mapeamento de Mestres e Mestras dos Saberes Tradicionais. Este trabalho foi proporcionado pelo Ministério da Cultura – MinC; e é uma ação convergente com uma diretriz da Carta das Culturas Populares, retirada do I Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares e divulgada em fevereiro de 2005. Converge também com o Programa 1.1 do Plano Setorial para as Culturas Populares da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério: O mapeamento aqui proposto pretende levantar um conjunto de informações que identifique, quantifique e localize os indivíduos, grupos e comunidades de praticantes das culturas populares de todo o país. Para construir esse mapeamento nacional, o programa prevê a articulação com os governos estaduais e municipais, com instituições de pesquisa públicas e privadas, incorporando informações já coleDoutor em Antropologia, Professor Titular DAN/UnB e Coordenador do INCTI/UnB/CNPq - jorgedc@terra. com.br 2 Doutora em Antropologia, e Coordenadora de Pesquisa no INCTI/UnB/CNPq - [email protected] 3 Geógrafa, Mestranda em pelo PPCULT – Programa de Pós Graduação em Cultura e Territorialidades e bolsista DTI do INCTI/UnB/CNPq.- [email protected] 1

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tadas. Ações: 1. Realizar mapeamento das manifestações culturais, dos indivíduos, grupos, comunidades, instituições e organizações de culturas populares, disponibilizando as informações resultantes em uma plataforma livre e de fácil acesso. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012, p.45) A pesquisa para o mapeamento aqui apresentado foi desenvolvida de junho de 2014 a setembro de 2015 no âmbito do Projeto Encontro de Saberes, o qual é implementado e coordenado pelo INCTI/UNB/CNPq. A premissa é a de que a identificação de mestre ou mestra é um indicador elementar de ocorrência de expressões culturais populares tradicionais. O ponto de partida para o trabalho foi a busca, arrolamento, seleção e escalonamento de fontes de informação já existentes sobre mestres reconhecidos para a pesquisa. O esforço se deu no sentido da centralização e sistematização das informações relativas aos mestres e mestras identificados através das seguintes fontes: 1) Titulações por legislações estaduais (AL; CE; PB; PE) de reconhecimento de mestres das culturas populares (de 2002 até 06/2014); 2) Titulações pelas três edições do Prêmio de Culturas Populares do Ministério da Cultura –MinC (Humberto Maracanã/2008; D.Izabel/2009; Mazzaropi/2012); 3) Titulações pelo Prêmio Viva Meu Mestre de Capoeira do Ministério da CulturaMinC (2012); 4) Identificação através do Programa Sala do Artista Popular do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-CNFCP (de 1983 até 06\2014); 5) Identificação através do Projeto Encontro de Saberes coordenado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa INCTI/CNPq/UnB (de 2007 até 12\2014). 6) Identificação através do Mapeamento realizado pela Associação de Sambadores e Sambadeiras do Recôncavo – ASSEBA (2010); 7) Identificação através do Mapeamento realizado pelo Pontão de Cultura Jongo-Caxambu (2009). Ao longo do trabalho foram identificados 1.127 mestres. O gráfico a seguir mostra as proporções relativas ao número de mestres identificados por região, o mapa mostra a densidade das ocorrências e a tabela mostra a proporção por estado da federação.

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Por meio deste mapeamento, foi possível a sistematização de informações sobre diferentes linhas oficiais de ação de identificação, reconhecimento, apoio e fomento de mestres das culturas populares nas escalas federal e estadual. Além desses programas oficiais de identificação de mestres observados nas escalas nacional e estadual, até o momento, foram identificados mestres através de dois mapeamentos feitos pelas bases sociais de determinadas expressões culturais: um em “território jongueiro” em escala regional (Sudeste); e um em “território do samba de roda” em escala local (Recôncavo Baiano). Destaca-se que estes dois mapeamentos foram apoiados pelo Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura; que a partir de 2007 proporcionou a implementação do Pontão de Cultura Jongo Caxambu, com sede em Niterói (RJ) e do Pontão de Cultura Casa do Samba, com sede em Santo Amaro (BA). O gráfico a seguir mostra a proporção de mestres identificados por tipo de fonte de informação

O universo numérico deste gráfico (1.157) não corresponde ao universo absoluto de mestres identificados (1.127). Isso se deve ao fato de 30 mestres apareceram em mais de uma fonte de informação. O gráfico reflete o alcance da política pública para a área. E também o potencial de mobilização social para a ação de identificação e reconhecimento de pessoas que são suas referências; pois mesmo os reconhecimentos oficiais são construídos sobre algum respaldo na indicação das bases sociais que têm mestres das culturas populares como referência. Destaca-se que em apenas quatro estados (AL; CE; PB; PE) foram identificados mestres 1033

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através de legislação estadual. Na Bahia existe lei estadual que ainda não foi implementada, assim como em Minas Gerais. É visível a correlação entre a proporção da área de saber artesanato (observada no gráfico relativo às áreas de saber) e a proporção do Programa SAP. Observa-se o quanto é significativo numericamente e proporcionalmente o instituto de leis estaduais de reconhecimento. Nesse sentido, é interessante a ponderação por parte do Ministério da Cultura sobre a possibilidade de um programa de estímulo aos estados da federação que ainda não o fizeram, implementarem e aplicarem leis voltadas ao reconhecimento de mestres e mestras Uma questão metodológica que se colocou como um desafio para a sistematização das informações foi a classificação das maestrias em categorias gerais relativas às áreas do saber. O princípio básico é o de que, embora seja uma categoria genérica e não necessariamente usada em todos os contextos de socialização dos saberes populares tradicionais (como nas comunidades indígenas, ou de terreiro, por exemplo, que não usam correntemente o termo), a categoria mestre é, aqui, formulada como relativa à pessoa que é referência nos processos de transmissão e atualização das tradições, sobretudo quando não é a escrita a forma de expressão primordial. O mapeamento realizado permite a observação de uma grande diversidade de expressões culturais e as muitas possibilidades de nominação e classificação de expressões e saberes que caracterizam as maestrias. Por outro lado, também traz à luz a complexidade dos saberes populares – uma complexidade que no ambiente acadêmico poderia ser chamada de transdisciplinaridade. Por exemplo: uma artesã de trançado de fibra de buriti, além de dominar o conceito e a técnica de feitura de cada peça artesanal, normalmente domina os saberes do manejo do buriti, seu ciclo reprodutivo, seu ambiente de florescimento, os modos do extrativismo ou cultivo não predatório; e outros conhecimentos que poderíamos mesmo correlacionar com conhecimentos reconhecidos como alta ciência do meio ambiente. Uma artesã ceramista, para além da modelagem plástica do barro, precisa saber da química e da física do barro, condições de pureza, da liga, das temperaturas seguras para o bom cozimento; das propriedades químicas e físicas dos pigmentos empregados - se liberam toxinas e a peça pode ser utilitária além de decorativa. Em relação às artes da performance, também existe a transdisciplinaridade, na medida em que um brincante detentor de saberes, geralmente poder ser ator, músico, artesão, artista plástico, devoto, tudo ao mesmo tempo. E geralmente um mestre brincante não se limita a uma só brincadeira, uma só especialidade. Em geral muitos papeis são desempenhados envolvendo vários saberes. Assim, várias práticas e saberes podem estar ou estão necessariamente imbricados. E uma pessoa pode assumir diversos papéis, cultivar muitos saberes correlatos (ou não) e ter várias maestrias. Nesse sentido, cada pessoa geralmente é classificada como mestre de uma ou mais expressões culturais; e certamente dever ter conhecimento denso e profundo sobre muitas áreas do saber. Uma pessoa pode ser mestre em umas expressões e, em outras, ser apenas um sabedor ou aprendiz.

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No processo de trabalho de sistematização das informações das várias fontes, foram encontradas diversas formas de nominar as expressões de maestrias. Buscou-se uma correlação entre as categorias observadas (expostas nas listas estaduais a seguir) com categorias organizadoras genéricas, formuladas para classificar as maestrias encontradas conforme as seguintes áreas do saber: 1) espiritualidade 2) saúde e cura 3) manejo do meio ambiente \biodiversidade  4) artes da performance e celebrações 5) artesanato\tecnologias 6) liderança 7) outros O gráfico a seguir indica a proporção entre as ocorrências das maestrias; e mostra as áreas do saber mais e menos visibilizadas nas políticas públicas espelhadas nas fontes de informação observadas. Destaca-se a correlação entre a proporção da área de saber artesanato e a proporção do Programa SAP - visível no gráfico relativo às formas de identificação. O universo numérico do gráfico (1.034) não corresponde ao universo absoluto de mestres identificados (1.127). Isso se deve ao fato de 24 pessoas terem maestrias identificadas em mais de uma área do saber; (identificadas nas listas com um asterisco*) sendo que 4 são reconhecidos em três ou quatro áreas. E também alguns mestres (109) não apareceram com a maestria identificada nas fontes de informação.

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Em relação às áreas do saber, foi possível ver com clareza as menos visibilizadas nas políticas públicas refletidas pelas fontes de informação observadas. Nesse sentido o mapeamento já indica o que e onde está o menos visível, apoiado e fomentado, nas ações como as aqui observadas; de modo a subsidiar tomadas de decisão no sentido priorização da inclusão destas áreas do saber nas políticas para ciência, cultura e educação nas três esferas do pacto federativo. Também sugere um universo muito rico e potencialmente muito maior de pessoas de maestrias diversas, ainda a serem identificadas, tendo em vista a proporção entre o universo total abordado (1.127) e a população total do país (a estimativa do IBGE é de 204 milhões de habitantes em 2015). PERSPECTIVAS Um mapeamento de mestres e mestras como este realizado pelo INCTI, é um atendimento à demanda posta tanto pelos segmentos da sociedade, quanto pelos setores públicos, no sentido de dar visibilidade, facilitar intercâmbios e redes, centralizar informações para gestão de políticas consequentes e complementares nas esferas públicas da cultura e sociedade. Mapeamentos integrados, tal como é proposto pelo Plano Setorial para as Culturas Populares, conformam um empreendimento de magnitude. E é fundamental neste momento que se dê a consolidação da política pública participativa na direção da identificação, reconhecimento, apoio, fomento e inclusão de mestres em lugares de relevância e influência para as artes e ciências no país. Tanto as três esferas dos poderes públicos, quanto a sociedade civil, precisam manter o interesse e condições de realização de mapeamentos integrados, no sentido de trazer ao conhecimento público a diversidade cultural no território em uma escala que proporcione a visualização dos sujeitos da história, guardiões das tradições - os tesouros humanos. A pesquisa para o mapeamento que apresentamos foi desenvolvida de junho de 2014 a setembro de 2015, como uma ação integrada ao Projeto Encontro de Saberes - implementado pelo INCTI/UNB/CNPq. Este Projeto teve início em 2010, na Universidade de Brasília; e é voltado para a inclusão de mestres dos saberes tradicionais na docência universitária. Está em expansão e consolidação em diferentes campus de várias universidades brasileiras: UFMG; UFJF; UFSB; UFPA; UECE. O resultado do trabalho está assentado sobre vários instrumentos, tais como planilhas por estado, listas nominais por maestria e forma de reconhecimento, quadros com distribuição dos mestres por município, mapas virtuais experimentais, gráficos indicadores, textos analíticos e relatórios. Foram mapeados 1.127 mestres e mestras dos saberes populares tradicionais, identificados em fontes de informações relativas às políticas públicas nas escalas federal e estadual. E também mestres identificados por mapeamentos realizados pelas bases sociais de expressões culturais em escala regional e local. Foi possível observar as áreas do saber mais e menos privilegiadas. E, de alguma maneira, alertar para o fato de que as menos visíveis e fomentadas (as relativas à saúde, cura, meio ambiente, espiritualidade, liderança política) são

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fundamentais para a soberania dos povos e nações que constituem a nação brasileira! Tão fundamentais quanto as artes performáticas, as celebrações, artesanatos e tecnologias para a definição das identidades culturais no território. Nesse sentido o mapeamento é, por si, uma pesquisa desafiadora para o INCTI, pois instiga o desenvolvimento de métodos de trabalho científico e a reflexão sobre resultados. Por outro lado, oferece à rede de mestres, professores, alunos e colaboradores do Projeto Encontro de Saberes, informação sobre quem são, o que sabem e onde estão os potenciais mestres a serem incluídos como referências no ensino superior e pesquisa. Esperamos também que tanto os poderes públicos, quanto a sociedade civil, possam aproveitar os resultados do trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSEBA – Associação de Sambadeiros e Sambadeiras da Bahia – Sambadores e Sambadeiras da Bahia, ASSEBA-Rede do Samba de Roda, Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira-IPHAN, Edição On-line, Santo Amaro, Maio de 2015. (disponível em http://www.iteia.org.br/textos/catalogosambadores-e-sambadeiras-da-bahia – acessado em 23/01/2016). BRASIL-MINISTÉRIO DA CULTURA --Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural – Plano Setorial para as Culturas Populares, Brasília: MINC/SCC, 2012. CASTRO, Maria Laura Viveiros de & FONSECA, Maria Cecília Londres – Patrimônio Imaterial no Brasil – Legislação e Políticas Estaduais, Brasília, UNESCO, Educarte, 2008. CARVALHO, José Jorge de – Projeto Cartografia dos Mestres e das Expressões das Culturas Populares Tradicionais. Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, mimeo, s/d. CARVALHO, José Jorge e FLÓREZ FLÓREZ, Juliana – Encuentro de Saberes: Proyecto para Decolonizar el Conocimiento Universitário Eurocéntrico in: Nomadas 41, Universidad Central, Colombia, octubre 2014, p. 131-146. CNFCP/IPHAN/MINISTÉRIO DA CULTURA – Catálogos da Sala do Artista Popular , nº 1 ao 180 e Catálogos Extras, Rio de Janeiro, 1983-2013 PONTÃO DE CULTURA DO JONGO/CAXAMBU – Território Jongueiro disponível em http://www. pontaojongo.uff.br/territorio-jongueiro (acessado em 23/01/2016).

LEIS ESTADUAIS ALAGOAS – Lei nº6.513 de 22 de setembro de 2004 – Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Alagoas. BAHIA – Decreto Lei nº 9.101 de 19 de maio de 2004. BAHIA – Lei nº 8.899 de 18 de dezembro de 2003 – Registro dos Mestres dos Saberes e Fazeres do Estado da Bahia.

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CEARÁ – Le nº 13.842 de 24 de novembro de 2006. CEARÁ – Lei nº 13.427, de 30 de dezembro de 2003. CEARÁ – Decreto nº 27.229, de 28 de outubro de 2003. CEARÁ – Lei nº 13.351 de 22 de agosto de 2003 – Registro dos Mestres da Cultura Tradicional Popular do Estado do Ceará. MINAS GERAIS – Decreto nº 42.505, de 15 de abril de 2002 – Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem Patrimônio Cultural de Minas Gerais. PARAÍBA – Resolução nº 001, de 01 d agosto de 2005. PARAÍBA – Decreto-Lei nº 26.065 de 15 de julho de 2005. PARAÍBA – Lei nº7.694 de 22 de dezembro de 2004 – Registro dos Mestres das Artes – Canhoto da Paraíba. PERNAMBUCO – Decreto-Lei nº 27.753, de 18 de março de 2005. PERNAMBUCO – Decreto-Lei nº 27.733, de 11 de março de 2005. PERNAMBUCO – Decreto-Lei nº 27.503, de 27 de dezembro de 2004. PERNAMBUCO – Lei nº 12.196 de 2 de março de 2002 – Lei Raul Henry – Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco (RPV-PE). SANTA CATARINA – Decreto nº 2.504, de 29 de setembro de 2004 – Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível que constituem o Patrimônio Cultural de Santa Catarina.

PRÊMIOS BRASIL – MINISTÉRIO DA CULTURA – Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural – Prêmio Culturas Populares 2008 – Edição Mestre Humberto de Maracanã. 1ª edição, 2008. _______. Secreataria da Cidadania e da Diversidade Cultural- Prêmio Culturas Populares 2009 - Edição Mestra Dona Izabel, 2a edição, 2009. _______. Secreataria da Cidadania e da Diversidade Cultural - Prêmio Culturas Populares Edição 100 anos de Mazzaropi, 2011. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístic Nacional e Fundação Palmares//MINISTÉRIO DA CULTRA – Prêmio Viva Meu Mestre 2011.

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A CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE E SEUS PRIMEIROS 10 ANOS: UMA APROXIMAÇÃO A PARTIR DOS RELATOS DAS PARTES1 José Márcio Barros2 Raquel Salomão Utsch de Carvalho3 RESUMO: Este artigo reflete sobre avanços obtidos e desafios atuais da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Para tanto, reporta aos Relatórios periódicos quadrienais sobre as medidas para proteger e promover as expressões culturais, emitidos pelos países latino-americanos Equador, Peru e México (2012) e ao relatório “Repensar as politicas culturais”, lançado pela Unesco, em dezembro de 2015, no contexto dos 10 anos da Convenção. O artigo é fruto de análises iniciais, realizadas no âmbito da pesquisa “A Convenção da Unesco e as políticas para a diversidade cultural no espaço latino americano”, em desenvolvimento ao longo de 2016 pelo grupo Observatório da Diversidade Cultural (CNPq). PALAVRAS-CHAVE: Diversidade Cultural, Convenção da Unesco, Políticas públicas.

1. INTRODUÇÃO Adotada pela Assembleia Geral da UNESCO em 20 de outubro de 2005, a Convenção da UNESCO sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais completou em 2015 uma década de existência, apontando para avanços, mas também para desafios importantes nos contextos culturais dos países signatários. Após o período de dois anos envolvendo discussões e negociações em torno de seu texto, a Convenção entrou em vigor em 18 de março de 2007, validada inicialmente por 30 países. A Convenção conta hoje com a ratificação de 139 países e uma organização de integração econômica regional (União Europeia). Em seu texto, estabelece princípios, objetivos e compromissos para a construção de uma agenda internacional que, dentre outras coisas, assegure aos países a criação de mecanismos Produto parcial da pesquisa “A Convenção da Unesco e as políticas para a diversidade cultural no espaço latino americano”, desenvolvida pelos pesquisadores Giuliana Kauark, José Marcio Barros, Juan Brizuela, Kátia Costa, Plínio Rattes, Raquel Utsch , Renata Melo, Tatiana Corsini e Vítor Costa, integrantes do Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural. 2 Dr em Comunicação e Cultura. Professor do Programa de Pós-Graduação em Artes da UEMG e em Comunicação da PUC Minas. Coordenador do Observatório da Diversidade Cultural. [email protected] 3 Graduada em Jornalismo e Mestre em Comunicação Social (Puc Minas). Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural. [email protected] 1

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de proteção e promoção das diferentes expressões culturais frente aos efeitos da globalização e constantes ameaças de homogeneização cultural decorrentes. A Convenção busca fortalecer a construção de uma relação social que “galvanize as diferenças sem, contudo, se perderem a singularidade e a especificidade das identidades” (Miguez, 2011:38), em uma conjuntura de intensificação dos processos migratórios, de diáspora, de hibridização e sincretismo. Outro aspecto importante diz respeito à dimensão das trocas comunicacionais na atualidade, em que as tecnologias de informação e comunicação assumem papel central nas relações sociais, uma vez que intensificam as trocas culturais, mas acentuam o risco de desequilíbrio entre países ricos e pobres. Dentre os objetivos deste marco político e institucional internacional, pode-se destacar: o reequilíbrio do comércio de bens e serviços culturais; a adoção e fortalecimento de políticas públicas de cultura; a criação de um quadro de cooperação e de solidariedade internacional; a integração da cultura nas políticas de desenvolvimento sustentável. O maior desafio da Convenção da Unesco (Dupin, 2015) consiste em servir como marco legal que confira tratamento diferenciado à cultura nos acordos comerciais internacionais, de forma a não submetê-la à lógica do Direito comercial internacional e à ação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O que se pretendeu foi atuar na perspectiva de que a proteção e promoção da diversidade cultural deve ser considerada premissa para as trocas comerciais no mundo globalizado. Para tanto, a Convenção afirma as dimensões econômica e cultural dos bens e serviços culturais, como portadores de valores e sentidos, bem como reconhece a legitimidade das políticas públicas culturais nacionais. O Artigo 1º da Convenção (UNESCO, 2005, p. 3) trata, nessa direção, da necessidade de “(g) reconhecer a natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados” e “(h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território”. Como observa a autora, relatório publicado pelo Serviço de Avaliação e Auditoria da UNESCO em 2014, elaborado com base em documentos de 22 países-membros dos cinco continentes, relaciona tendências e mudanças tangíveis nas políticas, na legislação e nos programas adotados pelos países, bem como fatores que dificultam ou impedem a implementação da Convenção, revelando-a como fonte de inspiração em países que adotaram novo marco regulatório ou políticas de cultura. O estudo informa que países com marcos políticos correspondentes aos objetivos da Convenção aprimoraram o perfil de suas políticas, fortalecendo a ligação com outras áreas, principalmente, as estratégicas de desenvolvimento sustentável, nacionais e regionais. Conforme o relatório, a implementação da Convenção impacta a concepção de novas políticas e programas,

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especialmente nas indústrias culturais e criativas nos países da África, América Latina e da Ásia (Dupin, 2015), inclusive na criação de novos ministérios ou departamentos governamentais, a exemplo dos países latino-americanos: a Argentina que transformou sua Secretaria Nacional de Cultura em Ministério da Cultura (2014), o Peru que criou um Ministério da Cultura (2010) e o Chile, cujo programa de Governo inclui a criação de um Ministério da Cultura em substituição ao Conselho Nacional da Cultura e das Artes. A integração da cultura nas políticas de desenvolvimento sustentável é respaldada nos princípios do artigo 2, conforme explica a autora: a complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento (princípio 5) e o desenvolvimento sustentável (princípio 6) – que articulam dimensão cultural e objetivos ambientais e econômicos. No Brasil, destaque para o Plano Nacional da Cultura 2011-2020 que, além de citar por várias vezes a Convenção, incluiu a economia criativa como dimensão do desenvolvimento. A despeito da Resolução da ONU de 29 de outubro de 2014 enfatizar o papel do campo da cultura na Agenda de desenvolvimento pós-2015, e da grande mobilização realizada por organizações governamentais e não governamentais pelas redes sociais, enfatizando a cultura como catalisador e motor do desenvolvimento sustentável, a medida não logrou sucesso. A cultura apresenta-se como uma variável secundária dentre os 17 objetivos adotados na Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável 2015 e que constituem a Chamada Agenda 2030 (ONU,2015). Especificamente no plano da difusão das expressões culturais, a Convenção enfrenta o desafio da articulação entre diversidade cultural e políticas de comunicação. Nesse contexto, podem ser apontadas duas exceções latino-americanas (Dupin, 2015): a regulamentação dos serviços de comunicação audiovisual na Argentina e a aprovação pelo Uruguai da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (2014). Destacam-se também os esforços para cooperação internacional (Dupin, 2015), explicitados no artigo 12 do acordo, que recomenda aos países-membros a promoção da cooperação por meio do diálogo sobre a política cultural; o fortalecimento das capacidades estratégicas e de gestão do setor público nas instituições culturais; o intercâmbio cultural internacional; o compartilhamento de informações e de melhores práticas; o fortalecimento de parcerias com e entre a sociedade civil; a promoção da utilização das novas tecnologias; a celebração de acordos de coprodução e de codistribuição (UNESCO, 2005). As diretrizes operacionais do artigo 14 da Convenção, relacionadas, por sua vez, aos artigos 15 – Modalidades de Colaboração; 16 – Tratamento Preferencial para Países em Desenvolvimento; e 18 – Fundo Internacional para a Diversidade Cultural, apontam ao necessário fortalecimento das indústrias culturais e de capacidades, por meio da troca de informações e da

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formação, bem como a transferência de tecnologias na área das indústrias culturais e o apoio financeiro (UNESCO, 2005). Nesse sentido, destaca-se a importância de medidas adotadas pelos países, no âmbito da Convenção, tais como a formação de base sobre a elaboração de políticas favoráveis a indústrias culturais e criativas e a construção de banco de especialistas para prestar assistência técnica direta aos países em desenvolvimento (DUPIN, 2015). O artigo 13 – Integração da cultura no desenvolvimento sustentável – convida, por sua vez, os países membros a “envidar esforços para integrar a cultura nas suas políticas de desenvolvimento” e, de acordo com o artigo 14 – Cooperação para o desenvolvimento, os países-membros “deverão apoiar a cooperação para o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza, com vistas a favorecer a emergência de um setor cultural dinâmico” (UNESCO, 2005, p. 8). Nos últimos anos, ganhou relevo no âmbito das discussões da Convenção os temas do diálogo intercultural, dos direitos culturais e da economia criativa. Segundo Lima (2014), indicam uma segunda fase na implementação da Convenção: a revisão das regras de funcionamento do Fundo Internacional - mantido por contribuições voluntárias dos países membros -, a apresentação dos primeiros relatórios quadrienais (artigo 9) pelos países signatários da Convenção e a implementação do artigo 21. O artigo 21 prevê que “[...] as Partes comprometem-se a promover os objetivos e princípios da presente Convenção em outros foros internacionais” (CONVENÇÃO..., 2005). A discussão contribui para a universalização e ampliação de fontes de financiamento da Convenção, referindo-se, sobretudo, à necessária “recuperação do espaço da diversidade cultural na agenda internacional da cultura, um dos maiores desafios atuais da Convenção” (LIMA, 2014: 34). “Para a devida implicação da sociedade civil na implementação da elaboração do relatório periódico quadrienal sobre as medidas para proteger e promover as expressões culturais, observa-se ainda que as partes da Convenção devam recorrer ao acordo, como norte das políticas públicas. Uma vez referenciado em programas e ações (Hanania, 2011), a justificativa de posições com base na Convenção legitima as disposições do acordo, a fim de que se concretizem resultados favoráveis à diversidade de expressões culturais.” 2. RELATÓRIO PERIÓDICO QUADRIENAL: UM OLHAR SOBRE AS MEDIDAS PARA PROTEGER E PROMOVER AS EXPRESSÕES CULTURAIS Os Relatórios quadrienais sobre as medidas implementadas pelos países para proteger e promover as expressões culturais, consiste em obrigação prevista no artigo 9 Convenção, sobre ações de intercâmbio de informações e transparência:

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As Partes: (a) fornecerão, a cada quatro anos, em seus relatórios à UNESCO, informação apropriada sobre as medidas adotadas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território e no plano internacional; (b) designarão um ponto focal, responsável pelo compartilhamento de informações relativas à presente Convenção; (c) compartilharão e trocarão informações relativas à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. Até 2014, 71 relatórios foram apresentados pelos países signatários, de forma a compartilhar informações e colaborar para o trabalho orientado a uma visão global sobre o estado e as tendências na gestão da cultura nos níveis nacional e internacional. Os relatórios quadrienais4 reportam políticas e medidas implementadas para apoiar a criação, a produção, a distribuição, a difusão e a fruição de bens e serviços culturais nacionais; as medidas de cooperação internacional que apoiam a mobilidade dos artistas, proporcionam maior acesso ao mercado e fortalecem as indústrias culturais nos países em desenvolvimento; as medidas tomadas para envolver a sociedade civil nos processos de política cultural. Os países signatários da Convenção disponibilizam informações gerais; relatam as medidas (políticas) para proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, ações do estado e sociedade civil para sensibilização e participação da sociedade civil e resultados e desafios da Convenção. Em 2015, a UNESCO divulgou uma primeira análise dos relatórios das partes, intitulado RePensar as Políticas Culturais (2015)5 , procurando refletir sobre o alcance das mudanças pretendidas, mediante as ações realizadas para alcançar os quatro objetivos da Convenção: apoiar sistemas de governança sustentáveis da cultura; alcançar uma troca equilibrada de bens e serviços culturais e ampliar a mobilidade dos artistas e dos profissionais da cultura; incluir a cultura nas decisões sobre desenvolvimento sustentável; promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Foram tratados os desafios nas áreas do digital, dos meios de comunicação do serviço público e do tratamento preferencial, bem como da igualdade de gêneros e da liberdade de criação artística. O objetivo é definir de que modo as políticas culturais puderam ser reformuladas a partir dos esforços realizados para implementar a Convenção, bem como auxiliar na implementação do Programa de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas até 2030. Destaca-se aqui, no que se refere ao objetivo de apoiar sistemas de governança sustentáveis da cultura, o reconhecimento conferido, pelo relatório, à implementacao de politicas e medidas, bem como aos mecanismos de apoio a criação, produção, distribuição e acesso a bens 4 5

< http://www.unesco.org/culture/cultural-diversity/2005convention/en/programme/periodicreport/>

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e servicos culturais, com ênfase ao papel da tecnologia para participacao cidadã e redesenho da cadeia de valor da cultura. Nesse sentido, o relatório recomenda a ampliação do campo de ação política - inclusive o legislativo - da Convenção, para introdução de leis sobre a liberdade de informação e as telecomunicações, bem como as questões relativas ao comércio eletrônico e governança da Internet. Quanto ao objetivo de alcançar uma troca equilibrada de bens e servicos culturais e ampliar a mobilidade dos artistas e profissionais da cultura, o relatório da Unesco reconhece o aumento da cota de exportações de bens entre 2004 e 2013, assim como valida os impactos positivos resultantes da implementação de novos marcos legais e acordos comerciais, como decorrência de protocolos de cooperação cultural. No entanto, ressalta a atual distância da condição de equilíbrio no plano das trocas culturais, frente ao forte domínio dos países desenvolvidos. Apesar de alguns países terem adotado medidas para diminuir os obstáculos à circulação dos profissionais das indústrias culturais e criativas, o relatório aponta que os artistas, principalmente os originários do Sul, nem sempre podem viajar livremente através do mundo, o que evidencia a necessidade de políticas favoráveis à mobilidade, a fim de se ampliar o acesso a novos mercados. A inclusão da cultura nos marcos legais para o desenvolvimento sustentável, terceiro objetivo da Convenção, reporta ao engajamento da Convenção e Programa para o desenvolvimento sustentável até 2030, tendo em vista a criação de condições favoráveis ao crescimento econômico inclusivo e sustentável, prosperidade comum e acesso ao trabalho decente. Destaca ainda a importância das iniciativas de apoio ao crescimento das indústrias criativas, traduzidas em resultados econômicos, sociais, culturais e ambientais no longo prazo, assim como na geração de equidade da distribuição dos recursos culturais, imparcialidade, justiça e não discriminação no acesso à participação cultural. Porém, o apoio decrescente conferido à cultura, por meio de marcos legais e programas internacionais de ajuda, aponta o grande desafio a ser enfrentado neste contexto. Sobre o objetivo de promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais, o documento aponta as restrições à liberdade artística e ao acesso às expressões artísticas como fator limitador com implicações nos contextos cultural, social e econômico. No que se refere à igualdade de gênero, atesta que as mulheres, embora muito presentes no setor criativo, não detêm posições profissionais de destaque nas organizações culturais, o que demonstra a necessidade de políticas e medidas que visam ao reconhecimento, apoio e promoção das mulheres, na condição de criadoras e produtoras de expressões culturais, bem como de cidadãs integrantes da vida cultural.

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3. POLÍTICAS PARA A DIVERSIDADE CULTURAL NA AL: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE EQUADOR, MÉXICO E PERU Por meio de análises iniciais, desenvolvidas no âmbito de pesquisa realizada pelo grupo Observatório da Diversidade Cultural,6 referentes aos relatórios quadrienais organizados por Equador, México e Peru, é possível observar que estes países relatam um histórico comum, ao enfatizar as consequências severas do processo de colonização e homogeneização cultural, como fator responsável pela fragilidade do ambiente institucional e que compromete fortemente a capacidade de planejar políticas e tomar medidas efetivas para proteger e promover a diversidade cultural. Os relatórios enfatizam o contexto histórico do passado colonial que resultou na instituição do racismo, do euro centrismo e do paternalismo e, nesse sentido, a ruptura com as visões culturais conservadoras é apontada como grande desafio das políticas públicas na área cultural. Frente à meta convergente da institucionalização, os países reconhecem avanços, ainda que relativos, demonstrados nos relatórios por meio de políticas e medidas implementadas para apoiar a criação, produção, distribuição, difusão e fruição de bens e serviços culturais nacionais, bem como de cooperação internacional, mobilidade dos artistas, acesso ao mercado e fortalecimento das indústrias culturais e de envolvimento da sociedade civil nos processos de política cultural. A criação do Ministério da Cultura é caracterizada como marco da intenção de conferir institucionalidade às políticas culturais. Nesse sentido, enfatiza-se o esforço de criação de politicas públicas e para fortalecimento das instituições, o trabalho de sensibilização e envolvimento da sociedade civil e iniciativas de articulação com organizações internacionais e outros países que precisam ser potencializadas, para alcance da transformação no contexto regional. No entanto, os países atestam que os esforços atuais são limitados e consideram os recursos disponibilizados escassos, tendo em vista a extensão e diversidade cultural que caracterizam o universo atendido por essas políticas públicas. De forma geral, observa-se, com base nos relatórios do Equador, México e Peru - tendo como norte as diretrizes e princípios da Convenção da Unesco a ocorrência de processos incipientes que contam com poucos e insuficientes recursos. Em maior ou menor medida, há necessidade de ampliação do envolvimento e mobilização da sociedade civil em torno da implementação das políticas públicas para a proteção e promoção da diversidade, de forma a legitimar esses processos e os objetivos da Convenção da Unesco. Mediante as expressões de participação da sociedade, ainda assim, observa-se o pouco Tomando como universo de pesquisa uma amostra dos países Brasil, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile, Equador, Peru, Cuba e México, o projeto “A Convenção da Unesco e as políticas para a diversidade cultural no espaço latino americano”, desenvolvido pelo grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural, propõe-se a investigar, no contexto dos dez anos da Convenção da UNESCO, completados em outubro de 2015, as apropriações e repercussões deste instrumento jurídico e político internacional nas políticas nacionais de cultura de países latino americanos. 6

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conhecimento, em geral, dos cidadãos quanto à importância da cultura, especialmente, como dimensão central do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, a partir dos relatórios, ressalta-se a necessidade premente de alterar as visões tradicionais que excluem a cultura dos assuntos urgentes nas políticas públicas dos países em desenvolvimento, especialmente quanto ao planejamento dos gastos públicos, destacando-se as implicações negativas da falta de políticas públicas de Cultura. A insuficiência de indicadores culturais compromete, por sua vez, a avaliação das políticas e seus programas e ações, decorrente, muitas vezes, da percepção e experiência dos gestores, o que demonstra a dificuldade em produzir indicadores apropriados para efetivo alcance dos objetivos da Convenção, sinalizando o desafio de sistematizar dados e compreender o universo cultural e suas especificidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUPIN, Gisele. Dez anos da Convenção da Diversidade Cultural – contribuições para um balanço. In: Diversidade cultural: políticas, visibilidades midiáticas e redes. Paulo Miguez (Org). Salvador: EDUFBA, 2015. 273 p. : il. – (Coleção Cult). p.15-58. HANANIA, Lilian. O impacto da Convenção da Unesco sobre o debate “comércio e cultura. In: Diversidade cultural e desigualdade de trocas: participação, comércio e comunicação. José Márcio Barros e Giuliana Kauark (Orgs). São Paulo: Itaú Cultural; Observatório da Diversidade Cultural, Editora PUCMinas, 2011. p. 59-70. LIMA, PAULO. A Convenção da Unesco sobre diversidade cultural e a agenda internacional da cultura. In: Dimensões e desafios políticos para a diversidade cultural. Paulo Miguez, José Márcio Barros, Giuliana Kauark (Orgs). Salvador: EDUFBA, 2014. 287 p. - (Coleção CULT). p. 25-40. MIGUEZ, Paulo. Algumas notas sobre comércio internacional de bens e serviços culturais. In: Diversidade cultural e desigualdade de trocas: participação, comércio e comunicação. José Márcio Barros e Giuliana Kauark (Orgs). São Paulo: Itaú Cultural; Observatório da Diversidade Cultural, Editora PUCMinas, 2011. p. 17-28. ONU, Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, disponível em https://nacoesunidas.org/ pos2015/agenda2030/. Acesso em 13/02/2016 PITOMBO, Mariella. Choque de civilizações? In: Diversidade cultural e desigualdade de trocas: participação, comércio e comunicação. José Márcio Barros e Giuliana Kauark (Orgs). São Paulo: Itaú Cultural; Observatório da Diversidade Cultural, Editora PUCMinas, 2011. p. 29-44. UNESCO. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Disponível em: . Acesso: 13/02/16. ________. Rapports périodiques quadriennaux / 2012 / 2013. Disponível em: . Acesso: 13/02/2016.

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________. Re|Shaping Cultural Policies. Paris 07 SP, France, 2015. Disponível em: < http://unesdoc. unesco.org/images/0024/002428/242866E.pdf>. Acesso: 13/02/2016.

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QUANDO A POESIA VIROU POLÍTICA: O PERCURSO DOS PONTOS DE CULTURA NO BRASIL, DE PROGRAMA GOVERNAMENTAL À REDE CULTURA VIVA. José Maria Reis e Souza Junior1 RESUMO: A complexidade dos movimentos e mobilizações coletivas da atualidade tem demandado das ciências sociais novas formas de análise e compreensão dessas realidades, e a concepção de Redes Sociais, fundamentadas na teoria da Dádiva, têm se apresentado como uma alternativa viável de análise sociológica, recomposição e organização da vida social na contemporaneidade. Os Pontos de Cultura e a Rede Cultura Viva são um desses movimentos socioculturais da contemporaneidade que demandam uma abordagem capaz de apreender a complexidade de suas relações sociais e trocas simbólicas. Assim, o artigo objetiva “localizar” a Política Nacional de Cultura Viva na Política Nacional de Cultura, contextualizando-a e demarcando seu papel e espaço, bem como iniciar um debate sobre a natureza e as características da então Rede Cultura Viva. PALAVRAS-CHAVE: Pontos de Cultura, Rede Cultura Viva, Redes Sociais, teoria da Dádiva, Relações Sociais.

1. INTRODUÇÃO No início era um ponto. No início existiam a potência da participação política de instituições visando mudanças sociais e o afeto e solidariedade das pessoas, que compunham essas instituições, como um diferencial em suas práticas: “temos que mudar a realidade social local, mas tem que ser com muito amor e ternura”, tendo como eixo central o fazer cultural, a cultura como o “ponto focal” de suas ações, a partir da cultura tem-se a intervenção e participação política da instituição em seus demais programas, tais como educação, meio ambiente, artes, protagonismo juvenil, comunicação, direitos humanos, saberes tradicionais, e etc. Essas instituições culturais tem em comum a realização de práticas socioculturais em busca do desenvolvimento local de suas comunidades, com uma militância ativista muito forte Bacharel em Turismo (UFPA), Mestre em Geografia (PPGEO/IFCH/UFPA) e Doutorando em Desenvolvimento Socioambiental (PPGDSTU/NAEA/UFPA). Professor colaborador do Curso de Formação de Especialistas em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas (FIPAM/NAEA/UFPA). [email protected] 1

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pela cidadania e direitos culturais, pela defesa da diversidade cultural, mas tendo sempre como “pano de fundo” a transformação da realidade local em que estão inseridas, que quase sempre são realidades de exclusão territorial e social. São assim, quase que inevitavelmente, organizações da sociedade civil organizada, quase sempre organizações não-governamentais, das mais variadas naturezas jurídicas (associações culturais, sociais e ambientais, associações comunitárias, cooperativas, institutos, fundações, e etc). Pode-se dizer que a promoção do desenvolvimento local e comunitário é uma característica dessas instituições. Outra característica marcante percebida é que essas instituições, por buscarem na consecução de suas ações o desenvolvimento comunitário, são promotoras de territorialidades marcantes em seus lugares. Em parceria com escolas, associações de bairro, clubes de mães, bibliotecas públicas, universidades, museus, teatros, terreiros de santos, cineclubes, paróquias, um espectro quase sem fim de outras instituições públicas e privadas, assim como com pessoas das mais diversas culturas e natureza, tais como agentes de leitura, agentes de saúde, mestres e mestras griôs da cultura popular e tradicional, artistas e produtores culturais; engendram ações socioculturais que intervêm sobremaneira na dinâmica territorial e social de suas localidades. Com a colaboração dessas instituições e pessoas territorializam-se e promovem territorialidades por meio do “fazer cultural”. Fazem oficinas de cultural digital em tribos indígenas do Cerrado, ensinando e aprendendo a editar vídeos a partir de uma estética e visão de mundo indígena, trocam saberes com mestres carpinteiros da Amazônia, guardiões de uma cultura milenar de talhar embarcações, realizam palestras de parteiras para alunos de medicina e obstetrícia no Sul do país, promovem batalhas de b-boys na periferia de São de Paulo, e fazem teatro de rua no centro do Rio e Janeiro. Isso tudo são territorialidades articuladas por essas instituições que visam a transformação social local por meio da cultura, arte e educação. Assim, Ponto de Cultura é uma potência de transformação social promovida por instituições e pessoas, que colocam a cultura no centro de suas atenções, é uma ação cultural para mudar a realidade de suas localidades, que já existiam, quando o governo federal criou em 2004 o Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura. Dessa forma, o presente artigo inicia com esta “prosa poética” para marcar o fato de que os Pontos de Cultura, enquanto ideologia e ação sociocultural já existiam quando se instituiu o Programa Cultura Viva pelo Ministério da Cultura– MinC. Essa forma militante de ver e viver a vida com poesia e afeto, essa forma profunda, enraizada de viver, essa cultura viva, já era uma realidade, apenas não se tinha visibilidade disso (TURINO, 2010),.muitos menos algum processo organizado de interconexão e comunicação entre esses, e desses com o Estado, mercado e sociedade em geral.

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Em outras palavras, não havia uma política cultural de base local e comunitária, muito menos uma rede efetiva (ou pelo menos este sentido, de forma explicita) que conectassem todas estas instituições e práticas. Por isso, este trabalho objetiva “localizar” a Política Nacional de Cultura Viva na Política Nacional de Cultura, contextualizando-a e demarcando seu papel e espaço nessa política, bem como iniciar um debate (que pretendemos aprofundar com pesquisa específica) sobre a natureza e as características da então (embrionária) Rede Cultura Viva, fazendo uma discussão teórico-metodológica sobre a teoria da Dádiva, relacionada à teoria de Rede Social. 2. O PROGRAMA CULTURA VIVA NO CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE CULTURA O Brasil tem uma historiografia muito rica e heterogênea sobre políticas públicas setoriais de cultura. A partir de Rubim (2010), Miranda; Rocha; Egler (2014) e Silva; Abreu (2011) podemos demonstrar, sucintamente, a gênese e a trajetória da política cultural no Brasil, com os seguintes períodos: 1) Da chegada da corte portuguesa em 1888 ao início da década de 1960: visão bastante patrimonialista de cultura, quando se criou as primeiras instituições culturais do país, quase todas de orientação museológica, tais como a Biblioteca Nacional, e o Museu Nacional de Belas-Artes. Posteriormente, com o transcorrer da Revolução de 30, o ideário de cultura pregado pelo estado brasileiro de Vargas era para a construção de uma identidade nacional; 2) Do golpe militar em 1964 à abertura política em 1990: período marcado pelo sentido de controle político e censura cultural, toda produção artístico-cultural passava pelos instrumentos de censura antes de serem veiculadas. O patrulhamento ideológico era forte. Em 1985 é criado o Ministério da Cultura, mas sem dúvida o referencial desse período é a promulgação da Constituição Brasileira em 1988; 3) De 1990 a 2002 com os projetos neoliberais para a cultura: a partir dos anos de 1990 acirram-se no Brasil as políticas neoliberais e com a cultura não seria diferente. O papel do Estado diminui e implementam-se incentivos fiscais com intuito de promover um financiamento privado da cultura e arte; 4) De 2003 a 2010 com a construção e estruturação do Sistema Nacional de Cultura – SNC: o início do governo Lula marca uma abertura de diálogo com sociedade e a admissão de um conceito antropológico, econômico e simbólico de cultura. Construção do Sistema Nacional de Cultura – SNC. O programa Cultura Viva foi criado nesse período. Marcos são as gestões dos Ministros Gilberto Gil (2003 – 2008) e Juca Ferreira (20082010) à frente do MinC. A história da política cultural brasileira complementa-se a partir de 2011, com a eleição da Presidente Dilma Rousseff, que é tido como um período de continuidade, avanços e contradições (BARBALHO, 2014).

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É um período estratégico e relevante por ser o momento de efetivação do Sistema Nacional de Cultura – SNC por meio da aprovação no Congresso Nacional da Emenda Constitucional n° 71/20122. A constituição Federal passa a vigorar acrescida do artigo 216 – A, que define O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. ( E.C. n. 17/2012). O SNC é o formato sistêmico de gestão e promoção da política cultural brasileira. Por meio de sua estruturação e implementação busca-se institucionalizar as políticas públicas de cultura no país. Institucionalizar significa criar os marcos políticos e legais necessários, federalizar a adesão ao sistema por meio da assinatura do Acordo de Cooperação Federativa por parte de estados e municípios que se comprometem a criarem seus sistemas por meio de leis próprias, prever orçamentos e recursos para as políticas culturais, e por fim, este que talvez seja o seu maior legado que é garantir a continuidade das políticas públicas de cultura no Brasil, que desde a sua gênese estiveram ao gosto dos governantes de “plantão”; marcadas por ausências, autoritarismos e instabilidades (RUBIM, 2013.). O Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura surgem em 20043 nesse contexto de expansão e usufruto dos direitos culturais assegurados pela “Constituição Cultural” (FILHO, 2011), e implementados por este MinC, por meio de uma Política Nacional de Cultura, que tem como missão garantir a todos os cidadãos brasileiros o pleno exercício dos direitos culturais. Segundo a Portaria nº 118 de 30 de dezembro de 2013 do Ministério da Cultura, o Programa Cultura Viva – PCV insere-se no Sistema Nacional de Cultura definindo que “As Redes de Pontos e Pontões de Cultura integrarão a Rede Cultura Viva, sendo reconhecidas no âmbito do Sistema Nacional de Cultura - SNC - como unidades culturais de base comunitária, voltadas ao desenvolvimento de políticas públicas regionais ou setoriais de cultura.”. Dessa forma, os Pontos e Pontões de Cultura, e todas as demais ações do Programa Cultura Viva, são reconhecidos como a política de base comunitária do Sistema Nacional de Cultura – SNC. Política esta que tem seu próprio “microcosmo político” compostos de alguns elementos fundamentais tais como os Pontos e Pontões de Cultura (ações fundamentais e prioritárias do PCV), os Pontos de Rede (parcerias estabelecidas entre o governo federal e os entes federados, Originária do PEC n. 416/2005 de autoria do Deputado Federal Paulo Pimenta (RS-PT). No Senado passou a ser o PEC n. 34/2012. 3 O Programa Cultura Viva foi criado pela Portaria 156, de 6 julho de 2004, publicado no Diário Oficial da União – DOU de 7 de julho de 2004. 2

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estados, municípios, ou consórcios para o estabelecimento de redes territoriais, por meio da assinatura de protocolos. Parceria prevista a partir da adesão do(s) ente(s) federado(s) ao SNC), as Redes Temáticas e Identitárias (formadas por Pontos e Pontões de Cultura, Grupos, Coletivos, instituições e outros agrupamentos que se articulam para atuar em um segmento ou tema específico. Exemplos: Rede de Pontos de Cultura Indígena, Rede de Cultura e Saúde, Brasil Memória em Rede, e etc.), e as Teias (encontros dos Pontos e Pontões de Cultura e das comunidades participantes para promover uma mostra ampla e diversificada da produção cultural dos Pontos, debater a cultura brasileira e suas expressões territoriais e identitárias, propor estratégias de políticas públicas culturais e analisar e avaliar o programa). Para além de um possível conceito acadêmico sobre a “Teia”, ela é muito mais do que uma conferência política ou uma mostra artístico-cultural, é um processo vivido4, associativo, e construído compartilhadamente; a Teia não é feita, é reconstruída a cada momento em que é realizada. O processo (re) inicia no território, no local, os Pontos e Pontões de Cultura iniciam o debate sobre a política cultural geral, e especificamente, o PCV; tiram estratégias e definições, realizam uma Teia Estadual e/ou Regional e elegem delegados à Teia Nacional. Em meio a isso, o processo de produção política, artística e cultural dos Pontos também é realizada colaborativamente. Amostras artísticas das mais variadas linguagens, painéis, vivências, rodas de conversas, oficinas e seminários são planejados, organizados e executamos conjuntamente entre os Pontos e Pontões de Cultura e o Ministério da Cultura, e são agregados à programação. É na Teia que se realiza o Fórum Nacional de Pontos de Cultura – FNPdC, instância maior e soberana de debate, definição de estratégias e deliberação política do movimento nacional de Pontos de Cultura; e elege-se a Comissão Nacional de Pontos de Cultura – CNPdC, colegiado autônomo, de caráter representativo de Pontos e Pontões de Cultura, instituído por iniciativa destes, e composta por representantes eleitos no FNPdC. A CNPdC é a responsável pela realização e coordenadora do FNPdC. 3. CULTURA VIVA: DE PROGRAMA SETORIAL À REDE SOCIAL O Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural – Cultura Viva foi criado com o intuito de valorizar o protagonismo sociocultural e fomentar as manifestações culturais de grupos e comunidades, permitindo também, por meio do acesso as ferramentas, técnicas e tecnologias sociais e digitais, sua difusão e fluição cultural.

As Teias realizadas até o momento foram: Teia 2006 “Venha Se Ver e Ser Visto”, São Paulo (SP); Teia 2007 “Tudo de Todos”, Belo Horizonte (MG); Teia 2008 “Iguais na Diferença”, Brasília (DF); Teia 2010 “Tambores Digitais”, Fortaleza (CE), e Teia 2014: “TEIA Nacional da Diversidade”, Natal (RN). Tivemos a oportunidade de poder participar das 3 ultimas Teias como delegado ao FNPdC, e posteriormente, como membro da CNPdC representando o Fórum Paraense de Pontos de Cultura. 4

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O Programa Cultura Viva, assim foi conceituado, na sua criação pelo Ministério da Cultura, quando ainda se chamava Programa de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva5 O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, do Ministério da Cultura (MinC), tem por objetivo incentivar, preservar e promover a diversidade cultural brasileira ao contemplar iniciativas culturais locais e populares que envolvam comunidades em atividades de arte, cultura, educação, cidadania e economia solidária. Com isso a missão de “ ‘des-esconder’ o Brasil, reconhecer e reverenciar a cultura viva de seu povo”, em 2004, a então Secretaria de Programas e Projetos Culturais (atualmente de Secretaria de Cidadania Cultural) do MinC iniciou a implantação dos pontos de cultura, que são a expressão de uma parceria firmada entre Estado e sociedade civil. Por meio de edital público, os pontos recebem recursos do governo federal para, assim, terem condições de potencializar seus trabalhos, seja na contratação de profissionais para cursos e oficinas, produção de espetáculos e eventos culturais, entre outros. Além dos pontos de cultura, o programa Cultura Viva é integrado por um conjunto de ações: Cultura Digital, Griô, Escola Viva e, mais recentemente, Cultura e Saúde. (IPEA, 2010. pags.39-40) Partindo do conceito básico apresentado a cima, depreendem-se sentidos como de integração, conexão, diversidade, identidade, compartilhamento; que a nosso ver aludem (mesmo que naquele momento, ainda sutilmente) à concepção de redes. Sobre as concepções de redes, o geógrafo Milton Santos exprime As definições e conceituações se multiplicam, mas pode-se admitir que se enquadram em duas grandes matrizes: a que apenas considera o seu aspecto, a sua realidade material, e uma outra onde é também levado em conta o dado social (SANTOS, 2006, p. 176). Atualmente a Rede Cultura Viva6 é uma realidade, consiste em um ambiente de interlocução interinstitucional e de estratégia política protagonizado pelos Pontos e Pontões de Cultura, pelo MinC, por gestores públicos dos entes federados, e por todas as instituições, entidades, grupos formais e informais e agentes culturais que são beneficiários desta política pública. Há de se ter uma agenda, um pacto, um plano geral em comum, que comungue interesses e desafios coletivos, um sistema de gestão, informação, comunicação, mobilização, monitoramento e avaliação, onde os diversos planos de trabalho possam ser acompanhados de forma A portaria n. 118, de dezembro de 2013 do MinC reformula o programa Cultura Viva que dentre outras alterações, a partir de então, denomina-se Programa Nacional de Promoção da Cidadania e da Diversidade Cultural – Cultura Viva. 6 No dia 01/09/2015 acompanhamos o debate virtual que a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura – SCDC/MinC promoveu para apresentar e discutir a proposta de plataforma digital para a Rede Cultura Viva, conforme anunciado em www.cultura.gov.br . .A Rede Cultura Viva foi lançada oficialmente em 5/10/2015, em evento em Brasília, conforme convite que recebemos, e que infelizmente não pudemos participar por questões de agenda. 5

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integrada, sistêmica. A gestão é compartilhada, mas a coordenação é da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural - SCDC e será composta pelos diversos espaços de democratização e participação política, desde ambientes virtuais de participação e deliberação, até os diversos eventos, fóruns (em todas as escalas, mas sobretudo na escala nacional), Teias, a Comissão Nacional de Pontos de Cultura – CNPdC, e toda e qualquer estratégia de participação e colaboração que vier a ser criada para tais fins. Esses “elementos” compõem e são compostos pela Rede Cultura Viva. As redes sociais têm se apresentado como uma alternativa viável de análise sociológica, recomposição e organização da vida social na contemporaneidade. A complexidade dos movimentos e mobilizações coletivas da atualidade tem demandado das ciências humanas e sociais novas formas de análise e compreensão dessas realidades. A “lupa” dos antigos marcos teóricos positivistas baseados somente em certos conteúdos substantivos, tais como a economia, já não dão mais conta de “enxergar” essas realidades com nitidez. Os processos de desterritorialização e multiterritorialização (HAESBAERT, 2005) das sociedades complexas contemporâneas nos colocam novos paradigmas7, novos atores, conflitos e mediações que ultrapassam as esferas sociais, políticas, econômicas e institucionais, e cada vez mais tornando evidente a relevância das dimensões simbólicas e culturais, integradas as estas. Dessa forma, Martins (2010) aponta para a emersão de um novo paradigma sociológico que supere as teses de caráter holístico que reduzem os movimentos sociais a mudanças na estrutura geral da sociedade (sobretudo, as estruturalistas e funcionalistas), como também as teses individualistas (com fortes influências da psicologia psicossocial behaviorista e da administração moderna) que reduzem as mudanças sociais a um conjunto de ações e estratégias individuais ou coletivas de pequenos grupos pelo poder e controle de recursos coletivos, convencionalmente, chamado de capital social. Essa dualidade clássica que no plano da vida concreta se dá entre indivíduo e sociedade e no campo do pensamento teórico entre individualistas e estruturalistas é que precisa ser superada por meio de uma compreensão e apreensão dos fatos e das mudanças sociais (sobretudo em se tratando dessas mobilizações coletivas contemporâneas) como expressões da complexidade humana e social, dimensões da vida real que não são excludentes, muito menos dicotômicas. Assim, a perspectiva de análises sociológicas a partir das abordagens de redes sociais emergem (ou submergem) ancoradas na teoria da Dádiva que surge como o terceiro paradigma na busca de superação da dualidade dicotômica entre individualismo e holismo decorrentes dos Paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma Ciência. Uma investigação histórica cuidadosa num determinado momento revela um conjunto de ilustrações recorrentes quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais, instrumentais e na observação. Esses são os paradigmas da comunidade, revelados nos seus manuais, conferências e exercícios de laboratórios” (KHUN, 1975 apud LOUREIRO, 2011. pg. 54.).

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interesses utilitários e calculados ou por normas sociais estruturadas e reguladas, respectivamente. (CAILLÉ, 1998). Que nas palavras de Martins (2008) são abordagens que apresentam a ação e a estrutura, não como opostos, mas como elementos constituintes de um movimento incessante e ambivalente de trocas – às vezes organizativas, às vezes degenerativas -, de objetos materiais e simbólicos - não estáticos – em circulação na vida social, resultando, a cada momento, na criação de novos lugares (estruturas) e de novas identificações (ações). (MARTINS, 2008.pg. 13.). Dessa forma, o conceito de rede social que mais reflete esta perspectiva antiutilitarista8, relacional e compreensiva, que busque superar o dilema sociológico clássico entre estrutura e agência, exprime que esta “é o conjunto de pessoas com as quais o ato de manter relações de amizade e camaradagem, permite conservar e esperar confiança e fidelidade ... sendo importante reconhecer que essas redes, tradicionais ou modernas, são alianças generalizadas criadas na aposta na dádiva e na confiança” (Caillé, 2002. pg.65). A teoria da dádiva, que foi sistematizada por Marcel Mauss, em seu “Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas”, onde procurou demostrar que Estado e mercado não foram universalizantes, que não há evidências desses em sociedades tradicionais arcaicas e que os mesmos são naturais de sociedades mais complexas, como as modernas; contudo se observarmos a história da humanidade, independentemente de serem arcaicas ou modernas, podemos perceber, segundo o autor, um sistema de reciprocidades de caráter interpessoal e intersubjetivo. Um sistema que se dá em torno de uma tríplice obrigação coletiva que se exprime no Dar, Receber e Retribuir de bens simbólicos e materiais, que religa a parte ao todo e é conhecida como dádiva ou dom (Mauss, 2003 apud Martins, 2005). Assim, Martins (2008) afirma que O reconhecimento da existência de uma obrigação social – a dádiva – que se impõe nas interações concretas entre os homens (e não apenas no plano das crenças coletivas) e que obedece a uma determinação relativa passível de ser modificada no curso da troca de bens entre indivíduos, permitiu a Mauss flexibilizar o esquema teórico durkheimiano e perceSobre o Utilitarismo ou a “relação social de utilidade” nas palavras de Marx e Engels, podemos dizer que “Esta transposição absurda e arbitrária, só deixa de o ser no momento em que as primeiras relações deixem de ter importância por sí mesmas para os indivíduos, em que já não representam uma actividade espontânea passando a constituir uma máscara que esconde, não a categoria abstracta de utilização, mas sim um objectivo real, uma relação real, precisamente aquela que é designada por relação de utilidade. Este disfarce no plano da linguagem só tem sentido quando constitui a expressão consciente ou inconsciente de um disfarce real. No caso presente, a relação de utilidade tem um sentido bastante rigoroso, significa que eu tiro um proveito do mal que faço a um outro (exploitation de l’homme par l’homme); neste caso preciso, por outro lado, o proveito que eu tiro de uma relação é um elemento completamente estranho a esta relação, é aquilo que já encontramos mais atrás no capítulo “bens”: espera-se de toda a aptidão um produto que lhe é alheio, trata-se de uma relação determinada pelas condições sociais – e esta relação é precisamente uma relação de utilidade” (MARX; ENGELS, 1978. pgs. 259 - 260).

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ber o caráter paradoxal e mutante das práticas sociais, sobretudo no plano das trocas diretas. Esse avanço teórico fica evidente no comentário seguinte sobre as formas de trocas e de contratos na antiga civilização escandinava: “De todos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas sociais em movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços profundos, mas isolado: o caráter voluntario, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações” (Mauss, 2003 : 188-189). (MARTINS, 2008. pg.16). Bourdieu, por sua vez, quando tratando da economia dos bens simbólicos9, centrou suas análises sobre a dádiva no tempo de intervalo entre o dar, receber e retribuir (ou como chamou o “dom”, e o “contra-dom”), percebendo que não se devolve no ato em que se recebe, imediatamente; é como se o intervalo temporal definisse a diferença entre a troca de dádivas e o “toma lá, dá cá”. Esse tempo difere a dádiva da troca mercantil, generosidade do retorno calculado. (Bourdieu, 1996; 1996a). Contudo é necessário ressaltar que a dádiva por não ser igual a troca mercantil não quer dizer que seja gratuita, a dádiva “não é uma coisa mas uma relação social” (GOLDBOUT, 1992 apud PORTUGAL, MARTINS 2011), e por ser uma relação social não existe relação em sentido único, sem sequer a esperança do retorno, sem a volta não será relação, uma volta “desinteressada”, que leva Bourdieu a afirmar que “podemos concluir que a dádiva gratuita não existe, ou que é impossível”. (BOURDIEU, 1996. pg. 162). Mas essa verdade estrutural é como que recalcada coletivamente. Só podemos compreender a existência do intervalo temporal se tivermos a hipótese de que quem dá e quem recebe colaboram, sem sabê-lo, com um trabalho de dissimulação que visa negar a verdade da troca, o “toma lá, dá cá”, que significa a anulação da troca de dádivas. Estamos aqui diante de um problema difícil: se a sociologia se atem a uma descrição objetivista, reduz a troca de dádivas ao “toma lá, dá cá” e deixa de poder mostrar a diferença entre uma troca de dádivas e uma ação de crédito. Assim, o importante na troca de dádivas e que, através do intervalo de tempo interposto, os dois trocadores trabalham, sem sabê-lo e sem estarem combinados, para mascarar, ou recalcar, a verdade objetiva do que fazem. Verdade que o soci6logo desvenda, mas correndo o risco de descrever como cálculo cínico um ato que se quer desinteressado e que é preciso tomar como tal, em sua verdade vivida, e que o modelo teórico também deve perceber e do qual deve dar conta. (BOURDIEU, 1996. pg. 160 – 161). Diante do exposto, acreditamos que as abordagens dos fatos e mudanças sociais a partir da teoria da dádiva, como perspectiva teórica, e com a teoria da rede social, pelo lado prático-metodológico são bem adequadas para compreender esses movimentos e mobilizações coletivas da BOURDIEU, P. Razões da Prática: Sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa. Campinas, SP: Papirus, 1996. pgs.157 - 193.

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contemporaneidade, que fogem às formas convencionais de articulação e organização política, que fundamentam suas trocas materiais e simbólicas em base solidárias, associativas e antiutilitaristas. Laços de solidariedade e generosidade (mas também de tensões e conflitos) que vimos também, no caso brasileiro, em redes de políticas de populações tradicionais quilombolas (SANTOS, 2013) e em grupos de artesãos de Brinquedos de Miriti (FERREIRA JUNIOR; FIGUEIREDO, 2014) na Amazônia, em políticas de voluntariado no Espírito Santo (FONTES, 2008) e em políticas nacionais de saúde, onde nessas, comprovou-se que a perspectiva de mobilização e organização em redes sociais de movimentos de educação popular em saúde proporcionaram a quebra de paradigmas existentes no campo da biomedicina, promovendo pensamentos, práticas e saberes contra-hegemônicos e emancipatórios. (MARTINS, 2010). Para situar esse embate, podemos tomar como exemplo o caso das mudanças verificadas no campo biomédico na atualidade, a partir de pressões importantes exercidas por forças diversas: por um lado, o saber biocartesiano utilitarista, que se propõe como o único saber verdadeiro sobre a saúde; por outro lado, os diferentes saberes de cura já existentes, como a medicina doméstica e a medicina xamânica, construídos a partir de experiências vividas e reproduzidas pelas tradições e memórias que foram reprimidas e perseguidas durante muito tempo e que, inclusive, de forma desorganizada, vêm questionando o monopólio do saber médico pelo biocartesianismo da clínica médica (Martins, 2003). Essas mudanças, no interior do campo médico e em suas fronteiras, são reflexos de outras mudanças que vêm ocorrendo na vida social, tendo como uma de suas principais legitimações as novas redes interativas do cotidiano. (MARTINS, 2010) Assim, cremos que laços semelhantes de solidariedade, generosidade, associatividade, antiutilitarismos, individualidades, coletividades, confiança, doação e gratidão; mas também de conflitos, tensões, hegemonias, incertezas e paradoxos são possíveis (ou passiveis) de serem observados nas relações sociais que compõem a Rede Cultura Viva, e na vida associativa dos Pontos e Pontões de Cultura. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa é a complexidade (MORIN, 2004 e FURTADO; SAKOWSKI; TÓVOLI, 2015) de relações cooperativas e associativas que compõem a Rede Cultura Viva enquanto política pública de Estado10, relações estas que se dão entre os Pontos e Pontões de Cultura, e destes A Lei nº 13.018 de 22 de julho de 2014, de autoria da Deputada Federal Jandira Feghali (PCdoB – RJ) institui a Política Nacional de Cultura Viva, ou seja, torna o Programa Cultura Viva, um programa governamental em uma política pública de Estado assegurada por lei. A Lei Cultura Viva como ficou conhecida foi uma reivindicação do movimento nacional de pontos de cultura amplamente debatida e defendida nas Teias, Fóruns, nas Conferencias de Cultura (em todas as suas escalas), pela CNPdC e em todos os espaços e momentos de articulação política do movimento. É considerada uma vitória.

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com o Estado e mercado, instaurando (ou melhor, “enredando”) relações de naturezas sociais, econômicas, políticas, culturais, e institucionais que precisam ser elucidadas, sobretudo nessa perspectiva de redes sociais que propõem formas novas de pensamento, de participação democrática e ação pública. A Rede Cultura Viva enquanto a “arquitetura social” de efetivação da Política Nacional de Cultura Viva, e esta como a política de base comunitária (com sua localização determinada) da Política Nacional de Cultura ainda precisa ser melhor discutida e construída entre sociedade civil e Estado, entre os Pontos e Pontões de Cultura, e todos os demais movimentos e coletivos participantes, e as esferas de governo, em todas as suas escalas, mas sobretudo, no plano federal com o Ministério da Cultura. É uma arquitetura social em construção, colaborativamente. Por exemplo, a inserção da Política Nacional de Cultura Viva – PNCV no Sistema Nacional de Cultura – SNC não deveria limitar-se ao acesso a recursos financeiros por parte dos entes federados (estados e municípios); a PNCV deve ser uma filosofia de política pública no âmbito do SNC. Fazer Cultura Viva em seu território deveria ser um indicador de desenvolvimento11. Há desafios grandiosos e diversos (tal como as expressões culturais, tradicionais, populares e comunitárias que a PNCV representa) que precisam ser superados. No âmbito institucional, mecanismos de participação social e de inserção na PNCV precisam ser aperfeiçoados. A Rede Cultura Viva institui e operacionaliza dispostos importantes da Lei 13.018/2014 (a Política Nacional de Cultura Viva) como a Certificação Simplificada e o Termo de Compromisso Cultural – TCC que precisam ser popularizados e aplicadas em todo país, em escalas nacional, estadual e municipal. A autodeclaração de Pontos e Pontões de Cultura, feita de maneira autônoma e deliberada por parte desses no portal virtual da Rede Cultura Viva (http://culturaviva.gov.br/), implementado assim, o Cadastro Nacional de Pontos de Cultura como parte importante da certificação simplificada, e do uso do TCC como um “contrato social” em bases mais justas e desburocratizadas entre os PC’s e o Estado para acesso a recursos e ações da PNCV, ao invés dos famigerados convênios baseados na Lei 8.666; são consideradas avanços de efetivação desta política pública. Todavia há de se ter um processo amplo de educação e popularização sobre esses novos mecanismos de política sociocultural para que sejam amplamente utilizadas e acessadas em todo o território brasileiro, porém para

Atuamos como Pesquisador Colaborador no projeto de Pesquisa “Programa Cultura Viva: impactos e transformações sociais (2014 – 2015) ”, promovido pelo Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília – UnB, por meio de uma parceria com a Comissão Nacional de Pontos de Cultura – CNPdC, e financiamento do CNPq e Ministério da Cultura. A pesquisa teve por objetivo desenvolver indicadores qualitativos para investigar quais foram as transformações sociais geradas pelos Pontos de Cultura na comunidade; nos utilizando do conceito e dos indicadores da Felicidade Interna Bruta – FIB para analisar as práticas socioculturais de Pontos de Cultura do DF, concluirmos que os PC’s promovem desenvolvimento, afetos, saberes e bem estar social local. Previsão de publicação de seus resultados para março de 2016. 11

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isso aconteça torna-se necessário que os estados e municípios também adéqüem suas legislações criando, de preferência suas próprias “leis cultura viva”, para assim equipararem seus arcabouços jurídico-institucionais. Por fim, por não ser objetivo deste artigo esgotar esse debate, pelo contrario, para nós ele inaugura uma discussão que pretendemos aprofundar com uma pesquisa de doutoramento, divulgando seus resultados ao longo desse processo por meio de outras publicações, podemos concluir que a concepção de Redes Sociais, fundamentadas na teoria da Dádiva configuram-se plenamente em possibilidades reais de emancipação política e social (instituindo uma cultura cívica) dos Pontos e Pontões de Cultura; e por parte do Estado uma ferramenta eficaz de planejamento e gestão territorial e temática da Política Nacional de Cultura Viva - PNCV.

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SANTOS, A. T. dos. África e Laranjituba em experiências associativas: um estudo sobre redes em território quilombola na Amazônia Oriental. Belém: PPGCS/UFPA, 2013. (Dissertação de Mestrado). SILVA, F.A.B. da; ABREU, L.E. (Orgs.). As Políticas Públicas e suas narrativas: o estranho caso entre o Mais Cultura e o Sistema Nacional de Cultura. Brasília: Ipea, 20111. SILVA, F. A. B. da; LABREA, V.V. (Orgs.). Linhas Gerais de um Planejamento Participativo para o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2104. TURINO, C. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima. 2.ed. - São Paulo: Anita Garibaldi, 2010. VIDAL, J. P. Metodologia Comparativa e Estudo de Caso. Papers do NAEA n. 308. Belém: NAEA/ UFPA, 2013.

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MUSEOLOGIA SOCIAL E POLÍTICA CULTURAL: A EXPERIÊNCIA DA REDE DE MUSEOLOGIA SOCIAL DO RIO DE JANEIRO Juliana Leite Tavares Veiga1 RESUMO: A museologia social diz respeito aos movimentos e iniciativas de valorização da memória e dos patrimônios materiais e imateriais das comunidades, vinculados aos territórios localizados de forma geral em bairros periféricos, favelas, áreas rurais e ribeirinhas. O presente artigo apresenta a experiência da Rede de Museologia Social do estado do Rio de Janeiro, discutindo questões como intercâmbios, institucionalização e captação de recursos, a partir do entendimento de que um aspecto importante da política cultural se dá através da demanda de grupos e iniciativas da sociedade civil. PALAVRAS-CHAVE: museologia social, política cultural, rede.

1. POLÍTICA CULTURAL E TERRITÓRIO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA AMPLIADA Em grande parte das vezes em que o termo política cultural é mencionado se faz referência a uma política de Estado voltada para a cultura. Essa referência fica ainda mais arraigada quando se fala sobre uma política pública de cultura, como se o sentido do público estivesse intrinsecamente imbricado no poder público de Estado. De fato, há uma dimensão da política cultural como política governamental, porém o público também pode se referir a algo comum; uma política para todos. Sobre a questão mencionada acima, o autor Alexandre Barbalho afirma que “uma política cultural é duplamente pública. (...) Instituições não-estatais e empresas privadas também promovem políticas de cultura. Como foi dito, tal dimensão pública encontra-se intrinsecamente na cultura e na política” (BARBALHO, 2005, p. 40). Nessa perspectiva, cabe dizer que grupos culturais afinados em torno de objetivos comuns, também constituem políticas à medida que agem sobre o território através de práticas culturais – que são concomitantemente políticas. O autor diferencia política cultural e políticas de cultura da seguinte maneira: a primeira diria respeito “ao universo das políticas públicas voltadas para a cultura implementadas por um Mestranda no programa de Cultura e Territorialidades (Ppcult) pela Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected] 1

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Governo” (BARBALHO, 2009, p. 2), em que os objetivos consistiriam em “ordenar, hierarquizar ou integrar um conjunto necessariamente heterogêneo de atores, discursos, pressupostos e práticas administrativas” (BOLÁN In BARBALHO, 2009, p. 2); e a segunda, “se referem às disputas de poder em torno dos valores culturais ou simbólicos que acontecem entre os mais diversos estratos e classes que constituem a sociedade” (BARBALHO, 2009, p. 2). É claro que os conceitos se complementam, não estando fechados em si. E é por isso mesmo que, ainda que entenda a importância metodológica atribuída à distinção entre as descrições colocada pelo autor, não a usarei no artigo. O sentido conceitual de política cultural e/ou política(s) de cultura – atribuída ao Estado e/ou aos grupos culturais da sociedade civil – estará relacionado ao contexto analisado. De fato, o que é interessante compreender é que o termo público não está colado ao sentido estatal, governamental. Dessa forma, se faz necessário enfatizar que seja qual for o referencial norteador dado à política cultural, ele está perpassado a todo tempo por disputas, conflitos e interesses concorrenciais dos grupos. O jogo político só é possível nessa dinâmica, tanto entre os grupos – e ainda dentro do mesmo grupo –, quanto entre os grupos e o Estado. Ora ela se mostra harmônica, ora concorrencial, dependendo do que está em disputa em dado momento. É aqui que a política cultural – strito e lato senso – se entrelaça com a questão do território, para além de um meio meramente físico. Como pensar uma política cultural sem se pensar seus efeitos no território no qual agentes culturais, públicos diversos, comunidade estejam inseridos? Como fazer políticas culturais, a não ser de forma a beneficiar uma parte da população que invariavelmente se localiza física e simbolicamente dentro de um território? Como não considerar a dimensão simbólica e identitária dos grupos, a partir dos territórios, para se elaborar políticas de cultura? Assim, as políticas culturais precisam partir de mapeamentos e diagnósticos, ou seja, da forma como grupos e indivíduos agem/afetam/se inserem (n)os territórios. E a ampliação do conceito de território está justamente aí: em sua forma simbólica, identitária e afetiva, e não só física, conforme mencionado. Os usos desses territórios, seus saberes e fazeres, transformados historicamente pelas sociedades – daí a importância da dimensão temporal do território e não só espacial – são fundamentais para se pensar em políticas culturais. Nesse sentido o território, tanto quanto a cultura e a política cultural, é construído socialmente, através de conflitos e disputas de poder, em uma perspectiva de constantes transformações e reconfigurações – é nesse contexto então que se insere meu objeto de pesquisa, a saber, a Rede de Museologia Social do RJ, que será abordada no próximo tópico deste trabalho. Porém o território não foi sempre pensado desta maneira. Seu conceito surge, segundo Marcelo José Lopes de Souza, na tradicional geografia política:

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como o espaço concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente construídos), que é apropriado, ocupado por um grupo social. (...) a identidade sócio-cultural das pessoas estaria inarredavelmente ligada aos atributos do espaço concreto (natureza, patrimônio arquitetônico, ‘paisagem’) (SOUZA, 1995, p. 84). O autor diz ainda, que essa visão utiliza os termos território e espaço sem distinção, “obscurecendo o caráter especificamente político do primeiro” (idem). Dessa forma, Souza enfatiza seu interesse em descortinar o campo de forças que complexifica as disputas inerentes ao território. O autor afirma ainda que da mesma maneira que o poder é onipresente nas relações sociais, o território também “está presente em toda a espacialidade social – ao menos enquanto o homem também estiver presente” (SOUZA, 1995, p. 96). Outro geógrafo que conceitua o território é Rogério Haesbaerth, que vai dizer da relação intrínseca entre homem e território: sem dúvida o homem nasce com o território, e vice-versa, o território nasce com a civilização. Os homens, ao tomarem consciência do espaço em que se inserem e ao se apropriarem ou, em outras palavras, cercarem este espaço, constroem e, de alguma forma, passam a ser construídos pelo território (HAESBAERTH, 2007, p. 42). O autor também afirma que não existem espaços puramente simbólicos ou funcionais, justamente devido ao território estar relacionado de forma intrínseca ao homem, e, portanto, as suas relações sociais e de poder. Por isso, ao mesmo tempo em que o território significa domínio, também remete a uma visão subjetiva e simbólica, que é inerente ao humano. Nesse sentido, ainda conforme Haesbaerth, “o território pode moldar identidades culturais e ser moldado por estas, que fazem dele um referencial muito importante para a coesão dos grupos sociais” (2007, p. 49). A partir dessa perspectiva, e levando em conta o que já foi dito sobre a relação das políticas culturais e do território, coloca-se a questão do multiculturalismo e da identidade. Para mostrar que o conceito de multiculturalismo é amplo e polissêmico, Stuart Hall enfatiza pelo menos seis dos seus tipos, que não serão abordados aqui. O importante é atentar para sua pluralidade e heterogeneidade, através de “uma série de processos e estratégias políticas sempre inacabadas” (2006, p. 50). O perigo de conceitos polissêmicos é que podem ser usados de forma ampla e até contraditória. Assim, o uso problemático do multiculturalismo na perspectiva da política cultural é a “con-formação da diferença” (idem, p. 57). Em uma prática que o autor chama de “subalternização da diferença”, ao invés de um “sinônimo conveniente de obliteração da diferença” (idem), que seria valorizar a diferença enquanto alteridade. Nessa perspectiva, como seria pensar a construção de políticas estatais de cultura a partir da alteridade? Sem que os multiculturalismos fossem encapsulados em diferenças múltiplas, 1064

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mas separadas e intocáveis, ou seja, livre de luta e conflitos? A consolidação das políticas, assim, não seria uma contradição, já que política pressupõe embates? Como garantir uma política da diversidade, sem que a diferença seja sinônimo de “con-formação”? Adicionando a isso a questão da identidade, ainda no contexto da formulação de políticas governamentais de cultura: a constituição de políticas de valorização da diferença, voltadas aos grupos minoritários que não tiveram sua identidade reconhecida na construção das políticas até então, negaria o pressuposto de igualdade? E ainda, a ideia de não fixação e engessamento das identidades é possível quando estas são enquadradas na forma de políticas culturais? Talvez todas essas perguntas possam se resumir na questão colocada por Hall, “se o maior reconhecimento da diferença e a maior igualdade e justiça para todos podem constituir um horizonte comum” (2006, p. 85). A formulação de uma resposta pode ser dada por Bhabha, ao falar da negociação: “quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios (...)” (BHABHA, 2007, p. 51). Ou seja, ambos os mecanismos podem operar de forma articulada, ora valorizando uma demanda por igualdade, ora dando ênfase as questões da diferença, variando de acordo com o contexto político-social. As políticas elaboradas pelo Estado, de fato não são suficientes como atendimento e/ ou contenção de uma demanda, visto que as demandas são muitas e estão em constantes transformações, por isso, elas estarão representando o interesse de uma parcela da sociedade, e não da sociedade como um todo, além de estarem, por outro lado, em constantes defasagens com a necessidade dinâmica dos grupos, em contraposição aos processos burocráticos do Estado. Dessa forma, se faz ainda mais importante a articulação de grupos e redes com a intenção tanto de pressionar o governo por formulações de políticas culturais que lhes atendam, quanto de formular a partir de suas próprias demandas e ações em seus territórios políticas públicas de cultura. José Joaquín Brunner (1985) sugere que a cultura seja pensada como uma constelação móvel e fluida de circuitos, em que interviriam seus agentes de produção simbólica, públicos e instâncias organizacionais, que ele define como o mercado, a administração pública e a comunidade. Nessa perspectiva, novamente, não há como falar em política sem entender que essas diferentes instâncias serão acionadas pelos agentes de acordo com o contexto situacional de um dado momento. 2. REDE DE MUSEOLOGIA SOCIAL DO RJ A museologia social diz respeito aos movimentos e iniciativas de valorização da memória e dos patrimônios materiais e imateriais das comunidades, vinculados aos territórios lo-

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calizados de forma geral em bairros periféricos, favelas, áreas rurais e ribeirinhas. Essa ideia corrobora o processo de autonomia e resistência das comunidades frente a uma cultura/memória oficial imposta, na qual estas não se veem representadas. É a memória da comunidade que está em jogo, a memória (re)construída pela coletividade. A museologia social diz respeito às iniciativas desenvolvidas por e para as comunidades, que conjugam o despertar para a consciência patrimonial, para orgulho de si, dos saberes e fazeres, ligados ao território, e ao trabalho sócio-cultural que multiplica potenciais. Identidade e pertencimento são palavras-chave dessas iniciativas. Nesse sentido, o primeiro movimento da Rede, ainda com outro nome 2, foi iniciado em 2007, tendo tido apenas três encontros naquele momento. Em 2013, a articulação em rede para tratar da museologia social é retomada por gestores de espaços ligados à memória de base comunitária, museólogos, produtores culturais, pesquisadores e interessados pelo tema, conforme fragmento abaixo: A reunião de retomada da Rede foi realizada em outubro de 2013 no Museu da República (IBRAM/MinC). O chamado para este dia foi feito por e para diferentes pessoas cuja contribuição pessoal e profissional (em razão de suas experiências singulares) e também institucional (em razão das instituições por quem falam) são indispensáveis à Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. No decorrer das reuniões, estão presentes grupos, instituições e processos que associam o seu fazer à museologia social. Também participam representantes de instituições e instâncias públicas da cultura e da museologia, como o Sistema Estadual de Museus (SIM-RJ/SECRJ) e o Curso de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), além de pesquisadores de diferentes áreas (JANUÁRIO e SILVA, 2014, p. 416). O trecho abaixo foi retirado do facebook da Rede em 2015: Ela tem como objetivo promover a conexão e a troca de experiências entre comunidades populares, movimentos sociais e instituições que atuam no campo da memória, patrimônio e cultura. Surge com o intuito de potencializar a memória como fator de inclusão e transformação social, integrando e dando voz às diversas iniciativas e narrativas históricas que compõem o Rio de Janeiro.3 Dessa forma, a Rede de Museologia Social do RJ passa a realizar encontros bimestrais para debater diversas questões relacionadas à museologia social e à consolidação de políticas neste campo. Os encontros são itinerantes, possibilitando que os espaços pertencentes à rede se conheçam, apresentem suas ações e dialoguem, além de confirmar uma perspectiva importante para a Rede de descentralização política, econômica e geográfica. Sua formação e articulação já 2

Cujo blog é: http://redemuseusmemoriaemovimentossociais.blogspot.com.br/ Ver: https://www.facebook.com/groups/212231862288591/

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indicam o fortalecimento dessas iniciativas, imprescindíveis para a consolidação de uma política de direito à memória das comunidades. 2.1. Intercâmbios A Rede participou da Teia Estadual de Cultura, que é o encontro dos pontos de cultura do estado, em dezembro de 2013 na região serrana do RJ. Participou da Teia Nacional da Diversidade, que é o encontro nacional dos pontos de cultura, em maio de 2014, em Natal (RN); e da Teia da Memória, que integra a programação do Fórum Nacional de Museus, realizado em novembro de 2014 em Belém do Pará. Ainda em 2014, participou da mesa redonda “Redes e Sistemas Articulados: gerando conexões”, no III Fórum Estadual de Museus – primeiro evento em que estive presente, ainda sem saber que a Rede seria meu objeto de estudo no mestrado. Mais recentemente, em setembro de 2015, participou de um evento da Primavera de Museus, no Mulheres de Pedra, em Pedra de Guaratiba – espaço conhecido a partir de uma visita de alguns integrantes da Rede em iniciativas na zona oeste do RJ; e em outubro, participou do V Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários na UFJF, em Juiz de Fora – evento em que também estive presente. Algumas outras ações da Rede de Museologia Social são apontadas no trecho abaixo: A Rede concretamente já facilitou o intercâmbio de saberes e o desenvolvimento de iniciativas embrionárias, já se abriu para o diálogo com outras redes, dentro e fora do campo museal e ocasionou a construção de projetos que unem atores de diferentes lugares e iniciativas. Vale destacar que parte significativa de sua atuação também diz respeito às políticas públicas de cultura. Um exemplo disso é o diálogo constante com o Fórum de Pontos de Cultura do Estado do Rio (que é a rede estadual dos pontos de cultura) (...) (JANUÁRIO e SILVA, 2014, p. 417). Cada encontro da Rede já é em si um intercâmbio. O processo de retomada da Rede com o primeiro encontro em outubro de 2013, teve como inspiração a Rede Cearense de Museus Comunitários4, devido a sua experiência anterior. Declaradamente, a Rede estimulou o surgimento da Rede SP de Memória e Museologia Social 5, criada em 2014, após o intercâmbio entre integrantes da rede de São Paulo, em visita no encontro da rede do Rio de Janeiro. E ainda, em agosto de 2014, a Rede de Museologia Social do RJ realizou um encontro em Cachoeiras de Macacu (RJ), fortalecendo a ideia de criação do Museu da Umbanda, já existente naquela localidade. Hoje, o projeto é conhecido como Território Sagrado de Boca do Mato. Segue o depoimento de Wellington Lyra, postado em 16 de abril de 2015 no facebook da Rede: A visita da Rede de Museologia ao bairro sagrado de Boca do Mato no ano passado gerou bons frutos, e o terreiro Ilê Axé Omin incorporou a 4

Ver: https://museuscomunitarios.wordpress.com/ Ver: https://redespmuseologiasocial.wordpress.com/

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nomenclatura sugerida pelo Mário de Souza Chagas, gerando este vídeo produzido pelo cineasta Pedro Paulo Rosa (...). Outra ação de desdobramento – esta mais recente – é um mapeamento que faremos em Cachoeiras de Macacu de todas as casas religiosas da cidade (iniciando este mês pelas casas de matriz africana e indígena) com a ajuda do Projeto INCID (indicadores de cidadania), do Ibase, que vai gerar um “Mapa da Fé” na cidade, todo georreferenciado com GPS. Valeu Rede, vocês são demais! A Rede de Museologia Social do RJ, portanto, é um movimento político, no qual questões relacionadas ao direito à memória das comunidades são constantemente colocadas em pauta. Aliás, é essa pauta que perpassa as reuniões e os encontros da Rede; as possibilidades de visibilidade e viabilidade dessas iniciativas museais de memória, imbricadas no território em que vivem as comunidades. O próprio intercâmbio realizado nos encontros da Rede é um ato político na medida em que afirma a importância da museologia social enquanto prática. Ali, além de serem valorizados os saberes e fazeres daquela comunidade, são colocadas as dificuldades da iniciativa, principalmente em se manter, bem como as formas encontradas de resistir. Na verdade, o existir no contexto da museologia social já é por si só resistir. 2.2. Institucionalização No tópico anterior foi possível observar que a Rede participa de intercâmbios e eventos institucionais desde o início de sua criação, possibilitando também o estabelecimento de parcerias com diferentes instâncias de governo. Dessa forma, não seria precipitado afirmar que formas diversas de institucionalização vem ocorrendo desde o início, – inclusive a própria formação da Rede pode ser considerada um tipo de institucionalização – apesar dessa questão ser colocada objetivamente pela Rede através da discussão do CNPJ, conforme analisado abaixo. Nesse processo de pactuação e consolidação da Rede, alguns temas são recorrentes. Destaco a escolha pela institucionalização ou não através de um CNPJ próprio da Rede e a questão da captação de recursos, tratada a seguir. O que se coloca em relação a isso é que, por um lado, seria positivo, já que em alguns editais de fomento à cultura essa formalização é facilitadora; mas por outro lado, seria preciso assumir o pagamento de impostos e de um contador para tal. Essa é uma questão ainda controversa, pois a Rede não dispõe de recursos financeiros. Ao mesmo tempo, entende-se que ela, de certa maneira, se institucionaliza na medida em que alguns de seus membros possuem CNPJ ou estão em vias de possuir. Além da participação, conforme mencionado, de representantes de instituições públicas de cultura e museologia. Assim, uma das integrantes da Rede é assessora do Sistema Estadual de Museus, da Superintendência de Museus da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Através dela, a Rede (REMUS-RJ) foi convidada a participar do I Encontro de Redes do Estado, juntamente com

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a Rede de Acessibilidade em Museus (RAM-RJ) e a Rede de Educadores em Museus (REM-RJ), que aconteceu em setembro de 2015 – evento em que estive presente, participando da construção do documento final. Esse é um exemplo importante, e que por isso deixei para tratar aqui. De acordo com a divulgação do encontro, o objetivo era “ampliar o diálogo entre órgãos e movimentos de museus, realizar importantes trocas de experiências e promover a interiorização dos debates ocorridos nas redes, numa parceria que leve informação, formação e eventos para museus de todo o Estado”, através da colaboração entre as redes e entre as redes e o Estado. Para firmar essa colaboração, ao final do encontro foi feito um documento em conjunto que destacava as propostas e necessidades das redes frente à Superintendência de Museus e a oferta em apoio à mesma. Para isso, as redes se dividiram em três grupos, formulando cada um o seu documento. Posteriormente, compilaram-se os três documentos em um, unindo o que era comum às redes e especificando o que era importante para cada grupo. Ficou claro que para a Superintendente de Museus o ideal era que o documento fosse elaborado com proposições gerais e comuns as três redes, ao mesmo tempo em que cada rede insistia em destacar questões específicas, que atendessem às necessidades de cada um dos grupos. Dessa forma, alguns pontos foram colocados como comuns e outros destacados como específicos. Esse exemplo é importante à medida que possibilita o entendimento sobre quão delicado é formular políticas públicas de cultura que contemplem todos os grupos culturais, nesse caso, do Estado. Mesmo com um grupo relativamente pequeno, – representantes de três redes e alguns interessados nos assuntos discutidos – com um tema em comum: museus; as especificidades de cada grupo acabavam por exigir diferentes aspectos na redação do documento para que todos se sentissem representados. No caso da Museologia Social a especificidade que se espera que seja levada em consideração é que não se trata de uma rede de museus oficiais do Estado, mantidos por ele, mas de uma museologia que tem ainda mais dificuldade de dar continuidade em suas ações, pautada nos movimentos e iniciativas da sociedade civil que reivindicam seu direito à voz, no que diz respeito às suas memórias, histórias e patrimônios culturais. A ideia é que esse documento e suas demandas sejam considerados no Plano Estadual de Cultura, conforme mencionado pela Superintendência de Museus durante o encontro. Para isso, foi proposto que uma nova reunião fosse realizada em janeiro ou fevereiro de 2016, e que o Encontro de Redes se tornasse um evento anual realizado por esta Superintendência. Percebe-se assim, que a questão da institucionalização é muito mais ampla do que parece a priori. O que se dá, são graus diversos de institucionalização de acordo com a demanda situacional do grupo. Isso porque o jogo dialético com o poder público acaba se fazendo necessário, tanto pela questão do direito à representatividade – a exemplo do encontro de redes, de pontos de cultura e de museus comunitários – quanto pela questão dos recursos.

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Essa dialética não está dada, por isso não é sempre harmônica ou estável. Ela varia de acordo com o que está em jogo; isso implica dizer que essa relação é mediada também por conflitos. O trajeto percorrido e os caminhos que vão se costurando dependem dessa dialética que se estabelece nas relações dos integrantes da Rede, no interior dos próprios movimentos museais, ou seja, o jogo político se dá também no microcosmos dessas iniciativas. 2.3. Captação de Recursos Passo agora para a questão dos recursos, que será analisada através de dois processos iniciados pela Rede em 2015; o projeto para o edital Cultura de Redes do Ministério da Cultura e os projetos para as Emendas Parlamentares dos deputados federais do psol Chico Alencar e da rede Alessandro Molon. Tanto para o edital quanto para as emendas – projetos nos quais participei já que fazia parte do grupo de articulação da Rede – mesmo que em proporções orçamentárias diferentes, o objetivo era que o recurso fosse usado para ações como: oficinas e cursos referentes ao temas da museologia social e de elaboração de projetos, exposições itinerantes, premiações em dinheiro, um seminário internacional sobre museologia social, intercâmbios, mapeamentos/diagnósticos acerca das iniciativas da Rede e outras que pudessem se juntar a ela, chamadas públicas para fomentar o desenvolvimento de movimentos da museologia social ainda embrionários, consultorias contábil, de inventário participativo, etc. No caso do referido edital, a Rede de Museologia Social concorreu na categoria local, sem CNPJ. Essa categoria possibilitava que “coletivos artísticos”, termo proposto pelo edital, sem CNPJ, participassem através do CPF de um dos integrantes de algum movimento da Rede. Ela, de alguma maneira, assume sua condição não institucionalizada em um CNPJ, já que também poderia ter concorrido como “entidade cultural”, termo utilizado no edital, através do CNPJ de alguma instituição da Rede que o tivesse. Além de optar pela facilidade em relação ao envio de documentos proporcionada por essa escolha. A Rede foi classificada em 53º lugar entre 215 coletivos classificados nesta categoria, o que não garante o prêmio, já que segundo o edital, apenas os vinte primeiros lugares seriam beneficiados com o recurso. Constam no roteiro de entrevista que escrevi para a pesquisa de campo, a ser iniciada no começo de 2016, perguntas sobre a satisfação em relação à inscrição dos projetos no edital e nas emendas parlamentares. Sobre este aspecto, me interessa saber principalmente o que os grupos pensam sobre a vinculação político-ideológica dos deputados para os quais os projetos das emendas parlamentares foram propostos, e antes, o que pensam sobre a articulação da Rede com uma política partidária. Não houve uma discussão direta sobre este assunto, e essa preocu-

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pação também não apareceu em nenhuma das reuniões que se realizou para conversar a respeito dos projetos para as emendas. A possibilidade de recursos a partir das emendas parlamentares surge através de uma conversa em um dos encontros da Rede. Assim, uma das participantes menciona conhecer os dois deputados citados e a assessoria de um deles e em seguida aciona esses contatos. Ambos se disponibilizam a conhecer a proposta para a emenda. Dessa forma, dois projetos são escritos com o intuito de apresentar a Rede de Museologia Social do RJ, com a descrição de sua história, seus integrantes e parceiros, sua missão, meta para 2016, as ações a serem realizadas e um demonstrativo básico de desembolso. Provavelmente, a resposta sobre aprovação das propostas só será dada no início de 2016, até lá o grupo de articulação segue se encontrando para discutir questões referentes a esses projetos. Independente dos resultados acerca dos processos empreendidos para a captação de recursos é importante mencionar que as ações aqui relatadas foram as primeiras na tentativa de viabilizar algumas atividades de forma regular e sistemática, características importantes para a elaboração de políticas de cultura. Ainda que a captação de recursos traga a possibilidade de novas atividades e ampliação da Rede é fundamental que continuem a ser valorizados os saberes e fazeres das comunidades dos movimentos e iniciativas de memória, os intercâmbios e as trocas possibilitadas através dos encontros bimestrais da Rede. De acordo com o que já foi mencionado, esses deslocamentos para outros territórios e perspectivas diversas no âmbito da museologia social, é também uma questão política – de descentramento geográfico, econômico, ou seja, de encontro da alteridade. 3. CONCLUSÃO Através deste trabalho foi possível perceber quanto a museologia social está relacionada ao território. Pensar a identidade, a memória e o pertencimento dessas iniciativas e movimentos, na perspectiva processual e relacional a partir dos territórios, em sua dimensão não só física, mas simbólica e afetiva é fundamental para entender a criação desses museus comunitários, pontos de memória, ecomuseus e projetos de valorização da memória e da história dessas comunidades. É essencial compreender que a política cultural vai além de uma questão governamental, e que esta também precisa ser elaborada a partir desses diversos modos de fazer e dos saberes dos diferentes grupos e iniciativas, imbricados em seus territórios. Sem dúvida, os intercâmbios realizados pela Rede são um importante exemplo disso, já que um aspecto da política cultural diz respeito aos movimentos da sociedade civil, que se agregam para realizar suas demandas, cobrar do Estado iniciativas que contemplem suas necessidades, etc.

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Com o acompanhamento da Rede de Museologia do RJ é possível perceber como ambas as formas de política – governamental ou não – estão intrincadas e são acionadas de acordo com o contexto e o que se busca alcançar, em um dado momento. Mesmo que a Rede não tenha optado até aqui pela criação de um CNPJ, outros aspectos acabam por indicar que existem diferentes graus de institucionalização, que também são acionados dependendo das situações que vão sendo apresentadas. Nesse sentido, não acredito que o potencial da luta por direitos mais abrangentes seja anulado conforme o grau de institucionalização do grupo, posto que, se a institucionalização é uma questão situacional que vai sendo constantemente reconfigurada, ela depende do trajeto que vai sendo construído, ou seja, não está dada a priori. E este trajeto pode ser inclusive na direção de cobranças mais contundentes perante as políticas do Estado, caso estas não estejam atendendo aos interesses dos grupos. O importante aqui talvez seja colocar os objetivos da museologia social e, portanto, da Rede em favor do direito que esses grupos têm de existir/(re)existir de forma a terem suas memórias valorizadas. E claro que isso implica em disputas e conflitos; entre a necessidade de enquadramento da diversidade existente pelo Estado e a luta de cada grupo e/ou rede por representatividade e o reconhecimento de suas especificidades, como foi visto; e ainda, entre e dentro dos próprios grupos, que mesmo com objetivos comuns também apresentam interesses concorrenciais. Além disso, a formação de redes afins por todo o país pressiona o poder público a se abrir ao diálogo a essas representações. Daí a importância dos encontros, dos intercâmbios, das trocas, que fortalecem as iniciativas e dão fôlego para que os trabalhos continuem, apesar das dificuldades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBALHO, Alexandre. O papel da política e da cultura nas cidades contemporâneas. In: Políticas Culturais em Revista, 2 (2), p. 1-3, 2009. Disponível em: www.politicasculturaisemrevista.ufba.br BARBALHO, Alexandre. Política cultural. In: RUBIM, Linda (org.). Organização e Produção da Cultura. Salvador: EDUFBA; FACOM/CULT, 2005. BHABHA, Homi k. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. BRUNNER, José Joaquín. La cultura como objeto de políticas. In: Material de Discusión (Chile). FLACSO. N. 74. FLACSO-Chile, 1985. HAESBAERT, Rogério e LIMONAD, Ester. O território em tempos de globalização. In: Revista Etc, espaço, tempo e crítica. N° 2 (4), vol. 1, 2007a. Disponível em: http://www.uff.br/etc/UPLOADs/etc%20 2007_2_4.pdf HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

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JANUÁRIO, R. e SILVA, R. M. Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro. In: Revista Cadernos do CEOM - Ano 27, n. 41 - Museologia Social. Santa Catarina: Unochapecó, 2014. Disponível em: https:// bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc/issue/view/168 SOUZA, Marcelo José Lopes de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, Iná, GOMES, Paulo C. e CORRÊA, Roberto (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

LINKS CONSULTADOS http://redemuseusmemoriaemovimentossociais.blogspot.com.br/ (Acesso em: fevereiro/2014). https://www.facebook.com/groups/212231862288591/ (Acesso em: janeiro/2015). https://museuscomunitarios.wordpress.com/ (Acesso em: setembro/2015). https://redespmuseologiasocial.wordpress.com/ (Acesso em: setembro/2015).

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA E A POTENCIALIZAÇÃO DE PRÁTICAS ARTÍSTICOS-CULTURAIS PERIFÉRICAS NO ESPAÇO URBANO DO RIO DE JANEIRO Juliana Lopes1 RESUMO: Este trabalho pretende refletir sobre a potencialização das práticas artísticos-culturais periféricas da sociedade civil na cidade do Rio de Janeiro pelas políticas públicas de cultura nos séculos XX e XXI. Atuantes nas margens geográficas e sociais da cidade e com concepções políticas e cidadãs próprias, tais práticas alcançam visibilidade e ampliam sua capacidade de ação na cena pública carioca, contribuindo para a ressignificação do espaço urbano do Rio de Janeiro, por meio da ativação de novas redes simbólicas, sociabilidades e imaginários. PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas de cultura, práticas artísticos-culturais, sociedade civil, periferia, Rio de Janeiro.

1. INTRODUÇÃO De acordo com os princípios da Agenda 21 da Cultura2, as cidades são territórios privilegiados da elaboração cultural e constituem os âmbitos da diversidade criativa, onde a perspectiva do encontro de tudo aquilo que é diferente e distinto torna possível o desenvolvimento humano e integral. Esta convivência nas cidades implicaria em um acordo de responsabilidade conjunta entre Estado e sociedade civil (Agenda 21 da Cultura, 2004,). HARVEY (2014), aponta que o termo “cidade” tem uma história icônica e simbólica profundamente inserida na busca de significados políticos. Reconhecendo no urbano uma multiplicidade de práticas prestes a transbordar de possibilidades alternativas, de acordo com a perspectiva de Lafebvre. Nos últimos 25 anos (19990-2015), o espaço urbano do Rio de Janeiro, vendo sendo ressigificado por práticas artísticos-culturais, sobretudo em territórios e comunidades periféricas, Doutoranda em Comunicação e Cultura na linha de pesquisa mídia e mediações socioculturais no Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: juliana.culturarj@ gmail.com. 2 A Agenda 21 da cultura foi aprovada no dia 8 de maio 2004, em Barcelona, pelo IV Fórum de Autoridades Locais pela Inclusão Social de Porto Alegre, no marco do primeiro Fórum Universal das Culturas. Aprovada por cidades e governos locais de todo o mundo comprometidos com os direitos humanos, a diversidade cultural, a sustentabilidade, a democracia participativa. Documento disponível em: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br. 1

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promovendo experiências sensíveis (RANCIÉRE, 2009). Ao longo deste período, territórios e mapas, são revelados na cidade em meio a seus conflitos e tensões sociais por meio de iniciativas da sociedade civil no campo da arte e da cultura com forte vínculo comunitário e relação estreita com seus territórios de origem. Para RIBEIRO (2005,p.268), “o que vem ocorrendo é uma crescente aproximação entre política e território usado (Santos, 1999); entre práticas sociais e praxis; entre cultura e cultura política; entre saberes tradicionais e educação política, como força dos que resistem”. Por meio de um panorama, da década de 90 até os tempos atuais, este trabalho pretende refletir sobre a potencialização das práticas artísticos-culturais periféricas da sociedade civil na cidade do Rio de Janeiro pelas políticas públicas de cultura nos séculos XX e XXI. Atuantes nas margens geográficas e sociais da cidade e com concepções políticas e cidadãs próprias, tais práticas alcançam visibilidade e ampliam sua capacidade de ação na cena pública carioca, contribuindo para a ressignificação do espaço urbano do Rio de Janeiro, por meio da ativação de novas redes simbólicas, sociabilidades e imaginários. Na primeira parte do trabalho abordamos o contexto político e social do Rio de Janeiro, na década de 90, marcado pela representação da “cidade partida” pelos meios de comunicação tradicionais e o protagonismo das ONGs com iniciativas no campo da arte e da cultura na marca da “democratização do acesso” e da “inclusão social” tendo como público alvo crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Na década seguinte, 2000-2010, amplia-se a visibilidade e a participação política, social e cultural de ONGs, agentes, grupos artísticos, redes e artistas de territórios periféricos da cidade do Rio de Janeiro. Tais atores afirmam-se no espaço urbano como novos produtores e mediadores de cultura, por meio da operação de novos conceitos e práticas em torno da inventividade e da criatividade, operando fluxos culturais em busca de desconstruir estereótipos e imaginários estigmatizantes. Na segunda parte do trabalho analisamos a centralidade da cultura (HALL,1997) e a cultura como recurso (YÚDICE, 2004) nas políticas públicas dos anos 20003, na interface com a vida social. Partimos do pressuposto de que as políticas públicas deste período ao adotar o conceito alargado de cultura - antropológico e incorporar abordagens em torno da diversidade e da cidadania, ampliam e potencializam a atuação de grupos, práticas, manifestações e expressões artísticas e culturais até então historicamente pouco ou nada contempladas, gerando novas ambiências e experiências nas cidades brasileiras. Por último, abordamos o contexto urbano contemporâneo do Rio de Janeiro, no mote dos “Megaeventos”, como a Copa do Mundo (2014) e os Jogos Olímpicos (2016). Buscamos analisar, a partir das manifestações de 2013, uma nova geração de práticas artísticos-culturais desenGestão de Gilberto Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010) no mandato do Presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010).

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volvidas por grupos e/ou coletivos de jovens em espaços públicos, que por meio de novas formas de organização, no “espaço híbrido do urbano e da internet” (CASTELLS, 2013), ativam novas sociabilidades e imaginários. Por último busca-se compreender a importância do Prêmio Ações Locais, da Prefeitura do Rio de Janeiro, como uma política inovadora ao reconhecer e fomentar uma nova cena de atores e práticas artísticos-culturais periféricas, no marco de uma cultura 2.0, construindo a passagem no âmbito das interações do Estado com a sociedade civil, da mediação das ONGs para o reconhecimento e fomento de agentes culturais não-institucionalizados. 2. DA INCLUSÃO SOCIAL À CHAVE DA INVENTIVIDADE E CRIATIVIDADE DA PERIFERIA Na década de 90, o Rio de Janeiro encarna a representação da “cidade partida”, ancorada no dualismo morro e asfalto. Nos meios de comunicação tradicionais, notícias e imagens “sobre as galeras de rua, quebra-quebras, “grupos ligados ao narcotráfico, meninos de rua”, “chacinas” (ANSEL,2013,p.67); (HERSCHMANN,2005,p.39), contribuem para o imaginário de uma cidade perigosa ou em guerra instaurando a cultura do medo. Três episódios principais, com grande destaque na mídia, contribuíram diretamente para esta representação: o assassinato de 11 jovens moradores da favela de Acari em junho de 1990, a execução de 7 crianças e adolescentes que dormiam em frente a Igreja da Candelária em julho de 1993 e a chacina de 21 pessoas na favela de Vigário Geral em agosto de 1993. Nos três eventos, policiais militares foram acusados e julgados pelos crimes. Frente a este contexto e de uma profunda estigmatização das margens geográficas e sociais da cidade - favelas, subúrbios e periferias - e de seus moradores, as ONGs protagonizam a reinvenção do campo da produção cultural, através das diferentes linguagens da arte como o teatro, a música, a dança, as artes visuais e o cinema pelo viés da formação artístico-cultural não formal com forte vínculo comunitário, voltada especialmente para crianças e jovens. De forma geral, tais organizações, destacam-se por ter entre seus objetivos a promoção do acesso à arte e à cultura, bem como a da inclusão social e à cidadania como forma de combater desigualdades; a formação de uma rede de proteção social e a garantia de direitos a partir da noção de desenvolvimento humano relacionada à inclusão do público de suas atividades em um conjunto de possibilidades e oportunidades de diferentes ordens (sociais, econômicas, política, cidadãs etc). A interação do Estado com a sociedade civil no Brasil ganha contornos após o fim do regime militar, em especial a partir da Constituição de 1988, favorecendo o surgimento das organizações não-governamentais (ONGs). Sem fins lucrativos, com recursos públicos e/ou privados, tais organizações, desenvolvem atividades em áreas como educação, meio ambiente, saúde, assistência social, cultura, direitos de minorias. Neste cenário contemporâneo, de acordo com Reis (2013,p.8), “ganha espaço a ideia segundo a qual novos atores sociais entram em cena”. A

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própria sociedade passa a ser vista como um tipo de recurso para a organização da vida coletiva, além do Estado e do mercado. Tanto em nível global, como no contexto brasileiro. Organizações como o Nós do Morro (Vidigal), Afroreggae (Vigário Geral), Central Única das Favelas – CUFA (Cidade de Deus) e Cia. Étnica de Dança (Andaraí) protagonizaram no Rio de Janeiro práticas artísticos-culturais na intersecção entre arte, cultura e cidadania em territórios periféricos da cidade. Ramos (2007) qualifica a emergência do que denomina de “grupos de jovens de favelas e periferias ligados a iniciativas de cultura e arte” como um acontecimento marcante na cena política brasileira e carioca dos anos 90. De acordo com a autora seria possível identificar alguns aspectos comuns a estas iniciativas: o investimento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida, valorizando o campo simbólico da subjetividade por meio da formação de artistas e líderes que são dançarinos, cineastas, atores, escritores e músicos e que ocupam a mídia como artistas e ativistas; a afirmação territorial por meio de músicas, camisetas, roupas, grafites com imagens associativas aos nomes das comunidades de origem e a forte presença da denúncia do racismo e a afirmação racial negra. Na década seguinte (2000-2010) observa-se progressivamente, o crescimento da visibilidade e da participação política, social e cultural de ONGs, agentes, grupos artísticos, redes e artistas de territórios periféricos da cidade do Rio de Janeiro. Nesta cena cultural urbana, emergem conceitos e práticas que operam um deslocamento dos sentidos historicamente atribuídos à periferia como território de pobreza, violência, ausência e aos seus moradores como carentes e excluídos. Na esfera do discurso e da prática, os territórios de periferias e seus moradores passam a ser enunciados por alguns de seus atores como potentes e criativos, em uma busca de inversão de estereótipos e imaginários estigmatizantes. Pela chave da inventividade e da criatividade novas narrativas, arranjos locais e fluxos de conhecimento buscam provocar deslocamentos e atravessamentos na produção das subjetividades na dimensão espacial do cotidiano (Santos, 2008). Binho Cultura, é poeta, escritor e produtor cultural. Morador da Vila Aliança4 e idealizador do Festival Literário da Zona Oeste – FLIZO, aponta a “potência e uma demanda artística” da região e a necessidade de se fomentar o que chama de um “contra fluxo cultural” do eixo centro-zona sul da cidade. A FLIZO, se apresenta como um “projeto de valorização da produção cultural da Zona Oeste carioca com ações de fomento à leitura, à criação literária e discussões de temas que convergem as questões da vida urbana, do fazer da arte e do exercício da educação A Vila Aliança foi formada por moradores que vieram do Morro do Pasmado, Praia do Pinto, Favela do Esqueleto, Brás de Pina e Penha, áreas valorizadas pela especulação imobiliária, no contexto das remoções do Governo Lacerda nos anos 60, sendo o primeiro conjunto habitacional da América Latina. É considerada uma das áreas com o mais baixo índice de desenvolvimento humano do Rio de Janeiro e uma das favelas mais violentas da cidade, alvo de operações policiais constantes com o objetivo de reprimir o tráfico de drogas. (Fonte: Entrevista com Binho Cultura, concedida a autora no dia 09/06/2015). 4

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libertária”5. O evento é realizado há três anos em um complexo de 40 bairros, mobilizando um conjunto de artistas da região e de outras áreas da cidade em diálogo com professores e estudantes das escolas públicas. Ocupa equipamentos educacionais, culturais e espaços públicos como escolas, universidades, clubes, praças. O objetivo principal seria inserir a Zona Oeste no mapa cultural da cidade. Descobrimos mais de 200 autores, artistas de renome e alguns premiados internacionalmente e começamos a chamar a atenção que se Ipanema e Copacabana tinham Vinícius de Moraes e Tom Jobim, nós temos o José Mauro Vasconcelos do Meu Pé de Laranja Lima, o Avelino que é autor de Boemia, o compositor mais gravado pelo Nelson Cavaquinho que mora em Campo Grande. Porque a nossa região estava fora do eixo de cultura. Aí eu começo a entender uma outra questão... o poder público não investia porque achava que não tinha demanda. A gente só tem dois teatros públicos. O Artur Azevedo em Campo Grande e o Mário Lago em Vila Kenedy que a Secretaria de Estado de Cultura passou para a comunidade. A gente não tem uma Biblioteca Parque. E isto eu não estou falando de bairro não, eu estou falando de uma zona oeste. 1/3 da população do Rio de Janeiro está aqui e a gente não tem estes equipamentos. Não tem hoje como falar de fazer cultura ignorando a existência da zona oeste e que existe uma potência e uma demanda artística. Quando você vem da Tijuca pra cá, quando o Abel Lobo vem do Leblon pra cá, a gente está propondo um contrafluxo cultural com uma programação de qualidade que faça valer a pena você sair da sua casa, pegar o trem, sabendo que se corre um risco de a qualquer momento acontecer um tiroteio. Mas você vai pensar que vai ter uma programação que vale a pena ir lá. Vale o risco. Porque a gente enfrenta este mesmo risco para fazer o fluxo natural, seguir o fluxo. Então a gente agora quer estimular o contrafluxo. A Flizo é um grande chamado para as pessoas virem a zona oeste. (Binho Cultura, entrevista concedida a autora em 09/06/2015, na Nave do Conhecimento da Vila Aliança) A partir da entrevista acima pode-se afirmar que os atores e as práticas artísticos-culturais periféricas do novo milênio legitimam-se na cena carioca cultural urbana como novos produtores e mediadores de cultura, construindo um circuito alternativo de produção, difusão e circulação artístico-cultural, formação de novas redes e alcançando visibilidade pública. Esta mediação não se daria como ponte ou como a figura do intermediário entre criadores e consumidores, mas sim na abolição das barreiras e das exclusões sociais e simbólicas e na valorização das experiências e das práticas diversificando as possibilidades e potências inventivas da produção cultural (MARTÍN-BARBERO: 2006, p. 34).

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Ver http://flizo.org/

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Para Heloísa Buarque de Hollanda (2004), a afirmação das vozes da periferia seria uma das emergentes tendências culturais nos anos 2000, apontando um rito de passagem da cultura à cidadania na cena carioca. Indo direto ao ponto das tendências culturais emergentes na década de 2000, não há como não ressaltar como principal fenômeno deste início de século XXI a afirmação das vozes da periferia urbana no mercado cultural. Pode-se dizer, sem hesitação, que o efeito “Cidade Partida” não caracteriza mais a cultura carioca. Como observa Paulo Lins, no lugar das favelas (antigos similares das senzalas) surgem as neofavelas (atuais similares dos quilombos) com voz própria, beleza própria, inserção no mercado cultural e alto poder agregador. Definir hoje a cultura do Rio de Janeiro é antes de mais nada imaginar estratégias e políticas culturais a partir desta rede de canais recém-abertos, das perspectivas efetivas de inclusão social que a nova cultura urbana carioca vem sinalizando e do sonho de estarmos assistindo ao inédito rito de passagem da cultura à cidadania. (HOLLANDA,2004) Seguindo a afirmação de Hollanda (2004), as políticas públicas de cultura da primeira década do novo milênio (2000-2010) parecem realizar o “rito da passagem da cultura à cidadania” ao reconhecer “rede de canais recém-abertos, das perspectivas efetivas de inclusão social” protagonizadas por atores da sociedade civil na sociedade brasileira. Por meio de novas abordagens e contornos e pela noção da cultura como expressão de diversidade e cidadania avança-se na construção de políticas públicas de maior cunho democrático permitindo a potencialização de práticas artísticos-culturais que até então tinham tido pouca ou nenhuma relação com o Estado. 3. A CENTRALIDADE DA CULTURA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS ANOS 2000 A centralidade da cultura nas sociedades contemporâneas tem sido problematizada como parte estruturante da vida social na dimensão do global, da vida local, cotidiana, da identidade e da subjetividade no lugar de tensões e disputas simbólicas e políticas em contextos complexos (Hall,1997). Assim, os estudos culturais trazem a noção do termo cultura como uma rede de significados preenchida de signos e símbolos onde todas as práticas sociais são preenchidas de significação ao expressar ou comunicar um significado: “Porque a cultura se encontra no centro de tantas discussões e debates, no presente momento? Em certo sentido, a cultura sempre foi importante. As ciências humanas e sociais há muito reconhecem isso. Nas humanidades, o estudo das linguagens, a literatura, as artes, as ideias filosóficas, os sistemas de crença morais e religiosos, constituíram o conteúdo fundamental, embora a ideia de que tudo isso compusesse um conjunto diferenciado de significados (uma cultura) não foi uma ideia tão comum como poderíamos supor. Nas ciências sociais, em particular na sociologia, o que se considera diferenciador da “ação social” (como um com-

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portamento que é distinto daquele que é parte da programação genética, biológica ou instintiva) é que ela requer e é relevante para o significado. Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesmas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas “culturas”. Contribuem para assegurar que toda ação social é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação.” (HALL: 1997, p. 02) Nas políticas públicas de cultura da primeira década do milênio (2003-2010)6, a cultura ganha a centralidade da vida social distanciando-se do slogan anterior “Cultura é um bom negócio”7. Adota-se o conceito de cultura alargado – antropológico – definido em três dimensões interdependentes: simbólica (relacionada ao imaginário, às expressões artísticas e práticas culturais), cidadã (a cultura como direito e importante em contextos de vulnerabilidade social) e econômica (cultura como economia, geradora de crescimento, emprego e renda); toda a sociedade brasileira passa a ser o público privilegiado das ações das políticas, não somente no lugar de público/consumidor de bens e serviços culturais, mas também no de criador. Observamos a retomada do papel ativo do Estado nas políticas públicas de cultura em busca da efetivação e da garantia dos direitos culturais. Ressalta-se também a criação de canais de participação popular nos processos de formulação daquelas políticas por meio de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade civil. Passam a ser realizados fóruns, seminários, conferências e consultas públicas convocando a participação de diferentes atores do campo artístico e cultural. Mais do que políticas culturais inéditas, começam a nascer então novas culturas políticas de acompanhamento e participação da sociedade civil na gestão da coisa pública (res publica) ( RUBIM, 2007, p.29). Ao adotar uma concepção ampliada do conceito de cultura e do fazer cultural na sociedade brasileira, as políticas públicas ampliam seu campo de atuação para além das linguagens artísticas tradicionais e passam a reconhecer e incorporar novas modalidades: as culturas populares, afro-brasileiras, indígenas, de gênero, de orientações sexuais, das periferias, da mídia, audiovisual, cultura digital etc. De acordo com BARBALHO (2007,p.52), a questão identitária Mandato do Presidente Luís Inácio Lula da Silva na Presidência da República e do músico Gilberto Gil (20032008) e do sociólogo Juca Ferreira (2008-2010) no Ministério da Cultura. 7 O slogan refere-se ao lema das políticas públicas de cultura na gestão do cientista político Francisco Weffort no mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). O slogan visava incentivar o investimento de empresas da iniciativa privada na cultura por meio de renúncia fiscal utilizando como mecanismo a Lei Federal de Incentivos à Cultura (Lei Rouanet). 6

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se pluraliza, sendo recorrente nos documentos e falas oficiais do governo o uso do plural de palavras como política, identidade e cultura: as políticas públicas, as identidades nacionais e as culturas brasileiras. A preocupação estaria em revelar os brasis, trabalhando com as múltiplas manifestações culturais, em suas variadas matrizes étnicas, religiosas, de gênero, regionais etc. Haveria neste momento uma preocupação com os setores historicamente pouco ou nada contemplados pelas políticas públicas anteriores. Neste âmbito, os conceitos de diversidade e cidadania apontam os rumos das políticas públicas deste período reconhecendo e potencializando a entrada em cena de novos atores e práticas sociais do campo artístico e cultural brasileiro para além de criadores relacionados estritamente às belas-artes. Do ponto de vista do gerenciamento, no ano de 2004, é criada a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural (SID), a fim de garantir o reconhecimento, a proteção e a promoção da diversidade cultural brasileira. No âmbito internacional o Ministério da Cultura atua ativamente para a aprovação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expresssões Culturais8 adotada pela Conferência Geral da Unesco, em 2005, e ratificada pelo Brasil em 2007. O documento estabelece direitos e obrigações para os países signatários, que devem compartilhar responsabilidades em nome da diversidade das expressões culturais. O conceito de cidadania passa a ser operado pelas políticas públicas na percepção da cultura como um direito e de relevância em territórios e contextos de vulnerabilidade social. Assim, para além do acesso aos bens e serviços culturais é necessário garantir o direito à produção, criação, difusão, circulação e participação nas decisões sobre a cultura (CHAUÍ, 2006). A reconfiguração da noção da política de acesso à cultura para às políticas de diversidade e cidadania é a chave para que os investimentos públicos passem a potencializar atores e suas práticas artísticas e culturais comunitárias, que tenham o território e o cotidiano como locus privilegiado das ações. Passe-se então a investir nas pessoas como produtoras de cultura e não em infraestrutura física. Neste sentido, o Programa Cultura Viva9, se torna um marco ao reconhecer e fortalecer organizações comunitárias (ONGs) com histórico de trabalho em seus territórios, os “Pontos de Cultura”. Ao reconhecer e valorizar o protagonismo da sociedade civil o programa aposta na reconfiguração de responsabilidades entre Estado e sociedade. Seguindo na linha dos estudos culturais, os usos da cultura, suas apropriações ou ressignificações realizadas pelas políticas públicas e pelos atores da sociedade civil, são relevantes Para saber mais sobre a Convenção ver: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf O Programa Cultura Viva foi criado em julho de 2004 pela Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura. Inicialmente foi composto por 4 linhas de ação principais: Pontos de Cultura, Escola Viva, Cultura Digital e Ação Griô Nacional. Opera por meio de conceitos como: autonomia, empoderamento, protagonismo e gestão em rede. Tem como público principal de suas ações: populações de baixa renda;, estudantes da rede básica de ensino, comunidades indígenas, rurais e quilombolas; agentes culturais, artistas, professores e militantes que desenvolvem ações em contextos de desigualdades e exclusões sociais e culturais. (Programa Cultura Viva – Programa Nacional de Arte, Educação, Cidadania e Economia Solidária. 3. ed. Brasília, Ministério da Cultura, 2004).

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para reflexão aqui proposta. Yúdice (2004), nos auxilia ao conceber a cultura como um recurso. O autor, ao debater o lugar que a cultura assume na sociedade contemporânea, aponta a legitimidade conferida a esta no auxílio à resolução de questões como “melhoria sociopolítica e crescimento econômico”, considerando um protagonismo atribuído a cultura, nunca antes visto nestas proporções. O que eu gostaria de frisar desde já é que a cultura está sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para aumentar sua participação nessa era de envolvimento político decadente, de conflitos acerca da cidadania (Young, 2000: 81120), e do surgimento daquilo que Jeremy Rifkin (2000) chamou de “capitalismo cultural. (YÚDICE: 2004, p.25) Podemos dizer que a cultura passa a ser vista sob o paradigma da associação de uma eficiência no tratamento aos territórios onde há “vulnerabilidades sociais”. Seja pelas políticas públicas ou pela sociedade civil, assim como nas interações entre estes dois atores, a cultura passa a ser ressignificada como ferramenta de justiça social, exercício da cidadania e desenvolvimento local. 4. A RESSIGNIFICAÇÃO CONTEMPORÂNEA DO ESPAÇO URBANO DO RIO DE JANEIRO: DO PORTO MARAVILHA ÀS AÇÕES LOCAIS A cidade do Rio de Janeiro passa atualmente por um importante processo de transformação urbana, no que tange a projetos de mobilidade e infraestrutura, tendo como mote a preparação da cidade para a realização dos “Megaeventos”, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. As obras em andamento têm gerado um grande transtorno no que tange a circulação na cidade, assim como tensões e conflitos sociais, como as remoções das casas de moradores em regiões que de acordo com o plano urbanístico afetariam a realização dos jogos. Alguns atores, como o Comitê Popular Rio - Copa e Olimpíadas, vêm denunciando publicamente o que na visão deles seria o “projeto excludente de cidade” imposto à população de acordo com o interesse de grandes corporações e com “legados sociais” questionáveis ( HERSCHMANN; FERNANDES, 2015, p.2). Sob o emblema “Rio Cidade Olímpica”, no conjunto das transformações urbanísticas conduzidas pela Prefeitura do Rio de Janeiro, o “Porto Maravilha10”, é o mais emblemático por realizar intervenções na área central da cidade, especialmente na zona portuária, em um processo denominado pela Prefeitura de “revitalização de áreas degradadas”. Tais intervenções englobam a demolição do Elevado da Perimetral, a reforma da Praça Mauá, a construção de túneis e De acordo com o site oficial do projeto, o “Porto Maravilha”tem por finalidade “promover a reestruturação local, por meio da ampliação, articulação e requalificação dos espaços públicos da região, visando à melhoria da qualidade de vida de seus atuais e futuros moradores e à sustentabilidade ambiental e socioeconômica na área portuária”. Disponível em: http://www.cidadeolimpica.com.br/porto-maravilha/.

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vias expressas, a reurbanização do Morro da Conceição, a construção de um Aquário Marinho e a construção de dois museus: o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã. Equipamentos culturais clássicos, como os museus, têm sido utilizados como estratégia de recuperação dos espaços públicos na reinvenção da imagem das cidades globalizadas. O Museu de Arte do Rio (MAR), inaugurado em 2013, de acordo com o seu site, busca por meio de suas exposições do acervo permanente e temporário e demais programações como seminários, encontros, debates, cursos, shows musicais e programa de educação “promover uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social, sua vida simbólica, conflitos, contradições, desafios e expectativas sociais11.” Analisando a programação do museu percebe-se a intenção do mesmo de se inserir e consolidar na vida social e cultural da cidade incorporando as tensões e conflitos dos quais marcaram a sua construção. Ativando canais de diálogo com diferentes públicos: moradores locais, acadêmicos, estudantes da rede pública, universitários, professores, artistas, mcs e bboys, o museu vem adotando diferentes estratégias a fim de se consolidar como um espaço central na cidade. Mais recentemente, em dezembro de 2015, foi inaugurado a poucos metros do MAR, na beira da Baía de Guanabara, o Museu do Amanhã que propõe fazer uma integração entre arte, ciência e tecnologia por meio de ambientes audiovisuais, interações e jogos. Com grande divulgação midiática, longas filas têm se formado para acesso do público aos conteúdos, desde da sua inauguração. A construção dos museus mencionados é compreendida pelo poder público municipal como uma ação de valorização do patrimônio histórico e promoção do desenvolvimento social e econômico da região por meio de projetos de grande impacto cultural. Canclini (2008), ao analisar três configurações imaginárias sobre o urbano destaca: as cidades do conhecimento (onde destaca-se o papel da informação, do saber e das comunicações), a do espetáculo e a do reconhecimento entre diferentes calcada em processos de migrações, multi e interculturalidade. Todavia para o autor, a questão que se coloca é se de fato haveria uma transformação da cidade mediante o conhecimento e a cultura ou se as cidades se convertem em espetáculo cultural sem a modificação de suas desordens estruturais. Estamos transformando as cidades mediante o conhecimento e a cultura ou convertemos as cidades em espetáculo cultural sem modificar as desordens estruturais? A espetacularização do social existe desde há séculos (missas, desfiles e outros ritos massivos), mas sua hipertrofia numa época de industrialização da cultura aumenta o risco de nos desviarmos da satisfação das necessidades sociais: no âmbito urbano a redução da cidade ao espetáculo se associa ao predomínio do marketing e à captação de investimentos sobre o sentido do social dos bens materiais e simbólicos.(CANCLINI, 2008, p. 19) 11

Ver: http://www.museudeartedorio.org.br/

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O autor aponta que nas últimas décadas na caracterização do urbano tem-se levado em consideração os processos culturais e os imaginários dos que habitam as cidades, onde além das explicações demográficas e socioeconômicas, os estudos urbanos atuais, dão lugar às representações culturais nas quais se manifestam a heterogeneidade e a complexidade social (Canclini, 2008, p. 16). Nesta heterogeneidade, grupos de artistas, ongs, intelectuais e experiências comunicacionais buscam reelaborar as relações entre conhecimento e vida urbana com orientações que tratam de ações conflitantes e do acesso desigual à cultura. O imaginário não seria considerado estritamente em sua dimensão simbólica, mas também como lugar de elaboração de insatisfações, desejo e busca de comunicação com os outros (Canclini, 2008, p.15;p.21). No mesmo contexto urbano contemporâneo do Rio de janeiro, no contraponto da construção de grandes equipamentos culturais clássicos em contextos de “revitalização urbana” e no marco das manifestações de 2013, é possível perceber uma nova geração de atores e práticas artísticos-culturais realizadas por grupos e/ou coletivos de jovens no espaço urbano carioca. Estas práticas, não-institucionalizadas, englobam um universo de saraus de poesia, rodas de rima, cineclubes, festas, ocupações e residências artísticas, rodas de funk e de hip-hop, apresentações teatrais e musicais. Realizadas em espaços públicos (ruas, parques, praças e viadutos) dos bairros do centro, da zona norte e da zona oeste da cidade, os eventos seriam um espécie de resposta destes grupos às insatisfações cotidianas com a cidade. Potencializados pela internet, mobilizam e comunicam suas iniciativas pelas redes sociais e canais alternativos de comunicação, em uma espécie de ativismo cultural. Uma característica marcante da atuação destes grupos e/ou coletivos é a atuação em rede em um “híbrido entre cibernética e espaço urbano” (Castells,2013). Para o autor este híbrido constitui um terceiro espaço, o da autonomia, como uma nova forma espacial dos movimentos em rede. Este híbrido de cibernética e espaço urbano constitui um terceiro espaço, a que dou nome de espaço da autonomia, porque só se pode garantir autonomia pela capacidade de se organizar no espaço livre das redes de comunicação; mas, ao mesmo tempo, ela pode ser exercida como força transformadora, desafiando a ordem institucional disciplinar, ao reclamar o espaço da cidade para seus cidadãos.(CASTELLS,2013, p.164-165). Todavia podemos mencionar um outro tipo de rede mobilizada por esta nova geração de práticas artísticos-culturais contemporâneas na dimensão da “potência estético-comunicativa” e da “ comunicação-comunhão de sentidos e significados compartilhados” (FERNANDES, 2009. Nesta perspectiva “a rede é tratada com um tipo de relação social, na perspectiva de que a interação, a troca, o sentido e o significado compartilhados por grupos de indivíduos representam metaforicamente uma teia relacional complexa” (FERNANDES, 2009, p.168). Na interface com as novas dinâmicas das práticas artísticos-culturais periféricas da cidade, o Prêmio Ações Locais – Rio 450 Anos, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de

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Janeiro, foi lançado em 2014, com o objetivo de mapear, reconhecer e fomentar iniciativas de cunho artístico e cultural não-formalizadas com reconhecido impacto local em suas comunidades. Anunciado como o “Ponto de Cultura 2.0”, tendo em vista a mudança do “proponente” das ONGS para iniciativas não-formalizadas de grupos ou pessoas físicas, o prêmio previa um recorte geográfico e territorial prioritário com vistas a contemplar um maior número de iniciativas nos bairros da zona norte e oeste, visando uma maior descentralização de recursos públicos pela cidade e de ativar canais de diálogo e comunicação com atores até então a margem das políticas públicas muncipais. O prêmio recebeu 882 inscrições, sendo 610 “chanceladas12” e 85 iniciativas premiadas no valor de R$40.000,00. Em reportagem do Jornal O Globo, intitulada “Cultura na Raça”13, em uma referência às práticas artísticos-culturais “invisíveis” e/ou sem qualquer apoio financeiro, as iniciativas chanceladas e contempladas pelo prêmio foram “plotadas” em um mapa da cidade do Rio de Janeiro, a fim de visibilizar a distribuição espacial das iniciativas na cidade. Das 610 iniciativas, 163 são da zona norte, 28 de Bangu, 14 do Complexo da Maré, 25 da Rocinha, de 11 a 20 em Santa Cruz, Senador Carmará, Vargem Grande, Realengo e Cidade de Deus, de 2 a 10 na Pavuna, Vigário Geral, Complexo do Alemão, Ilha do Governador, Madureira. Do ponto de vista do conteúdo das iniciativas é possível perceber um conjunto bem diversificado: (...) Há cineclubes, saraus, grupos de teatro e bibliotecas comunitárias; oficinas de artes visuais, de DJ e de dança afro; festivais de hip-hop, de circo e de rock; rodas de rima, de samba e de capoeira; batalhas de barbeiros e encontros de praticantes de bambolê; aulas de forró, de escultura em areia, de grafite. Dos mais inusitados, estão no mapa a Escola de Blogueiros no Jacarezinho, a Oficina de Danças Circulares para idosos no Catete e um borboletário em Senador Camará, com exposição das espécies de borboletas encontradas no bairro. (Reportagem do Jornal O Globo, “Cultura na Raça”, de 30/05/2015). A partir desta nova geração de atores e práticas artísticos-culturais perifeŕicas é possível pensarmos na ação política de sujeitos sociais por meio de híbridos institucionais (RIBEIRO, 2005). Os sujeitos sociais e a ação política apresentam, agora, maior complexidade, confrontando paradigmas que orientaram, até há pouco tempo, os projetos de transformação social. Estes sujeitos propõem novos híbridos institucionais, atuam em várias escalas, exigem a releitura do Estado, defendem diferentes sentidos de nação, rejuvenescem tradições e impedem a sua completa absorção em instituições da modernidade. Nas paAs iniciativas chanceladas foram reconhecidas pela Prefeitura por meio de um documento oficial, valorizando a importância da iniciativa na cena cultura urbana da cidade. A ideia seria também a de facilitar a inscrição dos projetos “chancelados” em outros mecanismos de fomento da prefeitura. 13 Reportagem publicada em 30/05/2015, no Jornal O Globo. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/o-mapa-da-cultura-carioca-feita-na-raca-16305108 12

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lavras de Milton Santos: “A partir dessas metamorfoses, pode-se pensar na produção local de um entendimento progressivo do mundo e do lugar, com a produção culturais, que são também territoriais”indígena de imagens, discursos, filosofias junto à elaboração de um novo ethos e de novas ideologias e novas crenças políticas, amparadas na ressurreição da idéia e da prática da solidariedade (2000: 167 e 168). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão proposta nestre trabalho busca reconhecer o espaço urbano lócus privilegiado de observação de dinâmicas e intervenções artísticas, culturais, estéticas e políticas e a cidade produtora de processos culturais e comunicacionais plurais, tornando-se um lócus privilegiado para as disputas simbólicas e para a construção de novos imaginários em contextos de afirmação de identidades e diferenças. Por meio de um panorama, da década de 90 até os tempos atuais, propomos tecer uma reflexão sobre a potencialização de práticas artísticos-culturais periféricas da sociedade civil no espaço urbano do Rio de Janeiro pelas políticas públicas de cultura dos séculos XX e XXI. Nas interfaces das políticas públicas com a sociedade civil, das incorporações e das redefinições conceituais acerca da centralidade da cultura e das novas dinâmicas e formas de organização de grupos e práticas do campo da arte da cultura, buscou-se refletir de que forma tais práticas engendram ressignificações no que tange ao simbólico, as sociabilidades e ao imaginário do espaço urbano carioca, ao se ampliar o olhar para experiências, agenciamentos e linhas de fuga que disputam uma agenda e um projeto político democratizante para a cidade na marca de suas disputas, tensões e conflitos. A partir da atuação de uma rede de atores e suas práticas artísticas e culturais periféricas em meio a uma cidade-espetáculo em preparação para as Olimpíadas de 2016, observa-se no espaço urbano uma efervescente cena que propõe outras narrativas e olhares para a cidade em torno de uma disputa simbólica, política e cultural e apontando novos significados para as políticas públicas de cultura.

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PATRIMÔNIO PORTUÁRIO EM CIDADES TOMBADAS DO PARANÁ E SANTA CATARINA: ENTRE A PRESERVAÇÃO E A PERDA Juliana Regina Pereira1 RESUMO: O presente artigo propõe uma breve reflexão sobre preservação e requalificação do patrimônio portuário em cidades históricas tombadas pelo IPHAN no litoral dos estados do Paraná e Santa Catarina, com especial atenção ao caso do complexo das Indústrias Matarazzo junto ao porto de Antonina-PR. Questões relacionadas ao tombamento do conjunto da cidade conduzem as análises de especificidades no tratamento desta categoria de patrimônio a partir da percepção de transformações da tecnologia e demais atividades predominantes em áreas portuárias, bem como sua ação sobre o espaço simbólico. Por fim, o trabalho destaca a importância do diálogo entre preservação e planejamento no sentido de (re)significar atribuições memoriais da cidade portuária. PALAVRAS CHAVE: cidades tombadas, patrimônio portuário, indústria portuária, região Sul.

O presente trabalho é dedicado a uma breve análise sobre o lugar da cidade portuária em relação à concepção moderna de cidade com ênfase nas especificidades que a caracterizam como palco de interações e disputas culturais, tomando por objeto de análise o caso do complexo fabril das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo em Antonina, pequena cidade portuária na costa paranaense. Entendido como ruína moderna, o complexo se encontra em severas condições de deterioração em razão do abandono desde o encerramento de suas atividades em 1972. Sua propriedade é objeto de disputa entre os herdeiros da família Matarazzo, e os entraves judiciais vieram a público em razão da conclusão do processo de tombamento federal do conjunto histórico e paisagístico de Antonina, que abrange parte da área de construção da indústria e do porto. O intenso fluxo de pessoas e mercadorias nas zonas portuárias, percebido como efeito de lugar, imprime sua marca sobre a região do porto e a cidade contígua em aspectos diversos, seja através do cosmopolitismo, característica indissociável de diversas cidades portuárias de trânsito internacional, ou de um aspecto generalizado de degradação física e simbólica do espaço portuário. Com relação à dimensão material, novas políticas para o desenvolvimento urbano,

Mestranda em História pelo PPGHIS da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: [email protected]. 1

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reutilização e preservação do patrimônio têm trazido à tona o porto como objeto de estudos, conforme se observa em diversos projetos de requalificação de centros históricos e waterfronts que têm retomado importância de territórios portuários em localidades diversas na Europa e América. Diante deste contexto, colocam-se importantes questionamentos: Em que medida projetos de intervenção que têm como objeto central o porto são capazes de trazer para um contexto de desenvolvimento urbano atual a leitura das interações e processos que ali tomaram lugar ao longo tempo? E de que maneira é possível ressignificar a relação dialógica entre o porto e a cidade em seus aspectos de materialidade e simbologia memorial? Para pensar estar questões, propomos traçar um breve retrospecto da formação econômica e urbana da baía de Antonina, uma vez que o reconhecimento em esfera oficial do valor histórico e cultural desta cidade evidencia sua demanda de integração entre o planejamento e urbano e propostas de preservação. Uma das primeiras áreas exploradas economicamente pela coroa portuguesa na região sul do Brasil, a baía de Antonina era tida como local estratégico para o controle da região, e para a busca por índios e metais preciosos, em razão de sua extensa entrada para as terras do continente. A ocupação de Paranaguá, bem como de suas localidades vizinhas, como Antonina, Morretes e Guaraqueçaba, impulsionada pela exploração do ouro no início do século XVIII, passou por um processo de desaceleração quando das primeiras descobertas de jazidas de minerais preciosos em Minas Gerais, fazendo com que as povoações instaladas no litoral paranaense voltassem suas atividades produtivas da mineração para a subsistência. Em 1798, Antonina é elevada à categoria de vila, e a reabertura dos portos brasileiros dez anos mais tarde traz fôlego à atividade portuária da região cujo controle é disputado entre os portos de Antonina e Paranaguá. Como consequência do acirramento desta disputa, o Caminho da Graciosa, via que liga o planalto paranaense ao litoral através da Serra do Mar, é reaberto para facilitar o escoamento da produção agrícola, em especial de erva-mate, do interior do estado para o litoral. A partir do século XIX, com a industrialização do processo de beneficiamento da erva-mate, o crescimento do volume de exportações impulsiona um rápido desenvolvimento urbano, observado na abertura de novas ruas, construção das igrejas de São Benedito e Bom Jesus do Saivá, do trapiche, e do mercado de Antonina. Obras para tornar carroçável o Caminho da Graciosa e a construção da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá intensificaram, na segunda metade do século XIX, a comunicação entre Antonina e as demais cidades do Paraná. O ano de 1917 marcaria, então, o surgimento de um novo período de crescimento na cidade. Em um vasto terreno junto ao atracadouro Itapema foi instalada primeira unidade paranaense das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, dedicada a moagem de trigo, sal e açúcar. O conjunto foi construído sob o padrão arquitetônico de inspiração manchesteriana característico

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de edifícios fabris das Indústrias Matarazzo2, cuja ornamentação é construída com ênfase em elementos da estrutura, com uso decorativo de materiais e texturas dos tijolos cerâmicos e das pedras de fecho, e destaque para as cintas entre os pavimentos e lanternins de motivo ornamental. O complexo abarca além dos edifícios fabris, os casarões da administração, uma escola nomeada em homenagem a seus fundadores, e uma vila operária formada por 50 casas de quatro peças pertencentes à empresa, onde os funcionários residiam sem custo. O moinho foi mantido em atividade pelas seis décadas seguintes, fornecendo farinha de trigo, sal e açúcar por via marítima para diversas localidades do Brasil, e há indícios de que no terminal portuário3 da empresa se operava também o despacho de cargas por contrato. A indústria, que contava com seu próprio terminal portuário, foi, no entanto severamente afetada pelo assoreamento dos canais da baía, onde a falta de investimentos de manutenção das áreas navegáveis, somada ao aumento do calado das embarcações, leva, a partir da década de 30, a atividade portuária de Antonina à decadência. Com sua economia estagnada, a cidade viveu em 1972 o fim do funcionamento das Indústrias Matarazzo e em 1976 a desativação definitiva do ramal ferroviário Morretes-Antonina. Figura 1: Ruínas das Indústrias Matarazzo junto ao porto de Antonina-PR

Foto da autora Sobre este tema ver: VICHNEWSKI, Henrique Telles. As Indústrias Matarazzo no Interior Paulista: Arquitetura Fabril e Patrimônio Industrial (1920-1960). Dissertação (Mestrado História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. 3 Neste ponto, se faz imprescindível esclarecer que a função privada do terminal portuário (ou terminal de uso privativo – TUP) o diferencia da orientação de uso público do porto. Para fins de distinção, trataremos por ‘terminal portuário’ o espaço circunscrito ao complexo industrial das IRFM. 2

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Oficializado em 2012, o tombamento federal do conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade de Antonina supõe que a evidenciação do valor patrimonial atribuído ao local histórico esteja articulada à valorização dos laços identitários que o vinculam à cultura local. Todavia, suas demandas de desenvolvimento urbano são vagas, senão inexistentes. Na leitura do Plano Diretor de 1982, constante na documentação dos arquivos do IPHAN Paraná, poucas são as menções à necessidade de se elaborar um planejamento de longo prazo para a revitalização das áreas do porto, de modo que o estudo de meios de instrumentalização do próprio território como forma de valorizar o desenvolvimento histórico do tecido urbano envoltório ao porto à fábrica permanece em segundo plano se comparado ao enfoque que o estudo, encomendado pela superintendência paranaense do IPHAN, confere a elementos pontuais da arquitetura histórica na cidade. Embora os meios práticos para a preservação da área tombada ainda sejam incertos, a extensão do tombamento compreende além do centro histórico da cidade, grande parte do complexo edificado das Indústrias Matarazzo e do porto anexo, para o qual está prevista “a retomada da atividade portuária, por meio de diretrizes para ocupação da área, desde que sejam preservados e recuperados os imóveis remanescentes mais importantes individualizados no registro do bem”4. Destacada no próprio texto em publicação do IPHAN, a postura de isolamento de determinados pontos da arquitetura histórica falha ao preterir qualquer possibilidade de construção de leitura, apreensão ou percepção da paisagem edificada enquanto conjunto de operações através do qual se desenvolvem ao longo do tempo as interações que dão à cidade sua forma e identidade, códigos estes que direcionam a construção de um futuro conectado com sua história. Enquanto representações materiais de proezas da tecnologia e pujança econômica, as estruturas portuárias abandonadas ou esvaziadas de função se vêem atribuídas de um valor de rememoração que não está vinculado a seu estado original, mas à representação do tempo decorrido desde sua criação, denunciado pelas marcas da idade5. Tida corpo visível da degradação irrefreável da obra do homem pelo tempo, a ruína se oferece na concepção de Riegl (1904) como chave para trazer à consciência do espectador o contraste entre a grandeza do passado e o presente, exprimindo um remorso de natureza romântica de queda profunda, e nostalgia de um passado que sonharia ser conservado6. Deste modo, as aspirações românticas associadas a esta leitura do monumento em ruínas sugerem que a atribuição simbólica construída pela representação imagética da decadência ocasionada pela ação do tempo atue dialogicamente com o esvaziamento do valor de uso, possibilitando a um só tempo a construção de um novo sentido de existência ao monumento, e IPHAN. Conselho Consultivo confirma tombamento do Centro histórico de Antonina, no Paraná. Brasília, 2012. Disponível em . Grifo nosso. 5 RIEGL, Aloïs. O Culto Moderno dos Monumentos: sua Essência e sua Gênese. Goiânia: Editora UCG, 2006. pp.50 6 Idem, pp. 63 4

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constantemente ressignificando suas atribuições originais. Segundo esta nova forma de organização, o patrimônio se encontra associado tanto ao território quanto à memória, elementos estes que atuam como vetores de uma construção identitária fortemente marcada pela obliteração, isto é, da identidade em busca de si própria. No âmbito deste constante processo, “o patrimônio define menos o que se possui, o que se tem e se circunscreve mais ao que somos, sem sabê-lo, ou mesmo sem ter podido saber”7, atendendo à anamnese coletiva na forma de seu dever com a conservação, a comemoração e a reabilitação da memória. Entendido como objeto histórico, o lugar de memória encontra na leitura historicizada a monumentalização do patrimônio, e de modo complementar, a categorização de suas tipologias evidencia a existência de uma rede articulada de identidades, momentos e locais diversos que fazem parte de “uma organização insconsciente da memória coletiva que nos cabe tornar consciente de si mesma”8. Assim, a abordagem proposta nas políticas federais de preservação do patrimônio visa refletir por via da chamada Retórica da Perda, - segundo a qual instituições, valores e vestígios associados a uma determinada identidade cultural têm como destino a perda, compreendendo como efeito dessa visão um enquadramento mítico para o processo histórico condicionado de modo absoluto à destruição e homogeneização do passado e das culturas9 - sobre a valorização da condição histórica da cidade como forma de oficializar ações de preservação por parte dos órgãos públicos e da sociedade civil “no sentido de tornar exemplar e digna de ser conhecida as condições atuais das cidades tombadas e a história que cada uma abriga”10. Até meados de 2015 figuravam dentre os conjuntos urbanos protegidos em esfera federal 77 cidades históricas distribuídas por todo o território nacional, registradas com o intento de servir como testemunho dos “processos de transformação do país, por meio da preservação de expressões próprias de cada período histórico”11.

Idem. NORA. Op. Cit. pp.27. 9 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996. pp. 22 10 IPHAN. Conjuntos Urbanos Tombados (cidades históricas). Disponível em: . 11 Idem. 7

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Figura 2: Centro histórico de Laguna, cidade tombada no litoral sul do estado de Santa Catarina

Foto: Felippe Lopes

Faz-se necessário também compreender em que em contextos históricos e geográficos diversos, as áreas portuárias representam espaço privilegiado de interações socioeconômicas, desenvolvimento técnico e apropriações simbólicas que oferecem uma série de possibilidades ao estudo do patrimônio industrial. Neste campo, o estudo das transformações nas áreas envoltórias ao porto encontra respaldo nos movimentos políticos, econômicos e sociais que mantêm em constante mudança as relações entre o porto e a cidade, as quais na dimensão material ganham corpo visível através do traçado urbano da região portuária, vias e ferrovias para o escoamento de cargas, técnicas construtivas e aspectos arquitetônicos dos edifícios, além de guindastes e demais maquinarias empregadas no porto, elementos que se encontram indissociavelmente relacionados aos usos, saberes e sociabilidades exercidas neste espaço. Sob o sentido memorial, a simbologia pode também ser atribuída ao espaço do porto através de representações iconográficas estruturadas em características frequentemente identificadas a partir da paisagem construída no diálogo com o mar, como que a demonstrar a conflitante relação entre interioridade e exterioridade, identidade local e informação estrangeira, em territórios tão fortemente marcados pelo portal simbólico para o que vem de fora (RUFINONI, 2012, p.13) Assim, em consonância com as transformações que se operam no espaço, a representação simbólica do porto também se preserva na forma de valores que consolidam um imaginário da navegação fortemente ligado à expansão da indústria, à navegação a vapor, e ao trânsito constante de mercadorias e pessoas nas cidades portuárias.

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O litoral sul do Brasil conta com cidades históricas tombadas em âmbito federal enquanto conjuntos arquitetônicos e artísticos nos quais se encontram preservadas “características herdadas da riqueza histórica e diversidade cultural de seus fundadores e habitantes”12, ao que se soma a presença de inúmeros sambaquis e sítios arqueológicos. Nos estados do Paraná e Santa Catarina, os primeiros povoamentos surgiram principalmente em função da atividade mineradora, de colônias de imigrantes, e a partir de fortificações erguidas no Brasil colonial como forma evitar a entrada de espanhóis e franceses no litoral e suas fronteiras. Observa-se no Paraná, alem do mencionado caso da cidade de Antonina, a organização de Paranáguá em torno da atividade portuária, beneficiada pela proximidade em relação ao porto de Santos, ao passo que em Santa Catarina, povoamentos estratégicos estabelecidos por navegadores europeus deram origem a São Francisco do Sul, cidade histórica localizada em uma ilha na Baía da Babitonga, e que conta até os dias de hoje com um porto de escoamento em atividade. Figura 3: Centro histórico de São Francisco do Sul-SC, de onde se pode ver os guindastes do porto

Foto: IPHAN/SC

No entanto, o afastamento das atividades portuárias em relação aos centros urbanos reverbera invariavelmente no tecido urbano envoltório, e é possível compreender este fenômeno como efeito provocado por um acelerado processo de obsolecência tecnológica. A partir do últiIPHAN. Conjuntos históricos tombados (cidades históricas): Sul. Disponível em: .

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mo quartel do século XX, na medida em que transformações nos padrões da logística portuária, somados à modernização dos navios de carga, percebe-se com maior intensidade a limitação, ou mesmo incapacidade, de dar continuidade às atividades produtivas em antigas instalações portuárias. A este respeito, Del Rio (2001) afirma que Por um lado, os modernos e gigantescos navios de carga, a conteinerização e a especialização do movimento portuário, as dificuldades de acomodar as novas logísticas portuárias às limitadas instalações e espaços das áreas centrais e a difícil acessibilidade dos meios de transportes de apoio – rodovias e ferrovias – foram fatores fundamentais para seu esvaziamento, em detrimento de novas instalações portuárias em grande portos mais afastados, tecnológica e fisicamente preparados para os novos tempos (DEL RIO, 2001) A década de 1930 marcou a decadência defitiva do porto de Antonina, pois além dos maciços investimentos públicos no porto concorrente em Paranaguá, o assoreamento do fundo da baía e o aumento do calado das novas embarcações tornava as antigas instalações antoninenses inviáveis para utilização. No mesmo período houve grande queda das exportações de erva mate, sobretudo para a Argentina, de modo que a queda nas exportações de madeira, ocorrida logo em seguida, provocou o fechamento de diversas de empresas exportadoras que operavam na região, o que levou a cidade a um novo período de estagnação econômica. Após décadas de decadência, A inauguração da BR-277 em 1970 põe fim definitivo às atividades industriais na cidade, uma vez que a até então utilizada estrada da Graciosa, íngreme e pavimentada em pedra, deixa de ser atrativa ao transporte de cargas. Quado do fechamento do moinho das Indústrias Matarazzo, em 1972, a falta de oferta de emprego levou muitos dos antigos operários e pequenos comércios que atendiam à empresa a abandonar a cidade, deixando certo número de edificações do centro da cidade abandonadas13. Por fim, o ramal ferroviário que ligava o planalto a Antonina seria desativado em 1976.

IPHAN. Parecer técnico sobre o tombamento do conjunto histórico e Paisagístico de Antonina-PR. Curitiba, 2010. 13

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Figura 4: Centro histórico de Paranaguá-PR, núcleo do qual a atividade industrial portuária tem sido paulatinamente deslocada

Foto: IPHAN/PR

Rufinoni (2012) entende que o fenômeno do esvaziamento provoca “a degradação funcional não apenas dos portos propriamente ditos, mas também de grande parte dos tecidos envoltórios”14, sendo as áreas contíguas à zona do porto em abandono também expostas ao processo de deterioração pela ação do tempo. Neste sentido, elementos de infra-estrutura presentes na malha urbana, tais como ferrovias e vias de acesso, podem dificultar a renovação de dinâmicas de integração com o entorno em razão de sua caracterização fundiária, algo que faz destas estruturas alvos preferenciais de especulação, além dos entraves impostos pela sobreposição da administração do espaço em diferentes esferas tanto do poder público quanto do poder privado. A preservação de edifícios históricos localizados em propriedades particulares é particularmente complicada. Como exemplo disto temos o caso da inclusão de parte do terreno das Indústrias Matarazzo ao tombamento de Antonina, em que a intenção se realizar qualquer intervenção no sentido de preservar o referido patrimônio esbarra em querelas familiares sobre a propriedade do terreno, o qual permanece inacessível aos órgãos de preservação. Diante do labirinto de atribuições administrativas criado nas mencionadas esferas, cria-se, ao redor do porto e da renovação de seus usos e interações simbólicas no âmbito da cidade portuária, uma arena na qual proliferam discussões e diferentes proposições no sentido de co14

RUFINONI, Op. Cit.

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ordenar renovação e preservação da memória e do patrimônio edificado. Abordando diferentes possibilidades de reapropriação do espaço portuário, estas discussões têm ganhado terreno no sentido de ressignificar atribuições econômicas, políticas e simbólicas destes territórios a partir de propostas de intervenções modernizadoras que, em diferentes escalas, buscam possibilidades de adaptação de antigos edifícios a novos usos, além da renovação da paisagem em cidades portuárias. Embora sejam conhecidos projetos de grande envergadura, tais como em Baltimore, nos Estados Unidos e Puerto Madero, na Argentina, no contexto brasileiro, são características as dimensões pequenas das cidades históricas que ainda conservam patrimônio edificado de natureza portuária, sendo igualmente reduzidas as possibilidades de financiamento de projetos de reabilitação. Neste sentido, a experiência oferecida pelo Programa Monumenta em São Francisco do Sul, Santa Catarina, representa um importante esforço no sentido de estabelecer diálogo entre a ideia de preservação da cidade como documento histórico e instrumentalização da cidade histórica como espaço para a melhoria da qualidade de vida de sua população. O processo de renovação do centro histórico da cidade realizado a partir de 2006, promoveu a restauração de diversos edifícios históricos de valor arquitetônico nas proximidades de seu terminal marítimo, contribuindo para o reforço da atividade turística no local. Tendo em vista a diversidade de possíveis intervenções, e as ainda mais variadas possibilidades de impacto a ser exercido sobre o tecido urbano portuário, cabe questionar em que medida estas propostas de intervenção são capazes de reconhecer no território portuário sua dimensão documental enquanto locus da história urbana. De modo semelhante à cidade catarinense, nas cidade paranaense de Paranaguá, onde é mantido em atividade o maior porto agroexportador do Brasil, intervenções de preservação são voltadas especialmente para elementos pontuais da arquitetura urbana, o que promove um afastamento simbólico dos elementos de natureza portuária da paisagem cultural da cidade. Em nenhum dos mencionados casos há edifícios industriais localizados na zona de tombamento, o que faz do tombamento das Indústrias Matarazzo em Antonina caso sem paralelo nos estados da região Sul. No âmbito dos projetos, embora possam ser medidos retornos econômicos positivos a partir da atribuição de novos usos comerciais, atividades culturais e turísticas nas cidades portuárias de São Francisco do Sul, Paranaguá e de certo modo até Antonina, a preservação da identidade histórica circunscrita ao espaço do porto, ainda representa um desafio à integração entre as áreas modificadas e suas regiões envoltórias na medida em que intervenções de preservação transcendem à reabilitação física, atingindo também o espaço simbólico da cidade. Neste sentido, quando há degradação material do espaço físico, também o espaço social submetido ao processo de degradação, e se torna, ele mesmo, arena na qual usos e atribuições simbólicas podem ser ou não reconstruídas e ressignificadas de acordo com a conveniência da reabilitação do espaço físico.

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De maneira geral, pensar os processos de transformação em áreas portuárias e a inoperância de projetos de intervenção que integrem as zonas portuárias aos centros históricos dos conjuntos urbanos tombados nos estados do Paraná e Santa Catarina nos motiva a refletir sobre a natureza dos valores simbólicos atribuídos às áreas dos portos, e em que medida existe o desejo de se incorporar aspectos relacionados à indústria portuária à identidade histórica construída no esteio da reabilitação destas cidades históricas. Assim, neste palco privilegiado de interações sobre o tempo da tecnologia e do crescimento acelerado das demandas de produtividade, a decadência de estruturas e edificações funcionais passa a oferecer um vislumbre de interações sociais e padrões de ocupação do espaço que que se choca com a percepção moderna de uso. Enquanto lugar de significados em constante desconstrução e reconstrução, o espaço do patrimônio portuário é constituído elementos que, desagregados pela ação do tempo, persistem na forma de fragmentos materiais e simbólicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. Efeitos de Lugar. In: A Miséria do Mundo. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. pp. 159-166. DEL RIO, Vicente. Voltando às origens. A revitalização de áreas portuárias nos centros urbanos. Arquitextos, São Paulo, ano 02, n. 015.06, Vitruvius, ago. 2001. _____. Conjuntos históricos tombados (cidades históricas): Sul. Disponível em: . _____. Conselho Consultivo confirma tombamento do Centro histórico de Antonina, no Paraná. Brasília, 2012. Disponível em: . IPHAN. Parecer técnico sobre o tombamento do conjunto histórico e Paisagístico de Antonina-PR. Curitiba, 2010. MENEGUELLO, Cristina. Da Ruína ao Edifício: Neogótico, reinterpretação e preservação do passado na Inglaterra vitoriana. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008. MONIÉ, Ferédéric. VASCONCELOS, Flavia Nico. Evolução das relações entre cidades e portos: entre lógicas homogeneizantes e dinâmicas de diferenciação. Confins Revue franco-brésilienne de géographie vol.15, 2012. MORSE, Richard. As “cidades periféricas” como arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina. Estudos Históricos, vol. 8, no. 16, 1995, pp.205-225. Disponível em: . RIEGL, Aloïs. O Culto Moderno dos Monumentos: sua Essência e sua Gênese. Goiânia: Editora UCG, 2006.

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RUFINONI, Manoela Rossinetti. Territórios portuários, documentos de história urbana: as intervenções no porto de Gênova e os desafios da preservação. Cidades, Comunidades e Territórios (Dec/2012), pp. 12-24.

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UM MUSEU NA CONTEMPORANEIDADE: O CASO DO MUSEU DAS COISAS BANAIS NO INSTAGRAM Juliane Conceição Primon Serres1 Ana Ramos Rodrigues2 Rafael Teixeira Chaves3 RESUMO: Neste artigo apresentaremos o estudo que está sendo desenvolvido através do aplicativo instagram do Museu das Coisas Banais (MCB). O MCB é um museu virtual e contemporâneo que utiliza o ciberespaço para coleta e exposição de objetos pessoais. Além do website, os objetos são apresentados por meio de outras ferramentas digitais. Recentemente foi incorporado o instagram às ferramentas utilizadas pelo MCB para expor as peças do acervo virtual. O uso desta ferramenta possibilitou outros tipos de abordagens indo além de ser meramente um dispositivo de comunicação. Assim, o MCB tem a missão de preservar e compartilhar memórias de objetos tidos como banais através da rede, atuando como suporte de compartilhamento informacional e de comunicação museológica. PALAVRAS-CHAVE: museu virtual – objetos banais – instagram

1. INTRODUÇÃO O Museu das Coisas Banais (MCB) é um museu virtual, ou seja, existe apenas no ciberespaço, está voltado para a preservação e o compartilhamento de memórias e para a reflexão sobre a cultura material do tempo presente. Criado em 2014 o MCB é um projeto de pesquisa vinculado ao Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A proposta deste projeto é trazer para o mundo virtual objetos do cotidiano com as suas histórias, visando uma aproximação do museu com seu público. O acervo do Museu é constituído de forma participativa, os usuários enviam as fotografias de seus objetos juntamente com suas narrativas, assim compartilham memórias pessoais, afetivas, que ao entrar no espaço público (acervo), se tornam compartilhadas. Conforme Federico Professora do Curso de Museologia e do Programa de Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Políticas Públicas (UFRGS). Professora substituta do Curso de Museologia do Departamento de Ciências da Informação da UFRGS. E-mail: [email protected] 3 Graduando em Museologia Universidade Federal De Pelotas. E-mail:[email protected] 1

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Caselegno (2006, p.19), a memória coletiva toma forma quando toda coletividade pode acessá-la e nutri-la, por que são os indivíduos que participam de sua criação. A sistemática da passagem dessa memória pessoal para o espaço público ocorre quando os usuários “doam” um objeto pessoal, que passa a integrar ao acervo do Museu a partir do preenchimento da ficha disponível no site do MCB - . Acesso em: 09 jul. 2015, 20:15. POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi, volume 1, Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997. MCB disponível em: http://wp.ufpel.edu.br/museudascoisasbanais/ Acesso em 09 jul.2015, 20:50. RADLEY. Alan. Artefacts, memory and a sense of the past. In Collective remembering: Inquiries in social construction series. London: Sage Publications, 1994. RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004. RECUERO, Raquel. Redes Sociais na internet. Porto Alegre, Ed Sulina: 2014. 01 de Outubro de 2015 em 18:00. RIEGL. Aloïs. El culto moderno a los monumentos: caracteres y origen. Traduzido por: Ana Pérez López. Madrid: La balsa de la Medusa, 2008. ROCHE, Daniel. História das Coisas Banais. Nascimento do consumo séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SCHEINER, Teresa Cristina. Apolo e Dioniso no templo das musas. Museu – Gênese, ideia e representações na cultura ocidental. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Universidade Federal do Estado do Rio e Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil, 1998.

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PARTICIPAÇÃO E INSTITUCIONALIZAÇÃO: OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA ESTADUAL DE CULTURA DO RJ Juliano Borges1 Simone Amorim2 RESUMO: Partindo de uma reflexão sobre aspectos do processo de institucionalização de políticas participativas no contexto da gestão pública da cultura fluminense, o artigo analisa a criação do Sistema Estadual de Cultura do RJ, destacando paradoxos da implantação de políticas participativas face aos limites da ação do poder público e da sociedade civil, em um Estado historicamente caracterizado por ausência de políticas ou por uma atuação de matiz liberal. A análise foi construída a partir de um duplo local de fala, já que os autores foram coordenadores técnicos do Plano Estadual e dos Planos Setoriais de Cultura, e são também pesquisadores do tema. Com o intuito de entender e dimensionar as dificuldades e os avanços obtidos, as reflexões propõem uma análise que pretende contribuir para o entendimento dos processos aqui descritos. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Instituições Públicas, Rio de Janeiro.

Desde a última década uma série de novos mecanismos institucionais vem sendo criados e implementados pelos órgãos públicos de gestão de cultura no Brasil, com o intuito de incorporarem o planejamento e a cultura participativa como políticas de Estado. Visões críticas (CALABRE, 2009, RUBIM, 2008, BOTELHO, 2001) analisam essa nova postura, protagonizada pelos órgãos da gestão pública, como a possibilidade de ruptura do histórico de descontinuidades e autoritarismos que desde o período inaugural, na década de 1930, caracterizam as políticas culturais brasileiras. De fato, desde a realização da I Conferência Nacional de Cultura, em 2005, um diálogo cada vez mais frequente tem aproximado os governos federal, estaduais e locais de produtores, gestores, artistas e pesquisadores do campo cultural, via novas formas institucionais estimuladas e implementadas em parte considerável das regiões brasileiras. Sob o guarda-chuva da articulação e costura de um Sistema Nacional de Cultura, políticas de financiamento, gestão de Juliano Borges é doutor em Ciência Política (IUPERJ) e professor adjunto do curso de Comunicação Social do IBMEC, [email protected] 2 Simone Amorim é Gestora Cultural, Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), http:// www.cultura.rj.gov.br/apresentacao-projeto/plano-estadual-de-cultura 1

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equipamentos, de ampliação da participação popular na definição da agenda do setor, entre uma série de outras iniciativas; têm possibilitado a criação e o fortalecimento de espaços deliberativos mais plurais, como Conselhos paritários entre o poder público e a sociedade, a realização (inédita até 2005) de Conferências de políticas, um debate sobre os Fundos de cultura, além da criação de Planos decenais; que permitem a negociação das prioridades no investimento dos recursos públicos, de modo que políticas de gabinete, pensadas “para” e não “com” a população possam gradualmente deixar de ser a característica da pasta. No estado do RJ, esse movimento teve início em fins de 2009, quando pela primeira vez o órgão gestor de cultura fluminense (SEC-RJ) propôs a construção de uma política participativa, de longo prazo – por meio de um plano decenal, sujeita a revisões periódicas, não restrita à classe artística, junto aos 92 municípios do estado. O desenvolvimento de um Sistema Estadual de Cultura foi iniciado com um entusiasmado chamamento à participação social pela própria secretária de Estado de Cultura: A SEC propõe também a criação do Sistema Estadual de Cultura (...) que pode ser entendido como um novo modelo de gestão de políticas públicas para a cultura, e que possibilitará à sociedade participar da elaboração, do acompanhamento e da avaliação dessas políticas. A sociedade civil, que produz nossa cultura, está, desde já, convidada a participar da consulta pública do Plano Estadual de Cultura. Sua contribuição fundamental irá enriquecer e legitimar ainda mais esse processo. Esperamos, assim, consolidar os instrumentos que respondam aos desafios da cultura na atualidade e contribuam para o amadurecimento de um novo paradigma da gestão da cultura no estado do Rio de Janeiro. 3 Desde então essa dinâmica sofreu avanços importantes, naquele que vem a ser um dos principais efeitos desse movimento; qual seja ampliar, de fato, o número de interlocutores e segmentos representados, bem como a quantidade de canais de comunicação entre as partes interessadas nas políticas públicas de cultura, arejando e democratizando a gestão pública. A produção de um amplo diagnóstico da cultura fluminense foi o ponto de partida desse trabalho, que adotou desde o início uma metodologia participativa. Ao todo foram quatro anos de mobilização regional, em parceria com poderes públicos municipais, com a realização de reuniões, seminários, conferências4, audiências públicas, encontros com as comunidades para levantamento de diagnósticos5 da área em níveis local e regional, com retorno ao campo para ratificação das

“Um Plano para nossa cultura”, Adriana Scorzelli Rattes, secretária de Estado de Cultura (2008-2014). http:// www.cultura.rj.gov.br/apresentacao-projeto/plano-estadual-de-cultura Acesso em 15/01/2016. 4 Conferências estaduais de cultura In: http://www.cultura.rj.gov.br/projeto/conferencias-estaduais-de-cultura Acesso em 15/01/2016. 5 Diagnósticos regionais In: http://www.cultura.rj.gov.br/downloads-projeto/plano-estadual-de-cultura acesso em 15/01/2016 3

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informações coletadas; para que a gestão estadual, por fim, tivesse a dimensão dos desafios do campo cultural, para além da capital e da região metropolitana, histórica e geograficamente mais próximas da gestão da SEC-RJ. Esse processo, depois de uma ampla consulta pública (online e presencial), que envolveu a visita da SEC-RJ a todos os 92 municípios fluminenses, oito conferências regionais pelo estado e o envolvimento de mais de cinco mil participantes, acabou por consolidar a articulação que culminou com a criação do Sistema Estadual de Cultura do RJ, sancionado pelo governador do estado após votação favorável da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), por meio da Lei 7.035 de 7 de julho de 2015. Contudo, a despeito de um inédito empenho de mobilização para a participação social e da qualidade dos documentos aprovados, o processo foi marcado também por desencontros que podem ser reconhecidos no debate teórico de tipo neoinstitucionalista, responsável por compreender como a sociedade civil em sua atuação no interior das instituições do Estado pode contribuir para o aprimoramento do regime democrático. É sobre as contradições geradas por essas novas institucionalidades, que passam a conviver entre velhas estruturas, que esse artigo pretende refletir. Sem esgotar o tema, porém registrando etapas importantes de um processo ainda em consolidação no estado do Rio de Janeiro. Um debate, portanto, revestido de relevância e atualidade. 1. PARADOXOS DA PARTICIPAÇÃO, LIMITES DA AÇÃO POLÍTICA Respondendo aos compromissos assumidos pelo novo governo eleito em 2002, o Ministério da Cultura (MinC) se destacou ao conseguir aumentar os níveis de transparência e de participação da sociedade na construção de suas políticas. Induzidos politicamente pelo MinC e seduzidos pela possibilidade de parcerias de financiamento com o governo federal, diversos estados e municípios brasileiros assumiram também o compromisso de incorporar as represadas demandas por mais participação social, que se acumulavam desde o final da ditadura militar, na formulação de políticas de cultura, em particular na construção de mecanismos institucionais de organização de longo prazo; de representação política; e de financiamento da área. O processo de redemocratização de cunho neoliberal no Brasil evidenciou, sobretudo nos anos 1990, um conflito entre forças emergentes de mercado e uma incipiente sociedade civil. O primeiro, produzindo desigualdades econômicas a instaurar formas diferenciadas de participação. Se o regime democrático pôde garantir uma igualdade formal a priori, a atuação autônoma do mercado gerou desigualdades substantivas, instaurando um paradoxo no sistema: aqueles que mais necessitam participar são, justamente, os que menos recursos possuem (instrução, capacidade de mobilização, recursos econômicos). O móvel da participação é uma exclusão anterior, mas, sem canais de vocalização suficientes e eficientes, não há veículos que possam

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viabilizá-la. Esse paradoxo é particularmente acentuado na área cultural brasileira, marcada por forte assimetria política entre os setores artístico-culturais; um histórico de omissão do poder público, ausência de políticas culturais e alta precariedade administrativa e institucional. Jean Cohen e Andrew Arato oferecem uma visão otimista da sociedade civil frente ao Estado (COHEN e ARATO, 1992). Nela, as demandas são sempre superiores às instituições, mas as ações da sociedade civil interagem com seus movimentos interiores. Dessa forma, o fortalecimento da sociedade civil estruturaria novos níveis de pluralismo e ampliaria as demandas sociais existentes, em um fluxo constante de aprimoramento das condições dentro de um sistema democrático, expandindo como conseqüência o raio de atuação das instituições públicas. Há, portanto, no confronto com as limitações dos regimes democráticos, uma dependência incontornável da política na ideia de organização da sociedade civil, definida como locus de experimentação social para o desenvolvimento de novos tipos de solidariedade e de relações de cooperação e de trabalho por meio de associações transclassistas (Idem, p.38). Nessa dinâmica, as organizações culturais desempenham papel especial, uma vez que “contribuem para uma consciência de cidadania e seu desenvolvimento amplia o espaço da cultura como elemento importante na construção ativa e consciente na solução de seus problemas” (CARVALHO, 2009, p.20). A sociedade civil encontra limitações externas impostas pelas instituições vigentes, tornando-se essa sua razão de ser; superá-las. Seu problema é que, estando ela própria inserida em um quadro institucional, as transformações formuladas no seio da sociedade civil freqüentemente constituem-se como balizamentos colocados pelas instituições, gerando, em muitos casos, uma mera reprodução daquele quadro institucional. O associativismo, em sua dinâmica, acaba muitas vezes por reproduzir práticas políticas que desejava corrigir, estabelecendo novos fracionalismos, relações verticalizadas e disputas intergrupos por recursos, no âmbito estatal. Preocupada com a insuficiência da teoria democrática tradicional em oferecer um modelo político capaz de estimular a cooperação e a igualdade social, pela ênfase que confere às liberdades individuais, Carol Gould ressaltará a necessidade de encontrar formatos institucionais capazes de proteger e de ouvir os interesses de minorias (GOULD, 1988). Suas premissas baseiam-se na concepção de política como processo, isto é, à parte da estática institucional e através de uma dinâmica de interação, os indivíduos tendem a aprimorar seu comportamento político porque dotados de opções de refúgio no processo de interação e aprendizado políticos da sociedade civil. Se obrigatória a democratização das instituições, através de relações mais equânimes entre os indivíduos, está claro que essas mesmas instituições têm também o poder de conformá-los. O caso brasileiro é exemplar nesse sentido, em que as instituições são marcadas por ações verticalizadas, mais preocupadas em controlar a cultura do que em promovê-la. Contra esse ciclo vicioso, é preciso assegurar que as esferas social e cultural possam servir de veículos paralelos capazes de garantir uma participação política ampla como alternativa de

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refúgio da estática institucional. Gould afirma que a democratização extensiva das esferas econômica e política pode relativizar tanto premissas de mercado (e sua visão imediatista, voltada para o fim último do lucro), como de Estado (baseadas no controle burocrático e na centralização). Pela multiplicação de formas de expressão, entretanto, aparentes pelo processo associativo e pela organização de grupos sociais, a política deve se converter, então, de campo universalizante (quando entendido sob a ótica da estática institucional) em uma forma que abrigue e estimule transformações. Afirma-se, desse modo, a importância da heterogeneidade dos gêneros de discurso como alternativa de manutenção e aprimoramento do sistema. E nada mais próprio e adequado ao campo cultural do que a afirmação da diversidade. Se considerarmos que a discussão em torno da revitalização da sociedade civil traz nela a possibilidade de se verem grupos representados em fóruns extragovernamentais, incapazes, muitas vezes, de dar vazão a essa necessidade de representação (os limites da sociedade política tradicional), aparece um conjunto de questões relativas à qualidade e a legitimidade da representação. Um cenário de baixa institucionalização, baixo capital social e falta de credibilidade das instituições, como o nosso, coloca ainda o problema da concentração de recursos pelos grupos melhor organizados. Diante disso, argumentamos que o sucesso na formulação e na implantação de políticas públicas de cultura com a sociedade civil depende do grau de compromisso do Estado de reconhecer e cobrir seu déficit democrático, via aumento de participação social. Em segundo lugar, depende do nível de institucionalização e organização (política e administrativa) do poder público; e, finalmente, da qualidade das relações entre Estado e sociedade civil, em que fatores como transparência e legitimidade são fundamentais para garantir níveis de confiança pública necessários para a realimentação do processo. Como demonstraremos, apesar do especial empenho do governo do estado do RJ para melhorar as relações entre o Estado e a sociedade civil na área da cultura, alguns dos dilemas da participação assinalados marcaram o processo acionado pela SEC-RJ e limitaram o alcance das políticas participativas até aqui. 2. DILEMAS E DESAFIOS: REFLEXÕES A PARTIR DO PROCESSO FLUMINENSE Em relação à experiência vivenciada no contexto fluminense, algumas lacunas no que concerne à transparência e legitimidade ao longo do processo de implantação da política em análise, contribuíram negativamente na geração de confiança em um nível que realimente o modelo participativo, reforçando de modo continuado a baixa qualidade da relação entre Estado e sociedade civil. Um exemplo que reforça esse argumento pode ser verificado nas idas e vindas do processo. Elas explicitam a falta de prioridade da própria pasta da cultura e a falta de unidade do governo do estado com o compromisso de institucionalização de um processo participativo no ciclo da política cultural fluminense.

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Durante os cinco anos (2010 a 2015) em que o Sistema e o Plano Estadual de Cultura do RJ estiveram em fase de construção e de debates públicos, em dois deles nenhuma ação com a sociedade civil foi realizada, por questões internas de descontinuidade na estrutura profissional do órgão estadual gestor de cultura. Essas lacunas terminam por acarretar uma desmobilização dos atores sociais envolvidos, além de uma perda substantiva nos esforços de estabelecimento de uma metodologia que cumprisse o objetivo proposto. Como é o caso da construção do Plano Estadual de Cultura, cujas escutas para diagnóstico territorial tiveram que ser parcialmente refeitas em algumas audiências e reuniões. Outro fator que reforça o argumento da falta de prioridade está na coexistência de processos paralelos e conflitantes entre si sendo executados simultaneamente pelo Poder Executivo. Na melhor das hipóteses gerando confusão e falta de entendimento da direção política do órgão, na pior, escamoteando prioridades de outra ordem. Neste sentido, o exemplo é bastante profícuo para o entendimento de que os processos políticos são complexos e requerem respostas na mesma proporção da complexidade das relações de poder estabelecidas na sociedade. No mesmo ano (2009) em que a SEC-RJ dá início ao processo de construção participativa do plano Estadual de Cultura, que conforme designação do próprio órgão, Foi desenvolvido com base no diálogo com gestores públicos dos 92 municípios do estado, representantes de entidades, agentes culturais, artistas, Comissão de Cultura da ALERJ e o MinC para apontar diretrizes e estratégias para as políticas públicas no estado do Rio de Janeiro.6 o poder Executivo encaminha para a ALERJ o Projeto de Lei 1975/2009, que dispõe sobre a qualificação de entidades sem fins lucrativos como Organizações Sociais (OS), mediante contrato de gestão. O PL é votado em regime de urgência pelo Legislativo fluminense e aprovado em menos de trinta dias após a entrada na pauta da casa7. Não discutiremos aqui os ganhos e as perdas inerentes aos processos de privatização da gestão de equipamentos públicos, via o estabelecimento dessas modalidades de transferência do poder de decisão sobre as estratégias de gestão do fundo público, pois esse não é o objetivo deste artigo. Destacamos o fato de que entre 2009 e 2013 a SEC-RJ conseguiu aprovar aquela que ficou conhecida como a Lei da OS (Lei 5.498 de 07/07/2009), regulamentou o dispositivo legal por meio dos Decretos 4.256 de 2010 e 42.882 de 2011, e transferiu a gestão de parte significativa dos equipamentos culturais do estado (toda a rede de Bibliotecas Parque, um projeto inovador e cujo potencial de ampliação do acesso à população aos conteúdos literários é imenso; a Disponível em: http://www.cultura.rj.gov.br/consulta-publica/plano-estadual-de-cultura, acessado em 18/01/2015. Grifos nossos. 7 O PL entra na Ordem do Dia em 16/06/2009 sendo aprovado pela casa legislativa fluminense em 8/07/2009, conforme informação disponível em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0711.nsf/e00a7c3c8652b69a83256cca00646ee5/c987f75b6d60576e83257552006c871b?OpenDocument, acessado em 24/01/2016. 6

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Escola de Artes Visuais em funcionamento no Parque Lage; e a Casa França-Brasil, no Centro da capital) para duas organizações até então nada ou muito pouco conhecidas pelo público fluminense. Uma das quais criada um ano e meio antes de firmar contrato com o governo do estado do RJ (03/04/2012), outra, com atuação no estado de PE há mais de uma década (criada 2001), cuja filial no RJ passou a existir em 20138, mesmo ano de assinatura do contrato de gestão das bibliotecas com o governo do estado. Ambos os instrumentos contratuais têm como objeto (cláusula contratual 1.2), uma série de objetivos a serem cumpridos e “entregues” pelos contratados e que traduzem com clareza a diretriz da política cultural estabelecida pela SEC-RJ. Entre outros, observam-se como objetivos “Fomentar a formação de mediadores e agentes de leitura”, “Incentivar programas de bolsa de criação, formação, intercâmbio, pesquisa e residências literárias”, “Desenvolver programas de ensino para ações no campo cultural, inclusive com o oferecimento de cursos e atividades gratuitos” etc. É inquestionável a legitimidade do órgão gestor da cultura em pautar a política pública a partir da definição de sua agenda. O conflito nesse caso é pelo fato de que entre 2009 e 2013, portanto o mesmo período em que a SEC transferia a gestão dos equipamentos, definindo seus objetivos, metas e o desenho institucional de sua atuação para as OS; a mesma Secretaria conclamava a sociedade a debater e construir uma política cultural pública participativa, para os mesmos setores culturais cobertos pela atuação dessas organizações. Enquanto isso, a partir de abril de 2012, no âmbito do Sistema Estadual de Cultura, eram realizadas audiências e consultas públicas para definir diretrizes prioritárias que orientariam a construção de planos setoriais da cultura no estado9, em clara contradição de princípios. Esse tipo de atuação ratifica o que Maria Alice Rezende de Carvalho (1995, p.4) destacou como a “baixa legitimação da autoridade política do Estado”, aprofundando as reservas por parte da sociedade civil em relação ao quadro político-institucional: cujo privatismo “congênito” estreitou excessivamente a dimensão da pólis, condenando praticamente toda a sociedade à condição de bárbaros. A expressão “cidade escassa” refere-se a isto, ou seja, à dimensão residual da cidadania e, portanto, à sua parca competência para articular os apetites sociais à vida política organizada – isto que, no mundo das ideias políticas, caracteriza a “cidade liberal-democrática”. É nessa cidade liberal-democrática, escassa para a maioria da população que nela vive, que os conflitos e dilemas em torno da institucionalização de novas formas de participação da Os instrumentos contratuais encontram-se disponíveis para consulta no portal da SEC: http://www.cultura.rj.gov. br/organizacoes-sociais, acessado em 18/01/2015. 9 Sobre os Planos Setoriais as informações encontram-se disponíveis em: http://www.cultura.rj.gov.br/planos-setoriais, acessado em 18/01/2015. 8

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população nos processos decisórios das políticas vêm coexistindo com os velhos vícios do poder estabelecido, cujo círculo restrito vem se reproduzindo desde há muitos anos no campo das políticas públicas no Brasil. A tramitação do Projeto de Lei 533/2015, que instituiria o Sistema Estadual de Cultura e seus componentes, foi também marcada por contradições que, observadas, ajudam a compreender os dilemas da participação. Após cerca de três anos de escutas públicas e abertas, que serviram para a produção de um diagnóstico da cultura fluminense, e de um esforço particular de mobilização política pelo poder público em todas as regiões do estado, foi produzido um texto-base da Lei e do Plano Estadual de Cultura, que absorveu o núcleo das propostas apresentadas pela sociedade civil para a área da cultura. A minuta para consulta pública do Plano Estadual de Cultura, apresentada e distribuída pela SEC-RJ em janeiro de 2013 para a segunda rodada de discussões, chamava a atenção por uma série de inovações que o distinguiam de projetos de outros estados da federação e do Plano Nacional, fruto da capacidade de escuta e de incorporação de demandas próprias demonstrada pela SEC-RJ. Entre essas novidades trazidas pela sociedade civil, destacam-se a questão do protagonismo juvenil na cultura, numa reaproximação entre educação e cultura; a incorporação de diversas estratégias de valorização do interior; a imbricação entre cultura e formas sustentáveis de produção e uma diversidade de fontes de fomento para a área, que passaria a ser dotada de um fundo próprio sujeito ao controle por um comitê gestor com participação da sociedade civil; entre outros avanços. Em 14 de dezembro de 2012 foi aberta uma etapa de consultas pela internet, em paralelo à realização de outras dez audiências presenciais abertas por todas as regiões do estado, ao longo de 2013, como forma de garantir canais de escuta pelo poder público. Em dezembro, a versão consolidada pela SEC-RJ da Lei e do Plano Estadual de Cultura foi encaminhada oficialmente para a Casa Civil do governo (que já conhecia o teor do documento), onde aí permaneceu por um período de mais de um ano, imobilizando o andamento dos trabalhos, esfriando as relações conquistadas pela Secretaria com a sociedade civil, prejudicando a transparência na condução do processo, com evidente prejuízo de credibilidade e da confiança pública que havia sido conquistada com grandes dificuldades. O incidente evidencia como a fraqueza política da pasta, sua falta de prestígio no interior do próprio governo, e os reduzidos acompanhamento e pressão pela sociedade foram fatores negativos na tentativa de promoção de maior institucionalização da Secretaria. Em maio de 2014, a SEC-RJ ficou excluída de um edital de fortalecimento dos Sistemas de Cultura, lançado pelo MinC para estados que já os tivessem aprovados10. http://www.cultura.gov.br/inscricoes-abertas/-/asset_publisher/kQxYTMokF1Jk/content/sai-minc-lanca-edital-de-fortalecimento-do-snc/10883. Acesso em 15.01.2016.

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A entrada do ano eleitoral de 2014 ampliou a disputa no interior do governo do estado e o limite do valor da renúncia fiscal que a lei estabeleceria (art. 24) motivou um conflito que congelou definitivamente o diálogo com a sociedade civil. Inicialmente acordada com a Casa Civil em 0,5% da arrecadação do ICMS fluminense, o valor foi porém reduzido para 0,4% depois de meses estacionado fora do controle da SEC-RJ. Isso não fez com que o texto fosse logo encaminhado para a tramitação na ALERJ, no entanto. Ao longo de 2014, entre promessas de liberação pela Casa Civil e cobranças à SEC-RJ pelos setores que haviam prestado seu engajamento e energia política para o processo, o texto ficou paralisado à espera da definição dos resultados eleitorais. A reeleição do partido do governo e a recomposição pós-eleitoral das forças políticas valorizaram a Secretaria de Estado de Esporte e Lazer– que incorporou ‘Juventude’ ao nome da pasta em janeiro de 2015 –, passando a ser comandada pelo filho do ex-governador, o neófito Marco Antônio Cabral. O imobilismo, a partir daí, se acentuou com a possibilidade do valor de 0,4% ser agora repartido entre as duas secretarias e o processo de construção participativa esbarrou em limites que excediam a capacidade e a autonomia institucional da SEC-RJ em conduzir e resolver o processo que ela havia dado início. A crise econômica que se abateu sobre as finanças do estado só contribuiu para aumentar a disputa, congelar a política e, a essa altura, colocá-la em xeque perante a sociedade civil, que não teve conhecimento do casuísmo desses movimentos. Infelizmente, o conflito foi desfeito por motivos menos nobres do que a pressão de uma sociedade civil atenta e atuante, mas por razões intergovernamentais. Um rumor de que o MinC lançaria novo edital, voltado ao fortalecimento de sistemas municipais de cultura – mas condicionando no entanto o financiamento de projetos à obrigatoriedade de que seus estados também tivessem sistemas aprovados – gerou enorme pressão de prefeituras sobre a SEC-RJ. Mesmo sem confirmação oficial, a informação oficiosa foi importante para despertar a Casa Civil, num contexto de penúria fiscal, liberando o texto para a Assembleia Legislativa. A ALERJ, por sua vez, promoveu uma tramitação em regime de urgência, com parca mobilização política pela sociedade civil e pouco relevante participação das regiões do estado, aprovando a Lei Estadual de Cultura em 26 de junho de 2015, não sem que a base majoritária do próprio governo na Assembleia reduzisse para 0,25% o percentual do ICMS destinado ao fomento da cultura (ficando os outros 0,25% que comporiam o valor original de 0,5% destinados apenas para projetos esportivos). Os agentes de cultura estiveram alheios a esses movimentos e o suposto edital (com cláusulas condicionantes aos estados da federação) jamais foi publicado. A conclusão do processo é exemplar no que diz respeito aos dilemas da participação da sociedade civil. Sem instâncias formais de acompanhamento e pressão pelos grupos organizados e sem transparência sobre a natureza do conflito dentro governo, a sociedade civil, após ter sido encorajada a tomar posição e a contribuir para a formulação de uma política estadual

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de cultura, tomou conhecimento, a posteriori, de um rito de aprovação acelerado, sem tempo e sem condições para novo esforço de remobilização, depois de um ano e meio sem informações sobre o processo. O texto aprovado sofreu até emendas positivas, que tornaram obrigatórios a descentralização de recursos para o interior do estado (art.21,I) e investimentos em ações culturais para pessoas com deficiência (art.21, III), por exemplo. A promoção de políticas de gênero, entretanto, foi suprimida do Plano Estadual de Cultura (Eixo 2, estratégia 2.1.2) por força da bancada religiosa na ALERJ, que logrou ainda incluir entre os objetivos expressos do Sistema a promoção de manifestações religiosas (art.3, XI), pontos em que a organização da sociedade civil poderia ter feito significativa diferença. Mesmo aprovando uma lei que pode ser considerada avançada e construída com a colaboração dos agentes da cultura, a SEC-RJ perdeu a oportunidade de fortalecer vínculos com a sociedade civil ao não ser capaz de integrá-la devidamente no momento decisivo. A despeito da perda ocorrida com o texto do artigo 24 aprovado, a condução final do processo determinou um prejuízo político de difícil mensuração pois incidiu, a partir da falta de transparência, tanto na confiança dos atores que se envolveram quanto na própria legitimidade da política. Um desgaste que incide sobre a continuidade de iniciativas que se proponham participativas e sobre sua capacidade de converter propostas oriundas da sociedade civil em ações de governo. Mesmo com as disputas internas, de resto naturais à dinâmica política, o Estado precisa assegurar unidade de governo, do início ao fim do processo, quanto ao compromisso com políticas participativas, de modo a não expor suas fragilidades à sociedade. O discurso da participação cívica na produção e execução de políticas culturais envolve desafios que remetem a formas mais institucionais de conduzir a relação com os agentes da sociedade civil. Mais grave, porém, do que evidenciar suas contradições e tornar questionável seu compromisso político é o risco de não poder contar com a energia cívica e a contribuição dos movimentos sociais num futuro próximo, retrocedendo novamente a patamares de um passado recente. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse artigo, embora bastante crítico quanto aos desafios enfrentados no processo de institucionalização do Sistema Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, pretende registrar o potencial que os avanços conquistados até aqui pode significar em termos de renovação das estratégias adotadas pelos gestores públicos no campo cultural fluminense. Uma das conquistas foi sem dúvida a maior diversidade de agentes que se comprometeram com a proposta, para além da classe artística (grupos comunitários, usuários dos equipamentos de cultura, organizações não-governamentais da área, projetos sociais e pontos de cultura), demonstrando uma inflexão na forma como a própria cultura é entendida pelo Estado, não se limitando às artes e ao patrimônio simbólico, mas às formas de sociabilidades historica-

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mente construídas no território. Outros ganhos de institucionalização se fazem observar, ainda que timidamente. O Sistema Estadual de Cultura estabeleceu bases que fortalecem o processo de institucionalização do poder público na área cultura, por meio de mais participação cívica na formulação, acompanhamento e controle das políticas. Sua efetividade, no entanto, obriga que o Estado se reestruture segundo essa lógica permeável, tarefa que só poderá ser realizada na medida em que as pressões da sociedade civil se fizerem atendidas. Nesse sentido, o Conselho Estadual de Política Cultural, reformulado para responder a exigências democráticas – eleito e regionalmente representativo, paritário, plural e deliberativo – passa a assumir papel central como instância de articulação e pressão da sociedade civil sobre o processo de fortalecimento da institucionalização do domínio da cultura no estado do RJ. A eleição direta ocorrida em dezembro de 2015 e fevereiro de 2016, por meio de conferências regionais e eleição virtual, restitui e renova o órgão após um vazio institucional de quatro anos11, depois de expirado o mandato do último Conselho, de resto inexpressivo e sem legitimidade porque até então composto somente por membros indicados pelo poder público. Também os editais de chamada pública foram incorporados pela SEC-RJ como prática regular de promoção cultural, muito embora o volume de recursos investidos em fomento pelo órgão ainda seja menor que aquele distribuído por essa modalidade, portanto suscetível a voluntarismos, preferências pessoais e à continuidade da ‘política de balcão’. Contradições geradas por novas institucionalidades a conviver entre obsoletas formas de gestão pública. Administrativamente, entretanto, a SEC-RJ estabeleceu uma Coordenação de Políticas Culturais na SEC-RJ, voltada especificamente para a regulamentação e a implantação dos diversos instrumentos do Sistema, com destaque para a execução do Programa de Formação e Qualificação Cultural, em sua segunda edição. Por fim, o aumento da participação social foi relevante também para forçar a SEC-RJ a assumir sua vocação de ente estadual, isto é, a de trabalhar como integrador de políticas junto aos municípios fluminenses em articulação com o governo federal. Isso tem se materializado, em particular, com a terceira edição do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cultural dos Municípios (PADEC), promovido pela SEC-RJ, junto com o MinC e a Universidade Federal Fluminense, para a indução do Sistema de Cultura nos municípios do estado. Ao fazer isso, a SEC-RJ assumiu o papel de dinamizador de sistemas, sinalizando positivamente para a sociedade seu compromisso político com a institucionalização da área cultural em todo o estado e não somente de suas próprias estruturas.

Os conselheiros têm mandato de quatro anos, podendo ser reconduzidos, pelo governador do estado, por mais dois períodos. Os 25 conselheiros empossados em 17/04/2007 (21 titulares e 4 suplentes) não foram reconduzidos, tendo em vista que a SEC já planejava uma alteração na estrutura do conselho quando do término do mandato em 2011.

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Por outro lado, apesar desses avanços, não se pode deixar de registrar que o nível reduzido de organização dos grupos e a baixa confiança no Estado pelos agentes da área cultural exerceram impacto negativo sobre a qualidade geral do processo de elaboração participativa do Sistema Estadual de Cultura, a despeito da promulgação de uma nova lei. A possibilidade de realização das políticas, malgrado a disposição do Estado, esbarra ainda na alta dependência das vontades dos gestores, dado o baixo nível de institucionalização do poder público, fator este que também contribuiu para a redução de confiança, que por sua vez mina a possibilidade de fortalecimento da própria instituição. Isso ficou patente com a descontinuidade quase total das políticas setoriais, cujo processo foi negligenciado pela atual gestão, ficando ao desejo particular de superintendentes continuá-las ou engavetá-las, com danos para a credibilidade da pasta perante os segmentos culturais que contribuíram para novamente ver seu esforço frustrado sem a devida entrega dos resultados anunciados.

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O RENASCIMENTO DO GRIÔ AFRO-BRASILEIRO Julio Souto Salom1 RESUMO: O “griô” é um termo abrasileirado do francês griot, palavra que designa aos contadores de histórias e guardiões da memória oral em certas sociedades africanas. O programa Ação Griô (2005-2010), proposto como um eixo estruturante do Cultura Viva, reconheceu e apoiou financeiramente a mais de 600 griôs de diversas adscrições étnicas e culturais em todo o território nacional, em projetos pedagógicos articuladas com Pontos de Cultura e outras entidades culturais. Terminada a política pública: o quê restou? Nesta aproximação inicial a esta pergunta, constatamos que o termo persiste e prolifera para além dos termos estabelecidos em editais e Projetos de Lei. A principal mudança nesta pós-vida da política pública cultural é a adscrição do griô ao universo cultural afro-brasileiro, sendo abandonado o sentido amplo e desracializado que estava implícito na proposta inicial. PALAVRAS-CHAVE: Griô, Cultura Viva, Cultura Afro-brasileira.

1. INTRODUÇÃO: O ESTADO DESCOBRE OS GRIÔS, E VICE-VERSA. Em 2005, o Ministério de Cultura do Brasil iniciou a Ação Griô Nacional, no marco do programa Cultura Viva. Podemos pensar esta ação, que teve uma duração de cinco anos, como parte de uma mudança no campo cultural brasileiro, pela qual formas artísticas e práticas de conhecimento historicamente invisibilizadas estão ganhando reconhecimento. Anos depois de este programa ter finalizado no nível federal, certas transformações no âmbito institucional (em vários níveis de governo do poder público, em diferentes entidades da sociedade civil) e cultural (referentes simbólicos, atividades e trajetórias de ativistas/artistas) mostram a persistência e proliferação da figura dos griôs, apontando para a autonomia das dinâmicas político-culturais da sociedade civil interagindo de forma complexa com as políticas públicas de cultura. Este artigo apresenta uma aproximação inicial a este renascimento do griô afro-brasileiro, tentando levantar algumas questões relevantes e incitar um diálogo produtivo sobre este fenômeno. O texto decorre de uma pesquisa de doutorado ainda em estágio inicial, pelo que em este momento a prioridade é apresentar certas hipóteses preliminares para a interação com a comunidade acadêmica e cultural. 1

Doutorando em Sociologia (PPGS-UFRGS). E-mail: [email protected].

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Nossa proposta não é uma “avaliação de política pública” nos termos convencionais (comparando objetivos e metas com resultados e indicadores), mas observar esse programa concreto da perspectiva dos atores protagonistas, os griôs e mestres. Tendemos a compreende-lo como acontecimento singular dentro de um processo amplo de transformações culturais acontecidas na última década, como resultado de disputas e gerador de novas reflexões e intervenções político-estéticas. Partimos da percepção de que no período de governos petistas (entre 2003 e o presente, como um ciclo político que talvez aponte para fase conclusiva) múltiplos atores atuantes no campo cultural abordaram o estado como um espaço relevante para disputar recursos materiais e simbólicos; ao mesmo tempo em que, com um processo paralelo, as políticas públicas redefiniram as fronteiras e lógicas internas do campo cultural, permitindo que novos atores ganhassem protagonismo. Para possibilitar uma análise minuciosa deste processo amplo, a proposta de pesquisa é reconstruir o contexto do programa Ação Griô, os embates que levaram a iniciá-lo e as disputas que surgiram a partir dele. A relevância deste projeto de pesquisa quer se situar no plano desta lenta mas irrevogável transformação histórica na relação das instituições modernas (ciência, arte erudita, estado) com seus “outros”, sendo este Brasil contemporâneo um cenário privilegiado para este pensar em movimento. Alguns contornos teóricos balizam e ajudam a detalhar estas questões recorrendo a dois ideias básicas: 1) a colonialidade do saber/poder na modernidade ocidental (QUIJANO, 2000). Isto implica que nossas vias de produção de conhecimento não estão desconectadas das dinâmicas de perpetuação da desigualdade. Tópicos como a polaridade oral/ escrito são fundantes na epistemologia ocidental (DERRIDA, 1973), basilares na criação dos estados-nação latino-americanos (RAMA, 1998) e paralelos às articulações raça/nação no regime colonial (GILROY, 2007). Indagaremos, portanto, a dimensão decolonial das intervenções dos griôs. 2) A intimidade de estética e política nas intervenções que impugnam a ordem dada do real (RANCIÈRE, 2005; 2010). O desentendimento aparece como uma recusa criativa dos consensos estabelecidos a nível ontológico, aqueles que separam o que existe do que não existe, relegando os dissensos à “ficção”, à “utopia” ou ao “equívoco”. Esse desentendimento se pode constituir em emancipação intelectual a través de intervenções dissidentes no real, que são tanto estéticas quanto políticas. Entendemos que a simples existência dos griôs afro-brasileiros supõe a impugnação estético-política do regime colonial, redefinindo os conceitos de saber/poder e as posições sociais e raciais a ele associadas. Como detalharemos no decorrer deste texto, nossa impressão é que o renascimento dos griôs no cenário cultural brasileiro transcendeu e redefiniu o que poderia ser lido como “proposta inicial” do poder público, se atentássemos unicamente às declarações oficiais de dirigentes, os editais do MinC e secretarias de cultura, ou às iniciativas legislativas sobre griôs que apareceram em diversos estados nos últimos anos. Mesmo apontando transformações em um sentido

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semelhante, a ação dos movimentos político-culturais radicaliza e aprofunda os gestos iniciados desde o estado. Isto embaralha a relação da política pública com as dinâmicas autônomas no mundo político-cultural (coletivos, movimentos sociais, artistas, comunidades tradicionais, etc). A dicotomia tradicional traçada entre as interpretações top-down ou bottom-up não funciona, e observamos uma relação de diálogo e permeabilidade que impede pensar linhas unidirecionais de causalidade entre as ações do “estado” e as reivindicações da “sociedade”. Mais que uma dinâmica de confronto da “sociedade contra o estado”, pensamos em uma ultrapassagem: se bem as ações apontam num mesmo sentido, em certo ponto as instituições estatais parecem encontrar um limite ou bloqueio, e a caminhada do griô no cenário cultural brasileiro segue de forma autônoma, redefinindo e configurando os sentidos deste termo. Eis nosso argumento central, em forma de paradoxo entre duas proposições: 1) não sendo o griô um termo expressivo no cenário cultural brasileiro antes da política pública Ação griô, os griôs passam a existir (ou a proliferar, ou a ganhar visibilidade) com esta política pública. 2) No entanto, hoje, mesmo sem as bolsas e outros apoios que contemplava tal programa, os griôs existem na vida cultural afro-brasileira projetando sua atuação para o passado e o futuro, ratificando assim sua existência plurissecular neste território muito antes de ser reconhecidos pelo poder instituído. Algumas redefinições aconteceram no processo, até chegar ao seu modo de existência vigente, relativamente estável mas ainda não completamente fechado. Tal vez a mais importante delas seja que, se num primeiro momento a política pública formulava o “griô” como uma categoria pouco definida e marcadamente des-racializada, hoje esta figura está unicamente associada ao universo cultural afro-brasileiro. Não há dúvidas de que este singular processo se associa ao amplo movimento de impugnação das complexas e perversas equações da racialização na formação da nação brasileira, confrontando os mitos da miscigenação e da “democracia racial” (MUNANGA, 2008). 2. OS GRIÔS NO PROGRAMA CULTURA VIVA: BREVE CRONOLOGIA Desde as primeiras políticas culturais no governo Vargas, até os governos neoliberais de fim do século vinte, a implementação de políticas públicas de cultura no Brasil seguiu padrões oscilantes em cada momento político, marcadas sempre pela arbitrariedade, o autoritarismo e a instabilidade (RUBIM, 2007). O projeto democratizador da última década abriu novas possibilidades na formulação de políticas públicas culturais. A partir dos governos do PT encontramos uma virada no discurso institucional, quando o Ministro de Cultura Gilberto Gil propôs orientar sua ação a partir do “sentido antropológico da cultura”. Se destaca destes últimos anos o enfrentamento sólido de desafios históricos, buscando a gestão aberta e participativa, a estabilidade plurianual das políticas e a definição democrática de objetivos e metas (RUBIM, 2013). Para

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além esta avaliação, podemos entender a política cultural dos governos PT como três projetos concomitantes, contraditórios e paradoxais, mas que convivem de forma tensa no mesmo governo: um projeto modernizador humanista, um projeto de fortalecimento econômico da indústria cultural, e um projeto de extensão de cidadania a partir do reconhecimento da diversidade. O discurso institucional do Ministério de Cultura reflete esta divisão tripartita da sua ação em múltiplos e importantes documentos, ao falar das “três dimensões da cultura”: a dimensão simbólica, a dimensão econômica e a dimensão cidadã2. O projeto “iluminista” de preservação e difusão da “cultura erudita” que começou nos anos 1930 com a criação do SEPHAN, tem continuidade atual em políticas de fomento das Artes ou conservação de patrimônio. Em segundo lugar, uma elevada proporção dos recursos do MinC é orientada a parcerias público-privadas, nas que empresas patrocinadoras usufruem do valor econômico da cultura como marketing empresarial: desde 1988 a Lei de Incentivo à Cultura (conhecida como “Lei Rouanet”) possibilita, com seu modelo de renúncia fiscal, a promoção de projetos selecionados e dirigidos pela iniciativa privada e financiados com recursos públicos. Em terceiro lugar, como inovação do período, o Programa Arte, Cultura e Cidadania – Cultura Viva, iniciado em 2004, aparece como o grande projeto de reconhecimento da diversidade cultural. O Cultura Viva propõe ir além da “democratização do acesso aos bens culturais”, para “democratizar o acesso aos meios de produção, disseminação e valorização de tais bens culturais”, construindo mediações plurais e inclusivas. Por isso seu público-alvo são “populações com pouco acesso aos meios de produção, fruição e difusão cultural ou com necessidade de reconhecimento da identidade cultural” (BARBOSA e ARAÚJO, 2010, p. 39). Com o Cultura Viva o poder público quis reconhecer iniciativas associativas e comunitárias já existentes, para estimulá-las por meio de transferências de recursos definidos em editais ou ações de capacitação e interligação das mesmas. As ações se estruturaram em cinco eixos com desigual grau de consolidação: Pontos de Cultura (o mais arraigado, unidade estruturante do programa e âncora dos outros eixos), Cultura Digital, Agentes Cultura Viva, Escola Viva, e Griôs (Mestres dos Saberes). Nos interessa esse último eixo, que se descreve assim na avaliação do IPEA: Ação Griô. Griô é uma versão abrasileirada da palavra francesa griot, que designa os contadores de história, responsáveis, nas sociedades africanas, por carregar consigo a tradição oral na qual é transmitida Por exemplo, ao estabelecer os eixos norteadores do Plano Nacional de Cultura: “Quais os eixos norteadores do PNC? O Plano baseia-se em três dimensões de cultura que se complementam: a cultura como expressão simbólica; a cultura como direito de cidadania; a cultura como potencial para o desenvolvimento econômico”. (http://pnc. culturadigital.br/entenda-o-plano/ Acesso em 02/05/2015). Em teoria, essas três dimensões devem ser tratadas de forma integradas e ser avaliadas conjuntamente para qualquer proposta ou ação institucional realizada; na prática, pareceria que cada ação e programa das instituições de cultura busca efeitos prioritariamente em um dos três eixos, deixando os outros dois num plano secundário. 2

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a história de seu povo e o patrimônio de sua cultura. A ação Griô visa à implementação de uma política de valorização da tradição oral presente na cultura de muitas comunidades brasileiras, mantida por “contadores de histórias”, pessoas que adquiriram conhecimentos de seus antepassados e os repassam em forma de narrativas ou casos contados. É a eles que é dado o nome de griôs. A principal proposta desta iniciativa é reaprender com os mestres da tradição oral, nossos griôs, o jeito de construir um conhecimento integrado à ancestralidade, além de incentivar a troca de experiências. Seu objetivo é estimular e sistematizar o vínculo entre educadores e a comunidade, bem como a dinâmica de fortalecimento da identidade local. A ação Griô atua com a vivência, a criação e a sistematização de práticas pedagógicas relacionadas aos saberes e fazeres da cultura oral, envolvendo pontos de cultura, escolas, universidades e comunidades. A missão desta rede é criar e instituir uma política pública de Estado que promova o reconhecimento do lugar político, social e econômico dos griôs e mestres de tradição oral na educação das crianças e jovens brasileiros. A ação prevê a distribuição de bolsas de trabalho a esses mestres griôs e seus aprendizes no valor de R$ 350 mensais, durante o período de um ano, para divulgarem e pesquisarem as tradições orais do país. O primeiro edital, lançado em setembro de 2006, distribuiu 250 bolsas. A origem desta iniciativa foi um convênio com a instituição Grãos de Luz e Griô, de Lençóis (BA), que firmou parceria com o MinC, em 2004, como ponto de cultura. O trabalho desenvolvido por ela acabou originando um pontão de cultura e uma das ações do programa Cultura Viva em âmbito nacional: a ação Griô (BARBOSA e ARAÚJO, 2010, p. 41. Destaques nossos). Vários aspectos nos parecem interessantes desta política. O primeiro, é o próprio conceito de “griô”, relativamente estranho para a bibliografia antropológica brasileira. No levantamento bibliográfico sobre o tema realizado por Cristiano Pinheiro (2013, p. 18-47) se revisam estudos desde o início do século vinte sobre contadores de histórias no Brasil e outras práticas de oralidade no contexto afro-brasileiro sem que apareça o termo “griô” ou “griot”3. Como explicado na citação anterior, se trata de uma “versão abrasileirada” dos griots, uma palavra de origem francês para uma figura social de certas sociedades da África ocidental (principalmente na

Recolhendo termos da terminologia iorubá pesquisada na costa ocidental da África pelo tenente-coronel britânico Alfred Burton Ellis, Nina Rodrigues utiliza nomes como akpalô (contador de histórias reconhecido por sua comunidade), akpalô kpatita (que fazia da contação de histórias uma profissão), arokin (narrador das tradições nacionais, geralmente ligados a um rei ou chefe supremo) e o Ologbô (chefe dos arokin, que são aqueles que possuem o conhecimento sobre os tempos passados), sem constatar a utilização destes termos no Brasil (Nina Rodrigues, apud PINHEIRO, 2013, p. 33). Essa mesma terminologia é utilizada por Gilberto Freyre e Arthur Ramos na década de 1930. Sílvio Romero ou José Lins do Rego, com interesse mais literário que antropológico, tambem pesquisaram o tema, sem constatar a presença do termo griot em terras brasileiras. 3

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região do antigo Império de Mali), bastante documentada na antropologia francófona4. Pinheiro conclui que é impossível encontrar na historiografia uma continuidade direta entre o griot histórico da África Ocidental e o griô atual promovido pela política cultural, e descreve um processo de “(re)invenção da tradição” (PINHEIRO, 2013, p. 44). A apresentação do griô como novidade promovida desde o estado sugere que, antes da política pública, existiam práticas comparáveis às dos griots mas o conceito “griô” não era utilizado de forma comum até este momento. Isto teria gerado uma série de efeitos imprevistos, desde a emergência desta categoria como elemento de identificação, contestação de estigmas e fortalecimento da auto-estima de sujeitos coletivos; até controvérsias e incômodos de grupos e sujeitos que queriam participar no programa sem sentir-se contemplados nesta denominação (por exemplo, os pajés indígenas, ou contadores de histórias de outras identificações raciais e étnicas). O segundo ponto que chama a atenção na descrição do programa é o protagonismo atribuído à instituição Grãos de Luz e Griô (Lençóis, BA). Marco Barzano (2008) e Juliana Lopes (2009) descrevem com minuciosidade as práticas e a trajetória desta entidade, fundada como ONG sócio-educativa em 1993. Sua relação com a Secretaria de Programas e Projetos Culturais (SPPC) do Ministério da Cultura se aprofundou após ser conveniada como Ponto de Cultura em 2004, realizando posteriormente um convênio específico para a implantação da Ação Griô como política nacional em 2006, mediante a publicação de editais (LOPES, 2009, p. 61-70). Neste processo destaca a atuação de Lilian Pacheco, coordenadora do Ponto de Cultura, pesquisadora e promotora da Pedagogia Griô (PACHECO, 2006). Suas pesquisas articulam fundamentações teóricas da educação biocêntrica com as práticas tradicionais afro-brasileiras em dança, canto e contação de histórias, buscando formas de dialogar com instituições de ensino formal como escolas e universidades. Ao estabelecer convenio com o MinC, em 2006, o griô passa de ser uma proposta pedagógica a uma política cultural em escala nacional. O programa nacional teria sido inspirado nas pesquisas e práticas educativas da Associação Grãos de Luz e Griô, na cidade de Lençóis. Porém, cada ponto de cultura teria a sua própria metodologia de trabalho com os saberes da tradição oral vinculados a espaços públicos educacionais formais. Essa parceria seria livre e cada ponto de cultura criaria a sua forma de didática e relação com a escola. Não haveria, portanto, a intenção de multiplicar ou replicar o trabalho que é desenvolvido em Lençóis (LOPES, 2009, p. 68).

Para documentar a figura do griot, Pinheiro cita o e escritor malinês Amadou Hampâté Bâ (2010) e o historiador burquinês Joseph Ki-Zerbo, organizador da História Geral da África encomendada pela UNESCO em 1982. Segundo este último, os griots seriam os encarregados de preservar a memória oral, “velhos de cabelos brancos, voz cansada e memória um pouco obscura, rotulados às vezes de teimosos e meticulosos” (Ki-Zerbo, apud PINHEIRO, 2013, p. 21). 4

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A coordenação nacional pode ter sido uma dificuldade enfrentada ao tentar englobar numa mesma categoria guarda-chuvas (“Griôs”) sujeitos e práticas tão diferentes, apenas unidos pela referência à “oralidade” como canal de comunicação prioritário e a ideia de “tradição” e “ancestralidade” como fonte de conhecimento5. Essa dificuldade pode ter repercutido na baixa adoção do programa pelos Pontos de Cultura. Os dados da avaliação do IPEA (BARBOSA e ARAÚJO, 2010, Tabela 4, p. 67) mostram que a Ação Griô foi a menos implementada das ações propostas pela SPPC-MinC: apenas 37% dos Pontos de Cultura a adotaram, o que se contrapõe a outras ações com grau de adoção muito maior, como a Teia das Culturas (91%), Cultura Digital (61%) ou o Sistema Nacional de Cultura (46%). Como descrito, todo o projeto nasce do encontro do poder público com uma instituição particular, que tinha realizado uma grande pesquisa anterior para desenvolver uma metodologia pedagógica. O Secretário Célio Turino aponta para essa cumplicidade: Foi uma grata satisfação receber este projeto [Grãos de Luz e Griô como Ponto de Cultura em 2004], pois quando definimos as quatro ações do Programa Cultura Viva (...) observamos que faltava uma integração dialética entre tradição, memória e ruptura. Tradição enquanto ponto de partida, memória enquanto reinterpretação do passado e ruptura enquanto invenção do futuro. Assim, incluímos uma quinta ação: o Griô (Célio Turino, em PACHECO, 2006, p. 14). O projeto de ruptura para a “invenção do futuro” que pretendia o Programa Cultura Viva, formulado como uma crítica ao presente, necessitava do “diálogo intergeneracional e multissetorial” para integrar as fontes renovadoras da “tradição” e da “memória”. Citando Hobsbawm, o secretário afirma que as tradições podem e devem ser reinterpretadas e reelaboradas pelo exercício da memória, recuperando palavras esquecidas, mesmo deformando-as ou reimaginando-as no processo. Nesse sentido, o termo “griô”, como neologismo abrasileirado, aparecia a princípio como uma ferramenta útil para articular em nível nacional esse diálogo de ruptura, ativando a memória criativa de diferentes setores da sociedade. Porém, com o avance dos debates em Conferências e encontros, foi configurando-se uma posição divergente priorizando o termo “Mestres” em lugar de “griôs”, que na sua implementação legislativa levou a adotar a fórmula “Mestres dos saberes e fazeres das culturas populares”6. Há aqui questões em aberto: o No que refere às adscrições raciais, nos editais da Ação Griô (SPPC-MinC, 2006; 2008) não se estabelecia nenhuma referência ao universo afro-brasileiro. Se contemplava a possibilidade de que o projeto pedagógico envolvesse comunidade indígena, no qual caso a FUNAI deveria ser comunicada. De fato, vários projetos pedagógicos envolvendo comunidades indígenas foram contemplados. 6 Figura adotada no atual substitutivo ao PL 1176/2011, após passar pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados do Congresso Nacional. No “Parecer às emendas ao Substitutivo oferecido ao Projeto de Lei no 1.176, de 2011” esta questão terminológica se resolve referenciando os consensos construidos na pesquisa acadêmica e nos debates nas Conferências de Cultura, ratificados nos Planos de Cultura e nas “Leis de Mestres” estaduais. Assim, se opta por manter o termo “Mestre”, que na linguagem jurídica passa a funcionar como hiperônimo genêrico: “Nessa designação, já estão compreendidos os Griôs, Babalorixás, Pajés, Sábios, Capitães, Guias e outros tantos detentores de saberes tradicionais da nossa cultura” (CCULT, 05/06/2014). 5

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quê implica tal substituição? Qual a possibilidade -ou a necessidade- de construir um mínimo de unidade na diversidade para fortalecer e consolidar esta política pública cultural no nível federal? Qual a relação deste debate com a equação raça/nação no Brasil? O terceiro ponto que chama a atenção é a continuidade do programa como política pública. Depois da finalização do programa por editais se protocolaram duas propostas de lei no Congresso Nacional (PL 1176/2011, promovida como “Lei Griô Nacional” e PL 1786/2011, “Lei dos Mestres”, logo apensadas) e outras semelhantes em diversos estados, que pretendiam dar estabilidade à política para além dos programas por editais de duração anual. Na proposta federal, se sugeria que as bolsas dos mestres griôs fossem “de valor equivalente a uma bolsa de doutorado7”, sugerindo a possibilidade de estabelecer uma comparação (ainda que assimétrica) entre os saberes do mestre griô e o pesquisador universitário. A tramitação legislativa do programa, tanto a nível federal quanto em diversos estados8, se encontra estagnada ou arquivada (até agora, só seis estados do Nordeste aprovaram leis estaduais dos mestres). Visto que os projetos de “Leis Griô” parecem ter perdido a força inicial, caberia se perguntar pelas conjunturas e dissensos que levaram a este estancamento. Esta breve cronologia da política pública não tem uma intenção avaliativa. O buscado é compreender a mesma como um acontecimento, que responde a uma série de demandas e modifica as condições de exercício de umas intervenções político-estéticas concretas, criando uma série de efeitos (alguns pretendidos pelo poder público, outros imprevistos). Por isso seria interessante a virada de perspectiva, para observar a política pública não do ponto de vista dos legisladores, mas dos griôs. Nos interessará compreender como esses sujeitos passam a se apropriar do nome “griô”, com um processo de interligação nacional que articula uma rede de intelectuais da cultura afro-brasileira, e como isso influiu nas condições e formas das suas práticas. 3. OS GRIÔS HOJE: REFERÊNCIA NA CULTURA AFRO-BRASILEIRA Numa incipiente aproximação etnográfica temos constatado que o termo griô vêm ganhado presença e conteúdo no movimento político-cultural negro brasileiro, inclusive em âmbitos com um contato mínimo com as políticas públicas de cultura. Podemos citar algumas observações isoladas do nosso âmbito geográfico próximo (Rio Grande do Sul, principalmente Rebaixado no substitutivo ao “valor equivalente a uma bolsa de mestrado”. A estadualização da “Lei Griô” corresponde a um processo paralelo de estadualização do Programa Cultura Viva (Rocha, 2011). No Rio Grande do Sul, o Dep. Catarina Paladini protocolou o projeto da “Lei Griô Estadual” (PL 20/2013; ver: http://www.al.rs.gov.br/legislativo/ExibeProposicao/tabid/325/SiglaTipo/PL/NroProposicao/20/ AnoProposicao/2013/Origem/Px/Default.aspx, acesso 05/10/2015). Esse PL respondia à celebração, em 2012, do Seminário Ação Griô na FURG, com a presença de representantes do MinC, de griôs de todo o Brasil e outras entidades atuantes no setor cultural, como o Circuito Fora do Eixo (Ver: http://www.psbrs.com.br/v3/index.php?option=com_content&view=article&id=8387:projeto-de-lei-sobre-a-cultura-grio-e-protocolado-na-assembleia&catid=73&Itemid=522, acesso em 05/10/2015). Este Projeto de Lei foi arquivado em 2014.

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Porto Alegre), na esperança que no presente Seminário de Políticas Culturais possamos compartir outras experiências. As constatações mais previsíveis neste sentido se observam nas atividades de Pontos de Cultura ligados ao mundo afro-brasileiro, onde a investigação e preservação desta memória oral e popular é objetivo explícito: o Quilombo do Sopapo, Afro-sul Odomodê ou a Escola de Capoeira Angola Africanamente. Porém, o griô também aparece como referente e figura social no sarau de poesia negra Sopapo Poético, assim como em outras atividades culturais eventuais que não tem uma ligação direta com políticas culturais, independentes de qualquer tipo de incentivo público. Em fórums e espaços de debate de todo tipo encontramos a presença de auto-declarados Mestres Griô e Griôs Aprendizes, que explicam o significado deste rol nos termos descritos acima. Suas intervenções, incluindo contação de histórias, música, dança e outras atividades, seguem sendo apresentadas em diferentes âmbitos: em escolas e bibliotecas públicas, em eventos promovidos pelos movimentos negros, com participação em shows, oficinas ou apresentações específicas em centros culturais, praças públicas ou quilombos. A rede de griôs que se constituiu em torno da política pública, que persistiu na reivindicação de um desenvolvimento institucional e legislativo da “Ação Griô”, atua hoje de maneira independente a esta pauta, sem esperanças de que esta promessa do poder público possa concretar-se no corto prazo. Ao mesmo tempo, o termo “griot” ou “griô” se tornou um referente reconhecido no cenário cultural, aparecendo em jornais, blogs, obras literárias ou como símbolo que identifica coletivos culturais. Por outro lado, constatamos que esta proliferação do griô é relativamente independente à participação direta na política pública, tanto por excesso quanto por carência. Isto é, hoje encarnam a figura de griô ou griô aprendiz pessoas que nunca se envolveram no programa federal; ao mesmo tempo, pessoas e entidades que tiveram participação ativa parecem hoje pouco identificadas com o termo, se alguma vez o estiveram. É o caso da maioria de mestres indígenas que participaram nos editais da Ação Griô, que utilizam uma grande diversidade de termos (pajé, xamã, etc.) sem que “griô” esteja entre eles. 4. CONCLUSÃO: O RENASCIMENTO DO GRIÔ AFRO-BRASILEIRO COMO ESPECIFICIDADE A relativa independência a respeito do programa Ação Griô nos impede falar de uma causalidade direta, que mostrasse a proliferação dos griôs como um “oportunismo” reativo à oferta de política pública. Enraizado em práticas culturais plurisseculares e conetando com um sentimento pan-africanista ou afro-cêntrico, a reivindicação do griô como especificidade afro-brasileira aparece como uma marcação da diferença na sua atividade e forma de existência. Atentando para a novidade do termo no cenário cultural brasileiro, se compreende que o argumento da “invenção da tradição” tenha sido utilizado para explicar a atual proliferação do griô.

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Porém, se escolhemos falar de um “renascimento” e não de uma “invenção” é considerando que esta novidade não se situa unicamente no nível das “práticas culturais”, se entendemos estas como uma esfera de atividade “inofensiva” e “artificial”, uma criatividade estéril desconectada do resto de aspectos sócio-políticos que constituem e afetam a uma comunidade. Falar em renascimento nos permite situar esta transformação no plano da ontologia política, articulando a dimensão histórica, cultural e sócio-política. O renascimento do griô se relaciona com um processo mais amplo empreendido pela comunidade afro-brasileira, que busca constituir-se como um “corpo socialmente diferenciado dentro da comunhão nacional”, comparável ao de comunidades indígenas (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 49). Nesse sentido, as intervenções artístico-culturais dos griôs são percebidas em toda sua potência política. A marcação da diferença serve para impugnar um consenso nacional que equipara e descaracteriza a todos os cidadãos, com uma definição do real na que a diferença racial historicamente constituída e atuante no presente é ignorada de forma premeditada. A simples existência de uma figura social – o griô – que exige ser reconhecida na sua diferença racial aparece como provocação para uma ideologia nacional que promulga o esquecimento da racialização, dissolvida na comunhão mestiça brasileira. As práticas de promoção da memória territorial do negro brasileiro, se sustentam no alinhamento com referentes afro-centrados, que não necessariamente se apoiam na historiografia branca da ciência moderna. A existência do griô afro-brasileiro contemporâneo tem o estatuto de verdade do mito, que diferentemente da epistemologia romântica da essência originária, extrai sua força da aparência. Esta palavra, associada à cultura negra no Brasil, serve como “recurso provisório de designação de uma cultura mítica que não mais se caracterize só pelo exercício de uma estrutura fundadora ou originária (africana), mas também por um empenho agonístico com a ideologia dominante no Brasil, que se descreve como a ordem da história” (SODRÉ, 1983, p. 136). Com esta perspectiva ontológica se forçam os limites das políticas públicas de cultura de vocação universalista, com problemas para oferecer um tratamento diferenciado para o diferente. A figura dos “Mestras dos Saberes e Fazeres das Culturas Populares” tem utilidade na linguagem jurídica e institucional, para contemplar e reconhecer toda uma série de práticas e saberes desprezados pela arte e ciência moderna que historicamente monopolizam o favor do estado. Mas ao mesmo tempo esta homogeneização é observada como ameaça descaracterizante, pelo que salientar o nome específico que diferencia cada mestre se torna uma urgência. Nesse contexto, o “griô” emerge com força, pela sua capacidade de conetar os mestres afro-brasileiros com outras geografias africanas ou da Diáspora. Esta hipótese abre uma agenda de pesquisa, entroncada com uma ecologia de conhecimentos que vêm sendo construída na universidade brasileira. Esta agenda começa pela compreensão das condições básicas das práticas de produção e transmissão do conhecimento realizadas

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pelos griôs, para possibilitar o diálogo com as artes e ciências da modernidade ocidental. Isto se concretaria num acompanhamento etnográfico dos griôs que abrisse os caminhos do aprendizado, buscando os pontos de solapamento e incomunicação a ressolver. Mas ao mesmo tempo urge buscar soluções institucionais criativas para fortalecer este renascimento, apoiando a proliferação da diferença na ecologia epistêmica brasileira. Para além das instituições culturais contempladas nas políticas públicas (museus, Pontos de Cultura, bibliotecas, centros comunitários etc), o espaço acadêmico que centraliza a Universidade parece oferecer grandes oportunidades de reconhecimento e aprendizado mútuo, como mostra o caminho trilhado pelo programa “Encontro de Saberes” (CARVALHO, VIANA e ÁGUAS, 2015).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARZANO, Marco Antônio Leandro. Grãos de Luz e Griô: dobras e avessos de uma ONG-Pedagogia– Ponto de Cultura. Tese (Doutorado em Educação). Campinas: UNICAMP, 2008. BARBOSA, Frederico e ARAÚJO, Herton Ellery (orgs.) Cultura viva : avaliação do programa arte educação e cidadania. Brasília : Ipea, 2010. CARVALHO, José Jorge; VIANNA, Letícia C. R. e ÁGUAS, Carla. Encontro de Saberes : Política de inclusão de Mestres das culturas tradicionais na docência do ensino superior. Anais do VI Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 26-29/05/2015. pp. 760-773. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973 GILROY, Paul. Entre Campos. Nações, Culturas e o Fascínio da Raça. São Paulo: Annablume, 2007. HAMPATÉ BÂ. Amadou. A Tradição Viva. Em: KI-ZERBO, Joseph (Ed.). História Geral da África. Vol 1. - Metodologia e pré-história da África. Brasilia: UNESCO, 2010. pp. 167-213. LOPES, Juliana. Experimentações em Cultura, Educação e Cidadania: O Caso da Associação Grãos de Luz e Griô. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: FGV – CPDOC – Programa de PósGraduação em História, Política e Bens Culturais, 2009. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte, Autêntica, 2008. PACHECO, Lilian. Pedagogia Griô: A reinvenção da Roda da Vida. Lençois - Bahia: Ministério da Cultura do Brasil, 2006. PINHEIRO, Cristiano Guedes. Narrativas de educação e resistência: a prática popular griô de Dona Sirley. Dissertação (Mestrado em Educação) Pelotas: UFPel, 2013. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Em: LANDER, E. (comp.) La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/quijano.rtf

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MÚSICA COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: UM DEBATE SOBRE O PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL E A PRESERVAÇÃO DE ACERVOS MUSICAIS Karina Barra Gomes1 Simonne Teixeira2 RESUMO: O artigo propõe um debate a respeito do patrimônio cultural e das questões pertinentes a ele e dá destaque aos acervos de música brasileira da atualidade. Considera a amplitude que o conceito de patrimônio adquiriu ao longo do tempo e contextualiza os acervos de música brasileira como um patrimônio, expondo os sentidos e o lugar que os patrimônios imaterial e material têm encontrado na identidade musical do Brasil. O trabalho mostra algumas tentativas que foram realizadas no século XX e XXI em relação às políticas de cultura de valorização do patrimônio musical no país, bem como a difusão, preservação, conservação e tratamento dos patrimônios presentes em alguns acervos musicológicos, com destaque para o acervo fonográfico da Casa de Cultura Villa Maria/CCVM-UENF, abrigado no município de Campos dos Goytacazes, RJ. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural, Acervos de música brasileira, Patrimônio Musical, Políticas Culturais.

A partir de uma exposição com base na literatura especializada sobre a evolução do conceito de patrimônio cultural e sua importância, buscamos, neste texto, refletir sobre a importância dos acervos musicais e as possibilidades de sua apropriação no contexto de um projeto de cultura para a Universidade. Com isto, pretendemos dar visibilidade ao acervo fonográfico da Casa de Cultura Villa Maria/CCVM que começou a conformar-se a partir da doação da casa a então, recém fundada, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, em Campos dos Goytacazes/RJ, no ano de 1993.

Licenciada em Música pela UNIRIO, Mestre em Políticas Sociais e Doutoranda em Políticas Sociais pela UENF, professora de Arte na rede pública de ensino em Campos dos Goytacazes/RJ. Email: gomes.karina@ gmail.com 2 Doutora em Filosofia e Letras (História) - UAB/Barcelona; professora associada e atualmente Assessora da Reitoria para a Casa de Cultura Villa Maria, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Email: [email protected] 1

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1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PATRIMÔNIO CULTURAL Como definição inicial para o termo já consagrado ‘Patrimônio Cultural’ levamos em consideração a definição de Canclini (1997), em que podemos incluir enquanto tal, a herança de cada povo, as expressões de sua cultura, os bens culturais visíveis e invisíveis: artesanatos, línguas, conhecimentos, documentação e a comunicação do que expande através da indústria cultural. Nesta perspectiva, os bens culturais podem ser tanto os produzidos pela classe hegemônica (museus, obras de arte, casas de cultura), quanto os da cultura popular (música de povos, escritos de operários e bens simbólicos de todos os grupos sociais). A origem semântica da palavra patrimônio, segundo Choay, está ligada “às estruturas familiares, econômicas e jurídicas da sociedade estável” (CHOAY, 1999, p.11) possuindo como adjetivos: genético, natural, histórico, entre outros, o torna em sua acepção, um conceito “nômade”. O termo patrimônio sofreu transferência semântica em seu significado enquanto ambiguidades e contradições articulavam visões distintas para o patrimônio histórico e os comportamentos associados a ele (CHOAY, 1999). A maioria dos autores que discutem o patrimônio concorda com o fato de ser este um conceito moderno, relacionado ao surgimento do Estado-Nação. É este o estofo que permite o amplo desenvolvimento conceitual, sobretudo se observamos a relação entre patrimônio e a ciência; o “patrimônio pretende encarar as visões gerais da ciência, quando a nação começa a tomar consciência de si mesma como uma nação” (POULOT, 2011, p.476). Nesse aspecto, ele aponta que esta conscientização de nação seria um tipo de abertura para o futuro, ao mesmo tempo em que possibilita o laboratório e o arquivo da história no que concerne à construção de uma identidade a partir do reconhecimento do patrimônio dentro de um país. Todavia, a oposição hoje existente entre o patrimônio da tradição e o “patrimonialismo moderno” envolve várias formas de apropriação. Após a Revolução Francesa, na Europa, “o desenvolvimento da ciência dos antiquários ou colecionadores fortalecia as ligações entre o patriotismo e as pesquisas artísticas ou arqueológicas” (POULOT, 2011, p. 474). O uso tradicional do patrimônio se baseia na familiaridade da vida cotidiana, mas a patrimonialização moderna se legitima por meio de uma leitura esclarecida e crítica das obras de arte e dos objetos (POULOT, 2011). A amplitude e o ecletismo que o conceito de patrimônio vem adquirindo, no decorrer do século XX, proporciona uma posição de destaque a certos objetos, práticas, habilidades e a proteção de costumes locais no mesmo plano de gêneros de vida ameaçados de extinção (POULOT, 2009), nos quais os valores da civilização estão envolvidos. Dentro dessa perspectiva e na ótica de Poulot (2009), o próprio patrimônio determina as condições concretas de sua abordagem e o pesquisador é conduzido ao âmago de seu quadro de valores. A compreensão do patrimônio histórico e artístico foi bastante ampliada ao serem inseridos, como parte de sua representação, os bens imateriais, para além dos bens materiais de

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“pedra e cal”3. O patrimônio imaterial ou intangível é, segundo definição de Fonseca, aquele que “não se materializa em produtos duráveis” (FONSECA, 2003, p.66). Ele se relaciona com o transitório, com o fugaz, são representações simbólicas, tais como a arte dos repentistas, a pintura corporal indígena, as festas e manifestações populares e a música, que têm sentido apenas dentro de seu próprio contexto (FONSECA, 2003). Neste sentido, Fonseca (2003) propõe que a imaterialidade está na representatividade dos bens nos termos da diversidade social e cultural, o que é essencial para que a função do patrimônio se concretize, onde os grupos sociais podem se identificar e se reconhecerem nesse patrimônio, se apropriando e exercendo sua cidadania. Contudo, o reconhecimento de novos patrimônios implica numa disputa pela sua conservação e transmissão, bem como em esforços púbicos e privados em favor de múltiplas comunidades numa busca por esse reconhecimento (POULOT, 2009). A este propósito, Choay (1999) adverte que o crescimento dos tipos de patrimônio e sua adequação aos valores científicos, estéticos, memoriais, sociais e urbanos sofreram mudanças à medida que as sociedades foram se adequando aos efeitos da industrialização. Todas as alterações ocorridas no decorrer do tempo sobre os bens patrimoniais foram acompanhadas pelo crescimento do seu público, ainda que os acordos patrimoniais e o ajuste das práticas conservadoras em relação ao patrimônio não se faziam e nem se fazem “sem a presença de dissonâncias” (CHOAY, 1999, p.14) que conflitam em torno do mesmo. Entretanto, as ameaças que pairam sobre o patrimônio não impedem que haja um consenso em favor da sua conservação e sua proteção. Diversos autores tem se debruçado a refletir sobre estas dissonâncias ou disputas com respeito ao patrimônio a ser preservado, ou não, e sua relação com espaços públicos (POULOT, 2009; CHOAY, 1999; ARGAN, 1998). Principalmente porque, ao mesmo tempo em que a preservação das antiguidades nacionais era entendida como um dever patriótico, a patrimonialização coincidia “amplamente com a tradição da cultura erudita” (POULOT, 2009, p. 22). Porém, o apelo ao nacionalismo popular privilegiou a formação de coleções capazes de retornar às origens coletivas de uma nova comunidade imaginária, principalmente no concernente ao patrimônio imaterial. Contribui, para tanto, uma ampliação do conceito de cultura, a partir dos 1960, favorecido pela emergência de novos grupos identitários, na busca de novos objetos pela antropologia e pela história, que procuraram dar voz aos diferentes grupos culturais, antes completamente subordinados às identidades nacionais. Os manejos políticos que vinham se desencadeando revelaram que o patrimônio era resultante de reconstruções com base na classificação e na escolha,

O termo se refere ao fato de os primeiros bens “tombados” no Brasil, limitarem-se ao patrimônio arquitetônico, exclusivamente.

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ainda que políticas educativas e culturais tenham contribuído para o culto da herança patrimonial, desde a segunda guerra até as últimas décadas (POULOT, 2011). No Brasil, esta mudança se faz notar, com mais ênfase, na década seguinte, quando teve início a implementação de importantes ações que foram marcos na história das políticas culturais no país, ainda sob o regime militar (CALABRE, 2015). Podemos citar, como exemplo, a criação de novas instituições, entre elas, a Funarte (CALABRE, 2014). Todavia, essas ações não consistiram ainda numa prática que envolvesse o conceito plural de cultura. No entanto, para Calabre (2015), o campo dos estudos da cultura no âmbito acadêmico passou a ser expressivo a partir dos anos 2000. Neste período, a pluralidade do conceito de cultura passou a ser considerada pelos gestores e elaboradores das políticas culturais no Brasil. Simultaneamente, novos atores, grupos sociais e novos olhares sobre os campos da cultura e do patrimônio se efetivavam no campo das políticas de cultura. 2. O PATRIMÔNIO MUSICAL E AS POLÍTICAS CULTURAIS No âmbito das políticas culturais no Brasil, os Indicadores Culturais (CULTURA EM NÚMEROS, 2010) apresentam um diagnóstico que aponta a força e a realidade cultural do país. Consideramos que os indicadores culturais são ferramentas importantes para um entendimento da realidade cultural, sendo imprescindível conhecer seus resultados (divulgados pelo Ministério da Cultura), que podem contribuir para aprimorar a gestão de atividades culturais em municípios e a nível da federação. Nolasco (2010) afirma que os Indicadores Culturais têm grande importância para a formulação de políticas culturais, pois eles agregam sentido aos dados trabalhados, contribuem para a definição de prioridades nas políticas culturais e para a efetividade dos programas existentes, organizam cadastros e pesquisas setoriais. Os patrimônios imateriais referentes à cultura popular brasileira têm sido anotados e catalogados pelos Indicadores Culturais. Grupos artísticos de manifestações tradicionais populares foram identificados nos seus respectivos estados ou unidades federativas, bem como grupos de capoeira, escolas de samba e grupos carnavalescos. Também têm sido registrados nos Indicadores festivais, concursos, mostras, oficinas e cursos de música oferecidos em todo o país, assim como os grupos artísticos de orquestras, bandas civis e corais (CULTURA EM NÚMEROS, 2010), o que vem demonstrar a força e os impactos do campo da música na cultura brasileira. Ao abordar o tema do patrimônio musical, dificilmente pode-se deixar de considerar tanto as ideias de patrimônio imaterial, quanto as de patrimônio material, pois há, segundo Cotta (2011), uma indiscutível contribuição que estes conceitos trouxeram ao campo da música. A música é uma manifestação cultural que possui uma nítida interface material e imaterial. A interface material se expressa nos instrumentos, equipamentos, livros, acervos, arquivos,

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coleções, impressos, partituras, obras raras, manuscritos musicais, documentos que caracterizam a história da música. O seu âmbito imaterial é representado pelas tradições, pelo conhecimento musical informal transmitido de músico para músico, pelas práticas sociais vivenciadas e pelo simbolismo ou “corpus simbólico” (COTTA, 2011, p.469) que é absorvido pelas comunidades onde as práticas musicais se perpetuam ao longo do tempo. O patrimônio cultural, no que se refere aos grupos musicais, expressa a solidariedade que une os que compartilham um conjunto de bens e práticas que os identifica, preservando um prestígio histórico e simbólico sendo, neste sentido, um lugar de cumplicidade social e que, portanto, aponta para a importância de serem adotadas políticas de preservação e difusão de acervos literários e musicais que representam a vida social e a memória histórica (CANCLINI, 1997). A tradição presente na história da transmissão da cultura e do saber musical popular mostra que os músicos brasileiros sempre foram os “portadores ativos” das tradições populares, ou os guardiões ou “mantenedores” da tradição musical (BURKE, 2010, p.130-131), portanto, artistas populares que deram início à formação de um patrimônio imaterial musical no país. Para Canclini (1997), as políticas de patrimônio, de conservação e de administração do que foi produzido no passado se torna algo necessário, a fim de possibilitar o acesso do patrimônio musical a sua comunidade. Segundo Cotta (2011), a partir de 2003, alguns avanços foram viabilizados por uma mudança nas políticas públicas para a área da cultura e isso possibilitou uma maior acessibilidade, também, às verbas públicas, através de editais públicos e programas culturais desenvolvidos por empresas. Com isso, passamos a ter uma maior democratização do acesso às fontes musicológicas que se encontravam inacessíveis devido às políticas restritivas de acesso, por razões de preservação ou de competição intelectual e acadêmicas (COTTA, 2011). Mas muitas dessas fontes já se encontram disponíveis por meio digital em sites, acervos musicais de bibliotecas e museus brasileiros, pois foram digitalizados. Isso se tornou possível devido não só aos avanços da tecnologia, mas também a um esforço político de musicólogos, que participaram de congressos desde a década de 1990 e os primeiros anos do século XXI, para que isso ocorresse. No entanto, é preciso reconhecer que, em pleno século XXI, é importante que haja uma política efetiva de tratamento e preservação do Patrimônio Musical Brasileiro, no que se refere aos acervos musicais (COTTA, 2011). Uma mobilização dos profissionais ligados a esta área multidisciplinar poderá viabilizar as ações necessárias para favorecer essa política de cultura. Somente a consolidação de um espaço que viabilize uma ação coletiva de profissionais de áreas transdisciplinares como a musicologia, artes, ciências da computação, biblioteconomia, arquivologia e história possibilitará a discussão e o estabelecimento de normas descritivas para fontes musicais manuscritas e impressas, registros sonoros, produção e conservação dos docu-

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mentos digitais, definição de normas técnicas, e políticas de preço para a reprodução digital de documentos em acervos públicos e privados (COTTA, 2011). É preciso considerar que, apesar dos avanços que foram alcançados por estes profissionais, este é um processo iniciado ainda nas primeiras décadas do século XX, impulsionado por intelectuais do Modernismo no Brasil, dentre os quais se destaca Mário de Andrade. Estes “foram os protagonistas no pensar a ampla e nuançada questão do patrimônio, material e imaterial” (TONI, 2013, p.61). As duas viagens de Mário de Andrade para o norte e nordeste do Brasil entre os anos de 1927 e 1929, ocorreram numa tentativa de encontrar os cantos e danças espalhados pelo país, ainda assim, dando início, com essa pesquisa pioneira, à organização de um material coletado que antes não havia sido registrado por um musicólogo. Mário, na ocasião, anota “com escrúpulos centenas de melodias cantadas” (SANDRONI, 1999, p.60), inaugurando o registro do repertório musical brasileiro não erudito, que tardou ao menos 40 anos para ser revisitado. Chuva (2012) nos faz recordar, que foi justamente na década de 1920, que ocorreu na sociedade brasileira uma associação entre modernidade e nacionalidade, o que gerou uma conjuntura caracterizada de modo bastante singular com a fundação das ações de proteção do patrimônio no Brasil. Estas, finalmente, se concretizam com a criação da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/SPHAN, através do Decreto Lei nº25/1937. A terceira viagem de Mario de Andrade, já organizada no Departamento de Cultura do município de São Paulo, ocorreu em 1938 e ficou conhecida como Missão de Pesquisas Folclóricas. Embora envolvido com a organização desta viagem, Mário não participou pessoalmente, tendo sido esta comandada pelo arquiteto Luís Saia. Segundo Toni (2013), esta foi uma iniciativa fundamental “para se conhecer um pouco a variedade musical do país”, até então o que havia eram “raros registros de melodias, cantigas e bailados” (TONI, 2013, p.61), em livros ou em discos. Segundo Poulot (2011), uma das questões centrais da história cultural do patrimônio é saber negociar entre os objetos de memória do passado e suas novas civilidades e atributos, pois não se pode deixar de considerar que os três elementos do passado foram reunidos em breves percursos ao logo do tempo: patrimônio, memória e história. Nora (1993) consagrou a ideia de “lugares de memória”, com base na perspectiva de uma ruptura entre a memória e a história, da qual decorre uma a necessidade de lugares de memória pelo fato de não haver mais meios de memória (NORA, 1993, p.13). Para o autor, os lugares de memória possuem três sentidos: material, simbólico e funcional. E, ainda que seja um lugar de aparência material, como um depósito de arquivos, ele consiste de um lugar de memória “se a imaginação o investe de uma aura simbólica” (NORA, 1993, p.21). Sem almejarmos a reduzir estes lugares de memória a um sítio topográfico, a um depósito arquivístico, entendemos que os locais que abrigam os acervos, musicais em nosso caso, devem ser vistos como espaços mistos,

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híbridos e mutantes, “enlaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel” (NORA, 1993, p.22). A questão pertinente para esta reflexão acerca do patrimônio musical, acervos musicológicos e memória seria identificar os “lugares de memória” que sejam abrigo para objetos ou documentos que remetem a um passado, bem como suas novas civilidades e atributos, o que se alinhava com as questões centrais da história do patrimônio4. Uma tentativa de ilustrar este debate se manifesta na menção de alguns acervos e coleções de registros musicais brasileiros que têm sido preservados nos últimos vinte anos, bem como na apresentação do acervo fonográfico que está abrigado na Casa de Cultura Villa Maria/UENF. 3. OS ACERVOS MUSICOLÓGICOS BRASILEIROS Os locais que buscam preservar o passado são lugares que abrigam a memória. Para Alvisi (2007), eles desejam evocar o passado para trazê-lo ao presente como um lastro, pois neles fragmentos de vivências adquirem significados que persistem através das iniciativas desses lugares de memória. A salvaguarda, o reconhecimento e a identificação dos bens de produção, informação e documentação implicam na ação ativa de atores sociais nesses processos de preservação, e não somente na ação do Estado como lócus único destes. Ao mencionar a articulação de políticas de salvaguardas e uma visão integrada da sociedade das dimensões material e imaterial do patrimônio cultural, Sant’anna (2007) propõe uma reflexão acerca das políticas de cultura onde os grupos de pessoas se apropriam e se identificam o que lhes é importante. No Brasil, alguns acervos musicais atuais estão bem mais completos de fontes e organizados do que foram no fim da década de 1990 ou início dos anos 2000, segundo Cotta (2011). Com o suporte da tecnologia, muitos documentos se encontram digitalizados e podem ser acessados em sites, o que permitiu e facilitou o acesso dos pesquisadores às fontes. Segundo Blanco (2006), os acervos musicais baianos têm sido pesquisados devido a sua importância, pois sua tradição musical vem desde a colonização europeia. Ainda assim, o autor menciona o prejuízo que o estado da Bahia teve diante dos deslocamentos de acervos, coleções privadas, coleções do Convento do Carmo de Salvador e obras de compositores que foram promovidos às metrópoles brasileiras ou estrangeiras. Blanco (2006) associa esses deslocamentos à pouca importância que era dada à música erudita brasileira pelos baianos, o que prejudicou o interesse das pessoas pelo passado musical baiano. Portanto, a musicologia da Bahia demorou a se consolidar como campo acadêmico.

E aqui, em um sentido mais amplo, tendo-se em conta a pesquisa de mestrado desenvolvida por uma das autoras sobre as bandas civis centenárias de Campos dos Goytacazes, na UENF, defendida em 2008.

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Em 2006 (BLANCO, 2006), havia vinte instituições possuidoras de acervos relativos à música em Salvador. Nos 500 municípios baianos, havia 190 fundos de documentos musicais pertencentes a arquivos públicos estaduais e municipais, sociedades filarmônicas civis, coleções privadas e acervos bibliográficos. O Instituto Moreira Salles (IMS) foi fundado em 1990 e tem como objetivo difundir, preservar, dar tratamento e divulgar acervos de imagens, literatura e som. Ele se estende pelo estado de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo Franceschi (2007), o IMS é uma entidade civil sem fins lucrativos, mantido pelo UNIBANCO, inicialmente e, posteriormente, ampliada pela família Moreira Salles. O IMS se dedica exclusivamente ao desenvolvimento de programas culturais, entre eles projetos na área de fotografia (acervos e exposições), literatura (projetos editoriais), cinema (exibições), artes plásticas e visuais (pinacoteca), música brasileira (acervos e recitais). No que tange à preservação da memória da música brasileira, o IMS abriga diversos acervos que foram reunidos ao longo do século XX por artistas, jornalistas e pesquisadores (FRANCESCHI, 2007). Entre eles estão o acervo do crítico musical José Ramos Tinhorão, a coleção do pesquisador Humberto Franceschi e a de Boris Schneiderman (1917-2003), “uma das melhores discotecas de música erudita internacional existente no país”, segundo Franceschi (2007, p.152). Somam um total de discos em 78 rpm e um repositório de 80 mil fonogramas. A preservação de acervos documentais e de música impressa do IMS inclui partituras de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Pixinguinha, sendo que muitas delas são manuscritas, destacando um dos períodos mais relevantes da formação da música brasileira para estudos e pesquisas nesta área (disponível em http://www.ims.com.br/ims/instituto/historia). O Acervo do Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro, que já foi denominado como o arquivo de música da Real e Imperial Sé Catedral do Rio de Janeiro, teve toda sua seção musical tratada e digitalizada, em 2005. Os manuscritos são originais e algumas partituras estão autografadas por José Maurício Nunes Garcia, um dos nomes de referência da música erudita sacra brasileira (COTTA, 2011). O Museu de Música de Mariana também teve seus arquivos de áudio editados e gravados pelo Projeto Acervo da Música Brasileira / Restauração e Difusão de Partituras, realizado entre 2001 e 2003. O acervo encontra-se on-line e ainda disponibilizado através de um banco de dados no site do Museu, segundo Cotta (2011). Outros exemplos de acervos brasileiros são o Setor de Musicologia do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, onde se pode encontrar a coleção inteira do musicólogo Francisco Curt Lange e o Acervo Curt Lange da Universidade Federal de Minas Gerais (ACL-UFMG), que contém o arquivo pessoal do musicólogo.

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A Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mantém o Setor de Manuscritos da Biblioteca Alberto Nepomuceno, que também passou por um avanço no sentido da disponibilidade das fontes digitalizadas. A Divisão de Música e Acervo Sonoro da Biblioteca Nacional (DIMAS-BN), segundo Cotta (2011), é considerado o maior acervo público de fontes para pesquisa musicológica no Brasil em termos de quantidade de fontes e se localiza no Rio de Janeiro. A inacessibilidade dos acervos musicais foi bastante superada com os avanços da tecnologia digital, o que favoreceu os pesquisadores que podem ter acesso livre e gratuito também em banco de dados. Contudo, para Cotta (2011), a grande dificuldade que se apresenta em relação aos acervos disponibilizados via internet é a sua inconstância, a curta duração, as mudanças de endereços na web e a instabilidade no acesso, pois os sites estão constantemente em manutenção. 4. O ACERVO MUSICAL DA CASA DE CULTURA VILLA MARIA A Casa de Cultura Vila Maria foi doada a Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro, no ano de sua fundação em 1993. A casa, construída em 1918, como um presente de seu esposo à Maria Tinoco Queiróz, foi deixada por esta em testamento, na ausência de herdeiros, à primeira Universidade que viesse a instalar-se na cidade de Campos dos Goytacazes. A casa de estilo eclético, rodeada de um amplo jardim, tornou-se a Casa de Cultura Villa Maria/ CCVM da UENF, sede da Reitoria e espaço cultural por excelência da universidade. Quando da instalação da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, o filósofo José Américo Motta Pessanha elaborou, a pedido de Darcy Ribeiro, um projeto para a Casa de Cultura Villa Maria. Em seu projeto, Pessanha assinala que a Villa Maria, “está projetada para a prestação de serviços à comunidade e ao mesmo tempo ser cartão de visitas da Universidade Estadual do Norte Fluminense” (RIBEIRO, 1993, p.179). Inspirados nesta proposição foram criados diversos setores na CCVM que tinham por objetivo a promoção e a difusão da cultura para a comunidade local. Entendemos que, se tratando de uma casa de cultura, que as prestações de serviço à comunidade dizem respeito às atividades culturais. Entre 1994 e 2009 foram realizados muitos eventos com a presença de cantores, músicos, palestrantes, pesquisadores locais e de fora da cidade. A Casa contava, e ainda conta, com um rico acervo acolhido em seus diversos setores: fonoteca, hemeroteca, sala de leitura e videoteca. Havia também um auditório que servia à projeção de vídeos. Em tempos mais recentes, ele abriga uma sala com internet comunitária, um projeto desenvolvido por professores da UENF (Villa Livre) que, em seu momento, constituiu-se no primeiro ponto de internet grátis no município5.

O projeto Villa Livre promove internet gratuita para a comunidade utilizando software de código aberto, e desenvolve atividades como: oficinas de digitalização, de áudio e vídeo e curso de iniciação em Linux.

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A Casa de Cultura Villa Maria permaneceu nos últimos anos (2008-2015) sem a presença de um diretor e, na atualidade, ela pouco tem cumprido essa função primordial. As prestações de serviços são acanhadas e quase inexistentes, e ela não tem ocupado o protagonismo de ser, de fato, o cartão de visitas da UENF. Neste período, os diversos setores ficaram sem projetos sistemáticos de manutenção das atividades e dos acervos. Com a eleição de uma nova Reitoria (gestão 2016-2019), a CCVM tem sido objeto de um renovado interesse pela comunidade universitária. Um dos acervos mais importantes da CCVM é o da fonoteca. Este vasto acervo musicográfico, inclui fontes documentais e sonoras referentes à música local, brasileira e estrangeira. Entre as fontes sonoras presentes no acervo, a diversidade de gêneros e estilos musicais é bem ampliada e, para vários estilos de gostos, preferências e épocas, que vai do popular ao erudito. Este amplo acervo atendeu, nos primeiros anos de funcionamento da casa, um expressivo público local, que acorria à Casa de Cultura para escutar música. Estas audições ocorriam em uma sala equipada com poltronas e auriculares e o usuário podia escolher, em uma relação de músicas, as que desejava ouvir. Também eram promovidas, ocasionalmente, audições coletivas. O acervo musical do qual pretendemos tratar nesta ocasião, abriga um amplo espectro de estilos musicais, com itens que vão desde a cultura musical erudita à popular em que inclui diversas partes do mundo. Está formado por 17.000 fonogramas, registrados em diversos tipos de suportes: LPs, fitas cassetes, fitas Dat, fitas de rolo, CDs e mini CDs. Dentre os LPs, podem ser encontrados discos de vinil de 33 rpm de rotação, discos compactos e discos de acetato. Este acervo começou a constituir-se com a instalação da Universidade, a partir de doações. O próprio Darcy Ribeiro, criador e chanceler da UENF doou, em seu momento, aproximadamente 500 itens, entre fitas Dat e discos de vinil. Rádios locais, como por exemplo, a Litoral FM, doou 300 LPs. A primeira Rádio de Campos dos Goytacazes, Rádio Cultura de Campos (a 1ª Rádio do antigo Estado do Rio de Janeiro) doou aproximadamente 1.500 LPs, sendo que, em sua maioria são LPs de acetato (de 78rpm). Além das rádios, pessoas da comunidade, embaixadas e outros fizeram doações ao acervo da CCVM, parte delas anônimas. Entre 1993 e 2009, Casa de Cultura Vila Maria participava dos Catálogos do projeto Viva a Música, evidenciando a importância, a nível nacional, do seu acervo. Em 2003 teve início o processo de digitalização dos fonogramas (LPs e fitas K7), como parte de um projeto de pesquisa estimulado pelo então diretor da CCVM e com a participação de funcionários e bolsistas. O Orfeão Santa Cecília de Campos dos Goytacazes6 também contribuiu financeiramente com a digitalização de parte da coleção de LPs e fitas K7 de parte do acervo. Como já advertimos, até 2009, a fonoteca funcionava regularmente, disponibilizando todo o material para acesso gratuito ao público, quando seu funcionamento foi suspenso por Sociedade Musical criada em 1941, pelo musicista Newton Périssé Duarte, também autor da música do hino da cidade (Campos Formosa). 6

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tempo indeterminado e seu foco passou a ser a formação de um Núcleo de Pesquisa e Documentação Musical que se dedicou à preservação dos fonogramas, partituras e fitas VHS que trazem documentários, shows gravados, filmes que contam a vida e a obra de músicos, livros e recortes de jornais. Alimentado sempre por doações, a incorporação destes novos itens ao acervo, tornou-se um processo acumulativo, sem um programa de divulgação da coleção. A falta de recursos interrompeu o processo de digitalização e diminuiu a verba destinada à conservação do acervo. A preservação deste patrimônio, de caráter material e imaterial7, é um dos grandes desafios a serem enfrentados neste momento pela nova gestão da Universidade. Depois de 22 anos de criação, a UENF se destaca no cenário nacional como uma importante Instituição de Ensino Superior e faz-se necessário repensar o lugar da CCVM neste novo cenário. Dentre os aspectos a serem considerados estão os seus acervos. Acreditamos que neste recomeço, a CCVM deva incentivar e fomentar atividades de pesquisa e produção cultural. Entendemos que a pesquisa e a produção devem configurar-se ainda, como caminhos de aproximação da Universidade com a cidade e a região. No lugar de, simplesmente, abrigar exposições eventuais e seminários, ela mesma deve ser capaz de propor temas e análises sobre questões culturais convocando a comunidade universitária e local ao mais amplo diálogo. A exemplo da proposta original da UENF, que direciona à experimentação – daí os Laboratórios no lugar dos departamentos – a Villa Maria deve situar-se como um espaço de experimentação, sobretudo no campo da cultura, o que constitui sua natureza. As artes, o ensino das artes e o incentivo da criatividade devem ser permanentemente estimulados no ambiente universitário, na mesma medida em que se estimula o conhecimento científico. Uma casa de cultura vinculada à instituição universitária deve desenvolver plenamente suas atribuições (ensino, pesquisa e extensão), tomando para si estas competências de modo criador. Assim, deve incorporar as mais diferentes manifestações da criatividade humana, evitando a mera reprodução das práticas culturais hegemônicas e de massas, diferenciando-se pela qualidade crítica e investigativa. É neste âmbito da pesquisa que deve ser pensado o acervo fonográfico, como um espaço aberto à consulta e à descoberta, completamente digitalizado e acessível pela web. Para tanto, deu-se início a um detalhado inventário do acervo fonográfico, ao mesmo tempo em que se procura definir formas de implementar um banco de dados que possa estar disponível na internet, com os conteúdos já digitalizados.

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Material porque são documentos, mas imaterial devido ao seu simbolismo, valor e significado únicos.

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SITE Instituto Moreira Salles - http://www.ims.com.br/ims/instituto/historia. Acesso em 12 de fevereiro de 2016.

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CAMPOS DOS GOYTACAZES NO PALCO DA CULTURA: 2005 A 2014 Kátia Macabu de Sousa Soares1 Denise Cunha TavaresTerra, D.Sc.2 Lia Calabre de Azevedo, D.Sc.3 RESUMO: Neste artigo analisa-se o processo de participação da população de Campos dos Goytacazes na elaboração da Política Pública de Cultura do município no período de 2005 a 2014. Para tal, adota-se o método qualitativo de pesquisa por meio de entrevistas em profundidade com representantes da sociedade civil que participaram dos Conselhos e/ou das Conferências de Cultura realizadas no período de estudo proposto, além de fontes documentais como atas do Conselho Municipal de Cultura. Verificou-se que no município o ator principal da política cultural é a institucionalização da cultura e não a sociedade. Por isso, propõe-se a adoção de procedimentos participativos na construção e execução da política cultural por meio da cogestão da sociedade civil na realização de uma política de Estado. PALAVRAS-CHAVE: cidadania cultural, política pública de cultura, participação

1. INTRODUÇÃO A sociedade brasileira, de modo geral, tem atuado como plateia, receptora e passiva, diante das políticas culturais adotadas, permanecendo alheia às decisões a serem tomadas e ignorando suas oportunidades de participação ativa na vida cultural rica e diversa do país. Posiciona-se como se estivesse em espetáculo teatral, diante de um palco italiano, sendo simplesmente plateia e desempenhando um papel de espectador, sem qualquer interação com o que se representa sobre o palco e/ou com os que estão no palco. O que significa dizer que a sociedade se encontra bem distante de sua atuação como personagem protagonista da política cultural implantada [ou em vias de ser] pelos governos nas três esferas de poder.

Mestre em Planejamento Regional e Gestão de Cidades, UCAM-Campos/Professora e Coordenadora do Curso de Licenciatura em Teatro do IFFluminense: [email protected] 2 Professora colaboradora, Orientadora do trabalho de dissertação de Mestrado da autora, UCAM/UENF: [email protected] 3 Professora convidada, coorientadora do trabalho de dissertação de Mestrado da autora, FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA: [email protected] 1

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Questiona-se, qual seria o lugar da sociedade civil, então? Apoiando-se na dramaturgia, afirma-se que seu lugar, quando protagonista, é basicamente o palco, espaço no qual se desenvolvem as cenas; neste trabalho, é o ponto de maior destaque de uma ação coletiva e protagonista na elaboração e na execução da política cultural. Partindo desta premissa, remete-se à Estética do Oprimido de Boal em contraponto ao papel passivo que o público desempenha no desenho do teatro aristotélico no qual se utiliza o recurso da quarta parede, sem qualquer conexão entre palco/atores e plateia/público. Na metodologia de Boal, o espectador é chamado a assumir seu lugar no palco, levando sua realidade opressora até ele para ali, diante de uma plateia atuante, iniciar sua transformação. Nesta estética, o espectador deve ser transformado. Boal, portanto, subverte os lugares e as posições, inclusive os espaços, onde o palco pode ser qualquer lugar e o protagonista, qualquer indivíduo. Elimina-se, assim, a diferença entre ator/espectador, derrubando-se uma primeira opressão, pois este deixa de ser imobilizado por aquele e passa a interagir diretamente com a peça. Retorna-se a questão, levantando-se outra premissa: se o palco é essencialmente o lugar do protagonista e este papel deveria ser exercido pela sociedade nas ações e políticas públicas de cultura, pode-se afirmar que este é o lugar ocupado pela sociedade brasileira na última década? Depende, entre outras questões, da dimensão em que se formulam as políticas públicas de cultura. Sob a ótica das dimensões sociológica e antropológica, possibilita a promoção da democracia cultural, porque procura identificar a cultura como ela é vivida pela população e pelo indivíduo. Rubim (2011) afirma que um Estado, quando regulado democraticamente pela sociedade, pode conformar uma cultura pública, não redutível à mera feição estatal. Contudo, adverte Botelho (2001) que embora se elejam a dimensão antropológica da cultura como a mais nobre, porque é mais democrática, seria exatamente esta dimensão uma das principais limitadoras das políticas públicas. Acrescenta que [...] ela é a expressão dos sentidos gerados interativamente pelos indivíduos, funcionando como reguladora dessas relações e como base da ordem social. Por isso mesmo, ela acaba sendo privilegiada pelo discurso político, principalmente nos países do Terceiro Mundo, onde os problemas sociais são gritantes e suas economias dependentes. (BOTELHO, 2001, p.75) Neste diálogo, insere-se Chauí (2008) que argumenta que, mesmo não sendo o Estado produtor e nem ferramenta para o consumo da cultura, a relação entre eles se dá quando aquele a concebe como um direito do cidadão, assegurando-lhe “o direito de acesso às obras culturais produzidas, particularmente o direito de fruí-las, o direito de criar as obras, isto é, produzi-las, e o direito de participar das decisões sobre políticas culturais”. (ibid., p. 65). Além de os cidadãos terem o direito de intervir na definição de diretrizes culturais e dos orçamentos públicos na formulação da política cultural. Isso seria a garantia tanto do acesso quanto da produção de

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cultura pelos cidadãos no exercício pleno de sua cidadania cultural. Em que contexto se estabelece a democratização da cultura? Chauí (2008) afirma que ela pressupõe uma concepção de democracia diferente de sua definição liberal, ou seja, uma democracia que ultrapasse “a ideia de um regime político, identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade” (ibid., p. 67) definindo-a como essencialmente democrática. Estudos analisados por Botelho (2001) demonstram que há uma suposição de que investimentos em novos equipamentos culturais, por exemplo, seriam garantidores da promoção da democratização da cultura. Ela informa que esta visão estaria presente em grande parte das metas estipuladas nas políticas públicas de diversos países, contudo tal crença não se sustenta diante dos resultados de suas pesquisas. Nelas se observa que, mesmo quando são construídos espaços culturais e oferecidos preços mais baixos nos ingressos, como a oferta da metade do preço real para estudantes e idosos no Brasil, os frequentadores destes ambientes são os que já tinham vontade ou necessidade de fazê-lo anteriormente. Isto porque o que impede preponderantemente o acesso à oferta da cultura, chamada clássica, aos novos segmentos da população são as barreiras simbólicas. As desigualdades culturais não se alteram com transferência de meios financeiros provenientes dos impostos pagos pesadamente pelo conjunto da população para os mais favorecidos, segundo Botelho (2001). A autora conclui que, ao contrário, a prática da política de subvenção acaba por reforçar tais desigualdades, visto vir a favorecer “a parte do público que já detém a informação cultural, as motivações e os meios de se cultivar” (ibid., p. 81). Os resultados auferidos impulsionam uma mudança do paradigma: [...] hoje não se fala mais em democratização da cultura, mas sim em democracia cultural, que, ao contrário da primeira, tem por princípio favorecer a expressão de subculturas particulares e fornecer aos excluídos da cultura tradicional os meios de desenvolvimento para eles mesmos se cultivarem, segundo suas próprias necessidades e exigências. Ela pressupõe a existência não de um público, mas de públicos, no plural. (BOTELHO, 2001, p. 81-82) Tal perspectiva aponta para a percepção de existir não somente um público e um “não público” como havia feito emergir a democratização cultural, mas, para além desta noção, “há a segmentação do público em subpúblicos, com suas necessidades, suas aspirações próprias e seus modos particulares de consumo” (ibid., p. 82). Chauí (2008) reitera que a cidadania cultural só tem possibilidade de existir por meio de uma cultura da cidadania e que esta se viabiliza apenas numa democracia. Deste modo, a autora afirma que, para haver uma nova política cultural, é preciso também que se comece uma cultura política nova, “cuja viga mestra é a ideia e a prática da participação” (ibid., p.76). Reafirma-se, por oportuno, que a democracia participativa, relativa à participação popular na gestão pública, está destacada em um dos princípios fundamentais da Constituição Brasileira de 1988, que é o direito

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à dignidade humana, declarando que “todo poder emana do povo”. Esse poder poderá ser exercido de modo indireto, por meio de seus representantes, ou direto, em benefício da coletividade. 2. ESTUDO DE CASO Realiza-se estudo de caso na busca de se mensurar e avaliar o processo participativo da sociedade civil bem como a qualidade da participação realizada pela sociedade na escala municipal, mediante a inclusão de Campos dos Goytacazes no Sistema Nacional de Cultura, e a efetivação dos instrumentos de gestão participativa: Conselho, Plano e Fundo [CPF da cultura] e as Conferências realizadas nos anos de 2006, 2012, 2013 e 2014. 2.1. Metodologia A compreensão do nível de cidadania cultural – participação cidadã – existente no município de Campos dos Goytacazes se realiza a partir da observação dos mecanismos de incentivo à participação da população. Adota-se a técnica de pesquisa e análise documental das Atas das reuniões ordinárias realizadas no Conselho de Cultura no período de 2009 a 2014, assim como das quatro Conferências realizadas no período de estudo. Utiliza-se, ainda, a metodologia de pesquisa qualitativa empregando a técnica de entrevista individual em profundidade com o objetivo de se saber como o conceito de cidadania cultural participativa é percebido pelo conjunto de dez entrevistados, pessoas com contribuições diversas e relevantes para a cultura do município. Os entrevistados foram divididos em quatro grupos distintos: quatro representantes de segmentos da sociedade civil organizada no Conselho de Cultura [COMCULTURA] e/ou no Conselho de Patrimônio Cultural [COPPAM]; quatro agentes culturais; um gestor municipal da cultura e presidente dos dois conselhos e uma vereadora com assento no Conselho de Cultura. Por fim, identifica-se a integração das informações e procede-se uma síntese das descobertas que venham a esclarecer a situação-problema elaborada nesta pesquisa, ou seja, a forma de participação da sociedade civil organizada nos diversos mecanismos de participação: Conferências de Cultura, entre os anos de 2006 a 2014; adesão ao Sistema Nacional de Cultura, em 2011; aprovação do Sistema Municipal de Cultura, em 2013. Respondendo-se a pergunta: estaria a sociedade no palco ou na plateia das decisões tomadas? 2.2. Análise dos Resultados Reafirma-se o espaço do palco, entendido como o lócus onde as “coisas” acontecem, ou seja, o território da realização das ações e políticas culturais projetadas pelo poder local. A investigação questiona se é a população, representada pela sociedade civil em conselhos e con-

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ferências, que está no papel principal da vida cultural do município, como sugere a conformação das políticas públicas do estado democrático. Tal dúvida ganha maior pertinência quando o que se quer avaliar é a qualidade da participação da sociedade civil, seja na elaboração, seja na implementação da política cultural/ ações culturais promovidas pelo poder local ou ainda no monitoramento das ações executadas. Se existe uma política cultural em Campos dos Goytacazes e não há a efetiva participação da sociedade nas deliberações dessa política, poderia se afirmar que estaria o poder local fugindo dos preceitos da cidadania cultural? Reafirma-se, por oportuno, que a ótica defendida neste artigo é a de que possibilitar o alcance à cidadania cultural deve ser o objetivo central de uma política cultural que se pretende eficaz e eficiente no atendimento aos anseios e às necessidades da população, apoiando-se na garantia dada a todos os cidadãos brasileiros de ter pleno exercício dos direitos culturais. 2.2.1. Análise documental: atas do COMCULTURA Na análise de vinte e oito atas [sete do biênio 2009-2010 e vinte e uma do biênio 20122014], verificou-se que, durante o funcionamento do COMCULTURA, foram realizados debates bastante acirrados entre seus membros. Destaca-se que, no primeiro biênio, sua presidência foi alterada por três vezes, já que era exercida pela presidência da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima - FCJOL e, neste período, houve troca de seu gestor devido à alternância de prefeitos por questões jurídico-administrativas. Após a criação da Secretaria Municipal de Cultura, ocorrido em 2009, altera-se a presidência também do COMCULTURA, que passa a ser responsabilidade desta e não mais da FCJOL. Contudo, quando aquela foi extinta em 2012, sua presidência passou para o superintendente de patrimônio histórico, cargo ocupado pelo então ex-secretário de cultura. Tal presidência exercida por um representante do poder público, conforme se verifica em 4 ata , motivou questionamentos. Ponderou-se que caberia aos representantes da sociedade civil a elaboração de pautas das reuniões, e que esta deveria ficar com um representante da sociedade civil, porque, de certo modo, seria mais permanente que o do governo. Isto foi defendido por ele, no entanto não recebeu acolhimento da presidência. Por pertinência, ressalta-se que este pleito, que aqui está representado por um conselheiro, de fato já está contemplado no âmbito estadual com a promulgação da Lei Estadual de Cultura5, e foi destaque em algumas das entrevistas realizadas pela autora. Por meio do fato relatado e de outras contendas observadas nas atas, verificou-se que a participação no processo decisório é diferenciada quando esta é exercida dentro de um grupo do 4 5

Realizada em 20 de março de 2009. Nº 7.035 de 07 jul. 2015.

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qual se tem parte em comparação com a decisão tomada quando se está em um grupo [COMCULTURA] cuja atividade é controlada por outros membros, neste caso o grupo que representa o poder público. Assim se distingue o conselheiro que faz parte, caso em se enquadram aqueles que mantiveram independência em seus posicionamentos, dos que tomam parte, postura claramente voltada para os que participam sempre em sintonia com os preceitos dos que comandam o grupo, neste caso o poder público que, além de ter a presidência do conselho, desequilibra a paridade - poder público e sociedade civil - ao ter um membro da câmara de vereadores, que é da base do governo. Respondem-se, de certo modo, os questionamentos supracitados. Os conselheiros do mandato 2009-2012 do COMCULTURA realizaram trabalhos de destaque como a elaboração da minuta do Fundo Municipal de Cultura – FUNCULTURA e do próprio Regimento Interno do Conselho. No entanto, [...] A idealização do papel dos conselhos pode criar expectativas exageradas e conduzir a maiores frustrações. Os recursos públicos destinados às políticas sociais são cada vez mais reduzidos. Impõe-se, pois, aos conselhos, nos diversos níveis, a tarefa crucial de discutir o orçamento público, não apenas o fundo específico do setor, mas as prioridades na distribuição dos recursos. (TEIXEIRA, 1996, p 18.) Contudo, tal atitude por parte dos conselheiros não foi constatada ao longo dos dois biênios analisados. A frequência e participação dos conselheiros foram destaque nas reuniões do primeiro período, com exceção de uma que não teve o quórum necessário. Com relação aos mecanismos de incentivo à participação da população nos encontros deste Conselho, não se observa tal preocupação, talvez mediante as demandas que estes conselheiros tinham a sua frente para reestruturar tal colegiado que por anos deixou de atuar, visto a escolha de seus membros ter ocorrido em 2006 e a nomeação somente em dezembro de 2008. No período compreendido entre 2012-2014, do qual participou esta autora como membro efetivo, as convocações para as reuniões não mantiveram uma sistemática periódica, ora aconteciam quinzenalmente, ora bimestralmente. Nas atas, não há registro nominal da presença dos conselheiros em cada sessão e nem seu quantitativo. Elas informam apenas os nomes daqueles que apresentaram suas opiniões no decorrer das reuniões. Este fato acaba por impedir o levantamento fidedigno da frequência assídua de alguns conselheiros e, por conseguinte, da ausência sistemática de alguns membros tanto da sociedade civil quanto da representação dos órgãos públicos. Todavia, pode-se afirmar que a Secretaria Municipal de Educação não se fez presente por meio de seus representantes no quadro de conselheiros durante os dois anos; a Câmara Municipal enviou o nome de seus representantes apenas no ano de 2014, quando começa a participação efetiva de sua titular. Enquanto que a representação do Núcleo de Arte e Cultura de Campos compareceu somente na reunião em que foi realizada a eleição do comitê gestor do FUNCULTURA para o qual se candidatou e foi eleita, não mais retornando para as demais

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reuniões do período. Salienta-se que não chegou ao conhecimento dos conselheiros ter havido qualquer notificação formal solicitando que estes retornassem a frequentar as reuniões ou mesmo que fossem indicados outros nomes para representarem aquele órgão ou instituição civil. Dos encontros ocorridos a partir de 2012, pode-se apurar que houve algumas discussões mais acaloradas e grande disposição por parte dos representantes da sociedade civil em realizarem um trabalho efetivo de participação e de colaboração para que a cultura do município se consolidasse à luz da legislação municipal, devidamente amparada ou em vias de fazê-lo, segundo relata o presidente do Conselho. Uma parte do grupo de conselheiros apresentava disponibilidade para contribuir de modo mais eficaz não somente cumprindo o regimento do COMCULTURA ou a determinação legal do colegiado no município, mas também colaborando ativamente para que fossem implantadas formas mais abrangentes de participação da sociedade civil e da população com possibilidade efetiva de promover a cidadania cultural no município. No entanto, analisando mais profundamente o quadro geral de conselheiros, pode-se observar que alguns membros da sociedade civil se posicionavam com frequência em sintonia com os da gestão municipal, fato que, em certos momentos de polêmicas mais acirradas, verificou-se a tendência destes em acatar, sem questionamentos, o que era apontado como ação cultural definida pelo grupo gestor/poder executivo. Exemplo deste fato ocorreu, após a leitura da ata da 1ª reunião, quando diversos conselheiros apontaram um equívoco da relatoria, qual seja o fato de que determinado ponto não teria sido discutido naquela reunião. Foi solicitada, então, a retirada deste trecho antes da aprovação da ata, mas uma conselheira, representante de um dos órgãos do governo, defendeu a secretaria e a presidência do COMCULTURA afirmando, com veemência, que tinha sido tratado tal assunto. Os demais conselheiros se calaram e, conforme consta em ata da 2ª reunião, “polêmica a parte, o conselho optou por manter o registro da ata anterior, devidamente aprovada pelos presentes” (COMCULTURA, 24 nov. 2012). Pode-se verificar a questão do grau de controle cívico e a falta de accountability vertical, isto é, de responsabilização política, como afirmam Magalhães e Costa (2007) entre o poder público e a sociedade civil. Accountability pública envolve uma relação de manutenção de transparência das ações do Estado, uma vez que para o efetivo exercício da democracia deve haver o governo “do povo” e, sem saber o que está sendo feito a seu favor, o povo não pode avaliar se está sendo bem atendido por seus representantes. (MAGALHÃES E COSTA, 2007, p. 3) Registra-se que, ao longo do ano de 2013, paralelamente, os conselheiros coordenaram reuniões com os segmentos de cada estética artística, com a participação de artistas e produtores culturais, formando, assim, as câmaras técnicas. Ao fim de cada encontro, o conselheiro responsável elaborou um relatório que foi apresentado na reunião do COMCULTURA. A partir destes encontros, foram levantadas as demandas de artes cênicas, música, patrimônio cultural e audiovisual, contudo os setores de literatura e arte popular não chegaram a levar ao conhecimento do

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colegiado suas contribuições. Ficou acordado no COMCULTURA, que todas as propostas comporiam o Plano Municipal de Cultura, instrumento que até março de 2016 não foi apresentado à sociedade para seu referendo final. De modo geral, nestas câmaras ocorreram comentários sobre a crise na produção cultural do município, que, segundo afirma o presidente do Conselho, está envelhecida [“de cabelos brancos” conforme ele próprio destaca], no entanto foi exatamente a partir das sugestões apontadas pelos artistas durante as reuniões realizadas nas câmaras temáticas ou técnicas que se pode demonstrar que a produção cultural permanece viva. Destaca-se que um dos temas mais polêmicos discutidos no COMCULTURA neste biênio, não só pela importância, mas também pelo envolvimento de grande parte dos conselheiros, foi, sem dúvidas, o FUNCULTURA, tema de debate constante. Em especial quanto à falta de dotação orçamentária para o Fundo na Lei Orçamentária Anual – LOA dos anos de 2013 e 2014. A polêmica se instala quando um conselheiro da sociedade civil levanta o questionamento, já feito por ele na ocasião do encerramento da II Conferência/2012, sobre a exclusão do artigo terceiro da Lei 8.205/2010, que criou o FUNCULTURA, e que foi alterado pela Lei 8.257/2011, que previa um percentual dos royalties6 para tal Fundo, assim como dos impostos do IPTU e ISS. Segundo o conselheiro, advogados lhe afirmaram que os citados impostos não podem ser legalmente destinados ao Fundo, mas que isso seria legalmente possível com relação aos royalties, daí ele refuta a alteração na Lei de 2011. O assunto gerou várias discussões e, no intuito de amainar os ânimos, o presidente informou aos presentes que havia enviado ofício à Secretaria Municipal de Controle e Orçamento “[...] solicitando a adequação de recursos para o Fundo, levando em consideração que, por causa de um cochilo, não fomos contemplados no orçamento do município para este ano” (COMCULTURA: Ata 09 mar.2013). Depreende-se, neste discurso do referido presidente, uma postura de subserviência e demonstração de pouco poder político do presidente no grupo gestor do município ao considerar a ausência de dotação orçamentária para a Cultura naquele ano como um mero “cochilo” do poder público. Como se ele fizesse parte do governo, mas não tomasse parte dele, como comentado anteriormente. 2.2.2. Entrevistas individuais em profundidade A partir das entrevistas em profundidade realizadas no período de três meses [abr./jun. 2015], questões que ainda não tinham sido apuradas puderam ser esclarecidas. Destaca-se que, por mais que os entrevistados fossem diferenciados em suas visões, já que falavam de seu ponto de observação e atuação, em diversos temas debatidos seus posicionamentos se assemelham. Compensações financeiras pagas mensalmente pelas concessionárias de exploração e produção de petróleo e gás natural ao Estado (e ao município produtor), relativo a cada campo, a partir do mês em que ocorrer a data do início da produção. TCMRJ – SCE/Coordenadoria de Auditoria e Desenvolvimento. Royalties do Petróleo – Estudo Socioeconômico. (2005, p. 8). 6

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Todos os entrevistados permitiram sua identificação nominal, o que, de certo modo, possibilita uma primeira reflexão a respeito do comprometimento e da responsabilidade que cada um demonstra ter em seu papel enquanto cidadão/cidadã. Cada grupo foi composto de acordo com seu papel na cultura local: agente cultural, sociedade civil organizada, vereadora com atuação na área de cultura e educação e gestor público cultural. As entrevistas foram realizadas em consonância com os objetivos delimitados e consolidados no roteiro de entrevistas. Para tal, elaboram-se três campos de análise: [01] atuação do poder público na política cultural do município de Campos dos Goytacazes; [02] participação da sociedade civil na política cultural do município e [03] a política cultural do município. Quanto ao primeiro item, os entrevistados levantaram questões como: falta de recursos, de vontade política ou de ação para executar a política institucionalizada no Sistema e no Fundo Municipal de Cultura; existência de cooptação ou de desconhecimento técnico dos membros dos conselhos; constatação de clientelismo, gramática política muito em voga no país; mudanças arquitetônicas realizadas no prédio histórico do Mercado Municipal e estruturais no Carnaval campista; críticas à realização de shows de artistas nacionais em detrimento dos locais e ao fechamento e abandono por parte do poder público do Museu Olavo Cardoso e do prédio da Lira de Apolo. Destacam-se duas atuações positivas deste poder: reforma do Museu Histórico de Campos e construção do Centro de Eventos Populares Osório Peixoto - CEPOP. Reflexões acerca disso: a ausência de diálogo entre poder público e sociedade civil é percebida como algo danoso na construção da política cultural. Como diz Putnam (2000 apud Fernandes, 2002) a respeito da ação do governo que pode ser tanto um problema quanto uma solução, dependendo de sua decisão de investir no capital social de sua população ou de ignorá-lo. Reafirma-se, como Iaconivi, Klintowitz e Rolnik (2011), que as práticas dos gestores municipais pelo país afora tem demonstrado que não se leva em consideração o processo participativo como um instrumento de negociação em esferas superiores e, alerta Avritzer (2012), que a implementação da lei não consegue determinar a efetividade das contribuições definidas de modo participativo, diante das gestões que não se integram à participação. Entende-se, assim, que é necessário que haja esta integração e muito mais. É preciso que a sociedade civil não perca seu poder de fiscalizar, cobrar e de participar permanentemente e, como diz Oliveira (2010, p. 254), “tornar-se cidadão” [...]. Por último, a responsabilização pública necessita ser uma prática da gestão como um todo e não um benefício que é dado ao cidadão quando aprouver ao gestor. Compreendendo a premissa que Eagleton (2005, p. 16) elabora: cabe ao Estado ser o harmonizador das relações conflituosas e dos antagonismos crônicos existentes dentro da sociedade civil e, acrescenta-se ao seu pensamento, os que existem dentro dos próprios governos.

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No item 02, questões como as diferenças de representatividade da sociedade organizada dentro dos dois conselhos [COPPAM e COMCULTURA]; a participação da sociedade civil paritária, a presidência limitada ao poder público e a dificuldade de a sociedade civil campista conservar seu vigor para a luta de causas comuns foram observadas pelos entrevistados. Cabendo, assim as seguintes reflexões: [1] confirma-se o pensamento de Putnam (2000) a respeito do capital social alegando que política tem de ser sinônimo de inclusão e espaço para todos, visto ser política pública e não privada; [2] atenta Dallari (1996) para a questão de que a participação no nível formal atinge aspectos secundários quando comparados ao nível real, que é a que verdadeiramente efetiva as políticas. Cabendo à sociedade civil não somente participar dos colegiados e conferências, mas estar no seu papel efetivo de participação real; [3] perspectiva da institucionalização, de seu fazer construído em bases democráticas e com participação cidadã, mas também se destaca a existência de forças contrárias dentro da arena política, como apontou Frey (2000) e [4] Inúmeros exemplos do exercício de cidadania cultural defendida por Marilena Chauí (2008) foram citados pelos entrevistados, mas evidenciam questões de persuasão e cooptação do poder público e falta de accountability vertical para assim poder manipular intenções e votos ao bel-prazer de seus interesses. No item 03, as questões foram inúmeras, mas destacam-se: política de cultura feita por “soluços”, “espasmos” e aos “solavancos”; não é abrangente; não há coordenação de ações e as questões são tratadas no pessoal, sem pensar no coletivo: sua não existência deve ser uma política; há tentativas desde a década de 70; não há uma política de Estado, mas de eventos; cumprem-se as obrigações legais, mas não há um movimento cultural de incentivo e promoção da cultura; não há política e nem quem a possa estruturar e que os recursos, por serem escassos, não promovem política de cultura. A política cultural do município, a partir destes posicionamentos dos entrevistados, leva às reflexões: [1] os conselhos podem se constituir em mecanismos de fortalecimento da sociedade civil e mesmo de controle social do Estado, porque apresentam lógicas distintas e próprias e por isso mesmo devem manter sua autonomia. Todavia, a atuação indiscriminada em conselhos, sem que haja mobilização social, com a única preocupação de ocupar espaços, pode levar à reprodução de práticas clientelistas e burocráticas e não surtirem o efeito desejado de cidadania cultural e democrática. [2] Zimbrão (2013) afirma que a pasta da cultura não conta com recursos financeiros vigorosos e lhe falta estabilidade orçamentária. Então, o que poderia ser a força motriz para as adesões ao SNC até o presente momento? Seria a expectativa de mudança, ou o reconhecimento de que o poder de coordenação está com a autoridade central, que é quem pode fazer repasse de recursos para as políticas acordadas nos planos de cultura. (Ibid., p. 48). Esta reflexão amplia a observação de modo a que se visualize melhor o porquê de, na concepção da gestão pública de

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cultura, está-se fazendo política pública atendendo aos ditames do SNC. Postura observada em Campos dos Goytacazes, especialmente no entendimento do gestor entrevistado. Contudo [3] a implementação, tanto das leis quanto da política cultural nelas instituídas, depende de vontade política, demonstrada por meio de atos e decisões governamentais; de recursos financeiros orçados e utilizados exclusivamente com as demandas apontadas pela sociedade para a cultura e, por último, e talvez o mais importante, deve contar com a participação democrática e cidadã da sociedade civil desde a sua elaboração, passando pela execução e pelo controle no uso dos recursos públicos até a avaliação final. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS No palco da cultura em Campos dos Goytacazes, o papel principal é da institucionalização da cultura e não dos atores. Estes são, em alguns casos, coadjuvantes, quando representantes da sociedade civil em conselhos e conferências. Confronta-se com o papel de sujeitos históricos que os atores deveriam ocupar na construção dessas leis. Fica explícito que: [1] não se alcançou a qualificação necessária do cidadão nem enquanto gestor público, nem como sociedade civil [acomodada, distanciada, mal informada de seus direitos e deveres culturais e sem conhecimento do valor cultural do município]; [2] há entraves administrativos que impedem que os atores ocupem o palco [falhas de comunicação, divergências estruturais e conjunturais]; [3] existe confronto de princípios e desvios de conduta nas definições de ações culturais – personalismo; [4] há necessidade de maior interatividade para haver o exercício da cidadania cultural: espectador sai da passividade e vivencia a realidade no seu cotidiano e, ao mesmo tempo, experimenta a transformação desta realidade que por vezes é negativa e precisa ser alterada. A participação ativa da sociedade provoca mudanças e o atendimento das demandas tem mais chances de ocorrer. Assim como na poética do Oprimido, espera-se que o povo reassuma sua função protagonista no teatro e na sociedade. Aponta-se para a possibilidade dessa mesma conquista vir a ocorrer na formulação de políticas públicas de cultura pelo país afora, mas especialmente em Campos dos Goytacazes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVRITZER, L. Instituições Participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, Campinas (SP), v. 14, n. 1, p. 43-64, jun. 2008. BOAL, Augusto. A Estética do oprimido: reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não científico. FUNARTE. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008.

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as diretrizes e estratégias do Plano Estadual de Cultura. Diário Oficial [do] Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro/RJ, ano XLI, n.120, p.21-24, 08 jul. 2015, Parte I. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Crise e políticas culturais. Cultura & Desenvolvimento: perspectivas políticas e econômicas, 2011. Disponível em: Acesso: 24 de julho de 2014. SOARES, Orávio. Cultura sem Arrojo. Jornal Folha da Manhã: Folha Dois. 09 mar. 2009. TEIXEIRA, Elenaldo Celso. Movimentos sociais e conselhos. In: ABONG, A participação popular nos conselhos de gestão. Cadernos ABONG, São Paulo, n. 15, p.7-19, jul. 1996. ZIMBRÃO, Adélia. Políticas públicas e relações federativas: o Sistema Nacional de Cultura como arranjo institucional de coordenação e cooperação intergovernamental. Revista do Serviço Público. Brasília: Enap Escola Nacional de Administração Pública, v. 64, n. 1, p. 31-58, jan/março 2013.

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PARTICIPAÇÃO SOCIAL EM REDE NA POLÍTICA CULTURAL DO DISTRITO FEDERAL: O CASO DO FÓRUM DE CULTURA Leandro Antônio Grass Peixoto1 Mayara Souza dos Reis2 Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi3 RESUMO: O presente trabalho apresenta e problematiza aspectos da participação social em rede na política cultural do Distrito Federal, tendo como base o histórico e as experiências desenvolvidas no Fórum de Cultura. Apropriando-se das principais abordagens contemporâneas sobre democracia e participação social, bem como da concepção de política como ação pública e da metodologia do ator-rede, a análise aqui desenvolvida correlaciona tais categorias e conceitos com o caso proposto. Conclui indicando o Fórum de Cultura como um ilustrativo dos elementos teóricos desenvolvidos, em especial no que se refere à dinâmica de participação social em rede. PALAVRAS-CHAVE: Democracia, Participação social, Redes, Políticas Culturais.

1. INTRODUÇÃO Os processos sociais organizados sob a perspectiva de redes têm sido objeto de análise por diferentes autores, com destaque para Bruno Latour (2012), Norbert Elias (1994) e Manuel Castells (1999). Tal modo organizacional e definidor de diferentes processos sociais, fundado na horizontalidade e favorecido pelas novas tecnologias de comunicação, inseridas em uma cultura fluida e de livre informação, constitui uma particularidade do presente tempo histórico. A participação social em rede, fundamentada na articulação de atores sociais voltados à definição de aspectos das práticas políticas tem sido um movimento corrente em diferentes contextos. As análises dos modelos participativos em rede avançaram como resposta ao fortalecimento dessa tendência de organização da sociedade civil e, por consequência, de ressignificação das próprias concepções de democracia. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade e Brasília. [email protected]. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília. [email protected]. 3 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília. [email protected]. 1

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Nas políticas culturais, as experiências de participação social têm se incrementado substancialmente. No Distrito Federal, o Fórum de Cultura ilustra a organização de diferentes atores sociais que, com o uso das novas tecnologias da informação e a partir de processos não-hierárquicos, buscam intervir nas diferentes etapas das políticas. Sendo assim, o presente trabalho pretende articular os conceitos de rede e participação social com a experiência do Fórum de Cultura do Distrito Federal. Para isso, no campo teórico faz-se necessário elucidar cinco categorias: participação social, redes, ação pública e o conceito de ator-rede. A primeira parte do texto pretende-se a este objetivo. A segunda tratará sobre o caso do Fórum, estabelecendo relações entre as categorias analisadas e os processos participativos que se constituem em sua dinâmica. O trabalho conclui para aspectos que permitem indicar a experiência do Fórum como um ilustrativo da concepção de participação social em rede. 2. REFERENCIAL TEÓRICO O referencial teórico deste trabalho busca contemplar os principais conceitos relacionados ao objeto aqui analisado. A compreensão dos elementos práticos referentes ao Fórum de Cultura do Distrito Federal, sendo este entendido como um processo participativo com efeito na estruturação das políticas públicas de cultura, exige a elucidação de alguns elementos teóricos. O primeiro refere-se à própria noção de participação social, aqui construída a partir das contribuições de Evelina Dagnino (2004) e que indicam para o seu incremento desde a promulgação da Constituição de 1988, bem como problematizam a concepção do significado de sociedade civil. Em seguida, tomando como base a contribuição dos sociólogos Norbert Elias (1994) e Manuel Castells (1999), será explicitado o conceito de rede, para em seguida ser contextualizado na dimensão participativa, tomando por base a abordagem de Ilse Scherer-Warren (2006). A complementação da análise do conceito de rede será feita, em seu caráter metodológico, com a teoria do ator-rede, desenvolvida por Bruno Latour (2012), e que serve como um importante instrumento de análise dos processos participativos e seus impactos nas políticas públicas. Por fim, será apresentada a abordagem da política como acão pública, desenvolvida por Pierre Lascoumes e Patrick Le Galés (2012), a qual servirá como referência acerca do que se entende aqui por política pública. 2.1. Participação social A consolidação da democracia no Brasil enfrenta hoje uma série de desafios. A Constituição de 1988 alargou significativamente a concepção de cidadania e inaugurou uma nova perspectiva sobre a relação entre Estado e sociedade civil. E é justamente nesse aspecto que reside um importante entendimento para a própria democracia, referente à compreensão dos conceitos de sociedade civil e participação social. O tema da participação vem se constituindo como um

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dos pilares do campo de políticas públicas, em especial pelo crescente avanço dos mecanismos formais de diálogo que impactaram em diversas políticas. A abordagem desses conceitos se justifica em virtude de sua polissemia, produto de uma “confluência perversa” (Dagnino, 2004) acerca dos termos. A tendência neoliberal da década de 1990 fez com que determinados fundamentos da Constituição de 1988 se estruturassem dentro de uma conjuntura que, aos poucos, criou um dilema sobre as concepções de sociedade civil e participação social. A disputa entre diferentes projetos de sociedade fez com que os termos assumissem uma identidade múltipla, apropriada conforme a pretensão de seu uso. A começar pela noção de sociedade civil, o projeto neoliberal produziu o que pode ser chamado de deslocamento de sentido cujo resultado tem sido uma crescente identificação entre “sociedade civil” e ONG, onde o significado da expressão “sociedade civil” se restringe cada vez mais a designar apenas essas organizações, quando não em mero sinônimo de “Terceiro Setor”. (Dagnino, 2004a, p. 100). Por consequência, a concepção de participação passa a também a estar associada a um novo sentido, atrelado a uma concepção de solidariedade, voltada ao trabalho voluntário e à responsabilidade social. Dagnino (2004a), aponta que essa noção caracterizada pelo privatismo e pelo individualismo acaba por despir-se de seu significado coletivo e político para se orientar por uma perspectiva moral. Além disso, este princípio tem demonstrado sua efetividade em redefinir um outro elemento crucial no projeto participativo, promovendo a despolitização da participação: na medida em que essas novas definições dispensam os espaços públicos onde o debate dos próprios objetivos da participação pode ter lugar, o seu significado político e potencial democratizante é substituído por formas estritamente individualizadas de tratar questões tais como a desigualdade social e a pobreza. (Idem, p.102) Sendo assim, a noção de participação assumida na análise do objeto proposto remonta a uma ruptura com tal concepção. Por participação, compreende-se a reivindicação do direito a ter direitos (Dagnino, 2004a). Isso implica em um processo reivindicatório de acesso aos processos políticos que estabelecem os próprios direitos, resultando na inserção dos indivíduos nas estruturas de poder que definem o contexto social. Trata-se da construção de uma nova sociabilidade que impõe um formato mais igualitário nas relações de poder entre sociedade e Estado, no fortalecimento da esfera pública e dos debates nela inseridos. Nessa perspectiva, sociedade civil passa a ser compreendida como um coletivo de atores que pretendem ser representativos nas diversas etapas das políticas, inseridos em um diálogo igualitário, mesmo que seja baseado no dissenso. A participação não provém de uma moral fundada no voluntarismo solidário, mas sim na busca pela representatividade dentro dos espaços de poder que definem os mais variados processos sociais orientados pelo Estado.

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2.2. Rede O segundo conceito fundamental para a análise do objeto em questão é o de rede. Apropriada por diversos campos teóricos, a noção de rede será aqui apresentada sob um viés sociológico baseado em dois autores: Norbert Elias (1994) e Manuel Castells (1999). Tal definição se faz necessária pelo fato de que a concepção de rede representa um fundamento do modo de organização participativa aqui analisado. A abordagem de Elias (1994) sobre o conceito de rede serve como uma base mais ampla, ilustrativa da própria vida em sociedade. Para ele, a rede pode ser comparada com a trama do tecido – a tessitura entre fios e nós. Essa referência, visualizada em uma perspectiva estática, ilustra o ser humano como um ser relacional em seu processo de individualização. Complementando essa visão com a noção dinâmica da vida em sociedade, insere-se o movimento produzido pelo fenômeno da vida (e morte) do indivíduo, o que daria a esta rede a característica de estar em “constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto das ligações”. (p. 35). A ideia de conexões sustenta o cerne desse conceito, o qual foi posteriormente ampliado por Castells (1999), em sua aplicação às grandes estruturas políticas, econômicas e informacionais. Desse modo, a estruturação de processos em rede é adequada ao modelo econômico globalizado atual. Representa, portanto, o próprio design operacional do capital moderno, na sua volatilidade e fuga de responsabilidades, além de permitir inferir uma descrição das relações sociais contemporâneas instauradas no âmbito privado a partir do modo de produção capitalista. A consolidação dessa estrutura de relações pode servir também para colaborar na desmistificação do individualismo contemporâneo. A redes, em sua perspectiva horizontal e não hierárquica, abrem espaço para uma nova perspectiva de mobilização. Sendo multiformes, as redes aproximam atores sociais diversificados – dos níveis locais aos mais globais, de diferentes tipos de organizações –, e possibilitam o diálogo da diversidade de interesses e valores. Mesmo que o diálogo seja permeado por conflitos, o encontro e o confronto das reivindicações e lutas referentes a diversos aspectos da cidadania permitem aos atores sociais passarem da defesa de um sujeito identitário único à defesa de um sujeito plural. (Scherer-Warren, 2006. p. 115) 2.3. Ator-Rede A teoria do ator-rede (TAR) foi estruturada pelo sociólogo francês Bruno Latour (2012), e sua amplitude está para além do campo conceitual, servindo também como abordagem metodológica para a compreensão de diferentes processos sociais. No caso das políticas públicas, a TAR serve como referência de percepção das dinâmicas associativas e dissociativas, de forma a identificar os lastros resultantes das convergências e divergências entre os diferentes atores sociais. Uma análise fundamentada na TAR pressupõe permanente tomada de notas dos movimentos dos atores, reorganizadas posteriormente pelo texto. Desse modo, “se você não quer to-

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mar notas e registrá-las, então não se meta com a sociologia: esse é o único meio de alcançar um pouco mais de objetividade” (p. 198). Para garantir que o relato da dinâmica dos atores seja consistente, deve-se prezar pelos aspectos descritivo e discursivo, capazes de elucidar o movimento e dar sentido às associações, pois “um bom relato TAR é uma narrativa, uma descrição ou uma proposição na qual todos os atores fazem alguma coisa e não ficam apenas observando” (p. 189). É preciso que sejam evidenciados os elementos dinâmicos do processo, destacando os pontos de passagem obrigatórios do movimento dos diferentes atores. À medida que um mediador, ou nó, deixa traços, ele merece ser destacado e analisado. Isso pode ser capaz também de evidenciar o estabelecimento do vínculo entre os discursos dos diferentes atores. O caráter híbrido e imprevisível da rede faz com que o objeto seja resultado e não ponto de partida da análise do pesquisador. Portanto, é preciso admitir a imprevisibilidade e possibilidade das incertezas durante a própria construção da pesquisa, bem como focalizar as associações e dissociações resultantes do processo analisado. 2.4. Política como ação pública A chamada Sociologia da ação pública (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012) aponta para uma ampliação do conceito de política pública. Considerando a complexidade da política, esta é compreendida a partir de cinco elementos: atores, instituições, representações, processos e resultados. Os atores, sejam individuais ou coletivos, são guiados por interesses e fazem escolhas segundo os recursos que possuem. As representações “são os espaços cognitivos que dão sentido às suas ações, as condicionam e as refletem” (idem:46). Os atores interagem por meio das instituições, que normatizam e criam uma rotina para os processos. Por fim, os resultados refletem as consequências da ação pública e desse conjunto de interações. Nesse sentido, analisar as dinâmicas das políticas públicas pressupõe a atenção a estes cinco elementos, devendo ser parte integradora da análise. Esta concepção representa uma ruptura com a perspectiva gerencialista da política, que se apoia no voluntarismo do Estado em uma abordagem que desconsidera elementos subjetivos e políticos. Portanto, a análise aqui desenvolvida será orientada por essa complexidade que visa mais do que apontar causalidades e efeitos das tomadas de decisão, mas também descrever os demais aspectos que envolvem os diferentes nós dessa rede e suas controvérsias. 3. RESULTADOS ALCANÇADOS Na dinâmica de remodelagem dos formatos participativos, as políticas públicas de cultura no Brasil nos últimos anos merecem especial atenção. Instituído pela Lei nº 12.343/2010, o Plano Nacional de Cultura (PNC) prevê, entre as suas 53 metas, pelo menos duas (metas 48 e 49) voltadas especificamente à participação social, onde recebem destaque as intenções de

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fomento de uma plataforma digital de governança colaborativa e a realização de duas Conferências Nacionais de Cultura com envolvimento de 100% das Unidades da Federação e municípios que aderiram ao Sistema Nacional de Cultura (SNC). Conforme prevê o Plano, a sociedade civil pode fazer o acompanhamento das metas pela internet, embora os dados de usuários cadastrados indiquem baixa adesão à plataforma do Governo Federal, disponível no endereço http://pnc. culturadigital.br/. Figura 1: Usuários cadastrados na plataforma de governança colaborativa do PNC

Fonte: Ministério da Cultura (Acesso em 25/11/2015).

Mais recentemente, a Política Nacional de Cultura Viva (Lei nº 13.018/2014) propôs maior capilaridade às políticas de cultura, o que, segundo o projeto, seria viabilizado pela simplificação dos processos de prestação de contas e repasse de recursos para as organizações da sociedade civil – incluindo a auto declaração dos Pontos de Cultura. No Distrito Federal, esse panorama de construção e/ou regulação das políticas culturais pela sociedade civil parece bastante emblemático ao considerar a conjuntura nacional, ao mesmo tempo em que aponta para algumas peculiaridades sob a perspectiva de articulação das redes de atores sociais, como pode ser observado pelo histórico de atuação de artistas e produtores culturais da região no âmbito do Fórum de Cultura do Distrito Federal. Analisando a legislação local, observamos que na década de 1980 – antes da criação da Secretaria de Cultura do Distrito Federal (Secult), até então ligada à Secretaria de Educação –, a extinta Fundação Cultural do DF – mais tarde absorvida pela Secult –, passou a autorizar a participação de um representante da comunidade no conselho gestor da entidade. 1166

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Em 1989, a criação do Conselho de Cultura do Distrito Federal prevê a participação comunitária em metade dos 12 cargos do colegiado, um dos responsáveis pela criação, em 1991, do Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC), uma proposta do Conselho de Cultura encaminhada à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) pelos representantes do Poder Executivo à época. Em 1999, quando o Decreto nº 20.264 estabelece a extinção da Fundação Cultural do DF e a reestruturação da Secretaria de Cultura, a Lei Complementar nº 267/1999 – reivindicada pelos segmentos sociais ligados à produção cultural – passa enfim a prever a origem dos recursos que iriam constituir o FAC, vinculando-o sobretudo às dotações orçamentárias do Distrito Federal. É também nesse ano que artistas, produtores culturais e outros integrantes do segmento começam a se organizar em torno do Fórum de Cultura do Distrito Federal, um organismo suprapartidário, sem personalidade jurídica, regimento, estrutura ou composição formais, articulado para fins de discussão, controle social e apresentação de propostas para as políticas culturais da região em parceria com outros atores individuais, fóruns, movimentos sociais, colegiados e demais redes. A partir das primeiras observações e diálogos preliminares com participantes que se encontram há mais tempo em articulação no Fórum – identificados neste estudo como “nós” dentro da abordagem metodológica do ator-rede – observamos que inicialmente a atuação do organismo é pontual e motivada por situações específicas. Alguns desses atores ou “actantes”, ao considerarmos a participação ativa no processo, relatam que o marco inaugural da rede estaria relacionado a uma insatisfação generalizada do movimento cultural do DF em torno de mudanças na gestão e na concepção da Rádio Cultura FM, a emissora pública da região. Na avaliação de membros do movimento, houve uma queda expressiva de qualidade na programação, o que mobilizou uma manifestação em defesa da Rádio. O ato reuniu milhares de pessoas ao redor do Teatro Nacional Cláudio Santoro, em Brasília, onde funcionava a emissora, como comprovam os jornais da época. Verificando a força da mobilização, os artistas e produtores culturais começaram a se reunir periodicamente e, em 1999, o Fórum resolveu lançar-se para o Distrito Federal, criando uma marca gráfica e organizando uma série de intervenções artísticas e outras atividades culturais em um dos teatros de Brasília naquele ano. Em 2005, os integrantes do organismo resolvem criar um grupo de e-mails para facilitar a comunicação, ferramenta que em 2015 chega a mais de 500 membros, tornando-se o principal instrumento para troca de informações da rede, juntamente com as reuniões presenciais não-regulares, uma fanpage na plataforma digital Facebook com cerca de 1.200 seguidores e um grupo fechado na mesma plataforma com pouco mais de 600 membros.

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Figura 2: Histórico de mensagens do grupo de e-mails do Fórum de Cultura

Fonte: Yahoo Grupos Brasil (Acesso em 25/11/2015).

Pode-se observar pela figura 2 que, no período de 2005 a 2015, foram trocadas mais de 39 mil mensagens apenas no grupo de e-mails do Fórum. De 2005 (79 mensagens) a 2009 (8.077 mensagens), nota-se um crescimento expressivo na comunicação da rede por essa ferramenta, ao passo que de 2010 (6.785 mensagens) a outubro de 2015 (1.072 mensagens) a queda é gradual, possivelmente influenciada pela criação de outros espaços de interação digital, como aqueles vinculados à plataforma Facebook. Scherer-Warren (2008, p. 513) destaca que “as novas tecnologias, especialmente a internet e as rádios comunitárias, são um elemento facilitador na difusão das narrativas e ideários em construção pelos sujeitos, nós das redes”, sobretudo em decorrência de sua agilidade e amplitude. É o que se observa nas discussões promovidas pelo Fórum de Cultura do Distrito Federal que, em diversas oportunidades, culminou em mudanças efetivas na estrutura e até na concepção de determinadas políticas públicas na região. Tem sido comum que as notas e cartas abertas construídas coletivamente e disponibilizadas ao público pelo Fórum ressaltem conquistas que os participantes atribuem à articulação do organismo, tais como a Emenda à Lei Orgânica nº 52/2008 que ampliou os recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal para 0,3% da receita corrente líquida do DF, as mobilizações para o cumprimento da legislação vigente e a proposta por trás de grandes eventos para garantia de incentivo à cultura local, como ocorreu durante o aniversário de 50 anos de Brasília, quando produtores locais se organizaram em um projeto denominado “Brasília Outros 50”, exigindo a valorização dos artistas da região. Além da mobilização com ênfase nas relações com o Estado para controle das políticas públicas de cultura, as ferramentas de comunicação do Fórum são utilizadas também com a

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finalidade de divulgação de trabalhos, compartilhamento de experiências e discussão de outros temas ligados à formação política, como combate à corrupção, preservação do meio-ambiente, fortalecimento da educação e promoção da assistência social. Contudo, a mobilização por canais virtuais não tem impedido ou reduzido o esforço pela realização de encontros presenciais, “pois neles é onde ocorre o debate mais profundo, a experiência da prática política e os vínculos mais duradouros no interior da rede.” (SCHERER-WARREN, 2008, p. 514). As reuniões, no entanto, costumam ser motivadas por situações que os atores identificam como mais complexas, exigindo assim uma atuação mais efetiva e articulada. Enquanto fenômeno interdisciplinar e fluido, a compreensão das redes requer uma análise dinâmica da trajetória dos atores e dos traços construídos pela interação. Na observação do Fórum de Cultura do Distrito Federal, notamos por exemplo que não há uma composição fixa ou sequer formal dos participantes. A atuação varia conforme contextos individuais, como a condição de determinados atores estarem ou não envolvidos diretamente em cargos públicos; o panorama político, com maior ou menor grau de envolvimento do segmento cultural em relação à gestão pública, entre outros aspectos. Outra controvérsia que impõe maior dinamismo metodológico ao estudo refere-se ao fato de que os participantes constroem e modificam sua avaliação sobre a formação dos grupos, sobre seu caminho individual e sobre a interação com os demais atores, sejam eles humanos ou não-humanos, como no caso em questão, no qual buscamos analisar, entre outros aspectos, a influência das novas tecnologias de informação e comunicação sobre as interações da rede. Temos o intuito de avançar nessa investigação, analisando os pontos limitadores de utilização desses instrumentos também nas relações entre sociedade civil e Estado, o que a plataforma de governança digital administrada pelo Ministério da Cultura, citada anteriormente, indica ser ainda um desafio não apenas no Distrito Federal, mas em todo o País. Cabe ressaltar outro ponto elementar para compreensão das redes e da experiência de participação civil no âmbito do Fórum de Cultura do Distrito Federal: a concepção de que, nesse modelo de organização, o poder tende a ser distribuído de forma mais equânime nos parece parcialmente verdadeira. Isso pode ser ilustrado pela posição adotada neste estudo de iniciar o levantamento de informações a partir dos nós, sendo estes os participantes mais antigos do Fórum. Scherer-Warren oferece uma avaliação relevante nesse sentido: Mesmo em uma rede há elos mais fortes (lideranças, mediadores, agentes estratégicos, organizações de referência, etc), que detêm maior poder de influência, de direcionamento nas ações, do que outros elos de conexão da rede. (…) Portanto, o que interessa é saber como se dá o equilíbrio entre essas tendências antagônicas do social e como possibilitam ou não a autonomia dos sujeitos sociais, especialmente os mais excluídos e

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que, frequentemente, são as denominadas “populações-alvo desses mediadores.” (SCHERER-WARREN, 2006, p. 121-122) Ao mesmo tempo em que as redes apontam algumas fragilidades – ao se apresentarem, muitas vezes, como alternativa aos espaços formalmente instituídos – e de ampliar as possibilidades de fragmentação – dada a inclusão de novos atores –, observamos alguns sinais de que elas também operam em um sentido de emancipação, como ressalta Machado: Os interesses dos indivíduos que os ligam em redes são cada vez mais cruzados, diversos e frequentemente tênues. Luta-se cada vez mais em torno de códigos culturais, valores e interesses diversos. Essa luta se dá, cada vez menos, a partir dos indivíduos e mais sobre a construção de sujeitos sociais. (2007, p. 277) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fortalecimento das esferas participativas ilustra a ampliação e o fortalecimento da democracia no Brasil. A Constituição de 1988 representou um marco significativo na formalização da participação social, muito embora a tendência neoliberal da década de 1990 tenha produzido um deslocamento de sentido sobre os conceitos de participação e sociedade civil. A partir da década de 2000, os processos e mecanismos de participação foram incrementados, não só na perspectiva formal, mas também informal, mediante a constituição de redes e coletivos de atores orientados pela disputa nas estruturas de poder e na tomada de decisões capazes de impactar nas políticas públicas. O Fórum de Cultura do Distrito Federal serve como um recorte desse amplo processo de participação da sociedade civil nas diferentes etapas da política pública. Estruturado sob a perspectiva de rede, o Fórum tem exercido um papel relevante sobre as políticas públicas de cultura do DF. Formado fundamentalmente por atores sociais atrelados ao próprio campo cultural da cidade, com uso das novas tecnologias e sob uma organização horizontal, o Fórum ilustra essa tendência de um novo formato organizacional da sociedade civil em seu papel de controle e acompanhamento das políticas, atribuindo um novo caráter à ação pública. Desse modo, a análise aqui desenvolvida representa uma breve contribuição acerca de um fenômeno mais amplo e que tende a avançar, que é o das redes de participação social nas políticas públicas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVRITZER, Leonardo. (2007) Sociedade civil, instituições participativas e representação: da autorização à legitimidade da ação. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 3. Rio de Janeiro: UERJ, 2007, p. 443-464.

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CASTELLS, Manuel. (1999) A sociedade em rede – a era da informação: economia, sociedade e cultura. Trad. Roneide Venâncio Majer e Jussara Simões. 8ª edição. São Paulo: Paz e Terra. DAGNINO, Evelina. (2004) Confluência perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva. In: GRIMSON, Alejandro (org.). La cultura en las crisis latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, p. 195-216. DAGNINO, Evelina. (2004a) Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando. In: Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, p. 95-110. ELIAS, Norbert. (1994) A Sociedade Dos Indivíduos. Rio De Janeiro: Zahar. LASCOUMES, Pierre; LE GALÈS, Patrick. (2012) Sociologia da ação pública. Trad George Sarmento. Maceió: EDUFAL. LATOUR, Bruno. (2012) Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador: EDUFBA; Bauru: EDUSC. MACHADO, Jorge Alberto. (2007) Ativismo em rede e conexões identitárias: novas perspectivas para os movimentos sociais. In: Sociologias, v. 9, n. 18. Porto Alegre: UFRGS, julho a dezembro de 2007, p. 248-285. SCHERER-WARREN, Ilse. (2006) Das mobilizações às redes de movimentos sociais. In: Sociedade e Estado, v. 21, n. 1. Brasília: UnB, janeiro a abril de 2006, p. 109-130. _____ (2008) Redes de movimentos sociais na América Latina – caminhos para uma política emancipatória? In: Caderno CRH, v. 21, n. 54. Salvador: UFBA, setembro a dezembro de 2008, p. 505517. TATAGIBA, Luciana. (2010) Desafios da relação entre movimentos sociais e instituições políticas: o caso do movimento de moradia da cidade de São Paulo – Primeiras reflexões. In: Colombia Internacional, n. 71. Bogotá: Universidad de los Andes, janeiro a junho de 2010, p. 63-83. BRASIL, Lei nº 12.343/2010 – Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. _____, Lei nº 13.018/2014 – Institui a Política Nacional de Cultura Viva e dá outras providências. DISTRITO FEDERAL, Decreto nº 20.264/1999 – Dispõe sobre a extinção da Fundação Cultural do Distrito Federal e a reestruturação da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, na forma da Lei nº 2.294, de 21 de janeiro de 1999. _____, Lei Complementar nº 267/1999 – Dispõe sobre a criação de Programa de Apoio à Cultura – PAC. _____, Lei nº 49/1989 – Altera a estrutura da administração do Distrito Federal, extingue órgãos e dá outras providências. _____, Lei nº 111/1990 – Estabelece a competência, composição e classificação do Conselho de Cultura do Distrito Federal, e dá outras providências. _____, Emenda à Lei Orgânica nº 52/2008 - Acrescenta os §§ 4º e 5º ao art. 246 da Lei Orgânica do Distrito Federal.

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_____, Decreto nº 31.414/2010 – Aprova o Regulamento do Fundo de Apoio à Cultura e o Regimento Interno do Conselho de Administração do Fundo de Apoio à Cultura e dá outras providências. _____, Decreto nº 31.660/2010 – Altera o Decreto nº 31.414, de 11 de março de 2010, e dá outras providências. _____, Decreto nº 34.122/2013 – Altera o Regulamento do Fundo de Apoio à Cultura, aprovado pelo Decreto nº 31.414, de 11 de março de 2010.

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CIDADANIA NO PLANO NACIONAL DE CULTURA: PERCEPÇÕES SOBRE PODER E MUDANÇA SOCIAL NAS POLITICAS PÚBLICAS. Leandro Ferreira Barbosa1

RESUMO: O presente artigo pretende refletir sobre Políticas Públicas e cidadania tendo como base o Plano Nacional de Cultura. Nessa trajetória, oferece leituras sobre conquista de direitos e cidadania, procurando delimitar os sentidos de mudança social presentes nos contextos reivindicatórios. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas, Plano Nacional de Cultura, Cidadania, Poder, Mudança Social

1. CULTURA COMO DIREITO À CIDADANIA NAS METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA. Através da lei 12.3432 que instituiu a implementação do Plano Nacional de Cultura, estabeleceram-se as cinquenta e três metas para transformar o cenário cultural brasileiro até o ano de 2020. Estas metas foram construídas através de debate público e de ampla participação da sociedade e das instituições culturais do país. Assim, temos um extenso campo sobre questões pertinentes a representatividade e participação social, que foram organizadas através do texto final que fixou as metas para a gestão da cultura brasileira no governo federal. O Plano Nacional de Cultura é fruto de um conjunto de documentos de planejamento na área cultural. Composto de objetivos, diretrizes, estratégias, metas e ações refletidas através de especificidades setoriais e territoriais, operando e englobando todos os entes federativos da União (governo federal, estadual, municipal, distrital, etc.). Ou seja, o Plano Nacional de Cultura foi construído para ser um documento orientador das políticas de cultura do pais, desenvolvido

Professor de sociologia da rede estadual de ensino –RJ. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina – PR. Estudante de doutorado do programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro PPFH – UERJ. Mail: [email protected]. 2 Artigo 215 da Constituição Federal: Lei n.12.343 de 2 de dezembro de 2010, visando orientar o desenvolvimento de programas e projetos ligados à ação cultural buscando garantir o reconhecimento à diversidade, a valorização, a promoção e a preservação do patrimônio material e imaterial que é produzido pela sociedade brasileira. 1

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através do diálogo com a sociedade e expondo suas necessidades e anseios. Esses planos setoriais, regionalizados, devem ter como referência esse material, somando-se a ele. O PNC está dividido em trinta e seis estratégias, que por sua vez se dividem em duzentos e setenta e cinco ações. Este conjunto de estratégias e ações foram organizadas nas cinquenta e três metas do Plano Nacional de Cultura. São quatro os eixos orientadores para a formulação dessas estratégias que estão em pauta no campo cultural. A dimensão simbólica da cultura procura traçar um panorama de estratégias para as questões que envolvem diversidade: trata da criação, do conhecimento sobre as expressões das culturas tradicionais, linguagens artísticas, culturas regionais, patrimônio e diversidade cultural. Temas fundamentais para os debates em torno das questões de identidade e etnicidade. O segundo eixo da dimensão da cultura se relaciona à sua ação cidadã. O foco se volta para a questão dos direitos culturais e as estratégias tratam do: acesso, circulação, difusão, fruição, educação, capacitação e infraestrutura. Cultura e Cidadania são centrais nessas ações e é sobre esses temas que chamamos a atenção nesse artigo. O terceiro eixo relaciona-se à economia, focaliza a economia sustentável, o desenvolvimento de uma economia criativa, inovação, novos modelos de negócio, financiamento, turismo cultural, cadeias produtivas, etc. E finalmente o eixo da Gestão, dividido em duas partes, um que analisa o papel do Estado na gestão da cultura, e também sobre o papel da sociedade nessa administração. O campo da gestão cultural procura traçar medidas preocupadas com o fortalecimento institucional, com os instrumentos de gestão, de planejamento, de participação social, de capacitação, e regulação. Nas metas do Plano Nacional de Cultura, encontramos o entendimento de que a cultura, na perspectiva de democratização através da noção de diversidade, é um elemento fundamental na construção da cidadania. A cultura é concebida como um direito social básico do cidadão, ao lado da saúde, educação, trabalho, moradia e lazer. As políticas públicas devem viabilizar a ampliação do acesso à produção cultural, bem como sua participação social, protegendo e promovendo o patrimônio e a memória cultural da sociedade brasileira. Analisaremos como essa cidadania se relaciona com os direitos sociais através das Metas do Plano de Cultura, preocupados com etnicidade e mudança social. Para articular as referências conceituais colhidas na análise a um entendimento da dinâmica do poder no âmbito do Estado, vamos delimitar os campos e as categorias sociais e políticas em uso, procurando assim especificar melhor os possíveis significados do entrelaçamento de cidadania, cultura e políticas públicas. Vamos mapear os entendimentos da ação cidadã do Estado na cultura também através dos documentos e dos discursos oficiais do MinC sobre o assunto, além de trazer, mais uma vez, as preocupações do pensamento sociológico, relacionados à função do campo dos direitos na mudança social, aqui relacionados às políticas culturais.

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2.MUDANÇA SOCIAL E CIDADANIA. Direito é um termo da linguagem normativa que trata das normas e de sua dinâmica, e a existência de um direito se articula sempre à existência de um sistema normativo. Segundo Bobbio, o desenvolvimento dos direitos dos homens passaram por três fases: Primeiramente foram conquistados os direitos de liberdade, que tendem a “limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo ou grupos particulares”; posteriormente foram estabelecidos os direitos políticos, onde a liberdade se amplia como autonomia, com a crescente participação dos cidadãos no campo das decisões, e finalmente, foram conquistas por último os direitos sociais, marcando o avanço das preocupações com o bem-estar e com a igualdade. Assim, nesses desenvolvimentos, efetivam-se os caminhos para a viver a liberdade no âmbito do Estado.(Bobbio, 2004) Podemos interpretar uma possível dinâmica dos direitos dos cidadãos no Estado, que partiu da conquista dos direitos de liberdade, alcançados com a derrocada do Antigo Regime, possibilitando a vivência das “liberdades negativas” (liberdade de opinião, de imprensa, de professar uma fé que não é a oficial do Estado), para posteriormente avançar sobre os direitos políticos e sociais, que vão requerer uma posição e uma ação ativa do Estado. Esta posição requer a produção de uma nova gama de responsabilidades do Estado, organizados através da prestação dos serviços públicos, o que vai exigir o fortalecimento do Estado para dar conta de suas novas atribuições. Sobre o desenvolvimento, de um Estado que permitia minimamente a vivência das liberdades negativas para o Estado Social, Bóbbio, vai comentar: (...)Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o super poder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder - , os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado. (Bobbio, 2004 p. 35) Dentro desse entendimento é importante salientar o caráter social da mudança nessas novas atribuições do Estado, relacionadas às transformações que acontecem na sociedade. Nessa perspectiva, o Estado primeiro nasce liberal, onde os indivíduos que reivindicam o poder são parte da sociedade; depois torna-se democrático, onde potencialmente todos os indivíduos podem participar e reivindicar, e, finalmente torna-se Estado Social quando os indivíduos “todos transformados soberanos sem distinções de classe”, reivindicam além dos direitos que defendem a liberdade, os direitos sociais. Os direitos sociais são direitos do indivíduo, que por meio desse tipo de Estado é concebido como cidadão. Nesses desenvolvimentos, podemos, a partir do pensamento de Norberto Bobbio, definir um sentido para democracia moderna: (...) Da concepção individualista da sociedade, nasce a democracia moderna (a democracia no sentido moderno da palavra), que deve ser corretamente definida não como o faziam os antigos, isto é, como o “poder do povo”, e sim, como o poder dos indivíduos tomados um a um, de

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todos os indivíduos que compõe a sociedade regida por algumas regras essenciais, entre as quais uma fundamental, a que atribui a cada um, do mesmo modo como a todos os outros, o direito de participar livremente na tomada das decisões coletivas, ou seja, das decisões que obrigam a toda a coletividade. (Bobbio, 2004 p. 51) Desta maneira, quem vai determinar os caminhos das decisões que são sociais e coletivas será o cidadão através da sua individualização por meio do seu voto, no sufrágio universal. É a regra da maioria individualizada que vai justificar e sustentar a elegibilidade dos governos democráticos. Assim garante-se que a representação da vida pública não possa ser dividida com base em ordens ou estratificações sociais sustentadas nas diferenças entre os homens, principalmente as de ordem socioeconômicas. É importante salientar esse individualismo porque entendemos que todas as diferenças são historicamente construídas, socialmente delimitadas, relacionadas a um contexto de interação entre indivíduos e grupos de indivíduos que compõe a sociedade. Por exemplo, é fato que a exploração do trabalho escravo por quase quatro séculos no Brasil efetivamente criou diferenças sociais entre os proprietários de escravos e as pessoas escravizadas, nesse exemplo específico, diferenças entre brancos, índios e negros e da herança desse processo na construção dos lugares sociais que hoje dão feição à sociedade brasileira. Reconhecer os direitos sociais e políticos de brancos, índios e negros deve passar necessariamente por essa questão: a da construção das diferenças entre grupos sociais relacionada ao poder no desenvolvimento histórico da sociedade. Com isso podemos concluir, primeiramente, que não existe igualdade, e que dentro de um Estado Social essa igualdade é uma meta, um ideal a ser alcançado. Não podemos ignorar as diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais que foram processadas nas interações e nos conflitos, no desenvolvimento histórico da sociedade. Entendemos que as diferenças produzidas, quando confrontadas com sua historicidade e com as diferenças de poder que envolvem as relações entre indivíduos e grupos de indivíduos, justificam um tratamento não igual para esses indivíduos e grupos de indivíduos. Esse reconhecimento da história e das diferenças sociais conformam um dos eixos centrais de um Estado que se quer democrático e social. Bóbbio afirma que: (...) Só de modo genérico e retórico se pode afirmar que todos são iguais com relação aos três direitos sociais fundamentais (ao trabalho, à instrução e à saúde); ao contrário, é possível dizer, realisticamente, que todos são iguais no gozo das liberdades negativas. (Bobbio, 2004 p. 34) Desta maneira, reconhecida a diferença que fundamenta indivíduos e grupos de indivíduos nas interações sociais, abre-se o caminho para um entendimento sobre a diversidade dentro desta perspectiva política. Progressivamente, percebemos que o homem parte de seu caráter genérico na busca por direitos, até a sua especificação, dentro do quadro das interações sociais e históricas, e de seus resultados na configuração social atual da sociedade. 1176

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O homem passa a ser compreendido na diversidade de suas posições sociais, onde os critérios de diferenciação devem ser lidos através do prisma da história (os significados sociais e temporais de gênero, geração, sexualidade, características físicas, sociais e culturais, etc.) E ao reconhecimento destas diferenças especificas, diversas estratégias de tratamento, visando sua superação quando assim percebido, ou sua manutenção, quando assim desejado. A leitura e o caráter da mudança estando diretamente influenciados pelas ideologias disponíveis no contexto que permitem interpretações diversas sobre os fenômenos sociais. Para efetivar essa pluralidade reconhecida no âmbito do poder, a democracia trata da representação. Bobbio comenta que a luta pela afirmação dos direitos do homem no âmbito dos Estados nacionais se configurou sobretudo através da implementação de regimes representativos, um processo que envolve a dissolução da concentração de poder administrado verticalmente através do Estado (Bobbio, 1987). Em discurso proferido em 2007 pelo então ministro da cultura Gilberto Gil, sobre o tema diversidade cultural em missão oficial à Colômbia, encontramos uma definição de cidadania que passa pelo reconhecimento da diversidade cultural brasileira. Segundo Gil: As sociedades crescem na promoção direta de sua afirmação cidadã. O conceito mais formal da cidadania que dá direito ao voto e a ser votado assumiu um grau de sofisticação participativa que passa pela estética. Se a cidadania é o direito a ter direitos, a percepção dos deveres amplia-se quando se expande a consciência de si, de sua cultura, de sua capacidade de contar a própria história e sua identificação com sua gente, seu lugar, seus hábitos e memória. (Gil, 2007 p.3) Nessa leitura, a sociedade deve ser a protagonista do processo de inclusão social de demandas. O Estado deve rever seu modus operandi, mobilizado sobretudo pelo incentivo à participação social plural. Isso nos leva à necessidade de refletir sobre as interações entre representantes e representados, governantes e governados, que é mesmo a essência da vida política na relação entre Estado, poder e governo. O Estado, ou a relação entre o conjunto das instituições políticas e a sociedade, atualmente é referenciada a uma interação básica de demanda\resposta, onde às instituições políticas cabe a função de dar respostas às necessidades oriundas do sistema social, convertendo as demandas sociais em políticas efetivamente implementadas pelo poder público e que abarcam a toda a sociedade. Essa interação se renova nas respostas que o Estado dá e no impacto que as medidas tomadas causam sobre a sociedade. Assim, novas demandas da sociedade são criadas numa renovação constante, influenciada pelas disputas políticas entre as classes sociais, moduladas na representatividade dos partidos políticos. Max Weber procurou delinear o desenvolvimento do Estado basicamente através do desenvolvimento oficializado do poder da burocracia e do movimento de monopólio da força para-

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lelamente ao fortalecimento das elites proprietárias em sua organização de classe e expropriação dos meios de produção dos artesãos. Assim, o Estado caminhou no sentido de organizar seu aparelho administrativo, provendo serviços públicos, administrado pela classe política representativa, que através do Estado pode controlar tanto os serviços públicos quanto a violência com legitimidade por meio dos aparelhos repressivos. Weber postula os tipos ideais de dominação, que envolvem a relação Estado\Sociedade civil, entre elas os tipos ideais de: dominação tradicional ancorada nos costumes e valores culturais, dominação burocrática no controle dos regimentos que regulam a máquina do Estado, dominação pela força no monopólio legitimo da violência (polícia, forças armadas, etc.), dominação formal na execução generalizada e despolitizada das leis (e a questão do acesso à defesa) , dominação carismática por meio do populismo e personalismo da liderança carismática, etc. No Manifesto do Partido Comunista, Marx procurou apresentar a organização de classe modulada na representatividade das lideranças políticas para oferecer a imagem do Estado de um “escritório administrativo das classes dominantes”, que conseguem efetivar seu domínio através não só do monopólio dos bens de produção, mas também por meio do controle ideológico da vida política e da legitimidade construída em torno do sufrágio universal. Por isso, a teoria marxista, que não faz uma análise mais acurada das funções do Estado, prevê num sentido teleológico progressista (num certo sentido evolucionista, por propor um sentido de avanço almejado), a superação do Estado através de sua derrocada revolucionária, desarticulando a face burocrática do poder de classe que envolve sua gestão. Portanto no cerne da interpretação da função do Estado, está a luta de classes antagônicas e sua representação partidária em conflitos de interesses distintos. A classe oprimida deve lutar para derrubar o domínio das classes dominantes no Estado. 3. DIVERSIDADE E PODER. Todas estas interpretações nos oferecem boas ideias para pensar, boas imagens de movimentos observáveis nas interações entre sociedade civil e Estado. A questão fundamental do controle da máquina está, entre as versões brevemente delineadas, no controle do poder. Destacando o poder, Bobbio vai comentar em Estado, Governo e Sociedade (1987): Aquilo que “Estado” e “política” tem em comum (e é inclusive a razão de sua intercambialidade) é a referência ao fenômeno do poder. Do grego Kratos “força”, “potência”, e arché, “autoridade” nascem os nomes das antigas formas de governo, “aristocracia”, “democracia”, “oclocracia”, “monarquia”, e todas as palavras que gradativamente foram sendo forjadas para indicar formas de poder, “fisiocracia”, “burocracia”, “partidocracia”, “poliarquia”, “exarquia”, etc. Não há teoria política que não parta de alguma maneira, direta ou indiretamente, de uma definição de

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“poder” e de uma análise do fenômeno do poder. Por longa tradição o Estado é definido como o portador da summa potestas. E a análise do Estado se resolve quase totalmente no estudo dos diversos poderes que competem ao soberano. A teoria do Estado apoia-se sobre a teoria dos três poderes (o legislativo, o executivo, e o judiciário) e das relações entre elas. Para ir a um texto canônico dos nossos dias, Poder e Sociedade de Lasswell e Kaplan (1952), o processo político é ali definido como a “formação, a distribuição e o exercício do poder”. Se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria política, a teoria política pode ser por sua vez considerada como uma parte da teoria do poder. (Bobbio, 1987, p. 76-77) A cidadania almejada no Plano Nacional de Cultura defende a “democratização da cultura”. Essa democratização, na leitura oferecida pelos gestores, passa pela inclusão cidadã dos estratos sociais historicamente marginalizados e silenciados na sociedade brasileira. Trata-se, em relação às teorias expostas de desconcentrar o poder das elites, no caso brasileiro relacionado ao mando dos descendentes de colonizadores europeus e da elite capitalista formada através de suas ramificações, possibilitando o acesso ao poder na participação no campo das decisões de negros, índios, mulheres, migrantes, homossexuais, etc. todas as categorias historicamente exploradas e que nunca puderam participar da vida pública na condição de cidadãos. Democratizar o conceito de cultura dentro dessa percepção, é uma questão de poder e de cidadania. Veja como essas ideias se expressam no discurso de posse do ministro Juca Ferreira, em janeiro de 2015: (...). É preciso avançar com firmeza e determinação também na distribuição de poder simbólico e político no Brasil com a democratização da produção e do acesso ao conhecimento e à cultura. No momento em que o mundo assiste a uma situação dramática de radicalização de extremismos, é preciso enfrentar também aqui discursos de ódio, o preconceito social e regional, o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia e todas as demais formas de segregação cultural. Na verdade, banalizamos a violência. São muitos os fantasmas culturais que ainda assombram as nações democráticas. Todos eles estão a nos exigir uma revolução cultural, mudança de comportamento, sensibilidade e visão de mundo. (Discurso de Posse do Ministro Juca Ferreira, janeiro de 2015) Segundo Bobbio, essa multiplicação dos direitos se deu principalmente através de três modos: 1) aumentaram os bens dignos de serem tutelados pelo Estado, 2) alguns direitos típicos monopolizados foram estendidos a outros estratos sociais, e, 3) o homem passou a ser compreendido não mais em sua generalidade, mas agora em sua especificidade e diversidade. (Bobbio,2004) Esse contexto de mudança, por sua notável e crescente especificação, atenta para o caráter situacional, relacional e temporal dos contextos de reivindicação, formulação e imple-

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mentação desse amplo quadro identitário que passa a ser reconhecido como direito através do fortalecimento da democracia, da diversidade, e da cidadania. Então o reconhecimento dessas categorias identitárias nesse contexto tem a ver com a conquista de direitos, que por sua vez se relaciona com as disputas de poder que envolvem toda a sociedade. Vamos analisar agora no texto da “Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais”(2007), as especificidades sobre o tema positivados nesse documento que o Brasil endossa como signatário, procurando refletir sobre como a expansão do conceito de cultura e identidade possibilitou um avanço nos entendimentos da política da cultura, referidos à noção de cidadania e de seu empoderamento através da participação democrática. No texto, a noção de diversidade cultural prescinde de “um ambiente de democracia, tolerância, justiça social e mútuo respeito entre povos e culturas” para poder se expressar em toda sua potencialidade, fortalecendo a paz e a segurança no plano local e global. Dentro do entendimento da UNESCO, a compreensão sobre Cultura vem mudando substancialmente, revendo a velha noção que restringia a cultura ao campo de produção das belas artes e da literatura erudita. No preâmbulo da Declaração Universal da Diversidade Cultural da UNESCO, de 2001, encontramos a seguinte definição: A cultura deve ser considerada como um conjunto distinto de elementos espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de uma sociedade ou de um grupo social. Além da arte e da literatura, ela abarca também os estilos de vida, modos de convivência, sistemas de valores, tradições e crenças (in: Convenção sobre a Diversidade das Expressões Culturais, 2007 p.20) Esta ampliação da noção de cultura na UNESCO numa retrospectiva passa, grosso modo, por quatro períodos em que os sentidos e as funções atribuídas à cultura vão se transformando. Entre 1950 e 1960, para além das artes, Cultura engloba a noção de Identidade Cultural. Essa noção possibilitou uma tomada de posicionamento político da entidade, que procurou trazer reflexões e dar respostas a situações específicas, entre elas, “contextos de descolonização, ao reconhecer a igual dignidade das culturas”. Entre os anos 1970 e 1980 ampliou-se a consciência dos vínculos entre cultura e desenvolvimento. Foi nesse período que se estabeleceram as redes de comunicação visando cooperação e solidariedade entre os países em desenvolvimento. A UNESCO procurou promover ações de intercâmbio, visando fomentar parcerias mediadas pela noção de igualdade entre as partes, onde cultura também deve ser lida como fundamento de Soberania. O avanço mais pungente no sentido de fortalecer a cidadania (dentro do recorte proposto nesse artigo) ocorreu entre os anos 1980 e 1990, marcados pelo reconhecimento das agendas dos países em desenvolvimento em consonância com seus fundamentos culturais na construção da democracia. Nesse período a UNESCO passou a reconhecer, dar importância e posteriormente

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empoderar politicamente os grupos e identidades que sofrem as marginalizações e exclusões sociais vividas por indivíduos pertencentes às minorias, povos indígenas, imigrantes, etc. Entre os anos 1990 e 2000, se aprofundou esse processo através do diálogo entre culturas e civilizações diversas. Nesse contexto a diversidade cultural torna-se patrimônio comum da humanidade através de sua Declaração Universal da Diversidade Cultural, tendo agora que lhe dar com um duplo desafio: primeiro ao de defender o direito à diferença entre pessoas, grupos e identidades plurais ansiando, contudo, o convívio mútuo, e por outro lado, a defesa da criação a partir desse contexto diverso, ampliando a possibilidade de expressão e comunicação entre o tradicional e o contemporâneo no espaço e no tempo. A dinâmica desigual e violenta imposta pela globalização capitalista, as guerras, a imigração, as diferenças religiosas, foi e são ainda grandes desafios em debate dentro dos fóruns internacionais. O reconhecimento de direitos e sua implementação prática na realidade são questões fundamentais que viabilizam a construção da participação democrática e da cidadania. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se percebe nessa breve trajetória é o caráter dinâmico que envolve os entendimentos sobre cultura, diversidade cultural, democracia e cidadania. O caráter situacional, relacional e diacrítico, que é próprio da etnicidade e dos processos identitários, informa a construção discursiva e amplia a potencialidade política dos termos clássicos que compõe a gramática fundamental da vida política contemporânea. Refletindo sobre mudança social em relação a cidadania, cultura e diversidade cultural, percebemos em meio às transformações do campo da conquista de direitos pelos homens ao longo do tempo, que a participação social e democrática criou e potencializou essas noções, comunicando e respondendo aos problemas sociais, posicionando criticamente os conceitos ao oferecer reflexões, soluções e ações práticas para os desafios concernentes a cada contexto social específico, o que atesta, como estamos procurando evidenciar, o caráter situacional e relacional das noções de cultura e identidade, e de sua politização cada vez maior no quadro das interações e disputas de interesses presentes na sociedade civil organizada e no Estado. O Plano Nacional de Cultura e suas metas devem ser pensadas através desta dinâmica conceitual, contra concepções estanques que ainda influem sobre a percepção desses fenômenos sociais determinando a priori os significados, que como apresentamos, estão em disputa. Desta maneira, se observa uma amplitude de campos de atuação que envolve o desenvolvimento da democratização cultural através do acesso ao direito à cultura e à cidadania. Na perspectiva apresentada no início do artigo, procuramos salientar a importância de relacionar a conquista de direitos às disputas por poder no interior da sociedade e na sua relação com o Estado.

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A intenção foi oferecer interpretações críticas para a noção de cidadania no Plano Nacional de Cultura pensando sobre Estado e Poder nas interações com a Sociedade. A trajetória partiu do direito, do desenvolvimento da conquista por participação e ampliação das atribuições do Estado; ofereceu leituras sobre o poder e, brevemente, das formas clássicas que envolveram seu entendimento; tratou do processo que desenvolveu a compreensão sobre o homem, da sua generalidade à especificidade na conquista do reconhecimento da diversidade no campo do direito, depois traça paralelos entre esse movimento e a dinâmica da etnicidade e dos processos identitários – para uma percepção mais acurada do processo de mudança social; a relação entre individualismo, cidadania e democracia, e como estas ideias se expressam em discursos e documentos oficiais do MinC.

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PATRIMÔNIO CULTURAL EM PERIGO – A ARTE FUNERÁRIA E O DESCASO COM SUA PROTEÇÃO EM JUIZ DE FORA/MG Leandro Gracioso de Almeida e Silva1 Marlise Buchweitz2 RESUMO: O presente trabalho analisou como o poder público municipal tem atuado na proteção dos jazigos de valor cultural do Cemitério Municipal de Juiz de Fora. Apesar de a abertura de processo de análise de tombamento ter sido autorizada pelo Conselho de Proteção do Patrimônio Cultural Municipal, isto não está se refletindo em uma política eficaz de salvaguarda do acervo. Tanto a administração do cemitério tem-se mostrado indiferente à questão quanto a Divisão de Patrimônio Cultural não possui poder de fiscalização e portanto, pouco pode realizar além de notificar. Em meio ao processo, apenas a imprensa e alguns setores da sociedade civil têm-se mobilizado para cobrar o fim do descaso para com o espaço mortuário. Desta forma, fezse um estudo histórico sobre o processo de inserção do cemitério como patrimônio da cidade de Juiz de Fora e as ações que tal questão necessitou. PALAVRAS-CHAVE: Cemitério, Patrimonialização, Memória, Identidade

1. A POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EM JUIZ DE FORA: UM HISTÓRICO Os primeiros instrumentos para proteção do patrimônio cultural em Juiz de Fora, partindo do âmbito municipal, aconteceram após um movimento de intelectuais que reclamavam a proteção de bens históricos considerados por eles enquanto importantes para a cidade. O marco desse movimento, conforme (PASSAGLIA, 1982, p. 18) foi o caso do colégio Stella Matutina, em 1978, que, prestes a ser demolido, mobilizou a consciência da comunidade sobre a importância de medidas preservativas. Contudo, a mobilização não garantiu a não demolição do imóvel. As iniciativas de proteção avançaram na década seguinte, após o entendimento de que as transformações urbanas e arquitetônicas da cidade estavam descaracterizando-a e fazendo com que perdesse elementos constituidores de sua identidade (AZEVEDO; JABOUR, 2012, p. 35-39). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação História Social – UFRJ, mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural – UFPel (2016), licenciado e bacharel em História – UFJF (2013/2014) e bacharel em Turismo pela Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora (2011). E-mail: [email protected] 2 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural – UFPel; Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 1

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Ainda, existiam dois grupos de intelectuais distintos: os que consideravam a reformulação importante e necessária para que Juiz de Fora adentrasse na modernidade e que, portanto, a patrimonialização se impunha como um entrave; e aqueles para quem era necessário selecionar alguns bens para que estes fossem os elos representantes entre a cidade nova que se constituía e a do início de sua história (AZEVEDO; JABOUR, 2012, p. 35-39). Conforme (ALMEIDA, 2015, p. 61-64), diante do impasse, esses intelectuais de caráter mais preservacionistas conseguiram importantes vitórias diante do poder público. A primeira é anterior a Constituição de 1988, a qual garantiu mais possibilidade de regionalização da gestão e da seleção dos bens históricos e culturais. Juiz de Fora ganhou, em 1982, sua primeira legislação voltada à proteção do patrimônio cultural. Evidentemente, não seria possível debater aqui todos os meandros sobre a questão; no entanto, consideramos que devido a essas iniciativas propostas, primeiramente por essa lei local e, em seguida, com a legitimação dada pela Constituição, as quais, somadas às demandas locais, garantiram bons avanços. Ainda de acordo com (ALMEIDA, 2015, p. 63-64), foi assim, que, em 1989, Juiz de Fora foi contemplada com a criação da Divisão de Patrimônio Cultural, órgão ligado atualmente à Funalfa, fundação esta, responsável por gerir a cultura do município. Atualmente, o município possui cerca de 173 bens materiais tombados e fez o registro de 6 bens imateriais3. Infelizmente, o patrimônio funerário não foi amplamente contemplado nestes momentos iniciais de seleção dos bens. Mas, é compreensível se observamos que os bens indicados eram os tradicionais, os quais, aliás, eram os mais ameaçados naquele momento. Entendemos como bens tradicionais: praças, monumentos, casarões, igrejas, fábricas antigas, entre outros. Os dois cemitérios mais antigos da cidade – Cemitério Municipal Nossa Senhora Aparecida e Cemitério da Paróquia de Nossa Senhora da Glória/Comunidade Confissão Luterana – não fizeram parte da análise para um possível tombamento até o ano de 2012. Porém, um pormenor importante existia sobre o tema, o qual diz respeito ao túmulo de Henrique Guilherme Fernando Halfeld, incluído em pedido de tombamento desde 1999. A princípio, a demanda se justifica por ser étnica e fundacional. Além de ser o possível fundador da cidade, a força política do Instituto Teuto-brasileiro sobre a questão pode ter contribuído para a inserção desse jazigo na lista de bens inventariados, uma vez que este sepultado era imigrante de origem alemã4. O processo foi aprovado em 07 de junho de 2004, apesar de o pedido ser do ano de 1999. 5 Lista completa disponível em Acessado em 20 de fevereiro de 2015. 4 A imigração alemã em Juiz de Fora se inicia no século XIX e ainda há um grande grupo de descendentes dos colonos. In: STHELING, L. J. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora: Funalfa, 1979. 5 Processo disponível em . Acessado em 20 de fevereiro de 2015. 3

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A patrimonialização de cemitérios não é uma novidade no Brasil. Tanto o IPHAN, órgão de proteção federal, como o IEPHA/MG, órgão de proteção em Minas Gerais, realizaram tombamentos de cemitérios e bens fúnebres quando estes remetiam à memória e à história nacional e no caso do IEPHA/MG à estadual (CASTRO, 2010, p. 5). O caso do jazigo de Henrique Halfeld enquanto patrimônio funerário era exceção em Juiz de Fora, mas como se observa, estava de acordo com as políticas de patrimonialização de cemitérios do IPHAN e IEPHA/MG naquele momento. A política local se manteve assim até 2012, quando ocorre uma primeira ruptura. Em 2012 ocorre uma visita ao Cemitério Municipal de Juiz de Fora realizada pelo Diretor do Museu Mariano Procópio – museu localizado em Juiz de Fora –, e também membro do Conselho de Proteção e Preservação do Patrimônio Cultural da cidade de Juiz de Fora (COMPPAC) naquele momento, Douglas Fasolato; estavam entre os visitantes o jornalista Wilson Cid, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora (IHG) e membro do COMPPAC, e também o falecido Wilson Coury Jabour Junior, procurador-geral da prefeitura da cidade e também membro do COMPPAC. Nesta visita eles observaram que: [...] a situação do cemitério Municipal era motivo de nossa preocupação visto o processo de especulação no cemitério, principalmente na parte antiga, onde as pessoas estavam indiferentes aos valores estéticos-históricos, descaracterizando-os, muitas vezes jogando-os ao chão para erguer andares e tirando inclusive a capacidade de observação. Tivemos inúmeras conversas e algumas visitas ao cemitério. Uma delas, especificamente para tentar delimitar o objeto do tombamento, única solução para impedir a situação. Enfim, fizemos uma visita técnica, em um sábado chuvoso, com posterior troca de e-mails e do qual saiu uma lista, mas priorizando o cemitério velho, pelo risco. Conversamos com várias pessoas e pesquisamos em diversas obras. Essa visita foi em 2012 e antecedeu a construção da proposta, em que ficou decidido que seria apresentada pelo Wilsinho (informação verbal)6. Wilsinho, a quem Douglas Fasolato carinhosamente chama era, Wilson Coury Jabour Júnior que neste mesmo ano tratou de apresentar ao COMPPAC uma proposta com um total de 25 bens funerários selecionados. Neste pedido redigido por Wilson Coury constavam: a antiga capela e 19 túmulos na ala velha do cemitério e 5 na ala nova. A proposição foi aprovada e compõe um processo ainda em trâmite7. Não adentraremos maiores detalhes nesta seleção que julgamos parcialmente limitada por selecionar um número restrito de sepulturas dentro de um grande universo possível. No entanto, compreendemos que o grande conhecimento que os três dispunham sobre a história do Trecho de entrevista concedida via chat da rede social Facebook com o Sr. Douglas Fasolato, no dia 15 de fevereiro de 2015. 7 DIPAC/FUNALFA n° 011586/2012. 6

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município e a pouca noção em relação à arte funerária possivelmente implicaram em seleção restritiva. Para justificar o tombamento, Wilson Coury citou trecho do trabalho da pesquisadora de cemitérios Elisiana Trilha Castro: [...] em grande medida, ao preservar um cemitério, a este são incorporados valores que não se ligam somente ao fato deste lugar guardar os corpos sem vida. Creditam-se valores religiosos, sociais, arquitetônicos, históricos ou artísticos, ambientais ligados, geralmente, a uma determinada forma de representar as cidades e a memória coletiva. [...] Mas um olhar sobre a cidade contemporânea aponta para um modo diferente de lidar com a morte e com os mortos, que tendem a afastá-los ou apresentá-los de uma forma menos marcante na paisagem da cidade e no cotidiano. Apesar destas novas práticas ou por conta delas, afinal a inclusão dos cemitérios como bens patrimoniais pode ser outra forma de afastar a morte pela aplicação de novos usos, estes são enquadrados dentre os bens a serem preservados. Mas sua inclusão dentre o rol dos bens culturais, quando comparada à sua historicidade e valor cultural, ao contrário de muitos lugares, costumes e edificações, ainda é incipiente8. Observa-se, assim, que o processo de conscientização local e de inclusão de bens a serem patrimonializados é lento e demanda conhecimento de causa. Mesmo assim, através do olhar de alguns poucos indivíduos, pode-se dizer que não fossem eles, provavelmente muito mais estaria perdido no tempo e guardado apenas na lembrança. A seguir, analisaremos essa tramitação do processo de tombamento solicitado de por Wilson Coury e que ocorre no DIPAC-Funalfa. 2. A PATRIMONIALIZAÇÃO DO CEMITÉRIO MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA O pedido realizado por Wilson Coury Jabour Júnior, em dezembro de 2012, foi importante, pois garantiu que o DIPAC começasse a enxergar a importância da proteção dos cemitérios antigos do município. Em 2013, no mês de abril, o órgão propôs em Juiz de Fora o evento III Olhar sobre o que é nosso realizado em periodicidade anual e no qual se debatem estratégias de gestão e de proteção do patrimônio cultural. Para o evento deste mesmo ano, a Funalfa trouxe 2 pesquisadoras de cemitérios, a fim de que estas propusessem a importância desses espaços e apresentassem caminhos para se lidar com a temática. Destaca-se a pesquisadora Clarissa Grassi Dias, que se dedica há 13 anos a inúmeras ações para divulgação e preservação do Cemitério São Francisco de Paula, um dos mais antigos de Curitiba/PR.9 Clarissa é membro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), Trecho retirado do pedido feito por Wilson Coury Jabour Junior no qual cita o trabalho de Elisiana Trilha Castro “Cemitérios, nosso patrimônio nacional”; consta no processo administrativo de posse de DIPAC/FUNALFA, n°: 01158/12. 9 Para saber mais: . Acessado em 5 de dezembro de 2015. 8

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associação que se propõe a divulgar e pesquisar os estudos do morrer no Brasil. Ao ser questionada sobre o possível tombamento do Cemitério Municipal de Juiz de Fora, Clarissa Grassi destaca que recomendou alguns caminhos para uma seleção de túmulos. No entanto, a pesquisadora não conferiu à atuação da Funalfa qualquer postura critica mais ampla, por não conhecer a história do cemitério analisado e por qualquer eventual atuação demandar uma análise mais apurada (informação verbal).10 Também foi convidada para participar do evento, a historiadora Fernanda Maria de Matos Costa. Fernanda é mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente funcionária técnico-administrativa da Universidade Federal do Paraná. Este convite se deu devido ao seu objeto de estudo durante o mestrado, no qual investigou a história do Cemitério Municipal de Juiz de Fora durante o século XIX. Após participação no evento III Olhar sobre o que é nosso, e tendo com parâmetro os apontamentos das pesquisadoras, Leandro Gracioso de Almeida e Silva, um dos autores deste artigo, se sentiu instigado a desenvolver uma pesquisa sobre o campo santo. A oficialização da pesquisa se concretizou com a aprovação no processo seletivo de mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas, no ano de 2014; esta pesquisa se encontra atualmente em fase de finalização. É importante ressaltar que Fernanda Maria de Matos Costa não se interessou em fazer qualquer eventual proposição de patrimonialização do Cemitério Municipal de Juiz de Fora. Segundo ela, desenvolver tal procedimento não era seu foco; ademais, a distância se impôs como uma dificuldade (informação verbal).11 Outro pesquisador que desenvolveu investigação sobre a morte e o morrer, em Juiz de Fora, foi Paulo Sério Quiossa. Não foi possível contato com ele, mas sabemos que este pesquisador igualmente demonstrou pouco ou nenhum interesse na questão, ainda que os motivos para tal não fossem possíveis de se averiguar. Era desejo de Leandro Gracioso de Almeida e Silva reverter tal situação de “patrimonialização limitada” proposta em 2012. Por isso, o mesmo foi autor de um projeto que visava aumentar a abrangência da área a ser tombada, a qual deveria englobar novos túmulos e possíveis e futuras políticas de educação patrimonial e turismo no local. 3. OS INIMIGOS DO CEMITÉRIO MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA Os cemitérios de valor histórico padecem de inúmeros problemas que não são de exclusividade destes espaços. De um modo geral, a escassez de recursos e, em alguma medida, o desinteresse de alguns setores públicos e privados limitam a preservação e a conservação de bens Entrevista concedida por Clarissa Grassi via rede social Facebook, em 23 de fevereiro de 2015. De acordo com Fernanda Maria de Matos Costa, em resposta a questionamento feito via e-mail, em 27 de fevereiro de 2015.

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materiais de valor cultural. Contudo, no caso do campo santo analisado, a maior ameaça advinha inicialmente do próprio setor que o administra, o poder público. Indiferente aos valores simbólico, histórico e cultural que este cemitério detêm, por ser possivelmente o mais antigo cemitério higiênico de Minas Gerais12, houve e ainda há inúmeras tentativas de depreciar ou desconsiderá-lo. A primeira que consideramos a mais problemática foi uma iniciativa que se tornaria um futuro projeto de lei, caso aprovada. A proposta feita pelo vereador do município Cido Reis pretendia alterar o regimento do cemitério. O argumento defendido dizia respeito ao fato de haver inúmeros túmulos, em especial na ala velha13, nos quais não ocorrem sepultamentos há anos, devido à inexistência de proprietários. Portanto, segundo o vereador, havia real necessidade de se alterar o regimento, a fim de permitir uma ampliação do direito de uso, o que tornaria possível a venda de perpetuidade a terceiros, algo atualmente proibido nesse campo santo. Assim, cedendo o uso a novas famílias, parte dos problemas de falta de jazigos na cidade seria resolvida.14 Acreditamos que a falta de jazigos nos cemitérios públicos de Juiz de Fora e, em especial no analisado, não seria resolvida nem sequer parcialmente pela medida. O cemitério sempre careceu de espaço para realizar todos os sepultamentos necessários, e a demanda por sua ampliação remete aos primeiros anos de seu funcionamento.15 Com o atual crescimento da população da cidade, mesmo que fosse permitida a revenda em pouco tempo, o problema retornaria e persistiria, uma vez que o Cemitério Municipal é o mais utilizado no município (informação verbal).16 Além disso, autorizar a revenda de jazigos a terceiros, inevitavelmente representaria o fim da maioria dos túmulos mais antigos, os que por sua vez possuem maior valor histórico e artístico. É difícil imaginar que, se não houvesse a proteção do tombamento, os novos proprietários teriam compromisso em preservar as estruturas originais da sepultura, afinal estas não fazem menção a familiares seus. Diante desta situação, foi apresentado um pedido às pressas, por Leandro Gracioso de Almeida e Silva. Nesta proposta, o autor justificava o porquê da necessidade de se fazer o pré-tombamento da ala velha. O pedido foi aprovado gerando um processo atualmente em tramitação, mas longe de um parecer final ocorrer num período próximo.17 Contudo, a aprovação inviabilizou o projeto de lei mencionado anteriormente, pois, enquanto não se decide sobre o tombamento, o bem analisado está “pré-tombado”, como prevê a legislação do município. Esta afirmação ainda carece de maior averiguação, mas de acordo com pesquisas em arquivos e jornais, tudo indica que seja de fato o mais antigo cemitério moderno de Minas Gerais. 13 Denomina-se “ala velha” a primeira divisão do cemitério, ocorrida em 1864. A “ala nova” é de 1925. 14 A notícia completa disponível em . Acessado em 06 de dezembro de 2014. 15 FCMRV – Vº Parte – Órgãos e Funcionários da Câmara – I Cemitério – Série 129 – Documentos diversos. Documento de 13/07/1912. 16 Conforme o administrador Emílio Bravo. 17 DIPAC/FUNALFA n° 00071/2015. 12

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O segundo inimigo do Cemitério foi a transformação do sentido que a morte obteve ao longo do tempo. Apesar de ter sido muito comum, sobretudo entre as famílias mais endinheiradas, o uso de arte funerária nos cemitérios das cidades de economia mais pujante do século XIX e primeiras décadas do século XX, esse tipo de arte passa por franco declínio desde meados do século XX. O processo se iniciou nos anos 1930, de acordo com Maria Elizia Borges: [...] a partir de 1929, a burguesia […] restringiu seus gastos em razão da crise econômica que se alastrou por todo o país; as obras tumulares grandiloquentes passaram para segundo plano, tornando-se raro esse tipo de construção. Ao mesmo tempo, mudava-se o gosto estético da sociedade, que preferia agora túmulos mais simples, horizontais, de linhas geométricas simplificadas, revestidos de granito ou mármore cinza e com poucas peças escultóricas de bronze e poucos atributos culturais, influenciados pelo art-decó (BORGES, 2002, p. 292). A sociedade havia mudado, e a morte havia transferido seu local: não se morria mais em casa, mas nos hospitais (ARIÈS, 1977, p. 54). O crescimento das cidades e as transformações na mentalidade também se impunham como fatores a dificultar um luto dramático. Os cortejos fúnebres tão comuns, que partiam geralmente da casa do defunto onde o corpo costumava ser velado, em poucos anos não seriam mais possíveis ou administráveis. O luto tornava-se proibitivo e o culto aos mortos também. Pregava-se e ainda se defende o distanciamento dos mortos, um não pensar na morte, afinal a ciência posterga cada vez mais o fatídico momento através de seus avanços. O modernismo defendendo novos valores para a arquitetura e as artes dispensava a estética “exagerada” das sepulturas que foram pouco a pouco se tornando cada vez mais simples. O mercado de arte funerária encolheu, os marmoristas que se dedicavam a isso tiveram que migrar seu foco para a construção civil, ou fecharem seus negócios. Os quase 100 anos em que a arte funerária teve seu apogeu nos cemitérios brasileiros ficariam para trás, como representantes de um momento específico da história do Ocidente cristão. Tais fatores contribuem para pensarmos no porquê da indiferença das famílias para com a sepultura. Se a mesma indiferença garantiu a preservação de muitas sepulturas pelo Brasil afora, este ponto de vista também se apresenta como um grande problema na proteção dos cemitérios. As famílias não realizam manutenção periódica das sepulturas porque isso já não é mais importante, de modo que as patologias se instalam e vão consumindo lentamente a estrutura do túmulo. No caso do Cemitério Municipal de Juiz de Fora, uma vez pagas as taxas de perpetuidade da sepultura, a desapropriação do jazigo é impossível. Sem valores em caixa, a administração do campo santo conta apenas com recursos transferidos pela Secretaria de Obras para manter os funcionários e a limpeza das áreas comuns espaço. Ademais, sem maiores preocupações em manter uma lista de contatos atualizada, e sem uma gestão de documentação mais apurada, a

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administração do cemitério parece não saber sequer quem poderiam ser os donos de algumas das sepulturas, as quais ficam em ruínas e a administração não pode intervir, já que a manutenção é de exclusividade do proprietário. Assim, este patrimônio vai sendo destruído aos poucos, pela “indiferença” compartilhada entre os proprietários dos jazigos e a administração do cemitério. Por fim, em terceiro lugar, o maior desafio enfrentado pelo Cemitério tem sido os furtos. Conforme já mencionado, até por volta dos anos 1930, as famílias mais abastadas costumavam gastar cifras consideráveis na construção de uma sepultura. Na ala nova do cemitério, inaugurada em 1925, existem, na maior parte das sepulturas, materiais nobres como granito, mármore e bronze. O bronze é certamente o mais fácil de ser furtado e o único possível também, pois qualquer tentativa de retirada de uma peça de mármore ou de granito implicaria na quebra desta, fato que acarreta em perda do valor comercial; mas o bronze pode ser novamente dissolvido e fundido. Diante dessa situação e do descontrole na segurança do Cemitério Municipal, a imprensa local tem divulgado, ao longo dos anos, casos de furtos de peças neste campo santo. O caso mais emblemático foi o furto dos ornamentos em bronze da sepultura de Henrique Guilherme Fernando Halfeld. A este personagem que se atribui a fundação da cidade, conforme já discutido, por isso talvez a maior comoção. Desde 2013, o túmulo vinha sendo lentamente saqueado. Primeiramente, foi o brasão de armas do município de Juiz de Fora, depois o mapa da região da Alemanha da qual provinha Henrique. Por fim, antes de novembro de 2015, furtaram o Brasão da Família Halfeld. Tal iniciativa pareceu ser a gota d’água para a sociedade civil organizada. O senhor Vicente de Paulo Clemente, descendente de alemães, não deixou de reclamar num grupo da rede social Facebook intitulado “Comunidade Alemã” o descaso para com a sepultura: [...] vergonha… túmulo do Fundador de nossa cidade, no Cemitério Municipal, dilapidado e despido das placas honoríficas. O mapa da região de onde nasceu Heinrich Willmem Ferdinand Halfeld [Henrique Guilherme Fernando Halfeld], na Alemanha, o brasão de armas da família Halfeld e o brasão da cidade, foram violentamente arrancados de suas bases e roubados por vândalos. Hoje, dia dos mortos, ao visitar o Campo Santo, tristemente me deparei com essa imagem... (informação verbal)18. Em seguida, Leandro Gracioso de Almeida e Silva, tendo ciência do caso o denunciou a imprensa escrita e televisionada da cidade que dedicou matéria sobre a questão nos dias 04 e 05 de novembro de 2015. O jornal Tribuna de Minas publicou matéria da qual reproduzimos parte: [...] em função das visitas aos cemitérios da cidade no Dia de Finados, uma postagem no Facebook, publicada no grupo ‘Comunidade Germânica de Juiz de Fora’ chama atenção para furtos ocorridos no Cemitério Municipal. Um dos alvos foi o túmulo do Comendador henrique Guilherme 18

Trecho retirado de comentário de Vicente de Paulo Clemente no grupo, realizado em 2 de novembro de 2015.

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Fernando Halfeld, fundador da cidade. O mapa da região onde ele nasceu, na Alemanha, além do brasão de armas da família Halfeld e o brasão da cidade, foram arrancados de suas bases e furtados. [...]19. Esta matéria foi publicada em seu sítio na internet e foi a capa do veículo em sua fonte impressa no dia 04 de novembro de 2015. A Rede Globo de Televisão, representada na cidade pela sua afiliada TV Integração, também apresentou matéria, com duração de 04 minutos e 21 segundos, em seu telejornal diurno. Na Figura 1 pode ser observado o túmulo mencionado, após os furtos realizados: Figura 1: Jazigo de Henrique Guilherme Fernando Halfeld no Cemitério Municipal de Juiz de Fora, em novembro de 2015.

Fonte: Dos autores.

De acordo com as palavras da jornalista Érika Salazar, acontecem furtos no Cemitério e a administração admite falha na segurança. Na ocasião da reportagem, foram entrevistados o Sr. Roberto Dilly, responsável pelo Instituto Teuto-brasileiro, o pesquisador deste cemitério Leandro Gracioso de Almeida e Silva, o administrador do cemitério o Sr. Emílio Bravo e um descendente do sepultado, o Sr. Pedro Halfeld. No referido caso, Leandro, Roberto e Pedro demonstraram a insatisfação para com o ato que não é isolado e que demonstra que a administração municipal não tem garantido a segurança dos jazigos do cemitério. O Sr. Emílo Bravo tentou minimizar o caso, alegando que havia um esforço de sua administração em propor novas iniciativas de segurança. Segundo o administrador, há uma parceria com a guarda municipal que vigia o cemitério 24h, houve a troca da iluminação, Disponível em . Acessado em 10 de fevereiro de 2016. 19

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moto-monitoramento devido ao relevo do cemitério, além de um estudo para utilizar cães de guarda para reforçar a segurança20. Sobre estas medidas, até a conclusão deste artigo nenhuma foi definitivamente implementada, com exceção da vigilância 24h, fato que demonstra o distanciamento entre o discurso e a prática. Salientamos que uma pessoa responsável pela Secretaria de Obras foi encaminhada para auxiliar nos esclarecimentos por parte da administração do Cemitério Municipal, mas ela não deu entrevista. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Múltiplos tabus estão envoltos aos cemitérios. A estes espaços atribuímos concepções que envolvem dor, saudade e melancolia. E, certamente, por isso a maioria das pessoas passa quase toda a vida evitando pensar neles ou no ato de morrer. Consideramos que esta atitude perante a morte tem forte impacto na proteção jurídica dos campos santos, ainda que parte da situação tem mudado. Apesar de iniciativas importantes estarem acontecendo no Brasil, tais como as visitas guiadas nos cemitérios do Bonfim em Belo Horizonte e de São Francisco de Paula em Curitiba, ou até mesmo o “cinetério”, proposta que tem como iniciativa transmitir filmes de terror no Cemitério da Consolação em São Paulo, e também a possibilidade de se visitar virtualmente, através do Google mapas, os cemitérios São João Batista no Rio de Janeiro e Consolação em São Paulo, no geral as políticas para com estes espaços funerários são esparsas e restritas aos grandes centros. Mesmo com toda a possibilidade pedagógica e turística dos cemitérios oitocentistas, os exemplos ainda são restritivos. Além disso, apesar destas novas iniciativas reaproximarem a sociedade destes espaços fazendo com que se apropriem e desenvolvam sentimento de que é importante sua preservação, estas por si só não dão conta de preservá-los. Por fim, o objetivo deste trabalho era através de um relato de experiência em um recorte micro, apresentar os desafios na preservação dos bens cemiteriais que se apresentam como ainda mais difíceis que dos bens já consagrados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, F. Narrativas preservacionistas na cidade: a trajetória da defesa do patrimônio de Juiz de Fora contada através de manifestações populares. Juiz de Fora, MG: Ed. Funalfa, 2015. Informação disponível em . Acessado em 10 de dezembro de 2016. 20

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ARIÈS, P. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1977. AZEVEDO. N. L; JÚNIOR JABOUR, W. C. Reflexões e Olhares – O Patrimônio Cultural de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG: Funalfa, 2012. CASTRO, E. T. Cemitérios, nosso patrimônio nacional: a ação do IPHAN. 2010. Disponível em  COSTA, F. M . M. da. A morte e o morrer em Juiz de Fora: Transformação nos costumes fúnebres (18511890). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2007. _______. – Entrevista concedida via e-mail, em 27 de fevereiro de 2015. DIVISÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL. Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n° 1367/99. Disponível em ; Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n°: 01158/12; Processo Administrativo. DIPAC/FUNALFA, n° 00071/15. FASOLATO, Douglas. – Entrevista concedida via chat da rede social Facebook, no dia 15 de fevereiro de 2015. FUNDAÇÃO ALFREDO FERREIRA LAGE. Disponível em . Acessado em 20 de fevereiro de 2015. GAZETA DO POVO. Disponível em: . Acessado em 05 de dezembro de 2015. GRASSI, Clarissa Grassi. – Entrevista concedida via a rede social Facebook, em 23 de fevereiro de 2015. PREFEITURA DE JUIZ DE FORA (Juiz de Fora, MG). Arquivo Histórico. FCMRV – Vº Parte – Órgãos e Funcionários da Câmara – I Cemitério – Série 129 – Documentos diversos. Documento de 13/07/1912. STHELING, L. J. Juiz de Fora, a Companhia União e Indústria e os alemães. Juiz de Fora, MG: Funalfa, 1979. QUIOSSA, P. S. O morrer católico no viver em Juiz de Fora: 1850-1950. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2009. TRIBUNA DE MINAS. Disponível em. Acessado em 06 de dezembro de 2014. TV INTEGRAÇÃO – AFILIADA REDE GLOBO. Disponível em . Acessado em 10 de dezembro de 2016.

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POLÍTICA CULTURAL MILITAR - UMA REFLEXÃO SOBRE AS DIVERSAS FORMAS DE GESTÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL MILITAR Lecinio Alves Tavares1 Giorgio Pizzani Trindade2 RESUMO: O presente artigo como objetivo apresentar aspectos relevantes dos diversos Sistemas Culturais Militares no país e no exterior, citando suas principais características, semelhanças e diferenças. O trabalho irá abordar como as três Forças Singulares gerenciam seu patrimônio histórico e cultural comparando-se como as outras nações tratam o assunto. A ênfase do trabalho será pelas práticas desenvolvidas pelo Exército Brasileiro (EB), que será o referencial para o estudo. O trabalho tem objetivo apresentar os diversos processos que compões os diversos Sistemas Culturais Militares, traçando um paralelo com o que acontecia no seio da Sistema Cultural do Exército Brasileiro PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Sistemas Culturais Militares, Patrimônio Histórico e Cultural do Exército, Brasileiro.

1. INTRODUÇÃO O artigo tem o objetivo apresentar os diversos modelos de gestão cultural do patrimônio histórico e cultural militar e fazer uma comparação com o Sistema Cultural do Exército Brasileiro (SCEx). A Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx) é o órgão técnico e normativo do SCEx e que tem a missão de manter e difundir sua memória, feitos e tradições. A sua implantação3 ocorreu em um processo evolutivo sistêmico que iniciou Coronel do Exército Brasileiro, Mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Especialista em Comunicação Social pelo Centro de Estudos de Pessoal e em História Militar Brasileira pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Graduado em Administração pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Graduando em História pela UNESA. Fez parte da equipe da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército, até janeiro de 2016, quando atuou na área de planejamento e coordenação da Diretoria, [email protected] 2 Major do Exército Brasileiro, Especialista em História Militar Brasileira pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), graduando em História pela Universidade Estácio de Sá e Pós-Graduando em um MBA de Gerenciamento de Projetos na Fundação Getúlio Vargas. Compõe a equipe da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército, atuando na área de planejamento e coordenação e gestão da Diretoria, [email protected]. 3 Esse tema foi objeto de artigo apresentado no VI Seminário de Políticas Culturais da FCRB, em 2015 - “Sistema Cultural do Exército Brasileiro dos primeiros trabalhos até o surgimento da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural - uma reflexão”, escrito por TAVARES, Lecinio Alves - um dos autores do presente texto. 1

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em 1970, com a criação do Departamento de Ensino e Pesquisa (DEP)4. Apesar desse processo histórico não ser objeto de estudo do artigo, serão agregadas algumas informações relevantes para compreensão do texto. O texto é fruto dos trabalhos desenvolvidos pelos autores, que estudaram, na DPHCEx, entre 2014 e 2015, alguns dos principais Sistema Culturais Militares, inclusive com visitas a alguns órgãos no país e no exterior; com os objetivos de colher dados sobre diversos Sistemas e apresentar uma minuciosa proposta de intercâmbios de caráter técnico e cultural para contribuir com o processo de melhoria contínua do SCEx. A seguir, serão observadas as características desses Sistemas para estabelecer comparações com o modelo do EB. 2. O SISTEMA CULTURAL DO EXÉRCITO (SCEX) O SCEx se constitui como o principal instrumento de manutenção, conservação, manutenção, difusão e pesquisa do patrimônio histórico e cultural da Força Terrestre, está inserido no Sistema de Educação e Cultura do Exército, cujo Órgão Direção Setorial é o Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx). As metas do SCEx são: coordenação de todos os esforços para a consecução dos chamados objetivos culturais e estabelecimento de um canal técnico entre os diversos escalões, conferindo agilidade aos processos. O seu campo de atuação prioritário é o desenvolvimento dos valores éticos e morais dos militares, o fortalecimento do sentimento militar e o culto às tradições castrenses, reforçando a vocação militar, acentuando o compromisso do EB com a Nação; projetando os seus valores à sociedade em geral. A DPHCEx tem a missão de orientar, controlar e supervisionar as atividades de preservação, conservação, recuperação, restauração e divulgação do patrimônio histórico, artístico e cultural da Força. Além do DECEx e da DPHEx, fazem parte do SCEx, todas as Organizações Militares do Exército Brasileiro por intermédio de suas Seções de Comunicação Social ou Assessorias Culturais. As unidades que integram a estrutura da DPHCEx, são a Biblioteca do Exército (BIBLIEx); o Arquivo Histórico do Exército (AHEx), o Museu Histórico do Exército/Forte de Copacabana (MHEx/FC) e o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM). O MHEx/FC tem em sua estrutura, os seguintes Espaços Culturais: o Museu Militar Conde de Linhares (MMCL), o Panteão a Caxias e a Casa Histórica de Deodoro. A ilustração abaixo demonstra, de forma reduzida, a estrutura básica do SCEx.

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Fonte: página eletrônica da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército www.dphcex.ensino.eb.br

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Figura 1: Estrutura Reduzida do SCEx

O SCEx alinha-se com a Política Cultural do Exército Brasileiro e suas Diretrizes Estratégicas, contidas nas Portarias 614 e 615, de 29 de outubro de 2002, do Comando do Exército, que, passam por um período de atualização. A Política Cultural do Exército (PCEx) tem por objetivo a participação no desenvolvimento da cultura do país, como integrante do Sistema Nacional de Cultura(SNC), além de estreitar os laços culturais já existentes com outros segmentos da sociedade; além de integrá-la às demais políticas do EB. A PCEx privilegia, entre outros aspectos, a preservação dos valores, da memória e das tradições militares. A Diretriz Estratégica prevê que a atividade cultural não se limitará somente aos aspectos passados e se encarrega de estabelecer os objetivos culturais. Dez anos depois da implantação do DEP, em 1980, o Exército Brasileiro criou a Diretoria de Assuntos Culturais, Educação Física e Desportos (DACED) “sendo uma tentativa de centralização e desenvolvimento das atividades culturais na Força com a devida importância”. (página eletrônica da DPCHEx - adaptado) O Ministério da Cultura foi criado em 1985, cinco anos depois da instauração da DACED, sendo considerado relativamente recente e foi uma resposta a uma demanda decorrente de um processo de reordenamento jurídico, político e social a época e que teve como ápice a promulgação da Carta Magna de 1988. A Constituição Federal de 1988, tratou uma série de temas relativos à cultura, criando um arcabouço legal de normas para os trato dos bens públicos e das atividades culturais. Para fazer face a esse momento histórico, o EB adaptou, mais uma vez, sua estrutura, inclusive para a captação de recursos, sustentabilidade do patrimônio e formação de recursos humanos. A dificuldade

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de ter capital humano capacitado é um aspecto que todas as instituições públicas que trabalham com cultura sofreram5. 3. A GESTÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL NA MARINHA DO BRASIL (MB) E NA FORÇA AÉREA BRASILEIRA (FAB)6 3.1. Gestáo do Patrimônio Histórico e Cultural na Marinha do Brasil A Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM) 7, sediada no Rio de Janeiro, é o órgão com a missão de preservar e divulgar o patrimônio histórico e cultural da Marinha. A sistematização dessa Força Armada para tratar os seus múltiplos aspectos culturais vem desde 1943 com a criação do Serviço de Documentação da Marinha (SDM), oriundo da Biblioteca da Marinha, de 18468. Em 1953, o Museu Naval foi reativado, ficando sob a estrutura do renomeado Serviço de Documentação Geral da Marinha (SDGM), agora diretamente subordinado à Secretaria Geral da Marinha. Após um processo de seguidas mudanças de estrutura e vinculação, em de 20 de maio de 1994, o órgão responsável pelas atividades culturais da MB recebeu a denominação de Serviço de Documentação da Marinha (SDM). Em 2008, o Comandante da Marinha extinguiu a Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha (DPHCM), alterou a denominação do Serviço de Documentação da Marinha para Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM), passando a sua direção a ser ocupada por Oficial-General. A Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha é o órgão responsável pelo planejamento, coordenação e fiscalização das atividades culturais e pela disseminação da consciência e da mentalidade marítimas a todos os segmentos da sociedade. A DPHDM tem como visão de futuro a preservação e divulgação do patrimônio histórico e a memória da Marinha, com qualidade compatível em criatividade e originalidade, com o melhor padrão internacional. Conforme descreveu DE MARCO (2009): “ o desafio seria ainda maior para a administração pública, que se via diante da necessidade de formar seus quadros a fim de capacitar para a gestão profissional essa nova estrutura que se potencializava”. 6 Há de se ressaltar neste artigo que não foi identificada nenhuma ação de forma sistêmica feita pela pelo Ministério da Defesa no sentido de se coordenar as atividades culturais das três Forças Armadas, que atuam com seus próprios sistemas culturais e que interagem diretamente entre si. 7 Os aspectos da DPHDM e do INCAER foram baseados nos texto Gestão Cultural no Exército Brasileiro: uma proposta para a Modernização da Gestão do Patrimônio Cultural do Exército. TAVARES (2010) sendo atualizadas com base em pesquisa na páginas eletrônicas das instituições, na Palestra Institucional do DPHDM, encaminhada por mensagem eletrônica por Carlos Lopes da Silva, pesquisador da Marinha do Brasil e pelo artigo “SISCULT e os Sistema de Cultura: realidades, políticas e história” de Aline Pessôa da Ascenção Alcoforado, apresentado no VI Seminário de Políticas Culturais da FCRB, em 2015. . 8 A Biblioteca da Marinha foi incorporada ao novo órgão ficando diretamente subordinado ao Ministro da Marinha, juntamente com a Seção de História Marítima do Brasil, o Arquivo Histórico e a Revista Marítima Brasileira. 5

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Para a consecução do seu propósito, essa Diretoria tem como algumas das principais tarefas: promover estudos e pesquisas e publicar documentação sobre assuntos concernentes à cultura naval; manter o registro da história marítima brasileira; administrar a Biblioteca da Marinha, o Arquivo da Marinha, a Editora Serviço de Documentação da Marinha, os Navios-Museus e os Museus que lhe são subordinados, incluindo os diversos espaços para exposições; controlar o patrimônio histórico e cultural da Marinha; e propor e incentivar a divulgação da cultura e história marítima para a sociedade em geral. A DPHDM apoia as solicitações da SGM, órgão a qual é subordinada; do Estado-Maior da Armada; do Gabinete do Presidente da República; dos Ministérios em geral e dos vários segmentos das áreas da cultura e educação. A Marinha do Brasil para o desenvolvimento de seus mais diversos projetos e programas culturais, vale-se de parcerias com instituições como o Ministério da Cultura; o IPHAN; os Ministérios da Defesa; da Ciência e Tecnologia (MCT), da Educação e do Turismo (MTur); estados e municípios; associações e fundações, o Exército Brasileiro e a FAB dentre inúmeras outras instituições do Governo Federal, e entidades públicas e privadas. 3.2. Gestão do Patrimônio Histórico e Cultural na Força Aérea Brasileira O Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da Aeronáutica (SISCULT), foi implantado pela Portaria Nr 119/GC3, de 26 de fevereiro de 2010, contudo, a ideia de se criar um órgão, no qual se concentrassem as preocupações com a história e a cultura geral da Aeronáutica no Brasil é anterior a essa data. como as ações como as que resultaram das constatações feitas junto à comunidade aeronáutica pelo Tenente Brigadeiro do Ar Deoclécio Lima de Siqueira. Em 27 de junho de 1986, o então Presidente José Sarney, criou, por decreto, o Instituto Cultural de Aeronáutica (INCAER). A iniciativa citada não proporcionou, de forma ampla, uma política e um gerenciamento centralizados que, como ressalta ALCOFORADO (2015), “impediam a consolidação de uma estratégia de gestão do patrimônio cultural do COMAER” não proporcionando a exploração de todo o potencial. A autora ainda cita que com a motivação da Constituição Federal de 1988 e seus artigos que “determinam a ação do Estado na preservação do patrimônio cultural e na respectiva divulgação”, o COMAER iria convergir seus esforços com o Sistema Federal de Cultura, criado logo em seguida, em agosto de 2005, que visava, conforme lembra a pesquisadora, “articular todos os órgãos e programas culturais federais”. Para a implantação do sistema da FAB, foi realizado um estudo entre os anos de 2007 e 2008, o qual mapeou e analisou a realidade cultural dentro do Comando da Aeronáutica (COMAER). Este estudo concluiu que, apenas uma pequena parte das atividades culturais do CO-

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MAER eram administradas de forma centralizada, tudo esse processo desencadeou, em 2010 a criação do SISCULT. O sistema em questão tem por finalidade planejar, orientar e coordenar as atividades culturais no âmbito da FAB. Entre o escopo de suas atribuições estão os assuntos relacionados com o Patrimônio Histórico Material e Imaterial; Museologia; Heráldica; Documentação Histórica; Literatura; Musica; Arquitetura; Produções Artísticas; Tombamento; Tradições, Usos e Costumes, Crenças, Valores, Ações Históricas e Quotidianas; e Cerimonial. Para atingir seus objetivos, o SISCULT visa, entre outros: ampliar a capacidade de gerenciamento de assuntos relacionados com a Cultura no âmbito do Comando da Aeronáutica (COMAER); racionalizar os recursos materiais e humanos para gerir assuntos culturais; - integrar-se com os demais Sistemas do COMAER; integrar-se com os Sistemas e Órgãos externos, públicos ou privados, no trato de assuntos culturais de interesse do COMAER e da sociedade brasileira; - promover o desenvolvimento cultural no âmbito do COMAER; e ampliar o conhecimento aeronáutico junto ao publico interno e externo, por meio da divulgação do patrimônio histórico e cultural do Comando da FAB. O Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER) é o órgão central do SISCULT e de assessoramento superior, diretamente subordinado ao Comandante da Aeronáutica (Órgão de Assessoramento Direto e Imediato). Tendo, ainda, finalidade pesquisar, desenvolver, divulgar e estimular atividades históricas e culturais referentes à Aeronáutica Brasileira. O SISCULT é organizado em elos, que são as Organizações da estrutura organizacional do Comando da Aeronáutica e tem suas constituições e competências definidas em Regulamentos e Regimentos Internos próprios ou das Organizações a que pertencem. A esses elos compete: executar as atividades pertinentes de acordo com as normas elaboradas pelo Órgão Central (INCAER); desenvolver, executar ou participar das atividades de acordo com as normas elaboradas pelo Órgão Central; submeter, a apreciação do INCAER, sugestões que visem ao aperfeiçoamento do Sistema; fornecer, ao Órgão Central do Sistema os elementos necessários ao planejamento e a elaboração das propostas orçamentárias relacionadas com as atividades relacionadas com o Patrimônio Histórico e Cultural; manter adequadamente o Patrimônio Histórico e Cultural sob sua responsabilidade; e manter atualizada e disponível a coletânea de normas elaboradas pelo Órgão. Atualmente, o Sistema de Patrimônio Histórico e Cultural do Comando da Aeronáutica passa por uma modernização para atender às demandas sociais e culturais e cumprir as determinações emanadas pelo Comando da Força Aérea Brasileira e se projetar para o futuro.

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4. MODELOS DE GESTÃO DAS NAÇÕES AMIGAS 4.1. República Portuguesa (Portugal) Em Portugal, o órgão responsável pela gestão cultural do Exército é a Direção de História e Cultura Militar (DHCM) e está ligada ao Estado-Maior do Exército, não se vinculando a um órgão de Direção Setorial. A missão da DHCM é promover e apoiar a pesquisa, a recolha e a divulgação dos valores culturais militares, a pesquisa, a preservação e o estudo do patrimônio e dos documentos históricos militares, bem como propor, coordenar e dirigir as atividades relativas à administração e ao controlo de documentos, livros e do patrimônio histórico, tanto dos que constituem espólio dos arquivos, bibliotecas e museus na sua dependência direta como dos que dependem de unidades, estabelecimentos e outros órgãos do Exército de Portugal. A DHCM é a responsável, pela gestão dos recursos humanos, financeiros e materiais, alem do patrimônio histórico-militar dos órgãos diretamente subordinados. Entre os quais, destacam-se os seguintes museus militares: dos Açores, de Bragança, de Lisboa, de Coimbra, de Elvas, da Madeira e do Porto; além do Arquivo Histórico Militar (AHM), o Arquivo Geral do Exército (AGE) e a Biblioteca do Exército (BibEx). Percebe-se que a gestão cultural do Exército Português, quanto à missão e estrutura, se assemelha com o que se pratica no Brasil, ressaltando-se, que o seu órgão central é diretamente subordinado ao Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército, não se vinculando a um sistema de ensino ou a qualquer um outro. 4.2. Reino da Espanha (Espanha) O órgão responsável pela atividade em estudo no Exército Espanhol é o Instituto de História e Cultura Militar (IHCM), que é subordinado ao Chefe do Estado Maior do Exército, sendo um órgão de nível da Direção e atua de forma integrada no Quartel-General do Exército, de forma semelhante ao modelo lusitano. O IHCM é o órgão responsável pela proteção, conservação, pesquisa e divulgação do patrimônio histórico, cultural, cinema e literatura militar do Exército Espanhol, assessorando o comando o comando nos assuntos relativos às atividades e tarefas gerais de ação cultural do sistema, garantindo a preservação e conservação do patrimônio histórico e militar, contribuindo para a manutenção e guarda dos bens do Exército. coordenar a elaboração e atualização dos guias, registros, recenseamentos, inventários, catálogos e índices dos fundos do Patrimônio do Exército e a sua informatização; promovendo e salvaguardando o Patrimônio do Exército; proteção desses bens de saques; disseminando o conhecimento dos bens pertencentes ao patrimônio do Exército e a cultura da história militar do Exército Espanhol, tudo isso de modo a proteger e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos bens sob o Patrimônio Militar, sujeitos às restrições, devido à preservação de bens em custódia ou função da própria instituição, pode ser estabelecida.

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Um aspecto constatado é que os assuntos culturais das Forças Singulares são tratados por órgãos semelhantes e o Ministério da Defesa coordena algumas atividades de interesses comuns, como exemplo, as publicações de interesse da defesa, como um todo. Nota-se que a gestão cultural do Exército Espanhol é distinta da praticada no Brasil, na medida em que está vinculada ao Estado-Maior e não a um outro órgão intermediário com o Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), no EB; além disso o Ministério da Defesa da Espanha atua efetivamente nas atividades culturais militares. 4.3. República do Chile (Chile). No Exército do Chile, a gestão cultural de sua Força Terrestre é feita pelo Departamento de História Militar, que faz parte da estrutura do Estado-Maior Geral do Exército, atuando sob coordenação do Chefe do Estado-Maior, para cumprir as normas ditadas pelo Comandante-em-Chefe do Exército (CJE). O Departamento de História Militar tem como missão o trato das questões relativas à preservação e divulgação do Patrimônio Cultural e do Arquivo Geral do Exército, além do desenvolvimento e manutenção de museus e bibliotecas institucionais e a de promoção da pesquisa histórica e criação de vínculos com outras organizações do segmento civil da sociedade chilena que estejam relacionadas com o Patrimônio Histórico Cultural da Nação. No início do Século XXI, o DHM sofreu uma modernização que consistiu na criação de organizações e na consolidação das suas finalidades, de aconselhar sobre questões relacionadas à preservação do Patrimônio Cultural e do Arquivo Geral do Exército, também nos aspectos de desenvolvimento e manutenção de museus, bibliotecas e institucional outras funções que são determinadas nos respectivos regulamentos Essa modernização se chamou Projeto Clio, de dia 01 de janeiro de 2002, quando o Departamento de História Militar ficou subordinado à Chefia do Estado Maior do Exército e se dividiu em duas seções: a primeira chama-se Patrimônio Histórico e Assuntos Internos, e outra, Arquivo Geral do Exército. Atualmente, o Departamento de História Militar responder às missões que lhe foram confiadas, desde a sua reorganização, sendo um órgão que tem um cuidado especial com a restauração, preservação e divulgação de todo o Patrimônio Cultural do Exército Chileno. Os Museus Militares dependem operacionalmente, para seu funcionamento, do Departamento de Historia Militar. 4.4. Estado de Israel (Israel). No Estado de Israel, as atividades culturais relativas a aspectos militares são centralizadas pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). O órgão responsável por essas atividades culturais é o Corpo de Educação e Cultura das Forças de Defesa de Israel.

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As iniciativas culturais têm o foco direcionado prioritariamente para as tropas. O Corpo de Educação e Cultura das FDI é o responsável pela formação de soldados e comandantes militares, sendo fundado em 1957 e foi projetado para instruir e desenvolver os valores militares entre as tropas e no seio da sociedade. O Corpo de Educação e Cultura é dividido em duas brigadas principais e seis unidades independentes, que são diretamente subordinadas ao Diretor de Educação. O setor cultural militar israelense tem algumas atividades culturais de destaque como: bandas militares, eventos, museus militares e teatro, entre outras. No que tange às bandas militares, suas apresentações têm ênfase em músicas novas e jovens e projetam os valores culturais de Israel nas comunidades locais e no exterior, compondo delegações internacionais de organizações israelenses e judaicas. Israel possui diversos museus militares, que são administrados, em sua maioria, por oficiais generais e coronéis da reserva. Nesses espaços culturais, são lembrados os grandes feitos militares israelenses e cultuados os grandes nomes militares do povo, além de outras atividades de relevante valor histórico para os militares desse país. No Exército, o principal órgão responsável pelas atividades culturais é o Departamento de Cultura e Educação, que é subordinado diretamente ao Departamento de Pessoal. A principal tarefa do Departamento de Pessoal é ajudar o Comando do Exército nas atividades de comando e nas educacionais, cumprindo as metas IDF no país, mantendo a formação dos soldados e a educação de jovens valores. Percebe-se que em Israel, as atividades culturais militares são desenvolvidas pelas forças armadas, sob coordenação com o FDI, que desempenha funções semelhantes às do Ministério de Defesa do Brasil e é um órgão relativamente antigo e já consolidado, fundado em 1957. 4.5. Estados Unidos da América (EUA) O Centro de História Militar do Exército dos Estados Unidos (CMH) é uma diretoria dentro do Gabinete do Assistente Administrativo ao Secretário do Exército. É o responsável pelo uso adequado da história e registros militares em todo o Exército dos EUA. Tradicionalmente, esta missão significa registrar a história oficial do exército na paz e na guerra, assessorando o pessoal do exército em questões históricas. É também a organização principal do Programa de Histórico do Exército Americano. Dentro do CHM, há o Centro de Recursos Históricos, que gere as instalações para apoiar a sua equipe profissional. Ele é organizado internamente em uma biblioteca técnica, um arquivo e instalações de apoio à sua página na internet. Sua missão secundária é servir como memória institucional do CHM. Esta missão deriva da função de apoio pré-Segunda Guerra Mundial realizada pela Divisão de Histórico do Colégio de Guerra do Exército. O objetivo da filial é ser capaz de dirigir um investigador para o local real dos registros ou outras informações, e para ser

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capaz de fornecer o pesquisador com orientações específicas sobre como formular o seu pedido para que o bibliotecário ou arquivista em posse do material possa fornecer corretamente as informações ou recuperar os registros com um mínimo de dificuldade. A biblioteca do Centro não é uma biblioteca de serviço completo e não circula seus materiais. Dentro do sistema histórico do Exército, a função é realizada pelo Instituto de História Militar do Exército dos EUA em Carlisle Barracks, Pennsylvania. O Arquivo do Centro está autorizada a ter apenas uma matriz limitada de materiais originais sob o sistema de gerenciamento de registros do Exército. De direito público a maioria dos registros criados pelo Exército dos Estados Unidos passam por um processo de reforma e são entregues ao Arquivos e Registros Administração Nacional para a retenção permanente. Documentos pessoais de soldados individuais (recrutas a generais), ao contrário dos registros oficiais de unidades do exército ou outras organizações, por regulamento em vigor são normalmente depositados no Instituto de História Militar Exército dos EUA em Carlisle Barracks, Pennsylvania, ou em outros repositórios (que pode ser identificadas por meio do Catálogo União Nacional das Coleções de Manuscritos). O CMH também serve para os programas de história oral do Exército americano em todos os níveis de comando. Ele também conduz e preserva as suas próprias coleções de história oral , incluindo as da Guerra do Vietnã , a Tempestade no Deserto , e as muitas operações de contingência recentes. Além disso, as entrevistas do Centro dentro da Secretaria e Estado-Maior do Exército fornecem uma base para a história dos anais do Departamento do Exército. Como representações tangíveis da missão e de artefatos militares busca-se melhorar a compreensão do profissional das armas. O CMH gere um sistema de mais de 120 museus do exército e suas ramificações, abrangendo cerca de 450.000 artefatos e 15.000 obras de arte militar. O Centro também oferece treinamento profissional de museu, visitas de assistência pessoal e suporte de administração de museus militares em todo o exército. Segue o organograma com o sistema cultural americano. (Figura 3)

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Figura 2: Organograma do Sistema Cultural do Exército dos EUA

O Museu Nacional do Exército dos Estados Unidos se encontra hoje em construção e está sendo realizado pela Fundação Histórica do Exército que é uma organização não governamental. 4.6. República Popular da China Figura 4: Organograma sobre o posicionamento da ACM no ELP.

Adaptado de: https://info.publicintelligence.net/MCIA-ChinaPLA.pdf, acesso em: 9 de fevereiro de 2016 x

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A Academia de Ciências Militares (ACM) é uma instituição de pesquisa, científica militar sob a liderança direta da Comissão Militar Central (CMC) e o centro de pesquisa militar do Exército de Libertação do Povo (ELP). O ELP é formado pela Força de Terrestre, Força Naval, Força Aérea, Força de Foguetes, pela Força de Suporte Estratégico, Força de Polícia do povo e pela Reserva. (Ministério da Defesa Nacional da República Popular da China). Dentro das atividades da ACM está previsto coordenar a ciência militar das Forças Armadas e de suas instituições de pesquisa. No âmbito da CMC, a ACM é o quartel–general militar no nível teórico para orientar a defesa e a assistência do ELP na estruturação nacional. Figura 4: Organograma sobre o posicionamento da ACM no ELP. Adaptado de: https://info.publicintelligence.net/MCIA-ChinaPLA.pdf, acesso em: 9 de fevereiro de 2016. A ACM tem 3 departamentos administrativos: o de Ciência Pesquisa e Orientação, o de Trabalho Político e o de Logística. Ela tem ainda 11 unidades de pesquisa, incluindo os Departamentos de Estratégia Militar; o de Teorias Operacionais e Doutrinas; o Departamento de Estruturação das Forças Armadas; o de História Militar e Enciclopédia; e o de Estudos Militares Estrangeiros, além dos Centros de Trabalho Político Militar; Nacional de Estudos de Fronteiras e Costa; o de Estudos Nacionais de Política de Defesa; o de Operações Militares de Não Guerra; o de Estudos Civis Militares de Integração e o de Cooperação China-América de Relações de Defesa. Possui ainda, um Centro de Publicações Militares, a Biblioteca Militar, o Arquivo Militar e a Escola de Pós-Graduação Militar como afiliados ao ACM. Mais de 1000 pessoas estão nos quadros de pessoal que trabalham na ACM e a maioria dos pesquisadores são oficiais da ativa. O AMC concentra seus esforços na estratégia de segurança nacional, no pensamento militar e estratégia militar, na teoria operacional, na estruturação da defesa e forças armadas nacionais, na história militar, no trabalho político militar e nos assuntos militares estrangeiros. Além disso, o AMC tem a tarefa de desenvolver doutrinas e regulamentos, a realização de experimentação e avaliação das operações conjuntas e compilar a enciclopédia militar (AMC, 2016). 5. CONCLUSÃO O presente artigo apresentou diversos modelos de gestão cultural de algumas por instituições militares, dentro e fora do país. Foram vistos os seguintes modelos: Marinha do Brasil, Força Aérea Brasileira, Exércitos de Portugal, da Espanha, dos EUA, da e do Chile, além das Forças de Defesa de Israel e do Ministério de Defesa da China. Percebe-se, que de modo geral, as atribuições são similares, não há variação nem grandes diferenças entre os modelos em questão. Um aspecto ressaltou ao olhos dos autores: evidenciou-se que nos Estados Unidos há uma forte integração com o meio cultural local, sendo, de fato uma política de Estado com ramificações com a sociedade. Os outros modelos, com

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exceção do chinês e do israelense não evidenciaram essa característica de forma mas acentuada, que seria bastante desejável. Com relação à subordinação, percebe-se assim que alguns países adotam uma estrutura de gestão cultural militar em segundo escalão, subordinado ao Comandante da Força Considerada (FAB e FDI) ou ao Chefe de Estado-Maior (Espanha, Portugal e Chile) ou órgão de terceiro escalão, como o Exército Brasileiro e a Marinha do Brasil. Além de estruturas intimamente ligadas ao Estado, como os EUA e China. Apesar das diferenças, não há variação nas ações e nem nas finalidades que se destinam, contudo pode ser objeto de estudos futuros mais profundos. De acordo com o relatado por Rosas (2007), considera-se que a implantação de uma nova proposta cultural, a partir da década de 1990 trouxe, como consequência uma considerável aproximação do EB com os espaços civis de cultura e que tiveram grande influência na política cultural do Exército, servindo como referenciais. De forma diferente do modelo norte americano, por exemplo, essa aproximação que parte do Exército Brasileiro com os setores civis da cultura, mesmo sendo devidamente constata e ser uma nítida evolução nas atividades culturais do Exército, não é tão acentuada, percebe-se que os passos dados para a integração plena ainda são tímidos, apesar de tudo. Como ressalta TINOCO (2011), o presente modelo de gestão cultural do EB “necessita de um processo (dinâmico - os autores) que o atualize como resposta às novas e crescentes demandas legais e sociais”. Espera-se, assim, que este artigo, contribua com o processo da efetiva participação do EB no ambiente cultural do país e com a divulgação do Sistema Cultural do Exército no seio da sociedade a que pertence.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACM, 2016. Academias de Ciências Militares do Exército de Libertação do Povo. Disponível em:, acesso em: 09 de fevereiro de 2016. ALCOFORADO, Aline Pessôa da Ascenção. “SISCULT e os Sistema de Cultura: realidades, políticas e história” In:VI SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 26 a 29 de março de 2015 Anais eletrônicos. Org Lia Calabre... [et al..] Rio de Janeiro: da Fundação Casa de Rui Barbosa, , 2015. Disponível em < http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2015/05/Anais-do-VISemin%C3%A1rio-Internacional-de-Pol%C3%ADticas-Culturais.pdf> Acesso em 10 de janeiro de 2016 ADAMS, Don e GOLDBARD, Arlene. Cultural Policy in U.S. History Disponível em Acesso em 27 de junho de 2010 BARRETO, Daniel Pires Alexandrino. A construção do Sistema Nacional de Cultura: Perspectivas de Integração e Coordenação da Administração Púbica da Cultura em Face do Plano Nacional de Cultura. Disponibilizado em Acesso 06 de março de 2010

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BOTELHO, Isaura. Dimensões da Cultura e Políticas Públicas Disponível em http://www.scielo.br/ scielo.php?pid=S010288392001000200011&script=sci_arttext&tlng=en, Acesso em 22 de agosto de 2009. BRASIL. Ministério da Cultura Política Cultural no Brasil, 2002 – 2006, acompanhamento e análise. Frederico A. Barbosa da Silva, autor. Brasília: Ministério da Cultura, 2007. 220 p. CALABRE, Lia. Política Cultural no Brasil: um Histórico – artigo apresentado no I ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado em Salvador, Bahia, 2005. disponível em < http://www.cult.ufba.br/enecul2005/LiaCalabre.pdf>, acesso em 18 março de 2009 CHINA Ministério da Defesa Nacional da República Popular da China. Disponível em: , acesso em: 09 de fevereiro de 2016. DE MARCO, Kátia. A profissionalização dos setores culturais, Disponível em , Acesso em 20 de Jun 2009 DRUCKER, Peter Ferdinand. Administração de empresas sem fins lucrativos: princípios e práticas. São Paulo: Pioneira Thompson Learnig, 2001. DURAND, JOSÉ CARLOS; Cultura Como Objeto de Política Pública , In São Paulo em Perspectiva 15 (2) 2001, São Paulo – 2001 (p. 66 . 72) HOLIDAY, Hershel L. Improving Cultural Awareness in the U.S. Military, EUA 2008. Disponível em: Acesso em: 27 de junho de 2010 LOPES DA SILVA, Carlos. Envio de mensagem eletrônica do pesquisador da Marinha do Brasil com conteúdo da palestra institucional do Sistema Cultural da Marinha do Brasil e outras informações. Mensagem para Mensagem para [email protected] LOPES, Mauro Sinott. (“PORTUGAL/ADIEXAER” [email protected]) Envio de mensagem do Adido do Exército e da Aeronáutica do Brasil em Portugal sobre atividades culturais desenvolvidas pelo Exército daquela nação, 22 Jun 2010 Enviada às 11h e 14 min Mensagem para leciniotavares@yahoo. com.br LUNA, Heimo André da Silva Guimarães de (Coronel Heimo Luna ) Envio de mensagem do Adido Militar do Brasil em Israel sobre atividades culturais desenvolvidas pelo Exército daquela nação, 30 Jun 2010 Enviada às 06h e 01 min Mensagem para [email protected] MORGADO, Sergio Roberto Dentino e SANTOS Newton Bonumá dos. Reflexões sobre a cultura do Exercito Brasileiro: suas dimensões, objetivos, estruturas, instrumentos e propostas. Rio de Janeiro: ECEME, 1990. 63f. Museu Nacional do Exército dos Estados Unidos. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/ National_Museum_of_the_United_States_Army, acesso em: 20 de janeiro de 2016. Página Eletrônica do Centro de História Militar do Exército dos Estados Unidos. Disponível em: , acesso em: 20 de janeiro de 2016. Página eletrônica do Departamento de Ensino e Cultura do Exército. disponível em < ://www.DECEx. ensino.eb.br/>, acesso em 16 de Mar de 2009 196

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Página eletrônica do Departamento de História Militar do Exército Chileno, disponível em , acesso em 17 de Jun de 2010 Página eletrônica da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército. disponível em < ://www. DPHCEx.ensino.eb.br/>, acesso em 17 de Jan 2016 Página eletrônica da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. disponível em < :// www. mar.mil.br/dphdm />, acesso em 17 de Jan de 2016 Página Eletrônica do Exército Português disponível em: < http://www.exercito.pt/portal/exercito/_ specific/public/allbrowsers/asp/default.asp > acesso em 11 de julho de 2010 RIBEIRO, Marcelo Carvalho (“Marcelo Ribeiro” [email protected]) Envio de mensagem do Aluno do Curso de Estado-Maior do Exército da Espanha sobre atividades culturais desenvolvidas pelo Exército daquela nação, 30 Jun 2010. Enviada às 11h e 25min. Mensagem para [email protected] ROSAS, Iracema Andrade de Alencar. O Exército e a Cultura Brasileira: espaço de fronteiras com a Sociedade Civil. Monografia. Curso de Especialização em História Militar Brasileira - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro 2007. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas Culturais no Brasil: Trajetória e Contemporaneidade. 03 de Novembro de 2008, Disponível em Acesso em 02 Março de 2010. TAVARES, Lecinio Alves. Gestão Cultural no Exército Brasileiro: Uma proposta para a Modernização da Gestão Cultural do Exército, Rio de Janeiro, ECEME, 2010. _______ Sistema Cultural do Exército Brasileiro - dos primeiros trabalhos até o surgimento da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército. In:VI SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 26 a 29 de março de 2015 Anais eletrônicos. Org Lia Calabre... [et al..] Rio de Janeiro: da Fundação Casa de Rui Barbosa, , 2015. Disponível em < http://culturadigital.br/ politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2015/05/Anais-do-VI-Semin%C3%A1rio-Internacional-dePol%C3%ADticas-Culturais.pdf> Acesso em 11 de janeiro de 2016 TINOCO, Sérgio Avelar. A importância das construções e sítios históricos, e de centros culturais e museus do Exército, para a preservação da memória e difusão da História Militar do Brasil. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 2011.

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DESAFIOS E ESPECIFICIDADES NA CONSTRUÇÃO DO SISTEMA CULTURAL DO MUNICIPIO DE ALTO ALEGRE/RORAIMA Leila Adriana Baptaglin1 Chloé Virginie Marie Bourgy Noleto2 Edgar Jesus Figueira Borges3 RESUMO: Este trabalho apresenta uma visão panorâmica da gestão cultural no município de Alto Alegre/Roraima, realizada por meio de um levantamento sobre a construção do Sistema Municipal de Cultura e de entrevistas com pessoas que fundaram a localidade supracitada. Também aponta diversas ações realizadas pela equipe da Secretaria Municipal de Cultura, além de análises situacionais da política e do sistema cultural do município, resultando em um estudo que expõe o que existe de fazer cultural, suas fragilidades, os desafios, os obstáculos e as particularidades de Alto Alegre. Trabalha questões relacionadas à legislação do setor cultural e mostra algumas questões que devem ser superadas para a implantação e consolidação do Sistema Municipal de Cultura e todos os seus elementos formadores, o que deve gerar a transformação plena do cenário cultural no referido município de Roraima. PALAVRAS-CHAVE: Gestão Cultural. Roraima. Alto Alegre.

Doutora em Educação e professora do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima. E-mail: leila. [email protected] 2 Diploma de Estudos Superiores Especializados em Design de Eventos (Universidade UQAM – Montreal, CANADA) e Mediação cultural e comunicação (Universidade Paris 1 Panthéon Sorbonne - Paris, FRANÇA); Instituto Boa Vista de Música – email: [email protected] 3 Bacharel em Jornalismo e em Sociologia. Especialista em Assessoria de Imprensa; Universidade Federal de Roraima – email: [email protected] 1

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1. INTRODUÇÃO Este ensaio objetiva compreender a situação atual da cultura no município de Alto Alegre/RR com intuito de construir o Plano Municipal de Cultura. Como objetivos específicos tem as seguintes articulações: verificar a situação atual da cultura; identificar as fragilidades, desafios e obstáculos apresentados na parte cultural; identificar as particularidades culturais. Desta forma, nosso problema de investigação se articula para entender: Qual a situação atual da cultura no município de Alto Alegre/RR? Para isso, utilizamos como metodologia de trabalho o estudo de caso, o qual se caracteriza por concentrar-se em casos particulares que podem ser representativos de casos semelhantes, fundamentando generalizações e autorizando inferências (SEVERINO, 2007). Inicialmente realizamos uma análise documental das legislações e documentações de Alto Alegre/RR. Análise documental, segundo Lakatos (2009), é uma metodologia caracterizada pela representação condensada das informações obtidas a partir de documentos. Para complementação dos dados, foram realizadas entrevistas com pessoas que participaram da ocupação da área que deu origem ao município de Alto Alegre. Após coleta de dados, foram feitas análises no intuito de compreender a atual situação da cultura no município. Estes dados serão de extrema relevância para a posterior construção do Plano de Cultura do Município de Alto Alegre/RR. No desenvolvimento do trabalho, observamos a seguinte estruturação: na parte 2, temos a Realidade Histórica, Social e Econômica do Município; na parte 3, temos o Diagnóstico Situacional da Cultura no Município e, na parte 4, temos a Situação da Política Cultural do Município. Após a apresentação geral dos dados, segue a análise a partir de categorias que delineiam a situação cultural de Alto Alegre/RR. 2. SITUAÇÃO CULTURAL DE ALTO ALEGRE/RR Este item busca trazer algumas reflexões sobre o município e a situação política da cultura no Município de Alto Alegre/Roraima. Para isso, a reflexão apresentada apresenta-se calcada nos dados coletados e nas entrevistas realizadas no município.

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2.1. Contextualizando o município Figura 1: Mapa de Alto Alegre

Fonte: RORAIMA/SEPLAN (2012).

O município de Alto Alegre foi criado em 1982, a partir do desmembramento do município de Boa Vista. Limita ao norte com o município de Amajari; ao sul com os municípios de Mucajaí e de Iracema, além da República Bolivariana da Venezuela; ao leste com o município de Boa Vista e ao oeste, novamente, com a República Bolivariana da Venezuela. Possui extensão territorial de 25.567,014 km² e densidade demográfica de 0,64 hab/km². Sua sede está localizada a 87 km de Boa Vista, capital de Roraima. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015a), Alto Alegre é o quarto município mais habitado de Roraima, com população estimada de 16.176 pessoas. Entre os 15 municípios do Estado, Alto Alegre ocupa a 13ª colocação no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), de acordo com dados do Atlas Brasil 2013 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Em 2011, o Produto Interno Bruto (PIB) de Alto Alegre foi de R$ 173 milhões, o quinto maior de Roraima. O município conta com três vilas: Reislândia, São Silvestre e Taiano. Seu território abriga nove terras indígenas: Anta, Barata/Livramento, Boqueirão, Mangueira, Pium,

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Raimundão, Sucuba, Truaru e Yanomami. Estas terras são ocupadas pelas etnias Wapichana, Makuxí e Yanomami. De acordo com o IBGE, Alto Alegre é o oitavo município da região Norte e o segundo de Roraima com a maior população indígena, sendo 7.544 dos residentes recenseados como pertencentes a alguma etnia. Isto equivale a 45,9% da população. 2.2. Perfil histórico Alto Alegre foi elevado à categoria de município pela Lei Federal n.º 7.009, de 01/07/1982, quando foi desmembrado de Boa Vista. Tem a sua sede no atual distrito de Alto Alegre, anteriormente denominado Colônia de Alto Alegre. A sede do município é formada atualmente por sete bairros: Centro, Azul, Mutirão, Maria Benta Dias, Novo Horizonte, Imperatriz e Frederico Pinheiro Viana. As primeiras ocupações feitas por não-índios na região datam dos anos 1950, quando colonos japoneses foram incentivados a trabalhar com agricultura, formando a Colônia Agrícola Coronel Mota, atual vila do Taiano. A ocupação da área que viria a se constituir como a sede do município de Alegre começou somente em 1970, quando um grupo de 18 migrantes nordestinos, vindos do Maranhão e liderados pelo agricultor Pedro Costa, que viria a ser o primeiro prefeito do município, decidiu reunir-se para plantar arroz nas terras devolutas da região. A primeira área a ser trabalhada como lavoura ficava colada na fazenda Manga Brava, de propriedade do fazendeiro João Cenésio, paraibano que ocupava a área desde a década de 1960. Para ocupar o terreno, à época classificado como área devoluta4, Pedro Costa decidiu pedir permissão ao fazendeiro João Cenésio, evitando possíveis desentendimentos. O senhor João Cenésio, atualmente com 86 anos, conta que foi procurado por Costa e “autorizou” o plantio com a condição de que fizesse uma cerca para evitar que o gado da fazenda Manga Brava comesse as plantações dos novos vizinhos (informações verbais)5. Aí ele veio falar comigo. Disse “Seu João, eu queria falar com o senhor que lá no Maranhão já tá meio ruim pra gente desenvolver e quero ver se, depois de suas terras, o senhor dá o consentimento pra nós entrar pra trabalhar. Nós somos mais ou menos de 15 a 18 pessoas”. Aí eu digo: “Oia, Pedro, aqui a cerca é a mata. O meu gado pasta aqui mas não tenho cerca, não. Eles comem aqui nuns cantos que eu fechei mas pra lá é mata bruta, eles vai e volta. E aí, a cerca?”. Ele disse: “Não se incomode, que a cerca nós se ajunta tudo e faz pro gado não passar lá pra nossas roças, pro nosso trabalho”. Então eu aceitei (CENÉSIO, 2015, informações verbais)6. 4 5 6

Terra pública que não integra patrimônio particular, mesmo que estejam irregularmente em posse de particulares. Entrevista concedida por João Cenésio, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015. Entrevista concedida por João Cenésio, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015

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O fazendeiro relembra ainda que o grupo enfrentou muitas dificuldades no começo, pois não tinha recursos financeiros para comprar equipamentos e para se alimentar: “Eles sem nada para poder trabalhar. Cumé que a pessoa vem pra uma mata dessas, 16, 18 homens sem nada? Sem feijão, sem farinha, nem carne, nem nada, nem dinheiro?”, conta o entrevistado (informações verbais)7. Procurado por Pedro Costa, João Cenésio conta que foi avalista de 18 empréstimos feitos pelos agricultores no Banco do Brasil: “Tá mais ou menos com uns 40 anos. Nesse tempo era um conto e quinhentos para cada um. [...] Na base de hoje era como 300 mil reais. E eu assinei com esta mão. [...] Esses homens trabalharam e só teve um que não me pagou. Ainda hoje me deve”, destaca (informações verbais)8. Entre os parentes e conhecidos de Pedro Costa, todos vindos da cidade de Vitorino Freire (MA), estava João Mariano da Costa, seu pai. Foi ele, conforme relato de João Cenésio, quem deu nome de Alto Alegre à futura cidade, homenageando uma localidade do estado do Maranhão. “Ele olhou e disse que era bonito como Alto Alegre. Eu perguntei se ele achava bonito esse nome. Disse que sim e eu falei: então, de hoje em diante, que Alto Alegre seja. Você botou o nome e eu batizo” (informações verbais)9 Para se deslocar até Boa Vista, o grupo gastava um dia inteiro. “Saíamos de casa 4 da manhã e chegávamos em Boa Vista sete da noite”10, relembra o agricultor Raimundo Pinheiro Viana, que também integrou o grupo que inicialmente ocupou as terras (informações verbais). Por volta de 1973/1974, conforme Viana foi construída pelo governo municipal uma estrada ligando a região a Boa Vista. A obra foi determinada pelo prefeito Júlio Augusto Magalhães Martins, que decidiu ir visitá-los na lavoura após ter tomado conhecimento do grupo de agricultores que estava plantando arroz e hortaliças no meio da Mata Geral (informações verbais)11. Em um jipe, relembra Viana, que o prefeito e sua equipe: chegaram quando estava todo mundo junto. Viram a situação, o que tínhamos para vender e que não podíamos tirar. Não tinha como escoar, né? Ele prometeu que ia fazer uma raspagem, uma estrada pra nós poder tirar o legume. (...) Com dois dias a máquina chegou fazendo a raspagem. Fomos bater em Boa Vista já acompanhando no carro deles. Fretamos um caminhão e levamos 200 sacos de arroz. [...] Beneficiamos lá e enchemos Boa Vista de arroz pra todo canto. Trocamos em óleo, sabão, açúcar, em café e ficou um monte de arroz lá dentro do depósito do governo (VIANA, 2015, informações verbais)12. Entrevista concedida por João Cenésio, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 Entrevista concedida por João Cenésio, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 9 Entrevista concedida por João Cenésio, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 10 Entrevista concedida por Raimundo Pinheiro Viana, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 11 Entrevista concedida por Raimundo Pinheiro Viana, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 12 Entrevista concedida por Raimundo Pinheiro Viana, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015 7 8

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A vida de trabalho na roça não deixava muita margem para diversão. O lazer dos homens era jogar futebol aos domingos, conforme Valdemar Costa, que também integrou o grupo de 18 maranhenses que foi trabalhar na agricultura na Mata Geral, como era conhecida antes a região (informações verbais)13. Outra opção era ir dançar nas festas e comemorações realizadas nas fazendas e comunidades indígenas das redondezas (informações verbais)14. Com o passar do tempo, os agricultores decidiram fundar um clube para organizar ações de lazer e de solidariedade, ajudando-se entre si. O pioneiro clube 4S (Saúde, Saber e Sentir para melhor Servir), liderado por Raimundo Viana e Cananeu Reis, foi responsável por diversas atividades deste tipo (informações verbais)15. 3. DIAGNÓSTICO SITUACIONAL DA CULTURA NO MUNICÍPIO Ao tratarmos das questões relativas ao Patrimônio Cultural, temos que ter em conta que, foi a partir do Decreto Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que temos o início das normativas para a preservação do Patrimônio Histórico e Artístico. No entanto, a Constituição Federal de 1988 revitalizou e ampliou o conceito de patrimônio apresentando-o, embora ainda com divisões, como Patrimônio Cultural. Com base nestas considerações, no Município de Alto alegre, de acordo com as Metas do Plano Nacional de Cultura, considera o patrimônio cultural como um vetor econômico, com forte potencial para [...] gerar dividendos, produzir lucro, emprego e renda, assim como estimular a formação de cadeias produtivas que se relacionam às expressões culturais e à economia criativa. É por meio dessa dimensão que também se pode pensar o lugar da cultura no novo cenário de desenvolvimento econômico socialmente justo e sustentável (2012, p.18) Umas das primeiras ações da Secretaria Municipal de Cultura (SEMC/AA) após a sua criação em 2013, foi promover um levantamento situacional da cultura no município. Um questionário aplicado em 12 comunidades indígenas (Sucuba, Ramundão I, Ramundão II, Arapúa, Livramento, Pium, Anta I, Anta II, Barata, Bouqueirão, Mangueira, Brasília), nas agrovilas Reislândia (antiga Paredão) e Taiano, além da sede do município, resultou no mapeamento de parte dos fazedores de cultura em Alto Alegre. A equipe da SEMC/AA percorreu, ao todo, 660 km apresentando o questionário em festejos e outros eventos. O trabalho começou a ser feito em agosto de 2013 e foi concluído em outubro do mesmo ano, ficando sem mapeamento apenas a vila São Silvestre, que não foi visitada por falta de transporte para levar os servidores da Secretaria até a localidade. Entrevista concedida por Valdemar Costa, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015. Entrevista concedida por Valdemar Costa, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015. 15 Entrevista concedida por Valdemar Costa, em Alto Alegre-RR, em maio de 2015. 13 14

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Assim, temos que o mapeamento e o inventário cultural do município estão sendo elaborados. Por enquanto, foram identificados 45 representantes de diversos segmentos culturais: artesanato, dança, música (coral, bandas de rock, gospel e forró), manifestações de cultura popular (bumba meu boi e quadrilha junina), artes visuais, cultura indígena, produção audiovisual, teatro e cultura afro-brasileira. Cabe destacar que os artesãos catalogados são, em sua maioria, de origem indígena. Tanto eles como os artesãos residentes na área urbana desenvolvem seus trabalhos com diversas técnicas, predominando a pintura em pano, o entalhe em madeira e o uso de sementes, cipós e fibras diversas. Juntamente com esse levantamento, a equipe da SEMC/AA iniciou o trabalho de catalogação do patrimônio histórico do município. Neste sentido, destacamos que a ação começou a ser feita a partir de uma visita técnica à vila Taiano. Esta localidade, antigamente denominada colônia agrícola Coronel Mota, foi a sede das primeiras ocupações feitas por não-índios na região. Isto aconteceu nos anos 1950, quando colonos japoneses foram incentivados a trabalhar com agricultura no Estado de Roraima, tendo recebido terras naquela parte do atual município. Na vila Taiano, foi constatada a existência de um conjunto de aproximadamente 25 casas construídas pelos primeiros habitantes da localidade. Algumas apresentam bom estado de conservação, outras sofreram leves modificações e outras foram totalmente modificadas pelos atuais moradores. Após o mapeamento das casas, foi encaminhado, ainda em 2013, um relatório da SEMC ao prefeito de Alto Alegre, no qual se destaca a importância da conservação do patrimônio histórico do município. Partindo deste documento, o prefeito determinou a elaboração de uma lei municipal de patrimônio. A referida legislação está sendo elaborada pela assessoria jurídica da Prefeitura. Quanto ao patrimônio imaterial, entendemos que são os ofícios e saberes artesanais, as maneiras de pescar, caçar, plantar, cultivar e colher, de utilizar plantas como alimentos e remédios, de construir moradias, as danças e as músicas, os modos de vestir e falar, os rituais e festas religiosas e populares, as relações sociais e familiares que revelam os múltiplos aspectos da cultura cotidiana de uma comunidade (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2012, p. 19). Sendo assim, destacamos que, em Alto Alegre, há representantes das culturas ameríndias às afro-brasileiras, além de escritores e compositores como Didi do cordel, Maria Valdeires de Matos Paiva (compositora do hino do município) e Jacob Rufino de Souza, poeta e autor de mais de 10 livros que abordam temas como plantas medicinais e contos amazônicos. A cultura nordestina também está fortemente presente no cotidiano do município, seja na alimentação, nos termos usados rotineiramente nas conversas ou nos ritmos musicais mais

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ouvidos pelos munícipes, a exemplo do forró. A herança nordestina também está presente nas danças tradicionais, tendo o seu maior exemplo no grupo de bumba meu boi Douradinho, liderado pelo senhor Raimundo Carin. Neste sentido, ao tratarmos do patrimônio imaterial, há também os festejos locais que retratam a história da comunidade e sua vinculação com os migrantes e com a região. No calendário de festejos do município, temos diferentes eventos que retratam este patrimônio. Além destes patrimônios imateriais, temos os patrimônios naturais que, segundo Zanirato (2009, p. 138), “abrangem os valores científicos os que se encontram em áreas que contenham formações ou fenômenos naturais relevantes para o conhecimento da história natural do planeta”. Entre os patrimônios naturais de Alto Alegre, temos cachoeiras, igarapés e rios que são utilizados como balneários pela comunidade residente e por visitantes do município, demostrando grande potencial turístico e gerador de renda. 4. SITUAÇÃO DA POLÍTICA CULTURAL DO MUNICÍPIO ALTO ALEGRE No que concerne à Política Cultural do Município de Alto Alegre, temos que levar em consideração que esta vem regimentada pelo Plano Nacional de Cultura (PNC) e pelo Sistema Nacional de Cultural (SNC). Com base nestas políticas de incentivo ao desenvolvimento da cultura, percebemos que o Estado de Roraima e seus municípios vêm a passos lentos organizando seu sistema cultural. No município de Alto Alegre, podemos evidenciar algumas leis que regem a estrutura cultural do município, dentre elas: Lei Orgânica do município (que tem artigos que falam sobre cultura), Lei do Sistema Municipal de Cultura, Lei de criação da Secretaria Municipal de Cultura (SEMC), Lei de criação do SMC e Lei de criação da Biblioteca Pública Municipal. Com base nessas leis que regem o espaço cultural do município, temos que o órgão gestor de cultura é a SEMC do município de Alto Alegre e que as despesas culturais estão previstas no orçamento anual da prefeitura. Até o ano de 2014, essas despesas relacionadas às ações culturais eram incluídas no orçamento da Secretaria Municipal de Educação e Cultura. A partir de 2015, após a criação da SEMC, um orçamento próprio está voltado às despesas da Secretaria. Destacamos também que a equipe da SEMC do município de Alto Alegre estava composta por ocupantes de três cargos em setembro de 2015: o Secretário Municipal de Cultura, um Assessor em Arte e um Assessor de Eventos. Vale ressaltar que a Lei n° 280/2013 de criação da SEMC prevê um organograma totalmente diferente e estabelece a formação da equipe com seis cargos (1 Secretário Municipal de Cultura, 1 Secretário Adjunto de Cultura, 3 Assessores Técnicos, 2 Diretores Nível I, 2 Diretores Nível II, 2 Assistentes administrativos) ocupados por um total de 11 funcionários. Esta Secretaria já vem mobilizando algumas iniciativas no sentido de executar o SMC. Para isso houve duas Conferências Municipais de Cultura, uma no dia 6 de outubro de

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2009 e outra em 6 de agosto de 2013. Desses eventos resultou a criação de 18 metas que vão complementar as 53 inicialmente previstas no Plano Nacional de Cultura. Não foi possível encontrar os Relatórios que, a princípio, estão sendo arquivados na Secretaria Municipal de Educação. A Lei nº 289/2014, de 14 de maio de 2014, rege a criação SMC do município de Alto Alegre. Até setembro de 2015, o mesmo não havia sido criado, assim como o Fórum de Cultura do município. A SEMC já se movimentou para incentivar a criação do Conselho Municipal de Políticas Culturais, mas no município encontra dificuldades para criar o CMC e até o Fórum, pois os possíveis membros já estão envolvidos em outros conselhos. Pode-se constatar que a SEMC tem um orçamento anual. No entanto, quando houve a definição do último planejamento anual de Alto Alegre, a secretaria ainda não existia. Como resultado, o setor cultural não foi inserido neste planejamento. O que há no momento é que a equipe responsável pela construção do PMC está na fase de construção do Plano de Trabalho, documento que “permite visualizar a implementação dos componentes constituintes do Sistema Municipal de Cultura, descrevendo o desenvolvimento das etapas previstas, contendo atividades, cronograma de execução e metas a serem atingidas em cada uma delas” (BRASIL, 2015, p. 1). No que tange ao sistema de financiamento da cultura, ainda há grandes problemas a serem sanados. O resultado da pesquisa aponta que não existe Lei de Incentivo Fiscal no município de Alto Alegre. A Secretaria não dispõe de pessoal capacitado para participar de editais de lei de incentivo fiscal do Estado ou da Lei Rouanet e, quanto aos produtores culturais locais, nenhum inscreveu um projeto a ser beneficiado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura para o ano de 2015. O Fundo Municipal de Cultura foi criado pela Lei nº 289/2014, de 14 de maio de 2014, de criação SMC do município de Alto Alegre, mas ainda não está institucionalizado. A importância de se criar um Fundo Municipal de Cultura é que este seja o principal mecanismo do Sistema Municipal de Financiamento da Cultura, que disponibiliza os recursos destinados a apoiar programas, projetos e ações culturais implementados de forma descentralizada, em regime de colaboração e financiamento com a União e com o Governo do Estado. Com o Fundo Municipal de Cultura, o Município se tornou incentivador da ocorrência de iniciativas culturais locais e apoia o dinamismo dos atores culturais. Embora haja esta falta de estruturação do SMC, vemos que algumas iniciativas tem sido realizadas, tais como o mapeamento e o inventário cultural do município que estão sendo elaborados. Há também projeto de parceria com a Secretaria de Assistência Social no âmbito de resgatar dois projetos musicais sociais: a Banda “Tom Jobim” e o Coral “Canto do Curió”, instituídos durante o segundo mandato do Nertan Ribeiros Reis, entre 2001 e 2004.

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Em articulação com a Secretaria de Educação, há o Programa Mais Educação; em 2013, 3 escolas aderiram ao programa: a Escola Municipal Professora Maria das Dores Pereira de Matos (Vila São Silvestre), a Escola Municipal Vânia Pereira de Melo (na Vila Reislândia Paredão Novo), a Escola Municipal Profª Edneide Sales Campelo (bairro Centro). Os recursos do Ministério da Educação foram disponibilizados porem por causa de pendências das Associações de Pais e Mestres das escolas, não foram aproveitados. Em 2014, foi iniciado um trabalho de regulamentação dessas Associações. No início de 2015, somente a Escola Municipal Profª. Edneide Sales Campelo estava apta a receber recursos, mas perdeu o prazo. Existe também um projeto de parceria com a Escola Estadual Desembargado Sadoc Pereira para retomar as atividades de sua fanfarra. Ao que concerne ao acordo de Cooperação Federativa entre o Ministério da Cultura e o Município de Alto Alegre, temos que este foi assinado o dia 08 de agosto de 2014 e foi publicado no Diário Oficial da União do dia 21 de agosto de 2014. O Plano de Trabalho está em fase de elaboração e ainda não foi mandado para o Ministério da Cultural (MinC). De acordo com entrevista realizada com Wilson Roberto Moreira Amorim, Secretário de Cultura do Município de Alto Alegre, realizada no dia 10 de agosto de 2015, temos que a Secretaria tinha um conjunto de metas a atingir até o final do ano de 2015. Trata-se da instalação do CMPC e do FMC da Secretaria. Mas essas metas, conforme o Secretário, não poderão ser atingidas. A SEMC vai tentar realizar a III Conferência Municipal de Cultura até o final do ano, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Ressaltando a importância da implementação do SMC, o Secretário de Cultura do Município de Alto Alegre alegou que, em conformidade com Sérgio Mamberti, Secretário de Políticas Culturais em 2012, destaca que: trata-se de um projeto que caminha para consolidação efetiva da cidadania cultural. Nela a cultura é um eixo do desenvolvimento e possibilita que os brasileiros (alto alegrenses) avancem cultural e economicamente – com justiça social, igualdade de oportunidades, consciência ambiental e convivência com a diversidade (BRASIL, 2012, p. 11). O processo de implementação do SMC no município de Alto Alegre está apenas começando. Reconhecendo a cultura em suas três dimensões (simbólica, cidadã e econômica), o município de Alto Alegre se comprometeu em assumir a responsabilidade de estruturar a Secretaria e as suas dependências e se alinhar nas metas do PMC. É um caminho longo e sinuoso a ser percorrido.

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5. ANÁLISE DO SISTEMA CULTURAL DE ALTO ALEGRE/RR A partir dos dados apresentados da cultura no município de Alto Alegre/RR, temos 3 grandes categorias a serem analisadas: 1- o que existe de cultura; 2- fragilidades, desafios e obstáculos; 3- particularidades culturais. Ao tratarmos do que existe em termos culturais em Alto Alegre/RR, podemos perceber que existe uma riqueza significativa em termos culturais relativos aos patrimônios históricos/ materiais, patrimônios imateriais e patrimônios naturais. A diversidade cultural e o hibridismo potencializam este olhar para o desenvolvimento da cidade. Contudo, na área da gestão cultural, ainda há muito a ser feito tendo em vista a recente criação da cidade e o recente incentivo ao desenvolvimento cultural. Ao buscarmos trazer as fragilidades, desafios e obstáculos, deparamo-nos com uma realidade que é condizente com os demais municípios do Estado de Roraima: sua recente criação. Pelo fato de serem municípios com uma história bastante recente, muito há para ser feito em termos de regulamentação e registro dos bens culturais locais. Todavia, Alto Alegre, como pudemos observar, apresenta iniciativas significativas no âmbito da preservação de seus patrimônios culturais. No entanto, com base nos diferentes motivos apresentados (recursos humanos, estrutura física e financiamento) os quais envolvem questões políticas, administrativas e infraestruturais, a redação do Plano de Trabalho que deveria ser enviado ao MinC não foi finalizada pela SEMC. Apesar dessas dificuldades em termos de legislação, ações vinculadas à SEMC estão sendo realizadas no sentido de mapear e registrar a cultura local. Mas essa iniciativa se encontra suspensa atualmente por falta de recursos e meios de transporte para poder ir a todas as zonas do município e nas aldeias indígenas para cadastrar os fazedores de cultura de Alto Alegre. Quanto ao Sistema Nacional se Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), que poderia ajudar a esse levantamento, nenhum agente cultural de Alto Alegre estava registrado até setembro de 2015. Ao pensarmos nas peculiaridades culturais do município, temos claro que a política cultural se encontra num momento delicado. Esta situação ocorre por conta da falta de repasse do orçamento e da má distribuição de recursos para a cultura, como já foi ressaltado. Além desses fatores, percebemos que ainda há incompatibilidade nos dados que registram o repasse e aos gastos com a cultura, há equívocos em relação ao registro de nomes e dados históricos de locais (biblioteca), alguns documentos jurídicos não se encontram ou desapareceram e a falta de registro preciso das etnias e dos valores artísticos e culturais dos indígenas presentes na região.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisarmos o contexto cultural do Município de Alto Alegre, percebemos alguns elementos que nos auxiliam a compreender a situação atual da cultura no município de Alto Alegre/ RR. A partir disso, esperamos poder contribuir com a construção do Plano Municipal de Cultura. Desta forma, destacamos que o processo de desenvolvimento e preservação cultural em Alto Alegre perpassa por um amadurecimento do entendimento da legislação e dos valores culturais locais, necessitando de toda uma infraestrutura de recursos humanos, financeiros e físicos para dar conta das demandas apresentadas. Infelizmente, o que se percebe é a não continuidade do trabalho e a desestruturação da SEMC no ano de 2015. Situação essa que merece atenção e cuidado da esfera administrativa do município para que não signifique um retrocesso na construção do sistema municipal de cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Agência Câmara Notícias. Terras Devolutas. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 15. BRASIL. Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 09 ago. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional de Cultura. 2. ed. Brasília-DF: MinC, 2012. BRASIL. Ministério da Cultura. Conselho Nacional de Política Cultural, Secretaria de Articulação Institucional – SAI. Estruturação, Institucionalização e Implementação do Sistema Nacional de Cultura, Brasília-DF: MinC/SAI, 2011. BRASIL. Ministério da Cultura. Conselho Nacional de Política Cultural, Secretaria de Articulação Institucional – SAI. Guia de Orientações para os Municípios, Sistema Nacional de Cultura, Perguntas e Respostas. Brasília-DF: MinC/SAI, 2010. BRASIL. Ministério da Cultura. Perguntas Frequentes Relacionadas ao PNC. Disponível em: . Acesso em: 09 ago. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. Sistema Nacional de Cultura. Disponível em: . Acesso em: 09 ago. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. Sistema Nacional de Cultura. Orientações para elaboração do Plano de trabalho do acordo de cooperação federativa do sistema nacional de cultura. Brasília-DF: MinC. Disponível em: . Acesso em: 09 ago. 2015. BRASIL. Ministério da Educação. Programa Mais Educação: passo a passo. Brasília-DF: MinC, 2011.

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BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Fundação Municipal de Cultura: Patrimônio Cultural. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2014. FUNAI. Terras indígenas. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 15. IBGE. Cidades – Alto Alegre. 2015ª. Disponível em: . Acesso em: 14 jul. 2015. _______. Cidades - Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.  Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2015. ________. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 15. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Educação Patrimonial: Programa Mais Educação / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, DF: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2012. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2009. MINISTÉRIO DA CULTURA. As metas do Plano Nacional de Cultura. 2ª edição, 2012. PLANO NACIONAL DE CULTURA. Disponível em: < http://pnc.culturadigital.br>. Acesso em: 09 ago. 2015. SECRETARIA DE ESTADO DO PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DE RORAIMA. Informações Socioeconômicas do Município de Alto Alegre. Boa Vista/RR: Divisão de Estudos e Pesquisas, 2012. 58p. SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Cortez, 2007 ZANIRATO, Silvia Helena. Usos sociais do patrimônio cultural e natural. Patrimônio e Memória, Assis-SP, v. 5, n. 1, p. 137-152, out. 2009. Disponível em: < http://pem.assis. unesp.br/index.php/pem/ article/view/145/521>. Acesso em: 09 ago. 15.

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A CHANCELA DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO DEMOCRÁTICA Leonardo Alberto Corá Silva1 RESUMO: Introduzida no cenário da preservação do patrimônio cultural nacional, através da Carta de Bagé em 2007, a Paisagem Cultural se encontra como uma modalidade de preservação que levanta mais questionamentos do que ações concretas. As dificuldades em lhe reconhecer, e valorar, provem da abrangência do conceito, que une patrimônio ambiental, material, imaterial, conferindo uma relevância ao ser humano. É por meio dos esforços de diversas entidades, com destaque para a metodologia desenvolvida na Espanha pelo Instituto Andaluz do Patrimônio Histórico – IAPH, que começa a surgir à possibilidade de operacionalização do conceito de Paisagem Cultural. Buscar-se-á, por meio deste artigo, refletir como essa metodologia poderia ser empreendida no Brasil para viabilizar o instrumento da chancela, ampliando as ferramentas de gestão democrática das cidades. PALAVRAS-CHAVE: Paisagem Cultural, Gestão Democrática, Patrimônio Histórico

1. INTRODUÇÃO O período denominado de modernidade reflexiva (GIDDENS, 1997) ao qual somos contemporâneos coloca o papel do especialista, visto no passado como o agente monopolizador do conhecimento, em questionamento, obrigando que a ciência como um todo reveja sua relação hierárquica com a sociedade, e que práticas clássicas de atuação sejam revista, questionadas, e aprimoradas. O campo da preservação do patrimônio cultural também é alvo de questionamento, havendo uma busca por maior interdisciplinaridade (CASTRIOTA, 2010) e uma compreensão de que o requisito da excepcionalidade do bem como critério para a sua proteção não é necessariamente primordial para ações de salvaguarda. A ampliação do leque de instrumentos de preservação no Brasil é respaldada pela constituição federal de 1988, a qual estabelece que não apenas o tombamento garante a permanência dos bens culturais edificados, mas prevendo outras ferramentas como inventários, listas, etc, garantindo a qualquer cidadão (e não apenas aos especialistas) a possibilidade de requerer o reconhecimento como patrimônio de qualquer bem Arquiteto e Urbanista, mestrando no programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS e-mail: [email protected] 1

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cultural material e imaterial que lhe seja caro. Meira (2004) aponta que o tombamento é um ato administrativo sempre tardio, pois reconhece um valor que já é perceptível pela comunidade. Este envolvimento da sociedade, e o surgimento de ferramentas de gestão democrática através do Estatuto das Cidades, lei federal 10.257 de 10 de julho de 2001 faz com que o processo de reconhecimento de da importância da salvaguarda de bens seja cada vez mais carregado de valores simbólicos e afetivos (CASTRIOTA, 2010) para comunidade onde este bem está inserido. Desde o anteprojeto elaborado por Mario de Andrade de criação do SPHAN, passando por diversas cartas patrimoniais, nota-se um entendimento de que o bem cultural edificado não pode ser compreendido como um artefato isolado de seu entorno (STELLO, 2013). Com a Portaria nº 127 de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional cria a Chancela da paisagem cultural brasileira, instrumento que desperta dúvidas sobre sua aplicabilidade (VASCONCELOS, 2012) e conseqüências. A disciplina da Geografia, com campo denominado Geografia Cultural (STELLO, 2013), foi a qual desenvolveu as primeiras formulações teóricas a respeito da existência de territórios excepcionais onde a interação entre o homem e a natureza produziu transformações em ambos, criando culturas e paisagens peculiares. O geógrafo Carl Sauer no início do século XX (apud NAME, 2010) define que: “A paisagem como objeto central da geografia e a cultura como marca da ação humana” e “A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado”, estas preposições são exemplos de uma linha de pensamento que se desenvolver ao recorrer do século passado e estruturam o conceito agora adotado pelos órgãos de preservação. Carlos Fernando de Moura Delphim em seu trabalho como coordenado do setor de Jardins Históricos no IPHAN desenvolveu uma série de pareceres publicados no livro Paisagens do Sul onde é percebido o interesse da instituição em operacionalizar o conceito de paisagem cultural. É de sua autoria o parecer nº85/09 (DELPHIN, 2009) que propõe o reconhecimento do bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre como uma Paisagem Cultural Urbana, fazendo deste conceito um instrumento de política pública de preservação, complementar ao plano diretor e aos instrumentos clássicos disponíveis. O problema é que a falta de uma metodologia estruturada, inviabiliza por momento a utilização eficaz da chancela da paisagem cultural como uma ferramenta de gestão do território. Ciente disto o IPHAN/RS busca através de acordo de cooperação com o IAPH o desenvolvimento de um projeto piloto de estudo da paisagem cultural, tendo como objeto a região missioneira gaúcha (STELLO, 2013). A análise do trabalho desenvolvido pelo IAPH na Espanha na Enseada de Bolonha e na cidade de Sevilha, juntamente com o projeto piloto em curso na região missioneira gaucha, apresenta possibilidades de aprofundamento no tema, e poderiam servir como exemplo para que as demais superintendências do IPHAN no Brasil desenvolvam seus estudos na área.

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É objetivo deste artigo, colaborar na propagação das possibilidades que esta metodologia trás para as políticas publicas de preservação do patrimônio cultural, e para a gestão democrática das cidades. 2. DISCIPLINAS DO CONHECIMENTO E A PAISAGEM Toda a produção humana que visa melhor compreender-se e compreender o ambiente ao seu redor, gera bens culturais, como a arte, a linguagem, os costumes e os bens edificados. Entretanto é necessário discernir que, para um bem cultural torne-se patrimônio cultural, deve ocorrer um salto qualitativo onde a sociedade comece a atribuir valores e significados a este. (STELLO, 2013). A noção de patrimônio, passa pela idéia de um legado herdado que deve ser transmitido a novas gerações, e mesmo que seja possível observar ações de reconhecimento da importância da preservação de bens culturais desde a antiguidade, o conceito atual de preservação é recente, sendo estruturado na França após a Revolução Francesa (MEIRA, 2008). No Brasil, apesar da existência de documentos que comprovam ações de preservação histórica já em 1925 com as ações de cercamento e consolidação das ruínas da igreja da de São Miguel Arcanjo no Rio Grande do Sul por parte do governo estadual durante a República Velha, é no Estado Novo que surge o conceito atual de preservação com a criação do SPHAN em 1937. É importante destacar que um pouco antes disso, em 1933 o decreto federal nº 22.928 erige a cidade de Ouro Preto como “Monumento Nacional”, e mesmo que este decreto não reconheça a paisagem propriamente como o objeto de preservação, há uma preocupação com o conjunto conformado pelas edificações da cidade e seu traçado urbano. Neste primeiro momento, é possível observar que as cartas patrimoniais entendem a paisagem como um panorama que compõe o plano de fundo dos objetos excepcionais que se buscava preservar. Não é na arquitetura que nós iremos encontrar as primeiras teorizações a respeito do conceito de paisagem, e sim na geografia, no campo denominado Geografia Cultural. Vasconcelos (2012), Stello (2013) e Name (2010) creditam a geógrafos alemães no final do século XIX as primeiras publicações que apontam a existência de territórios peculiares devido à ação cultural do homem. O Geógrafo estadunidense Carl Sauer é o principal teórico na formação do campo que veio a ser chamado de Geografia Cultural (NAME, 2010). A preposição “A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o resultado”, sintetiza o pensamento que Sauer começa a desenvolver ao longo da década de 1920. As publicações de Sauer são influencias pelo positivismo cientifico do final do século XIX e início do século XX (RIBEIRO, 2007), e mesmo que já naquela época o geógrafo perceba a existência de valores simbólicos, afetivos e subjetivos, ele não os considera aproveitáveis em uma análise da paisagem por serem cientificamente questionáveis. Esta percepção começa a ser desconstruída ao longo do século por geógrafos que deram continuidade na teorização do conceito de paisagem cultural.

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A paisagem também foi campo de atração de outras disciplinas do conhecimento, com destaque para a pintura. Deste a idade média (STELLO, 2013) é possível observar a maneira como a paisagem rural e urbana é representada nas telas, é correto afirmar que a pintura foi a primeira representação e estudo da paisagem criada pelo homem, servindo como documento histórico para as gerações futuras. Lacoste apud Name (2010) em seu livro Paisagens Políticas afirma que a pintura nunca foi uma representação fiel da paisagem, que não seria a paisagem “real” a figurar nas telas dos pintores, e sim a versão das classes dominantes. Há a compreensão contemporânea que todo o tipo de representação é um ato político de afirmação de uma interpretação do mundo, e que toda representação esconde por trás um conflito (RAFFEESTTIN apud SAQUET, 2013). Mas é após a revolução industrial no século XVII, no período em que o crescimento das cidades européias promoveu um caos urbano, que a paisagem torna-se protagonista da arte de forma intensa, não apenas compondo panoramas de batalhas ou de cenas bíblicas como na idade média, mas sendo o objeto representado em pinturas de artistas como Claude Monet, Édouard Manet e Vincent van Gogh. Enquanto que as pinturas do movimento impressionista e pós-impressionista eram feitas usualmente em observações in loco, é de Van Gogh a pintura denominada A Noite Estrelada, pintada por ele no período em que permaneceu internado em um asilo em Saint-Rémy-de-Provence  (1889-1890), não através da observação, mas através da memória que ele tinha daquela paisagem. Figura 1: A Noite Estrelada de Vincent van Gogh (1889-1890)

Fonte: http://cientificando.com.br/blog

No Brasil, Alberto da Veiga Guignard, natural do estado do Rio de Janeiro e pintor radicado em Ouro Preto, um dos expoentes da pintura moderna brasileira, retratou as paisagens de Ouro Preto com um olhar que ia além do interesse por sua arquitetura barroca, e busca representar o espírito do local, ou o que agora entendemos como paisagem cultural. Guignard retratava

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as festividades, as tradições, a arquitetura, o meio ambiente, os céus, a população. Guignard não buscava reproduzir a materialidade da cidade, e sim a sua mitologia, os signos, os significados. Fotografia 1: Guignard pintando Ouro Preto

Fonte: http://www.elfikurten.com.br

Um exemplo de representação da paisagem em outra disciplina do conhecimento, na literatura, há a poesia de Cecília Meireles chamada O que é que Ouro Preto Tem?, sobre a cidade de Ouro Preto e sobre o trabalho de Guignard, neste poema Meireles aponta diversas características da cidade, que hoje em dia conceituamos como pertencentes ao conceito da paisagem cultural: “Tem montanhas e luar; Tem burrinhos, pombos brancos Nuvens vermelhas pelo ar; Tem procissões nas ladeiras Com dois sinos a tocar; Opas de todas as cores Anjinhos a caminhar... Tem Rosário, São Francisco Santa Efigênia, Pilar... Tem altares e oratórios Cadeirinhas de arruar. Tem casas de doze janelas, Estudantes a cantar... Tem saudades e fantasmas Ouro por todo lugar. Tem santos de pedra- sabão Calçadas de escorregar, E ali, na Rua das Flores,

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Na varandinha do bar, Tem a figura risonha Do grande pintor Guignard Que Deus botou neste mundo Para Ouro Preto pintar.” (MEIRELES,1949) Lacoste apud Name (2010) credita a invenção da fotografia como a primeira reprodução fidedigna da paisagem. Lacoste acreditava que a fotografia seria uma representação inegável de uma realidade. Entretanto o fotografo brasileiro Sebastião Salgado defende que “Você não fotografa com a sua máquina. Você fotografa com toda sua cultura”, introjetando a esta representação valores subjetivos. A fotografia seria assim como a pintura como composição do artista, e não uma representação da realidade. Estas reflexões servem para compreender, que a paisagem é objeto de observação de diversas áreas do conhecimento, sendo a força motriz de algumas manifestações culturais. É possível que assim como Ouro Preto, todas as paisagens culturais brasileiras dignas de serem compreendidas como patrimônio, ou seja, que devem ser preservadas e perpetuadas encontrem representações nos campos da arte como pintura, fotografia, poesia. Como Stello (2013) aponta, estudar a paisagem abre as portas para a subjetividade, pois estamos tratando com leituras impregnadas de um repertório cultural individual. A paisagem, como no exemplo da pintura de Van Gogh, pode ser uma representação embasada na memória, e é importante compreender que estamos lidando com um novo conceito de preservação que abre a possibilidade de incluirmos memória coletiva e afetividade, conceitos vistos tradicionalmente como demasiadamente subjetivos, como critérios de valoração. O objetivo dessa reflexão é demonstrar que o homem há séculos percebe a paisagem e busca representá-la, fazendo com que o conceito de paisagem cultural como algo passível de preservação seja tardio se comparado ao fascínio que a paisagem desperta no homem. 3. A CHANCELA DA PAISAGEM CULTURAL BRASILEIRA O conceito de paisagem cultural foi adotado pela UNESCO em 1992 e incorporado como uma nova tipologia de reconhecimento dos bens culturais, conforme o artigo 1º da Convenção de 1972, que instituiu a Lista do Patrimônio Mundial: “Art. 1º: (1) monumentos: obras arquitetônicas, obras de escultura monumental e pintura, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições, cavernas, habitações e combinações de recursos, que são de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; (2) grupos de edifícios: grupos de construções isoladas ou reunidas que, pela sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, têm

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valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; e (3) sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e natureza, e áreas, incluindo sítios arqueológicos, que são de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.”(UNESCO, 1972) Já no Brasil, o IPHAN, por meio do artigo 1º da Portaria nº 127, de 30 de abril de 2009, define Paisagem Cultural como: “uma porção peculiar do território, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”. A necessidade de operacionalizar o conceito de Paisagem Cultural nos leva a observar as experiências desenvolvidas pelos demais países neste campo. O IAPH é a entidade científica do Conselho de Cultura e Esporte da Junta de Andaluzia com sede em Sevilha, na Espanha, e se dedica ao estudo do patrimônio cultural desde o ano de 1989. A agenda de atividades do instituto é ampla, cobrindo a investigação, documentação, conservação, restauração, formação, difusão do patrimônio cultural andaluz. O Instituto possui um laboratório de Paisagem Cultural. O IAPH compreende que todas as paisagens merecem estudo e reflexão, e o conceito de paisagem cultural é o mais amplo de todos. “O planeta todo se tornou, em maior ou menor grau, uma paisagem cultural. Direta ou indiretamente, de forma mais ou menos intensa, todas e cada uma de suas paisagens – sub-regiões, continentes, países, biomas, bacias hidrográficas, cidades, lugares dentro de cidades – foram e estão sendo influenciadas pela ação humana.” (RIBEIRO 2013). Os maiores questionamentos são a respeito da metodologia de identificação de uma Paisagem Cultural, e os estudos desenvolvidos pelo IAPH na Enseada de Bolonha – uma paisagem mais rural, de vilarejos e campo, e o Guia da Paisagem de Sevilha, tratando de uma Paisagem Urbana, são importantes referencias para a aproximação com o tema. 4. O INSTITUTO ANDALUZ DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO Desenvolvido no IAPH e publicado no ano de 2015, o “Guia de Paisagem Histórico Urbano de Sevilha” é um produto decorrente de uma abrangente análise da paisagem urbana da cidade de Sevilha e suas conurbações. O primeiro apontamento que podemos fazer a respeito da publicação é o título que foi escolhido, onde ficam expostas as intenções e o recorte do trabalho. Guia é uma publicação que se distingue por ser tanto informativa quanto orientadora, é necessário que um guia faça apontamentos e estabeleça conceitos, diretrizes e critérios que devem ser seguidos a partir da sua leitura. A ideia de vincular o conceito de paisagem à publicação de um guia prevê implicitamente que haverá alterações nesta paisagem que deverão seguir o que foi estabelecido no guia, é um conceito flexível se comparado ao tombamento de um conjunto histórico. O guia analisa o 1229

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contexto socioeconômico atual, as potencialidade da paisagem, e busca se antecipar as transformações que possam surgir, é um conceito de desenvolvimento sustentável. O IAPH por questões práticas tem trabalhado com uma dicotomia entre paisagens rurais, e paisagens urbanas, e no caso de Sevilha o recorte atravessa os limites dos municípios, tratando também das conurbações. O guia esta estruturado sobre doze trabalhos temáticos2 que envolvem a multidisciplinaridade abordada, com especialistas de oito áreas do conhecimento3. Houve a contribuição de profissionais do corpo técnico do IAPH, mas também da Universidade de Sevilha. O volume um está estruturado em apresentação, introdução, cinco capítulos4, e síntese. O volume dois possui dois capítulos5·,anexos e bibliografia. Em sua apresentação inicial, o guia estabelece que seu objetivo é apresentar uma opção de desenvolvimento sustentável as regiões metropolitanas, que obtenha um ganho qualitativo (acessibilidade, funcionalidade, conforto) no cotidiano da população. Os autores destacam que a proposta é de gerar novos equilíbrios e de minimizar progressivamente as tensões criadas nas ultimas décadas. É interessante salientar que uma das críticas que o Estatuto das Cidades recebe é a de propor instrumentos de gestão democrática que devem ser regulamentados por leis municipais, não reconhecendo a situação de conurbação urbana que as grandes metrópoles se encontram. O IAPH ao realizar este estudo, reconhece que são as cidades o local de residência da maior parte da população ocidental, e que são as regiões metropolitanas que apresentam os maiores problemas de falta de conforto, acessibilidade, mobilidade. Com a elaboração de um guia da paisagem, dispõe-se de mais uma ferramenta de planejamento urbano, essa de caráter metropolitano. O trabalho ocorreu no intervalo entre os anos de 2008 -2015, quando o IAPH criou o Laboratório da Paisagem Cultural. Desde o principio a equipe reconheceu o “protagonismo” do Rio Guadalquivir, como um elemento ambiental que possibilitou o desenvolvimento humano, cultural, da sociedade. O rio serviu desde as primeiras ocupações como ligação entre Sevilha e o mundo, mas também foi fonte de alimentos, água, e espaço de lazer. História e Percepção artística da paisagem. Visão da paisagem urbana desde a história. Projetos urbanos que traçaram Sevilha; Relação da paisagem urbana com a ordenação territorial e o planejamento urbanístico. Presença da paisagem nos instrumentos de planificação na conurbação de Sevilha; Geomorfologia e cidade. A paisagem através da estrutura física do território. Evolução e construção da situação atual; Arquitetura e Paisagem. Referencias contemporâneas. Estudos de apropriação da arquitetura contemporânea pela cidadania; Rio e Cidade. Uma visão desde o meio ambiente. O rio Guadalquivir como apoio de um projeto de “Sevilha Verde”; Atividade econômicas na cidade histórica. Contribuição do comercio e a formação do paisagem histórico urbano; A construção do espaço urbano: mobiliário e equipamento; As paisagens históricas da produção em Sevilha; O jardim na formação da paisagem histórica urbana de Sevilha; A cidade submergida: arqueologia e paisagem e paisagem histórico urbano da cidade de Sevilha; A Paisagem Histórica Urbana de Sevilha e as manifestações festivas – cerimoniais; Percepção da paisagem histórica urbana de Sevilha através dos meios de comunicação. 3 Historiador de Arte; Arqueólogo; Antropólogo; Arquiteto; Bióloga; Economista; Jornalista; Geólogo 4 Fundamentos e Metodologia; Caracterização do Meio e Articulação Territorial; A Cidade no Tempo; Usos e Atividades Urbanas com Valores Patrimoniais; Imagens Projetadas e Percebidas da Cidade. 5 Proposta de Objetivos de Qualidade Paisagística; Desenvolvimento de Medidas. 2

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Destaca-se também a terminologia “Paisagem Histórico Urbana”, a qual seria a realidade mais dinâmica e mutável de um grupo maior denominado “Paisagem Cultural”. Em sua conceituação teórica, o IAPH define o guia da paisagem como um novo instrumento de preservação patrimonial (PP20) “Desarrolhar um nuevo instrumento patrimonial, em el marco del desarrollo sostenible y la calidad de vida, lo qual implica transcender la Idea de objetos y tutela em la ciudad y atender aspectos relativos a funcionalidad, usos, comercio, turismo, etc., cuya gestión es determinante para el mantenimiento del paisaje urbano”( Guia de Paisagem Histórico Urbano de Sevilha, 2015, pp20) Este deve atender aspectos socioeconômicos, ficando evidenciado que tão importante quanto reconhecer uma paisagem histórico urbana é planejar a sua gestão. A conceituação no Brasil é similar, tanto a Carta de Bagé (2007) quanto a Portaria nº 127 do IPHAN definem que a paisagem deve ser gerida por um grupo composto por diversas parcelas da sociedade, e que este colegiado é fundamental para manutenção da qualidade da paisagem. O IAPH entende que o guia é uma ferramenta do presente, que deve abranger não apenas as construções históricas (PP19): “Reflexionar sobre la relación entre arquitectura contemporánea y ciudad histórica, y sobre la presencia de lós nuevos patrimonios (industrial e inmaterial, entre otros), sin menoscabo de los consolidados.” ( Guia de Paisagem Histórico Urbano de Sevilha, 2015, pp19) É interessante que ao incluir a arquitetura contemporânea, o guia se torna uma publicação de valor a todos os arquitetos e urbanistas, e não apenas aos ligados a causa da preservação histórica, fazendo com que essa dicotomia entre “arquitetos contemporâneos” e “arquitetos do patrimônio histórico” comesse a ser desconstruída. Ainda em sua conceituação teórica, o guia aponta o turismo de massas, e a comercialização do patrimônio, como elementos a serem analisados pela potencialidade de produzirem danos as paisagens culturais. É o processo que podemos reconhecer em cidades como Tiradentes, Minas Gerais, onde o centro histórico parece existir para entreter o turista e é dominado por pousadas, restaurantes e lojas de artesanato, não atendendo a cidade contemporânea que se expandiu para fora do perímetro tombado. Outro símbolo da comercialização do patrimônio acontece nos municípios da Serra Gaúcha e Catarinense, onde uma série de pórticos destinados ao turista constituem simulacros (STELLO 2013), uma tentativa dos municípios de vender uma marca para a cidade, e onde se utilizam recursos que por vezes faltam na conservação do patrimônio existente como é o caso de Ivoti – RS.

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Fotografia 2: Pórtico de Acesso a Ivoti

Fonte: www.rgdosul.com.br

Fotografia 3: Igreja luterana em ruínas

Fonte: Foto do autor

No guia de Sevilha, foi proposto um recorte, e entre os mais de quarenta municípios que compem a região metropolitana de Sevilha, apenas dezesseis foram selecionados pelos pesquisadores, totalizando uma área de 191km² de análise. O elemento delimitador do recorte foi o Rio Guadalquivir, pelos fato dos pesquisadores envolvidos definirem que ele era o elemento natural estruturador do ponto de vista ambiental, e foi o canal de ligação da cidade com as Indias, fazendo de Sevilha um porto que abastecia todas a região. A gestão dessa paisagem parte do princípio que será promovido um acordo entre os gestores municipais, e um convite para eles participarem efetivamente do processo, em um processo de convergencia de políticas públicas. O IAPH aponta que todos os encaminhamentos publicados no guia devem ter sido produto de consenso entre os agente envolvidos (PP30). Todos os estudos temáticos desenvolvidos no guia envolvem estudos de percepção, onde a comunidade é convidada a compartilhar com os pesquisadores as suas leituras sobre os diferentes campos de trabalho. Destaca-se o capítulo “Imagens Projetadas e Percebidas da Cidade”, onde é realizado um apanhado de muitas representações que espaço urbano de Sevilha sofreu na pintura, literatura, teatro, cinema, postais, selos, canções, partindo do entendimento que uma

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paisagem cultural reverbera nos demais campos da arte, gerando um acervo de produção cultural semelhante aos apontados anteriormente neste artigo a respeito da cidade de Ouro Preto. Este capítulo do guia é um dos mais aprofundados, porque demonstra como o ambiente natural e o patrimônio material são capazes de gerar uma riqueza imaterial. 5. CONCLUSÕES Com o aprofundamento do conceito de paisagem cultural, e a adoção de uma metodologia similar a desenvolvida pelo IAPH, ocorrerá um período de experimentações e certamente de contestações. Como parte do judiciário brasileiro é por vezes conservador nas ações de preservação do patrimônio cultural, acreditando equivocadamente que apenas o bem tombado está sobre salvaguarda, à paisagem cultural necessitará de envolvimento da comunidade para que o conceito possa ser operacionalizado e mantido. As iniciativas de Carlos Fernando Moura Delphim junto ao IPHAN de reconhecer a existência da paisagem cultural passível de preservação em determinados territórios, e a impossibilidade de concretizar a chancela desses territórios podem ser explicados pela ausência de uma metodologia que envolva os agentes locais no processo decisório de quais elementos devem ser preservados. O IAPH ao propor o instrumento do guia da paisagem e estabelecer que os critérios ali apontados devam provir de consenso, reconhece a incapacidade de um instituto de preservação no atual contexto gerir um conceito tão abrangente de preservação. A Paisagem Cultural também inova ao estabelecer a gestão conjunta entre municípios, e a busca por uma política convergente, sendo que o guia da paisagem se torna um instrumento de gestão regional, e por vezes metropolitano como no exemplo de Sevilha na Espanha. A chancela da paisagem cultural, se aplicada com a metodologia do IAPH, é um instrumento de gestão democrática, pois rompe com a tradição do IPHAN de apenas apresentar planos de gestão as comunidades com sítios tombados, e exige que os estudos temáticos desenvolvidos envolvam a sociedade civil desde as primeiras etapas. É uma possibilidade de repensar o relacionamento da instituição com a comunidade, desmistificar os instrumentos de preservação, e principalmente compartilhar responsabilidades. Ao valorar memória coletiva, percepção, afetividade, a paisagem cultural aproximasse de conceitos com os quais a sociedade já se relaciona, rompendo a ideia de que apenas o excepcional, ou monumental, deve ser valorado, mas também é objeto de preservação o prosaico, o cotidiano, e o singelo. Ainda há um grande campo para formulações a respeito deste conceito, e mesmo que a chancela brasileira seja instituída por portaria do IPHAN, certamente há desafios no campo jurídico que necessitam ser mais bem avaliados, afinal a ideia pressuposta no guia da paisagem de que deve ocorrer a construção de convergências de políticas públicas entre municípios, carece na realidade brasileira de bons exemplos.

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De qualquer forma, a percepção da existência da paisagem cultural já esta solidificada na academia, sendo necessário iniciar o processo de propagação desta com a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASTRIOTA, Leonardo Barci (2007) “Intervenções sobre o Patrimônio Urbano: Modelos e Perspectivas” FÓRUM PATRIMÔNIO: amb. Constr e patr. Sust, Belo Horizonte.v1.n1,set/dez 2007. Instituto Andaluz do Patrimônio Histórico (2015), Guia do Paisagem Histórico Urbano de Sevilha. Sevilha: Conselho de Educação, Cultura e Esporte. MEIRA, Ana Lúcia. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação dos cidadãos na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. MEIRA, Ana Lúcia.o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio Grande do Sul no Século XX: Atribuição de Valores e Critérios de Intervenção .2008.483 f. Tese de Doutorado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre. RS.2008. NAME, Leo. O conceito de paisagem na geografia e sua relação com o conceito de cultura. GeoTextos, vol. 6, n. 2, dez. 2010. Leo Name 163-186 RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007. 152 p. SAQUET, Marcos Aurélio.Abordagens e concepções sobre o território: 3. ed. São Paulo: Editora Outras Expedições, 2013.192 p. SAQUET, Marcos Aurélio.Abordagens e concepções sobre o território: 3. ed. São Paulo: Editora Outras Expedições, 2013.192 p. VASCONCELLOS, Marcela Correia de Araújo. As fragilidades e potencialidades da chancela da paisagem cultural brasileira. Revista CPC, São Paulo, n.13, p. 51-73, nov. 2011/abr. 2012 STELLO, Vlademir. Alem Das Reduções: A Paisagem Cultural Da Região Missioneira. 201.238 f. Tese de Doutorado – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre. RS.2015. DELPHIM,Carlos.Memorando nº85/09 Parecer sobre ação pública ambiental nº1.05.0318659-0 movida pelo Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul contra a Empresa Goldsztein S/A Administrações e Incorporações e o Município de Porto Alegre, referente ao processo administrativo nº01512.000488/2008-23 IPHAN 12 SR/IPHAN, 26, Mar.2009. Disponível em:http://pt.slideshare.net/ moinhosvive/parecer-iphan-moinhos-de-vento. Acessado em 15, Fev.2015.

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INTERFACES ENTRE COMUNICAÇÃO E CULTURA: UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL DA COMUNICAÇÃO NAS POLÍTICAS DO AUDIOVISUAL Ligia Machado Arruda1 João Alcantara de Freitas2 RESUMO: Pensar o papel social da comunicação tem sido um desafio para as políticas públicas de comunicação e cultura na contemporaneidade. A criação e promoção de ações sem um debate conceitual consistente tende a afastar tais políticas do interesse social. Nesse sentido, é fundamental desenvolvermos uma reflexão conceitual acerca do direito a comunicação e suas várias dimensões. Fundamentamos tal reflexão a partir das ideias dos pesquisadores Cees Hamelink e Antonio Pasquali. Posteriormente, tecemos uma interpretação transversal de alguns editais publicados pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura no ano de 2013, na tentativa de escrutinar a seguinte questão: como uma política de comunicação e cultura pode promover o direito à escuta se a reflexão dos valores se manifesta através das mais variadas formas de interação e subjetividade? Itera-se, no entanto, que os apontamentos aqui feitos derivam de uma investigação ainda incipiente e que demanda um esforço de pesquisa prolongado. PALAVRAS-CHAVE: direito à comunicação, políticas de comunicação e cultura, políticas para o audiovisual.

1. INTRODUÇÃO Em escala global, assistimos a emergência e consolidação de políticas públicas de cultura para a promoção da diversidade e dos direitos sociais. A implementação destas ações é intensificada após a Convenção pela Promoção da Diversidade Cultural da UNESCO em 2005, na qual diversos países assumiram o compromisso de criação, fomento e consolidação de políticas para a promoção dos direitos culturais, sobretudo para os grupos sub-representados e socialmente vulneráveis. Bolsista de pesquisa do Setor de Estudos e Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa e Graduação em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] | CV Plataforma Lattes: < http://lattes.cnpq.br/1913296460748732 > 2 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Mestre pelo mesmo programa, Bacharel em Turismo pela Universidade Federal Fluminense e bolsista de pesquisa no Museu Casa de Rui Barbosa. E-mail: [email protected] | CV Plataforma Lattes: < http://lattes.cnpq. br/9540497515511545 > 1

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O interesse social passa então a reger a atuação dos órgãos e entidades públicas de cultura, e ao menos em teoria, busca-se um novo redirecionamento que se distancia da segregação sintomática do desenvolvimento pelo viés economicista. Nesse diapasão, a inclusão, participação e difusão se tornam os principais objetivos das políticas culturais contemporâneas. No contexto brasileiro, tal mobilização ganha força a partir de 2003 com a discussão e proposta de redefinição dos conceitos de cultura, participação social, direitos culturais e diversidade. Mais de uma década depois, é possível constatar inúmeros avanços e mesmo que em alguns campos tais progressos representem mais agitação e mobilização do que resultados concretos, a discussão prevalece. Em setores como o audiovisual, por exemplo, se considerarmos todo o atraso histórico causado pela peculiar ascensão dos meios de comunicação através do interesse privado, pouco se avançou. A partir dos anos 2000, assistimos a resistência de disputas que possibilitaram a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), a recente e tardia entrada de canais públicos e estatais – NBR, Canal Saúde e TVE – na televisão aberta, a implementação dos mecanismos de cotas de programação na televisão por assinatura, bem como o desenvolvimento e expansão do fomento direto à produção de conteúdos audiovisuais. Apesar dessas difíceis e importantes conquistas, a discussão de conceitos essenciais como comunicação, direito à comunicação, difusão, direito à escuta e participação comunicacional não receberam o destaque necessário. Mesmo quando ocorriam no campo de interseção entre comunicação e cultura, pouco foram aprofundadas devido às bem conhecidas barreiras que deslocam o debate a favor dos interesses dos grandes grupos de mídia e telecomunicações. Sendo assim, este artigo tem como objetivo promover a discussão dos termos que constituem as dimensões do direito à comunicação e entender como os conceitos de difusão e direito à escuta são afirmados pelas políticas da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. A promoção do direito à escuta se constitui como um ponto central que motivou a realização desta investigação. Compreende-se que sua prática se manifesta por meio de formas orgânicas de interação e envolve aspectos de subjetividade. Portanto, o esforço de compreender como uma política de comunicação e cultura pode promover o direito à escuta se constitui como fio condutor das ideias aqui apresentadas. Para a discussão conceitual, serão articulados argumentos de autores do campo da comunicação – Cees Hamelink e Antonio Pasquali –, e estudos do campo da cultura. Já a análise desses conceitos nas políticas da Secretaria do Audiovisual (SAv) ocorrerá a partir da apreciação dos editais lançados pela mesma no ano de 2013. 2. ALEGORIAS DO CAMPO DA COMUNICAÇÃO A crescente promoção de políticas culturais na contemporaneidade tem por objetivo maior a afirmação de lutas contra os valores estabelecidos pela dita transmissibilidade central

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dos valores sociais, diagnosticada por Michel de Certeau. Por meio das estratégias de controle da produção e disseminação cultural, grupos dominantes tendem a reger modelos sociais de comportamento (CERTEAU, 2012). Nesse sentido, a razão que move as políticas públicas de cultura é criar condições para que os diversos grupos sociais possam expressar suas ideias e valores e, assim, promover o equilíbrio fundamental para a coexistência das diferenças. Pensar o papel social da comunicação se torna imperativo para a concretização desse objetivo. Como observa Antonio Pasquali, a midiatização moderna tem favorecido grandemente a mensagem informativa, a qual promove mais informação do que comunicação. Quando o objetivo informativo prevalece, a mensagem escoa por um fluxo unilateral que tende a silenciar o receptor, produzindo “mais verticalidade do que igualdade, mais subordinação do que reciprocidade” (PASQUALI, 2005, p.27). Dessa maneira, o acesso a transmissão e difusão da produção cultural nos meios de comunicação representa também um exercício de poder. Quando este poder não é distribuído entre os representantes dos diversos grupos sociais, aqueles que concentram a transmissão podem livremente explorar tal meio em seu próprio benefício. A relevância da comunicação para a sociedade demonstra que a sua discussão, em seus diferentes contextos, deve ser precedida do debate conceitual dos termos que a constitui como parte e fruto das relações humanas. Cees Hamelink alvitra que a comunicação é um fator vital para as sociedades, no entanto, também está exposta às formas de controle e exercício de poder, por isso, a liberdade de nos comunicar deve ser promovida e protegida (2014). O debate conceitual no campo da comunicação e cultura é um caminho necessário para a aproximação das políticas públicas de sua perspectiva social. Ao tecer uma discussão conceitual do direito à comunicação na dita “sociedade da informação”, Pasquali explora o estado mais puro da comunicação. Segundo o autor, a comunicação está relacionada à comunidade. É parte constituinte da essência das relações humanas. Sem a função comunicativa não pode haver comunidade, por isso, “qualquer mudança no comportamento comunicativo de um grupo social vai produzir mudanças nas formas de percepção, sentimento e de tratamento do outro” (PASQUALI, 2005, p.18). O seu impacto na sociedade faz transparecer o laço indissociável do interesse social. Por meio dela, portanto, deveria haver o compartilhamento de simétrico poder de transmitir e receber ideias. Buscando gerar no receptor um entendimento racional dos argumentos num clima de reciprocidade em que todos os atores recebem o mesmo papel ativo e desfrutam do uso do mesmo canal (PASQUALI, 2005). Quando a discussão conceitual da comunicação e do direito de comunicar se aproxima da sua origem história das relações sociais, percebe-se o seu vínculo indissociável com a essência que constitui as relações humanas. Assim como a cultura, a comunicação está na raiz da existência humana. Sem a habilidade de codificar e decodificar, receber, reproduzir e transmitir

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mensagens e, assim, estabelecer diálogos não existiria organização social do modo como conhecemos e vivenciamos. Por esta razão, o debate e desdobramentos do que tange a comunicação não podem ser sufocados pelos interesses econômicos. Quando a apropriação dos conceitos pelas políticas públicas é projetada através da lógica econômica, “a sociedade tende a perder em termos de sua coesão moral e social” (PASQUALI, 2005, p.19). A complexificação dos meios e formas de comunicação ao longo do desenvolvimento humano – dos diálogos face a face e da escrita para a reprodutibilidade de mensagens através de veículos impressos – pelo cinema e pela radiodifusão – fez perdurar a impressão de que a utilização dos meios e das grandes infraestruturas de distribuição só poderia ocorrer por meio do uso eficiente da exploração econômica. No entanto, apesar dos inegáveis custos envolvidos na manutenção e alimentação dos grandes meios, a submissão dessa atividade aos valores econômicos não se justifica a não ser que a sua concentração sirva à manutenção das relações de poder. Nas palavras de Pasquali os conceitos de: [...] comunicação e informação, sempre, e necessariamente, referem-se à essência da comunidade e das relações humanas. Assim, é inaceitável que esses termos sejam reduzidos ao nível do discurso técnico ou econômico, que tentam minimizar ou desvalorizar as repercussões sociais do factum comunicativo. Consequentemente, a sociedade tem o direito ontológico e inalienável de observar e participar de qualquer decisão que afete a sua comunicação ou informação, atividades que constituem a essência das relações humanas (PASQUALI, 2005, p.18-19). A participação que se refere o autor supracitado está relacionada não só à participação nas discussões dessas temáticas, mas também a participação na produção de conteúdos comunicacionais, bem como no desenvolvimento das políticas de promoção da diversidade comunicacional. O estímulo da difusão dos diversos valores da sociedade nos meios comunicacionais é uma forma de promover o desenvolvimento pelo viés social. As políticas de fomento audiovisual “animam a autoconfiança das minorias além de fortalecer a sua articulação” (MERKEL, 2015, p.70). Este debate acerca da participação comunicacional nos atenta também para o que Cees Hamelink denomina de direito à escuta. A articulação e luta dos grupos sociais encontra a sua razão quando estes têm o direito de serem escutados, quando as suas questões são levadas em consideração tanto pelas esferas governamentais quanto como pelos diversos grupos, constituindo um processo relacional de comunicação interativa. O direito à escuta seria, como sugere Hamelink, uma categoria do direito maior de se comunicar: O direito à comunicação vai além do direito convencional da liberdade de expressão, o que levanta a questão de como o discurso que ninguém ouve pode ser útil. A partir dessa percepção, uma nova ideia emergiu: a de que deve haver um direito de ser escutado, no sentido de garantir que os diversos pontos de vistas tenham seu espaço e sejam considerados (HAMELINK, 2014, p.23). 1238

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A comunicação interativa pressupõe a participação na criação e transmissão de ideias, o espaço para a expressão, o debate e a reflexão dessas ideias e valores. Nesse sentido, a liberdade de expressão, tanto evocada nos discursos sobre a comunicação, torna-se outro ponto que precisa ter a sua discussão ampliada. As fronteiras de seu conceito não se encerram em sua antiga concepção. Como Pasquali nos atenta, a antiga compreensão emerge no século XVIII e é fruto de uma conjugação entre as necessidades de liberdade de mercado e expressão. Naquele momento histórico, a liberdade de expressão se fazia necessária para que existissem livres ideias de mercado. Portanto, basicamente se restringia a uma garantia da liberdade de se expressar contra o governo, ou seja, um entendimento limitado às necessidades econômicas daquele momento (PASQUALI, 2012). Cada vez mais somos provocados a relativizar este conceito. Isso não implica em afirmar que as transformações tecnológicas dos últimos anos transformaram o seu significado, mas sim que estão desmascarando uma antiga impressão de que a sua discussão se encerra no interesse econômico de alguns grupos. Como argumenta Hamelink: A emergência de tecnologias interativas e a expansão das redes sociais deslocou a questão da interatividade para o centro das discussões sobre o direito à comunicação. Estes desenvolvimentos parecem exigir uma mudança do paradigma de distribuição predominante para um paradigma de interação (HAMELINK, 2014, p.23). Quando poucos dominam os meios comunicacionais de maior alcance, consequentemente, a comunicação em seu sentido interativo fica prejudicada uma vez que o acesso à informações e ideias não implica no envolvimento dos atores sociais em um processo interativo. “Mesmo se os conteúdos de notícias e entretenimento promovessem o máximo de liberdade de expressão e o maior acesso possível às fontes de informação, isto não garantiria a participação das pessoas nos diálogos sociais” (HAMELINK, 2014, p.22). Embora a comunicação pela radiodifusão promova, através de seu modelo tradicional, um fluxo comunicacional amplo, direto e unilateral, a emergência da tecnologia digital – com a proliferação de canais, a redução dos custos de produção audiovisual – torna mais palpável o compartilhamento do poder de difusão. Christine Merkel, em relatório sobre os dez anos da Convenção da UNESCO, faz uma breve análise desse novo contexto para o campo da comunicação e cultura: A tecnologia permite, efetivamente, fazer ouvir novas vozes e novos talentos. Assistimos à emergência de novos atores e ativistas dos meios de comunicação, como os jornalistas cidadãos e os produtores de filmes amadores, que redesenham os limites do jornalismo e encorajam os profissionais dos meios de comunicação a agir mais como detentores e organizadores de conteúdos (MERKEL, 2015, p.68). A participação em termos de produção e difusão de conteúdos por diversos atores da sociedade se torna uma vigorosa ferramenta para a promoção e projeção de vozes que até então

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eram sub-representadas nos veículos de comunicação de massa. Nesse sentido, a comunicação pública, sobretudo na televisão aberta, passa a ser um meio estratégico para as políticas culturais. As ações de estímulo ao audiovisual podem transpor o mero incentivo a produção e expandir a sua atuação nos diversos elos da cadeia de valor. Da produção à distribuição, a afirmação do direito à comunicação por meio das políticas públicas pode assegurar “uma distribuição justa e pluralista do poder de comunicar” (PASQUALI, 2005, p.22). 3. A PROMOÇÃO À DIFUSÃO E AO DIREITO À ESCUTA NOS EDITAIS DA SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA Desde os anos 2000, é notória e crescente a publicação de editais de fomento direto à produção de conteúdos audiovisuais. No entanto, como já discutimos no presente artigo, o estímulo e apoio à comunicação por meio da garantia do direito de comunicar vai muito além deste primeiro elo da cadeia de valor do audiovisual. As políticas públicas que estiverem realmente dispostas a incentivar o direito à comunicação precisam contemplar também a participação, a difusão e transmissão das obras, o debate dos valores representados, bem como a diversidade tanto dos grupos sociais quanto das diferentes regiões que compõem o país. Embora a parte teórica deste artigo tenha se debruçado sobre esses quatro ramos que fazem parte da essência do direito à comunicação, o recorte focará na questão da promoção da difusão e do direito à escuta. Uma análise que propusesse abraçar outras dimensões desse direito demandaria um debate mais prolongado, considerado isso, optou-se por um recorte de pesquisa em que as questões pudessem ser melhor aprofundadas. Contudo, fica a certeza de que as abordagens que não puderam ser contempladas neste trabalho serão objetos de futuros frutos desta investigação. A partir da análise dos editais publicados pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura no ano de 2013, pretende-se verificar se estes conceitos são contemplados e compreender como eles foram apropriados pelas normas e disposições desses documentos. Para tais fins, foram analisados os seguintes editais de fomento: • O edital de apoio à produção de curtas-metragens 2013, no qual a SAv propôs contemplar vinte e cinco obras audiovisuais brasileiras de estilos diversos – ficção, documentário e animação – e temática livre (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013a); • O edital Longa Doc 2013 através do qual a SAv apoiou a produção de oito longas-metragens de documentário brasileiros com temática livre (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013b); • O edital Curta Criança 2013 que fomentou a produção de doze curtas dos gêneros ficção, animação ou documentário com temática voltada para a infância e para o público infantil de até 12 anos (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013c);

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• O edital Carmen Santos de Cinema de Mulheres 2013 que incentivou a produção de dez curtas e seis médias-metragens, de ficção e documentário, produzidos ou dirigido por mulheres. Os filmes deveriam ter como temática questões como as de gênero na sociedade (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013d); • O edital curta animação 2013: resíduos sólidos em um minuto, o qual contemplou quarenta curtas de um minuto que tratavam da questão dos resíduos sólidos e a preservação do meio ambiente (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013e); e A apropriação de alguns conceitos na formulação de políticas públicas nem sempre ocorre da forma como o campo teórico prevê. A carência de debates que visem estabelecer consensos sociais sobre os limites de significação dos termos provoca uma multiplicação de significados que pode gerar falhas de entendimento, distorções ou, até mesmo, a manipulação destes (PASQUALI, 2005). Nesse sentido, o presente artigo tende a analisar tais editais tendo como horizonte a seguinte pergunta: como uma política de comunicação e cultura pode, por exemplo, promover o direito à escuta se a reflexão dos valores se manifesta através das mais variadas formas de interação e subjetividade? A promoção de discussões que trabalhem as obras audiovisuais em suas diferentes abordagens como, por exemplo, pela linguagem do audiovisual, pelas representações e pela estética da criação é um caminho possível. Nesse sentido, a garantia de licenciamento para a utilização das obras audiovisuais em programas como a Programadora Brasil e em cineclubes é uma ação importante para a promoção do debate dos valores e ideias expressos nas obras contempladas pelas políticas. A Programadora Brasil, por exemplo, procura difundir filmes e conteúdos audiovisuais por meio da distribuição de cópias na Rede Pública de Ensino, nos Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs) e nos cineclubes solicitantes e beneficiários do programa Cine Mais Cultura onde são realizados debates pós-exibição dos filmes (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2015). Desta maneira, a SAv promove o acesso e difusão e, de forma indireta, a discussão essencial para a promoção do direito à escuta. O edital de apoio à curtas-metragens de 2013 e o Curta Criança 2013 garantiam o licenciamento dos direitos de exibição, distribuição e reprodução das obras contempladas em programas e políticas públicas do Governo Federal, em emissoras públicas e canais públicos da televisão por assinatura, no projeto Programadora Brasil, nos canais da internet, bem como em cineclubes (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013a; 2013b; 2013c; 2013d; 2013e). Desta forma, cotejando o estímulo à difusão e transmissão. No Longa Doc 2013, o mesmo acontece, há apenas uma diferença no que tange a distribuição em canais e emissoras públicas e nos programas do MinC: a veiculação e difusão das obras nessas janelas ocorreu dezoito meses após a entrega da cópia finalizada (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL, 2013b). Como o acordo de licenciamento aconteceu de forma não onero-

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sa e não exclusiva, os projetos contemplados poderiam realizar contratos de exclusividade com canais de programação privados nesse período de dezoito meses. Nos contratos realizados com programadoras e emissoras privadas, geralmente, há a exigência de um período mínimo para a exploração exclusiva do produto audiovisual. Tal requisito faz sentido se pensamos que a exibição nesses canais precisa de um retorno financeiro para a sua sustentabilidade, caso contrário, não haveria sentido e estímulo para o investimento em conteúdos. Assim, a norma promove a convivência saudável entre o interesse econômico e social. Ainda que o incentivo envolva verba pública, estava previsto a contrapartida de vinte por cento do orçamento total, o que justifica a exploração exclusiva por canais privados no prazo de 18 meses, contudo, sem o prejuízo da sua exploração social. Fato possível uma vez que esta independe de prazos ou exclusividade. No Edital Carmen Santos 2013, também são apresentadas algumas peculiaridades para além das já previstas nos demais editais. Devido à realização da ação em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Empresa Brasil de Comunicação, o regulamento previu o licenciamento das obras não só para o MinC, mas também para esses órgãos. A medida torna-se importante para a projeção das vozes femininas e ampliação do alcance das questões de gênero nos debates sociais, pois estimula ainda mais a sua difusão. Uma parceria realizada com o Ministério do Meio Ambiente no edital de curtas de animação: resíduos sólidos em um minuto também ampliou o acesso às obras comtempladas. O regulamento previa a distribuição e exibição no Circuito Tela Verde: “Mostra Nacional de Produção Audiovisual Independente, que reúne vídeos com conteúdo socioambiental para serem exibidos em todo território nacional e em algumas localidades fora do país” (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE).  Assim, o caminho para o maior alcance das obras fica aberto, no entanto, apenas uma possibilidade sozinha não é suficiente. A promoção da escuta e reflexão depende de outras ações que realmente utilizem esse caminho em práticas afirmativas de estímulo à criação de espaços para o debate. Nos editais analisados foram encontrados mecanismos de acesso às obras produzidas, mas, diretamente, nada foi encontrado em relação a promoção de espaços para debate. Como defende Pasquali, o acesso por vezes pode levar a redução da participação. Em sua argumentação, a participação é entendida como a produção e transmissão de mensagens, ou seja, a abundância do acesso à informação e ideias de terceiros desencorajaria a produção de criações próprias de alguém. No entanto, tomamos a liberdade de nos apropriarmos da premissa de Pasquali e inserir na compreensão de participação a discussão social das informações, valores e ideias difundidas pelas produções culturais. Esse debate envolveria, portanto, a participação em termos de produção de reflexões – em que a interação das perspectivas de diversos receptores contribuiria para a construção da obra em sua relação com a sociedade.

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Nesse sentido, a compreensão do que seria essa discussão das obras seria fruto das interseções entre a participação – no sentido de produção de reflexões – e do direito à escuta – que envolve a ideia de que as informações, ideias e valores manifestos nas formas de expressão culturais devem ser levados em consideração, precisam ser escutados, mais do que reproduzidas. Por esta razão evitou-se o uso do termo acesso ao longo deste artigo. Quando se pretendeu falar sobre o alcance da distribuição das obras, utilizou-se o termo “difusão”. Ainda que tal precaução não tenha evitado a reprodução de ecos no debate, acredita-se que o confronto de significados foi amenizado. Contudo, reconhece-se a necessidade de uma abordagem mais lúcida destas inquietações, as quais seguem como objetivo de pesquisa perene. 4. ÚLTIMOS APONTAMENTOS No processo de análise dos editais da SAv, foram encontrados, nos cinco editais, disposições que possibilitavam o estímulo à difusão das obras produzidas através do incentivo. Portanto, os editais foram além do mero fomento à produção, abrindo meios para que os projetos analisados pudessem chegar aos seus verdadeiros financiadores: a sociedade. Contudo, constatou-se também que a promoção da criação de espaços de debate ocorreu de forma incipiente e indireta. Poucas foram as disposições que efetivamente poderiam estimular a criação de espaços de debate, a qual fica extremamente dependente do engajamento continuo dos gestores e atores. A breve reflexão desenvolvida aqui aponta que a promoção direta à criação de espaços de discussão social dos conteúdos culturais pode sedimentar o caminho para o alcance da garantia do direito à escuta. As obras audiovisuais refletem e expressam valores sociais que precisam ser consideradas, precisam ser provocados e utilizados em prol do aprimoramento das relações sociais. Por fim, vale ressaltar a urgência de se promover e intensificar o debate conceitual no campo da comunicação e cultura, sem os quais o aprimoramento de suas políticas ficará cada vez mais prejudicado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. 7ªed. CAMPINAS: Papirus, 2012. HAMELINK, Cees. Communication Rights and the History of ideas. IN: PADOVANI, Claudia; CALABRESE, Andrew (Org.). Communication Rights and Social Justice: Historical Accounts of Transnational Mobilizations. Palgrave Macmillan. 2014. p.17-29. MERKEL, Christine M. New Voices: encouraging media diversity. IN: UNESCO. Reshaping Cultural Policies: a decade promoting the diversity of cultural expressions for development. PARIS. 2015, p. 61-75. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002428/242866E.pdf . Acesso em: 26 de Janeiro de 2016.

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MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Circuito Tela verde. Disponível em: http://www.mma.gov.br/ educacao-ambiental/educomunicacao/circuito-tela-verde. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. PASQUALI, Antonio. Um breve glossário descritivo sobre comunicação e informação. IN: MELO, José Marques de; SATHLER, Luciano. Direito à Comunicação na Sociedade da Informação. São Bernardo do Campo, SP: Umesp, 2005. p. 15 – 49. ______. Rights of Man and Communication in Latin America. IN: MONTIEL, Aimée Vega. Communication and Human Rights. Universidad Nacional Autónoma de México. 2012. p. 115-123. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital Nº 06 de 27 de setembro de 2013 - Apoio à produção de curta-metragem. 2013a. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/documents/10889/972423/Edital+Curta-Metragem+2013.pdf/25e4f304-7eb9-43e1-88668722a1e4150f. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital no 07, de 27 de setembro de 2013 - Edital de apoio à produção de documentários – longa doc 2013. 2013b. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/documents/10889/972425/EDITAL+LONGA+DOC+2013.pdf/29b683346188-4a94-a2cf-de766d02bd30. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital no 05, de 09 de agosto de 2013 - curta criança 2013. 2013c. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/ documents/10889/950712/130815_CGIFA_Edital+Curta+Crianca_V2_publicado+_3_.pdf/eb98060e693e-41e7-800f-96b57da73279. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital carmen santos de cinema de mulheres 2013 – apoio para curta e média-metragem. 2013d. Disponível em: http://www. cultura.gov.br/documents/10889/927207/20130628_Edital+Carmen+Santos+_2013.pdf/91e7553dbd7d-4716-b127-0ed42851cc1b. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital no 04, de 09 de agosto de 2013 - Edital curta animação 2013: resíduos sólidos em um minuto. 2013e. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/documents/10889/950734/130815_CGIFA_Edital+Curta+Animacao_V2_ publicado.pdf/85edd934-52d1-4bdb-a854-2a378e405dea. Acesso em: 14 de fevereiro de 2016. SECRETARIA DO AUDIOVISUAL DO MINISTÉRIO DA CULTURA. Secretaria do Audiovisual (SAV): políticas e ações 2015. 2015. Disponível em: http://secretariadoaudiovisualminc.tumblr.com/ post/135204510185/secretaria-do-audiovisual-sav-pol%C3%ADticas-e. Acesso em: 23 de dezembro de 2015.

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EDITAL CARMEN SANTOS: POLÍTICA PÚBLICA E O CINEMA DE MULHERES Lina Rocha Fernandes Távora1 RESUMO: A Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC) realizou, em 2013, um edital específico para diretoras mulheres. O edital foi realizado em parceria com a, então, Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Como resultado, foram produzidos 10 curtas-metragens, de 5 minutos, e 6 médias-metragens, de 26 minutos. A política pública foi inovadora ao apostar no incentivo direto para conteúdos audiovisuais dirigidos por mulheres, contando com pontuação extra para a equipe técnica feminina e que, ainda, abordasse, de forma ampla, conteúdos sobre mulheres. As temáticas abordadas nas obras são diversas: violência, empoderamento, questões e estereótipos de gênero, racismo, evolução dos papeis da mulher etc. PALAVRAS-CHAVE: Edital, Carmen Santos, Cinema de Mulheres.

1. CINEMA POR MULHERES Em 2013, pela primeira – e única vez – a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC) realizou um edital específico para diretoras mulheres. O edital foi realizado – desde a sua concepção – em parceria com a, então, Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) também entrou como parceiro, com o compromisso de exibir os filmes na sua rede de programação. O objetivo do edital é colocar a mulher em função protagonista na cadeia do audiovisual, não só como diretora, mas também assumindo outros cargos, como produtora, roteirista, diretora de fotografia, diretora de arte, diretora de som e montadora, pois, além da exigência dos conteúdos audiovisuais serem dirigidos por cineastas mulheres, era dado 0,5 pontos adicionais para integrantes mulheres em algumas funções específicas definidas na chamada pública. O edital é voltado exclusivamente para diretoras mulheres, com a busca de um empoderamento de gênero no segmento audiovisual. Editais afirmativos são políticas públicas específicas para estimular determinados segmentos da população. De 1995 a 2014, foram lançados comercialmente 1.123 filmes brasileiros. Servidora e Coordenadora de Programas e Projetos da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/ MinC) – [email protected]. 1

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Destes, 184 foram dirigidos apenas por mulheres, o que representa apenas 16,42%. Em 2015, de acordo com Informe de Acompanhamento do Mercado3, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), dos 128 longas-metragens lançados comercialmente4 no ano, 14,8% foram dirigidos por mulheres (apenas 19 produções). Dos 20 filmes brasileiros com maior bilheteria, apenas quatro foram dirigidos por mulheres: Meu passado me condena 2, de Julia Rezende; S.O.S Mulheres ao Mar 2, de Cris D’Amato; Linda de Morrer, de Cris D’Amato; e Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (ANCINE, 2016). Nos Estados Unidos, uma das únicas indústrias cinematográficas autossustentáveis do mundo, em 2015, apenas 9% das 250 maiores bilheterias norte-americanas foram dirigida por mulheres. A análise história (1998-2015) demostra pequena variação, com a aumento de apenas dois pontos percentuais. Quando outras categorias são analisadas (diretoras, roteiristas, produtoras, produtoras executivas e diretoras de fotografia) o percentual sobe para 19%. Entre as categorias analisadas, a que a mulher tem a melhor presença é de produtora (22%). (LAUZEN, 2016). 2. O ESTADO E O AUDIOVISUAL As políticas públicas do audiovisual no Brasil são planejadas e executadas, no âmbito federal, por duas instituições complementares: Secretaria do Audiovisual (SAv) e Agência Nacional do Cinema (Ancine). Além destas duas, há o Conselho Superior de Cinema (CSC), que deve aprovar as políticas definidas pela SAv e pela Ancine. O Ministério da Cultura é criado em 1985 (Decreto nº 91.144/1985). Reconhecia-se, assim, a autonomia e a importância da área, até então tratada em conjunto com a educação. Em 1990, por meio da Lei no 8.028, o MinC foi transformado em Secretaria da Cultura, vinculada à Presidência da República. A situação do Ministério da Cultura foi revertida pouco mais de dois anos depois, pela Lei no 8.490, de 19 de novembro de 1992. É neste momento de ressurgimento do MinC que é criada a, então, Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual (SDAv), hoje Secretaria do Audiovisual (SAv). A Agência Nacional do Cinema (Ancine) é criada em 2001, pela Medida Provisória 2.228-1. A Ancine, autarquia especial, vinculada desde 2003 ao Ministério da Cultura, é o “órgão de fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica” (BRASIL, 2001). Com a Lei nº 12.485/2011, a Ancine amplia seu escopo de atuação, abrangendo competênListagem de Filmes Brasileiros Lançados - 1995 a 2014 (Ancine) Todos os dados apresentados foram extraídos do Sistema de Acompanhamento da Distribuição em Salas de Exibição (SADIS), cujas informações são fornecidas pelas empresas distribuidoras registradas na Agência Nacional do Cinema. Consolidação dos dados realizada em 09/01/2015. Publicado no Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA em 22/01/2016 4 Considerou-se longa-metragem lançado comercialmente em 2015 aquele cujo distribuidor tenha informado dados de bilheteria para a ANCINE, com data de estreia em salas de exibição entre 01 de janeiro e 31 de dezembro de 2015, independentemente do ano de produção. 2

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cias referentes ao serviço de acesso condicionado (tevê paga). Além disso, com a publicação da Lei, o pagamento da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) passou a ser devido também pelas concessionárias, permissionárias e autorizadas dos serviços de telecomunicações5. O produto da arrecadação será destinado ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), para aplicação nas atividades de fomento relativas ao desenvolvimento do setor audiovisual no Brasil. Vale ressaltar, por último, que a Lei 12.485/2011 estimula a produção audiovisual nacional e independente, pois cria cotas nacionais de conteúdo obrigatórias nas tevês por assinatura. Em 2001, O Conselho Superior do Cinema (CSC) é criado, pela Medida Provisória 2.228-1/2001. O Decreto nº 4.858, de 13 de outubro de 2003, dispõe sobre a composição e funcionamento do Conselho Superior do Cinema, e dá outras providências. Em 2009, o CSC é transferido da Casa Civil para o MinC, por meio do Decreto nº 7, de 9 de novembro de 2009. O CSC tem como uma de suas competências “aprovar políticas e diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, com vistas a promover sua auto-sustentabilidade” (BRASIL, 2001). Durante todo esse tempo, SAv e Ancine vinham trabalhando com os seus públicos separadamente, seguindo suas competências definidas por lei e segmentadas ao longo dos anos. As políticas públicas federais para o audiovisual, porém, podem ser aperfeiçoadas e ampliadas, a partir da integração das ações e dos recursos das suas duas principais instâncias. Em 2014, pela primeira vez, foram lançadas duas chamadas públicas da Secretaria do Audiovisual com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) – para a produção de filmes de longa-metragem de baixo-orçamento (R$ 12 milhões) e de documentários (10 milhões)6. No início de 2016, foram lançados mais três editais para a produção de 22 longas-metragens de baixo orçamento: ficção (10), infantil (9) e BO Afirmativo (3). O audiovisual é um setor complexo, pois é, ao mesmo tempo: arte, meio de comunicação, entretenimento, mercado etc. Assim, as políticas públicas do audiovisual devem fortalecer tanto o mercado como os circuitos e segmentos mais simbólicos. Nestes últimos, é fundamental a continuação de políticas afirmativas – tendo a Secretaria do Audiovisual como o seu lócus gerencial. 3. EDITAL – TRANSPARÊNCIA NA POLÍTICA PÚBLICA A realização de seleções públicas é uma maneira direta de implementar políticas públicas. É uma forma de institucionalizar demandas do setor brasileiro e de dirimir desequilíbrios na produção audiovisual. A Condecine das empresas de telecomunicações passou por questionamentos judiciais, mas atualmente a liminar concedida às teles para suspender o seu pagamento foi derrubada. 6 CHAMADA PÚBLICA SAV/MINC/FSA Nº 03, DE 30 DE SETEMBRO DE 2014 (Longa BO) e CHAMADA PÚBLICA SAV/MINC/FSA Nº 04, DE 30 DE SETEMBRO DE 2014 (Longa DOC). 5

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As seleções públicas têm sua base legal na Lei nº 8.666/1993, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública. Em seu artigo 4, § 4º, a referida lei define: concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial com antecedência mínima de 45 dias. O Ministério da Cultura lançou, em 2009, a Portaria nº 29, que dispõe sobre a elaboração e gestão de editais de seleção pública para apoio a projetos culturais e para concessão de prêmios a iniciativas culturais no âmbito do Ministério da Cultura. Em seu artigo 1º, a Portaria 29 define: os editais de seleção pública para APOIO a projetos culturais e para concessão de PRÊMIOS a iniciativas culturais, no âmbito do Ministério da Cultura, observarão o disposto nesta Portaria, sem prejuízo das demais determinações legais. Desta forma, divide-se em duas modalidades a forma de incentivar projetos culturais audiovisuais por meio de editais: APOIO: incentivo ao desenvolvimento, à produção de uma obra/produto audiovisual. O que se tem é a ideia e o Ministério da Cultura aposta naquela ideia e acompanha o seu desenvolvimento. O pagamento é feito em parcelas. Não há cobrança de imposto sobre o valor. PRÊMIO: reconhecimento do valor artístico de uma obra/produto pronto. O pagamento é realizado em apenas uma parcela. Há cobrança de imposto sobre o valor. Todo ato de premiar/apoiar um determinado elo da cadeia audiovisual implica em um exercício institucionalizado para desenvolver o setor no país, sendo um componente fundamental de defesa da produção intelectual de cinema e audiovisual. Entre 1997 e 2011, a Secretaria lançou 55 editais, todos de ampla concorrência, sem segmentação de qualquer natureza (gênero, raça/cor). Em 2012, foi a primeira vez que a SAv lançou um edital afirmativo – o Edital de Apoio para Curta-Metragem – Curta-Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual, realizado em parceria com a Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR). O Curta-Afirmativo sofreu embargos legais, mas saiu vitorioso. Em 2014 a SAv lançou a segunda edição do processo seletivo. Em 2013, é lançado o Edital Carmen Santos. 3.1. Edital Carmen Santos O Edital Carmen Santos - Cinema de Mulheres 2013 – Apoio para Curta e Média-Metragem, foi lançado pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (SAv/MinC), em parceria com a Secretaria de Articulação Institucional e Ações Temáticas da Secretaria de Políticas

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para as Mulheres (SPM), e teve por objeto o apoio a obras audiovisuais cuja titularidade e direção sejam de mulheres, podendo ser ficção ou documentário, com a possibilidade de utilização de técnicas de animação, sendo: 10 obras audiovisuais de curta-metragem, de até cinco minutos, no valer de até R$ 45.000,00, e seis obras audiovisuais de média-metragem, de 26 minutos, no valer de até R$ 90.000,00. A escolha do nome do edital se deu em homenagem e para trazer à tona uma mulher tão importante para o cinema brasileiro e que, como muitas outras, passam despercebidas pela história oficial. Carmen Santos (1904-1952) nasceu em Portugal e viveu no Rio de Janeiro desde 1912. Estreou como atriz em 1919, no filme “Uruatu”, dirigido pelo norte-americano William Jansen. Contudo, ela não se ajustaria aos limites do papel de musa sedutora: assumiu as rédeas de sua carreira e engajou-se incansavelmente na construção de uma cinematografia nacional. Atuou diretamente na realização de seus filmes, escolhendo projetos, contratando diretores, produzindo, estrelando e dirigindo filmes e companhias. No percurso iniciado com Urutau (1919), de William Jansen, seguiu-se a realização de mais sete longa-metragens: Sangue mineiro (1929), de Humberto Mauro; Limite (1930), de Mário Peixoto; Onde a terra acaba (1933), de Otávio Gabus Mendes; mais três de Humberto Mauro - Favela dos meus amores (1935), Cidade mulher (1936), Argila (1942) -, e Inconfidência Mineira (1948), estrelado e dirigido por ela (PESSOA, 20027). O Edital traz dois pontos de incentivo ao cinema de mulheres: fomento ao protagonismo feminino na cadeia produtiva do audiovisual e estímulo à produção de obras audiovisuais que tratem de questões diversas sobre as mulheres. Assim, o edital tem como intuito construir uma política pública de mulheres e da cultura audiovisual de maneira transversal e estruturante, firmando-se como uma ação afirmativa de e sobre mulheres. “As obras audiovisuais deverão ser inscritas por pessoas físicas, mulheres, brasileiras natas ou naturalizadas, que se apresentem obrigatoriamente como diretoras, sendo facultativo o acúmulo de outras funções”. A questão da especificação da temática no edital foi elabora em parceria com a SPM e tem como base o Plano Nacional de Políticas para Mulheres. O PNPM 2013-2015 cita políticas audiovisuais três vezes. Na Linha de ação 8.5. é definido: “promoção do acesso das mulheres aos meios de produção cultural, às mídias e a programas de estímulo à produção cultural” (PNPM) e, mais especificamente, no item 8.5.6., é apontado como ação prioritária: Estimular a produção, difusão e distribuição de material audiovisual, livros, materiais educativos/informativos e outras produções culturais que abordem a presença das mulheres na história e na cultura, considerando as dimensões étnicas, raciais, de orientação sexual, de identidade de gênero, geracionais e das mulheres com deficiência (PNPM) (Grifo nosso). Texto para o programa “Carmen Santos”, Homenagem à atriz, produtora e diretora Maria do Carmo Santos Gonçalves (Carmen Santos) por ocasião dos cinquenta anos do seu falecimento. Centro Cultural São Paulo, de 10 a 15.12.2002. A autora é Ana Pessoa que também escreveu o livro Carmen Santos e o cinema dos anos 20.

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O Plano define como objetivo para a área cultural a valorização das iniciativas e da produção cultural das mulheres e sobre as mulheres. A temática foi questionada por cineastas que consideraram que essa não deveria ser tratada no edital. Como política pública conjunta da SAv/MinC e da SPM, nesta primeira ação direta para o cinema de mulheres, porém, foi importante manter o duplo fortalecimento, inclusive como análise de demanda de cineastas e de temas a serem tratados. A temática deve abordar de forma criativa e inovadora a construção da igualdade entre mulheres e homens, os direitos da mulher e de sua cidadania. Os conteúdos devem levar em conta a diversidade das mulheres nos meios urbano e rural (campo/floresta, indígenas, negras e povos tradicionais). Em relação ao campo “Detalhe a participação de cada profissional feminina no projeto, no desempenho das seguintes funções: produção, roteiro, direção de fotografia, direção de arte, direção de som e montagem. Será necessário a comprovação de cada profissional feminina por meio do Anexo 3”, está em conformidade com o subitem 5.12 do edital: Para promoção da participação feminina, será acrescido 0,5 (meio) ponto à pontuação final aos projetos por cada integrante da equipe do sexo feminino no desempenho das seguintes funções: produção, roteiro, direção de fotografia, direção de arte, direção de som, montagem. Outro ponto diferencial do edital é que a comissão de seleção foi toda composta por mulheres. O que indica a preocupação da SAv e da SPM na construção de avaliações que fortaleçam o protagonismo e a proximidade do local de fala. Assim, a avaliação das ideias de roteiros por mulheres cineastas e da área audiovisual complementa o duplo fortalecimento proposto pelo edital. Paralelamente, mas compartilhamos com a mesma política, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) lançou o Edital Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais. No edital da Funarte, foram selecionado 10 projetos, com o prêmio de R$ 70 mil. Em 2014, a Fundação repetiu o modelo do edital, lançando o Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais – 2ª edição, também com a seleção de 10 projetos inscritos por proponentes mulheres, no mesmo valor da edição anterior. O Edital Carmen Santos de Cinema de Mulheres 2013 foi publicado no dia 02 de julho de 2013, com inscrições abertas no mesmo dia, com encerramento previsto para o dia 19 de agosto. No dia 09 de agosto, a Secretaria do Audiovisual, com o intuito de atender todas as interessadas no Edital, publicou portaria prorrogando o prazo de inscrições até o dia 02 de setembro. Dessa forma, o Edital ficou com inscrições abertas por 61 dias. O Edital recebeu 417 propostas inscritas. Segue tabela com o número de inscrições por Estado:

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INSCRITOS

Estado Alagoas Amapá Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Santa Catarina São Paulo Sergipe Total

Qtd

2 2 5 19 12 26 5 9 1 4 2 35 4 2 21 7 76 3 22 17 139 4 417

Neste edital, no qual 16 propostas foram contempladas, São Paulo configura-se como o estado que mais teve propostas selecionadas, com nove projetos contemplados, seguido do Rio de Janeiro com três:

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Tabela dos selecionados, em ordem decrescente, do edital Carmen Santos, por Unidades da Federação Estados com mais selecionados 9 SP

1 a 3 selecionados RJ

3

MG AM RS

2 1 1

Nenhum selecionado 0 RO AC RR PA AP TO MA PI CE RN PB PE AL SE BA ES PR SC MS MT GO DF

0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

É interessante apontar a seleção de duas propostas de Minas Gerais, uma do Amazonas e uma do Rio Grande do Sul – mesmo dentro de um escopo de apenas 16 projetos selecionados. Os projetos apresentados por proponentes dos Estados Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins e com previsão de realização nessas localidades terão 1 (ponto) ponto acrescido à pontuação final. A desigualdade do acesso à produção audiovisual é enorme no país. As empresas produtoras localizadas no Rio de Janeiro foram responsáveis por 62 longas lançados comercialmente em 2015, o que corresponde a 48,4% da produção. Em seguida, estão as empresas de São Paulo, com 40 obras ou 31,3% dos lançamentos. As produções desses dois estados totalizam 102 títulos ou 79,7%, das obras lançadas (ANCINE, 2016). A Secretaria do Audiovisual e a Agência Nacional do Cinema devem trabalhar para dirimir essas discrepâncias, apostando em políticas públicas diferenciadas, afirmativas e regionalizadas. Segue tabela completa com os selecionados no edital Carmen Santos:

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Título da obra

Diretora

UF

Tipo/Gênero

Sinopse

Temática central

CURTAS-METRAGENS

Atadas

Mulher Movente

Tarsila Nakamura

Beatriz Taunay

SP

RJ

Documentário

Tendo em vista que submeter-se a agressões de qualquer tipo é, para a maior parte das pessoas, uma atitude irracional, este documentário relata depoimentos de algumas mulheres que foram agredidas por seus maridos, buscando compreender os diversos aspectos que motivaram a decisão de continuar com eles. O objetivo é criar empatia no espectador, fazer com que ele se coloque no lugar dessas mulheres e veja que, no fundo, essas histórias perpassam por fragilidades - sobretudo - humanas.

Violência contra a mulher.

Documentário

O curta propõe um diálogo entre a narrativa poética e imagens documentais. Uma voz em off narra um texto sobre o feminino que acompanha as imagens. É na caminhada de uma mulher e no ir e vir do mar que serão inseridas fotos documentais, tanto de mulheres anônimas, como de mulheres conhecidas, que fazem parte do nosso caminho de conquistas, não só de igualdade perante os homens, mas na luta por uma cidadania plena.

Trajetória de conquistas e reconhecimento das mulheres na história do país.

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Prelúdio

Julia Peres (Lia Jupter)

SP

Animação / Ficção

Como era gostoso o meu príncipe

Fernanda de Paula Silva

MG

Ficção

A Festa da Joana

Vera Vasques

SP

Ficção

17 a 20 de maio de 2016 Animação que conta a história de uma menina cuja família é marcada pela violência e que encontra na música um refúgio. Ela tenta sublimar uma realidade potente e cruel que não consegue ser alterada pela mãe. Essa história trata do empoderamento da mulher, no caso a mãe, que é inspirado pela filha, mulher de uma nova geração.

Violência, empoderamento da mulher, família.

Fábula de uma princesa que, enquanto passeava pelo lago, encontra uma rã. Esta diz ter sido enfeitiçada por uma Estereótipos de bruxa e só voltará a ser gênero, liberdade um príncipe se receber e empoderamento um beijo. A rã faz então da mulher. uma proposta machista e a princesa se esquiva de uma maneira engraçada e inesperada, porém, determinante. Joana quer fazer uma festa de aniversário temática, decorada com seu personagem favorito, o Batman. Mas encontra a resistência familiar e de seus colegas por ter escolhiEstereótipos de do um tema consideragênero, família. do masculino. O curta discute a instalação das noções de feminilidade e masculinidade entre as crianças através da visão de uma garota esperta e questionadora.

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Na minha sopa não

Mirela Kruel

RS

Ficção

Os anseios das cunhãs

Regina Lúcia

AM

Ficção

17 a 20 de maio de 2016 Celeste, ao chegar em casa e fazer uma sopa, se depara com uma situação de tensão que Violência contra exige uma escolha, uma a mulher e apoio ação. O filme provoca entre mulheres. uma reflexão sobre a máxima de que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Um curta sobre a prostituição, violência e exploração femininas, desencadeadas pelo advento da Zona Franca de Manaus, que motivou a migração especialmente de meninas do interior do Estado do Amazonas, atraídas pelo sonho de uma vida melhor na capital. O roteiro é baseado em um poema da jornalista Regina Violência contra a Melo, que traduziu de mulher e preconforma lírica a relação ceito em relação à dessas mulheres com o prostituição. ambiente da capital. O filme tenta traduzir o comportamento dessas mulheres que, em busca de sobrevivência, oportunidade e trabalho, acabam recorrendo à prostituição como opção de sustentação financeira e de liberdade, tendo que suportar a intolerância, o preconceito e a violência da exclusão social.

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Família Brasileira: Retratos da mulher 1840 – 1960*

Patrícia Monte-Mór A. de Morais

RJ

Fábula de vó Ita

Thallita Oshiro Meireles E Joyce Prado

SP

Papéis de Adélia

Ludmilla Rossi de Oliveira

SP

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A partir de acervo de imagens fotográficas de 1840 a 1960, o filme traça a história da mulher e seu papel social na família brasileira. A construção da igualdade entre mulheres e homens vai sendo Trajetória de conquistas das mupercebida numa trajetóDocumentário ria de longa duração e lheres ao longo subjetividade. A mulher da história. retratada deixa-nos entrever papéis sociais, temas privilegiados, posições corporais, sexualidade, afetividade, relações sociais, apontando para novos rumos de sua cidadania. Vó Ita certa vez percebe que sua neta enfrenta problemas de preconceito na escola que mexem com a sua autoestima. Racismo e emFicção, com Ela usa sua sensibilidatécnicas de ani- de e experiência para, poderamento da mulher da negra. através da magia da fámação bula, mostrar para a menina que não há nada de errado em ser diferente e que existem infinitas formas de beleza. Uma atriz iniciante interpreta Amélia. Anos se passam, sua carreira vai se consolidando e passando por várias personagens, cada papel Estereótipos de mostra um novo mogênero e EmpoFicção mento da trajetória da deramento da mulher na sociedade. mulher ao longo Décadas depois, ela é da história. convidada a atuar novamente em Amélia, mas agora os tempos são outros e a história está bem diferente.

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MÉDIAS-METRAGENS

Ou isso ou aquilo

De menino, de menina

Hadija Chalupe

Angélica Valente

RJ

SP

Ficção

Dona Nilzete descobre em uma pesquisa escolar de sua filha que as estátuas da cidade onde vive são todas dedicadas a homenagear homens. Ela então se engaja em um projeto político que estabelece que 30% dos monumentos teriam que representar heroínas locais, dentre índias, duquesas e parteiras. Para isso, Dona Nilzete vai enfrentar vários obstáculos.

Estereótipos de gênero, papel da mulher na história do país.

Documentário

Ambientado em uma escola pública de educação infantil da cidade de São Paulo, o filme acompanha crianças de 5 a 6 anos de uma mesma sala de aula em brincadeiras direcionadas para provocar sua imaginação sobre os papéis tradicionalmente vinculados a meninos e meninas. Uma reflexão sobre a construção precoce da desigualdade entre homens e mulheres.

Estereótipos de gênero.

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A batalha das colheres

Fabiana Leite

MG

Ficção

Quem matou Eloá?

Lívia Perez

SP

Documentário

Viver de mim

Juily Manghirmalani

SP

Documentário

17 a 20 de maio de 2016 O filme conta a história de Salomão, um homem truculento que, depois de atacar a companheira, foge para a casa da amante: uma mulher que não cederá aos seus abusos. “A batalha das Violência contra colheres” é uma revolta a mulher. protagonizada pelas mulheres de um pequeno lugarejo que se unem como podem para combater a máxima de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Documentário que propõe reflexão sobre a atuação da mídia televisiva nos casos de violência contra a mulher. Focado em um caso específico, o filme é uma oportunidade de analisar Violência contra a a cobertura televisiva do mulher e o papel sequestro e da morte da da mídia. jovem Eloá utilizando as imagens reais transmitidas na época. É a possibilidade de pensar uma alternativa midiática na construção de igualdade entre homens e mulheres. Discussão sobre a sexualidade feminina através da visão de seis Sexualidade entrevistadas mulheres, feminina. que possuem as mais diversas formas de expressão sexual.

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Corpo Manifesto

Carol Araújo

SP

Documentário

17 a 20 de maio de 2016 Documentário sobre os movimentos feministas do século XXI, acompanhando todas as etapas da Marcha das Vadias e da Marcha Mundial das Mulheres, grupos de manifestantes que lutam pela liberdade e pelo respeito às mulheres. O documentário investiga o que motiva os movimentos feministas nos dias de hoje, quem são e o que reivindicam as mulheres que saem às ruas para protestar, qual a importância do movimento, quais devem ser suas conquistas nos próximos anos e qual o legado que deixarão para as próximas gerações.

Movimentos e marchas feministas.

* A proponente do curta-metragem Família Brasileira pediu prorrogação de prazo e ainda não entregou o material final.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O setor audiovisual reflete o cenário no qual a nossa sociedade ainda vive – de desigualdades – de gênero e de região. Neste artigo relatamos uma ação pontual, porém, inovadora na política pública audiovisual. Ação esta que contempla o cinema de mulheres de uma forma profunda – com a exigência de diretoras mulheres, com a temática sobre mulheres, com pontuação extra para equipe técnica feminina e com uma comissão de seleção 100% de mulheres. Mesmo com a determinação de temáticas sobre mulheres – o que foi inclusive alvo de críticas – os assuntos e formas de tratar os temas foram variados. As temáticas falam sobre violência, empoderamento, questões estereotipadas de gênero, sexualidade, funções sociais e políticas das mulheres, entre outras. Podemos identificar dramas, comédias, ficções, documentários, animações – trazendo à tona, inclusive, o questionamento sobre o que seria um “cinema de mulheres”. Algo que, apostamos, deve fugir de estereótipos de definições estabelecidas. Para possíveis futuras edições do Edital seria interessante debater com cineastas brasileiras a questão da definição da temática, mas, acreditamos, que para a primeira chamada pública a colocação do assunto – de forma ampla – no instrumento convocatório foi fundamental. Neste momento, ainda não avançamos no debate do que seria este “Cinema de Mulheres” – subtítulo

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do nosso edital e movimento que queremos aprofundar e disseminar8. Mas acreditamos que este seja um importante questionamento. No arranjo governamental do audiovisual, é a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura que assume o papel dessa política afirmativa – também contemplada nos editais de curta, média e longas afirmativos para cineastas negro. O impacto quantitativo da produção de 16 obras de curta e média-metragem ainda é pequeno mas a mudança é simbólica e estruturante, já que teve o intuito de dar protagonismo a mulheres cineastas e reforçar uma qualificação técnica de equipes de mulheres no setor audiovisual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS OCA/ANCINE, Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Agência Nacional do Cinema (OCA/ANCINE). Listagem de Filmes Brasileiros Lançados - 1995 a 2014. (Disponível em: http://oca. ancine.gov.br/filmes_bilheterias.htm. Acesso: 13 de fevereiro de 2016). OCA/ANCINE, Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual da Agência Nacional do Cinema (OCA/ANCINE). Informe de Acompanhamento do Mercado. (Disponível em: http://oca.ancine.gov.br/ media/SAM/2015/Informe_preliminar_2015.pdf. Acesso: 13 de fevereiro de 2016). LAUZEN, Martha M. The Celluloid Ceiling: Behind-the-Scenes Emplyment of Women on the Top 100, 250, and 500 Films of 250. (Disponível em: http://womenintvfilm.sdsu.edu/files/2015_Celluloid_ Ceiling_Report.pdf. Acesso: 13 de fevereiro de 2016). Brasil. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2013. 114 p. : il. (Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2012/08/SPM_PNPM_2013.pdf. Acesso: 11 de fevereiro de 2016). PESSOA, Ana. Sob a luz das estrelas: relembrar Carmen Santos. Fundação Casa de Rui Barbosa 2002. (Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_AnaPessoa_Sob_luz_ estrelas_relembrar_CarmenSantos.pdf. Acesso: 12 de fevereiro de 2016). MIRANDA, Luiz F. A., Dicionário de Cineastas Brasileiros. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura. Art Editora. 1990. NEALE, Steave. Genre and Hollywood. USA: Sightlines. 2009. BRASIL. Medida Provisória n. 2.228-1, de 6 de setembro de 2001. Estabelece princípios gerais da Política Nacional do Cinema, cria o Conselho Superior do Cinema e a Agência Nacional do Cinema - ANCINE, institui o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional - PRODECINE, autoriza a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional - FUNCINES, altera a legislação sobre a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional e dá outras providências. (in: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2228-1.htm). Em março ocorrerá a Mostra Edital Carmen Santos Cinema de Mulheres e Filmes Convidados, parceria entre a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e o Centro Cultura Banco do Brasil (CCBB), em Brasília.

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A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA AFRO-BRASILEIRA EM SANTA CATARINA: NOTAS SOBRE UM PROCESSO INCIPIENTE Lisandra Barbosa Macedo Pinheiro1 Hilton Fernando da Silva Pinheiro2 RESUMO: Esta comunicação visa analisar o processo de implementação de políticas públicas para a cultura afro-brasileira em Santa Catarina, a partir de sua adesão ao Sistema Nacional de Cultura em 2010, que prevê prerrogativas, estratégias e ações em diversas áreas culturais, entre as quais, a cultura afro-brasileira. Porém em Santa Catarina percebemos algumas concepções que dificultam a valorização da cultura afro-catarinense, concepções geralmente associadas a uma visão eurocentrada de cultura por parte de gestores culturais, que acabam dificultando a criação e a manutenção de políticas para essas populações. Ainda que se note certo crescimento da mobilização por parte de algumas instâncias de articulação com o poder público, a representatividade e participação efetiva da cultura afro-brasileira em Santa Catarina na implementação das políticas culturais em âmbito estadual ainda é incipiente. PALAVRAS-CHAVE: Santa Catarina, Políticas Culturais, Cultura Afro-brasileira

No âmbito da política nacional para a cultura, temos um panorama de fomento às artes populares que remontam ainda à primeira metade do século XX, no governo Vargas. Porém, institucionalmente, as tratativas dessas políticas eram elaboradas e fomentadas por instituições que sempre estiveram associadas às outras temáticas como Educação e Desporto. O Ministério da Cultura, enquanto órgão específico para a administração da cultura, só foi criado em 1985, pelo Decreto 91.144 de 15 de março do referido ano. Era uma forma de reconhecer a importância da cultura no desenvolvimento social, a partir da autonomia de sua gestão (CALABRE, 2009).

Doutoranda em História do Tempo Presente na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/UDESC e ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Analista Técnica em Cultura na Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte/SC. lisamacedo@ gmail.com 2 Mestre em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Graduando em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. Técnico em Assuntos Educacionais na Secretaria de Cultura da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. [email protected] 1

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As políticas formuladas pelo Estado ao longo do século XX (ou mais especificamente até o período de abertura política, entre as décadas de 1970 e 1980), priorizou a criação de serviços direcionados ao fomento das áreas da música, patrimônio cultural, artes visuais e fortalecimento e criação de equipamentos culturais. Porém houve pouca atuação do movimento negro, em articulação com o Estado, na elaboração de diretrizes e ações que favorecessem as práticas culturais afro-brasileiras (SANTOS 2005). Na década de 1980, com o processo de redemocratização do país, a atuação e aproximação de instituições do movimento negro com o Estado permitiram a criação e implementação de políticas que permitissem uma espécie de ‘reparação de dívida histórica’ com grupos sociais marginalizados. Nesse período algumas ações de valorização da cultura afro-brasileira foram realizadas em diversos aspectos, inclusive com a criação da Fundação Cultural Palmares, em 1988, que tem por finalidade promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos a partir da influência das culturas de matriz africana no desenvolvimento da sociedade brasileira Mas ainda faltava mecanismos que possibilitassem maior contato da sociedade civil com o governo. E este deveria se estabelecer através de instrumentos de controle, de deliberação e articulação das políticas para a cultura afro-brasileira, como os conselhos, por exemplo. No âmbito federal, o Conselho Nacional de Politica Cultural teve sua última reestruturação realizada em 2005, na gestão do governo Lula, porém somente no final de 2012 - e ainda com muitas dificuldades de articulação regional - constituiu-se e elegeu-se o primeiro Setorial de Culturas Afro-Brasileiras do CNPC composto por 25 representantes de todas as regiões administrativas do Brasil. A criação deste conselho ampara-se por um dos principais marcos legais existentes para promoção, fruição e salvaguarda da cultura afro-brasileira, a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988, que tem como um de seus Princípios Fundamentais (no inciso IV do artigo 3º) “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”. Dentre os marcos regulatórios fundamentais para a valorização da cultura afro-brasileira, instituídos nas últimas décadas encontramos o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 20 de julho de 2010) – importante legislação que embasa as políticas afirmativas, e a Lei 10.639/2003 (modificada pela Lei nº 11.645/2008), que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Também temos o Decreto Federal 6040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, criado pela Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO. Houve uma alteração no teor destas prerrogativas no Brasil, realizadas por meio do Decreto Legislativo 485//2006, da Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais assim como a Resolução referente à ação da Organização Internacional do Trabalho; Também foi desenvolvido o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentá-

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vel dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana coordenado pela SEPPIR/PR e que agrega diversas instituições como os Ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Meio Ambiente, Saúde, Educação, Cultura, Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Fundação Cultural Palmares, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)3. Ainda assim, percebemos nesse processo tão recente, que um dos maiores fatores que geram as dificuldades em implementar politicas publicas para cultura afro-brasileira é o racismo. De um modo mais amplo, podemos dizer que é a dificuldade que engendram os processos de valorização da cultura afro-diaspórica, que convive com a luta pelo deslocamento das disposições de poder em prol de uma hegemonia cultural, que até pouco tempo atrás eram travadas pelos conceitos de cultura popular e cultura erudita, que hoje se tornam muito mais complexas, pois os processos de legitimação identitária dos sujeitos já não se fazem mais por simples oposições binárias (centro x periferia; erudito x popular, etc.), pois os negros da diáspora também sofrem as influências de outras perspectivas relacionadas a gênero, sexualidade, ações político-partidárias e nacionalidade, entre outros (HALL, 2013). Mas ainda assim, a questão da diferença ainda é o mote das questões que envolvem racismo, assim com outras práticas discriminatórias. Pode-se dizer que a cultura negra na diáspora se utiliza de estratégias de poder marcadas pela diferença, como forma de promover o deslocamento das disposições de poder e também permitindo a valorização cultural a partir das perspectivas da negritude. Na definição de Kabengele Munanga, “Negritude e/ou identidade negra se referem à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanas que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sob o nome de negros. (...) na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não como parece indicar, o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas.” (MUNANGA, 2012, p. 20). Por isso é inegável a importância do movimento negro como uma das principais instâncias de articulação com o poder público e instituições culturais em prol da valorização da cultura afro-diaspórica. No Brasil, esse movimento pode ser percebido em diversas ações, não delegadas somente por coletivo de entidades negras como MNU e Unegro, mas também pela militância e articulação política engajada por intelectuais de formação política e acadêmica e personalidades negras (PEREIRA, 2008), assim como líderes e grupos religiosos de matriz africana e entidades Informações extraídas do Plano Setorial para Culturas Afro-brasileiras, formulado pelo Colegiado Setorial de Culturas Afro-brasileiras CNPC/Minc e Fundação Cultural Palmares/Minc - 2014. Documento disponível em http://www.portalafricas.com.br 3

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artístico-culturais. Diria, então, que essas articulações políticas são manifestações que se tornam formas de expressão nascidas do intercruzamento de várias experiências apreendidas em lugares diferentes (CARDOSO, 2012, p. 23). Também há a questão da apropriação cultural, hoje inerente à cultura popular em geral, e que no caso da cultura popular negra ainda é assunto tratado com cuidado e restrição inclusive no âmbito acadêmico. Como bem nos lembra Stuart Hall, a cultura popular enquanto forma dominante da cultura global acaba por se espaço da mercantilização, adentrando os circuitos do poder e do capital. O controle das narrativas e representações são administradas pelas burocracias culturais, de tal modo que acabam por se enraizar nas experiências populares, sendo defendidas em autenticidade e poder de uso, ao mesmo tempo que se tornam disponíveis para expropriação (HALL, 2013, p. 379). A cultura negra, então, se torna espaço contraditório: ao mesmo tempo em que buscam a legitimidade, autenticidade e protagonismo em suas manifestações, precisam dialogar e ocupar o espaço das culturas hegemônicas, seguindo pelos caminhos da mercantilização e dos usos de sua cultura. É um tema complexo que merece reflexão aprofundada, mas por ora não cabe aos propósitos desta comunicação. Porém, é importante lembrar que as evidências são mais que suficientes para provar a importância da cultura afro-diaspórica na fundação, sedimentação e difusão da cultura brasileira, oriunda dos povos de comunidades tradicionais de matriz africana. Dos povos Yorùbá, Fon e Bantu temos a matriz da cultura negra brasileira. Ainda que haja convivência com várias culturas no Brasil, os africanos deixaram traços fortes de sua identidade, percebido, sobretudo pelos modos de ver o mundo que resistem dentro de comunidades tradicionais, além de se perceber na historiografia, nas tradições, nas artes, técnicas de trabalho (modos de fazer e saberes), nas expressões e na comunicação, definindo sendo essenciais para definir uma identidade nacional (LOPES, 2011). O samba e suas vertentes, a capoeira, o jongo, o batuque de umbigada, a marujada, o maracatu, o carimbo, o frevo, o forró, a folia de reis, a congada, o marabaixo, o afoxé e tantas outras manifestações (SOUZA, 2007). A ancestralidade, a relação com a natureza, a oralidade a relação entre gerações, a relação comunitária, a importância da mulher negra nas comunidades tradicionais de matriz africana são também outros elementos definidores do que é cultura afro-brasileira. Ciente de todas essas premissas, o Colegiado Setorial de Cultura Afro-Brasileira do CNPC/Minc criou as cadeiras de Cultura Quilombola, Capoeira, Hip Hop e Povos Tradicionais de Matriz Africana no Conselho Nacional de Politicas Culturais, publicada no Diário Oficial da União com a Recomendação No. 6, de 31 de julho de 2013. Também foram pautados o racismo em todas as reuniões do Conselho Nacional de Politica Cultural de 2013 e 2014, uma delas com a presença da então Ilma. Ministra Luiza Bairros da Secretaria de Politicas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da Republica.

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Além da proposta de ampliação das cadeiras – proposta ainda não implementada – o primeiro Colegiado Setorial de Culturas Afro-Brasileiras já garantiu a participação de um representante da SEPPIR e vem organizando junto com a Fundação Cultural Palmares atividades para o fortalecimento de todas as culturas negras no Brasil. Uma delas, o Fórum de Cultura Afro-Brasileira realizado entre os dias 21 a 24/05/2014, na TEIA da Diversidade em Natal/RN. O Fórum debateu questões sobre a arte negra, juventude negra e protagonismo juvenil, tombamento de territórios tradicionais, mestres e mestras das culturas afro-brasileiras e marcos legais (PL 7447/2010, PL 1176/2011). Neste espaço contamos com a presença de cerca de 300 agentes, lideranças, artistas da cultura negra nacional. Os debates reverberam até hoje em todo Brasil e a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura – SCDC garantiu a criação de pelo menos um Ponto de Cultura Negra em cada região brasileira. Outra importante ação do Colegiado foi protagonizar, a partir de agosto de 2014, consultas públicas para elaboração do Plano Nacional Setorial para as Culturas Afro-Brasileiras. Foram realizados 20 debates públicos em 15 estados brasileiros. O Plano, porém ainda aguarda encaminhamentos para se institucionalizar. Em Santa Catarina, no entanto, esse processo é incipiente. No final de 2010 o Governo do Estado de Santa Catarina assinou o Acordo de Cooperação Federativa para institucionalização do Sistema Estadual de Cultura, modelo de gestão compartilhada entre os entes federados para fomento e apoio ao desenvolvimento da cultura em todo o território nacional. O Acordo de Cooperação Federativa, que visa estabelecer e orientar a instrumentalização necessária para o desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura foi publicado no DOU, seção 3, em 17/01/2011. Através deste acordo o Estado passou a aderir oficialmente ao referido Sistema. Este acordo teve duas renovações através de termos aditivos, em dezembro de 2011 para o exercício de 2012, e em dezembro de 2012 por prazo indeterminado, este último publicado no DOU, seção 3, em 07/03/2013. Ao assinar este acordo o Estado pactuou, entre outros compromissos, o de implantação e implementação do Sistema Estadual de Cultura, que é um modelo de gestão compartilhada entre os entes federados. O Sistema em questão propõe como um dos principais instrumentos de gestão o Plano Estadual de Cultura, e como uma das instâncias de articulação, pactuação e deliberação, o Conselho Estadual de Cultura. Para a execução do Acordo de Cooperação Federativa do Sistema e seus componentes, foi criada uma Comissão para Implementação do Sistema Estadual de Cultura, que criou um plano de trabalho que se pautou, inicialmente, na elaboração do Plano Estadual de Cultura, que passará a ser o instrumento norteador das políticas de cultura para o Estado. O Plano foi construído com base em discussões com participação do poder público e da sociedade civil, nos Fóruns Regionais

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de Cultura que aconteceram em 2012 e no Fórum Estadual de Cultura, que aconteceu nos dias 24 e 25 de junho de 2013, com a presença de representantes da área cultural de todo o Estado. No primeiro semestre de 2014, paralela à construção da minuta do Plano Estadual de Cultura, sua sistematização e encaminhamento para as demais instâncias do poder executivo, a Comissão iniciou a construção da minuta do Sistema Estadual de Cultura, que seria apresentado como uma nova minuta, porém dialogando com a minuta do Plano. A minuta foi apresentada para deliberação do Conselho Estadual de Cultura e também disponibilizada para consulta pública durante a segunda quinzena de julho de 2014, através do sítio eletrônico da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte. Após a Consulta Pública, a minuta do Sistema retornou para o Conselho, sendo revisada e encaminhada para das demais instâncias do poder executivo. Atualmente, o Governo do Estado de Santa Catarina, através da Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, está apresentando a proposta de uma minuta única, tratada como Lei Orgânica da Cultura, onde temos o Sistema Estadual de Cultura e seus componentes: Plano Estadual de Cultura, Conselho Estadual de Cultura e Sistema de Financiamento, entre outras prerrogativas. Esta versão ainda não foi disponibilizada para consulta pública, mas como servidores estaduais e federais na área da cultura, sabemos que esta minuta somente incorporou as redações das minutas que tramitavam separadamente, entre elas a do Plano Estadual de Cultura e do Conselho Estadual de Cultura, dois elementos que merecem nossa atenção pois seriam as duas instâncias de relevante importância para ter a cultura afro-brasileira representada também em Santa Catarina. Na redação do Plano Estadual de Cultura aprovado através de Plenária, com participação da sociedade civil e representantes do poder público catarinense, não vemos nenhuma menção específica à cultura afro-brasileira, somente menção às culturas tradicionais. Já com relação à nova legislação do Conselho Estadual de Cultura, dos representantes por setorial, a Comissão para Implementação do Sistema Estadual de Cultura apresentou ao Conselho a minuta em 2014, prevendo uma cadeira específica para cultura afro-brasileira, porém o Conselho, reunido em plenária, decidiu por alterar para uma cadeira que comtemplasse outras manifestações culturais, optando pelo nome de “Culturas Populares, Identidades e Diversidade”. Como percebemos, a questão da cultura afro-brasileira continua sendo irrelevante para estes representantes, pois não é tratada como prioridade ou vista como relevante o suficiente para ter uma cadeira específica na representação do Conselho. Tendo em vista este cenário da cultura afro-catarinense, no primeiro semestre de 2015 foi pensado no Observatório da Cultura Afro-brasileira em Santa Catarina, coordenado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB da Universidade do Estado de Santa Catarina. Trata-se de uma ação vinculada ao Programa de Extensão Memorial Antonieta de Barros, coordenada pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/UDESC tem por objetivo pesquisar,

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diligenciar, acompanhar, fiscalizar e colaborar com a implementação de políticas públicas para fomento, acesso e difusão da cultura afro-brasileira em Santa Catarina, principalmente no que se refere à produção cultural de artistas e produtores negros. Além disso, o Observatório visa a produção de pesquisas e produtos culturais a partir do acompanhamento da implementação de marcos regulatórios, programas e ações de incentivo e fomento à cultura afro-catarinense, e paralelamente a isso, orientar, capacitar e apoiar grupos, artistas e produtores culturais. A instituição do observatório é pertinente para que se efetive, na esfera estadual e municipal, as políticas públicas para a cultura afro-brasileira, sustentadas a partir da implementação do Sistema Nacional de Cultura, modelo de gestão das políticas de cultura que prevê, além do Plano Nacional de Cultura (ferramenta de gestão do Sistema), Planos Setoriais para as diversas linguagens artísticas e culturais, dentre elas, a cultura Afro-brasileira, cuja representatividade é garantida través da instituição do Colegiado Setorial de Cultura Afro-brasileira e de sua respectiva cadeira reservada no Conselho Nacional de Política Cultural. O Sistema Nacional de Cultura propicia um modelo de gestão pautado no ação conjunta com os Estados e Municípios, a partir da implementação de Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, que se estruturam de forma similar ao Sistema Nacional, respeitando a autonomia e as especificidades de cada ente federativos. Em Santa Catarina, no entanto, esse processo de implementação deste modelo de gestão da Cultura ainda está em fase de tramitação dos marcos regulatórios, que são, basicamente, a legislação referente ao Sistema e ao Plano Estadual de Cultura. O governo de Santa Catarina tem um Acordo de Cooperação Federativa assinado junto ao Ministério da Cultura, que prevê a implementação do referido sistema, sendo que a partir deste marco regulatório se efetivem as prerrogativas já estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, a ampliação do acesso à cultura, a valorização das comunidades tradicionais e/ou historicamente marginalizadas pelo sistema político e social brasileiro, além do fomento a projetos e ações de artistas e produtores culturais. Em se tratando de um momento importante para a cultura catarinense, como este, é importante que se acompanhe, dentro desse processo de implementação do Sistema, como estão sendo pensadas e valorizadas as culturas tradicionais e as manifestações culturas das populações de origem africana deste Estado. Paralelo ao monitoramento e apoio à implementação das políticas públicas para a cultura afro-brasileira, o Observatório também busca o apoio direto à produção cultura afro-brasileira em Santa Catarina, através parcerias com outros órgãos públicos e privados que atuem na área da cultura, para que sejam realizadas ações como criação de indicadores e informações culturais, mapeamento de equipamentos, instituições manifestações culturais de origem africana, estudos e produção de conhecimento sobre cultura afro-brasileira a partir de referenciais teóricos e pesquisas já publicadas, acompanhamento e assessoria para inscrição de editais de instituições públicas e privadas específicos para a área afim, elaboração de projetos, o auxílio à formação,

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capacitação e (re)produção das manifestações culturais, dentre outras ações a ser elencadas de acordo com as demandas e os direcionamentos preconizados pelas políticas públicas para a cultura afro-brasileira. São ações voltadas para a visibilidade e valorização das culturas de matriz africana em Santa Catarina, que sempre estiveram presentes, porém tratadas como “ínfimas” pelas políticas publicas. Não se trata de acrescentar uma contribuição étnica à cultura catarinense, como se houvesse uma cultura afro-brasileira homogênea e encerrada em capítulos esporádicos (MAMIGONIAN; VIDAL, 2013). A cultura afro-catarinense segue integrada aos costumes e às expressões culturais no estado, porém a sempre inviabilizadas pelas políticas públicas que valorizam a cultura de outros grupos e processos imigratórios, fomentando assim práticas de um racismo institucional. Sendo assim, acreditamos que, dentro das políticas de ações afirmativas, é importante colocar a cultura como mais um meio de combate ao racismo, a partir da participação dos atores culturais negros na construção do Plano Setorial de Cultura Afro-brasileira, e com ele adquirir recursos através de fundo específico, além do apoio à criação de espaços de participação popular e instâncias de controle e fiscalização, como os conselhos estaduais e municipais, além do fortalecimento das políticas de cultura considerando as especificidades das manifestações culturais de matriz africana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LIVROS E ARTIGOS CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: Dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2009. CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. A luta contra a apatia: Estudo sobre a instituição do movimento negro antirracista na cidade de são Paulo (1915 – 1931). Itajaí/NEAB: Casa Aberta, 2012. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC, RJ. 1889. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. 2ª Ed. Org.. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. LEITES, Marlene Hernandez. A Questão da Raça e da Diferença. Belo Horizonte: Nandyala, 2012. LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. 3ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. MAMIGONIAN, Beatriz G.; VIDAL, Joseane Z. História diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013. MOORE, Carlos. A África que incomoda. Sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos de Sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetória e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala. 2008. SANTOS, Jocélio Teles. O poder da cultura e a cultura do poder. Salvador: EDUFBA. 2005.

DOCUMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO ESTADUAL: Ata nº 09/2014 da Sessão Extraordinária do Conselho Estadual de Cultura, realizada em 13 de outubro de 2014. Disponível em http://conselho.cultura.sc. Ata nº 30/2014 da Sessão Extraordinária do Conselho Estadual de Cultura, realizada em 28 de outubro de 2014. Disponível em http://conselho.cultura.sc. Plano Estadual de Cultura - Caderno de Propostas. Florianópolis, 2013. Disponível em http://plano. cultura.sc..

SITIOS ELETRÔNICOS: Conselho Estadual de Cultura - http://conselho.cultura.sc Fundação Catarinense de Cultura/FCC - http://www.fcc.sc.gov.br Fundação Cultural Palmares - http://www.palmares.gov.br Ministério da Cultura - http://www.cultura.gov.br Plano Estadual de Cultura de Santa Catarina - http://plano.cultura.sc Portal Áfricas - http://www.portalafricas.com.br Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte - http://www.sol.sc.gov.br União de Negros pela Igualdade/Unegro - http://www.unegro.org.br/

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MAPEAMENTO NACIONAL DA DANÇA: OS AGENTES DA DANÇA E AS POLÍTICAS SETORIAIS Lúcia Helena Alfredi de Matos1 Gisele Marchiori Nussbaumer2

RESUMO: Este trabalho apresenta o contexto de surgimento, objetivos, etapas, aspectos metodológicos e resultados preliminares da 1ª etapa do “Mapeamento da Dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal”, pesquisa desenvolvida a partir de Termo de Cooperação Técnica entre a FUNARTE/MINC e a UFBA. O Mapeamento visa a identificar agentes da dança (indivíduos, grupos e instituições) que atuam com formação e produção artística em dança e, em sua 1ª etapa, em fase de conclusão, abrangeu oito capitais brasileiras de cinco regiões: Sul (Curitiba), Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro), Centro-Oeste (Goiânia), Nordeste (Salvador, Recife e Fortaleza) e Norte (Belém). PALAVRAS-CHAVE: dança, mapeamento, políticas culturais, políticas setoriais da dança..

Vivemos no Brasil, desde 2003, um amplo e ao mesmo tempo descontínuo debate nos segmentos culturais e artísticos sobre a necessidade de políticas públicas específicas para cada área e de representatividade nas instâncias consultivas do poder público que definem e planificam essas políticas. A gestão de Gilberto Gil (2003-2008) no Ministério da Cultura (MinC), continuada por Juca Ferreira (2008-2010), mudou o panorama das políticas culturais no país ao promover uma política pública baseada no diálogo com a sociedade. O Estado produtor dá lugar ao Estado articulador de políticas, programas e projetos com caráter mais estruturante, que estimulam uma maior participação e consideram não apenas a cadeia produtiva da cultura como toda a sua diversidade. A política cultural do governo federal tem a pretensão de tornar-se sistêmica e articulada através do Sistema Nacional de Cultura, o qual propõe a cooperação e atribuição de competências entre os entes federados na sua elaboração e Doutora em Artes Cênicas / PPG Dança - UFBA. Coordenadora do projeto Mapeamento da Dança. [email protected] 2 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas / PPG Pós-Cultura - UFBA. Vice-Coordenadora do projeto Mapeamento da Dança. [email protected] 1

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execução. Nesse contexto, estados e municípios passam também a se posicionarem de forma diferenciada no que se refere às políticas culturais estaduais e municipais, influenciados, sobretudo, pelo exemplo nacional. Uma das mais importantes mudanças ocorridas nas políticas culturais foi o MinC ter adotado uma compreensão mais ampla de cultura, a partir de três visões: simbólica, cidadã e econômica. Como ressalta Isaura Botelho (2007), o fato de o MinC adotar esse conceito mais amplo teria a vantagem de possibilitar que as instituições a ele vinculadas pudessem conduzir e se dedicar mais as políticas específicas. Um dos principais meios a serem utilizados para isso são as Câmaras Setoriais correspondentes às diversas expressões artísticas, que mobilizam cada setor. Isso porque essas câmaras têm como objetivo promover um amplo processo de discussão sobre políticas e planos, estabelecer prioridades e possibilitar “um processo de diálogo contínuo para a construção e avaliação de políticas públicas a serem conduzidas pela instituição responsável pelas artes no âmbito do Ministério, que é a Fundação Nacional de Artes” (BOTELHO, 2007, p.130). Em 2004, com a elaboração da proposta do Sistema Nacional de Cultura foram instauradas as Câmaras Setoriais3, dentre elas a de Dança, como um espaço de participação da sociedade civil, as quais foram formadas por representantes da área eleitos pelos seus pares, especialistas convidados e representantes governamentais. A partir desse ano, a Câmara Setorial de Dança inicia um diagnóstico da área, de forma empírica, a partir das experiências de seus membros e de informações obtidas nos fóruns da classe, indicando a necessidade de levantamento de dados do setor e propondo diretrizes e ações para a área. Esse trabalho culminou com a estruturação da versão preliminar do Plano Setorial da Dança (PSD), em 2009, o qual foi referendado na Pré-Conferência Setorial de Dança4, em 2010, e cuja versão final foi concluída posteriormente pelo Colegiado. O PSD apresenta diretrizes e ações para a cadeia produtiva da dança em consonância com os eixos do Plano Nacional de Cultura (2009). No eixo IV (Ampliar a participação da cultura no desenvolvimento econômico sustentável), em sua segunda diretriz, apresenta a seguinte proposta: “realização de mapeamento da área da dança, de forma a identificar, estatisticamente, os diversos elos da cadeia produtiva, com estabelecimento de mecanismos para obtenção de dados sobre a economia da dança e seus reflexos na economia da cultura” (PND, 2010, p.10). Para essa proposta, faz-se necessário, entretanto, articular experiências anteriores com as necessidades atuais de uma pesquisa de mapeamento. Pioneiras pesquisas de levantamento realizadas na área da dança (Rede Stagium/SESC, 2001; Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança, 2000-2001; Cadastro de Dança FUNARTE, As Câmaras Setoriais foram transformadas em Colegiados, em 2008, e passaram a fazer parte do Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC), o qual também foi reformulado. 4 As Pré-conferências foram realizadas pelo MinC, em 2010, como etapa preliminar da IIª Conferência Nacional de Cultura (CNC). 3

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2009), em sua maioria originadas na iniciativa privada, tiveram como foco o cadastramento dos agentes culturais e instituições atuantes, como coreógrafos, companhias e escolas. Essas pesquisas trouxeram uma importante contribuição para a identificação dos agentes culturais da área, mas não tiveram como meta a coleta de dados que gerassem o levantamento de aspectos econômicos e sociais. Por outro lado, os primeiros indicadores da área cultural no âmbito governamental foram levantados através da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) (IBGE; MINC, 2006), cuja coleta de dados foi feita a partir de três focos: Fortalecimento Institucional e Gestão Democrática; Infra-Estrutura e Recursos Humanos; e Ações Culturais. Os dados coletados no MUNIC 2006 foram compilados e organizados pelo Ministério da Cultura, por área artística e cultural, no documento “Cultura em Números: anuário de estatísticas culturais” (MINC, 2009). Os resultados foram reveladores para a dança, pois apresentaram informações inéditas para a área, como: 56,1% dos municípios brasileiros possuem grupos artísticos de dança, sendo essa a segunda manifestação artístico-cultural mais disseminada no Brasil, ficando atrás apenas do artesanato; dos 3.123 grupos de dança existentes no Brasil, o Nordeste possui a maior concentração, com 1.026 grupos; 35,5% dos municípios brasileiros revelaram terem festivais de Dança, sendo que o Estado de Santa Catarina é o que apresenta a maior concentração de municípios que possuem festivais (60,75%), seguido do Acre e Amapá; 34,8% dos municípios brasileiros possuem concursos de dança e os estados que possuem um maior percentual de municípios com essa atividade são Roraima (66,67%), Acre (63,64%) e Amazonas (58,06%); 30,80% dos municípios brasileiros declaram possuírem escolas, cursos ou oficinas de dança, com os maiores percentuais na região Sudeste e Sul. Através desses dados nota-se que a dança se faz fortemente presente no cenário cultural brasileiro, mas essas informações são insuficientes para uma análise mais profunda da área, que desvele as diferentes configurações e modos de organização da dança. É nesse contexto então, de profundas mudanças nas políticas culturais brasileiras, de maior participação social e da necessidade de dados e indicadores que balizem e contribuam com essas políticas que surge a proposta de realização de um mapeamento nacional da dança. 1. O MAPEAMENTO DA DANÇA E A PERSPECTIVA DE UM DIAGNÓSTICO DA ÁREA O Colegiado Setorial de Dança, como órgão consultivo do Conselho Nacional de Políticas Culturais do MinC, em seu Regimento Interno, prevê no artigo terceiro como uma de suas competências “debater, analisar, acompanhar, solicitar informações e fornecer subsídios ao CNPC para a definição de políticas, diretrizes e estratégias relacionadas ao setor de dança”,

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bem como “propor e acompanhar estudos que permitam identificação e diagnósticos precisos da cadeia produtiva, criativa e mediadora relacionada ao setor”. Em 2010 esse Colegiado definiu como ação prioritária, dentre as diretrizes presentes no Plano Setorial da Dança, a realização de um mapeamento nacional da dança. Nesse mesmo ano, a reivindicação do Colegiado para a realização do mapeamento foi aprovada pelo Comitê de Circo, Dança e Teatro do Fundo Nacional de Cultura (FUNARTE/MinC); entretanto, essa ação não pode ser contemplada no orçamento de 2011. Mediante interesse da FUNARTE, no início de 2012 foi encaminhado novamente o projeto de pesquisa “Mapeamento da dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal”5, para ser realizado via convênio de cooperação técnica com a UFBA e, principalmente por ter sido um período de finalização de mandato, o termo de cooperação novamente não foi efetivado. Em reunião realizada no Dia Internacional da Dança, 29 de abril de 2014, com a então Ministra Marta Suplicy, os representantes do Colegiado Setorial de Dança trouxeram à tona mais uma vez a questão do mapeamento e a Ministra assumiu publicamente compromisso com a destinação de recursos para efetivação da primeira etapa desse mapeamento. Diante desse cenário, o Colegiado Setorial de Dança do CNPC solicitou à UFBA a retomada do projeto e do termo de cooperação técnica. Através de articulação do Grupo de Pesquisa PROCEDA – Processos Corporeográficos e Educacionais em Dança, vinculado a Escola de Dança da UFBA, foi então reestruturado o projeto, sendo definida para a 1ª etapa a investigação de oito capitais, em cinco regiões do Brasil: SUL (Curitiba), SUDESTE (São Paulo e Rio de Janeiro), CENTRO-OESTE (Goiânia), NORDESTE (Salvador, Recife e Fortaleza) e NORTE (Belém). Para tanto, foi formada uma rede nacional de pesquisadores pertencentes às seguintes universidades, além da UFBA: UNESPAR Campus Curitiba II, UNESP, UFRJ, UFPE, UFC, UFPA, UFG, IFG e UPE. Estiveram envolvidos nessa etapa do Mapeamento 22 pesquisadores, um técnico e 35 alunos de graduação, oriundos de dez universidades públicas. Ao se objetivar um diagnóstico preliminar da área da dança, mais especificamente quanto aos campos da formação e da produção artística, através de uma pesquisa de levantamento, seus potenciais resultados são parte significativa do contexto observado e operacionalizam conceitos cujo interesse pode ser tanto teórico, quanto programático. Nessa ótica, as informações coletadas, referenciadas empiricamente, são importantes aspectos metodológicos que informam não Em 2011, esse projeto foi readequado para ser aplicado como um piloto na pesquisa “Mapeamento dos Campos Artístico e Formação em Dança em dois Municípios da Região Metropolitana de Salvador (RMS): Lauro de Freitas e Camaçari”, financiada pela FAPESB/CNPQ. Foi nessa oportunidade que o questionário quanti-qualilitativo foi elaborado por Lúcia Matos e Teresa Oliveira (2012), tendo sido o mesmo adaptado em 2015 para a pesquisa “Mapeamento da Dança nas Capitais Brasileiras e no Distrito Federal – 1ª etapa: oito capitais, em cinco regiões do Brasil” (cooperação FUNARTE/UFBA) pelas pesquisadoras Lúcia Matos, Gisele Nussbaumer, Daniela Amoroso e Cláudia Malbouisson.

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só sobre a realidade social como também apontam seus impactos e possibilidades de mudanças. São informações que possibilitam um importante diagnóstico nacional do campo da dança, que podem servir de embasamento para as políticas setoriais da área. Os objetivos da 1ª etapa da pesquisa “Mapeamento da dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal” são amplos, uma vez que se pretende: mapear, via um levantamento de dados secundários e posterior cadastramento on-line, indivíduos, instituições e grupos, companhias e coletivos de dança atuantes nas oito capitais brasileiras selecionadas; levantar, analisar e descrever quali-quantitativamente aspectos das dimensões social, econômica e artística da dança, a partir da análise de três tipologias de questionário (indivíduos, instituições e grupos, companhias e coletivos); publicizar um banco de dados descritivo do perfil de atuação dos agentes da dança atuantes nas oito capitais, que permitirem a divulgação de seus dados básicos; apresentar um relatório analítico dessa primeira etapa, incluindo uma triangulação dos dados encontrados com o Plano Setorial da Dança, com vistas a avaliar a abrangência de suas diretrizes e ações. Vale ressaltar que o “Mapeamento da dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal” não se configura como um censo, já que este tipo de pesquisa prevê que toda a população seja pesquisada. Por não haver uma população pré-definida da dança, a pesquisa caracteriza-se como de levantamento, atingindo uma ampla e diversificada amostra daqueles que se auto-identificam como agentes da dança. Ao aderirem à segunda fase da pesquisa, via o questionário on-line, autorespondente e anônimo, esses agentes contribuem com o levantamento de aspectos relacionados à formação e produção artística da dança, com dados que abrangem a dimensão social, econômica e artística dos respondentes. Ainda no que se refere aos aspectos metodológicos esta é uma pesquisa de método misto (CRESWELL, 2007), com a convergência de dados quantitativos e qualitativos. Nesta primeira etapa6, inicialmente foi realizado um levantamento de dados secundários, a partir de dados existentes em diversas fontes ou banco de dados sobre indivíduos, instituições e grupos, companhias ou coletivos de dança, de cada capital investigada. Em seguida, foi efetivada a pesquisa de campo, considerando como unidades de investigação os agentes da dança que atuassem há pelo menos dois anos na área, em uma das oito capitais investigadas, identificando indivíduos, grupos e instituições. Por se tratar de uma pesquisa em rede, com o uso de procedimentos e metodologias definidas pela coordenação nacional, foram realizadas no período anterior à pesquisa de campo, reuniões virtuais e presenciais com os pesquisadores e estudantes de cada Núcleo, visando a compreensão dos aspectos teóricos-metodológicos da pesquisa e o treinamento para uso dos instrumentos de investigação. 6

O termo de Cooperação Técnica FUNARTE/MINC e UFBA abrange apenas a primeira etapa.

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No período de maio a agosto de 2015, foi realizada a pesquisa de campo, via envio de e-mails aos potenciais participantes visando o preenchimento de dados cadastrais, e o envio de um segundo e-mail da pesquisa com um link para o(s) questionário(s) on-line. Vale ressaltar que além das ações por e-mail e redes sociais, foram realizadas ações presenciais, denominadas plantões, visando identificar locais de menor acesso a essas redes comunicacionais e/ou locais com grande aglomeração de agentes da dança. Além disso, a coordenação nacional realizou palestras abertas ao público, em cada capital mapeada, visando apresentar e esclarecer dúvidas sobre o projeto. O cadastro foi efetivado pelo site www.mapeamentonacionaldadanca.com.br, incluindo dados de identificação e descritivo da área de atuação do respondente. Os questionários foram organizados em três tipologias (indivíduos; grupos, companhias ou coletivos; instituições) e inseridos no sistema Lime Survey, um software livre que possibilita a construção de questionários on-line. A organização dos questionários inclui de sete a oito blocos e, no caso do questionário de indivíduos, está assim organizado: 1. Adesão à pesquisa, no qual é verificada a pertinência do respondente ao perfil da pesquisa, a idade mínima de 16 anos e dado o de acordo ao Termo de Consentimento; 2. Perfil do respondente; 3. Perfil profissional; 4. Vinculação profissional; 5. Formação em dança; 6. Produção artística; 7. Políticas públicas e participação social; 8. Gestão da comunicação e informação. Após a coleta dos dados primários foi realizada a categorização dos dados qualitativos, a análise dos dados quantitativos e a geração de frequências e tabelas, tarefa executada pela equipe da coordenação nacional7. Neste momento, encontram-se em processo de finalização os textos analíticos, visando a publicação dos resultados da pesquisa. 2. OS AGENTES DA DANÇA E AS POLÍTICAS SETORIAIS: RESULTADOS PRELIMINARES Na primeira etapa do “Mapeamento da dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal” 5.212 indivíduos da dança, de oito capitais brasileiras, aderiram ao cadastro (1º passo), sendo que 83,65% deles acessaram o link enviado por e-mail para responder o questionário. Para a análise foram considerados apenas os questionários que foram preenchidos até o último bloco de questões. Deste modo, foram validados 2.623 questionários individuais, assim distribuídos: 426 de Belém, 328 de Curitiba, 223 de Goiânia, 227 de Fortaleza, 281 de Recife, 516 do Rio de Janeiro, 310 de Salvador e 312 de São Paulo.

Fizeram parte da equipe da coordenação nacional, nessa etapa, as pesquisadoras Lúcia Matos, Gisele Nussbaumer, Cláudia M. Andrade, Daniela Amoroso e Verônica Ferreira, bem como os estudantes Fernanda Andrade, William Gomes, Ingrid Melo e Pierre Malbouisson. 7

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Gráfico 1 : Quantitativo de cadastros realizados e questionários validados, por capital 1200 1000 800

1047 792

600

745

637 426

403 363 328 227 223

400

543

682

516 310

281

312

200

Sã o

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0



Cadastros Questionários validados

Fonte: Mapeamento da Dança – 1ª etapa (2016)

Neste artigo analisaremos apenas questões fechadas e de múltiplas alternativas, relacionadas ao “Perfil do respondente” (bloco2) e “Políticas públicas e participação social” (bloco7). Ao analisar a faixa etária dos respondentes do questionário para indivíduos da dança, tem-se como idade média 31,39 anos. Em uma questão aberta, a maioria, 64,5% desses indivíduos, se apresenta como do gênero feminino e 31,9% como do masculino. Vale ressaltar que apenas 0,6% se autodenominam fora desse par heteronormativo, adotando sete nomenclaturas distintas e outros 3% das respostas foram classificadas como “não se aplica”. Em relação à cor ou raça, foram adotadas definições propostas pelo IBGE e incluída a possibilidade de auto-declaração de outra cor ou raça, resultando nos seguintes dados: 44,3% dos respondentes indicam a opção branca; seguida de parda, com 33,6%; e de preta, com 16,1%. Os demais 6% estão distribuídos entre amarela, indígena, mestiça, afrodescendente, morena e negra e 0,4% das respostas foram enquadradas como “não se aplica”. Quanto ao estado civil, um percentual significativo, 69,9%, afirma serem solteiros(as), 24,2% casados(as) ou com união estável, 7% viúvos(as) e 5,2% desquitados(as) ou divorciados. É significativo o percentual dos respondentes que não têm filhos: 73,6%. No que tange a escolaridade, 25,2% possuem nível superior completo ou incompleto (exceto dança), 13,2% especialização completa ou incompleta (exceto dança) e 16,2% possuem ensino médio completo. Na formação específica em Dança, 17,5% dos respondentes possuem nível superior completo ou incompleto em dança, 9% pós-graduação stricto sensu - até doutorado completo em dança, 5,5% tem curso profissionalizante em dança e outros 4,1% especialização completa ou incompleta em dança. Quanto à faixa de renda familiar mensal bruta, 53,3% dos respondentes informaram que recebem de 1 a 2 salários mínimos e 15,3% de 2,1 a 5 salários mínimos, correspondendo essas duas faixas de renda a mais de 60% dos respondentes. 1276

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Considerando-se o bloco de perguntas relacionadas a “Políticas Públicas e Participação Social” é interessante notar que apenas 25,5% dos indivíduos que responderam ao questionário do mapeamento participam de associações, fóruns ou de outra(s) forma(s) de organização da classe de dança, os demais 74,5% não participam, o que demonstra que ainda é necessária uma maior mobilização e organização da área da dança. Um percentual maior, 43,2%, no entanto, possui registro profissional no Sindicato dos Artistas e Técnicos do Espetáculo (SATED) e/ou Sindicato de Dança, isto também muito em decorrência da exigência dessa documentação pelos Sindicatos, em muitas das capitais pesquisadas, para a autorização das apresentações artísticas em teatros e espaços culturais. Em relação às políticas culturais municipais, estaduais e federais, os indivíduos que participaram da pesquisa foram indagados sobre seus conhecimentos sobre essas políticas, se as consideram satisfatórias, se abrangem a diversidade da produção de dança, se fomentam as produções solísticas e se já foram beneficiados(as), direta e/ou indiretamente, com alguma dessas políticas. Perguntados inicialmente se conheciam as políticas culturais dos seus municípios para a área da dança, 77,4% dos respondentes afirmam que desconhecem e apenas 22,5% que conhecem. Quanto à satisfatoriedade dessas políticas em relação ao campo da dança, apenas 3,1% dos respondentes as consideram satisfatórias, 40,8% afirmam serem parcialmente satisfatórias, 52,5% insatisfatórias e 3,6% declaram não ter opinião formada. No que se refere à abrangência das políticas municipais no que tange a diversidade da produção de dança, 4,9% afirmam que as mesmas abrangem essa diversidade, 34,9% que abrangem parcialmente, enquanto que 57,5%, a maioria dos respondentes, considera que não abrangem. 2,7% declaram não ter opinião formada. Já em relação ao fomento às produções solo em dança, 9% dos respondentes da pesquisa acreditam que as políticas culturais do seu município fomentam a produção solo, 38,1% dizem que fomentam apenas parcialmente, 45,3% que não fomentam, enquanto 7,6% não tem opinião formada. Do total de respondentes, 46,3% afirmam que foram beneficiados(as), direta e/ou indiretamente, com alguma das políticas culturais dos seus municípios, enquanto 13,6% parcialmente e 40,2 afirmam que não. Questionados em seguida sobre as políticas culturais dos seus estados para a área da dança, apenas 19,3% afirmam conhecer tais políticas, enquanto que 80,7%, afirmam que desconhecem. Entre aqueles que conhecem as políticas estaduais para a dança, um percentual muito pequeno, 3,4%, consideram essas políticas satisfatórias. Para 40,4% dos respondentes, no entanto, elas são parcialmente satisfatórias e 53,8% consideram-nas insatisfatórias. Não tem opinião formada 2,4% dos respondentes.

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Em relação à diversidade da produção de dança, 6,5% dos respondentes afirmam que as políticas culturais de seu estado abrangem essa diversidade, 36,5% consideram que abrangem parcialmente e mais da metade dos indivíduos que participaram da pesquisa, 54,4%, afirmam que não abrangem, além de 2,6% que não tem opinião formada sobre o assunto. O quadro não muda muito quando questionados se essas políticas fomentam as produções solo, apenas 6,9% diz que sim, 38,5% parcialmente, 46,5% que não fomentam e 8,1% não tem opinião sobre o tema. Quanto a terem sido beneficiados(as), direta e/ou indiretamente, com alguma das políticas culturais dos seus estados, 46% afirmam que foram, 12% parcialmente e 42% que não. Por fim, com resultados muito próximos em relação às políticas municipais e estaduais, também no que se refere às políticas culturais federais para a área da dança, foram poucos aqueles que afirmam conhecer tais políticas, 19,4%; a maioria desconhece, 80,6%. Em relação à satisfatoriedade das políticas culturais federais para o campo da dança, apenas 3,9% das consideram satisfatórias, 45,1% parcialmente satisfatórias e 48% insatisfatórias. Dos respondentes, 3% não opinaram. As políticas federais, na opinião dos indivíduos que participaram da pesquisa, abrangem pouco a diversidade da produção de dança: apenas 7,7% afirmam que abrangem, 40,9% dizem que parcialmente, 47,6 que não e 3,7% não tem opinião formada. Em relação ao fomento das produções solo em dança, para 9,4% dos respondentes as políticas federais não fomentam esse tipo de produção e 40,4% afirmam que fomentam parcialmente. Já outros 9,3% não possuem opinião formada enquanto que 40,9% afirmam que não fomentam. Vale registrar, no entanto, que mesmo tendo um ponto de vista crítico em relação às políticas federais, 42,5% dos respondentes afirmam que foram beneficiado(a), direta e/ou indiretamente, com alguma das políticas culturais federais, 10,8% que foram parcialmente e 46,7% que não foram beneficiados. É interessante perceber que, apesar de os editais serem um dos mecanismos de incentivo a cultura mais conhecidos dos artistas e produtores, apenas 20,8% dos respondentes inscreveram projetos em editais nos anos de 2013 e 2014. A grande maioria, 79,1%, não inscreveu nenhum projeto em edital nesse período. Dos que inscreveram, quase a metade, 46,7%, inscreveram projetos em até dois editais e 25,5% entre 3 e 4 editais. Desses, 44% tiveram até dois projetos contemplados, 11,9% de 3 a 4 projetos contemplados, enquanto que 39,7% não tiveram nenhum projeto contemplado. Ainda em relação aos editais, em uma questão com escala de valores para os enunciados, tem-se como resultados mais significativos em relação aos questionamentos feitos, que mais da metade dos respondentes concordam plenamente ou parcialmente que “os editais contemplam apenas artistas ou grupos reconhecidos da dança” (62%), não “contemplam todas as estéticas de

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dança” (52,3%), “privilegiam majoritariamente projetos relacionados à dança contemporânea” (51,9%), não “promovem a distribuição equilibrada dos recursos públicos entre as regiões brasileiras” (57,3%), não “promovem a distribuição equilibrada dos recursos públicos entre os segmentos artístico-culturais” (55%) e, para finalizar, uma parcela significativa dos respondentes considera que os editais não “são instrumentos que indicam que as políticas públicas de cultura são acessíveis a todos” (46,1%). Já em relação à inscrição de projetos em leis de incentivo municipais, estaduais e federais, tem-se que 34,1% dos respondentes da pesquisa tiveram projetos certificados nos anos de 2013 e 2014. Desses que tiveram seus projetos certificados, apenas 25,1% conseguiram captar. A respeito de como se informam sobre as políticas culturais, em uma questão de múltiplas respostas, é interessante destacar que o meio mais citado foi as “redes sociais”, marcado por 63,9% dos respondentes; seguido de “eventos de dança” por 55,6%. Outros meios citados que merecem destaque são: e-mails (38,8%), sites (36,9%), portais de notícias (22%) e sites governamentais (18,3%), o que reafirma a importância da internet nos dias atuais. Esses resultados preliminares, que trazem apenas dados referentes as questões fechadas e de múltiplas opções do questionário para indivíduos, nos indicam que ainda há um grande desconhecimento por parte dos agentes da dança (indivíduos) no que se refere às políticas culturais e setoriais, em qualquer âmbito (municipal, estadual ou federal); que apesar do avanços essas políticas são consideradas satisfatórias apenas por uma parcela pequena dos respondentes; que a diversidade da produção da dança e as produções solo devem ser foco de uma maior atenção por parte dos gestores públicos. O edital, enquanto principal mecanismo de financiamento da produção em dança, não é considerado acessível para todos e nem vem cumprindo, de acordo com os respondentes, diretrizes que hoje são consideradas fundamentais para que esse instrumento cumpra seu papel, ou seja, contemplar uma diversidade de estéticas, não priorizar apenas artistas ou grupos reconhecidos, promover uma distribuição mais equilibrada dos recursos públicos entre as regiões brasileiras e entre os segmentos artístico-culturais. O enorme percentual de agentes da dança que desconhece as políticas culturais nos três âmbitos federativos, demonstra ainda a necessidade de uma maior articulação entre os agentes da dança para que compreendam as configurações das macro-políticas culturais direcionadas para a área, as lógicas econômicas aí impostas e as reflexões e lacunas dessas políticas para com as distintas micro-realidades. Além disso, faz-se necessário potencializar a dimensão micropolítica (GUATTARI e ROLNIK, 1996), que pode gerar outros modos de subjetivação e práticas alternativas aos modelos instituídos, bem como fortalecer os espaços coletivos (como fóruns e outros movimentos sociais) que possibilitam intervenções e uma maior participação da sociedade civil nos espaços decisórios de definição dessas políticas.

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Enfim, quando concluída a 1ª etapa do “Mapeamento da dança nas capitais brasileiras e no Distrito Federal” ter-se-á outros dados, não apenas relacionados aos indivíduos, mas também a grupos, companhias ou coletivos e instituições de dança das capitais pesquisadas. Será disponibilizado um banco de dados com os cadastros, aberto à consulta pública, e uma publicação digital com o diagnóstico da formação e produção em dança. A perspectiva é que esses resultados sejam utilizados como parâmetro orientador para a construção de políticas para a dança no âmbito nacional e nos locais pesquisados. Espera-se ainda que o Mapeamento realizado em oito capitais brasileiras (Belém, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo), de cinco regiões, possa vir a abranger todas as capitais do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007. BOTELHO, Isaura. A política cultural & o plano das idéias. In: BARBALHO, Alexandre; RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 109-132. BRASIL. Caderno Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de Cultura. Brasília: MINC; CNPC, 2007. 94 p. _______ . Plano Nacional da Dança. Colegiado Setorial de Dança; CNPC/MINC, 2009. 268 p. _______ . Pesquisa de informações Básicas Municipais: MUNIC. Perfil dos Municípios Brasileiros: Cultura. Rio de Janeiro: IBGE/MINC, 2007. 252 p. CRESWELL, John. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Armed/ Bookman, 2007. 248 p. DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34., 1995. 97 p. GIL, Gilberto. Discurso de posse do Ministro. Brasília, 02 de janeiro de 2003. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44344.shtml. Acesso em: 11 dez. 2011. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. 327 p. JANNUZZI, P.M. Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fonte de dados e aplicações. Campinas: Alínea, 2001. 141 p. MATOS, Lúcia. The Current State of Dance Micro and Macro Policies in Brazil. In: CONGRESS ON RESEARCH IN DANCE, 2014, Riverside, CA, USA. doi:10.1017/cor.2014.16. Downloaded from http://journals.cambridge.org/COR, IP address: 179.215.250.88 on 16 Nov 2014. p. 114-120.

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_______ . Mapeamento dos campos produção artística e formação em dança em dois municípios da Região Metropolitana de Salvador (RMS): Lauro de Freitas e Camaçari. Projeto de pesquisa em andamento, aprovado no edital PPP/ 2010 da FAPESB/CNPQ. Salvador: UFBA, 2012. 26 p. _______ . Síntese dos resultados do Projeto “Mapeamento dos Campos Artístico e Formação em Dança em dois Municípios da Região Metropolitana de Salvador (RMS): Lauro de Freitas e Camaçari. Salvador: UFBA, 2015 (não publicado) .15 p. NUSSBAUMER, Gisele (org.) Teorias e políticas da cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007. 257 p. RUBIM, Antônio Albino; BARBALHO (orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. 181 p. SANTOS, Boaventura de Souza (2000). Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007. 125 p.

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ECONOMIA CRIATIVA: PERSPECTIVAS TEMÁTICAS ABORDADAS E METODOLOGIAS DE INVESTIGAÇÃO ADOTADAS Luciana Lima Guilherme1 RESUMO: Este artigo tem como objetivo fazer uma análise da bibliografia produzida sobre economia criativa e sub-temas correlatos, identificando as principais temáticas pesquisadas e as metodologias de pesquisa e de investigação utilizadas. Para isso foi feita uma pesquisa bibliográfica detalhada a partir do portal de periódicos da CAPES priorizando periódicos com alto fator de impacto. Como resultado, constata-se uma predominância de estudos voltados para a construção e compreensão de bases conceituais associadas a economia criativa, cidades criativas, desenvolvimento territorial, análises setoriais e questões voltadas para a gestão de empreendimentos e desenvolvimento de profissionais. As metodologias qualitativas correspondem à grande maioria das metodologias utilizadas pelos artigos selecionados. PALAVRAS-CHAVE: economia criativa, indústrias criativas, cidades criativas, classe criativa, políticas públicas.

1. INTRODUÇÃO A temática da economia criativa tem estado no foco das discussões de organismos e comunidades internacionais2 nos últimos anos, destacando-se como estratégica para o crescimento e o desenvolvimento econômico e social de países desenvolvidos3 e em desenvolvimento. A comunidade acadêmica tem aprofundado esse debate a partir de reflexões fundamentais para uma maior compreensão dos conceitos envolvidos, seus impactos e suas fronteiras diante de contextos históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais de cada país. Doutoranda do Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), consultora e pesquisadora em Políticas Públicas de Cultura e Economia Criativa, professora do MBA em Gestão e Produção Cultural da FGV/RJ, . 2 A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade e Development – UNCTAD), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organizations – UNESCO) 3 Os Relatórios de Economia Criativa 2008 e 2010, produzidos pela UNCTAD, são resultados de um esforço colaborativo, liderado pela UNCTAD e pela Unidade Especial para Cooperação Sul-Sul do Programa das Nações unidas para o Desenvolvimento – PNUD, com o objetivo de apresentar um panorama global de como essa economia tem evoluído no mundo a partir de dados, indicadores e reflexões. 1

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Se por um lado essa “nova economia” é defendida como a solução para os desafios de um reposicionamento econômico, propulsor do desenvolvimento de países em contexto de pós-industrialização (BENDASSOLLI ET AL, 2009), por outro, ela é vista com desconfiança a medida que suscita temores associados às tensões relativas à produção e ao acesso à cultura e seus processos de comercialização, de bens e serviços, submetidos a uma lógica puramente mercantil. Deste modo, a disputa de discursos e narrativas se faz presente tanto em publicações técnicas quanto em publicações acadêmicas, ora favoráveis à perspectiva de desenvolvimento a partir do fomento à economia criativa, ora desfavoráveis na medida que são criticadas como catalizadoras de políticas excludentes e neoliberais, submissas às práticas mercantis. O debate tem se dado, então, em torno de reflexões acerca de polarizações e confusões conceituais voltadas para comparações e a identificação de características próprias nos significados de economia criativa e de economia da cultura, indústrias criativas e indústrias culturais, cidades criativas, classes criativas entre outros. Ainda incipiente, a bibliografia acadêmica produzida sobre o assunto representa o início de uma reflexão que pede um maior aprofundamento dada a extensão e a ambigüidade da temática em muitos aspectos. Considerando-se as publicações classificadas pelo Sistema Qualis da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), percebe-se uma prevalência de artigos que tratam de aspectos relacionados aos conceitos e ao escopo do tema; a estudos de caso que apresentam análises setoriais, de desenvolvimento de territórios e ou de estratégias de gestão e fortalecimento de empreendimentos dos setores culturais e criativos. Este artigo tem como objetivo fazer uma análise da bibliografia produzida sobre o tema, identificando as metodologias de pesquisa e de investigação utilizadas nas reflexões sobre economia criativa, e sub-temas relacionados (indústrias criativas, indústrias culturais, cidades criativas, classe criativa, inovação, educação e desenvolvimento profissional entre outros). Essa pesquisa bibliográfica foi realizada no banco de dados do Portal Capes, em periódicos cuja classificação, segundo o critério Qualis, obedecia às seguintes categorias: A1, A2, B1 e B2. A utilização desses critérios para a seleção de artigos e periódicos teve como finalidade garantir que os artigos identificados e analisados estivessem de acordo com os elevados padrões de qualidade e de exigência da produção acadêmica. Esse trabalho está estruturado em três partes: a primeira corresponde a apresentação da metodologia utilizada para o desenvolvimento desta pesquisa bibliográfica, identificando critérios e fontes de informações utilizados; a segunda apresenta uma análise do panorama de estudos e pesquisas identificados nesta investigação, indicando principais temas, sub-temas e aspectos enfocados, além das metodologias de pesquisa utilizadas para o debate e a reflexão sobre a temática da economia criativa; por último, a terceira parte refere-se às conclusões deste trabalho indicando oportunidades no avanço dos estudos sobre o tema e seus sub-temas relacionados.

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2. METODOLOGIA A metodologia utilizada para o desenvolvimento desse trabalho é de natureza qualitativa, descritiva e exploratória. Diante da relevância crescente da temática da economia criativa, foi realizada uma pesquisa bibliográfica na base de dados disponível no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sem delimitar tempo de início. Por ser um tema recente e de natureza multidisciplinar, o mesmo tem sido tratado por pesquisadores e estudiosos de diferentes áreas do conhecimento que acabam por publicar em periódicos das mais variadas áreas. Desta forma, optou-se pela realização do levantamento de artigos a partir do mecanismo de “busca por assunto” do Portal da CAPES em função dos seguintes descritores e expressões associados ao tema: economia criativa, indústrias criativas, cidades criativas, classe criativa e políticas públicas de cultura e economia criativa. De acordo com esse procedimento, foram identificadas 58 publicações, sendo 3 teses de doutorado, 2 dissertações de mestrado e 53 artigos científicos. O foco dessa pesquisa bibliográfica se deu em artigos publicados em periódicos classificados pelo Sistema Integrado CAPES (SICAPES), de acordo com os critérios Qualis, nas categorias: A1, A2, B1 e B2. Dos 53 artigos identificados, 36 foram publicados em periódicos dentro dessas categorias, sendo 19 nacionais e 17 internacionais. Esses 36 artigos selecionados foram então analisados um a um quanto aos temas e sub-temas abordados, sua finalidade e metodologia de pesquisa, no sentido de se identificar os aspectos priorizados pelos pesquisadores dentro da temática da economia criativa, o panorama das metodologias de pesquisa mais usuais, as áreas carentes de discussão e aprofundamento e as metodologias que poderiam vir a ser utilizadas. Somaram-se, aos 36 artigos selecionados, 4 documentos institucionais publicados pelos governos do Brasil (Ministério da Cultura) e da Austrália (Austrália Council of the Arts); além de 4 relatórios de pesquisa publicados em pares pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) e pela United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD). 3. ECONOMIA CRIATIVA: LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO 3.1 Aspectos e temáticas priorizados A incipiência do debate acerca da temática da economia criativa pode ser verificada ao se analisar o volume e as características dos artigos selecionados para esse trabalho. Dos 36 artigos em questão, 10 tratam de reflexões sobre o conceito de economia criativa e conceitos relacionados, seus significados, congruências, sobreposições e divergências, além de aplicações na formulação e no desenvolvimento de políticas públicas; 12 enfocam a relação entre economia criativa e desenvolvimento local e regional, através de investigações acerca de cidades, distritos ou clusters criativos; 8 artigos apresentam análises relacionadas com questões de setores especí-

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ficos dessa economia; e, por fim, 7 tratam de práticas de gestão, modelos de tomadas de decisão e de dinâmicas associadas ao trabalho do profissional dos setores criativos. Bendassolli et al. (2009) realizam uma revisão teórica com o objetivo de apresentar a temática como promissora para a investigação científica, com um amplo levantamento de conceitos, especificidades e características defendidos por estudiosos e pesquisadores do campo. A análise comparativa entre conceitos como indústrias criativas e industrias culturais, de conteúdo e de copyright, economia criativa e economia da cultura, demonstram o amplo espectro de significados e características que se distinguem ou se confundem. Essa porosidade fronteiriça entre conceitos é reforçada por Serra e Fernandez (2014) ao demonstrarem o quanto os conceitos de economia da cultura, economia do conhecimento e economia criativa se misturam, mas reconhecem como o fomento a essas indústrias pode ser um fator estratégico gerador de inclusão produtiva e desenvolvimento para os países, devendo ser tratado com atenção. Corazza (2013) complementa esse debate a partir de um artigo-resenha que aborda autores, de referência internacional, que desenvolvem reflexões com abordagens multidisciplinares e críticas sobre o fenômeno do desenvolvimento das indústrias criativas. Indústrias criativas, criatividade, inovação, cultura, desenvolvimento e classes criativas são temas discutidos numa análise que apresenta significados conceituais e implicações como resultado de políticas públicas para o desenvolvimento de territórios, criando novas dinâmicas laborais e novos processos de produção e comercialização de bens e serviços culturais e criativos. Com as novas dinâmicas de mercado estabelecidas no contexto das indústrias criativas, Bendassolli et al. (2010) contribuem com reflexões críticas acerca das características exigidas pelas novas carreiras, delimitadas por fronteiras fluidas e dinâmicas. Ainda que o discurso sugira a existência de um novo profissional autônomo e flexível, a crítica levantada enfatiza as dificuldades reais deste trabalhador em ser ágil e adaptativo à velocidade das mudanças de um mundo onde o conhecimento e a informação são infinitos e tornam-se obsoletos quase que instantaneamente. Os significados do trabalho e dos novos perfis profissionais demandados por essa economia são também detalhados e analisados por Bendassolli et al. (2011), a partir do desenvolvimento de um modelo heurístico de análise, baseado num instrumento canadense de medida, que permitiu identificar características considerando-se aspectos relacionados à centralidade do trabalho na vida do indivíduo, às normas sociais e à ética das relações, aos valores associados a construção da identidade do indivíduo, aos processos cognitivos e afetivos, dentre outros. Ainda que a auto-realização esteja presente na maioria dos discursos dos profissionais envolvidos nesses setores, a precariedade das relações de trabalho se destacam. Diante destes pontos levantados, até que ponto a admissão da economia criativa, e de suas indústrias (ou setores), como estratégica para o desenvolvimento de políticas públicas de cultura é favorável ou não à produção cultural e simbólica, ao trabalhador dos setores culturais

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e ao cidadão-consumidor de bens e serviços culturais? Esse é um debate levantado por Miller (2011) que, quando na sua incursão sobre a temática, destaca e critica aspectos ideológicos que julga como perigosos ao desenvolvimento do campo cultural e criativo nesta perspectiva. Ele considera que a expressão indústrias criativas vem maquiar uma política de direita, neo-liberal, permeada por um discurso individualista e não engajado em questões sociais e coletivas. Em contraposição a essa posição, a análise de De Marchi (2014), sobre o Plano da Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura do Brasil, vem destacar um processo de formulação de política pública cultural, no campo da economia criativa, que busca se distanciar de aspectos típicos do fortalecimento de uma indústria proprietária, focada no copyright, uma marca de mercados neo-liberais. A chamada “Economia Criativa Brasileira” vem reforçar princípios associados à valorização da diversidade cultural do país, à promoção da inovação, ao desenvolvimento com sustentabilidade e inclusão social e produtiva, compreendendo a importância das redes e dos coletivos como mediadores desses processos. Lima e Ortellado (2013), a partir da análise do programa Cultura Viva (Ministério da Cultura) e da Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, levantam uma discussão sobre fomento e financiamento da cultura destacando a necessidade de se investir não apenas na ampliação do consumo de bens e serviços culturais mas, principalmente, na ampliação do direito de produzir cultura. Potts et al. (2008) propõem uma nova definição de indústrias criativas que, ao contrário do conceito inglês vigente que se baseia na natureza criativa dos insumos e na propriedade intelectual gerada pelos seus produtos, se baseia num novo mercado onde demanda e oferta operam em redes sociais complexas. Esta nova definição avança o debate, ampliando o conceito de indústrias criativas para sua dimensão dinâmica de rede em vez de se restringir a um olhar setorial estático, baseado numa classificação meramente industrial que não corresponde a um olhar microeconômico que contemple agentes, preços, firmas, custos de transação, organizações, tecnologias entre outros. Ora, se a indústria é então um conceito derivado, mais o é o conceito de indústrias criativas. Um outro elemento importante, destacado pelos autores, é que as indústrias criativas compartilham muitas características próprias da economia de serviços, ainda que fortemente caracterizada pela sua dimensão simbólica que emerge das representações culturais da sociedade. Assim, é preciso compreendê-las através de uma visão interdisciplinar de processos sócio-econômicos complexos que integrem ciências sociais, comportamentais e econômicas com estudos de antropologia, cultura, mídia entre outros. Na perspectiva do desenvolvimento territorial, especificamente do desenvolvimento das cidades, a partir da economia criativa, Pratt (2011) analise e critica o conceito de cidades criativas destacando a tensão entre abordagens voltadas para o desenvolvimento de estratégias de pla-

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ce marketing4 e abordagens voltadas para a compreensão acerca das identidades e diversidades de culturas locais. O autor levanta uma série de questões quanto às reais vantagens/desvantagens e benefícios obtidos a partir da implantação de políticas voltadas para o desenvolvimento de cidades criativas, seja na perspectiva da cidade entendida como espaço de produção e consumo cultural ou na perspectiva de espaço de soluções criativas dos problemas locais a partir de modelos de governança territorial. Os conceitos de cidades criativas são analisados a partir do questionamento de suas categorias e características, construídas, muitas vezes, sob um viés neo-liberal, sem um olhar mais aprofundado sobre questões associadas à desigualdade econômica e social que pode vir a ser gerada, além de processos de gentrificação. Ele critica as “receitas de bolo” assumidas e aplicadas sem uma leitura mais detalhada das diferenças próprias entre as cidades. Bontje e Musterd (2009), assim como Pratt (2011), criticam o conceito de cidades criativas restrito, muitas vezes, ao desenvolvimento de estratégias de place branding. Para esses autores, dentro deste conceito, há uma priorização evidente de uma classe criativa, altamente qualificada, em relação a população envolvida com setores declinantes e com pouco acesso à educação, reforçando desta forma aspectos que aumentam as desigualdades sociais. É reconhecida a relevância de políticas para o desenvolvimento de cidades como espaços geradores de criatividade e conhecimento, no entanto é chamada atenção para a necessidade de se fugir de formulas prontas que desconsiderem as especificidades locais. Em 2013, Pratt e Hutton ampliam a análise acerca das relações entre a economia criativa e as cidades, investigando sobre e como essa economia se desenvolveu e tem sido percebida como potencial de desenvolvimento mesmo em períodos de crise financeira, como foi no caso da crise de 2008. Os autores analisam a associação entre o desenvolvimento das indústrias criativas concentradas e a primazia de algumas cidades sobre outras, gerando crescimento e disparidades inter-regionais. O que se percebe é que muitos dos gestores públicos e tomadores de decisão se baseiem em modelos de governança territorial suportados em conceituações frágeis e inadequadas às especificidades da economia criativa e de seus setores. Aspectos e características próprias dos mercados tradicionais, no que se refere a sua estrutura e seu modo de organização, se apresentam de modo diferenciado quando analisados dentro do contexto da economia criativa e sua dinâmica. Méndez et al. (2012), no seu artigo sobre economia criativa e desenvolvimento urbano na Espanha, apresentam uma análise crítica dos setores criativos da Espanha, seu peso na economia urbana e sua distribuição territorial, considerando diferentes escalas espaciais e os níveis de concentração territorial das atividades destes setores nos diversos espaços geográficos. Assim como Pratt e Huttong (2013), Mendez et al. creditam à economia criativa um potencial estratégiEstratégias de marketing e de promoção das cidades como destinos turísticos, em função de atrativos associados a produção de seus setores culturais e criativos.

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co relevante para fazer frente à crise econômica enfrentada recentemente pela Europa. O aspecto simbólico dessa economia é destacado pelo valor que agrega aos seus produtos impactando e renovando a imagem urbana. As regiões metropolitanas figuram como hubs criativos em função do adensamento profissional de setores culturais e criativos na Espanha, e dentro dessas regiões se identificam agrupamentos em determinados bairros ou áreas, o que tem gerado sinergia com políticas de revitalização de espaços urbanos. Leitão et al. (2010) contribuem com uma discussão que trata da formulação e implementação de políticas de fomento à economia criativa para o desenvolvimento do nordeste brasileiro, partindo de um esboço de metodologia voltada para a identificação de bacias e territórios criativos, entendidos como sub-regiões urbanas/metropolitanas ou sub-regiões interestaduais, com densidade populacional, densidade de produção, circulação e consumo de bens e serviços criativos, com densidade institucional e densidade socioeconômica. A identificação destes territórios criativos se propõe a indicar espaços geográficos com potencial de desenvolvimento local e regional associado à economia criativa nordestina. A perspectiva do desenvolvimento regional, também é encontrada no estudo de caso do 5 Corede Vale do Rio dos Sinos (Consinos) no Rio Grande do Sul, onde Bem e Giacomini (2012) fazem uma análise das potencialidades da região, composta por quatorze municípios, no sentido de desenvolver, num médio prazo, estratégias de desenvolvimento do setor calçadístico com o objetivo de reverter o impacto negativo que o mesmo vem sofrendo com a importação de produtos chineses. A produção de calçados é fruto da imigração alemã que investiu e desenvolveu o setor, tendo obtido sucesso e crescimento por mais de três décadas. O estudo desenvolvido buscou identificar atividades criativas de natureza complementar e com potencial de sinergia para o desenvolvimento e a produção de calçados com alto valor agregado, de modo a torná-los competitivos frente a concorrência externa. Na perspectiva do desenvolvimento local, Bento Gonçalves é analisado como um município com potencial para se tornar Cidade do Conhecimento, a partir de uma reflexão sobre a convergência entre o modelo de economia criativa brasileiro, defendido pela Secretaria da Economia Criativa do Ministério da Cultura (BRASIL, 2011), e a concepção de desenvolvimento baseado em conhecimento, desenvolvida pela taxonomia Generic Capital System, que promove a integração de sistemas de informação, de aprendizado e de conhecimento (FACHINELLI e CARRILLO, 2014). A convergência entre estes dois modelos reforça a tese de que a cultura local é fundamental neste processo devendo ser compreendida como vetor estratégico para o desenvolvimento. A temática do desenvolvimento (local, regional, nacional ou global) tendo como eixo a economia criativa e seus setores está presente em outros estudos identificados para a construção desse artigo (YUSUF e NABESHIMA, 2005; REN e SUN, 2012; SILVA, 2010; GOLGHER, 5

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2008). Estratégias de fomento e desenvolvimento de clusters ou arranjos produtivos locais são descritos como relevantes para o fortalecimento de ambientes criativos e inovadores. Numa perspectiva setorial, percebe-se que os estudos, pesquisas e reflexões tem priorizado setores associados às chamadas novas mídias ou mídias digitais, tais como: filmes, TV, musica, jogos digitais, animação entre outros. Talvez porque sejam setores que mais tenham sido impactados pela velocidade das mudanças no campo da internet e, por conseguinte, tenham maior potencial de ampliação de mercados e possibilidades de comercialização. Como exemplo disso, a desverticalização da cadeia produtiva da música é destacada por Nakano (2010) como um processo que avança a passos largos ampliando mercados e oportunidades para a produção independente, impactada diretamente pela inovação tecnológica das últimas décadas. Através de um estudo exploratório sobre a indústria de animação para TV no Brasil, Gatti Junior et Al. (2014) destacam e analisam um setor que tem sido fortemente alavancado no país e no mundo, seja pela sua qualidade técnica e capacidade de gestão de negócios, seja por estar vivendo condições favoráveis relativas a oportunidades de financiamento e a existência de canais multiplataformas de difusão. Ao mesmo tempo que alguns setores se profissionalizam e tornam-se competitivos no âmbito global, o estudo de Batista et Al. (2011) demonstra o quanto as relações contratuais entre o mercado e os quadrinistas no Ceará são extremamente precarizadas em função de um elevado despreparo dos profissionais em lidar com questões ligadas à gestão de seus empreendimentos (formais ou informais) relacionando-se em contrapartida com um mercado pouco institucionalizado e profissional. Por fim, para além das temáticas e aspectos do campo criativo descritos anteriormente, de natureza macro, por tratarem de conceituações de base e de desenvolvimento territorial e setorial, constatou-se, dentre os artigos selecionados, um elevado interesse sobre as seguintes temáticas: processos de aprendizagem e geração de conhecimento em comunidades e empreendimentos dos setores criativos (FLACH e ANTONELLO, 2011); interdisciplinaridade e integração de saberes relacionados à temática da economia criativa (HARTLEY, 2011); gestão de empreendimentos culturais e criativos na perspectiva do empreendedorismo (JUDICE e FURTADO, 2014). 3.2. Metodologias de pesquisa e tipos de investigação utilizadas Analisando-se as metodologias de pesquisa utilizadas nos 36 artigos selecionados para o desenvolvimento desse trabalho, temos o seguinte quadro: 31 foram desenvolvidos através de metodologias qualitativas, enquanto 1 se utilizou de uma metodologia mista e os 4 restantes se utilizaram de metodologias quantitativas. A predominância de estudos e pesquisas de natureza qualitativa é mais do que evidente, sendo a maioria de estudos exploratórios e descritivos baseados em pesquisas bibliográficas voltadas para reflexões teóricas ou revisões de literatura, muito

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freqüentes, visto que ainda existem imprecisões conceituais sobre o tema que precisam ser debeladas ou minimizadas. Os estudos de casos também se destacam como métodos muito utilizados com o objetivo de se realizar um aprofundamento e uma reflexão teórica baseados em experiências emblemáticas ou exitosas relacionadas à implementação de políticas públicas de fomento e desenvolvimento de territórios, setores, empreendimentos e profissionais dos setores criativos. Ainda é insipiente a produção de estudos quantitativos, sendo menor ainda a produção de estudos quantitativos comparativos. Os Relatórios de Economia Criativa produzidos pela United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD (2008 e 2010) corresponderam a um primeiro esforço de compilação de dados mundiais dessa economia, no entanto em virtude das metodologias de mensuração não serem padronizadas entre os países as análises comparativas tornam-se mais difíceis. 4. CONCLUSÃO O tema da economia criativa por ser recente, muito amplo e de natureza interdisciplinar exige um olhar mais atento e mais aprofundado no sentido de buscar uma maior consistência conceitual e teórica, além de uma construção coletiva integrada e efetiva. A sobreposição com outros conceitos ainda gera uma série de confusões que geram uma certa opacidade quanto às suas fronteiras e delimitações. A centralidade do conceito de economia criativa nos seus setores em contraposição à centralidade nas suas dinâmicas de rede e arranjos produtivos merece um debate ampliado. O fato dessa economia envolver muitos setores (nas áreas do patrimônio, artes, mídias e criações funcionais) pede que as especificidades e diferenças existentes entre estes sejam analisadas de modo a evitar tratamentos e visões generalizantes sobre realidades e dinâmicas diferentes. O aprofundamento e a reflexão sobre a economia criativa e seus setores, a partir de métodos qualitativos, são fundamentais e necessários para a compreensão de fenômenos específicos e merecem continuar a ser desenvolvidos. No entanto, a carência de estudos de natureza quantitativa fragilizam a evolução de uma economia que tanto tem crescido mas que ainda necessita ser encarada e compreendida numa perspectiva macro que permita avaliar seus impactos econômicos efetivos no Brasil. Mais do que buscar a desagregação de dados produzidos pelo IBGE no sentido de fazer projeções e estimativas estatísticas, é necessária a finalização da metodologia de construção da conta-satélite da cultura. O estudo de metodologias de contas-satélite para o campo criativo e cultural se faz urgente para o Brasil. Um outro ponto importante é ampliar os estudos no sentido de que os mesmos tenham condições de apreender aspectos e dados reais da economia formal e informal deste campo. Em função da fragilidade institucional e legal associada aos setores criativos, há um elevado contingente de profissionais e empreendimentos atuando na informalidade, movimentando milhões ainda que de modo extremamente precarizado.

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TEATRO DE GRUPO NA CENA PORTO-ALEGRENSE: NOVOS PADRÕES DE TRABALHO E DEPENDÊNCIA DE VERBAS PÚBLICAS Luciene Z. Andrade Lauda1 RESUMO: Este artigo tem como objeto de estudo o movimento teatro de grupo na cena teatral porto-alegrense. O teatro de grupo é retrato de um modo de produção que comporta conotação tanto política quanto estética, busca autonomia frente às normas capitalistas vigentes em contraponto ao modelo do teatro comercial, e se faz mais presente em circuitos teatrais periféricos. A partir de uma reconstituição da história dos principais coletivos da cidade, nas últimas décadas, este estudo pretende compreender a implicação do movimento teatro de grupo na conformação das atuais políticas culturais para as artes cênicas, bem como sua dependência em relação a estas. PALAVRAS-CHAVE: teatro de grupo, novos padrões de trabalho, políticas culturais.

1. INTRODUÇÃO O presente estudo faz parte de tese de doutorado em andamento e que tem como questão central o argumento de que o trabalho artístico continua atuando como modelo fecundo para a análise das formas contemporâneas de emprego, a recomposição dos mercados de trabalho e a gestão das carreiras. Tendo como objeto de pesquisa o trabalho de ator de teatro na cidade de Porto Alegre, este argumento tem como base o pressuposto de que por sua condição de procura permanente de originalidade e de novidade na concepção e produção artísticas, o trabalho em arte enquanto atividade produtiva tem implicações originais que inspiram o mundo do trabalho como um todo. Esta profissão, cujo trabalho é o próprio processo criativo é atravessada por três aspectos que, juntos, a distinguem das demais: a) inovação – diferente de processos repetitivos, sempre articulando com o novo; b) princípio de incerteza – a atividade artística não transita em um trajeto programado, caminha em um curso incerto e sua realização não é definida nem assegurada; c) precariedade – o processo criativo se desenvolve em condições sociais de fragilidade e de desproteção. Socióloga. Doutoranda em Sociologia do Trabalho – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – PPGSOC - Orientadora: Prof. Dra. Cinara Lerrer Rosenfield – [email protected]

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O atual crescimento da informalização e precarização das condições e relações de trabalho no capitalismo contemporâneo como um possível caminho sem volta, faz com que a sociedade lance o olhar para o regime de emprego “hiper-flexível” (MENGER, 2002), peculiar às profissões artísticas. O trabalho em regime de free-lancer e de emprego intermitente dessas profissões encarna uma das condições da “perfeição concorrencial” (IDEM, p.62), ou seja, empregar e demitir sem custos e de acordo com a necessidade do mercado. Além disso, apresenta um paradoxo, pois se trata de uma profissão que, ao mesmo tempo em que exige qualificação e aprendizado constante, desenvolve-se em condições de precariedade. Desta forma, a hiper-flexibilidade aliada ao paradoxo da atividade torna-se produtivo para a análise de outros grupos profissionais, através da aproximação entre a organização do trabalho artístico e o desenvolvimento de outros sistemas de trabalhos alternativos ao “assalariado à moda antiga”. Para este artigo, no entanto, nos deteremos em um fenômeno peculiar ao trabalho em teatro que, no decorrer da pesquisa de campo surgiu como um aspecto incontornável: o crescimento do movimento conhecido como teatro de grupo ou teatro contemporâneo, na atual cena teatral porto-alegrense - que na tese será analisado através da relação entre a busca por renovação estética e a potencialidade e capacidade de renovação da crítica artística. Desta forma, para atingirmos o objetivo ao qual nos propomos para este artigo, qual seja, analisar a implicação do movimento teatro de grupo na conformação das atuais políticas culturais para as artes cênicas, bem como sua dependência em relação a estas, organizaremos este estudo da seguinte forma: faremos uma reconstituição da história do teatro na cidade, dos anos 1980 – considerados como a década precursora do fenômeno em questão - aos dias atuais, com destaque para as lutas e conquistas de políticas públicas para as artes cênicas de cada período, descrevendo em que medida as reivindicações foram atendidas, bem como a eficácia das políticas conquistadas, e finalizaremos retratando o atual panorama dos grupos teatrais da cena teatral porto-alegrense e a relação de dependência com as políticas culturais locais. 2. TEATRO DE GRUPO O ano é o de 2015. O local é o Theatro São Pedro, em Porto Alegre, e o evento é a décima edição do prêmio Braskem em Cena, considerado atualmente como uma das mais importantes premiações das artes cênicas do Rio Grande do Sul. Mirna Spritzer2 recebe o prêmio de melhor atriz, pelo espetáculo Língua Mãe Mameloschn3, e entre agradecimentos aproveita a ocasião para reivindicar ações do poder público Atriz, diretora e professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Espetáculo com direção de Mirah Lanine, a partir de texto da escritora alemã Marianna Salzmann. Ganhador prêmio Açorianos Melhor Espetáculo 2015. 2 3

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em relação à urgência dos grupos locais em terem suas próprias sedes. A reação da plateia, formada na sua maioria por profissionais das artes cênicas, é de aplausos e gritos que atestam apoio à demanda manifesta pela colega em nome da categoria. A questão que se coloca após este evento é a razão pela qual a atriz, em sua fala, em detrimento de outras demandas, enfatiza e prioriza a necessidade de sedes próprias para os grupos locais. Fernando Peixoto (1998), afirma que embora o teatro tenha uma trajetória específica, o que mais tem se modificado nessa trajetória é o próprio significado da atividade teatral, sua função social. Constantemente redefinida, na teoria e na prática, esta função social, segundo o autor, tem provocado alterações substantivas na maneira de conceber e realizar teatro. Acrescenta ser fundamental não perder de vista a verdade dialética do movimento histórico: “a saga do teatro, fascinante aventura do pensamento e da ação do homem, possui apenas aparência de autonomia” (PEIXOTO, 1998,p.11). Com isso o autor quer dizer que a prática teatral é essencialmente social. Para Duvignaud (1965), a prática social do teatro forma uma totalidade viva e coloca em movimento, de certa maneira, a totalidade da sociedade e suas instituições. Do teatro amador da década de 1950, passando pelo teatro engajado dos anos de chumbo, ou pelo experimentalismo criativo no período de redemocratização, atualmente, o que parece estar em jogo na prática teatral perpassa questões do próprio teatro enquanto linguagem estética, vinculado a novos desafios de sustentabilidade. A fala da atriz aponta para alguns deslocamentos que podem ser observados no decorrer das últimas décadas, o que vem ao encontro da relação estreita entre a prática teatral e o conjunto da sociedade, a qual se refere o autor. A urgência de salas próprias para os coletivos é prerrogativa do trabalho de pesquisa continuado, característica do teatro contemporâneo, também conhecido como teatro de grupo que, de acordo com Motolla (2010), se expande atualmente por todo o Rio Grande do Sul. A expressão teatro de grupo caracteriza um modo de operar marcado pela pouca rotatividade de seus integrantes e pelo desenvolvimento de um trabalho que não se reduz apenas a montagens de espetáculos. Mesmo que as linhas estéticas variem entre grupos ou em espetáculos de um mesmo grupo, existem características centrais desse tipo de teatro tais como, a ideia de continuidade, de construção, de pesquisa e de uma identidade poética. Este fenômeno se constitui de um movimento que veio se desenvolvendo na América Latina a partir do final dos anos 1980. No Brasil, diversos autores (CARREIRAS, 2008; LIMA, 2014; TROTTA, 2008; MASSA, 2011) considerem este período como sendo o que trouxe consigo as transformações no modelo de teatro praticado até então no país - tanto no que se refere às questões estéticas, quanto às de conotação política e ideológica, que gestaram o embrião do que hoje vem a ser o teatro de grupo - e concordam que são os acontecimentos políticos e econômicos dos anos 1990 responsáveis pelas profundas transformações que vão diferenciá-lo de formatos verificados em outras partes do mundo.

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3. A CENA TEATRAL PORTO-ALEGRENSE Apesar de ser considerada uma cena rica e abundante em termos de produção artística, poucos são os registros que resgatam os processos de experimentação, espetáculos e grupos teatrais (SILVA, 2010, p.15). Portanto, devido às escassas fontes primárias, em especial a memória recente das últimas três décadas, recorremos a fontes secundárias, tais como: a) site da secretaria Municipal da Cultura - a partir dos espetáculos indicados e dos vencedores do Prêmio Açorianos de Teatro e Dança4 - acreditando que este dado encerra o que de mais importante foi produzido na cidade a partir de sua vigência; b) sites e blogs das companhias de teatro; c) biografias dos principais atores disponíveis na internet; d) Teatropedia - Enciclopédia Virtual das Artes do Palco, e) em matérias publicadas em jornais e revistas -on-line e físicas- sobre o tema; f) entrevistas com atores e diretores de teatro, jornalistas, coordenadores que atuam junto às secretarias municipal e estadual de cultura, curadores de festivais, e professores do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Essa reconstituição não pretende trazer uma exposição completa da história do teatro da cidade. Nosso objetivo é traçar o caminho percorrido pelos principais representantes da cena teatral porto-alegrense - com ênfase na organização em grupos - a partir dos anos 1980, acompanhando o desenvolvimento de novas linguagens e de renovação estética, as quais identificam o teatro como uma manifestação de “seu tempo”, ou seja, marcado por fases distintas que se reconhecem no período sociopolítico no qual está inserido. 4. ANOS 1980 A virada da década de 1970 para a de 1980 anunciava a abertura política para o país e para a cultura o fim da censura. Herdeiros de um teatro de resistência à ditadura militar, segundo Silva (2010), atores e diretores acrescentaram novos caminhos aos processos de experimentação cênica e na relação palco e plateia, em uma busca artística que respondia às mudanças sociais e políticas do país naquele momento histórico. Embora alguns autores (RODRIGUES, 2000; SILVA, 2010) apontem os anos 1980 como um período que apresentou certo esvaziamento na cena teatral brasileira, tanto no que se refere na ausência de um referencial ideológico para os grupos teatrais – característica predominante nas décadas anteriores - quanto de público e, principalmente, pela evasão dos atores de teatro absorvidos pela TV, concordam que apesar disso não há como negar que houve uma intensa produção teatral que resultou num eficiente sistema de organização grupal, em torno de trabalho de coletivos reunidos com objetivos distintos dos da década anterior. Instituído pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, no ano de 1977, o Prêmio Açorianos foi originalmente criado para premiar os melhores nas áreas de teatro e dança de cada ano. Atualmente contempla também música, literatura e artes plásticas, e é considerado a mais importante premiação cultural do estado do Rio Grande do Sul.

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A possibilidade de liberdade de expressão nutre a cena teatral porto-alegrense, intensificando a diversidade estética, a exploração de novas linguagens e de concepção do espaço cênico, ao mesmo tempo em que, segundo Silva (2010), torna-se visível o investimento em dramaturgia realizada através da criação coletiva e fomento da pesquisa do trabalho de ator. Cenário que propicia a proliferação de grupos centrados na criação coletiva ou na aposta em montagens de textos de dramaturgos outrora censurados, ao mesmo tempo em que intensifica a luta da categoria por novas salas de exibição, a ampliação das temporadas e por verbas e patrocínios que viabilizem as produções e a pesquisa. Os principais representantes da época são a Trupe de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis (1978)5, o Vende-se Sonhos (1979), o Teatro Vivo (1979), o Descascando o Abacaxi (1981), o Faltou o João, a Companhia Tragicômica Balaio de Gatos (1980), o Do jeito que Dá, o Grupo Tear (1980), o Face & Carretos (1982) e, no final da década, a Cia Di Stravaganza (1988). Assim, conforme Reis (2000), nos anos 1980 existiam de uma maneira geral, dois tipos de grupos de teatro em Porto Alegre: os grupos de criação coletiva, influenciados pelo método do grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone6, onde havia uma grande divisão de tarefas e a produção era cooperativada; e grupos que funcionavam de maneira mais “tradicional7”, trabalhando com textos de autores teatrais e com uma ou mais figuras centrais na condução do trabalho. De acordo com Silva (2010), a década teve um saldo bastante positivo para a produção teatral na cidade, com um balanço cujos dados mostram, por exemplo, no ano de 1988, 38 produções locais, e no ano seguinte 44 entre adultos e infantis. Apesar de temporadas com bom retorno de bilheteria, a classe teatral continuava lutando por novas salas de exibição, a ampliação das temporadas dos espetáculos e, principalmente, a batalha verbas que viabilizassem as produções que agora incluíam na pauta de reivindicações apoios financeiros que possibilitassem o processo de pesquisa continuada.

O grupo surge em 1978, criado por Paulo Flores e Rafael Baião – ex-alunos do Curso de Arte Dramática da UFRGS, e Julio Zanotta, escritor. O grupo completa em 2016, 39 anos de existência. Desde seu surgimento centra seu estudo na relação ator-espectador e no processo de criação coletiva, com espetáculos de sala e de rua. Define o ator como atuador, fusão de artista com ativista político, cuja atuação não deve ficar restrita ao palco e sim comprometida com a realidade. Na pesquisa cênica, o grupo experimenta recursos teatrais com base no trabalho autoral do ator e na cena ritualística, com influência de Antonin Artaud, Fernando Arrabal, Jerzy Grotowski e Bertolt Brecht. É, sem dúvida nenhuma, o mais importante grupo na história do Teatro do Rio Grande do Sul, e um dos mais prestigiados no Brasil. 6 O grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone passa por Porto Alegre, no final dos anos 1970, trazendo espetáculos e ministrando cursos, em duas ocasiões. 7 Os grupos considerados mais tradicionais eram o Teatro Vivo e o Tear, em que a direção dos espetáculos são assinadas, respectivamente, por Irene Brietzk e Maria Helena Lopes, ambas professoras do DAD. 5

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5. ANOS 1990 - A RECONFIGURAÇÃO NAS RELAÇÕES ENTRE ARTE E ESTADO A partir de 1985, com o fim da ditadura militar, o engajamento político passa a dar lugar ao experimentalismo e grupos que já desenvolviam trabalhos nesta perspectiva se fortalecem. A criação coletiva passa a ser o principal percurso de construção de espetáculos dos grupos da época: “primeiramente por traduzir o ideal libertário e democrático em oposição ao alto nível de censura vigente no período anterior, e posteriormente, por se opor ao modelo organizacional do chamado teatro comercial” (LIMA, 2014, p.32). Ainda no ano de 1985, no governo José Sarney, é criado o Ministério da Cultura (MINC). Desfeito em 1990, pelo então presidente Fernando Collor, é reativado em 1992, no governo Itamar Franco, e passa a ser um dos principais fomentadores de todos os setores da cultura, principalmente através do instrumento legal a Lei Rouanet8 (Lei n 8.313/91), que objetiva o fomento à cultura através da captação de recursos de renúncia fiscal. Essas políticas culturais, no entanto, ao mesmo tempo em que estreitam a dependência financeira dos grupos teatrais com o Estado sujeitam os projetos elaborados para a obtenção das verbas destinadas às artes cênicas a condicionantes e alinhamentos com essas políticas, com implicações particulares para o teatro que se quer fazer no Brasil. O modus operandi das leis de renúncia fiscal que surgem no rastro da Lei Rouanet, além de privilegiarem claramente o resultado final em detrimento do processo de criação e de pesquisa, priorizam os espetáculos com possibilidade de retorno comercial para as empresas, sobretudo, aqueles que contam em seu elenco com a presença de atores consagrados pela mídia deixando de fora grupos que não preencham esses requisitos, o que é o caso do teatro realizado em Porto Alegre e de outras regiões periféricas, ou fora do eixo Rio-São Paulo. As contradições e condicionantes apresentadas na formulação e implementação das políticas culturais, somadas à instabilidade econômica da época, de acordo com Fischer (2010), propiciam a retomada com maior vitalidade de coletivos e cooperativas teatrais como alternativa não somente de resistir às dificuldades financeiras, mas como perspectiva de artistas, coletivamente, empreender suas atividades, preservando a continuidade de suas pesquisas. Desta forma, por todo o país começam a crescer movimentos que reafirmam as especificidades da arte teatral e contra os procedimentos adotados pela Lei Rouanet, que em seu formato configura a mercantilização da Cultura (LIMA, 2014, p. 36). Movimento que cresce em torno da necessidade de luta por leis de fomento, dentro do modelo de fundo direto ou prêmio, cujo funcionamento, diferente da Lei Rouanet, não coloca na mão dos departamentos de marketing das empresas a decisão de quais espetáculos serão ou não incentivados. A lei leva o nome do Secretário de Cultura do Governo Fernando Collor, Sérgio Paulo Rouanet. Foi o instrumento encontrado pelo governo para ampliar o investimento em cultura no país. Aquele que investir em cultura poderá ter valor total aplicado deduzido do imposto devido. Para empresas o valor poderá chegar a 4% e para pessoas físicas 6% do valor devido.

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O primeiro dos movimentos a surgir foi o Manifesto da Arte Contra Barbárie9, em 1999, na cidade de São Paulo, organizado por coletivos e artistas independentes com ampla repercussão no país. Com as mesmas características e reivindicações, em 2004, acontece a articulação de coletivos em nível nacional através do Redemoinho – Movimento Brasileiro de Espaço e Criação, Compartilhamento e Pesquisa Teatral – iniciativa do grupo Galpão Cine Horto de Belo Horizonte, e é amplamente aderido pelos coletivos e artistas independentes de Porto Alegre. Este movimento se organiza em rede nacional e, embora com resultados menos expressivos se comparado com os obtidos pelos grupos paulistanos, é reconhecido como uma grande conquista para o quadro artístico-cultural do nosso país, especialmente para os adeptos do trabalho em coletivo. As discussões suscitadas por esses movimentos políticos que cresceram na década de 1990, e se espalharam pelo país ganhando intensidade nas décadas subsequentes e, de acordo com Lima (2014), lançaram luz sobre a questão endêmica do fazer teatral, no sentido em que por sua perda de popularidade para outras linguagens o teatro passa a se reconhecer como arte que não se adéqua ao modelo neoliberal de produção. Sendo uma arte de difícil reprodução em grande escala e diante de um mercado cada vez mais exigente neste sentido, o teatro passa a ser considerado inviável financeiramente pela dificuldade em ser autossustentável, tendo de recorrer ao fomento e intervenção do Estado (LIMA, 2014, p.37). Essas polêmicas, segundo Carreira (2002), provocaram interferências na vida dos núcleos de coletivos repercutindo, a partir daí, numa permanente discussão de modelos culturais, de forma que os grupos passam a funcionar como elemento dinamizador e provocador, pois para manterem sua prática artística passam a ser obrigados a uma permanente ação reivindicatória junto às instituições de caráter público e privado. Desta forma, o movimento de experimentalismo de novas linguagens estéticas em um contexto de luta por mudanças nas políticas culturais repercute fortemente em Porto Alegre, proporcionando o estreitamento nas relações entre artistas e poder público, e resultando na valorização do trabalho de grupos locais através de políticas específicas. Em 1993 é criado o Fumproarte, pela lei Municipal 7.328. O Fundo entra em vigor no ano seguinte e opera como financiamento direto dos cofres públicos ao projeto artístico proposto. Contempla Artes Visuais, Audiovisual, Música, Patrimônio Imaterial, Humanidades e Artes Cênicas. No mesmo ano, instituído pela Lei Municipal 7.590, é criado o Festival Porto Alegre em Cena, considerado atualmente um dos maiores da América Latina. Este festival traz anualmente, no mês de setembro, atrações nacionais e internacionais à capital gaúcha, e é um dos O Manifesto resultou na lei 13.279 – 08 de janeiro de 2002, que instituiu o Programa Municipal de Fomento Cultural direciona a área do teatro, coordenado pela secretaria Municipal de São Paulo, tem como objetivo apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e de seu campo de estudo (texto da lei).

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exemplos da atuação do Estado no campo teatral. Desde 2005, o festival conta com o Prêmio Braskem em Cena10, que contempla exclusivamente espetáculos locais. Em 1995 passa a vigorar o Projeto Novas Caras, criado pela Secretaria Municipal de Cultura. Este projeto possibilita temporadas nos teatros municipais a grupos amadores, funcionando como uma espécie de vitrine para novos atores e encenadores. No mesmo ano, surge o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral do Teatro de Arena11, que contempla dois grupos para ocuparem o teatro nos dois semestres do ano. Tem como objetivo fomentar o desenvolvimento de pesquisa de espetáculos teatrais profissionais, fora de propostas do circuito comercial. Em 1996, entra em vigor a Lei de Incentivo à Cultura do Rio Grande do Sul12 (LIC/RS). Funcionando nos moldes da Lei Rouanet, propõe a dedução fiscal de 75% do valor do projeto apoiado, do ICMS devido. Em relação à cena teatral porto-alegrense, alguns grupos que já vinham desenvolvendo trabalhos centrados na pesquisa e na criação coletiva durante os anos 1980 permaneceram atuantes na década seguinte, enquanto outros desaparecem. No entanto, o fato importante desta década é a formação de grupos originais com as características próprias do movimento Teatro de Grupo, quer de jovens artistas, quer de atores veteranos que assumem a proposta dando novos rumos às suas montagens, ou ainda de grupos criados por professores do DAD ou sob a influência do mesmo. Em 1993, dentro da chamada cena contemporânea, surge o grupo Falos & Stercus, que se constitui propondo novos paradigmas estéticos e espaciais, ficando conhecido por utilizar espaços não convencionais. No ano de 1996, o ator e diretor Roberto Oliveira cria a Associação Cultural Depósito de Teatro, uma entidade cultural sem fins lucrativos com sede própria, onde apresentava seus espetáculos, recebia outros grupos, realizava oficinas de formação de atores e mantinha núcleos de pesquisa em teatro, dança e circo, dentro do modelo de criação coletiva. No ano seguinte forma-se O Povo da Rua – Teatro de Grupo que tem como característica o foco de sua produção cênica na manifestação de teatro de rua. Em 1999, outra figura importante da cena teatral porto alegrense, Dilmar Messias, inspirado no distante projeto do Circo Catavento, que nasceu e morreu nos anos 1970, do qual foi um dos idealizadores, cria o Circo Girassol que, além de desenvolver pesquisa para a produção de espetáculos de teatro com recursos circenses, oferece oficinas à comunidade.

Com patrocínio da empresa Braskem, dez espetáculos locais concorrem a premiação de Melhor Espetáculo (júri e júri popular), Melhor Diretor ou Coreógrafo, Melhor Atriz ou bailarina, melhor Ator ou Bailarino, e destaque. Cada um dos dez espetáculos é apresentado duas vezes na grade de programação do Festival. 11 Os grupos, além de poderem ensaiar no teatro, recebem o valor de R$30.000 para a realização do projeto. O projeto passou a enfrentar dificuldades, como atraso no pagamento, a partir da atual administração estadual, o que está gerando insegurança aos grupos que tem interesse na participação do projeto. 12 A LIC tem uma história bastante conturbada, repleta de mudanças, adaptações e de dificuldades de funcionamento (RIBEIRO, 2010, p.31). 10

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No mesmo ano surge o grupo Cooperativa de Artistas Teatrais Oigalê, que assim como O Povo da Rua e o Falos & Stercus, foca suas pesquisas no desenvolvimento de experiências teatrais de rua ou em espaços pouco convencionais. Movimento que cresce significativamente nesta década em Porto Alegre e que se consolida no período subsequente, fazendo deste gênero de teatro uma marca registrada da cena teatral da cidade. A década finaliza com grande pluralidade de manifestações artísticas e estéticas, mantendo alguns elementos de coesão. Esta pluralidade condiz com novas demandas relacionadas à organização dos coletivos e à interação com a sociedade que não se restringe mais somente a apresentações de espetáculos, incluindo em suas agendas diversas oficinas que resultam na formação de outros grupos (nas suas sedes ou em comunidades locais), publicações diversas (em revistas físicas, blogs e sites), além de ações políticas (organização de seminários), que discutem a urgência de novos mecanismos de apoio à Cultura. 6. DOS ANOS 2000 À ATUAL ORGANIZAÇÃO DO UNIVERSO TEATRAL EM PORTO ALEGRE O teatro enquanto manifestação artística passa a reconhecer, segundo Trotta (2008), sua relativa independência em relação às normas capitalistas adotadas pelo sistema das grandes produções, o que lhe garante liberdade de criação. Esta liberdade poética, que para os artistas significa a busca por um novo modo de interpretação e encenação, exige igualmente um novo modelo de organização e de produção. As mudanças estéticas e ideológicas que acompanham o caminho percorrido pelo teatro nas últimas décadas estão atreladas a concepções teóricas respaldadas pelos circuitos universitários. De acordo com Lima (2014), é a partir do contato com os procedimentos difundidos no meio acadêmico que é possível sistematizar e gerar conhecimentos entendendo teoria e prática artística como interfaces indissociáveis. Portanto, é importante destacar o papel que o Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS13, desde a sua criação, vem desenvolvendo junto à produção cênica local. Alunos, diretores e atores que se constituíram dentro da academia formam boa parte da atual cena teatral porto-alegrense e, embora haja profissionais com outras formações, de uma maneira ou de outra são influenciados por ela. Prova disso é que ainda nas últimas décadas do século XX, o curso de Artes Cênicas formava atores com o objetivo de desenvolvimento de carreiras individuais e, atualmente, a formação é voltada para atuação em coletivos, como por O curso de Graduação em Teatro é mantido pelo departamento desde 1957 e, atualmente oferece os cursos de Bacharelado em Direção Teatral, em Interpretação Teatral e Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas. A partir do ano de 2007 inicia o Programa de Pós Graduação com o curso de Mestrado, o que possibilitou o retorno de ex-alunos ao curso a partir da possibilidade de continuidade na formação - o grande número de dissertações que versam sobre as próprias práticas teatrais reforça a relação entre a academia e as produções locais. Em 2014, inicia o curso de Doutorado, atendendo a anseios dos profissionais na formação de docentes e pesquisadores. 13

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exemplo, o Grupo de Teatro Sarcáustico (2004) e a Cia. Espaço em Branco (2004), que se formaram dentro do departamento e já completaram uma década de atividades na cena teatral local. Além dos grupos remanescentes dos anos 197014, 198015 e 199016, na virada do século outras grupalidades se formam a partir de atores e diretores experientes que se unem através de afinidades estéticas, como o Teatrofídico (2003), e o In-Co-Mo-De-Te (2007); ou os que agregaram docentes, alunos e atores profissionais como a Cia. Rústica (2004); os que se utilizam de linguagem híbrida e apostam na fusão entre o teatro, o circo, a dança, a música e as artes visuais, conciliando profissionais dos diferentes gêneros artísticos, como o Jogo de Experimentação Cênica (2007), e NECITRA (2008); e ainda os que atuam dentro da linha do teatro “militante” ou teatro “popular”, como o Cambada de Teatro Levanta Favela (2008), e o Grupo Trilho (2006). Sem esquecer, é claro, de alguns grupos, de iniciativas independentes ou de projetos em torno de um espetáculo dentro da linha do teatro comercial, principalmente, do gênero de comédia e stand-up, que circulam por casas de espetáculos17 e festivais18 na cidade e no interior do estado. Em relação às políticas culturais a década começa a apontar o esvaziamento de alguns apoios financeiros que durante os anos 1990 haviam funcionado bem, com redução de verbas no caso de fundo direto e dificuldade de acesso a recursos quando de incentivo fiscal. O que significa para os grupos locais luta por políticas públicas que atendam a principal necessidade dos coletivos com proposta de criação coletiva e pesquisa continuada: um local próprio para os grupos desenvolverem seus trabalhos. Desta forma, no ano de 2000 o grupo Falos & Stercus, em consonância com iniciativas semelhantes que acontecem em outros estados brasileiros, inicia o movimento de ocupação de dois pavilhões abandonados do Hospital Psiquiátrico São Pedro19. A tomada do hoje conhecido como Condomínio Cênico São Pedro foi seguido pela Cooperativa de Artistas Teatrais Oigalê, no ano

Ói Nóis Aqui Traveiz. Cia Di Stravaganza , Face & Carretos. 16 Associação Cultural Depósito de Teatro, O Povo da Rua – Teatro de Grupo, Cooperativa de Artistas Teatrais Oigalê, Falos & Stercus. 17 Este gênero de espetáculo com caráter mais comercial e linguagem cômica, em geral, conseguem maior sucesso de público e de bilheteria o que possibilita a locação de salas ou teatros privados. Atualmente os espaços privados em Porto Alegre são: Teatro da ANRIGS (700 lugares), Bourbon Country (2000 lugares), Teatro CIEE (220 lugares), Teatro do SESC (296 lugares), Teatro do SESI (1684 lugares), Teatro do Centro Cultural santa Casa (284 lugares), Teatro Goethe-Institut Porto Alegre (130 lugares). 18 A XVII edição do Porto Verão Alegre (2106), contou com 58 espetáculos, sendo 6 estreias e, a grande maioria dos espetáculos se enquadrava no gênero stand-up ou comédia e, segundo a mídia local, os principais espetáculo da edição anterior foram: Homens de Perto, Bailei na Curva, Guri de Uruguaiana, Iotti - Radicci, Inimigos de Classe, Se meu Ponto G Falasse, Pois é Vizinha e Homens de Perto 2. 19 Este movimento de ocupação de espaços públicos ociosos por artistas aconteceu simultaneamente em várias cidades brasileiras com desdobramentos semelhantes ao do Condomínio Cênico São Pedro. Este tem a particularidade de interagir e contar com a participação da comunidade remanescente do projeto da reforma psiquiátrica iniciada há trinta anos. Dos cinco mil internos da década de 1970, o Hospital São Pedro contabiliza hoje 187 moradores. 14 15

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de 2002. A partir de então, no ano de 2004, outros grupos que mantêm a mesma proposta de criação coletiva se unem a esta ocupação, O Povo Da Rua, o Caixa Preta (2002), e o Neelic (2003). Após quinze anos de luta pela permanência no espaço ocupado, em 2014, uma parceria entre as secretarias de Cultura e Saúde determina que os pavilhões passem a ser gerenciado pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (SEDAC), o que assegura a permanência e garante direitos aos grupos que atuam neste espaço. Outro exemplo de ação e conquista de espaço para ensaios e apresentações de grupos locais é o projeto Projeto Usina das Artes20, que acontece na usina do Gasômetro desde 2005, e tem como principal objetivo possibilitar o desenvolvimento de linguagens dos grupos, priorizando o trabalho continuado do artista. Foi sancionada como atividade regular da política cultural do município de Porto Alegre, através da Lei 10.683 de maio de 2009. Mesmo ano em que foi instituído o Programa Municipal de Fomento ao Trabalho Continuado em Artes Cênicas para a Cidade de Porto Alegre21: Lei 10.742 de setembro de 2009. Funciona como um prêmio para trabalho de grupos com pesquisa continuada, através de edital. O período encerra, portanto, com inúmeros exemplos não apenas de uma mudança de conteúdo, mas uma complexa reorganização de procedimentos e de percepções sobre o fazer teatral e do papel do teatro no contexto sociocultural. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em Porto Alegre, alguns grupos permanecem coesos desenvolvendo projetos verdadeiramente coletivos, outros mantêm um núcleo permanente, geralmente centrado na figura do diretor ou encenador, enquanto seus membros se lançam em atividades individuais, trabalhando como convidados em outros coletivos, ou se associando temporariamente com outros profissionais para a realização de projetos pessoais. Muitas vezes, projetos sem nenhum recurso financeiro público ou patrocínio privado, obrigando esses agrupamentos temporários a buscarem soluções alternativas, como por exemplo, o financiamento coletivo22, tanto para viabilizar um projeto sem nenhuma verba, como para o retorno de algum espetáculo que obteve algum finanFunciona através de edital, dez grupos de teatro e dança ocupam anualmente oito salas na Usina do Gasômetro. Ao redor de cada grupo, no entanto, orbitam outros grupos convidados que também utilizam o espaço. Além da utilização das salas para ensaios e apresentações, os grupos contemplados também recebem ajuda de custo no valor de R$ 1.500 mensais. Atualmente, os grupos que fazem parte do Projeto Usina das Artes (edital 2015) são: Teatro Sarcáustico, Grupo Jogo de Experimentação Cênica, Eduardo Severino Cia de Dança, Ânima Cia de Dança, NECITRA, Depósito de Teatro, Cambada de Teatro em Ação Direta Levanta Favela, Espaço em Branco, Grupo Trilho, Grupo Sílvia Canarim.  21 A verba não é fixa e oscila de acordo com o orçamento do ano. Em 2015 foram contemplados os grupos Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz e Oigalê, que dividiram em partes iguais o prêmio de R$ 250.000. 22 Projeto de financiamento coletivo ou crowdfuding é uma plataforma on-line que busca viabilizar financeiramente um projeto a partir da colaboração direta das pessoas que se identifiquem com ele. O projeto acontece através da arrecadação de verbas através das redes sociais, onde os realizadores disponibilizam os custos e formas de apoio, bem como a recompensa aos apoiadores. 20

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ciamento na primeira temporada, mas que não dispõe de condições financeiras para arcar com uma segunda etapa. As lutas da categoria que nas décadas de 1990 e 2000 resultaram na conquista de alguns avanços em relação às políticas públicas, como o FUMPROARTE, o Projeto Usina das Artes, o Condomínio Teatro São Pedro, a Lei de Fomento, e o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral do Teatro de Arena, chegam à metade da segunda década do século XXI com orçamentos estagnados, reduzidos ou ameaçados de extinção23, tanto no que concerne às verbas disponibilizadas, quanto à estrutura dos teatros públicos24, ou de salas próprias, conforme a reivindicação da atriz mencionada no início deste estudo. A realidade da cena porto-alegrense, portanto, se constitui em um retrato da instabilidade das políticas culturais para a atividade teatral. Embora a sociedade tenha se conscientizado da estreita dependência financeira das artes com o Estado, através do atual formato das leis de incentivo que, em Porto Alegre, predominam através do modelo de fundo ou prêmio, as verbas são insuficientes e não há investimento nenhum por parte do poder público em manutenção ou ampliação da estrutura existente. Além disso, generalizou-se a percepção de que não há demanda para o tipo de trabalho que esses grupos desenvolvem, tanto por parte de possíveis patrocinadores, quanto pelo público que prestigia o mercado de entretenimento. De acordo com Costa e Carvalho (2008), para patrocinadores, justamente por não ser entretenimento e, para os consumidores, porque esses trabalhos são “difíceis”, “complexos”, “estranhos”, e assim por diante. A prova disso são os dados da Secretaria Municipal de Cultura: em 2014 a ocupação dos teatros municipais ficou inferior a 39%. Essa dramaturgia contemporânea que se consolida não somente em novos procedimentos de trabalho, como também em novas linguagens estético-ideológicas, representa a capacidade crítica da manifestação teatral frente à sociedade a qual é contemporânea. Portanto, para que O FUNPROARTE ainda continua sendo o fundo de financiamento mais importante para os grupos locais, no entanto no decorrer de sua existência, reduziu os recursos e inseriu outras atividades passíveis de captação, o que aumentou a concorrência com as artes cênicas. O Projeto Pesquisa Teatral do Teatro de Arena passou a enfrentar dificuldades tais como atraso no pagamento, a partir da nova administração estadual, o que está gerando insegurança aos grupos que tem interesse na participação do projeto. Em dezembro de 2015 os grupos que ocupam o Condomínio São Pedro receberam ofício do secretário estadual da saúde rescindindo o termo de cessão dos prédios. A categoria se organizou e, até o presente momento, conseguiram manter a permanência, mas ainda sem uma decisão definitiva. 24 Em termos de espaços públicos disponíveis para apresentações teatrais pouca coisa mudou no decorrer das últimas três décadas. Os grupos ainda disputam os mesmos teatros criados na década de 1970 e administrados pela prefeitura (Teatro Renascença, Teatro de Câmara Túlio Piva – fechado para reformas desde 2013 - e Sala Álvaro Moreyra), e as duas salas da Casa de Cultura Mário Quintana, do governo do estado, criadas na década de 1980 (Sala Carlos Carvalho e Teatro Bruno Kiefer), e o Teatro de Arena. Tanto os teatros da prefeitura, quanto as salas administradas pelo estado necessitam de reformas e de modernização, assim como de investimentos em segurança para os frequentadores. As temporadas oferecidas foram reduzidas com o intuito de contemplar um número maior de grupos que concorrem aos editais, visto que houve aumento sensível de coletivos locais concorrendo aos mesmos espaços. 23

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o teatro cumpra sua função social, sobre a qual nos referimos no início deste estudo, necessita de autonomia e de liberdade de criação, pois a renovação da crítica pela arte só é possível através de um trabalho constante da arte sobre ela mesma. O que só se torna possível fora da dependência comercial e através do fomento e intervenção efetiva do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUVIGNAUD, Jean. Sociologie du théâtre. Paris: Presse Universitaire de France, 1965. 592 pg. CARREIRAS, André. O Teatro de Grupo e a renovação do teatro no Brasil. Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2010. COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. 279 pg. FISCHER, Stela Regina. Processo Colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras nos anos 1990. Dissertação de Mestrado em Artes. UNICAMP. Campinas, 2003. 231 pg. LIMA, Francisco André de Souza. Pedagogia de Teatro de Grupo: o processo colaborativo como dispositivo metodológico no Oficinão Finos Trapos. Dissertação de Mestrado. PPGAC/UFBA, 2014. 232 pg. MASSA, Clóvis. Evocação do acontecimento Teatral a partir do Programa do espetáculo: um imaginário do teatro dos anos 1990 em Porto Alegre. VI Reunião Científica da ABRACE. Porto Alegre, 2011. MENGER, Pierre-Michel. Portrait de l’artiste em travailler: métamorphoses du capitalisme. Paris, FR: Éditions du Seuil et La République des Idées, 2002. 96 pg. PEIXOTO, Fernando. O que é Teatro. São Paulo- SP: Editora Brasiliense, 1998. 91 pg. MOTTOLA, Adriane Cecília Pinto. Cia di Stravaganza: um olhar sobre os processos criativos no Teatro de Grupo. Dissertação de Mestrado. PPGAC/UFRGS. Porto Alegre, 2009. 198 pg. REIS, Nicole Isabel. Dançar nos fez pular o muro: um estudo antropológico sobre a profissionalização artística em Porto Alegre (1975/1985). Dissertação de Mestrado PPGAS/UFRGS. Porto Alegre, 2000. 184 pg. RIBEIRO, Denise. Políticas Públicas para as Artes Visuais: o caso FUMPROARTE em Porto Alegre. Dissertação de Mestrado. PPGAC/UFRGS. Porto Alegre, 2013. 92 pg. RODRIGUES, Eder Sumariva. Teatro anos 80: uma década vazia? UFSC, Santa Catarina. 2012. SILVA, Newton Pinto. Palcos da Vida: o vídeo como documento do teatro em Porto Alegre nos anos 1980. Dissertação de Mestrado. PPGAC/UFRGS. Porto Alegre, 2010.154 pg. TROTTA, Rosyane. Paradoxo do Teatro de Grupo no Brasil. Dissertação de Mestrado em Teatro. Uni-Rio. Rio de Janeiro, 2001. 186 pg.

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POLÍTICA E GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL NO BRASIL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS DE SALVAGUARDA. Lucieni de Menezes Simão1

RESUMO: As experiências analisadas neste trabalho referem-se às políticas de salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI) conduzidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na última década. O foco são alguns processos de registro e planos de salvaguarda de bens culturais localizados na Região Sudeste, com destaque para o ofício das paneleiras de Goiabeiras, o jongo e as matrizes do samba no Rio de Janeiro. Identifica-se como um dos grandes desafios a articulação entre detentores, gestores, movimentos sociais e organizações da sociedade civil chamados a participar da discussão sobre melhor maneira de salvaguardar saberes e formas de expressão culturais. Argumenta-se que somente através do protagonismo desses atores socais se pode construir uma política de patrimônio cada vez mais inclusiva. PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Imaterial; Salvaguarda; Brasil.

1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS CULTURAIS E DO ACESSO À CULTURA No campo das políticas culturais, há uma série de reflexões sobre práticas de salvaguarda e ações de intercâmbio entre países latino-americanos, que avançaram nas discussões do campo jurídico e na consolidação dos direitos culturais e de acesso à cultura, com destaque para o importante fórum internacional denominado CRESPIAL2. O antropólogo Eduardo Nivón reflete sobre a ampliação dos direitos culturais em grandes cidades latino-americanas, como a do México, e vem observando no atual processo de globalização a crescente internacionalização das agências e das conexões em redes entre agentes sociais, que extrapolam cada vez mais as antigas fronteiras nacionais (NIVÓN, 2011, p. 11). Loreto Bravo Fernández apresenta um conjunto de considerações sobre as políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial na América Latina, Doutora em Antropologia (PPGA/UFF) atuei como consultora na área de patrimônio imaterial. Atualmente, integro o quadro docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ/UCAM). E-mail: [email protected] 2 O Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina (CRESPIAL) foi criado em fevereiro de 2006, com o objetivo de promover e apoiar ações de salvaguarda e de proteção do vasto patrimônio cultural imaterial dos povos da América Latina. 1

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trazendo a experiência da gestão cultural em países como o Chile e o que representou a implementação de programas com um marcante caráter participativo (FERNÁNDEZ, 2011, p. 15). No Brasil, o marco legal da política do Patrimônio Cultural Imaterial está situado na promulgação da Constituição Federal, em 1988. Nos artigos direcionados à cultura, o Estado garante “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” (Art. 215). Reconhece, ainda, que a nação brasileira é diversa e constituída por inúmeros grupos étnicos e segmentos sociais, destacando-se as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras” (Art. 215, § 1º). O Artigo 216 amplia a noção de patrimônio ao incluir os modos de vida, os sentidos e valores atribuídos pelos diferentes grupos que compõe a sociedade brasileira. Dessa forma, no texto da lei reconhece-se que o patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos bens de natureza material e imaterial (grifos nossos), “portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988[2001]). A historiadora e pesquisadora Lia Calabre chama a atenção para os avanços da política cultural, principalmente a partir da primeira década do século XXI: Uma série de instrumentos de caráter estruturante vem sendo construída. Em, 2005, foi criado, por lei, o Conselho Nacional de Política Cultural [...] Em dezembro de 2010, através da Lei n. 12.343, foi instituído o Plano Nacional de Cultura (fruto de quase quatro anos de consultas e debates políticos). O Sistema Nacional de Cultura (SNC) foi estruturado através da Emenda Constitucional n. 72 de dezembro de 2012. (CALABRE, 2014, p. 1) As políticas públicas referentes ao patrimônio cultural de natureza imaterial, conduzidas na última década pelo Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI/IPHAN), têm se mostrado pioneiras dentro do órgão federal de preservação, desde a sua institucionalização em 1937. O Decreto-lei 25/37, que organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituiu a figura jurídica do Tombamento para a preservação dos bens móveis e imóveis de valor excepcional. Porém, uma série de outros bens culturais não se enquadrava nessa definição de patrimônio histórico e artístico nacional (Art. 1º). A partir de meados da década de 1970, os debates sobre o alargamento do chamado campo do patrimônio desenvolveram-se dentro e fora da instituição. Porém, somente em final da década de 1990, instituiu-se um Grupo de Trabalho de técnicos do IPHAN e do MinC e uma Comissão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para o estudo das legislações internacionais e das experiências de reconhecimento das dimensões simbólicas do patrimônio cultural, bem como de estabelecimento dos procedimentos para o seu reconhecimento (MINC/IPHAN, 2006). A partir de então, o Decreto 3551/2000, de 04 de agosto de 2000, instituiu a figura do Registro do Patrimônio Imaterial, instrumento jurídico análogo ao Tombamento. A mesma legislação cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial,

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que articula as ações de reconhecimento, promoção, difusão e fomento dos bens culturais de natureza imaterial. Somente com a inscrição do bem cultural em um dos quatro Livros de Registro, inicia-se um meticuloso processo de implantação do Plano de Salvaguarda. Ao discutirem o estado da arte do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil, Maria Laura V. de Castro e Maria Cecília Londres Fonseca retomam a conceituação estabelecida pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, em 2003. Segundo as autoras, a política conduzida pelo IPHAN se coaduna com as diretrizes da UNESCO, que consolida a política do patrimônio imaterial em escala mundial e aperfeiçoa as definições de “patrimônio cultural imaterial” e de “salvaguarda” no sentido de formar um conceito amplo para essas noções (FONSECA; CASTRO, 2008). Categoria central do novo discurso patrimonialista, a construção de um conceito de salvaguarda ainda está por se formular, do mesmo modo que se precisou o conceito de bem cultural em meados da década de 1960. Na Recomendação de Nairóbi, no âmbito da 19a Conferência Geral da UNESCO, em novembro de 1976, retoma-se a definição de salvaguarda, agora com menos ambigüidades: “a identificação, a proteção, a conservação, a restauração, a reabilitação, a manutenção e a revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de seu entorno” (UNESCO, 1976 apud IPHAN, 2004, p. 220) Para fins da Convenção do Patrimônio Imaterial, entende-se por salvaguarda, as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos (UNESCO, 2003 apud IPHAN, 2004, p. 374. A questão da Salvaguarda faz parte do conjunto das políticas voltadas para o patrimônio cultural imaterial, que tem início com os inventários culturais e o registro, e culminam nas ações de preservação que visam à valorização e transmissão. O antropólogo Antônio Augusto Arantes discute alguns aspectos conceituais em torno das ações de salvaguarda, e toma a Convenção de 2003 como ponto de partida para uma reflexão sobre a ampliação dos conceitos de patrimônio cultural e de salvaguarda. Ao tratar as questões metodológicas dos inventários do patrimônio imaterial, Arantes aborda questões controversas na aplicação desse instrumento e discute aspectos conceituais e ações de salvaguarda desenvolvidas no Brasil e em outros países. O autor acredita que tais práticas constituem experiências recentes, ainda em construção, e que, por isso mesmo, devem ser compartilhadas e debatidas em fóruns internacionais (ARANTES, 2009, p. 174). Portanto, embora haja uma afinidade em termos de protocolos e intenções, no Brasil a questão da salvaguarda é ainda um território amplo a ser explorado. E há um longo debate em curso.

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Para Arantes, um dos principais desafios relacionados ao campo do patrimônio imaterial está relacionado ao que se poderia chamar de “política de representação e tomada de decisões. [...] Uma vez que nem todos os grupos sociais conseguem o mesmo acesso às entidades governamentais de seus países” (ARANTES, 2009, p. 177). A questão da representatividade vem sendo questionada, inclusive, nas listas do patrimônio mundial e imaterial, revelando um campo de tensões intrínseco ao patrimônio como um todo. Izabela Tamaso reflete sobre os conflitos inerentes às disputas das memórias coletivas e sobre as questões éticas que envolvem antropólogos na elaboração de “laudos culturais” nos processos de patrimonialização de bens de natureza imaterial (TAMASO, 2006). Além disso, há muito pouca reflexão sobre este novo momento das práticas de preservação, principalmente a partir da regulamentação da política do patrimônio imaterial e de sua institucionalização. Em 2010, o instituto do Registro completou dez anos e os instrumentos continuam sendo aprimorados e testados pelo IPHAN. No âmbito da política de salvaguarda, um dos fatores a se considerar são as negociações entre agentes sociais locais e instituições de preservação. Gestores públicos e privados, detentores, brincantes, artesãos, movimentos sociais os mais variados e organizações da sociedade civil são chamados a participar de um complexo processo de discussão sobre a melhor maneira de preservar, proteger e salvaguardar determinados saberes e formas de expressão culturais. Investe-se na perspectiva de autonomia desses grupos na gestão do seu próprio patrimônio cultural, o que implica em responsabilidades compartilhadas. Como toda essa implementação é muito recente, os resultados das iniciativas ainda são restritos a relatórios internos e, por isso mesmo, pouco compartilhados; ademais, identifica-se uma carência de profissionais qualificados para acompanhar todo esse movimento. As antropólogas Letícia Vianna e Morena Salama analisam a política de salvaguarda em seus dez primeiros anos. Numa perspectiva comparada, as autoras criam um “método que reúne um conjunto de instrumentos que balizam os procedimentos de coleta, documentação, acompanhamento e sistematização das informações referentes à execução das atividades de salvaguarda” (VIANA; SALAMA, 2012, p. 72). Segundo as autoras, os “processos administrativos” são precedidos por “processos sociais” bastante complexos. Esses instrumentos foram testados nas primeiras oito experiências de salvaguarda e os resultados revelaram uma apropriação desigual da política. Observou-se que ao longo dos processos de salvaguarda não ficaram suficientemente claros o alcance e a consequência do registro para os detentores dos bens registrados. Alguns grupos de detentores tinham a expectativa de que o registro gerasse direitos, que ele fosse, por si só, um instrumento de proteção de propriedade intelectual e de garantia de direitos coletivos (VIANNA; SALAMA, 2012, p. 75).

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O “Termo de Referência para Planos de Salvaguarda”, documento técnico elaborado pelo DPI/IPHAN, informa sobre os requisitos para implantação do Plano de Salvaguarda, como a inscrição do Bem em um dos quatro livros de Registro e a elaboração de um “planejamento estratégico baseado no diagnóstico e nas recomendações de salvaguarda arrolados no processo de Registro. Este planejamento estratégico é elaborado e executado com base na interlocução continuada entre Estado e sociedade” (IPHAN/DPI, 2011, p. 20). O documento também informa sobre o âmbito de atuação do Comitê Gestor; ou seja, depois de estruturado, é ele [o Comitê] que “coordenará todo o desenvolvimento do plano, sua avaliação e desdobramentos, composto pelo IPHAN, poderes públicos estaduais e municipais e representantes dos detentores do bem cultural registrado” (IPHAN/DPI, 2011, p. 23). As recomendações, portanto, fazem parte do dossiê do Registro – resultado material de produção de conhecimento sobre o bem cultural. Já o plano evidencia uma proposta futura. É um entendimento coletivo sobre as melhores formas de preservar e valorar o bem, tendo em vista a criação de um pensamento compartilhado e duradouro sobre a importância de sua transmissão e manutenção. Por fim, as ações referem-se a atuações pontuais ainda sem uma visão global do processo. Estas diversas instâncias subentendem a existência de um comitê gestor bem estruturado e consensual, que dará estruturação ao plano de salvaguarda. A elaboração dos planos de salvaguarda tem início nas pesquisas de inventário3, pois é nesta fase que se estabelecem os primeiros contatos com os grupos e comunidades de detentores. A pesquisa de campo coloca geralmente os investigadores em equipes multidisciplinares (mas direcionadas aos campos das ciências sociais, sobretudo da antropologia), em contato com as expressões culturais e com as pessoas que as mantêm. Um papel central é exercido pelo “antropólogo inventariante”, expressão cunhada por Izabela Tamaso, referindo-se à tarefa específica de executar “qualquer função no Inventário Nacional de Referências Culturais, seja pesquisa, trabalho de campo ou coordenação de inventários” (TAMASO, 2006, p. 8). Embora não haja uma maneira digamos “ideal” de conduzir os inventários do patrimônio imaterial, ocorre que em alguns casos não se consegue obter o envolvimento adequado de segmentos importantes para a boa conclusão de um plano de salvaguarda consistente, seja porque as pesquisas de campo não atingiram a profundidade adequada, seja por conflitos internos e externos aos grupos detentores. As experiências aqui analisadas referem-se à perspectiva mais alargada de salvaguarda debatida e defendida pelas entidades multilaterais, com a participação dos envolvidos. A mobilização social torna-se, portanto, um dos principais vetores para a gestão participativa, contribuindo para a transmissão, difusão e valorização desses bens culturais. Em nossas considerações O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é a metodologia adotada pelo IPHAN para a produção e sistematização do conhecimento sobre o bem. Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC: Manual de aplicação. Brasília: MINC/ IPHAN/ DID, 2000.

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foram incluídos alguns processos de salvaguarda da Região Sudeste que demandam esforços para a criação e formalização de um comitê gestor, como o das paneleiras de Goiabeiras no Espírito Santo, o jongo/ Caxambu do Sudeste e as matrizes do samba no Rio de Janeiro. O recorte regional foi escolhido por razão de trabalhos de campo realizados anteriormente4. A exposição seguirá a ordem cronológica dos registros. 2. AS PRÁTICAS DE SALVAGUARDA DE BENS REGISTRADOS: ESTUDOS DE CASO Ofício das Paneleiras de Goiabeiras/ ES foi o primeiro bem de natureza imaterial registrado pelo IPHAN, em dezembro de 2002. Inicialmente, é preciso identificar que o termo paneleira refere-se a um ofício. É aquele indivíduo (artesã ou artesão) que modela e dá forma às panelas e outros objetos cerâmicos utilitários. Esta que já foi uma atividade eminentemente feminina, transmitida de mãe para filha, através de processos de aprendizado informal, tem ampliado nos últimos anos o número de executantes e acarretado uma crescente vulgarização das panelas, com a sua vinculação ao turismo regional, sempre associado a pratos da culinária capixaba. A condução dos estudos do IPHAN referentes ao pedido de instrução de Registro do Ofício das Paneleiras reuniu bibliografia e documentais, levantamentos fotográficos e audiovisuais, além de mapas do território (da cidade de Vitória/ES e do bairro de Goiabeiras Velha). A metodologia utilizada foi a do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), que levou em conta as funções exercidas pelos principais executantes do ofício. A ênfase recaiu no processo de produção, com a descrição das etapas de confecção do artefato cerâmico e a identificação dos principais envolvidos com o processo de produção e suas respectivas funções. Naquele momento, era importante testar os instrumentos técnicos da política de patrimônio imaterial, pois eles subsidiariam as etapas de instrução do Registro. O ofício das paneleiras se revelava oportuno para esse fim, pelo seu universo limitado e circunscrito a um território e pela extensa documentação produzida sobre o ofício. Trata-se de um núcleo residencial, com um número relativamente reduzido de executantes e circunscrito a algumas famílias que tradicionalmente ocupavam a região. Assim, poder-se-ia resultar em trabalho consistente na aplicação da metodologia do INRC. Em minha pesquisa de campo realizada na comunidade de Goiabeiras Velha busquei refletir sobre a apropriação desse processo de patrimonialização. Interessou-me compreender a forma com que as paneleiras apreenderam a categoria patrimônio e se essa categoria provocava algum tipo de “ressonância” no entendimento do ofício. Ao se apropriarem rapidamente do “discurso da cultura” tomaram-no como uma ferramenta para se legitimarem profissionalmente SIMÃO, Lucieni de M. A Semântica do Intangível. Considerações sobre o Registro do ofício das paneleiras do Espírito Santo. Tese de Doutorado. Niterói, PPGA/UFF, 2008. 4

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e como pauta reivindicatória para pleitos junto aos governos municipal e estadual. Assim sendo, e atenta ao fato de que a produção da panela de barro é uma prática social em plena vigência no bairro de Goiabeiras Velha, procurei investigar os modos de apropriação do Registro desse ofício, considerando os sujeitos sociais envolvidos. Os agentes foram estudados em suas interações com as instâncias mediadoras do poder público e em seus embates com relação ao mercado. O que respalda todo esse processo de patrimonialização das paneleiras, segundo a lógica das pessoas entrevistadas, é a maneira como esse saber-fazer foi cultivado e transmitido no território de Goiabeiras. Os efeitos positivos da ideia de patrimônio repercutem no processo de construção da identidade social da paneleira, tornando possível à categoria reivindicar o acesso ao barreiro e as políticas públicas de saúde e previdência social, ambas debatidas nas oficinas de salvaguarda que ocorreram durante o ano de 2006. A análise do processo de Registro e o acompanhamento das ações de salvaguarda permitiram-me tecer algumas considerações sobre os mesmos: participação assimétrica no processo de patrimonialização do bem, aumento da produção de panelas e demais produtos, mercantilização crescente, problemas de gestão e conflitos internos e externos a associação das paneleiras (SIMÃO, 2008) Como ressaltado anteriormente, este foi o primeiro Registro do Patrimônio Imaterial e a primeira experiência no uso da metodologia conduzida pelo IPHAN-ES. A questão premente que se colocava na época era a ameaça da extração da matéria-prima e do risco de desaparecimento desta prática dentro da comunidade. A mobilização feita em torno do registro foi bastante pontual e não procurou abranger nem compreender os processos sociais. Os conflitos referem-se às disputas locais entre a Companhia Espírito-Santense de Saneamento (CESAN) e a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG) em função do terreno da jazida de onde se retira o barro para confeccionar as panelas e demais artefatos cerâmicos. Localizada no Vale do Mulembá, no bairro de Joana D’Arc, em Vitória, esta é até hoje a única jazida utilizada pela comunidade de Goiabeiras Velha. Nesse caso, a salvaguarda também passava pelo recurso a matéria-prima. Tais disputas estão relatadas no processo administrativo do Registro e foram atualizadas através de ações de salvaguarda que visavam à proteção da matéria-prima, culminando na solicitação de “Indicação Geográfica” concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), em 2011. Foi uma ação conjunta com o IPHAN/ES e uma conquista para as paneleiras, que buscavam uma solução para a “questão do barreiro” e para a colocação das panelas no mercado. No entanto, o dossiê de registro não apontou para um plano mais consistente que mobilizasse o segmento das paneleiras, nem tampouco constituiu um Comitê Gestor que abrangesse outros setores da sociedade capixaba em torno da preservação do ofício a médio e longo prazo. A revalidação é outro quesito bastante importante nas discussões sobre a política do patrimônio imaterial, uma vez que a legislação prevê a avaliação periódica do bem a cada dez anos (Decreto 3.551/2000; Art. 7º), por se tratarem de criações culturais de caráter processual e inse-

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ridas em dinâmicas sociais próprias. Nesse sentido, o ofício das paneleiras e a arte kusiwa - pintura corporal e arte gráfica Wajãpi serão os primeiros bens a serem reavaliados e revalidados. Para tanto, o IPHAN editou a Resolução n. 01, de 18 de julho de 2013, que dispõe sobre o processo administrativo de Revalidação do Título de Patrimônio Cultural do Brasil dos bens culturais Registrados. Nesta normativa, o IPHAN informa os procedimentos a serem observados na instauração e instrução do processo (Art. 2º), que consiste na atualização e eventual complementação de informações através do INRC. No caso do Ofício das Paneleiras, o inventário que está sendo aplicado passa a ser compreendido como mais um instrumento de salvaguarda. Para a revalidação, a instauração do processo administrativo será feita por intermédio do DPI (Art. 3º); porém, a instrução do mesmo ficará sob responsabilidade da Superintendência do IPHAN em sua área de circunscrição (Art. 4º). Nesse caso das paneleiras, é o IPHAN-ES que solicita informações atualizadas sobre as ações de salvaguarda desenvolvidas aos detentores e demais partes interessadas e envolvidas no processo de registro. Eventualmente, se a Superintendência achar necessário, poderá contratar empresa especializada para realizar nova pesquisa de campo, utilizando a metodologia do INRC. A atualização da documentação deve abranger a produção de documentação fotográfica e audiovisual, a produção de textos de caráter etnográfico, de modo a viabilizar análise comparativa com a documentação produzida para a outorga do título (Art. 11º). Há um entendimento de que o INRC é considerado per si uma ação de salvaguarda, principalmente pela mobilização junto aos segmentos envolvidos. Finalizada essa etapa de atualização das informações, todo o material produzido será encaminhado para uma Comissão Técnica de acompanhamento do processo administrativo (Art. 9º), instituída através da Portaria n. 340, de 26 de julho de 2013, que emitirá nota técnica que subsidiará a decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural sobre a Revalidação do Título de Patrimônio Cultural do Brasil. Pelo trabalho que desenvolvi durante anos junto ao grupo acompanho de perto os trâmites, torcendo para que as paneleiras obtenham mais essa conquista. Os outros dois casos de que trato neste trabalho relacionam-se a um conjunto de bens de origem afro-brasileira registrados pelo IPHAN. Dentre eles, há um número significativo de saberes e expressões culturais que buscam visibilidade e reconhecimento, acesso a direitos e afirmação de suas identidades culturais. A mobilização sobre a expressão cultural jongo partiu da experiência empreendida pelos próprios jongueiros, que se articularam e promoveram os “Encontros dos Jongueiros”. Tais encontros, que se iniciaram em 1996, na região Norte Fluminense, com a articulação de alguns grupos de jongo de Miracema e Santo Antônio de Pádua e professores do campus da Universidade Federal Fluminense, em Santo Antônio de Pádua, ganharam visibilidade a partir do ano 2000, quando foi constituída a “Rede de Memória do Jongo”. Da mobilização social ao registro no Li-

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vro das Formas de Expressão, em 2005, as motivações que levaram a todo esse processo resultaram desses encontros. Neles, foram identificados problemas encontrados pelas comunidades de jongo que viam suas ações e demandas invisibilizadas pelos poderes públicos locais, tanto no que se refere ao reconhecimento de seus territórios, quanto ao apoio à tradição do jongo. Lia Calabre retoma alguns dos principais problemas enfrentados pela população negra nos municípios com tradição jongueira. Nos anos 80 e 90 do século XX, o jongo e outras manifestações da cultura popular quase desapareceram ou se viram relegadas ao campo do folclore. Portanto, havia a questão do preconceito, da discriminação contra a prática do jongo e da dificuldade na transmissão para as novas gerações. Há o grupo que está em litígio para obter o reconhecimento da propriedade da terra e que sofre com a precariedade dos serviços nas áreas rurais. Há um grupo, em uma área mais urbana e periférica, para o qual ao conjunto de preconceitos raciais e sociais se soma o fato de serem jongueiros. Há, ainda, o claro problema do lugar do negro na história, que dialoga diretamente com a dificuldade de construção da identidade negra e da valorização dos fazeres e dos saberes. Temos um somatório da potência do legado da tradição africana, com fortes elementos de religiosidade, entrecruzadas com uma realidade marcada pela carência, exclusão e preconceitos (CALABRE, 2014, p. 6) O reconhecimento pela via do registro seria um importante instrumento de pressão diante das situações acima apresentadas. De fato, após a cerimônia de proclamação pública do Jongo como Patrimônio Cultural do Brasil, realizada no X Encontro de Jongueiros, em 2005, na cidade de Santo Antônio de Pádua, lugar de origem desse movimento de organização das comunidades jongueiras, deu-se início ao plano de salvaguarda do jongo. Em 2007, o IPHAN e a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, através do Programa Cultura Viva, consagram uma parceria no sentido de que os bens registrados fossem automaticamente integrados a esse Programa. O IPHAN criou um “Termo de referência para a criação de Pontos e Pontões de Cultura de Bens Registrados”, fixando determinadas características próprias e critérios de seleção das entidades para celebração de convênios (IPHAN/DPI, 2011: 25-28). É nesse contexto de abertura de novos convênios e parcerias que o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu é criado. Nesse sentido, o Pontão passou a ter um papel de articulador das ações de salvaguarda, através do trabalho de assessoria, pesquisa e extensão universitária, junto às comunidades da Rede de Memória do Jongo/Caxambu. Quanto aos resultados apresentados pelo Pontão do Jongo, considera-se que a articulação e consolidação da rede foram as principais ações, uma vez que é em seu âmbito que se discutiu e construiu a política de salvaguarda do Jongo, com a participação de todos os parceiros, em especial, das 32 lideranças jongueiras. Entre uma reunião e outra, foram realiza-

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das as demais ações do programa, como as oficinas, seminários, assessorias, que sempre aconteceram de forma descentralizada nas comunidades. (Plano de Salvaguarda do Jongo, 2011, p. 29). O Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste, versão final discutida e aprovada na 14ª Reunião de Articulação do Pontão do Jongo/Caxambu5, em dezembro de 2011, faz referência ao processo de registro do Jongo e apresenta as três principais linhas de ação desenvolvidas pelo Pontão do Jongo/Caxambu, em três convênios celebrados entre a UFF e o IPHAN. Desde o início buscou-se constituir um Comitê Gestor representativo que agregasse as comunidades e grupos de detentores, os representantes da sociedade civil e dos governos estaduais e municipais. Tendo em vista a abrangência regional do jongo, preferiu-se criar uma “comissão gestora” composta por lideranças jongueiras, técnicos, parceiros e consultores, para monitoramento de todas as ações desenvolvidas no âmbito do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu. Assim, nas reuniões de articulação e da comissão gestora foram discutidas as principais demandas do coletivo jongueiro e tecidas as ações para a constituição do plano integrado de salvaguarda ao qual nos referimos. Conclui-se, portanto, que a salvaguarda do jongo tem obtido bons resultados, como o fortalecimento da rede de memória do jongo; a apresentação e aprovação de projetos em editais, edição e publicação dos conteúdos gerados pelas oficinas de capacitação; e assessoria às comunidades. Embora a gestão do Pontão ainda não seja exercida pelos próprios detentores, como acontece com o samba de roda do Recôncavo Baiano e outros bens registrados, mas através de um projeto de extensão universitária, a participação dos detentores pode ser considerada um exemplo de maior sucesso na salvaguarda do patrimônio imaterial brasileiro (IPHAN/DPI, 2011, p. 45). O Registro das matrizes do Samba no Rio de Janeiro (partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo) parte da mobilização de associações representativas do samba6. A candidatura teve o apoio dos sambistas, principalmente das velhas-guardas das escolas de samba, com a adesão de intelectuais ligados ao mundo do samba e de instituições governamentais. O pedido foi oficialmente entregue em cerimônia pública, em 2005, contando com a presença do Ministro da Cultura e do Presidente do IPHAN. Inicialmente, as motivações para essa candidatura estavam relacionadas à Proclamação do Samba de Roda do Recôncavo Baiano como Patrimônio Imaterial da Humanidade, em 2005, e ao reconhecimento desse gênero musical – o samba – como importante forma de expressão da cultura brasileira. Ainda nesse ano, o IPHAN e o Centro Cultural Cartola celebram convênio para instrução técnica do processo de registro do samba. Pontão do Jongo/Caxambu. Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste. Niterói: Pontão do Jongo/ Caxambu, 2011. Para ver o documento na íntegra, acessar o endereço abaixo: http://www.pontaojongo.uff.br/sites/default/files/upload/plano_de_salvaguarda_versao_final.pdf, acessado em 07/ 12/2014. 6 O Centro Cultural Cartola, organização da sociedade civil, assina a solicitação em parceria com a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) e a Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ). 5

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O registro no Rio de Janeiro partiu do entendimento de que certas modalidades de “samba de raiz” haviam perdido espaço para outras vertentes, sobretudo aquelas ligadas à indústria cultural. Durante a pesquisa de inventário optou-se por “analisar os variados estilos de samba no Rio de Janeiro, que se originaram nas reuniões musicais em casa de Tia Ciata, no Estácio, nas escolas de samba, nos blocos, nos morros, nas ruas e nos quintais” (CENTRO CULTURAL CARTOLA; IPHAN, 2007, p. 9). O recorte contemplou as três formas de expressão que mais intimamente se relacionam com o cotidiano, com os modos de ser e de viver, com a história e a memória dos sambistas. Em todo o universo do samba no Rio de Janeiro essas três formas de expressão – samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo – são as que implicam relações de sociabilidade: sua prática está enraizada no cotidiano dos sambistas, na vida das pessoas, tendo, portanto, continuidade histórica (idem, 2007, p. 10). Na pesquisa foi utilizada a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais. No dossiê encontram-se indicadas as recomendações de salvaguarda, e foram previstas ações nas áreas da pesquisa, documentação, transmissão, produção, registro, promoção e apoio (idem, 2007, p. 117). Alessandra Lima, ao referir-se aos principais agentes e interlocutores na construção da salvaguarda das matrizes do samba, reconhece o protagonismo do Centro Cultural Cartola na condução do inventário e registro. A experiência acumulada na gestão de projetos anteriores “parece ter facilitado a execução das ações que se iniciaram com o INRC, coordenado pela entidade” (LIMA, 2012, p. 12). As entidades de detentores apresentam dificuldades na gestão de recursos públicos e terminam por inviabilizar novos contratos. Vianna e Salama (2012, p. 85) também salientam sobre os problemas que determinadas associações de detentores enfrentam em assumir os desafios na gestão dos contratos com o Estado. O Centro Cultural Cartola exerceu papel de destaque no diálogo com as instituições governamentais, sobretudo, com o IPHAN. No momento do Registro, outros órgãos governamentais como a Fundação Cultural Palmares (FCP) e a Secretaria de Promoção de Políticas para Igualdade Racial (SEPPIR) também participaram do processo, mas essas parcerias foram se diluindo ao longo do tempo e não possuíram impacto efetivo na condução das ações de salvaguarda geridas pelo CCC, embora pudessem eventualmente, apoiar iniciativas pontuais (LIMA, 2012, p. 13) No final de 2008, foi firmado novo convênio com o IPHAN, agora realizado no âmbito do Programa Cultura Viva, com o objetivo de implantação de um “Pontão de Memória do Samba no Rio de Janeiro”. Estruturou-se em eixos de ação visando à pesquisa e documentação, à transmissão de saberes e produção, ao registro, promoção e apoio (IPHAN, 2007:117) Outro

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aspecto relevante refere-se aos representantes que assumiriam a parte de gestão. Embora não tenham conseguido consolidar um ao Comitê Gestor nem dialogar efetivamente com todas as outras instâncias, logrou criar o Conselho do Samba, composto por 21 membros e instituído em fevereiro de 2009, como instância de representação e orientação do Plano de Salvaguarda do Samba Carioca. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para lidar com esse conjunto de políticas culturais relacionadas ao patrimônio cultural imaterial, é preciso compreender, primeiramente, que se trata de “patrimônio vivo” e, portanto, partilhado por um conjunto significativo de indivíduos e grupos. Os inventários devem ser capazes de identificar e documentar as “referências culturais”, sem, contudo, congelar as expressões da cultura. Produzidos “em contexto”, devem ser razoavelmente densos em termos de detalhes históricos e etnográficos (ARANTES, 2009, p 186). Práticas sociais, conhecimentos e formas de expressão – a que se atribua ou não valor patrimonial – são criadas, apropriadas, amalgamadas, desenvolvidas, acalentadas ou esquecidas por povos particulares, em lugar e momentos específicos (ARANTES, 2009, p.181). Campo de tensão e disputa entre os valores atribuídos localmente e aqueles reconhecidos na arena da preservação, os processos de reconhecimento prescindem negociações permanentes. Os ofícios e modos de fazer, quando enraizados no cotidiano das comunidades, produzem um sentimento de pertencimento ao território e fortalecem as identidades sociais. As Paneleiras buscam o reconhecimento de seu ofício, elaboram pautas reivindicatórias e buscam melhores condições de trabalho. Apesar de já terem seu bem registrado há bastante tempo, a categoria profissional ainda não formalizou seu comitê gestor e as ações de salvaguarda não obtiveram a adesão e o compromisso de todas as partes dos segmentos. Da mesma forma, as comunidades de jongo e de sambistas apresentaram dificuldades na constituição de seus comitês. Trata-se daquilo que Arantes chama de “dilema da representatividade” ao referir-se à complexidade das questões relacionadas ao âmbito da salvaguarda do patrimônio imaterial e ao fato de que esses contextos locais não são, de forma alguma, homogêneos (ARANTES, 2009, p. 178). Tomando esses processos de salvaguarda em curso, pretendi lançar luz sobre a consecução da política contemporânea do patrimônio cultural imaterial e das práticas de preservação a ela associada. Por se tratar de processos sociais bastante complexos, espera-se que tais reflexões venham somar esforços no sentido de construir uma política de salvaguarda cada vez mais inclusiva.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Antônio Augusto. “Sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural intangível: ensaio de antropologia pública”. Anuário Antropológico, p. 173-222, 2009. CALABRE, Lia. Práticas Culturais e Processos de Patrimonialização: a ação das políticas culturais e o jongo do Sudeste como um possível estudo de caso. Revista Estudos de Sociologia, v. 1, n. 20, 2014. CAVALCANTI, Ma. Laura V. C.; FONSECA, Ma. Cecília L. Patrimônio Imaterial no Brasil. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008. CENTRO CULTURAL CARTOLA; IPHAN. Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro. Partido alto, samba de terreiro e samba enredo. Rio de Janeiro: Centro Cultural Cartola/ IPHAN, 2007. IPHAN. Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC: Manual de aplicação. Brasília: MINC/ IPHAN/ DID, 2000. IPHAN. Ofício das Paneleiras de Goiabeiras. Dossiê IPHAN 3. Brasília: IPHAN, 2006. _____. Jongo no Sudeste. Dossiê IPHAN 5. Brasília: IPHAN, 2007. IPHAN/DPI. Orientações para implementação da política, sistematização de informações, monitoramento da gestão e avaliação dos resultados da salvaguarda de bens registrados. Brasília, maio de 2011. LIMA, Alessandra R. Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: uma experiência de salvaguarda. Brasília: DPI/IPHAN, 2012. MINC/IPHAN. O Registro do Patrimônio Imaterial – Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial, 4ª ed. Brasília: MinC/ IPHAN, 2006. NIVÓN Eduardo. et. al. Políticas Culturais: teoria e práxis. CALABRA, Lia (org.) São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. PONTÃO DE CULTURAL DO JONGO/CAXAMBU. Plano de Salvaguarda do Jongo no Sudeste. Niterói: Pontão do Jongo/Caxambu, 2011. SIMÃO, Lucieni de M. A Semântica do Intangível. Considerações sobre o registro do ofício das paneleiras do Espírito Santo. Tese de Doutorado. Niterói, PPGA/UFF, 2008. TAMASO, Izabela. “A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos, outros desafios...” Série Antropologia. Brasília, Depto. De Antropologia, UnB, 2006. UNESCO. “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial”. In; IPHAN. Cartas Patrimoniais. CURY, I. (org.). Edições do Patrimônio. 3a ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 371-390. VIANNA, Letícia; SALAMA, Morena. Avaliação dos Planos e Ações de Salvaguarda de Bens Culturais Registrados como Patrimônio Imaterial Brasileiro. CALABRE, Lia (org.). Políticas culturais: pesquisa e formação. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012.

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CONSTRUÇÃO E GESTÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS COMPARTILHADAS Luiz Augusto Fernandes Rodrigues1 Marcelo Silveira Correia2 RESUMO: Breve discussão sobre a instituição de políticas compartilhadas para o planejamento cultural e apresentação de proposta metodológica para a construção de planos municipais de cultura. O trabalho relata experiência em desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro, fruto de parceria técnica entre o Laboratório de Ações Culturais da Universidade Federal Fluminense (LABAC-UFF) e a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC-RJ), ação decorrente do programa PADEC – edição 2015. PALAVRAS-CHAVE: plano municipal de cultura , gestão compartilhada , metodologia para planejamento cultural

1. UM PONTO DE PARTIDA... Buscar-se-á, aqui, refletir sobre algumas bases conceituais que fundamentaram proposição metodológica para subsidiar a construção de planos municipais de cultura. A formulação desta possível metodologia partiu da experiência junto ao bacharelado em Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense, e foi formalizada através de parceria entre o Laboratório de Ações Culturais (LABAC-UFF) e a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC-RJ) para ação junto a 34 municípios do Rio de Janeiro através da ação PADEC – Edição 2015. Começamos por discutir a ideia de gestão cultural. Por gestão cultural vem-se procurando estabelecer a forma particular de lidar com o universo da cultura; deixando a noção de gestão como universo administrativo. Assim, Propomos retirar a ênfase do termo gestão, o que tenderia a ter a cultura vinculada a ações gerenciais e ao cumprimento de metas e objetivos que nem sempre são norteados por reais parâmetros de efetividade, e colocar mais foco no termo cultura, entendido aqui em suas dimensões estéticas sob bases que ultrapassam os códigos simbólicos mais hegemônicos, dimensões Professor Titular do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense. Doutor em História, pela UFF. Contato: [email protected] 2 Artista visual e professor licenciado em Letras/Português-Literaturas pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dinamizador PADEC. Contato: [email protected] 1

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cidadãs construídas a partir do direito universal de ampla participação dos sujeitos e grupos na criação, fruição e planejamento de processos no campo da cultura e da arte, dimensões econômicas entendidas aqui muito mais pela ampliação do acesso aos bens da cultura humana do que às lógicas de produtividade e geração obrigatória de renda ou lucro. O que nos parece mais adequado é que a utilização do termo gestão cultural pressuponha a gestão de processos e mediações no campo cultural, com suas diferenças e negociações imanentes. Assim, os gestores culturais, assim puramente nominados, seriam aqueles sujeitos norteados pelos firmes propósitos da Gestão Cultural. Os demais seriam gestores institucionais, gestores governamentais de políticas culturais, gestores ou produtores de projetos culturais, produtores executivos (de projetos, de espaços...) etc. (RODRIGUES; CASTRO, 2015, s/p, grifos do documento original) Por outro lado, diferentes autores vêm apontando a necessidade de se entender política cultural como esfera que ultrapassa a dimensão governamental. Dentre outros, destacamos García Canclini (2005, s/p) que concebe as políticas culturais como “conjunto de intervenciones realizadas por el Estado, las instituiciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o de transformación social”. Sob tais pressupostos, busca-se fortalecer a dimensão participativa-cidadã, e inseri-las nas diversas possibilidades dos circuitos culturais e suas políticas. Brunner (1985a) designa cultura como um conjunto de circuitos nos quais intervêm os agentes produtores (artistas e criadores), os meios de produção (entendidos pelas tecnologias disponíveis e utilizadas, os recursos econômicos e a propriedade dos meios de produção), formas comunicativas (divulgação dos bens culturais, agentes distribuidores e dispositivos de troca), públicos e instâncias organizativas (estas podendo ser ligadas ao setor público, privado e/ou comunitário); nas instâncias organizativas se encontram as agências financiadoras, produtores privados, órgãos públicos de controle e estímulo, escolas de formação etc. Ou seja, as reflexões de Brunner sobre os circuitos nos remetem ao sistema de produção cultural e suas etapas: produção/criação, distribuição, troca, uso/consumo (ou reconhecimento). (LIMA; RODRIGUES, 2014, p. 853) Procura-se reforçar a necessidade de canais efetivos de participação como estratégia fundamental para se instituir políticas. Como apontado em outro texto (RODRIGUES, 2009, pp. 83-91) Participação e esfera pública são ideias inseparáveis. Fazem parte da própria concepção de política. É necessário refletir sobre esse termo. [...] Nosso desafio, hoje, é alcançar formas que, para além de preservar, democratizar e incentivar modos e práticas culturais diversificados, criem

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estratégias que reforcem o exercício público e político dos diversos atores sociais, a fim de que todos e cada um possam ser protagonistas de si mesmos. [...] Creio, firmemente, que nosso desafio é conseguir constituir redes diversificadas de agentes sociais. O próprio conceito de rede reforça a possibilidade de êxito de qualquer proposta: rede que se estabelece a partir do comprometimento e do envolvimento das mais diversas esferas. É esse trabalho de “varejo” que pode efetivamente construir novas possibilidades de caminhos conjuntos. Uma ação que se desdobra nos usuários mais diretos e neles com suas redes mais particularizadas, que, pouco a pouco, podem se agregar aos “fios” anteriores. Dessa nova trama serão irradiados novos fios (que a ela se unem) e assim sucessivamente, tal qual nós de uma rede que se vai tecendo. [...] O Brasil vivenciou durante muito tempo a falência de políticas sociais públicas inclusivas, ficando sob a ação sociocultural de organizações não governamentais. São mais de cem mil ONGs e centenas de milhares de voluntários. Caminho que, sozinho, também não resolve. O aterrorizante “abismo social” que marca a sociedade brasileira tem mobilizado cada vez mais ações de segmentos os mais diversificados. Quando nos detemos nos índices de pobreza e de ausência de condições mínimas de vida, vemos um quadro no mínimo estarrecedor. Em face de tanta carência, não podemos pensar isoladamente na arte, na cultura, na educação, na sociabilidade, na exclusão social ou em outros tantos “nas”. Não podemos implementar ações isoladas. Trata-se de prover e garantir a própria cidadania. Cultura e cidadania seriam como que palavras de ordem. 2. POLÍTICAS DE CULTURA E PARTICIPAÇÃO NO BRASIL HOJE... Ao observar o Prefácio para o livro de Ana Clarissa Fernandes de Souza (2015), constata-se a necessidade de se aprofundar os estudos das políticas culturais, destacando o foco analítico da autora ao refletir sobre a implementação de políticas culturais de cunho mais participativo, como aquelas propostas pelo Sistema Nacional de Cultura e pelos sistemas estaduais e municipais dele resultantes (ações ainda em processo de institucionalização e sistematização. A proposição de políticas para a cultura e para sua melhor organização e fomento vem assumindo maior consistência e centralidade, e estamos vivendo um momento histórico, no qual podem ser constatadas algumas tentativas de ultrapassar a tônica mercadológica das políticas culturais dos anos 90 – “cultura é um bom negócio” – em prol de novas formas de construção de políticas para a cultura em formatos mais democratizantes e socialmente compartilhados. (RODRIGUES apud SOUZA, 2015, p. VII) O Sistema Nacional de Cultura (SNC) foi incluído, em 2012, na Constituição Federal de 1988 como Artigo 216-A. Recentemente, passou-se a contar com o Sistema Estadual de Cultura do Estado do Rio de Janeiro (SIEC) – Lei 7035, sancionada em 7 de julho de 2015. Cabe agora aos municípios criarem suas leis municipais de cultura (alguns municípios do RJ já criaram suas leis).

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O que integra, minimamente, o Sistema: basicamente o CPF da Cultura, isto é: CONSELHO – PLANO – FUNDO. Institucionalidades geridas por órgão gestor próprio do município (Secretaria ou Fundação de Cultura) em parceria e controle pela Sociedade Civil. Buscando implementar o seu sistema de cultura, os municípios devem realizar Conferências de Cultura, momento no qual a sociedade como um todo discute a aponta diretrizes para a política cultural local. Momento propício, também, para a eleição de representantes da sociedade e da vida cultural do município para comporem o Conselho Municipal de Política Cultural (ou nome similar). Conselho e demais munícipes terão a incumbência também de participar da construção e acompanhamento do Plano Municipal de Cultura, que estabelecerá metas e diretrizes do curto ao longo prazo, prevendo ações de até 10 anos para sua devida implantação. Para garantir a implantação do Plano são necessários recursos financeiros, mobilizados através do Fundo Municipal de Cultura. Complementarmente, os municípios devem se aliar a outras duas demandas do Sistema Nacional de Cultura: programa de formação na área cultural; sistema de informações culturais. 3. A CRIAÇÃO DOS PLANOS MUNICIPAIS DE CULTURA: PROPOSTA METODOLÓGICA... O Plano Nacional de Cultura (PNC) foi incluído na Constituição Federal em 2010, através do Art. 215. Foi regulamentado e detalhado na lei nº 12.343/2010 (estruturada em 5 Capítulos e Anexo com as Diretrizes, estratégias e ações. Contem 53 Metas. Já o Plano Estadual de Cultura do RJ é peça integrante da Lei do Sistema Estadual (Capítulo 2 desta lei), também integrado por Anexo estruturado em 6 eixos temáticos, que contemplam 15 diretrizes e um total de 66 estratégias. São documentos importantes e que devem dialogar com o plano municipal. Os relatos a seguir apresentam a proposta metodológica desenvolvida para fomentar junto aos municípios fluminenses a implementação e construção de seus planos de cultura. Os planos são garantia de condução continuada das políticas e programas culturais locais, e permitem ao município acompanhar a realização de suas metas, e avaliá-las. A proposta é que o PLANO trace metas e diretrizes que atendam à cadeia produtiva da cultura como um todo. Com isso, pode-se pensar sob a lógica de um circuito ou sistema de produção: • CRIAÇÃO / PRODUÇÃO; • DIVULGAÇÃO / DISTRIBUIÇÃO; • ACESSO AOS BENS E SERVIÇOS; • FRUIÇÃO, USO E CONSUMO DOS BENS E SERVIÇOS CULTURAIS. Por exemplo, um CD musical para existir e ser apreciado precisa percorrer um conjunto de etapas:

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• Precisa que os artistas componham as canções e que o disco seja produzido; • Precisa estar disponível das lojas, ou em sites (assim por diante); • Precisa estar acessível aos ouvintes, seja através da compra ou de acesso gratuito ou subsidiado; • Precisa que as pessoas efetivamente se apropriem daquele bem; não basta comprar o CD e deixá-lo na estante. É preciso que ele seja fruído e apreciado. Para auxiliar na construção do PLANO MUNICIPAL, propõe-se metodologia estruturada em quatro eixos, conforme a seguir. EIXO 1: FRUIÇÃO E PRODUÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL (fomento às artes visuais, artes cênicas, música, audiovisual e literatura); EIXO 2: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES (fomento ao artesanato, reforço e/ou implementação de práticas e festejos populares – como Folias, Blocos de carnaval etc.); EIXO 3: TURISMO CULTURAL, PATRIMÔNIO AMBIENTAL E CONSTRUÍDO (valorização, recuperação e preservação dos ambientes afetivos locais e ações de atração turística a partir dos patrimônios e da memória); EIXO 4: SOCIABILIDADE, COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÔMICO SUSTENTÁVEL (ações que reforcem a coesão social e a interação entre as pessoas; formas de compartilhamento da gestão pública de cultura – por ex.: Conselhos, Conferências, Fundos de financiamento; ações de geração de renda e emprego e de circulação das produções culturais; etc.). As propostas lançadas devem identificar os agentes protagonistas potenciais (executores e parceiros) de cada ação e planejá-las segundo perspectivas de curto, médio ou longo prazo. Como critério genérico para as perspectivas temporais propõe-se: • ação de curto prazo, 1 a 2 anos; • de médio prazo, 3 a 6 anos; • de longo prazo, 7 a 10 anos. É importante prever formas de Avaliação sobre a cumprimento das metas. A seguir, sugestão de quadro de propostas.

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4. AÇÃO PADEC 2015 JUNTO A MUNICÍPIOS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO... PADEC é um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cultural dos Municípios, desenvolvido a partir de parceria entre a Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro com o Ministério da Cultura. Assenta-se em quatro linhas de apoio: 1) Qualificação da gestão pública da cultura; 2) Preservação do patrimônio material; 3) Fortalecimento da identidade cultural local; 4) Melhoria da infraestrutura para a cultura local. Para a edição de 2015, o PADEC ofereceu três linhas de ação aos municípios do estado: a) Curso de Formação de Gestores Públicos e Agentes Culturais (em sua segunda edição); b) Implantação e modernização de espaços culturais; c) Aplicação de Metodologia de Apoio para a organização dos Sistemas Municipais de Cultura. Esta terceira linha de ação foi construída com apoio técnico do Laboratório de Ações Culturais da UFF. Inclui a proposição da metodologia acima, estimulada junto aos municípios que conveniaram a ação PADEC, através de processo denominado de Dinamização – Ação de Apoio aos Sistemas Municipais de Cultura. Não se trata de consultoria para confecção de planos municipais, e sim de buscar acionar e estimular o desenvolvimento dos planos de forma compartilhada entre executivo municipal da área da Cultura e representantes da sociedade civil. Como exemplificação (bem sucinta e esquemática) sobre a possibilidade de se pensar o planejamento cultural local a partir das bases propostas, tomamos – não como forma modelar – um possível exemplo para cada eixo. Importante ressaltar que as diretrizes traçadas em conferências municipais realizadas são a fonte principal para o processo, que deve retornar para ampla apreciação por parte da sociedade civil como um todo.

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Exemplo exploratório 1: Segundo levantamentos para o município de TANGUÁ, pela Munic2006 o município não possuía teatro e já desenvolvera oficinas de formação teatral (apontando para uma vocação ou desejo local). Pelo site Mapa de Cultura, observa-se a permanência da inexistência de teatro, mas também que o município conta com anfiteatro ao ar livre (Espaço Cultural Observatório de Talentos). Considerando como DESAFIO, dentro do eixo FRUIÇÃO E PRODUÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL, o fomento às artes cênicas, podemos então buscar elencar um conjunto de ações para enfrentar tal Desafio. Levando em conta as fases do circuito ou sistema de produção cultural, temos: Criação / Produção: a.1) desenvolvimento de oficinas de teatro, de dança, de cenotécnica, de construção de cenários e figurinos etc.; a.2) workshops com grupos artísticos locais e externos; a.3) residências artísticas. Distribuição e divulgação: b.1) concursos (esquetes, dramaturgia etc.) e festivais; b.2) editais para circulação de espetáculos; b.3) construção de teatro. [FASES contempladas por indicações gerais] Troca: deve-se estimular ações com acesso gratuito e oferta de financiamento através de editais (que devem estimular que as montagens sejam produzidas no município, estimulando a economia local). Fruição e uso: contrapartida através de projeto-escola, debates junto às apresentações etc.

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EIXO 1: FRUIÇÃO E PRODUÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL DESAFIO: FOMENTO ÀS ARTES CÊNICAS Ações propostas

Tempo de implementação

Possíveis parceiros

4 oficinas semanais: . relatórios dos a) teatro; oficineiros; b) dança; c) cenografia; . acompanhamento d) figurino dos egressos. maquilagem

3 workshops . lista de presença; (1 a cada 6 meses): . atratividade de teatro, dança e circo grupos externos.

1.1 Oficinas de teatro e de dança

Curto prazo

Anual

- SM Educação (integração curricular); - grupos locais

1.2 Workshops com grupos artísticos (locais e externos)

Curto prazo

Bienal

- MinC

1.3 Residências artísticas

1.4 Concursos e festivais

1.5 Editais de circulação de espetáculos

1.6 Construção de teatro

Médio prazo

Médio prazo

Médio prazo

Longo prazo

Chamada anual - FUNANRTE; (3 meses cada) - Universidades

Resultados Esperados

Formas de avaliação dos resultados

Ciclo de frequência

5 residências por ano e 5 apresentações públicas de resultados/ano

- demanda pelo programa; - grau de satisfação do público expectador; - reverberação em espetáculos

Apresentações públicas de poesias e esquetes. Publicação de poesias e contos.

- públicos participantes - procura pelas publicações nas bibliotecas

Bienal, sg. modalidades (dramaturgia; esquetes etc.)

- Escolas; - Agremiações e referências locais (júris)

Bienal

- Municípios da região - SEC-RJ - FUNARTE

“x” espetáculos apresentados

- públicos - municípios envolvidos - grupos participantes e concorrentes

Único

- SM Obras; - Empresas; - MinC e Min. Turismo

Teatro capaz de abrigar espetáculos cênicos e multimídias

- atratividade do equipamento - capacidade de absorção das produções locais

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Exemplo exploratório 2: Segundo levantamentos do município de CABO FRIO, o I Fórum Municipal de Cultura (2009) elencou o fortalecimento do movimento de Cultura Negra como proposta. Considerando como DESAFIO, dentro do eixo MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES, o fomento às expressões étnicas de matriz afrobrasileira, podemos então buscar elencar um conjunto de ações (todas presentes no referido documento) para enfrentar tal Desafio. Levando em conta as fases do circuito ou sistema de produção cultural, temos: Criação / Produção: a.1) apoiar oficinas comunitárias em territórios quilombolas e demais áreas do município, com temáticas focadas nas expressões culturais afrobrasileiras; a.2) apoiar e estimular a ampliação das ações dos Quilombos, através de editais específicos (ou de eixo próprio no PROED – Programa de Editais) Distribuição e divulgação: b.1) apoiar com infraestrutura a promoção de feiras de produtos em eventos e festivais; b.2) instituir Semana de Consciência Negra; b.3) criar Festival da Diversidade Cultural; b.4) criar Centro de Referência de Cultura Afrobrasileira.   [FASES contempladas por indicações gerais] Troca: deve-se estimular ações com acesso gratuito e oferta de financiamento através de editais. Fruição e uso: estimular debates a diversidade cultural e étnica nas escolas.

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EIXO 2: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS POPULARES DESAFIO: AMPLIAÇÃO DE AÇÕES DE CULTURA NEGRA Ações propostas

1.1 Oficinas de cultura afro

1.2 Editais para fomento das ações dos quilombos

Tempo de Ciclo de implementação frequência

Curto prazo

Curto prazo

Anual

Possíveis parceiros

- SM Educação (implementação da Lei 10.639); - mestres griôs

Resultados Esperados

Formas de avaliação dos resultados

. relatórios dos oficineiros; Oficinas semanais . quantificação (a definir) das ofertas em eventos e feiras.

Bienal

- Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR).

Programa bienal de editais

. relatórios dos grupos apoiados; avaliação da atratividade territorial gerada.

Realização de feiras com participação de produtos de grupos afrobrasileiros

- procura pela participação em feiras

1.3 Promoção de Feiras de produtos

Curto prazo

Diversa

- Territórios quilombolas e outros grupos locais

1.4 Implementação da Semana de Consciência Negra

Curto prazo

Anual

- escolas - quilombos - grupos diversos

- envolvimento Realização anual dos grupos locais das Semanas com os eventos

1.5 Criação de Festival da Diversidade Cultural

Curto prazo

Anual

- escolas municipais - ONGs

Realização anual dos Festivais

- envolvimento dos grupos com a realização de festivais - capacidade geral de atratividade dos eventos

1.6 - Criação de Centro de Referência de Cultura Negra

Médio prazo

Único

- Ministério do Turismo - MinC

Criação do Centro

- relatórios de presença

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Exemplo exploratório 3: Segundo levantamentos da realidade e demandas do município de ANGRA DOS REIS apontadas n a 8ª Conferência municipal de Cultura (2013), destacou-se como DESAFIO, dentro do eixo TURISMO CULTURAL, PATRIMÔNIO AMBIENTAL E CONSTRUÍDO, ações de preservação e valorização do patrimônio histórico-cultural e ambiental. Levando em conta as fases do circuito ou sistema de produção cultural, temos: Criação / Produção: a.1) desenvolver oficinas regulares de educação ambiental e patrimonial nas escolas públicas; a.2) implementar editais para pesquisas históricas, e publicações; a.3) realizar inventário do patrimônio arquitetônico (formal e afetivo); a.4) ações de arqueologia. Distribuição e divulgação: b.1) contratação de técnicos em conservação, manutenção e restauração do patrimônio histórico; b.2) implementar programa de visitas guiadas aos bens arquitetônicos e ambientais; b.3) criação de arquivo público, abrigando também o acervo do Museu de Artes Sacras; b.4) criação e fiscalização de leis de patrimônio (tombamento de sítios históricos, conjuntos arquitetônicos e paisagens culturais e naturais); b.5) criação do Conselho de Patrimônio, com participação da sociedade civil; b.6) criação de Escritório do Patrimônio Ambiental, localizado em Ilha Grande.   [FASES contempladas por indicações gerais] Troca: deve-se estimular ações com acesso gratuito e também subsidiadas por instituições localizadas em bens históricos. Fruição e uso: estimular debates, visitas e publicações.

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EIXO 3: TURISMO CULTURAL, PATRIMÔNIO AMBIENTAL E CONSTRUÍDO DESAFIO: PRESERVAÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL E AMBIENTAL Ações propostas

1.1 oficinas de educação ambiental e patrimonial

Tempo de Ciclo de implementação frequência

Curto prazo

Bianual

Resultados Esperados

Formas de avaliação dos resultados

- SM Educação; - instituições locais

Oficinas s emestrais

. relatórios dos professores; . programa de redações escolares - quantitativo de pesquisas realizadas e editadas

Possíveis parceiros

1.2 editais para pesquisas históricas, e publicações

Médio prazo

Bienal

- SEC-RJ

Editais implantados

1.3 inventário patrimônio arquitetônic

Curto prazo

Único

universidades

Patrimônio inventariado

- bens inventariados

1.4 ações de arqueologia

Longo prazo

Diversas

- IPHAN

Sítios vitalizados

- ações desenvolvidas

1.5 contratação de técnicos (conserv., manut. e restaur. do patrimônio)

Curto prazo

Único

Técnicos contratados

- quantitativo contratado

1.6 visitas guiadas aos bens arquitet. e ambient.

Curto prazo

Mensal

Visitas regulares aos bens

- número de visitas realizadas

1.7 criação de arquivo público

Médio prazo

Único

- Museu de Artes Sacras Arquivo Público

1.8 criação de leis de patrimônio

Curto prazo

Único

- câmara de vereadores

Leis criadas e fiscalizadas

- preservação dos bens

1.9 criação do Conselho de Patrimônio

Médio prazo

Único

- câmara de vereadores

Conselho de Patrimônio (participativo)

- ações do Conselho

1.10 criação de Escritório do Patrimônio Ambiental

Longo prazo

Único

- IBAMA

Escritório em Ilha Grande

- ações do Escritório

- escolas públicas

- quantitativo de visitação

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Exemplo exploratório 4: O eixo 4 - SOCIABILIDADE, COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÔMICO SUSTENTÁVEL – se estrutura em ações muitas vezes transversais aos outros eixos. A criação de Conselhos com integrantes da sociedade, e ações de comunicação e interação entre governo e sociedade servem como ilustrações desta questão. Pensou-se, aqui, em uma breve frente de ação ligada ao município de ARRAIAL DO CABO, a saber: fortalecer a institucionalidade e gestão participativa das políticas municipais de cultura.

EIXO 4: SOCIABILIDADE, COMUNICAÇÃO, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÔMICO SUSTENTÁVEL DESAFIO A: GESTÃO PARTICIPATIVA NA CULTURA Ações propostas

1.1 Realizar Conferências Municipais de Cultura

1.2 Criar e implantar o Conselho Municipal de Política Cultural

1.3 Instituir Fundo Municipal de Cultura

Tempo de implementação

Curto prazo

Curto prazo

Curto prazo

Ciclo de frequência

Possíveis parceiros

Resultados Esperados

Formas de avaliação dos resultados

Bienal

- Entidades e grupos locais - Escritório Regional do MinC

Conferências realizadas

Participação da sociedade e de representantes governamentais

Único

- Entidades municipais - SM de Educ. - SM de Meio Ambiente - Câmara de Vereadores

Conselho instituído

Reuniões do Conselho; Participação dos munícipes

Único

- SM de Finanças - Câmara de Vereadores

Fundo regulamentado e em desenvolvimento

Editais realizados e pagos

5. À GUISA DE CONCLUSÃO... O processo de dinamização junto aos municípios tem se revelado muito promissor. Há municípios que nunca realizaram uma conferência de cultura e cujos encontros de dinamização

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para alavancar o processo de construção do plano de cultura têm se mostrado potentes inclusive para instituir redes locais. Há municípios que já tem plano de cultura formulado, mas que vêm percebendo na metodologia proposta uma possibilidade de se alcançar formulações mais concretas e realizáveis no tempo. Houve proposta para estruturar site para acompanhamento das ações do Plano em permanente processo de avaliação pela sociedade civil. Enfim... processos potentes em várias perspectivas. Por outro lado, gestores governamentais têm percebido a necessidade de se pensar o planejamento de modo processual e compartilhado, pois as dificuldades de “escutas” e “presença” são realmente grandes... (mesmo quando bem intencionados, gestores não são oniscientes nem onipresentes; portanto o compartilhamento deve ser uma ação imanente aos processos de planejamento). Pelo viés da universidade, as articulações técnicas têm possibilitado maior aderência entre formulações teóricas e práticas sociais, saindo – cada vez mais – dos muros às vezes encastelados da academia...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUNNER, José Joaquín. La cultura como objeto de políticas. Santiago de Chile: FLACSO, 1985. Programa n. 74, out. 1985a. BRUNNER, José Joaquín. A propósito de políticas culturales y democracia: um ejercicio formal. Santiago de Chile: FLACSO, 1985. Programa n. 254, ago. 1985b. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Definiciones en transición. In: MATO, Daniel (org.) Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005. pp. 69-81. Disponível em http://bibliotecavirtual. clacso.org.ar/ar/libros/grupos/mato/GarciaCanclini.rtf. Acesso em 11/02/2016 LIMA, Deborah Rebello ; RODRIGUES, Luiz Augusto F. Ponto de cultura: novas tipologias de fomento a circuitos culturais – um exemplo brasileiro. Colonialismos, Pós colonialismos e lusofonias - Atas do IV Congresso Internacional em Estudos Culturais. Abril 2014, p. 852-859. Disponível em http:// estudosculturais.com/congressos/ivcongresso/wp-content/uploads/2014/04/atas-PT-final.pdf>. Acesso em 30 abril 2014. RODRIGUES, Luiz Augusto F. Gestão cultural e seus eixos temáticos. In: CURVELO, Maria Amélia [et al.] (org.). Políticas públicas de cultura do Estado do Rio de janeiro: 2007-2008. Rio de Janeiro: Uerj/ Decult, 2009. pp. 76-93 RODRIGUES, Luiz Augusto F.; CASTRO, Flávia Lages de. Gestores culturais: proposta de categorização – nuances etnográficas. - Anais do XI RAM / Reunión de Antropologia del Mercosur. Montevideo, 2015. s/p. [Ainda não disponível on line] SOUZA, Ana Clarissa F. de. Sistema Nacional de Cultura e Gestão Compartilhada: um estudo sobre o processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de São Gonçalo – RJ. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

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PONTOS DE CULTURA DO RIO DE JANEIRO: POTENCIALIZAR SINERGISMOS Marcella Francelina Vieira Camargo1 RESUMO: O presente texto tem como objeto a reflexão sobre a gestão participativa da Rede de Pontos do Estado do Rio de Janeiro, que representa parte da política pública federal Cultura Viva, de promoção e garantia da diversidade cultural do Ministério da Cultura. O objetivo é desenvolver uma análise crítica da relação entre a gestão participativa da Rede de Pontos do Rio de Janeiro e o processo democrático de inclusão de diferentes subjetividades. O estudo pretende identificar e analisar em que medida os mecanismos de participação estabelecidos pelo Cultura Viva geram oportunidades e condições efetivas de participação, em termos da inserção dos diferentes segmentos da diversidade cultural que povoa os Pontos de Cultura do estado, e quanto isso pode favorecer o alargamento dos mecanismos de participação da Rede Nacional do Pontos e da sociedade como um todo, contribuindo para a democratização da fruição e produção da Diversidade Cultural Brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Cultura Viva, Gestão Participativa, Produção de Conhecimento cognitivo-sinestésico-afetivo-estético

1. CONTEXTO HISTÓRICO O programa Cultura Viva foi lançado em 2004, quando o cantor tropicalista baiano, negro e compositor, Gilberto Gil2 estava à frente do Ministério da Cultura, no primeiro mandato do governo de Luis Inácio Lula da Silva. A inovação cidadã da política pública de diversidade cultural se revelou em diferentes dimensões, especialmente pela sua capilaridade: em dez anos atingiu 1.000 municípios em 26 estados, fomentando projetos sócio-culturais de diversos segmentos da cultura brasileira. Os projetos foram batizados de Pontos de Cultura. Esta política pública atingiu a cultura de base comunitária, juventude, quilombolas, comunidades tradicionais, cybernautas, a produção cultural urbana, a cultura popular, e todos os tipos de linguagem

Mestre em Antropologia e Sociologia pelo IFCS-UFRJ, fundadora da Escola de Pesquisa de Jovens Pesquisador@s de Nova Iguaçu, desenvolve pesquisa-ação participativa a 2 décadas, em parceria com a sociedade civil organizadas e a gestão pública, co-fundadora do GT Pesquisa Viva da Comissão Nacional do Pontos de Cultura, é ponteira da Casa Nuvem. Email: [email protected] 2 Praticante da diversidade cultural em sua musicalidade, mistura várias tradições e linguagens da diversidade cultural brasileira com tecnologia digital. 1

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artística e cultural3, chegando a territórios que historicamente não tinham atenção do estado no que diz respeito a saúde e saneamento básico, muito menos às práticas e ações culturais locais. O objetivo da política era reconhecer os agentes culturais ativos, invisíveis às políticas de estado e ao mercado, mas que contribuem amplamente no desenvolvimento das comunidades locais, nas palavras de Gilberto Gil: “clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país” 4. Indo na contramão do pensamento hegemônico das classes dominantes, pela necessidade de levar Cultura ao Povo Brasileiro (TURINO 2009). O Ministério da Cultura elaborou um edital, aberto às organizações sem fins lucrativos que desenvolvessem ações com impacto sócio-cultural nas comunidades de baixa renda em todo o território nacional. Os pilares metodológicos de implementação do Cultura Viva eram e são: 1. O financiamento de R$ 60.000,00 por ano, durante três anos; 2. Disponibilizar equipamentos com software livre e acesso à internet, para produção e edição multimídia; 3. Promover oficinas, cursos, acompanhamento, intercâmbio e instigação via meios de difusão do Cultura Viva; e 4. Plataforma web de distribuição - compartilhamento das produções simbólicas e conhecimento tecnológico, gerados pela ação autônoma em rede dos pontos de cultura. Na 1a. edição do edital foram inscritas 800 propostas e selecionados 214 projetos de todo o território nacional. A implementação e gestão dos projetos do Programa Viva, dos 214 Pontos de Cultura, era realizada diretamente pelo MinC. Foram muitas as dificuldades de gestão, devido às distâncias geográfica, territorial e educacional, e entre gestores5 e ponteiros6. A política em operação revelou que as contrapartidas exigidas pelos convênios7 influenciam no cotidiano dos agentes culturais (IPEA, 2011; COSTA, 2008), alterando suas práticas nos projetos de Pontos de Cultura, destacando-se: as exigências de execução e prestação de contas dos recursos repassados; os desafios e benefícios que a novidade e a dificuldade de acesso ao universo digital compreendem; a necessidade da comunicação interna e externa, considerando o mundo virtual como a principal base do acompanhamento e fomento da rede8, que com o passar dos anos está fortemente apoiada nos encontros presenciais.

http://www.cultura.gov.br/cultura-viva1 Extraído : http://ecodigital.blogspot.com.br/2004/09/pontos-de-cultura-do-in-antropolgico.html 5 Técnicos do MinC, muitos deles oriundos das universidades, ONGs e militância das áreas da juventude e da cultura. 6 Como as pessoas que desenvolvem os projetos nos Pontos de Cultura se identificam enquanto rede/campo. 7 Convênios são instrumentos legais e jurídicos que formalizam as obrigações entre o Estado e as instituições proponentes de Pontos de Cultura. 8 Ainda um dos calcanhares de Aquiles. 3 4

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Entre os impactos positivos indentificáveis em vários estudos acadêmicos (LAMBRÉIA, 2014; IPEA, 2011; CAMARGO, 2011) está a capilaridade que potencializou e fomentou fluxos de informações e saberes entre a sociedade civil organizada, os Pontos de Cultura e o corpo técnico do estado. Uma série de atores, agentes, artistas e ativistas sócio-culturais vem sendo reconhecida pelo estado e pela sociedade civil, estabelecendo sinergias com diversos movimentos sociais9 e aflorando novas representações e comportamentos. No Brasil, esta amplitude e elasticidade contribuíram para o reconhecimento da Cultura como um dos Direitos Humanos fundamentais, o que implica a garantia de direitos e do respeito, e a valorização da diversidade cultural, que se colocam como transversais aos desafios das organizações governamentais e não governamentais, em segmentos políticos, econômicos, sociais etc., dialogando diretamente com a agenda 21 das Nações Unidas, que passa a influenciar a agenda do Estado e dos Pontos, refletindo nas formas de pensar da administração pública da Rede dos Pontos do Estado do Rio de Janeiro. Esses diversos fluxos de informação, motivação e compromissos com a inclusão e democracia povoam o Cultura Viva, de modo que o princípio participativo possa permear todas as esferas do Cultura Viva, pautando e demandando práticas da Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural, o que implica “reflexões e estabelecimento de práticas compartilhadas pelo governo e Rede de Pontos” (ROLEMBERG:2015, p. 14). Entretanto, ao lado dos impactos positivos, os percalços de planejamento e gestão nos Pontos e na administração pública aumentaram na proporção dos números de Pontos de Cultura na Rede, assim como as disputas entre os diversos segmentos envolvidos. Respondendo à necessidade de mecanismos para possibilitar a gestão compartilhada, em 2006 acontece a primeira Teia Nacional em São Paulo. As Teias Nacionais são o locus mais importante de tomada de decisões da Rede Nacional, de troca de experiências sinestésicas, estéticas, cognitivas e afetivas, onde a experiência e a celebração da diversidade cultural são vividas. Importante destacar que esta é a única instância onde é facilitada10 a participação de gestores: um representante de cada Ponto, delegados ponteiros dos fóruns regionais11 e setoriais12, e também conta com a participação espontânea e fomentada por diversas entidades nacionais e internacionais acadêmicas, artísticas, culturais de artistas, pesquisadores, militantes e interessados na diversidade cultural em geral.

Gênero, étnico, geracional, ecológico, rural, estético, artístico em diversas linguagens. Os participantes reconhecidos pelo estado recebem passagem, estadia e alimentação para participar. 11 Um de cada estado. 12 Linguagens artísticas como teatro, dança, música, cultura digital, e também segmentos sociais como juventudes, indígenas, quilombolas, gênero, LGBT, etc… 9

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Uma das decisões desse fórum foi a necessidade de ter instituições “experientes13”, como Pontões14, cujo objetivo seria de fomentar e articular os diversos Pontos, aproximando-os das Redes locais e das Redes dos estados e federal. Mais uma vez durante a execução das atividades dessas instituições ocorreu uma série de problemas de ordem técnica e burocrática, ligados à fiscalização de atividades e à liberação de recursos que descontinuaram as atividades de vários Pontões15. Em 2012, atendendo às demandas das diversas redes estaduais, foi fundada a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultura16 (SCDC) com a função de, entre outras, estimular os melhoramentos, sistematizar e redesenhar o programa para atender às novas demandas da Rede; repassar o financiamento e acompanhar os estados e municípios para que distribuam e administrem publicamente a rede dos Pontos, indo ao encontro do paradigma de desenvolvimento local delineado por MILANI (2006): “Fomentar uma rede com participação de diferentes atores que informe, elabore, implemente e avalie as decisões políticas.” Atualmente, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados - IPEA (2011), são cerca de 3.00017 Pontos de Cultura em todo o país, suas ações atendem por volta de oito milhões de pessoas. Em 2014, o Programa Cultura Viva transforma-se em Política Federal do Cultura Viva18, cuja meta é implementar 15.000 Pontos no território Nacional até 2020. Estabelecida a trajetória, no amplo contexto desta política, o desafio do presente texto é refletir o que é e como acontece a gestão participativa da rede de pontos de cultura, em outras palavras, levantar e analisar os mecanismos da gestão participativa dentro deste universo rico em diversidade de modos de vida e expressões culturais, utilizando o estado do Rio de Janeiro como referência. Para mergulhar neste universo, adotei como recorte regional o estado do Rio de Janeiro, por vários motivos: apesar de se tratar de uma política do governo federal, o Cultura Viva é operacionalizado por meio de convênios do MinC com as secretarias estaduais e municipais de cultura em todo o território nacional; O Rio de Janeiro compõe cerca de 10% da Rede Federal dos Pensamos que em um contexto onde é tudo experimental o ser experiente é uma construção de discurso tecnocrata, o que estava em jogo era a capacidade de fomentar a rede. 14 As instituições selecionadas foram alguns Pontos de Cultura mais antigos, de convênio de 2004 e universidades, principalmente as públicas. 15 Este desenho da política é retomado para SMC neste ano, 2015. 16 Seu objetivo é fortalecer o protagonismo cultural da sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades excluídas e ampliar o acesso aos bens culturais, principalmente no apoio a projetos de espaços culturais denominados Pontos de Cultura e suas unidades de articulação e mobilização denominadas Pontões de Cultura. Os Pontos de Rede e as TEIAS também são instrumentos de gestão do Programa Cultura Viva. Fonte: http://www.cultura.gov.br/cidadaniaediversidade 17 No site do MinC está publicada a implementação de 3.500 Pontos, esta diferença de valores corresponde a dois critérios de contagem diferentes. O IPEA mapeou os Pontos existentes em sua pesquisa realizada em 2011. Já o Minc contabiliza os convênios implementados, a diferença é que uma mesma instituição/CNPJ, após encerrar o convênio, pode concorrer ao um novo edital, certa de 17%, estão no seu segundo convênio. 18 Lei 13.018/2014 disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13018.htm 13

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Pontos; pela extensão, diversidade e densidade de territórios, caracteriza um microcosmo que reflete a rede Nacional; por eu ser Ponteira, pertencer ao GT Pesquisa Viva e fazer parte da Rede Estadual e Nacional, e acompanhá-las desde 2008; e por ser o Rio de Janeiro a primeira unidade da federação a reconhecer e implantar o fórum mensal para discutir e deliberar sobre questões do Cultura Viva, reunindo Ponteiros e gestores do município, do estado, e da federação; e outros interessados que foram se agregando a esta rede de diversidade cultural. 2. OBJETO DA REFLEXÃO O objeto desta reflexão é a gestão participativa da Rede dos Pontos de Cultura. Partindo de baixo para cima, observa-se19 que o cerca de 280 Pontos ativos e pulverizados pelo estado do Rio de Janeiro, somente 10% a 15% participam dos diálogos sobre a política, seja nos diários-virtuais ou nos periódicos-presenciais. Este número é alterado, em algumas ocasiões estratégicas, quando há: 1. Presença de pessoas do poder executivo do Ministério da Cultura, da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), das Secretarias de Cultura na agenda do Fórum; 2. Eleições de delegados regionais ou setoriais para participar de alguma comissão da rede em nível estadual ou nacional, ou participar de eventos internacionais representando a Rede. Mas, mesmo nesses casos, o número de Pontos presentes não ultrapassa 50, o que aponta para a baixa adesão da Rede aos mecanismos de gestão e representação da política pública Cultura Viva. Todavia cabe indagar quem são esses participantes, o que os leva a participar, e quem são os ausentes? Para refletir sobre a participação nos fóruns, podemos traçar alguns perfis iniciais. Em linhas gerais os Pontos são oriundos de três tipos de convênios20, sendo que parte expoente dos participantes dos fóruns de discussão é composta por pessoas de instituições que assinaram o primeiro convênio com o MinC21. A pesquisa da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro22 mostra que essas instituições já realizavam outras parcerias em diferentes secretarias de estado, o que pode implicar a não renovação de questões, representações simbólicas e disputas de interesses no âmbito da diversidade cultural do Estado do Rio de Janeiro. Em 2008, o Programa Cultura Viva passou a ser mais pulverizado, e para garantir um melhor acompanhamento foi firmado um convênio entre a Secretaria de Estado de Cultura, o Ministério da Cultura e a União, delegando à administração da SeC 230 novos Pontos no Estado. Apesar do elevado número de participantes nos fóruns e Teias23, pode-se indagar o quanto dessa participação é instrumental ou se de fato vem ampliar no sentido de incluir e reconhecer Esta percepção se deve a minha participação nestes espaços. Há três tipos de convênios assinados com o Ministério da Cultura MinC (2004), a Secretaria de Estado do Rio de Janeiro SeC (2007 e 2014), e com a Secretaria Municipal do Rio de Janeiro SMC (2014). 21 2004 22 Inédita que desenvolvi e coordenei ao longo dos últimos quatro anos, iniciada quando eu fazia parte do quadro de servidores da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. 23 A presença dos novos Pontos conveniados com a SMC é insipiente. 19 20

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as diversidades culturais que vão formando a Rede, na direção dos questionamentos do espaço que é dado a outras possibilidades de representações da vida, alargando as opções humanas. Como apontado pelo IPEA24 2011, outro fator importante é que as organizações que tiveram projetos aprovados25 como Pontos de Cultura são distintas em termos técnicos, burocráticos e financeiros. Na pesquisa da SeC, identifico que há ONGs de pequeno, médio e grande porte, onde o significado e a dimensão de ter ou ser um projeto aprovado como Ponto de Cultura causam diferentes impactos. Em instituições como Observatório de Favela, Afro Reaggae e Dançando para Não Dançar, por exemplo, com orçamentos em milhões/mês, o projeto Ponto de Cultura é somente mais um, enquanto para instituições de pequeno porte como centros de umbanda, rodas de capoeira, aldeias indígenas, cineclubes de comunidades, nos rincões do Estado, o projeto de Ponto de Cultura não se diferencia da própria instituição26, e todas as pessoas27 da instituição estão envolvidas nas atividades, gerando uma série de dependências financeiras, administrativas e cognitivas do poder público. Essas diferenças de porte das instituições, e de localização, próximas ou não das instâncias de poder28, condicionam a participação dos Ponteiros nas diversos espaços de tomadas de decisão. Cabe apontar quatro motivos principais: a falta de recursos dos ponteiros que não podem usar as verbas federais dos Pontos, e nem receber ajuda de custo para participarem29; a falta de disponibilidade de tempo, no caso de alguns Pontos, a ausência de um Ponteiro pode prejudicar as atividades do Ponto como todo; o desconhecimento da importância de seu papel como colaborador da gestão compartilhada dos Pontos; e a dificuldade de acesso às redes virtuais. (ALENCAR, CRUXÊN, FONSECA, PIRES, RIBEIRO, 2013:119). Legitimados pelo Programa Cultura Viva, (TURINO: 2009) por serem considerados como uma rede que representa os territórios e a diversidade cultural, desde sua formulação, ganharam oportunidades de participação na vida pública, ampliada para Conselhos Municipais, Estaduais, Nacionais de Cultura, de linguagens artísticas, de comunidades específicas, e várias outras políticas de transversalidade da diversidade cultural, todavia poucos Ponteiros são “qualificados”, conhecem e/ou têm interesse em participar desses fóruns que discutem e decidem sobre várias políticas setoriais em âmbito municipal, estadual e federal. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada São exigidos das organizações que tiveram projetos aprovados: um nível de formalização, técnicas burocráticas e administrativas que não faziam parte do escopo de atuação da grande maioria destas organizações. 26 Em CAMARGO: 2011, percebe-se que nas pequenas instituições ainda podemos fazer divisões entre grupos que se formaram para concorrer aos editais e as instituições que já existiam, apesar das dificuldades de sustentabilidade. 27 Segundo dados da pesquisa da SeC, como as instituições, os números de envolvidos e o tipo de vínculo variam entre os Pontos (CAMARGO:2011). 28 Todas na capital. 29 Dinheiro para passagem, estadia e alimentação, pois os fóruns são itinerantes, cada mês em uma das regiões, o que implica um montante considerável de recursos. Em algumas ocasiões as gerências disponibilizam “caronas”. 24 25

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Outro pressuposto do Cultura Viva a ser discutido, e que pode estar relacionado com a baixa adesão à participação, é a crença de que distribuir equipamentos tecnológicos seria o suficiente para fomentar o fluxo de informação e comunicação da rede, permitindo a subida e descida de conteúdos veiculados pelos Pontos, e produzindo sinergia na Rede. Sem dúvida, são enormes os benefícios e possibilidades trazidos pelo universo digital. Todavia a informatização não chegou com forma, intensidade e sentido iguais para todos os Pontos, sendo amplas as dificuldades e resistências ao mundo virtual, agravadas por não se poder usar parte do recurso para pagar provedores de acesso à internet (CAMARGO:2011). Ao final, as discussões e tomadas de decisões são presenciais. A problemática se entrelaça em três pilares da política: a diversidade cultural e institucional; a debilidade da implementação da Cultura digital e a consequente fragilidade da rede e da comunicação; a distância entre a proposta inicial e os mecanismos reais de formas de participação. Algumas perguntas podem ser indicadas: • Quais são os diferentes significados de gestão participativa nos Fóruns e Teias? • Qual é o papel do gestor público? • Qual é a ação dos participantes dos fóruns? • A quais segmentos sociais, étnicos, geracionais etc pertencem? • Quais são as disputas simbólicas e econômicas em questão? • Quais são os segmentos do universo de Pontos de Cultura do Rio de Janeiro que estão fora do campo? • Há outras ferramentas que possibilitam a participação e estão à margem das disputas? • Quais os mecanismos de gerenciamento das informações e conhecimentos produzidos pela Rede? • Como são escolhidas, formuladas e usadas as pesquisas contratadas pelo MinC, e secretarias de cultura? • O que significa participar do Programa Cultura Viva? A percepção a partir da participação mensais dos fóruns, à luz da pesquisa que realizei na SEC é que a maioria dos Pontos de Cultura está à margem da agenda dos fóruns, o que implica que grande parte das subjetividades, dos sentidos sobre o dia a dia e suas respectivas representações de mundo fica fora dos processos de formulação e tomada de decisões da gestão participativa da Rede dos Pontos de Cultura, e seu reverso é que um mesmo grupo de pessoas vem construindo os espaços de participação desde o seu início. Problemática - divide-se em dois eixos:

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Eixo 1 - Gestão participativa dos Pontos de Cultura Para abordar o tema governança, ou melhor, participação social dos Pontos de Cultura, torna-se fundamental delinear alguns condicionantes: o papel do estado e os valores que orientam os mecanismos onde se opera a participação, o processo de construção e espaços de participação, a qualificação dos grupos de atores; e as diferentes dimensões e significados da gestão compartilhada participativa na Rede Nacional e entre as Redes dos Pontos de Cultura (MILANI, 2006; COSTA, 2008). Em termos de orientação principal, a Diversidade Cultural é considerada pelo MinC um Direito Humano. São os valores de respeito e promoção da Diversidade Cultural que devem orientar a construção dos espaços de gestão participativa. Nas palavras do formulador do conceito da política (TURINO:2009) “é fundamental que o Estado promova uma agenda de diálogos e de participação”. Quais são os processos e práticas que operacionalizam essa proposição no cotidiano? 1. Em termos da administração pública, foram estabelecidas Gerências dos Pontos nas Secretarias de Cultura, onde a tarefa dos técnicos é acompanhar e facilitar o desenvolvimento dos convênios, seguindo orientações da SCDC/MinC; e 2. São seis (6) fóruns de reflexões e tomadas de decisões na rede de Pontos de Cultura composta por ponteiros e representantes do estado, a saber: Comissão Nacional de Pontos CNdP, Fórum Virtual da CNdP, Teias Nacionais, Teias Estaduais, Fóruns estaduais, Fórum Virtual da Rede Estadual. Na redes, estes fóruns estão todos conectados, e no dia a dia seus impactos são vividos e percebidos de maneiras distintas pelos Ponteiros/as; há um processo de qualificação para participar com voz, voto e presença em cada deles. No corpo de executor e técnico no estado e no município do Rio de Janeiro, foram criadas as Gerências de Pontos de Cultura, cujas responsabilidades são do quadro de funcionários30: 1. Repassar os recursos; 2. Acompanhar os Pontos virtual e presencialmente; 3. Prestar assistência técnica para garantir que os Pontos superem a burocracia31, bem como: 4. Facilitar e fortalecer a gestão participativa por meio de presença e estabelecimento de diálogos nos fóruns regulares virtuais e presenciais e extraordinários como as Teias estaduais e nacionais. Seguindo as orientações da CNPdC, no âmbito estadual no dia a dia, o grupo de e-mail dos Pontos funciona atualizando as discussões, propondo pautas e, às vezes, encaminhando soluções, mobilizações em torno de temas de interesse, como a discussão e votação da implemen Uma vez que os projetos e respectivas instituições foram selecionados por edital público. Desde questões como escrever os projetos, fazer a gestão financeira, até a prestação de contas.

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tação da lei Cultura Viva no Senado e na Alerj32. No fórum presencial33 acontecem discussões e são tecidos diagnósticos, que, após serem tomadas decisões nas diferentes esferas de poder, são abertos aos ponteiros de todos os convênios federal MinC, estadual - SeC e municipal - SMC. Em contraposição, no fórum nacional, CNPdC, o transporte e a alimentação ficam a cargo dos interessados, o que na prática inviabiliza a participação de vários ponteiros/as. A verba destinada aos Pontos não pode ser usada para este tipo de atividade, (MILANI:2006; COSTA:2013). Em linhas gerais, pode-se descrever a Teia como aberta ao público em geral, mas como mecanismo de gestão, tomada de decisão e votação tem a seguinte organização em nível nacional: a. Durante os fóruns estaduais são tirados delegados regionais e setoriais que se encontram três dias antes da abertura oficial e pública da Teia para discutir questões enviadas pelos fóruns estaduais e pela CNPdC, relativas aos desafios e estratégias do dia a dia da política pública Cultura Viva, e assim votar e encaminhar propostas; b. Quanto é aberta ao público em geral: cada ponto pode enviar 1 representante, que se encontrará com gestores públicos, acadêmicos, militantes das áreas da cultura e social, etc; a dinâmica é que se distribuam em Grupos de Trabalho – GT, conforme seus interesses, e desenvolvam propostas e encaminhamentos que dependerem de várias negociações para serem implementados ou não na Rede. É também neste fórum que há possibilidade da formação de um novo GT. Todas as propostas são encaminhadas para a assembleia geral, que acontece no penúltimo da Teia, e são aprovadas ou não. Essas decisões influenciam os fóruns locais e os gestores públicos. Todas as decisões ficam valendo até a próxima Teia Nacional. Há uma série de mecanismos de escolha de representantes nos fóruns estaduais para se chegar até as Teias, e acessar oportunidades “tortuosas”, no sentido de pouco transparentes, que me proponho a investigar. Os Fóruns estaduais mensais seguem a pauta determinada por e-mails, onde e quando todos/as Ponteiros34 têm direito a voz e voto, debatem e deliberam, junto a representantes do MinC e das secretarias de Cultura. Os temas são os mais variados possíveis, desde a discussão sobre o significado e representação do que é ser Ponto de Cultura, redesenho de gestão da rede, até a prioridade de investimentos nas redes, que na prática se traduzem na abertura de novos editais para fomentar a rede. As Teias Estaduais, seguindo o mesmo modelo já explicitado da Teia Nacional, são financiadas pelo MinC. Participam com direito à voz e a voto um representante de cada Ponto e um de cada segmento setorial (linguagens artísticas, região, ou diversidade cultural). Os grupos vão se formando conforme conseguem ampliar seu protagonismo na Rede. Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Organizado e patrocinado por Pontos de Cultura. 34 Na trajetória da política estes fóruns foram agregando outros atores, pesquisadores acadêmicos ou não, artistas e agentes culturais que trabalham com diversas linguagens e segmentos sociais. 32 33

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Em termos de gestão participativa, no âmbito federal há a Comissão Nacional dos Pontos (CNdP), com 617 dos 3.000 representantes organizados em setoriais: a. 1 por estado; b. grupos de trabalhos temáticos (indígena, matriz africana, gênero, ação griô, escola viva, juventude, estudantes, pesquisa-ação, cultura digital, etc); c. linguagens artísticas (dança, teatro, música, audiovisual, etc). A CNdPC, ao longo do ano, mantém um fórum virtual por e-mails onde, na conjuntura atual, os 617 membros podem participar; presencialmente cada uma das 6335 setoriais envia um representante, que se encontra três vezes ao ano com gestores do MinC, acadêmicos e outros setores interessados em políticas públicas da cultura, para discutir as prioridades da rede, tomar decisões, fazer encaminhamentos, e organizar a Teia Nacional36, sem periodicidade. É importante salientar que o Fórum Nacional é financiado pelos rendimentos da aplicação das verbas voltadas à política pública Cultura Viva. Nesta descrição dos mecanismos de gestão participativa, há um imbricado caminho de participação e legitimação de representações em direção às esferas nacionais e internacionais, espaços que foram sendo desenhados no decorrer da política pública. Para o MInC “Trata-se de uma política cultural que, ao ganhar escala e articulação com programas sociais do governo e de outros ministérios, pode partir da Cultura para fazer a disputa simbólica e econômica na base da sociedade.” Entre as várias questões despertadas ao longo da descrição, cabe também refletir qual foi e é o papel do Estado na construção destes espaços (LEFEBVRE, 2005). Eixo 2 - Territórios culturais x Redes da Cultura Digital Neste eixo pretendo problematizar as diferentes participações na Rede, relacionadas às oportunidades de vivenciar territórios presencial e virtualmente. Em 2004, no estado do Rio de Janeiro, o Programa Cultura Viva selecionou 75 projetos. Nota-se, na distribuição dos Pontos pelo mapa abaixo, que foi ínfimo o impacto no “interior37” do estado. Com exceção da região do médio Paraíba, a grande concentração de Pontos foi na região metropolitana, 82,6%. A segunda Chamada Pública organizada pela Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro se deu em 2008, sendo abertas 230 oportunidades de convênios, e o desafio era o interior, devido aos entraves técnicos e burocráticos. Tais convênios foram firmados em etapas38, demorando em algumas instituições até cinco anos39. Se por um lado o reconhecimento dos agentes culturais é uma maneira de ampliar a democracia e cidadania, por outro os Fonte, análise dos formulários de inscrição dos membros do fórum. Em 10 anos houve quatro Teias Nacionais. 37 Em oposição ao centro, à área metropolitana. 38 Os projetos tiveram que ser requalificados com a ajuda de um corpo técnico da SeC, o Escritório de Apoio à Produção Cultural, EAPCult. 39 Como os territórios culturais são dinâmicos (TORRES, 2001), muitos planos de trabalho tiveram que ser refeitos. 35 36

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mecanismos de sua efetivação burocrática atravancam e retrocedem as conquistas. (SANTOS, 2007; RANDOLPH,1998). Assim, 34 instituições não conseguiram firmar o convênio, apesar de serem aprovadas no edital. Comparando os mapas na página seguinte, verifica-se uma maior pulverização dos 196 Pontos de Cultura conveniados à SeC no Estado, atingindo as oito regiões administrativas, e reduzindo a concentração na região metropolitana. Em 2014, novo esforço da SeC para alcançar os 230 Pontos lançou edital para mais 34 instituições. Durante fóruns e Teias foram discutidas as dificuldades das instituições e a concentração em certas regiões administrativas, e assim decidiu-se que haveria cotas por região, no intuito de aumentar o fluxo da política para regiões não metropolitanas. Todavia, apesar dos esforços de adequação do convênio com a realidade das instituições, as dificuldades burocráticas persistem. Em janeiro de 2015 foram selecionados os 34 projetos40, mas até 07/09/15 os convênios ainda não estavam firmados41. Também em 2014 a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro lança o edital da Rede Carioca de Pontos de Cultura, implementando mais 50 Pontos no município, um total de 355 convênios no estado do Rio de Janeiro. Seguindo as mesmas orientações do redesenho do edital da SeC voltado à inclusão de territórios de maior pobreza, a Rede Carioca de Pontos da SMC priorizou ações das zonas oeste e norte, onde há maior densidade demográfica e pouca presença do estado, sobretudo nas áreas de educação e cultura. A concentração de Pontos na capital é justificada pelas dimensões geográficas do município, densidade demográfica, e concentração de diversos modos de vida.

Priorizando as regiões não Metropolitanas. É importante esclarecer que o segundo edital, 2007, estava aberto a 200 grupos/organizações (com CNPJ). A Secretaria de Cultura faz um pedido especial ao MinC e amplia o reconhecimento a 15%. 40 41

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Mapa 1*: Distribuição dos 75 Pontos de Cultura conveniados pelo MinC 2004

Mapa 2*: Distribuição dos 196 Pontos de Cultura conveniados pela SEC 2008

*Fonte: Pesquisa SeC 2015

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Tabela 1: distribuição dos Pontos no estado através da implementação de seus 3 editais.

A Tabela 1, sem considerar o edital da SMC, confirma concentração de 58% dos projetos de Pontos de Cultura na região metropolitana, cuja a densidade demográfica equivale a 75% da população do estado. Ao desmembrarmos a região metropolitana, como propõe o Conselho Estadual de Cultura, em 3 sub-regiões tecemos as seguintes reflexões: a capital concentra 35,5% dos convênios, seguida pela Baixada Fluminense 13% e Leste Fluminense com 9%. Importante destacar que as essas duas últimas regiões se caracterizam por agregarem municípios dormitórios, na sua maioria, com baixos índices de saúde, educação, saneamento básico, e cultura, com alta densidade demográficas 23,6% e 12,6% da população do estado, respectivamente. Podemos observar algumas tendências na distribuição entre as regiões, na Baixada Litorânea, Médio Paraíba, Serrana, cada uma conseguiu acessar em média de 9% dos convênios; enquanto as regiões, Centro Sul, Costa Verde, Nordeste Fluminense em torno de 4%; região Norte acessou apenas 3%. Apesar da orientação de não selecionar Pontos dentro do município do Rio de Janeiro, o edital da SeC 2014 selecionou 2 Pontos na Capital, em destaque em rosa, todavia trata-se de instituições indígenas, incluindo esta diversidade cultural no contexto urbano da rede dos Pontos de Cultura. Aqui cumpre destacar que, deste conjunto de Pontos do estado, cerca de 15% das instituições se sobrepõem, ou seja, foram conveniadas primeiramente pelo MinC, e depois pela SeC e/ou SMC, no total são 303 instituições Pontos de Cultura.

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A narrativa do processo de distribuição dos Pontos de Cultura no Estado pontua as preocupações com ajustes segundo os redesenhos elaborados nos espaços de gestão participativa da política pública. Cabe indagar se representa a diversidade que povoa os Pontos, fomentando o desenvolvimento de um sistema de aprendizagem mútua para reflexão e tomadas de decisão (RANDOLPH, 1998) que visem o bem comum (ARENDT, 1991). Dessa reflexão deriva que há uma diferença entre: 1. Os discursos e representações da Rede dos Pontos proferidos pelo Estado, Ponteiros gestores participativos, e 2. Ponteiros que estão “mais” ligados aos territórios vividos presencialmente (SANTOS, 2007; TORRES, 2013). Afinal de contas até aqui naturalizei o conceito nativo de Rede de Pontos de Cultura, que é usado como se todos os Pontos estivessem conectados trocando fluxos, mas qual é a sua dimensão? De quais territórios vividos são os Ponteiros que ocupam os espaços de participação e tecem as representações oficiais da Rede juntamente com o Estado? Este universo é composto por diversidade cultural, de modos de vida, de apropriação de espaços, experiências estéticas, inteligências emocionais e sinestésicas; para ilustrar para além da experiência dos modos urbanos de vida, os povos quilombolas, indígenas, ciganos, migrantes, imigrantes, afrodescendentes, rurais, tradicionais, pescadores, etc. De quais diversidades culturais estamos tratando? As vivências traçam conexões com dimensões multi-institucionais, multidisciplinares e com teorias e práticas sobre gestão pública. Isto abre diversas possibilidades de presentificar conceitos e categorias (RIBEIRO, 2011), aproximando as pessoas de um determinado território/universo de modo a envolvê-las ou não nas construções de políticas públicas nas quais estão implicadas. Há lacunas entre a distribuição dos Pontos nos territórios do estado; a representação espacial dos Pontos; a presença numérica nos fóruns de reflexão e tomada de decisões; e a participação no cotidiano junto às instâncias de governo nos diversos fóruns virtuais e presenciais, estabelecendo formas diferenciadas de vivenciar e influenciar a gestão participativa na Rede dos Pontos do Rio de Janeiro. Mas cabe aqui fazer uma ressalva, não estou negando a existência de uma rede, mas problematizando seus limites “como espaços de intercâmbio, negociação e definição de espaços de conflitos e de resistência aos adversários e aos mecanismos de discriminação, dominação e exclusão” (EGLER:29, 2007) de uma potencial Rede de Pontos do Rio de Janeiro que inclua as diversidades.

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LAMBREA, Valéria, Redes híbridas de cultura: o imaginário no poder. Cartografia e análise do discurso do Programa Cultura Viva - 2004 -2013. Tese (Doutorado em educação) Universidade de Brasília, Brasília, 2014. LEFEBVRE, Henry, The production of space. 23. ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. MILANI, R. S. Carlor, “Políticas públicas locais e participação na Bahia: o dilema gestão versus política in: Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, no 16, jul/dez 2006, p. 180-214 http://www.scileo.br/pdf/ soc/n16/a08n16.pdf RIBEIRO, Ana Clara T.“Por uma cartografia da ação:pequeno ensaio de método” em co-autoria com Amélia Rosa Sá Barreto, Alice Lourenço, Laura Maul de Carvalho Costa e Luís Cesar Peruci do Amaral, Cadernos IPPUR/UFRJ, v. 15 e 16, 2001. ___________. “Matéria e espírito: o poder (des)organizador dos meios de comunicação” em co-autoria com Rosélia Pérrissé da Silva Piquet, In: Ana Clara Torres Ribeiro, por uma sociologia do presente, VOL 3, Letra Capital, Rio de Janeiro, 2013. ROCHA, Adair, “Autores Sociais e ações na cultura e na segurança pública do Rio.” In (org) Cláudia Maria Lima Werner, Floriano José Godinho de Oliveira, Patrícia Tavares Ribeiro Políticas Públicas: interações e urbanidades, Faperj, Rede de Política Públicas, Ed. Letra Capital, RJ, 2013. RANDOLPH, R. “Planejamento Local, acordos estratégicos e democracia: o caso do Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, conferência proferida no XXI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, MG, 1998 - http// www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5281&Itemid=36 ROLEMBERG, Márcia, “Cidadania e Diversidade Cultural com Participação Social”, artigo publicado no V Seminário Internacional de Políticas Culturais, ed Fundação Casa de Rui Barbosa, Maio de 2014. SANTOS, Bonaventura S., “La reinvención del Estado y el Estado plurinacional” en OSAL (Buenos Aires: Clacso) Año VII, 22, septiembre, 2007. Disponible en: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/ libros/osal22/D22SousaSantos.pdf SANTOS, Milton, “O Espaço: Sistemas de Objetos, Sistema de Ação.” In: A Natureza do Espaço, Técnica e Tempo. Razão e Emoção. EDUSP 4o.ed. 2.reimpr.,São Paulo, 2016. TURINO, Célio, Ponto de Cultura: O Brasil de Baixo para Cima. Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2009

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ORGANIZAÇÃO POLÍTICA NA ÁREA DA DANÇA: UMA ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA Marcella Souza Carvalho1 RESUMO: O presente artigo apresenta um contexto recente da organização e articulação política na área da Dança, traçando um panorama do antes e depois da constituição de espaços de participação social instaurados pelo Governo Federal a partir de 2003, especialmente os avanços nas políticas culturais do Ministério da Cultura com a construção do Sistema Nacional de Cultura. Sob a ótica e princípios da democracia participativa, baseia-se em documentos oficiais, reivindicações e conquistas da área da Dança, e quais as repercussões e impactos para a área, principalmente no que se refere à sua autonomia em relação a outras áreas artísticas, levando em consideração a valorização de um cenário onde o ideal de democracia participativa possa ser reconhecido como aquele em que se identifiquem avanços e efetivos espaços para representação, diálogo, deliberação e implementação de novas políticas em conjunto com o Estado. PALAVRAS-CHAVE: Dança, Democracia, Participação Social, Políticas Culturais.

1. INTRODUÇÃO A Dança é uma das linguagens artísticas mais antigas que se tem conhecimento, com referências ainda no período pré-histórico. Estatísticas do IBGE do ano de 2006 (Pesquisa MUNIC que avaliou o perfil dos municípios brasileiros) apontam que a Dança é a linguagem que, em segundo lugar – apenas atrás do artesanato –, reúne o maior número de grupos artísticos por município no país, com índice de 56,1%. Porém, mesmo considerando-se esse percentual, que hoje é certamente maior, o que se sabe é que há uma escassez de ações específicas do poder público para a área. Fato é que a Dança é uma expressão artística plural, que representa diversos estilos de manifestações, crenças e técnicas, mas que tem um histórico de marginalização e de não reconhecimento pelo Estado e pela sociedade enquanto área autônoma produtiva. A Dança é, além de tudo isso e conforme demonstrará o presente artigo, uma área de atuação política. Advogada atuante na área de Cultura e Terceiro Setor, Diretora Executiva da Sociedade Amigos de Alfredo Andersen. Pós-graduada em Gestão de Projetos Culturais pela USP. Bailarina e professora de dança, integrante da Cia Flor de Lótus em Curitiba. Produtora cultural. Conselheira da área da Dança no CONSEC – Conselho Estadual de Cultura do Paraná (12-14). Conselheira do Fórum de Dança de Curitiba. Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR. Membro do Colegiado Nacional de Dança – CNPC/MINC 2015-2017. [email protected]

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Segundo o mapeamento do Itaú Rumos Cultural de 2009, há 45 organizações da sociedade civil que respondem pela Dança em 16 estados. Destas, duas são sindicatos de Dança (Sindicato dos Profissionais da Dança do Estado de São Paulo e Sindicato dos Profissionais da Dança do Estado do Rio de Janeiro), nove são os Sindicatos dos Artistas e Técnicos de Espetáculo/ Sateds, duas são associações de pesquisa em Dança, 20 são associações, uma é representação nacional – Fórum Nacional de Dança –, três são Fóruns de Dança, duas são cooperativas, e dois são sindicatos de produtores das artes cênicas. Retirando-se os 11 sindicatos que não são específicos da área da Dança e os dois grupos de pesquisa que não apresentam caráter de discussão sobre questões de classe especificamente desta ordem política, têm-se 32 organizações específicas da área da Dança que se reúnem para debater as políticas culturais e atuar nesta seara. Em consonância com o referencial acima citado, o tema proposto neste artigo analisa a organização política na área da Dança sob a ótica da democracia participativa que emergiu fortemente com programas do Governo Federal implementados a partir do ano de 2003 – especialmente o Sistema Nacional de Cultura –, os quais vieram a impactar diretamente a área da Dança e demais áreas artísticas. A pesquisa demonstra a estrutura do Sistema Nacional de Cultura e como ele influenciou as políticas culturais do país sendo essencialmente voltado à participação popular agindo de forma institucionalizada, ou seja, com o objetivo de atuação em conjunto com o Estado. Demonstra ainda, uma vez que se analisa o exemplo da Dança, como a classe se utiliza desses espaços de participação popular para reivindicar, beneficiar-se, e reconhecer-se enquanto agentes culturais e políticos capazes de mudança para sua área. Importante destacar que o desenvolvimento e fortalecimento da área da Dança – assim como de qualquer outra área artística – não se deu e não depende somente de recursos e programas de órgãos públicos, sejam eles municipais, estaduais ou Governo Federal. Tampouco de leis de incentivo, ou da vontade política, embora ainda grande parte da produção cultural utilize-se desses artifícios. O que se quer demonstrar é que ela subsiste, também, da ação e da iniciativa de distintos agentes participativos, de organizações e movimentos da Dança no país que vêm gerando demandas, além de propor formatos de encontro e diálogo com o poder público – sociedade civil – há anos2. Considera-se também como aspecto fundamental para o desenvolvimento dos espaços de participação e representação política das artes os períodos de transição na administração do Ministério da Cultura e também da Funarte – Fundação Nacional das Artes, o que reverberou em alterações nos espaços de representatividade da Dança e mesmo nos órgãos Colegiados e na estrutura do Sistema Nacional de Cultura. Utiliza-se, aqui, a conceituação de sociedade civil proposta por Bobbio, Matteucci e Pasquino (2009, p.1210), que a vê como “a base da qual partem as solicitações às quais o sistema político está chamado a responder; como o campo das várias formas de mobilização, de associação e de organização das forças sociais que impelem à conquista do poder político”.

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Sendo assim, essa pesquisa pautou-se na hipótese de que a articulação política na área Dança passou a se empoderar e reconhecer sua força de representatividade a partir do aproveitamento dos espaços de participação social institucionalizada oportunizados pelas políticas culturais do Governo Federal iniciadas em 2003, e, além disso, das organizações populares descentralizadas que surgem nesse mesmo contexto, o que legitima a categoria dentro do universo da democracia participativa e faz com que se perceba seu lugar frente às políticas públicas, sua expansão em termos sociais, econômicos, políticos e culturais. Resta claro, portanto, a importância de se averiguar o desenvolvimento da relação entre poder público e a área da Dança, verificando as propriedades e especificidades relacionais que a classe partilha com as políticas culturais do País e de que forma resultam e impactam nas transformações político-institucionais ocorridas nos equipamentos e também em componentes e relações decorrentes de fatores externos ao sistema, além de sua própria área artística. 2. A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS CULTURAIS: O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA E SUAS ESTRUTURAS. “A democracia pode ser inventada e reinventada de maneira independente quando existem as condições apropriadas”, afirma Robert Alan Dahl (1998, p. 9). Também segundo o autor, a democracia proporciona oportunidades para a participação efetiva, igualdade de voto, aquisição de entendimento esclarecido e o exercício do controle definitivo do planejamento. Ao mesmo tempo em que estes são pressupostos para o princípio de igualdade política, são exemplificados como os modos de satisfazer a exigência de que todos os membros estejam igualmente capacitados a participar das decisões políticas (DAHL 2009). Este é o referencial de democracia participativa ao qual se dedica o presente artigo, e sobre o qual se embasam os entendimentos que se seguem. Ao menos duas dimensões teóricas compõem a ideia de democracia para Dahl: o direito a participar e o debate público (DAHL 2009). Participar, neste caso, estando diretamente relacionado ao direito de se ter informação e acesso à discussão. Portanto, as duas dimensões se complementam, assim como ambas carregam um potencial para alteração de um processo democrático e elaboração de políticas públicas. Ainda, apontando para a discussão da igualdade política, Ronald Dworkin (2005, p.502) denomina de coparticipativa uma dimensão de democracia em que “o governo exercido pelo ‘povo’ significa governo de todo o povo, agindo em conjunto como parceiros plenos e iguais no empreendimento coletivo do autogoverno”. Também nesse sentido, para Gramsci (1981 apud VELLOZO, 2011), a conquista de poder público pela sociedade civil, requer a articulação entre diferentes grupos sociais e destes com a sociedade política. Sua afirmação como instância de poder requer a utilização de estratégias em

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busca da hegemonia política e cultural, cuja construção deve-se fundamentar na ampliação da esfera de participação e na socialização do poder, criando novas relações capazes de intervir de forma significativa nas relações cotidianas. Assim, traçado o referencial teórico de participação da sociedade civil nas decisões políticas, cabe apresentar como se deu tal panorama no país. O período de redemocratização da sociedade brasileira trouxe consigo a participação da sociedade civil organizada como atores desta nova fase de construção democrática e participativa do país. As décadas de 70 e 80 foram palco da multiplicação de movimentos sociais. Novas formas de organização política e novas pautas começavam a surgir, além da retomada fortificada daquelas que já existiam: sindicados, movimentos identitários, associações civis, entidades estudantis, grupos culturais, grupos de esquerda, setores progressistas, todos na expectativa de uma política capaz de incluir a diversidade existente e pautada em ideias de participação e poder popular. Além da reivindicação de questões específicas, contrariavam o sistema político ditatorial com a defesa da democracia e disseminavam valores e princípios de participação e justiça social. Tratava-se, sobretudo, da reivindicação de novas formas de relação entre Estado e sociedade, protagonizada por novos sujeitos políticos antes excluídos que orientavam para constituição de uma nova concepção de cidadania democrática, igualitária, não limitada à prática do voto, nem pela outorga mecânica de direitos, mas sim pela participação como meio e fim deste desejado modelo de democracia. Todo este cenário influenciou e foi determinante para a consagração e promulgação da Constituição Federal de 1988, dita Constituição cidadã, que dá formato institucional à chamada democracia participativa juntamente com uma gama de direitos civis e apreço por decisões coletivas. Foi, por certo, uma revisão do modelo de gestão, que anteriormente tinha o Estado como protagonista, não suscetível a pressões populares. A Constituição de 1988 inova ao criar espaços públicos para a participação da sociedade civil no processo de discussão e tomada de decisão de políticas públicas, sendo tal perfil flagrante já em seu primeiro artigo, que dá destaque ao exercício direto da soberania popular3. Para Leonardo Avritzer (2008, p.43), “O Brasil é um dos países com o maior número de práticas participativas no mundo, com uma infraestrutura de participação bastante diversificada na forma e no desenho”. Sendo assim, vê-se o papel do Estado como determinante para o sucesso da inclusão da sociedade nas decisões políticas. Entretanto, mesmo com o cunho democrático instaurado no país a partir da Constituição de 1988, a década de 90 foi permeada por um governo neoliberal, cujas decisões eram concentradas no poder Executivo apenas, ou seja, pouca ou quase nenhuma centralidade à participação social. Parágrafo único do Artigo 1º da Constituição Federal: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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Somente na última década, mais especificamente a partir de 2003, se pôde identificar que o Brasil cumpriu e produziu um amplo conjunto de instâncias e mecanismos de participação social tal qual e para além do previsto na Constituição. Nele, as conferências e conselhos nacionais de políticas públicas destacaram-se e fortaleceram-se como uma das mais promissoras inovações e principal marca do modelo democrático-participativo da nova gestão presidencial em 2003 por apresentarem conexão direta entre as políticas públicas e os processos participativos: O governo de Luis Inácio Lula da Silva pretendia tomar a participação como estratégia de governabilidade, privilegiando formas institucionais de interação entre o governo e a população, o que gerou um ambiente inovador no que condiz à relação Estado-sociedade. Podem ser citados ainda, como exemplos desse período de inovação: a construção participativa do Plano Plurianual; a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; as Mesas de Diálogo, as Ouvidorias (com origem na década de 80, mas incluídas na Constituição apenas em 2004); o aumento das audiências públicas, fóruns e comissões de participação popular; a elaboração de um Sistema Nacional de Participação (2011); a instituição, em 2014, da Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social, entre outros exemplos ao longo dos últimos doze anos. Não se pretende medir ou analisar aqui a efetividade e alcance dos avanços acima mencionados. Por evidente, a avaliação positiva acerca desses programas não é unanimidade, e críticas – principalmente no sentido de que os espaços na maioria das vezes são apenas consultivos – existem, mas, não restam dúvidas que, em comparação a outros períodos da história do país, os programas implementados a partir do ano de 2003 representam um maior avanço no que toca à participação social democrática brasileira. Isso sim é consenso tanto entre movimentos sociais quanto no meio acadêmico. Na área da cultura, houve uma profunda reestruturação do Ministério da Cultura a partir da nomeação, em 2003, do ministro Gilberto Gil, seguido por Juca de Oliveira – atual ministro – quando se ampliou o leque das políticas culturais por meio do papel central que a sociedade civil organizada passou a desempenhar no processo recente, e ainda em curso, de construção de uma política nacional de cultura. Prioridade do MinC desde 2003, esse projeto tem passado pela construção do Sistema Nacional de Cultura- SNC, um regime de colaboração descentralizado e participativo que visa articular ações entre as unidades da federação e com a sociedade civil. De início, uma importante medida providenciada pela nova gestão foi a realização de uma parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para uma sistematização de informações relacionadas ao setor cultural4. Reorganizou-se também a estrutura interna do Ministério da Cultura, buscando reforçar a articulação entre a administração direta e demais instituições vinculadas. Dados retirados do Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2003, site do Minc.

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No ano de 2005, foi promulgado o Decreto nº 5.520, que veio reestruturar o Conselho Nacional de Política Cultural (órgão colegiado integrante da estrutura básica do Ministério da Cultura). Este órgão, instalado definitivamente em dezembro de 2007, tem como finalidade “propor a formulação de políticas públicas, com vistas a promover a articulação e o debate dos diferentes níveis de governo e a sociedade civil organizada, para o desenvolvimento e o fomento das atividades culturais no território nacional” (Disponível em: http://www.cultura.gov.br/cnpc/ sobre-o-cnpc/. Acesso em 10/09/2015). Pela primeira vez composto por membros eleitos pela sociedade – além do poder público federal, estadual e municipal; de setores empresariais, culturais e de fundações e institutos –, o CNPC forma-se pelos seguintes entes: I - Plenário; II - Comitê de Integração de Políticas Culturais; III - Colegiados Setoriais; IV - Comissões Temáticas e Grupos de Trabalho; e V Conferência Nacional de Cultura. Ainda no ano de 2005 foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Cultura, advindo desta a proposta de Emenda Constitucional nº 48/05, a qual prevê a criação do Plano Nacional de Cultura (PNC), aprovado em dezembro de 2010. O PNC é ponto de partida para a concretização do Sistema Nacional de Cultura (SNC), aprovado pela Câmara dos Deputados através da PEC 416/2005. Com a articulação e a integração de fóruns, conselhos e outras instâncias de participação advindas da sintonia pretendida no SNC, pretende-se que haja uma superação das ausências no campo das políticas culturais do país5, com a consequente consolidação de estruturas e de políticas, pactuadas e complementares, que viabilizem a existência de programas culturais de médios e longos prazos, não submetidas às intempéries conjunturais. A aprovação pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição 416/2005, acrescentou o artigo 216-A à Constituição para instituir o Sistema Nacional de Cultura (SNC). O processo de construção do Sistema Nacional de Cultura já está em andamento há algum tempo em todo Brasil, em que pese em estágios bem diferenciados. Isso porque a implantação do SNC possui como prerrogativa com a criação, por Estados e Municípios, de órgãos gestores da cultura, constituição de conselhos de política cultural democráticos, realização de conferências com ampla participação dos diversos segmentos culturais e sociais, elaboração de planos de cultura com a participação da sociedade (já aprovados ou em processo de aprovação pelo legislativo), criação de sistemas de financiamento com fundos específicos para a cultura, de sistemas de informações e indicadores culturais, de programas de formação nos diversos campos da cultura e Segundo Rubim (2009, p. 32), nos últimos cem anos, o percurso histórico das políticas culturais foi permeado por propriedades como ausência, autoritarismo e descontinuidade, sendo esta última também mencionada pelo autor como “instabilidade” e compreendida como uma “conjugação de ausência e autoritarismo”. O autor ainda estabelece como “tristes tradições e enormes desafios” as políticas culturais no Brasil (Rubim, 2007).

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de sistemas setoriais articulando várias áreas da gestão cultural. Isso já têm ocorrido em diversos municípios e estados do país nos últimos anos. (BRASIL/MINC, 2011, p.3). Ou seja, o MinC agirá elaborando as proposições políticas através de um processo de consulta pública instalado em distintas instâncias e fóruns de cultura, juntamente com a experiência vivenciada pelos entes da federação e a sociedade civil, além da incorporação de experiências sistêmicas de outras áreas da gestão pública no Brasil (VELLOZO, 2011, p. 46). A coordenação do SNC compete à instituição pública responsável pela execução das políticas da área cultural. Assim, a nível nacional, o órgão gestor é o Ministério da Cultura, no nível estadual, são as Secretarias Estaduais de Cultura e, no nível municipal, as Secretarias Municipais de Cultura (ou órgão equivalente). Para concretizar a almejada articulação, pactuação e deliberação pretendidas, aliam- se nesta estrutura os Conselhos de Políticas Culturais, as Conferências de Cultura e as Comissões Intergestoras. Os Conselhos e as Conferências de Cultura integram claramente o objetivo do SNC de vincular diálogos permanentes com a sociedade civil. Tanto os Conselhos quanto as Conferências acontecem nas três instancias federativas: municípios, estados e federação, cada qual em seu âmbito de abrangência e necessidades especificas, sempre com o foco de aderir ao modelo de rede sistêmica proposto pelo SNC. Para a concretização desta rede de articulação, o SNC prescinde dos seguintes instrumentos de gestão, ressaltando novamente que, como todos os mecanismos desse Sistema, estes instrumentos também necessitam existir nos três entes federativos: Plano de Cultura, Sistema de Financiamento da Cultura, Sistema de Informações e Indicadores Culturais e Programa de Formação na Área da Cultura. Para a plena satisfação desse modelo sistêmico, e para o funcionalismo do mecanismo do SNC, far-se-á necessária cooperação, aceitação e comprometimento dos municípios, estados e distrito, instituindo uma relação embasada pela coparticipação. A diferença em relação aos modelos de política cultural anteriores reside no fato de ser o SNC uma instituição de pensamento sistêmico, que provoca nas instituições e respectivos gestores de cultura a necessidade de se colocarem a par da estrutura proposta, bem como de firmar um Acordo e de cumprir e implementar o chamado CPF da cultura: Conselhos, Participação Social por meio dos espaços de participação e o Fundo de Cultura (VELLOZO, 2011, p.50) Além disso, podem também ser destacados como inovações no campo das políticas culturais do mencionado período a reorganização do Fundo Nacional de Cultura, por meio de Comitês Técnicos; a formulação de projetos de lei com a revisão da Lei Rouanet e elaboração do Procultura; o Programa Cultura Viva; o Vale-Cultura; a abertura de consultas públicas para ocupação de espaços de representatividade nessas instâncias e a elaboração dos planos setoriais das áreas artísticas e de áreas da cultura; e a Proposta de Emenda Constitucional 150 (PEC 150/2003), para

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destinação de recursos à Cultura com vinculação orçamentária de 2% a nível federal, 1,5% estadual e 1% municipal; e, recentemente, a implementação do Plano Nacional das Artes. Uma vez demonstrados os princípios e funcionamento do Sistema Nacional de Cultura, cumpre agora traçar a relação da área da Dança, enquanto área autônoma de produção e articulação política, com os mecanismos do SNC e os espaços institucionalizados de participação; qual o contexto histórico dessa organização da área e por que ela se potencializou na última década, já que esteve presente em todo o mencionado processo de inovação das políticas culturais no Ministério da Cultural e construção do SNC, além das conquistas relacionadas à especificidades da própria área. 3. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA NA AREA DA DANÇA E O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA Considerando a apresentação feita acerca do Sistema Nacional de Cultura e suas estruturas, cabe aqui situar a área da Dança em relação aos temas anteriormente mencionados, analisando os programas e o desenvolvimento da área na esfera de poder federal, destacando especialmente a valorização da área a partir de dois pressupostos: sua especificidade como norteadora para a construção de programas, a implementação de ações e a ocupação de espaços de representatividade, e o processo de consulta pública para a elaboração de suas políticas públicas e a ocupação de seus espaços de representatividade. Helena Katz fala a respeito da organização da área da Dança na maioria de seus artigos. As datas e títulos de uma seleção de artigos de Katz que versam sobre políticas culturais já são suficientes para se ter noção mínima que a trajetória e organização política da classe vem de muito tempo: 1977 – ENFIM, A UNIAO IMPOSSÍVEL DO PESSOAL DA DANÇA 1978 – SNT DÁ PASSO EM FALSO COM O CORPO DE BAILE 1979 – BAILARINOS UNIDOS PARA MORALIZAR A PROFISSÃO 1979 – UM GRANDE ENCONTRO COM A DANÇA NO TBC 1981 – NA BAHIA, UMA DISCUSSÃO SOBRE A DANÇA NO BRASIL 1987 – NEM TUDO ESTÁ PERDIDO 1996 – BRASIL REDESCOBRE O VALOR DA DANÇA. 1996 – DANÇA: BALANÇO 1996. 1997 – DANÇA: BALANÇO 1997 1998 – DANÇA ESPERA POLITICA CULTURAL ESPECIFICA PARA A ÁREA 1998 – BALANÇO DO ANO DE 1998 2001 – UMA LUTA CRIATIVA PELA DANÇA CONTEMPORÂNEA

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2003 – SETOR MERECE RESPEITO FORA DO PAÍS. 2004 – A DEFINIÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA PARA A DANÇA. 2005 – HOJE É DIA DA DANÇA: QUEM VAI COMEMORAR? 2006 – MUITOS EDITAIS, POUCA POLÍTICA 2009 – FALTA À DANÇA O RECONHECIMENTO COMO UMA ATIVIDADE PRODUTIVA. (Organização de títulos dos artigos de Helena Katz, constantes no endereço eletrônico: http://www.helenakatz.pro.br/. Acesso em 15/09/2015).

O primeiro registro que se tem conhecimento de artistas da Dança reunidos para discussão sobre sua situação profissional data de 1979, referindo-se ao Concurso Nacional de Dança realizado em Salvador/BA, no ano de 1977. Daí surgiram outras iniciativas pelo país, como por exemplo, a 1ª Mostra de Dança Contemporânea de São Paulo no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1979, inclusive contaminando ações da esfera de poder federal como os ciclos de Dança, realizados no Rio de Janeiro, a partir de 1978 (KATZ,1979). No âmbito de poder federal, a criação da Funarte em 1975 também é considerada, ao lado da atuação do SNT, como marco inicial de ações para a área da Dança. Em 1981, o SNT vira Inacen, e a Dança permanece como área de atuação, ocupando um espaço na nova instituição denominado Serviço Brasileiro de Dança (SBD). Já em 1987 o então Inacen passa a ser denominado Fundacen, e o SBD transforma-se em Instituto de Dança. Tal manutenção de um espaço específico para a classe se deu em virtude de reivindicações dos próprios artista da Dança (VELLOZO, 2011, p.137). Em 2000, o destaque é para o “Mapeamento Rumos Dança Itaú Cultural”, primeiro levantamento oficial abrangendo a área. Passa-se agora a analisar a Dança no período que se inicia em 2003, pós eleições presidenciais e considerado um novo marco para as políticas culturais. Acompanhando o ritmo ditado pelo novo governo de abertura dos canais de participação social, a Dança esteve presente com suas reivindicações em todo o processo de renovação das políticas culturais É importante destacar que, a despeito de significativos alcances, não foi efetiva e permanente a autonomia da área da Dança em relação às Artes Cênicas. Para os mais variados demais aspectos, a Dança permaneceu – e até hoje em alguns casos permanece – sob a rubrica das Artes Cênicas. Isso implica em divisão dos recursos, e, historicamente, denota-se a falta de critérios para tal distribuição entre as três áreas (Dança, Teatro e Circo). Há que qualificar o debate das organizações civis da Dança e dos espaços de representatividade para que a área atinja real autonomia, principalmente demonstrando e buscando o reconhecimento de sua autonomia econômica.

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4. OS AVANÇOS NA ÁREA DA DANÇA A PARTIR DAS POLÍTICAS PARTICIPATIVAS DA CULTURA Destacam-se agora os acontecimentos que representaram, de alguma forma, avanços para a área da Dança, e que, notoriamente contaram com a organização e reivindicação da sociedade civil organizada da área, seja nos formatos de fóruns, coletivos ou mesmo por meio dos representantes de espaços de representação institucionalizada a exemplo do Colegiado Setorial de Dança, pertencente à estrutura do Sistema Nacional de Cultura. Não há dúvidas de que o processo de conquista de autonomia da área da Dança iniciou muito antes dos espaços do SNC, como vimos pelo histórico delineado no tópico anterior, assim como também parece claro que tal processo perdura até os dias de hoje. Antes de 2003, conforme demonstrado, a área já acumulava espaços conquistados nos órgãos públicos de cultura específicos para a área, alguns prêmios e o Mapeamento Rumos Dança Itaú Cultural, em 2000. Importante salientar um fator ainda não mencionado e que repercutiu e repercute atualmente no que se refere à autonomia da Dança. Em 2001 a classe travou profundo embate com o CONFEF (Conselho Federal de Educação Física). Por não ter instrumentos legais que resguardem a área a Dança, esta passou a sofrer ameaça da perda de sua autonomia para a Educação Física. Através do Projeto de Lei 7370/02, que regula a área da Educação Física, a mesma insistia em dominar o mercado de trabalho das academias de formação em Dança através da imposição de que todos os professores de Dança se filiassem ao CONFEF e para isto deveriam ser formados em educação física ou se “qualificar” num curso de três meses. Foi uma situação acalorada e ameaçadora que mobilizou os profissionais em Dança, incluindo a mobilização do congresso nacional, com o apoio de parlamentares que evitaram que o CONFEF invadisse o campo do ensino da Dança. Também houve posicionamento oficial do Ministro Gilberto Gil em apoio à Dança. Atualmente, nova polêmica ronda a classe devido ao texto da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Básico brasileiro, onde o subcomponente curricular “Dança” está incluído como um dos eixos fundamentais que compõem o componente curricular Educação Física, a despeito de toda legislação que determina este conhecimento como pertencente à Arte. Novamente a classe se organiza e mobiliza nacionalmente, mediante muito debate interno da própria área, para que uma solução seja dada. Retomando aos destaques pontuais de avanços para a área a partir de 2003: • Valorização da área pela escolha de especialistas através de consulta pública para ocupação dos cargos de Coordenação em Dança do Ministério da Cultura e Funarte; • Câmara Setorial específica da área da Dança, após manifestação da classe quanto a existir apenas a Câmara Setorial de Artes Cênicas;

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• Elaboração do Plano Nacional de Dança, com ampla participação da classe, que servirá como programa instituído com continuidade e específicos das demandas da endoestrutura da Dança; • Fundo Setorial de Dança dentro da estrutura do Sistema Nacional de Cultura, específico para a área, após manifestação da classe quanto a existir somente o Fundo de Artes Cênicas; • Fundo Setorial para a Dança no projeto de lei do Procultura (PL 6722/10), (Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura), e de um Prêmio para a àrea da Dança, que até o presente momento, intitula-se “Mabembe” (A inserção destes mecanismos de fomento setoriais no projeto de lei do Procultura deveu-se a uma articulação nacional em torno desta questão específica, ativada por inúmeros militantes da área da Dança que ocuparam os espaços das audiências públicas do Procultura, durante 2010, em várias capitais do País) (VELLOZO, 2011). • Moção de Apoio à Câmara Setorial de Dança pelo cumprimento da Recomendação • n.o 01/2005, aconselha a todas as instâncias públicas ou privadas, em todas as esferas da Federação, que evitem o uso da nomenclatura ARTES CÊNICAS como expressão generalizadora de áreas distintas como Teatro, Dança, Circo e Ópera, publicada em Diário Oficial em 06 de julho de 2010; • Prêmio específico da área denominado Prêmio Funarte de Dança Klauss Viana; Outros destaques ainda podem ser descritos, como por exemplo a conquista de verba para o Mapeamento Nacional de Dança nas capitais, reivindicação já de alguns anos pelo Colegiado Setorial de Dança - CNPC. Em audiência com a Ministra Marta Suplicy, no dia 29 de abril de 2014, Dia Internacional da Dança - quando foi protocolado documento com as reivindicações da Área -, foram direcionados pelo Ministério da Cultura (MinC) a quantia de 1 milhão de reais para iniciar o projeto de Mapeamento nas capitais brasileiras (base de dados do Colegiado Setorial de Dança, no site do Ministério da Cultura – acesso em 01/10/2015). O Mapeamento é uma ação de diagnóstico da área e cuja primeira etapa se tornou possível através de assinatura de Termo de Cooperação Técnica entre a UFBA e FUNARTE/MINC, no ano de 2015. Os dados deste diagnóstico serão triangulados com as diretrizes e ações propostas no Plano Nacional de Dança. Em dezembro de 2008 foi disponibilizado no site da Funarte o Cadastro da Dança Brasileira sendo que em 2009 haviam sido realizados 1.731 cadastros entre profissionais, instituições, espaços, organizações, projetos sociais, fontes de informação, estabelecimentos de ensino, entre outros. Uma importante iniciativa da Coordenação de Dança em criar este banco de dados para uma compreensão mais aprofundada da realidade da Dança no Brasil. (VELLOZO, 2011, p.245)

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Criados a partir das situações institucionalização e de luta pela autonomia da área, o Fórum Nacional de Dança, o Mobilização Dança (SP), Cooperativa Paulista de Dança, Fórum de Dança de Curitiba, Fórum de Dança de Goiás, entre outros tantos movimentos e fóruns pelo Brasil, passaram a atuar em esferas políticas distintas, regionais, debruçados sobre questões e necessidades específicas da área da Dança. Ou, ainda, como a conquista de cadeiras exclusivas da área dentro dos Conselhos Estaduais de Cultura (a exemplo do Paraná, onde a classe mobilizou- se a ponto de desmembrar a cadeira destinada primeiramente a artes cênicas para cadeiras exclusivas de Dança, teatro, ópera e circo). Outro aspecto de destaque nessa construção histórica foi o aumento de cursos universitários de licenciatura em Dança, vertente ainda muito recente no panorama nacional, mas que, em poucos anos, expandiu-se de forma significativa. Existem hoje no Brasil 35 cursos de Licenciatura em Dança reconhecidos pelo MEC. Por todas essas conquistas, justifica-se a escolha da área da Dança como exemplo concreto de que a participação social realmente impacta na construção de políticas públicas no âmbito da democracia participativa. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Logo na introdução, no início do presente artigo, foi trazido a estatística do IBGE do ano de 2006, que indica que a Dança é a linguagem que, em segundo lugar – apenas atrás do artesanato –, reúne o maior número de grupos artísticos por município no país. Importante reforçar isso, agora em âmbito conclusivo e após o discorrido nos tópicos do artigo para avaliar alguns pontos. Primeiro que, mesmo considerando-se esse percentual, à época não havia ações específicas do poder público para a área, e mesmo assim alcançou esse patamar de existência – que hoje certamente é maior – no país. Sendo assim, é de extrema relevância que se discuta tanto no âmbito interno da classe de Dança, quanto no âmbito externo do poder público federal, estadual e municipal. Por outro lado, é necessário que se atente para o número de organizações de Dança existents no SNC, que certamente não condiz com a amplitude e territorialidade do país e do próprio índice do IBGE. Também não orna tal índice com o fato de que, ainda que considerando os avanços alcançados, a Dança não atingiu a plenitude de sua legitimação nos sistemas politico, economico e também cultural como atividade produtiva que necessita de recursos próprios e programas que abarquem a dimensão democrática e descentralizada dos eixos específicos que ainda recebem a maioria dos recursos. Além disso foi possível a compreensão de que, tanto inserida na estrutura de participação institucionalizada do SNC, quanto em outros fatores que percebia necessidade, a classe se organizou e garantiu o mínimo de espaço, para que não permanecesse com ações que muitas vezes

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seguem as necessidades provenientes da endoestrutura de outros segmentos artísticos como o teatro. Ou seja, de variadas formas a classe se articulou e conquistou, a partir do entendimento de seu potencial e dos Direitos Culturais que lhes são resguardados, mesmo que em algumas das vezes motivada por fatores externos, tal qual o próprio SNC e o embate com o CONFEF (VELLOZO, 2011, p.264) . Pretendeu-se neste artigo delinear a forma com a qual os apontados avanços e conquistas da área da Dança podem – e se podem – ser atribuídos a um cenário amplificado de participação social institucionalizada, como se deu a partir de 2003 com o início da construção do Sistema Nacional de Cultura. Percebeu-se, também, a trajetória árdua da classe que perdura até os dias atuais, visto que nem todos os anos representaram avanços, e, aqueles que foram apontados seriam o mínimo de reconhecimento e valorização para a área. Muito ainda precisa ser construído. A classe busca hoje prioritariamente apoio político e suporte jurídico para elaboração de mecanismo legal para a área da Dança que promova a autonomia da Área, definitivamente. Sobre esse ponto destaca-se a tramitação, atualmente no Senado Federal, do Projeto de Lei nº 644, de 2015, o qual dispõe sobre o exercício da profissão de Dança – Lei da Dança. É conveniente repisar também que internamente há intensos debates e divergências entre os representantes da área, mas que convergem para um maior enriquecimento do debate e a espera de que as decisões sejam sempre hábeis a proporcionar para toda a classe melhores condições possíveis. Tais posturas, inclusive as de embate político para além do artístico, só se tornaram possíveis conforme a classe foi tomando consciência da força política da área, através das conquistas que vieram com o tempo. A área da Dança percebeu que podia, e que organizada, pode cada vez mais. Esse é, sem dúvida, um ponto positivo da democracia participativa, tão trabalhada no primeiro tópico deste artigo. O destaque é total relacionado com o universo da participação da sociedade civil, e quis-se demonstrar que toda a organização, articulação e avanços citados para a Dança foram oriundos desses espaços de participação, das organizações civis. Sem dúvida, o impacto e a influência desses processos participativos foram perceptíveis, renderam frutos, e renderam, especialmente, a conscientização de que se pode alcançar muito mais. De todo o exposto, resta claro que a investigação dos problemas políticos e econômicos da área continuam sendo tão importantes quanto são urgentes, para que se dê continuidade aos avanços e à busca pelo modo como as alterações na área da Dança se sucederam e em que medida essas políticas consideradas democráticas repercutem no desenvolvimento da área. A luta pelos avanços na área, principalmente no que toca sua autonomia política e econômica, bem como a especificidade de sua nomenclatura e espaços de representatividade, é algo que as organizações civis da Dança buscam em conjunto com o Estado, a partir de mobilização e participa-

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ção ativa que se aperfeiçoa constantemente. Assim, foi possível perceber que o poder não reside tão somente nas instituições públicas, mas também e principalmente nas organizações do povo. Isso é o que espera-se ter sido demonstrado a partir do exemplo da área da Dança neste artigo. Por fim, e partindo do princípio de que toda ação é também política, como não deixar no ar o fato de que tudo isso possa se dever à relação indissociável do corpo (dança) com a política?!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AVRITZER, Leonardo (Org.). Sociedade civil e democratização. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varriale et al. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. CALABRE, Lia (Org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Colóquio 2003. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2005. CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. Estudos Avançados [online]. v.9, n.23, p.7184, 1995. DAHL, Robert Alan. La poliarquía: participación y oposición. Madrid: Tecnos, 2009. ______. Sobre a democracia. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007. KATZ, Helena. Enfim, a união impossível do pessoal da dança. Jornal da Tarde, São Paulo, 20 out. 1977. Caderno de Variedades. Disponível em: . ______. Falta à dança o reconhecimento como uma atividade produtiva. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 1.o jan. 2009. Caderno 2, p.D3. Disponível em: . MUNIAGURRIA, Lorena Avellar. 2015. A construção do Sistema Nacional de Cultura: a relação entre Estado e sociedade civil. Texto apresentado no 6º Seminário Nacional de Sociologia e Política. UFPR. Curitiba RUBIM, Antonio Albino Canelas; BARBALHO, Alexandre. Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. ______. Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. In: ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA (ENECULT), 3., 2007, Salvador. Anais... Salvador, BA: UFBA, 23 a 25 de maio de 2007. 21p. Disponível em . ______. 2007. Politicas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafio. In: RUBIM, Antonio; BARBALHO, Alexandre (orgs.) Políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba.

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POLÍTICA CULTURAL: CONCEPÇÕES DE CULTURA EM UMA ABORDAGEM CONFIGURACIONAL À UMA ABORDAGEM PROCESSUAL Marcelo Augusto de Paiva dos Santos1 Alessandra Martins Rosalba2 RESUMO: Este trabalho final visa acompanhar os fundamentos básicos para as propostas conceituais de cultura para a perspectiva culturalista de Benedict e compará-lo à perspectiva processual de Sapir a fim de revelar possíveis alicerces para a fundamentação de uma política cultural como instituição política. O interesse reside em entender as diferenças teóricas que acarretam e se arrolam nessas duas possibilidades acadêmicas e compreender alguns desafios inscritos para o exercício da política cultural. Para ilustração e reflexão, algumas inserções sobre o estudo da dança de Kalela, de Clyde Mitchell, serão usadas como encarnação dos problemas enfrentados por este artigo. PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Política cultural, Teoria antropológica, Desigualdades simbólicas.

1. INTRODUÇÃO Esta pesquisa procura estreitar as relações entre o campo teórico da Antropologia com os alicerces práticos da política cultural. Para tanto, procura pontuar a forma como a discussão da teoria pode organizar novas frentes para ação no campo da cultura, demonstrando como a ação institucional deve estar comprometida com as contribuições científicas correlatas. Desta forma, pretende debater como expressões culturais, como o exemplo da dança africana, podem conter em si um múltiplo universo de enfrentamentos sociais que devem ser levados em consideração em toda diretriz sobre gestão pública de cultura. O presente artigo procura ilustrar o conceito de cultura para Ruth Benedict, com base em sua obra Padrões de Cultura e procura rediscutir aproximações e dificuldades que seu argumento possui quando comparado ao debate sobre cultura autêntica e espúria de Edward Sapir. A comparação permitirá discutir celeumas específicos do tratamento ao termo e tais desafios serão interpretados com base no estudo sobre a dança Kalela, na cidade de Copperbelt, na atual Zâmbia, realizado por Clyde Mitchell, em seus estudos africanos. O intuito final é de cartografar Mestrando em Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected] Graduada em Biblioteconomia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]

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alguns debates a respeito da interpretação conceitual de cultura e compreender, no quadro das teorias clássicas e contemporâneas, o caminho escolástico que o léxico percorreu durante seu amadurecimento acadêmico, no recorte aqui eleito, para antever certas discussões essenciais à política cultural como um todo. Acredita-se que tal exercício pode lançar luz sobre os fenômenos das políticas culturais, em seu nervo sobre objetivação e redistribuição simbólica. 2. CULTURA COMO ETHOS: A PROPOSTA DE RUTH BENEDICT Na direção contrária aos estudos antropológicos inscritos a partir de uma concepção histórica teleológica e refutando a premissa unigenética de cultura defendida por alguns evolucionistas, Benedict procura aprofundar a noção relativista do termo, inspirado em Franz Boas. Na obsessão de desenhar os alicerces da vida cultural, a autora procura destrinchar a gênese das configurações sociais, com objetivo de (i) explorar o seu caráter de probabilidade e (ii) compreender como os costumes se institucionalizam, se rearranjam e permitem uma dada ordem cultural. Os seus estudos culturalistas, que se fundamentam na prerrogativa do relativismo cultural, partem, portanto, da premissa configuracional e da prevalência de linhas de conduta que se institucionalizam na rotina de um arranjo social. Ruth Benedict se coloca sobre três problemas sociais para fundamentar a ciência do costume, como verdadeira antropologia científica e desinteressada no fazer metodológico: a) a questão de não sermos insetos sociais – uma vez que nossa sociabilidade não nos é dada geneticamente, b) a questão do etnocentrismo, para fundamentar a prerrogativa dos arranjos sociais como objeto dos estudos antropológicos, tecendo uma interessante crítica à síndrome da excepcionalidade que marca a forma como o Ocidente havia executado os estudos antropológicos até então, e c) a perspectiva do preconceito racial como forma de situá-lo à ordem dos assuntos de costumes e não da biologia. Construindo um novo paradigma para a Antropologia, Benedict enfrenta então o desafio de alinhar o costume como real objeto da ciência social e mais além, procura estabelecer a cultura como problema-central da disciplina, pretendendo anular o caráter essencialista e normativo que marca a Antropologia evolucionista. Partindo da convicção quanto ao mito da universalidade da cultura, Benedict procura evidenciar o caráter relativo do termo, porém, no ensejo de ampliar os próprios horizontes da disciplina. Para ela, os critérios e códigos selecionam-se em uma vasta gama de possibilidades sociais, dando origem à fundação cultural de algum grupo. Ao apontar que a natureza da cultura é plural, Benedict tece um novo escrutínio à Antropologia procurando entender o campo das referências sócio-culturais para a formação de específico ethos em distintas realidades norte-americanas. A confusão entre instinto e identidade, entre a obsessão do mito fundante da humanidade, revela, na verdade, a colonização dos sentidos sociais em dogmas pela sociedade ocidental, o que

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denota centralmente os vícios aos quais as ciências humanas não se posicionavam reflexivamente. O aspecto posicional da crença na natureza humana adquiria um status bastante agônico nas sociedades tribais, uma vez que o valor de humanidade não era externo e alargado à realidade inscrita entre os membros insiders; a fim e a cabo, eles eram a própria humanidade e não exprimiam léxico ao termo. Ruth Benedict se empenha em desafogar, em primeira ordem, a concepção de cultura da sua teleologia metafísica, no intuito de avançar nos seus próprios estudos. O sistema institucionalizado de uma cultura permite contextualizar o processo da tradição, observando experiências e crenças, na gênese dos costumes. A função magistral da antropologia seria, então, criar um corpo capaz de observar diferentes arranjos sociais e compreender como formações culturais se fundamentam de maneiras diferentes e o que esses diferentes arranjos sociais nos dizem, em termos de universais – por exemplo o animismo e as restrições exogâmicas. Eles existem sobre as mais plurais e diferentes formas em distintos contextos sociais. Porém, na busca de fugir da obsessão pela origem, que para ela é extremamente conjectural - não é porque a crença é comum à todas as culturas que podemos operar diferenciando genes numa escala evolutiva; podemos compreender os caminhos que a seletividade opera sobre a organização dos sentidos num arco de possibilidades culturais. Fugindo também de uma abordagem funcionalista, Benedict procura encontrar compreensões acerca dos espíritos culturais que sedimentam um determinado grupo social. Em diferentes exemplos, a autora destrincha a forma como diferentes fenômenos culturais, como a puberdade, são plásticos ao tipo de percepção social que se atribui pelo corpo social endógeno. A configuração cultural constrói ritmos que podem ser conflitivos ou consensuais, mas sempre entrelaçado aos arranjos específicos que montam um determinado grupo cultural. Nesta abordagem probabilística, o termo cultura adquire maleabilidade teórica e aglutina para si a noção de diversidade das práticas sociais. Cada sociedade possui propósitos diferentes para sua programação societal. Propósitos que tecem experiências institucionalizadas, tornando as motivações pessoais congruentes, com a criação de padrões de cultura. Tais propósitos compartilhados geram experiências similares em um universo vasto de possibilidades. É nesta chave que o costume torna-se nervo fundamental da investigação antropológica. Por certo, a correta adaptação pessoal não depende de seguir certas motivações e evitar outras. A correlação existe em outro sentido. Enquanto aqueles que têm respostas próprias mais próximas do comportamento que caracteriza a sua sociedade são favorecidos, aqueles cujas respostas próprias caem na área de comportamento não capitalizada pela sua cultura ficam desnorteados. Estes anormais são aqueles que não contam com o apoio das instituições de sua civilização. São as exceções que não adotaram facilmente as formas tradicionais de cultural. (BENEDICT, 2013, p. 175).

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O olhar para a cultura, para Benedict, é o olhar para sua totalidade, integracional e probabilística. Entender a regularidade do costume e seu aspecto configuracional permite compreender a especificidade total de uma cultura. Não obstante, o papel do costume para a construção das personalidades revela o grande segredo da antropologia, no momento em que se desloca de uma análise apenas funcional das partes integradas à uma cultura, mas compreende sua fundamentação como mundo gnosiológico. Compartilhando uma noção da Gestalt, Benedict compreende a formação cultural como uma composição de forças, nas quais as partes integradas não são apenas somadas para o resultado da totalidade, mas geram sentidos e novas informações, dependendo da forma como se posicionam e se interconectam. Ao estudar os pueblos, nos Estados Unidos, Ruth tenta observar a cultura deles de forma holista, na procura de entendimentos sobre o arranjo social, procurando seu núcleo significante: a vida cerimoniosa. Ao observar os microdetalhes desta vida cerimoniosa, ela percebe diversas funções no que tange o estabelecimento de uma aldeia como um todo, na divisão do trabalho mágico, para uma composição harmônica do povo (sociedades médicas, das chuvas, sacerdócio). A vida cerimoniosa é imitativa e conduz os ritos de iniciação à vida sobrenatural, como uma forma de diferenciação. Esta diferenciação está bastante assentada nas estruturas de herança de família de seus desempenhos cerimoniais, teocrático. O rito permite que o jovem possua os códigos que os torna sobrenaturais aos outros. Na produção dessa ficção social, por exemplo, sociedades médicas se fortalecem à medida que curam, uma vez que quanto mais curam, maior é seu prestígio sobrenatural. São muitas e diversas as diferenciações funcionais para participação do cosmo mágico que comporão seus objetivos de vida. Os objetos sagrados, essenciais para a identificação da consagração mágica, são conquistados pela família. O relacionamento sanguíneo tem como núcleo a propriedade da casa e o cuidado dos objetos sagrados. Existe, assim, uma competição, mas não de forma acumulativa, e sim em torno do sucesso na vida sobrenatural e no esforço de se colocar como donos de propriedades mágicas e na participação nos papéis cerimoniais. Vale dizer que as famílias possuem a propriedade sobre o símbolo, mas não sobre o poder mágico. O poder mágico é coletivizado. O patrimônio pessoal não dignifica economicamente uma família e nem materializa o poder mágico, mas sim fortalece a linhagem requerida, pelo status de posse. Desta forma, homens pobres podem desfrutam também do poder, mas podem ter maior dificuldade para avançar em um dote sobrenatural, se não tiver linhagem que os permita dominar os códigos de diferenciação mágica. De forma resumida, Benedict procura tangenciar o tipo de ethos que esta fundação cultural emite, através de seus costumes institucionalizados; cunhando então o adjetivo de apolíneo aos pueblos, por exprimir o caráter de interioridade da vida individual perante a harmonia social

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do grupo cultural. O viver em si para o grupo, marca firma do que qualifica-se como apolíneo, dá exemplo de relevo ao tipo da antropologia relativista que Ruth Benedict se propõe. O núcleo dos processos culturais dos Pueblo se voltava para a edificação da vida cerimonial como forma de acimentar as tradições e a não-individualidade, em torno dos objetivos em comuns: experiências na vida cerimonial e proteção aos objetos mágicos. A resposta psicológica que corrobora com o sentido da cultura pelo povo dá norte ao tipo de fortalecimento cultural harmônico que indica as bases antropológicas de sua concepção relativista. Com este objetivo, Ruth Benedict contrapõe, como exemplo, os Salish3 dos Kwakiutl4, compreendendo os primeiros como individualistas e os segundos como coletivos, como denota o fenômeno do potlaches5. Ao defender o processo cultural como arco de comportamento possível que povos escolhem e capitalizam em suas instituições tradicionais, Benedict atribui ao termo de cultura um sentido de fundamentação cristalina que denota certa prevalência nos tipos psicológicos investigados em seus trabalhos de campo. A abordagem que se debruça sobre a troca cultural pode revelar a infraestrutura que organiza, no campo da probabilidade, um sentido cognitivo promotor de um sentimento harmônico. Esta infraestrutura pode ser a origem dos frutos de estudos comparativos. Diferentes grupos étnicos podem ter mesma base material de costumes – difundidos amplamente, como as técnicas de mascaras, mas cada grupo irá produzir diferenças sobre esta mesma base.Desta forma, a configuração cultural é maior que o valor das instituições. Elas transformam instituições em situações e denotam não apenas o seu funcionamento, mas pode revelar os mecanismos internos de construção social ao qual a cultura se dedica. A ficção social de uma configuração cultural pode ser a tradição que corteja objetivos da vida social, elaborando situações complexas e inteiramente específicas da cultura local. Estas situações são construções nas quais as motivações pessoais se apresentam por meio de costumes, norteando a integração grupal de um povo. Logo, o conceito de cultura para Benedict possui três interfaces: (i) um caráter relativo, (ii) um caráter totalizado e (iii) uma plataforma de significações pessoais orientadas. Esta combinatória permite a interpretação antropológica se renovar perante as chaves conceituais antigas, dando corpo para uma perspectiva alargada, porém ainda grandiloquente, no sentido de que sua obsessão reside em compreender a cultura como aspecto totalizado e como orientação psicologizante. Assim, Quando estas situações (referindo-se à forma como a conduta social é plástica) que mesmo numa única sociedade são dinâmicas no comportamento humano, são ampliadas em contrastes entre culturas que têm metas e motivações tão opostas como a dos Zunhis e a dos Kwakiutl, Grupo indígena na Costa norte do Pacífico, abrangendo EUA e Canadá. Grupo indígena na parte nordeste da Ilha de Vancouver, Canadá. 5 Atividade tribal referente à distribuição de bens após falecimento, típico entre alguns indígenas da América do Norte. 3 4

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a conclusão é inescapável. Se estamos interessados no comportamento humano, precisamos acima de tudo compreender as instituições estabelecidas em toda sociedade, uma vez que o comportamento humano tomará as formas que essas instituições sugerirem, mesmo a extremos que o observador profundamente impregnado da cultural da qual faz parte não pode sequer imaginar. (BENEDICT, 2013, p. 161). 3. CULTURA COMO PROCESSO: AUTÊNTICO E ESPÚRIA Apesar de Benedict fugir de uma orientação que toma como sinonímia a relação entre civilização e cultura (por meio de uma escala de valores e estágios), como bem narra Sapir, em Cultura autêntica e espúria, a autora não avança no sentido de fundamentá-la. Benedict parece antever uma confecção de cultura próxima com a ideia de Sapir de gênio de um povo em seus estudos, mas sua argumentação teórica não se volta sobre as sociedades ocidentais. Sapir procura, em sua análise, centralizar, então, sobre as culturas nacionais o problema da antropologia. Ao estabelecer uma conceituação processual de cultura, ou seja, relativo à forma como a cultura se organiza entre aqueles que a compartilham e como ela cria sentidos6, a chave teórica de Sapir torna-se diferente da de Benedict. Numa empreitada sobre a forma como a cultura se homologa e se recria por dentro da ação dos indivíduos, Sapir tece uma robusta crítica ao trabalho dos culturalistas: Até aí tudo bem, mas uma cultura autêntica se recusa a ver o indivíduo como uma mera engrenagem, como uma entidade cuja única raison d’être reside na sua subserviência a um propósito coletivo do qual ele não é consciente, ou que tenha apenas uma remota relevância para seus interesses e ambições. As atividades principais do indivíduo devem satisfazer diretamente seus próprios impulsos criativos e emocionais, devem ser sempre algo mais do que apenas meios para um fim. Uma cultura autêntica não pode ser definida como uma soma de fins abstratamente desejáveis, como um mecanismo.Ela deve ser vista como o vigoroso crescimento de uma planta, cuja folhas e galhos mais remotos são organicamente nutridos pela seiva das suas raízes. E esse crescimento não é aqui uma metáfora apenas para o grupo; aplica-se também ao indivíduo. Uma cultura que não se constrói a partir dos interesses e desejos centrais dos seus portadores, que opera a partir dos fins gerais em direção ao indivíduo, é uma cultura exterior. A palavra “exterior”, que tantas vezes é instintivamente escolhida para descrever tal cultura, é bem escolhida. A cultura autêntica é interior, ela opera a partir do indivíduo em direção aos fins. (SAPIR, 2012, p. 44-45). Preocupado com a relação entre indivíduo e processo cultural, Sapir procura destrinchar uma noção de cultura sob a perspectiva do conflito. Desta forma, a chave conceitual que o per Numa abordagem linguística.

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mitirá subdividir cultura entre uma autêntica e uma espúria, é o tipo de relação que os indivíduos possuem com seu meio externo e suas motivações. Baseado nisso, o autor traz uma séria complicação à noção de cultura de Benedict. Ao abordarmos a configuração cultural, como estrutura de orientações do costume, na interpretação da autora, o papel do indivíduo se esfacela perante a incorporação cultural de significados. A sua fortaleza conceitual pressupõe um modelo de sociabilidade orientado e um institucionalismo subjetivo, que coordena reações consonantes aos padrões culturais. Desta forma, a agência processual entre indivíduos, a problemática relacional entre interesses próprios e motivações coletivas, passa ao largo de sua problematização, ou pelo menos, passa de forma relativamente passiva. Benedict parece provocar um pouco deste conflito quando se refere aos casos de anormalidades contemplados na organização cultural, sem retificá-los. Entretanto, sua preocupação acaba por não indagar sobre a reflexividade cognitiva entre indivíduos e ordens sociais. Esta é a preocupação de Sapir, como um norte teórico necessário ao problema da cultura. Sapir desenvolve, a partir disto, uma crítica sobre a forma como os fins sociais se transformam, principalmente no tocante da vida ocidental, uma vez que doutrinamos nossas motivações de forma a reconduzir os fins imediatos7 como fins não essenciais e elevamos como fins primordiais aqueles fins remotos8, de outrora. Em outras palavras, realinhamos nossas motivações por diferentes processos culturais, que muito têm a ver com a distribuição de nossas motivações e nossa forma de se situar no mundo simbolicamente. A perda da adesão à uma autenticidade cultural, vem, portanto, muito mais de um afrouxamento dos reconhecimentos mútuos com o aspecto endógeno do que por uma distinção moral de valor civilizatório. Esta distinção moral apenas revela o tipo de racionalidade que coordena os arranjos ocidentais, tornando-se dogma central à vida cotidiana. O exercício do controle sobre os bens da vida e sobre o posicionamento no patrimônio cultural tornam-se então importantes balizadores para a compreensão da correspondência entre cultura e personalidade. Este novo enfoque traz consigo uma distinta forma de abordagem culturalista, que permite antever o caráter psicológico não por uma doutrina do ethos, mas por um conflito inerente aos jogos simbólicos que se montam como teias em nossas vidas rotineiras. A cultura para de ser interpretada de forma holista e congregadora, para alçar saltos maiores, ao elucidar sua capacidade de incorporação e de domínio. Nestas chaves, a ficção social deixa de ser abordada como uma configuração cultural de padronização e de personalização, mas passa a ser um drama social nutrido de confrontos que realocam valores simbólicos e desenham repertórios de institucionalização capazes de rearticular os sentidos de progresso, pertencimento e participação cultural.

Associados à ideia de satisfação primordial dos indivíduos Para além dos fins de satisfação primordial, causas acessórias à vida, não essenciais.

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Herdando o caráter de interdependência entre cultura individual e cultura coletiva da escola culturalista (SAPIR, p. 48), enfrenta o problema do formalismo das culturas ‘novas’, como a América, que apresentam para si todo o léxico de progresso em andamento, gerando formas de subjetivação desassociadas do solo fértil da cultura autêntica. Em outras palavras, o problema da subjetividade não reside sobre o indivíduo como argila sob o processo cultural, mas como eu volitivo que não só necessita identificar, como necessita compartilhar. Desta forma, a análise da sociedade ocidental, para o autor, denota justamente esta perda reflexiva sob a volição do indivíduo, no que tange seu processo subjetivo, de compartilhar suas motivações com os projetos das culturas nacionais, seguindo-os com uma ampliada sede de volição e uma cegueira submissa. O eu individual, ao aspirar à cultura, se agarra aos bens culturais acumulados da sua sociedade, nem tanto pelo prazer passivo de sua aquisição, mas pelo estímulo que é fornecido à personalidade em desenvolvimento e pela orientação resultante no mundo (ou melhor, num mundo) de valores culturais. A orientação, por mais convencional que seja, é necessária apenas para dar ao eu um modus vivendi com a sociedade como um todo. O indivíduo precisa assimilar grande parte do contexto cultural da sua sociedade, muitos dos sentimentos atuais do seu povo, a fim de evitar que sua auto expressão degenere em esterilidade social. (SAPIR, 2012, p. 51). Desta forma, Sapir enfrenta outra dificuldade dos estudos de Benedict, ao tomar o problema entre cultura como mundo cognoscível mas também como mundo de ação e transformação. Para a autora, apesar da mudança ser também um problema da ordem das seleções de padrões culturais, enfrentando também análises de culturas ‘desarmônicas’, não fica evidente em seus textos onde que fica a capacidade crítica entre os grupos culturais com as fabricações culturais que os contextualizam. Em vez do fruto desarmônico ser apenas um problema de institucionalização cultural da diferença, como fica claro nos exemplos de Benedict sobre a homossexualidade, Sapir demonstra que o problema pode ser muito mais amplo: ele pode ser oriundo da forma como a cultura se conecta com os indivíduos ao manipular sua capacidade crítica, ao torna-lo membro de uma cultura autêntica ou de uma cultura espúria. A questão é incontornável. De forma sintética, o conceito de cultura para Sapir aglutina para si uma noção de conflito que chacoalha com a perspectiva espiritual de Benedict e realinha o problema da cultura de um pólo estrutural para um pólo processual. A condução desse novo paradigma não esgota ambas as possibilidades abstrativas, mas permite entender o léxico da cultura como instrumento operativo de suas antropologias e abre margem para uma discussão acalorada sobre a forma como o tratamento teórico eleito acaba por minar distintas operações intelectuais aos seus trabalhos. Apesar de convergir na conformação social da cultura e no relativismo necessário, ambos perseguem objetivos distintos: Benedict procura entender a possibilidade da cultura como organização social, Sapir procura revelar o domínio da capacidade crítica da cultura como entendimento no mundo e o seu papel para também a organização social. 1372

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Sapir escreve uma teoria da cultura, cunhando a independência entre estar no mundo e criar o mundo e indagando-se sobre os limites da modulação cultural. Assim, o capital cultural deve ser menos o foco da volição no mundo, sob esta medida, e sim o interesse intimo com os processos autônomos de autojustificação e autosatisfatividade. Apesar da válvula teórica de Benedict ser inovadora por permitir compreender o papel da cultura na institucionalização dos costumes e logo, das definições entre insiders e outsiders, é inegável apontar que seus estudos, ao beber da psicologia do seu tempo, acabam por qualificar um certo efeito imitativo entre indivíduos e centros de equilíbrio da sociedade. Sapir demonstra que este efeito imitativo não é isento de ação humana, ele é, na verdade, o grau de autonomia, perante imposição e mestria individual. Ao invés da cultura ser o sopro da vida da individualidade, Sapir, sutilmente, inverte a equação, detalhando que o sopro da vida da cultura é a própria individualidade. Esta armação teórica realinha toda perspectiva entre fidelidades locais, regionais e nacionais, bem como globais. Se estamos rumando à uma ordem cultural global, a que preço pagamos com o exercício de nossas individualidades? Se associamos os nossos bens culturais a ideia capital, meramente de fins não essenciais, estamos cunhando uma ordem social racionalizada anticultural ou podemos traçar um novo caminho, no quais as individualidades realinhem a cultura global por meio do que realmente é autêntico ao espírito da cultura como volição no mundo? 4. DILEMAS CIRCUNSCRITOS: A DANÇA KALELA COMO EXEMPLO Nesta problematização do termo, o conceito de cultura pode revelar diferentes abordagens antropológicas que importam para os objetivos de uma política cultural. De acordo com Caio Gonçalves Dias (2011, p. 41), A gestão cultural, deste modo, se ocupa de criar os meios para que certas práticas culturais – num universo de significados certamente muito mais amplo – ganhem um espaço singular para certa coletividade. A gestão cultural, portanto, se sustenta a partir de critérios socialmente reconhecidos para operar essa transposição, do comezinho para o que deve ser lembrado, visto e/ou disseminado. Nesse sentido, opera para a partir de um sistema de relações entre pessoas e instituições, que, articulados, formatam a produção, a distribuição, o uso e o consumo de algumas dessas práticas, objetos e ações culturais. Entendendo a política cultural de uma gestão como prática institucional, entre atores, de forma a participar sobre a realização, distribuição e proteção das atividades culturais de um grupo, a operatividade do conceito de cultura pode denotar alguns pontos de reflexão. Ao compreendermos a noção geertziana de sistematização da cultura como produção de noções compartilhadas em teias de significações, compreendemos que o envoltório do termo cultura, inescapavelmente aborda a questão gnosiológica como ponto fundamental. 1373

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A questão do entender um mundo significado e compartilhado cunha uma marca de solidariedade entre os insiders, na possibilidade de compreensão sobre um mesmo mundo inteligível. Esta noção é essencial para a ruptura com uma ideia de cultura como bem de distinção, promovendo uma ideia de modo de viver e compreender sobre esta vida. A concepção de cultura como gnose implica necessariamente na requalificação do mundo social ao mundo cultural, dando ao segundo liberdade para influência na ação social e no mundo das relações humanas. Entretanto, a associação entre gnose com cultura acaba por ser apenas um passo rumo ao real enfrentamento do termo no coração da antropologia. Quando Benedict explora o caráter probabilístico das fundações culturais, ela desafia acertadamente a relação entre causação da cultura e ordenamento cultural, mas avança pouco em interpor o conflito endógeno do processo. E é justamente na chave processual, que ele aparece com mais vigor. A crítica inerente da compreensão de Sapir sobre cultura reside em libertá-la da chave do pensamento sobre regularidade e coerência. Quando aborda a problemática entre práxis e assimilação cultural, o autor investe maciçamente no caráter de confronto entre a gnose da cultura com a sua “action”. Os universos discursivos em que o processo cultural é disputado e provoca tensão são plurais, assim como os indivíduos estão alocados em trânsito, não em uma argamassa petrificante. Assim, a capacidade crítica sobre o processo cultural acaba se tornando essencial ao debate sobre a organização cultural de um grupo. A questão é complexa: na medida em que produzimos cultura que nos escapam em distintos intercâmbios conectados, sob que medida tornamo-nos passivos ao processo criativo e a gnose torna-se illusio? Como de se esperar, a resposta é tão enigmática quanto a pergunta. Envolve não só compreender as fabricações simbólicas, mas as suas próprias formas de sistematização e o caráter normativo que lhe é constitutivo. Entretanto, a questão é o nódulo central do paradigma da própria gestão pública pela cultura. Se os significados culturais não são apenas cristalinos, mas são relacionais e contrastivos, o caráter distributivo da cultura torna-se pedra angular do tipo de reorganização cultural que uma política na área almeja. Até que ponto o fazer institucional media as relações entre práxis culturais e incorporação cultural? Em que pontos, talvez seja interessante perguntar, elas se contradizem? O caso da dança Kalela pode fornecer os gatilhos preciosos para a questão. Enfrentando a questão da multiplicidade racial da Rodésia do Sul, em 1951, Clyde Mitchell observa o paradoxo inicial da comum dança abordada, uma vez que apesar da sua origem ser tribal, sua força de expressão no mundo carrega consigo elementos específicos da urbanidade colonizadora que imprime para si a própria opressão em relação à tradição local. Em outras palavras, as composições simbólicas da dança assumiam e aglutinavam para si a própria tensão inerente aos jogos simbólicos entre colono e colonizado, recriando uma nova forma de expressão artística, valiosa para entender os mecanismos de sistematização das práticas culturais em ressonância tanto à

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gnose do mundo como à da sua práxis. O encontro entre mundos, numa vasta teia globalizada, inevitavelmente realinha perspectivas tradicionais a se reinventarem, não em termos unicamente exógenos, mas em uma polissemia endógena que aglutina o caráter exógeno, cambiando suas próprias formas tradicionais. O papel do individualismo, do consumo e da divisão comum de espaços urbanos transformaram os caminhos tradicionais destas sociedades tribais por dentro e revelam consigo uma noção mais ampla que a perspectiva de Benedict sobre institucionalização de prevalências culturais pode exprimir. Os encontros culturais não se adaptam harmonicamente na medida que criam propósitos sagrados de extremo poder sobre a personalização, eles transformam o conflito por dentro, se instaurando sobre a razão prática das ações sociais. Desta forma, a harmonia pode ser imaginada muito mais por um painel de recondução da práxis cultural, promovendo fenômenos criativos de ressignificação cultural, que não necessariamente apontam para um processo de fusão cultural, mas para um processo de transformação cultural e principalmente, de disputas simbólicas sobre o processo de ressignificação. A fim e a cabo, o debate se traduz pela forma como a estrutura cultural é interpretada, na medida em que institucionaliza, como é para Benedict, ou se esta estrutura é posicional, disputada e infere, substancialmente, em uma relação de domínio distributivo. A dança Kalela além de congregar diferentes tribos para suas apresentações e de suprimir suas próprias marcas em uma ação bastante tribal, reveste a própria questão da etnicidade em conflito. O uso africano do estilo de vida europeu como um padrão através do qual se mede o prestígio pode, então, ser visto como um tipo de referência do comportamento grupal. Os dançarinos mbeni o exibiam, copiaram os mais óbvios e visíveis símbolos de prestígio. A conexão entre mbeni e kalela é preservada no uso da vestimenta como único símbolo. Os dançarinos da Kalela não usam mais o uniforme militar, mas as roupas elegantes dos homens de negócios e profissionais europeus: os africanos, geralmente, aceitaram os padrões destes homens como aqueles aos quais eles mesmos aspiram. Os símbolos possibilitaram o menos tangível, embora idealizado, estilo de vida civilizado. O mecanismo é o mesmo, mas os símbolos de hoje são diferentes. (MITCHELL, 2010, p. 19). Os atravessamentos das filiações tribais e das filiações socioeconômicas no Cinturão de Cobre demarcam o lugar destes conflitos e trazem consigo toda a carga simbólica envolvida como um sistema de estratificação. As composições étnicas e econômicas criavam novas dinâmicas sociais, e, principalmente, rearticulavam novas formas de expressões tribais. Os sentimentos tribais encontravam novos sopros urbanos e ativavam diferentes respostas às configurações que se impunham. Contra o pressentimento que o tribalismo se aniquilaria, Mitchell demonstra que ele se rearranjou de forma a tomar novos caminhos significantes na vida urbana. A dança Kalela seria apenas uma das formas diferenciadas que o tribalismo assumira.

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Apesar do mesmo tribalismo ter perdido importância na forma de interação administrativa-industrial, ele ainda se preponderava na forma imediata das interações sociais do cotidiano, permitindo que novos processos culturais se distribuíssem, na medida em que novas organizações geográficas, econômicas e políticas se configuravam. Para o fim deste artigo, a informação mais valiosa levantada por Mitchell foi a de que as relações do tribalismo eram importantes nas próprias formas de relação entre africanos e que um todo novo sistema cultural se diferenciava quando o ente relacional das interações político-industrial entre negros eram os brancos. As instâncias políticas promovidas pelos próprios africanos procuravam reduzir o efeito tribal dentro das organizações de representação social congressista, por exemplo. Desta forma, apesar da estratificação política-industrial adquirir novo sentido urbano para além do caráter tribal, os encontros e desencontros relativos ao dia-a-dia, observadas no estudo de caso, encontravam novas formas de reorganizar as categorias tribais dentro das próprias práticas populares e também levavam em conta os sistemas de privilégios impostas pelos brancos. O autor demonstra diversas formas nas quais diferentes grupos étnicos foram obrigados a remanejar suas relações sociais, criando novas práticas culturais, como a própria zombateria, e como esses novos arranjos industriais vieram a criar diferentes interações e diferentes espaços nos quais o tribalismo se transformava. Desta forma, chamo atenção para o painel distributivo da cultura e principalmente, sua constitutividade relacional. Estas características parecem atualizar o debate feito por Sapir sobre a reflexividade entre indivíduo e cultura, mas, também, avançam no sentido de completar um contra-giro. Mitchell (2010, p. 52) conclui que: Procurei mostrar, neste ensaio, que uma das características da estrutura social da população africana no Cinturão de Cobre é que, exceto nestes grupos de dança, o tribalismo não constitui a base para a organização de grupos coorporativos. Ele continua sendo, essencialmente, uma categoria de interação no intercâmbio social casual. Da mesma maneira, o sistema de prestígio não concorre para a organização dos africanos em grupos corporativamente atuantes. Ele funciona, sim, como uma categoria de interação juntamente com o tribalismo na mediação social numa sociedade predominantemente mutável. Estes dois princípios de associação determinam o comportamento de estranhos um com o outro, principalmente em relações cotidianas. É impossível fazer generalizações sobre o funcionamento destes princípios sem referência à situação social específica na qual a interação ocorre. Desta forma, podemos compreender que para além de um ethos coordenador e regular, a cultura pode assumir diferentes processos e também assumir diferentes enfrentamentos. Os processos que surgem destas interações revelam os dilemas nos quais se inscrevem e se enfrentam tradição e industrialismo, hostilidade tribal e associação intergrupal. O contra-giroque chamo atenção é de que este caminho das mudanças culturais, como na Rodésia do Sul, pode

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denotar perda de autenticidade cultural, mas também podem demonstrar reinvenção cultural. Com isto, o critério desenhado por Sapir de práxis cultural pode ser dimensionado para além de um princípio de autosatisfatividade ou de domínio, como desenhara, mas pode ser visto como um processo de recriação de novas organizações culturais. Estar no mundo também pode ser entendida como uma categoria em trânsito. Sendo assim, o percurso entre ‘entender’ o mundo, no seu sentido gnosiológico, e ‘estar’ no mundo, como categoria de prática e domínio sobre o processo cultural, param de ser engessados – ou até mesmo antagônicos – para se reencontrarem como um completo giro da cultura como circuito. É justamente neste quadrante, que a política cultural deve ser duplamente comprometida: deve levar em consideração a preservação de diferentes práticas que ilustram diferentes conhecimentos sobre o mundo – e aqui entram as diversas práticas de preservação do patrimônio material e imaterial, e devem considerar a forma prática como os cursos culturais reconduzem novas relações de criatividade, de tensionamento e enfrentamento. Desta forma, a política cultural não se isola como apenas uma política ideológica ou memorial, e nem se reduz como árbitro em um grande jogo de representações simbólicas. É importante, portanto, ressaltar a noção de circuito cultural como um processo sobre o qual a própria política cultural interfere, na medida que objetifica nossos espaços, novos financiamentos e novos intercâmbios para o exercício das atividades culturais. Desta forma, dialogam não só com aspectos tradicionais, mas também com possíveis critérios de concorrência social, como o caráter de classe ou de gênero. Permite-se, desta forma, novos enfrentamentos surgirem em processos de industrialização da cultura, desenham novas representatividades, criam novas corporações. Conclui-se, por ora, então, que a política na área cultural deve compreender os circuitos culturais como experiências na esfera civil e que os sentimentos envolvidos importam para a compreensão do mundo e para a ação no mundo, e que quando ambos processos são desassociados, corre-se o risco extremo da mesma política encontrar o que há de pior no cuidado com as práticas culturais. O giro do circuito deve ser completo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. DIAS, Caio Gonçalves A cultura como conceito operativo: Antropologia, Gestão Cultural e algumas implicações políticas desta última. Revista Latino Americana de Estudos em Cultura, Niterói, ano 1, n. 1, p. 18-34, jul. 2011. MITCHELL, Clyde. A Dança Kalela: aspectos das relações sociais entre africanos urbanizados na Rodésia do Norte. In: Feldman-Bianco (org). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: UNESP, 2010. p. 365-436. SAPIR, Edward. Cultura autêntica e cultura espúria. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, p. 35-60, 2012.

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MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: A TRAJETÓRIA DO CENTRO DE REFERÊNCIA AUDIOVISUAL DE BELO HORIZONTE Marcelo Braga de Freitas1 RESUMO: Este artigo, ao abordar específica e resumidamente a trajetória do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte (CRAV), pretende colaborar, com as observações contidas nele, para o entendimento de características comuns, que podem ser encontradas na construção e na implantação de instituições e políticas públicas congêneres do campo cultural no país, em suas diferentes instâncias: municipal, estadual e federal. PALAVRAS-CHAVE: CRAV BH, MIS BH, acervos audiovisuais, instituições e políticas públicas culturais, memória e identidades culturais.

1. PRÓLOGO Este artigo é um desdobramento da minha dissertação de mestrado, apresentada em 2015, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC MG, intitulada O passado tinha um futuro: a trajetória do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte, 1992-2014, com orientação da Profª Dra Candice Vidal e Souza. O objeto de estudo foi a construção e a trajetória institucional do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte (CRAV). Um equipamento criado originalmente com a finalidade de promover um processo democrático de atualização e de reconhecimento das memórias coletivas e identidades culturais contemporâneas da população da cidade, em suportes técnicos audiovisuais, fundado como o embrião da Fundação Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte. Instituição pública do campo da cultura, que possui uma temporalidade, que possibilita a configuração de sentidos, de significados e de (re) significados, a partir dos relacionamentos que foram e continuam sendo estabelecidos entre os sujeitos e grupos sociais envolvidos com a sua história e da pluralidade das manifestações culturais vigentes na Belo Horizonte contemporânea. Conhecer esse processo de construção institucional de uma política pública do campo cultural, numa sociedade democrática, para interpretar possíveis sentidos, significados e relações sociais foi também o que motivou este estudo. Contudo, é importante afirmar que esta dissertação Mestre em Ciências Sociais. Email: [email protected]

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propôs pensar a instituição com a intenção de elaborar uma interpretação crítica sobre os fatos estudados que envolveram a sua trajetória específica e não teve a pretensão de ser um relato histórico conclusivo sobre o seu desempenho e sua existência. Nessa perspectiva, apesar deste artigo abordar especifica e resumidamente a trajetória do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte (CRAV), acredito que as observações nele contidas talvez possam contribuir para o entendimento de características comuns encontradas na construção e implantação de instituições e políticas públicas congêneres para o campo da cultura no país, em suas diferentes instâncias: municipal, estadual e federal. 2. INTRODUÇÃO De acordo com José Reginaldo Gonçalves, os museus foram e continuam sendo construídos no país, “[...] como instituições, como um sistema de relações sociais e um conjunto de ideias e valores, que fazem parte do cotidiano das modernas sociedades complexas e, particularmente, das grandes cidades” (GONÇALVES, 2003, p.171). Um conjunto híbrido onde, às vezes, memória coletiva e memória nacional podem se confundir. Para Renato Ortiz (ORTIZ, 1985, p.135), enquanto “[...] a memória coletiva se aproxima do mito e é da ordem da vivência de um grupo social restrito [...], a memória nacional é da ordem da ideologia, o produto de uma história social, que transcende os sujeitos e se define como um universal que se impõe a todos os grupos.” Também é nesse contexto ambíguo e ambivalente de construção de memórias e identidades culturais que instituições como os Museus da Imagem e do Som e o CRAV se inserem. O primeiro Museu da Imagem e do Som (MIS), implantado no Brasil foi o museu do Rio de Janeiro, que com o seu pioneirismo contribuiu para a formatação dos outros museus brasileiros do mesmo gênero. Inaugurado em 3 de setembro de 1965, dentro da programação das comemorações do IV Centenário da cidade, foi idealizado simultaneamente à criação do Estado da Guanabara. Segundo Claudia Mesquita, esse equipamento foi matriz e fundou um tipo de museu no país, que se disseminou por várias outras cidades, dedicado ao desenvolvimento de estratégias de formação e de preservação da memória coletiva e na construção de identidades culturais locais em suportes visuais e sonoros, e na respectiva guarda desses acervos gerados, consagrados a narrativas regionais (MESQUITA, 2003). Para a autora, a criação do MIS Rio de Janeiro foi um fato histórico singular, resultado da necessidade de reafirmação de um tipo de valor regional específico, em virtude da transferência da capital nacional do Rio para Brasília (MESQUITA, 2009). O MIS RJ, “[...] o primeiro museu audiovisual brasileiro e centro de referência e documentação sobre memória da cidade” (MESQUITA, 2009, p.152), possui hoje um grande e diversificado arquivo, aberto à consulta pública. O seu acervo contempla, principalmente, os campos da música, do rádio, do cinema, da televisão e da fotografia. O programa Depoimentos para a

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posteridade, iniciado em 1966, tem mais de 900 depoimentos das várias áreas da cultura. Uma nova sede com 9.800 m2 está sendo construída em Copacabana, na avenida Atlântica. Primeiro MIS implantado após a experiência carioca, o MIS SP foi oficialmente criado em 29 de maio de 1970, vinculado à Secretaria de Estado de Cultura, com o objetivo de produzir e preservar imagens e sons referentes à cultura do estado de São Paulo. Cinco anos após, com a reabertura do museu em sua sede própria, em 27 de fevereiro de 1975, quando abriu as portas para o público, o MIS SP assumiu uma outra dimensão, também pretendida desde a sua concepção. Com o objetivo de ser um museu moderno, capaz de dialogar com o grande público, desenvolveu ações educativas e de difusão cultural, tendo como suporte objetos e tecnologias audiovisuais, naquela época, ainda não acolhidas no universo tradicional dos museus. Ao longo de sua trajetória o MIS SP ampliou as linhas de sua atuação e procurou desenvolver projetos e programas sintonizados com as tendências do tempo presente, tendo como desafio, no âmbito de uma sociedade tecnológica, articular memória e contemporaneidade, manter aceso o interesse do público pelo seu acervo e programação (GONÇALVES, 2007b), promover o intercâmbio de experiências culturais amplas (regionais, nacionais e internacionais) no estado e, ao mesmo tempo, empreender as ações relativas à produção da memória e preservação do patrimônio audiovisual paulista. Essas duas experiências, a do MIS Rio e a do MIS SP conciliadas, parecem dar formatação aos outros museus brasileiros afins, como o Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte (CRAV). O CRAV foi oficialmente inaugurado em 16 de novembro de 1995, durante a administração do Prefeito Patrus Ananias2, do PT, na gestão da Secretária Municipal de Cultura Maria Antonieta Cunha. Contudo, um equipamento cultural complexo como esse teve uma gestação que começou bem antes da sua inauguração. O seu processo de criação específico teve início em 1992, durante a administração da primeira Secretária Municipal de Cultura de Belo Horizonte, Berenice Regnier Menegale, que abrangeu o período de 1989 a 1992, quando a Secretaria Municipal de Cultura foi criada na administração mista dos prefeitos Pimenta da Veiga3 e Eduardo Azeredo4, ambos do PSDB. Até 1989, cultura e turismo dividiam a mesma pasta na administração pública da cidade.

Patrus Ananias é membro do Partido dos Trabalhadores (PT). Foi vereador em Belo Horizonte de 1989 a 1992 e prefeito da cidade de 1993 a 1996. Disponível em: < http://patrusananias.com.br/blog/proposta-editorial/ >. Acesso em: 20 out. 2015. 3 Pimenta da Veiga membro do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), foi eleito prefeito de Belo Horizonte em 1988, mas saiu da função em 1990 para se candidatar ao governo do estado de Minas Gerais. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Pimenta_da_Veiga >. Acesso em: 20 out. 2015. 4 Eduardo Azeredo, membro do PSDB, foi eleito vice-prefeito de Belo Horizonte em 1988. Assumiu a função em 1990, quando Pimenta da Veiga renunciou para disputar o governo de Minas. Disponível em: < https://pt.wikipedia. org/wiki/Eduardo_Azeredo >. Acesso em: 20 out. 2015. 2

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Aqui cabe dizer que a cidade de Belo Horizonte desde a sua construção, no final do século XIX, possui registros fotográficos. Boa parte deles foi realizada por iniciativa da Comissão Construtora da Nova Capital, (CCNP), por meio do seu Gabinete Fotográfico. O objetivo era registrar o processo de construção da nova capital para dar publicidade das obras e da transformação urbana “[...] que a cidade moderna, tal como pensada pelo Estado, desejada por suas elites intelectuais, políticas e econômicas”, promovia. (ARRUDA, 2013, p. 228). Parte desse acervo fotográfico pode ser consultada no Museu Histórico Abílio Barreto, (MHAB) e no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH). Para Rogério Arruda, esse conjunto de fotos que mostram o antes e o depois, no processo de transformação do Arraial do Curral Del Rei na nova capital mineira, inicia também um processo de construção específico de memória local como descrito a seguir: As imagens, tal como atualmente nos chegaram, lograram estabelecer uma relação entre tradição e modernidade, entre antigo e moderno, entre passado e presente. Todavia, [...] o moderno e o presente não conseguiram anular o seu contrário. Por outro lado, o modelo de modernização conservadora conseguiu impor alguns de seus fundamentos: escolhas e decisões restritas a uma elite, benefícios distribuídos desigualmente; sacrifício de legados arquitetônicos, de memórias, e de comunidades justificáveis em nome do desenvolvimento e do progresso. (ARRUDA, 2013, p. 229-230). No século XX, os registros fotográficos, cinematográficos e, mais tarde, videográficos sobre a cidade de Belo Horizonte continuaram a ser feitos, a meu ver, em grande parte subordinados à perspectiva desse modelo de modernização conservadora, citado acima por Arruda (2013), à medida que os registros eram, em sua maioria, patrocinados pela elite local e, consequentemente, objetivavam a difusão dos seus valores e ordenamentos sociais. Parte desse arquivo histórico sobrevivente está representado no atual acervo do CRAV, hoje, MIS BH. 3. A TRAJETÓRIA DO CRAV: BREVE EXPOSIÇÃO Ao assumir a função de Secretária Municipal de Cultura, em 1989, Berenice Menegale disse ter identificado um déficit de ações e instituições do poder público relacionadas à área da cultura, e ao trabalho de preservação do patrimônio cultural e histórico da cidade que, apesar do seu pouco tempo de vida, já havia passado e passava por transformações significativas do seu espaço físico e das suas manifestações artísticas e culturais, não refletidas publicamente ou devidamente registradas. Paralelamente a essa constatação, teve o conhecimento da existência de instrumentos legais que autorizavam o poder público municipal a instalar alguns equipamentos dedicados à preservação da memória e das identidades socioculturais locais, que vivia um processo de esvaziamento (informação verbal. Entrevista concedida ao autor em 17 out. 2014).

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Foi nesse contexto local sociopolítico e cultural, de escassez de recursos e de políticas públicas destinadas para à preservação do seu patrimônio cultural e atualização da memória coletiva da cidade, que o CRAV foi idealizado. Todo o conjunto de políticas públicas para a área de preservação da memória da cidade implantadas nesse período, do qual fez parte o CRAV, segundo Berenice Menegale, tinha como objetivo iniciar um processo de transformação do estado de abandono constatado em que se encontrava o campo cultural de Belo Horizonte. 4. RUMOS E ABORDAGENS A trajetória do CRAV pode ser compreendida como um processo de resistência contra o esquecimento do passado, mas também e, sobretudo, contra o esquecimento das memórias coletivas e identidades culturais formuladas no presente. Criado com a intenção de formar um acervo contemporâneo significativo referente à diversidade cultural do município, em suportes tecnológicos audiovisuais, teve como inspiração inicial o MIS SP, do qual se distanciou com o passar dos anos, assemelhando-se gradualmente da configuração de instituições tradicionais de guarda e conservação de documentos históricos. Durante a sua trajetória, mais especificamente, entre os anos de 1992 a 2014, pude identificar três matrizes de pensamentos diferentes. A primeira, que pode ser representada pelo Projeto de implantação do Centro de Referências Audiovisuais da Região Metropolitana de Belo Horizonte (BARROS; et al., 1992), teve como objetivo apresentar um repertório de argumentos conceituais e operacionais que fossem capazes de justificar a instalação e orientar os trabalhos do CRAV. Essa primeira matriz de pensamento pretendia iniciar um processo de reconhecimento e atualização das manifestações culturais plurais produzidas na cidade no tempo presente, em suportes tecnológicos audiovisuais. Também teve a intenção de formular visões no presente sobre fatos culturais históricos do passado de Belo Horizonte. Dessa forma, os responsáveis pelo CRAV nesse período, 1992-1997, acreditavam que poderiam constituir um acervo futuro em que o processo recente de produção cultural da cidade pudesse estar continuamente contemplado. Uma instituição que desejava produzir parte do seu acervo. Experiência que estava em curso em outras cidades brasileiras com a implantação dos museus da imagem e do som brasileiros, principalmente nos museus do Rio de Janeiro e São Paulo. Outra característica dessa produção era que os novos registros levassem em consideração expressões significativas de todos os segmentos sociais que formavam a cultura local. Introduziu teoricamente o conceito de cidadania cultural como um direito da população para constituir as suas memórias coletivas e identidades culturais, afastando-se dos métodos oficiais de consolidação de fatos históricos que privilegiavam as narrativas das elites política, econômica e intelectual da cidade, desde a sua construção.

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Contudo, na prática, poucos registros referentes às classes populares foram realizados. Dois fatores que podem contribuir para o entendimento dos motivos dessa relativa fratura entre o conceito formulado e o exercício praticado pela instituição, além da permanente precariedade de recursos, podem estar relacionados ao fato de ter havido uma participação pequena ou quase nula de representantes dos segmentos populares na idealização e na realização dos trabalhos do CRAV e no curto tempo que essa proposta sobreviveu orientando as ações da instituição. Essa observação me parece pertinente ser destacada nesse contexto, porque foi somente nele discutida. A necessidade de tratar os temas relativos ao processo de construção cultural da população de Belo Horizonte de forma socialmente ampla está relacionada a esse momento da trajetória do CRAV. A defesa conceitual desse pensamento perde força com o passar dos anos e não se consolida, apesar da importante produção realizada pelo órgão até 1997. No momento inaugural do CRAV, fazia parte do seu planejamento a perspectiva de se transformar, o mais rapidamente possível, na Fundação Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte, autorizada pela Lei Municipal Nº 5.553, de 08 de março de 1989. Dimensão esta regularizada somente no ano de 2014. Contudo, ao analisar alguns discursos dos sujeitos envolvidos no processo de formatação do CRAV percebemos uma afinidade de pensamentos que talvez nos permita afirmar que a estratégia proposta ao CRAV, naquele momento, foi que ele fosse um lugar ambivalente, de guarda e de construção de representações simbólicas que, formuladas no presente, pretendiam recuperar e exercitar o olhar crítico formulando versões distintas da história oficial sobre os fatos culturais vividos, inclusive sobre os fatos compartilhados no tempo presente por grupos sociais heterogêneos. O segundo pensamento predominante na trajetória do CRAV pode ser sintetizado pelo que nomeei de o sonho de uma moderna cinemateca. Abrange o período de 2001 a 2009 e dá ênfase à constituição de um acervo cinematográfico sobre a história da cidade e do cinema mineiro que, muitas vezes, apresentava risco de deterioração. Paralelamente formou conhecimento e implementou ações necessárias para o trabalho de guarda e conservação de arquivos audiovisuais em diferentes suportes. Reuniu um acervo audiovisual significativo, estabeleceu relações com instituições afins nacionais e estrangeiras, e desenvolveu ações de fomento e apoio à produção local de projetos de filmes, festivais, mostras, oficinas e seminários. O CRAV, nesse momento, pretendia ser protagonista no desenvolvimento de políticas públicas para o setor audiovisual no município. Entretanto, a partir de 2009, o seu projeto foi interrompido de forma brusca motivado por disputas políticas. O terceiro pensamento dominante identificado no processo de construção do CRAV perpassa a sua trajetória desde 1993 até 2014, quando ele se transforma no Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte. Pode ser representado pelo conjunto de argumentos defendidos

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por membros de outras unidades da área cultural da prefeitura. Em síntese, esse pensamento questionava a validade da criação de um novo museu público na cidade sem antes consolidar o papel organicamente constituído do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB), como o museu responsável pelas manifestações históricas e culturais de Belo Horizonte, em função de dois fatores principais: a escassez crônica de recursos destinados à área de cultura pela administração municipal e a necessidade, vista como prioritária por esse grupo, de articular políticas públicas integradas para todas as unidades de memória e patrimônio da cidade. Essa terceira matriz de pensamento teve grande impacto na trajetória do CRAV entre 2009 e 2011, ao inspirar a reforma do estatuto da Fundação Municipal de Cultura que modificou as suas atribuições, vinculando-o à Diretoria de Políticas Museológicas até 2014, quando foi regulamentado como o Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte. Interessante reexaminar duas perspectivas que impactaram a trajetória do CRAV. A primeira é a percepção da ausência de equipamentos e políticas públicas para a área da memória e da preservação do patrimônio cultural da cidade, constatado por Berenice Menegale e equipe, ao assumir a Secretaria Municipal de Cultura em 1989, o que orientou várias ações durante a sua gestão, inclusive a idealização do CRAV, com o objetivo geral de iniciar um processo de transformação do estado de abandono em que se encontrava a área de preservação da memória e do patrimônio cultural de Belo Horizonte. O segundo aspecto é o debate que se instala entre as unidades de memória e patrimônio da secretaria, a partir de 1993, na gestão de Maria Antonieta Cunha, em torno do caráter das políticas públicas para o setor, em função da limitação de recursos, o que parece promover um ambiente de disputa por recursos financeiros entre as unidades de cultura da administração direta do executivo mais intensa do que o debate conceitual sobre a memória da cidade e suas perspectivas. Se a princípio essas duas visões parecem díspares, ao meu ver, podemos dizer que elas são, também, complementares. A dinâmica cultural parece exigir dos gestores públicos o compromisso com uma atitude permanente de aperfeiçoamento, readequação e atualização das orientações e políticas propostas ao longo do processo de construção das instituições e suas políticas, independentemente de possíveis disputas, mesmo que legítimas, sejam elas motivadas por qualquer orientação, com o objetivo de contribuir para que as instituições públicas possam cumprir o seu papel social profícuo. Esse parece ser um cenário típico ideal, difícil de ser encontrado. No entanto, sobre o aspecto da função das instituições em sistemas democráticos, gostaria de resgatar perspectivas do pensamento de alguns autores a respeito do tema. J. Feres Júnior e José Eisenberg, em estudo sobre a importância da confiança em instituições para a construção de teorias sobre sociedades democráticas contemporâneas, definem o modelo de democracia que a eles interessa desenvolver, como aquele onde as instituições “devem servir como espaços de discussão, deliberação e/ou adjudicação de três tipos de demandas sociais: reconhecimento,

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redistribuição e revisão das regras das próprias instituições”. (JÚNIOR e EISENBERG, 2006, p. 473). A adoção dessa perspectiva conceitual pelos responsáveis pelos órgãos oficiais do setor cultural, acredito que poderia colaborar para elevar o grau de confiança da população e dos agentes culturais nas instituições, ampliando a participação cívica no processo de construção de políticas públicas destinadas ao campo da cultura num sistema democrático, aproximando os discursos das práticas, permitindo a vivência de experiências sociais que podem, decorrentes desse tipo de relacionamento, alterar procedimentos tradicionais da administração pública, muitas vezes, baseados numa hierarquia predominantemente verticalizada e herdados, contraditoriamente, de modelos políticos autoritários. Para Robert D. Putnam, existe, entre aqueles que trabalham com instituições, a concordância de que elas moldam a política e são moldadas pela história. 1. As instituições moldam a política. As normas e os procedimentos operacionais típicos que compõem as instituições deixam sua marca nos resultados políticos na medida em que estruturam o comportamento político. [...] As instituições influenciam os resultados porque moldam a identidade, o poder e a estratégia dos atores. 2. As instituições são moldadas pela história. [...] A história é importante porque segue uma trajetória: o que ocorre antes [...] condiciona o que ocorre depois [...] Os indivíduos e suas escolhas por sua vez influenciam as regras dentro das quais seus sucessores fazem suas escolhas. (PUTNAM, 1996, p.23). Para Jessé Souza, “as instituições são os grandes elementos para melhoria da vida de homens e mulheres comuns, [mas] normalmente prometem uma coisa e frequentemente entregam outra” (PAULA, 2015, p. 15). Transformar os seus procedimentos operacionais parece ser essencial para torná-las efetivamente instituições democráticas e republicanas. Ainda, para Souza, é preciso conferir à instituição pública uma inteligência que a faça capaz de se articular com as necessidades das pessoas (PAULA, 2015, p. 15). Mesmo que o debate público sobre a criação do CRAV tenha ocorrido somente entre segmentos da elite cultural e política da cidade, parece fundamental, para que a instituição tivesse o seu trabalho reconhecido por uma parcela maior da população da cidade, que por meio dos seus agentes, ela pudesse atuar com a perspectiva do reconhecimento da alteridade e pluralidade das manifestações e trocas culturais existentes entre os diversos grupos sociais da cidade, funcionando como uma “[...] autêntica polifonia de vozes plenivalentes e equipolentes” (BAKTHIN, 1997, p. 4). No entanto, isso parece não ter acontecido. A prevalência de uma lógica simbólica condensada pelo projeto de implantação do CRAV, sobre uma lógica técnica, que fosse capaz de realizar as suas premissas norteadoras, e as disputas por recursos e supremacia de pensamentos

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existentes entre os representantes das unidades de cultura do campo da memória e da preservação sobre o caráter e identidade do CRAV, possivelmente contribuíram, no âmbito da administração direta do executivo, para que a instituição fosse autorizada a falar, mas não a agir, a fazer, conforme o seu ideário, ao não ser dotada dos recursos necessários para o cumprimento do seu plano de trabalho. Outro fator importante a ser observado, que continuou exercendo impacto sobre a trajetória do CRAV, como um freio à sua construção, foi a permanência velada de um tipo de desprestígio da instituição junto à administração pública, que negligenciou os compromissos assumidos pela instituição que criou ao não promover a sua regulamentação oficial. Também é fundamental ressaltar a escassez crônica de recursos a que o órgão esteve exposto desde a sua fundação. Outra dificuldade que me parece importante ressaltar é a relação imprecisa que as sucessivas administrações do executivo municipal, independentemente de premissas partidárias, estabeleceram com o CRAV ao longo da sua trajetória, além de interferências de cunho político-eleitoral. Estas são características perversas a que estão sujeitas todas as áreas da administração pública e que, para superá-las, os responsáveis pelas instituições precisam buscar meios. Contudo, as três vertentes de pensamentos dominantes sobrepostas, ao meu ver, imprimiram à trajetória do CRAV a característica de efemeridade e criaram a memória de um processo transitório em permanente construção. Durante esses anos nenhuma delas conseguiu se consolidar por completo. No entanto, as três propostas deixaram as suas marcas que permanecem e podem ser entendidas como um legado da história da instituição que permite potencializar alternativas futuras para o desenvolvimento do atual MIS BH. Essa característica efêmera, transitória e temporal, que permanece no decurso da trajetória do CRAV, pode ser percebida desde o seu nascimento quando foi criado como um equipamento provisório e assim permaneceu até 2014, quando esteve resignado como uma unidade de memória do município subordinado às diretrizes da Diretoria de Políticas Museológicas. Cada etapa desse processo representada por uma matriz de pensamento prevaleceu isoladamente como uma espécie de mandato. As sobreposições de ideias provocavam um abandono regular de parte do ideário recente proposto e vivenciado pela instituição de forma incipiente, o que não permitiu a consolidação de nenhum formato até 2014. Os sucessivos pensamentos hegemônicos trabalhados de maneira independente, sem articulação com as outras matrizes de pensamentos, provocaram um esquecimento de fragmentos da trajetória do CRAV. Contudo, é na recuperação da memória da instituição, procurando articular de forma solidária as três matrizes de pensamentos identificadas na trajetória do CRAV, que acredito ser possível também encontrar perspectivas criativas para o desenvolvimento futuro do recém-regulamentado Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte.

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No vídeo Cúmulos, cirros e nimbus5, um dos primeiros registros realizados pelo CRAV, o professor e doutor em História Econômica, da UFMG, João Antonio de Paula, afirma em seu depoimento o caráter de exclusão das classes populares no processo de formação sociocultural de Belo Horizonte: Belo Horizonte é uma cidade marcada pela mensagem, pela expressão republicana e também pela vitória de uma certa perspectiva modernizante, que se expressa no traçado geométrico da cidade, na ideia onde os espaços são cuidadosamente planejados [...] e onde há também uma presença muito forte de uma ideologia excludente onde a população pobre, os que construíram a cidade, em princípio, não teriam vez na cidade. (CÚMULOS..., 1995). A presença dessa ideologia excludente, à qual se refere João Antonio de Paula, é um dos aspectos que pode ser observado no acervo histórico e recente constituído de forma contingencial pelo CRAV ao longo da sua trajetória. Ao meu ver, é um dos principais problemas herdados pelo atual Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte que poderia tentar ser redimensionado pela instituição. O CRAV, atual MIS BH, não herdou somente um conjunto de objetos audiovisuais históricos sobre a cultura do município. Herdou também os conteúdos que estes arquivos expressam, os seus significados, as suas abordagens, os seus discursos e suas funções. Sem um olhar crítico sobre esse acervo por parte da instituição, os seus herdeiros institucionais arriscam-se a difundir e consagrar, a reconhecer como legítimos e naturais valores e ordenamentos sociais nele contidos, trazidos pelas representações audiovisuais da história oficial da cidade, tendendo a desconhecer os seus limites arbitrários (BOURDIEU, 1996a, p.98), tanto do passado quanto do presente. Assim, será possível conhecer os sujeitos, valores e as representações simbólicas que ele carrega, de acordo com princípios democratizantes, que devem orientar as ações das instituições públicas em sociedades democráticas. Talvez essa atitude normativa marcante na trajetória do CRAV e que tem como uma de suas consequências a não promoção de uma produção própria que torne mais equilibradas socialmente as representações audiovisuais do seu acervo possa ser entendida como expressão, involuntária ou não, de uma cultura tradicional arraigada, resultante do processo de modernização conservador, de um modelo de sociedade idealizado pelas elites locais desde a construção da nova capital no final do século XIX (ARRUDA, 2013) e que ainda hoje persiste em reproduzir valores sociais semelhantes àqueles do seu passado histórico, reconhecendo, prioritariamente, como memória coletiva e identidades locais legítimas da população da cidade as representações formuladas pelas classes dominantes em detrimento da valorização das manifestações culturais das classes populares. Disponível no acervo do MIS BH, 2015.

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Para o MIS BH, o repertório de ideias e de ações gerados na trajetória do CRAV, pode credenciá-lo como um lugar propulsor de identidades numa sociedade contemporânea, onde a dinâmica de construção-destruição de memórias coletivas e identidades culturais possa contemplar a experiência de vida dos diversos grupos sociais que formam a população de Belo Horizonte, independente de convenções sociais conservadoras, dogmatismos e pensamentos hegemônicos temporariamente. Nenhuma tecnologia, por si só, pode realizar essa utopia, apesar do atual favorecimento das tecnologias audiovisuais e dos dispositivos digitais para mediá-la. Seria necessário reconhecer, antes de tudo, que o recorte proposto por grupos, sejam quais forem, se não levadas em consideração as múltiplas expressões e necessidades dos segmentos sociais que compõem a população da cidade, é uma questão arbitrária em sociedades democráticas. Enquanto isso não puder acontecer, penso que estaremos patinando na construção de museus e políticas públicas para o campo da cultura, por omissão, repetição ou qualquer outra motivação, por mais bem intencionados que ainda possam ser aqueles que participam da elaboração dos ritos vigentes das instituições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Rogério Pereira de. Cidades-capitais imaginadas pela fotografia: La Plata (Argentina), Belo Horizonte (Brasil), 1880-1897. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 157-230. BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BARROS, José Márcio P. R.; et al. Projeto de implantação do Centro de Referências Audiovisuais da Região Metropolitana de Minas Gerais. Trabalho elaborado para a Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte em 1992. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Lei municipal nº 5.553, de 08 de março de 1989. Autoriza o Poder Executivo Municipal a instituir a fundação “Museu da Imagem e do Som” de Belo Horizonte. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Lei municipal nº 9.011, de 1º de janeiro de 2005. Dispõe sobre a estrutura organizacional da Administração Direta do Poder Executivo e dá outras providências. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal.. Decreto 14.371, de 13 de abril de 2011. Aprova o Estatuto da Fundação Municipal de Cultura e dá outras providências. Diário Oficial do Munícipio, Belo Horizonte, 13 abr. 2011. BOURDIEU, Pierre. Ritos de instituição. In: Bourdieu, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 1996b, p. 97-106. CÚMULOS, cirros e nimbus. Direção Marcus Nascimento e Francisco de Paula. Produção: Emvideo. Roteiro: Marcus Nascimento e Francisco de Paula. Belo Horizonte: Crav, 1995. 1 fita de vídeo (38 min), VHS, son., color.

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DO LAZER À CULTURA: AS BASES PARA A POLÍTICA DE CINEMA DO SESC NO BRASIL Marcelo Costa Lopes1 RESUMO: A política de cinema do Serviço Social do Comércio (SESC) é resultado de um amadurecimento de suas práticas e reflexões sistemáticas nas dimensões do lazer e da cultura no Brasil. Buscando entender a extensão desse projeto e seu papel na difusão, formação e circulação de filmes fora do grande circuito comercial, este artigo propõe analisar o processo que tornou possível, a partir de dinâmicas de interdependências sociais, estruturadas em ambiências de sociabilidade e processos formativos mais amplos, as referências de continuidade do trabalho com o cinema. PALAVRAS-CHAVE: Cinema, Lazer, Cultura, Política Cultural, SESC.

1. INTRODUÇÃO O Serviço Social do Comércio (SESC) é uma instituição mantida pelos empresários do comércio de bens, serviços e turismo em todo o Brasil, voltada para o bem-estar social dos comerciários e seus dependentes. Enquadrado como uma entidade paraestatal2, a entidade articula na sua base constitutiva estruturas que garantem uma vasta cadeia de mobilização de ações ao longo do território brasileiro, organizada em cinco grandes programas, articulados em atividades e modalidades: Educação, Saúde, Lazer, Cultura e Assistência (SESC, 2010; 2014). Uma das ações mais destacadas, sua política cinematográfica, ancorada no Programa de Cultura, é reconhecida nacionalmente pelas contribuições para o segmento dos circuitos de cinema de arte no país. Composto por um mercado de nicho, os circuitos que abrigam estes chamados filmes de arte são responsáveis pela circulação de grande parte da diversidade de linguagens, estéticas, nacionalidades, formatos e narrativas cinematográficas disponíveis. Embora não Mestre em Memória: linguagem e Educação; Professor substituto do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Email: [email protected] 2 O SESC integra os chamados Serviços Sociais Autônomos, ou Sistema S, conjunto de instituições criadas e mantidas pelas contribuições de interesse de categorias profissionais, estabelecido pela Constituição brasileira. Tais entidades, criadas por lei, de regime jurídico de direito privado, sem fins lucrativos, foram instituídas para ministrar assistência ou ensino a determinadas categorias sociais. Elas não integram a Administração Pública Direta ou Indireta, contudo, administram, sob fiscalização da União, recursos públicos, especificamente as contribuições parafiscais. 1

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operem em oposição ao grande mercado, estes espaços guardam particularidades que os perfilam, grosso modo, entre as atividades consideradas como mais “culturais” que “comerciais”. Eles contribuem também para difusão de muitos filmes de curta e média-metragens que dispõem de pouca ou nenhuma oportunidade como produtos de trânsito mercantil. É neste universo de difusão alternativa que o SESC pauta suas programações de cinema, contribuindo tanto como exibidor quanto educador/formador de plateias, promovendo mostras, festivais, cursos, debates, oficinas, publicações, eventos, entre outras realizações. As discussões deste artigo propõem uma análise sócio-histórica sobre o processo de construção desta política, a partir de recortes da dissertação Memória social e políticas culturais nas ações de cinema do SESC, desenvolvida durante o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e defendida em fevereiro de 2015. O estudo, ancorado na linha de pesquisa Memória, Cultura e Educação, direcionado ao projeto temático Memória, cinema e processos de formação cultural, toma como eixo as ações de educação cinematográficas do SESC para a difusão de filmes “não-comerciais” a partir das reflexões aprofundadas na instituição sobre os temas do lazer e da cultura como tônicas conceituais para a entidade em suas ações pelo Brasil. Trata de um percurso institucional que possibilitou, sobretudo a partir dos anos 1980, com a passagem da atuação prioritária do lazer para a cultura, o desenvolvimento de uma política articulada para a promoção de práticas formativas estruturadas numa curadoria particularmente composta por filmes de arte, voltada, prioritariamente, para um extenso público de comerciários, familiares e comunidades ligadas a estes. 2. AS DIMENSÕES DA POLÍTICA DE CINEMA DO SESC Nos termos da sua política cultural, o cinema é formalmente tratado como uma modalidade estruturada nas atividades do seu Programa de Cultura3, vinculada a uma rede de atendimentos e espaços de formação, de característica educativa e de acessibilidade. Voltada primordialmente para o atendimento aos trabalhadores do comércio – mas não restrito a estes – essa política institucional foi articulada em torno de um trabalho de formação cujo objetivo é criar competências específicas para o consumo cinematográfico num público extenso e diversificado, classificado como de “baixa renda”. Estimulado a apreciar e usufruir o chamado filme “qualificado”, ou “de arte”, este público passa a ter acesso a um cinema enquadrado textualmente pela entidade como “um privilégio das camadas sociais de maior renda” onde a classe popular é “privada de desfrutar a sétima arte” (SESC, 2007, p. 9).

Fazem parte do Programa de Cultura as áreas de Artes Plásticas, Biblioteca, Cinema, Literatura, Artes Cênicas e Música.

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Pode-se considerar4, resumidamente, que a política de cinema do SESC é o conjunto das ações institucionais articuladas e gerenciadas, em primeiro plano, pelo seu Departamento Nacional, seguida pelas iniciativas realizadas pelos seus Departamentos Regionais, visando à formação de públicos para um cinema diverso nos processos de mediação cultural em espaços de lazer e tempo livre. Seu modelo operacional, sob esses preceitos, é constituído em torno de três eixos fundamentais, cujos objetivos visam atender: 1) ao extenso contingente de comerciários, seus dependentes e também a comunidades ligadas direta e/ou indiretamente a estes; 2) à proposta fundamental de manter-se como um lugar de formação qualitativa para o cinema de arte, primando pelo desenvolvimento artístico cultural dos espectadores e; 3) estabelecer espaços e ambiências adequadas para a fruição e reflexão para e sobre a sétima arte, tanto por meio de ações realizadas diretamente pela instituição, quanto pelo estabelecimento de parcerias. Tais diretrizes se situam, assim, em torno das ideias da cultura como direito - seja ela material ou imaterial -, da facilitação do acesso a bens culturais diversificados, e da educação, tomada nas relações e práticas sociais, realizada de forma contínua e regular. Tais conceitos visam, em última instância, possibilitar o desenvolvimento das sensibilidades de seu público (SESC, 2007; 2008; 2009; 2011; 2012). Nas décadas de trabalho com o cinema – e da articulação mobilizada ao longo de Departamentos Regionais e centenas de centros e unidades operacionais - uma série de modos organizativos, normatizações, sistematizações, assessorias técnicas, e estruturas disponíveis garantiram a regularidade, a capilaridade geográfica e funcional dessas ações formativas para o cinema. A pergunta que norteia este artigo perpassa, deste modo, pela indagação sobre como uma instituição fundamentalmente ligada ao comércio constrói toda esta cadeia de mobilização para a estruturação de um política de formação de público para um nicho de consumo tão pouco comercial. Na pesquisa desenvolvida sobre a memória da política de cinema do SESC (LOPES, 2015), alguns pontos apontam para compreender o processo de constituição desta política cultural em particular. A primeira delas somente pode ser pensada a partir do entendimento desta ação como a de uma entidade de interesse social, pela explicitação do eixo do seu desenvolvimento nos meandros da dinâmica do mercado exibidor do país. De natureza paraestatal, o SESC administra, a partir da sua principal organização representativa econômica - a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) -, receitas arrecadadas pelas contribuições públicas (do seu segmento trabalhista) para aplicação em estruturas e ações de retorno social nos Embora haja documentos operacionais de referência, não há um projeto sucinto/descritivo do que venha a ser esta política na instituição. Para os objetivos da pesquisa, foi utilizada uma série de documentos norteadores, dentre eles, os Modelos de Atividade Cinema (módulos de Programação e Instalação de Salas de Exibição) e diversos relatórios de gestão, para a apreensão resumida dos principais critérios aos quais a política de cinema do SESC deve atender. Esses critérios, dispersos nos documentos, são recorrentes e aparecem ao longo dos métodos de trabalho, na descrição e nas finalidades das atividades.

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seus diversos programas e atividades fins. Isto significa que toda a gestão da política de formação cinematográfica da instituição, dedicada quase que exclusivamente à atuação nos circuitos paralelos de exibição, somente é possível, com considerável regularidade e continuidade, graças à natureza híbrida da entidade, localizada a meio termo dos interesses de uma organização privada e pública. É o que permite, por exemplo, que suas atividades possam concentrar-se no estímulo à formação de públicos nos estratos mais populares da realidade brasileira, sem grandes conflitos com a lógica comercial do entretenimento imediato de grandes plateias. Seu papel, tal como deva (ou deveria) ser a conduta do Estado, em muitos aspectos, não é o de produzir a cultura, mas formular políticas públicas “que a tornem acessível, divulgando-a, fomentando-a, como também políticas de cultura que possam prover meios de produzi-la” (SIMIS, 2007, p.135), atuando, assim, como um agente de fomento e mediação social. A segunda reflexão aponta para um processo mais complexo, de negociações e arranjos sociais e históricos, que se constituíram na razão das transformações sociais em que a cultura passa a ser um tema caro à construção e às políticas do país e do mundo. 3. REFLEXÕES E PRÁTICAS DO LAZER: BASES PARA UM PROJETO DE CULTURA Embora sólido, o percurso sócio-histórico que pavimentou o caminho para a política de mediação cultural (no âmbito geral das ações) não foi planejado nem constituído como um objetivo claro à estruturação do SESC. As atividades de formação cinematográficas foram se moldando paulatinamente, ao longo dos anos, imbricadas nas três grandes fases da entidade – a assistencial, a do lazer e a da cultura. A primeira dessas fases diz respeito, apenas para o que nos interessa, ao seu período de criação e às demandas primárias da entidade. Teve origem no desdobramento do pensamento político brasileiro das décadas de 1930/40, que tinha como foco conter as múltiplas refrações da crise social decorrentes da intensificação do processo de industrialização do país, dinâmica econômica que acentuou a onda de crescimento urbano, em especial nas regiões Centro-Sul (BULLA, 2003, p. 2). Fazendo parte de uma série de medidas do Estado que visavam o enfrentamento das adversidades socioeconômicas, o SESC nascia em 1946, autorizado pelo Decreto Lei nº 9.853/46 e vinculada à articulação e ao suporte da CNC, como um organismo voltado para o bem-estar social dos trabalhadores do comércio. Esta fase marcadamente assistencial perdurou até os anos 1960 e centrava seus investimentos em atividades do serviço social, da saúde, educação, recreação, alimentação, higiene e habitação. A estruturação da fase seguinte correspondeu à nova dinâmica conferida aos centros urbano-industriais nos anos 1950/60. Pautava-se na urgência em estabelecer o equilíbrio da ordem social em associação a um clima desenvolvimentista em franca atividade, ao tempo em

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que incluía, na celebração do progresso, outras instâncias de estímulo à qualidade de vida como “espaços em que os cidadãos pudessem exercer lazer e cultura” ligados “a esse conjunto de transformações que se passavam na cidade” (OLIVEIRA, 2009, p. 54-56). A concepção de progresso, aliada à ideia de sociedade moderna, respaldava-se no crescimento econômico do país, especificamente no surto industrial que abrira transformações de vulto na sociedade brasileira, sendo São Paulo a cidade mais profundamente afetada pelas mudanças. O projeto desenvolvimentista, implementado desde o pós-guerra, impulsionava o ritmo das atividades, carreando alterações de monta na estrutura da sociedade (ARRUDA, 1997, p. 47). Este novo cenário punha em foco um tema basilar no eixo da vida social: a ideia de progresso e modernidade não mais dissociava o tempo útil do trabalhador do tempo livre e do bem-estar destes, incluindo-se aí o tempo para o consumo das mais variadas formas de arte. Essa nova característica passou a computar, como um índice de produtividade, a qualidade de vida particular dos indivíduos e principalmente a sua disposição funcional como mão de obra. O primeiro grande e efetivo movimento no sentido da superação da fase assistencialista do SESC foi a realização, em 1969, do seminário Lazer: Perspectivas para uma Cidade que Trabalha, promovida pela entidade e pela Secretaria de Bem-Estar da cidade de São Paulo. A figura central dessa discussão, o sociólogo francês Joffre Dumazedier, trouxe, para o centro do debate, suas teorias e conceitos sobre o lazer associado à educação não-formal. Para o autor, o tempo do lazer alicerça o momento em que o indivíduo pode expressar ou satisfazer seus impulsos e desejos, uma “escolha pessoal e livre e seria também oposto ao conjunto das necessidades e obrigações da vida cotidiana” (DUMAZEDIER, 1976, p. 31). Desse modo, a função recreativa - no sentido do divertimento - está relacionada com as outras funções de descanso e desenvolvimento do lazer, e orientada para a criação permanente do indivíduo por si mesmo. Liga-se à distinção entre o lazer e o ócio, tomando o lazer como ocupação não-obrigatória, um elemento de “livre-escolha” de atividades, ação de “recuperação psicossomática”, de desenvolvimento pessoal e social alcançável por meio das práticas do lazer. Na centralidade do tema, outros estudiosos viriam somar contribuições que adensaram as razões para os avanços na visão institucional do SESC: o trabalho do educador suíço Pierre Furter, que abrangia a ideia de uma pedagogia fora dos regimes escolares, propondo ainda o desenvolvimento e os reajustes da personalidade do homem em qualquer época da sua existência social (BRANDÃO, 1997, p. 17); e a referência do “historiador e filósofo italiano, chefe de uma das unidades da Unesco nos anos 80, Ettore Gelpi”, que “esteve no Brasil, a pedido do SESC, para ministrar o curso sobre Lazer e educação permanente” (LEMOS, 2005, p. 50). Os debates produzidos por estes teóricos levaram o SESC ao gradual deslocamento da sua atuação para um serviço social voltado às atividades de tempo livre, mudando a estratégia de mediação da enti-

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dade, fazendo-a organizar suas ações de lazer como educativas em si mesmas, onde os processos de fruição e aprendizagem estavam ligados diretamente à qualidade da atividade propostas (ALMEIDA, 1997, p. 88-91). O Programa de Lazer do SESC era conduzido politicamente por duas perspectivas, uma ligada a um certo senso econômico e utilitário, tendo o lazer com um “reforço” à saúde e à vitalidade do trabalhador, visão ainda tributária da vocação assistencialista da entidade (LOPES, 2015, p. 91). A outra cumpria uma função externamente mais estratégica: mantinha-se como uma alternativa às restrições políticas no país, para o qual o regime militar já havia inviabilizado qualquer tímida iniciativa que pudesse transpirar preocupações educativas muito explícitas nos processos sociais, incluindo as ações de cinema. As atividades de lazer se ofereciam “como porta de entrada mais ‘discreta’ para os valores educativos que a instituição pretendia transmitir, relacionados à educação cívica, cidadania, sociabilidade e integração com o meio social” (OLIVEIRA, 2009, p. 66). Nos anos seguintes, nos debates que progressivamente avançariam para uma maior ênfase ao Programa de Cultura, o processo sistemático de aperfeiçoamento e reflexão centrado nos quadros técnicos da instituição foi um fator fundamental. A partir da década de 1960, muitos intelectuais de renome internacional passariam a vir ao Brasil para palestras, seminários, painéis e outras dessas atividades de formação promovidas pelo SESC (muito especialmente pelo Departamento Regional SP), e alguns deles, como o próprio Joffre Dumazedier, se tornariam, ainda nessa época, consultores da entidade. Por sua importância como agentes em constante capacitação e pontas-de-lança no trabalho junto às comunidades, muitos destes técnicos formariam um grupo profissional extremamente atento às questões socioculturais. Essa informação é reforçada pelo Diretor do SESC São Paulo, Danilo Santos de Miranda5, que começou na instituição como orientador social, em 1968, ao afirmar que [...] a necessidade do SESC naquele momento era de pessoas com um perfil capaz de perceber contextos de cada realidade institucional, ter um olhar humanista, uma formação humanista, porque até então não havia uma formação específica que habilitasse um profissional a atuar nesse ou naquele cargo na instituição. Certamente, muito das práticas sociais ligadas ao trabalho de mediação destes profissionais tem relação com ambientes que frequentavam, na circulação de bens simbólicos para a constituição de um gosto específico pelo consumo cultural. No que se refere aos ambientes de cinema, por exemplo, era parte (recomendável) da formação destes técnicos estabelecer vínculos com a dinâmica dos processos de aprendizagem no setor audiovisual, uma vez que a sétima arte, enquanto uma forte expressão cultural, compunha uma das pontas de ação institucional: Entrevista concedida a Marcelo Costa Lopes, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 25 ago. 2014.

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fomentar práticas cinematográficas nas Unidades e em comunidades atendidas fazia parte do processo de promoção da qualidade de vida. Outro fator considerável para este cenário complexo de formação no SESC é a ambiência cultural dos anos 1960/70. Este período de grande efervescência social no Brasil e no mundo é marcado pela ação uma juventude inquieta que vinha produzindo, participando e debatendo ideais e processos criativos de diversas ordens e, não por acaso, dali saíram alguns dos principais nomes da arte e da intelectualidade brasileira6. Essa geração estabelece paulatinamente outro nível de percepção e relação com saberes e fazeres específicos no campo da arte, efetivado nos processos econômicos, políticos e culturais do período, quando então se consolida uma indústria cultural no Brasil7 e um consequente mercado de bens culturais. O espaço para a cultura toma outra dimensão, se expande para uma arte passível de ser um produto da publicidade, da arquitetura, das artes plásticas. Passa a incluir, direta e/ou indiretamente, o interesse e o potencial de consumo das classes trabalhadoras no uso do seu tempo livre. Como assevera Renato Ortiz, a complexificação da divisão do trabalho, a racionalização empresarial envolvendo uma crescente profissionalização e um novo tipo de relacionamento entre a empresa e o empregado mudam a tônica dos novos modelos econômicos. A cultura, segundo o autor, passa a ser um bem comercializável embora, nunca inteiramente uma mercadoria, pois encerra um “valor de uso” que é intrínseco à sua manifestação (ORTIZ, 2006, p. 146). Isso abre espaço para outra perspectiva institucional no SESC. 4. O PROGRAMA DE CULTURA E A SISTEMATIZAÇÃO DO PROJETO DE CINEMA Álvaro Salmito8, ex-Diretor da Coordenação de Estudos e Pesquisas do SESC DN, foi enfático ao localizar o eixo do processo de transição que concedeu espaço para a cultura na entidade, em decorrência, sobretudo, da ação de alguns dos seus quadros profissionais: O Programa Cultura do SESC, pra valer, o núcleo duro dele, onde ele começa a ganhar massa, tanto no Departamento Nacional como nos Departamentos Regionais, acontece nos anos 80, no início dos anos 80. Até então, o programa de maior visibilidade do SESC era o programa de Lazer, principalmente atividades de Terceira Idade e Turismo Social. Podem ser contabilizadas entre as personalidades atuantes nesse período, todas com algum vínculo de formação para o cinema, nomes como Vinícius de Moraes, Glauber Rocha, Jean Claude Bernardet, Leon Hirszman, Gustavo Dahl, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Helena Ignês, Anecy Rocha, Maria Bethânia, Orlando Senna, João Batista de Andrade, Walter Lima Júnior, Anselmo Duarte, Othon Bastos, Nelson Pereira dos Santos, Guido Araújo e Rex Schindler. 7 Segundo Renato Ortiz (2006), a indústria cultural, incipiente nos anos 1940/50, se consolida nas décadas de 1960/70. Sua materialização é o resultado da articulação dos interesses do Estado com o avanço de uma nova racionalidade empresarial nos setores de produção cultural, notadamente na televisão. 8 Entrevista concedida a Marcelo Costa Lopes, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 18 ago. 2014. 6

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(...) É preciso que você saiba que esse Programa Cultura está na gênese, no decreto lei de criação do SESC nº 9.853, de 13 de setembro de 1946. Já está lá a cultura, bem como outras atividades. No entanto, este programa ficou dormitando até o início dos anos 80. Antes, estas outras atividades [Lazer] é que tinham proeminência. E o Programa Cultura era o que mais sofria preconceito pelos dirigentes do SESC. (...) Foram algumas pessoas e alguns regionais que pioneiramente começaram a bater na (tecla) cultura. A mudança no enfoque institucional para o Programa de Cultura do SESC corresponde, no plano externo, a um diálogo de interesses desenvolvidos na entidade com o período de transformação social decorrente da abertura política brasileira, com o processo de recuperação das instituições democráticas suprimidas por duas décadas de regime militar e que impôs um Estado de exceção às instituições nacionais. A cultura, nos estertores do regime, a despeito da forte presença de traços de repressão e censura, era o lugar do debate, da reflexão e do exercício da ação política no Brasil, e visava dar fôlego e consistência às manifestações populares. Esse contexto encontrou ressonância na percepção de alguns indivíduos dentro do quadro diretivo do SESC (no Departamento Nacional e em São Paulo, de forma mais destacada que os outros Regionais), sobretudo na crítica que faziam, nesses termos, à noção funcionalista da cultura restrita ao lazer e ao entretenimento. Sem abandonar os resultados pioneiros alcançados no trabalho com o lazer, a ideia em proposta era ampliar o conceito, “não sendo visto apenas como diversão e evasão, mas ao mesmo tempo como cultura e educação” (LEMOS, 2005, p. 52). De fato, a inquietação dentro do SESC sobre os rumos do desenvolvimento do Programa de Cultura se exprimia cada vez mais forte. Ao longo desse processo de mudanças no país alguns profissionais acabariam incorporando discussões importantes sobre a prática cultural, aprofundando pensamentos e debatendo autores como Mike Featherstone, o teórico da cultura do consumo9. Como desdobramento dessas reflexões, o autor, anos depois, participaria de vários seminários promovidos pelo SESC e teria livros publicados no Brasil pelo selo da instituição. A referência de seu trabalho no desenvolvimento de uma política voltada para a cultura aparece, por exemplo, na expressão intermediários culturais, cunhada por Pierre Bourdieu, e explicada pelo autor inglês na definição do campo de ação em que atuavam esses técnicos: Especialistas e intermediários culturais capazes de vasculhar diversas tradições e culturas para produzir bens simbólicos e, além disso, fornecer as interpretações necessárias sobre seu uso. Seu habitus, disposições e preferências de estilo de vida são tais que eles acabam por se identificar com os artistas e intelectuais; todavia, nas condições de desmono Featherstone (1995) observa um aumento, no final dos anos 1980, do interesse de se teorizar a cultura, o que seria resultado da “onda” do pós-modernismo. Busca, com isso, refletir a respeito dos motivos que levaram as ciências humanas de modo geral a se interessarem por tal assunto. Seu objetivo é entender como o pós-modernismo surgiu e como se transformou em uma imagem cultural tão influente e poderosa.

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polização dos redutos de mercadorias artísticas e intelectuais, eles têm os interesses aparentemente contraditórios de sustentar o prestígio e o capital cultural desses redutos e, ao mesmo tempo, popularizá-los e torná-los acessíveis a públicos maiores (FEATHERSTONE, 1995, p. 39). De fato, a ideia de popularização de bens culturais “de elite” integra cada vez mais fortemente as pautas da discussão para o Programa de Cultura neste momento. No caso do cinema, um produto industrial voltado o consumo de larga escala, o desafio da política do SESC é moldá-lo pedagogicamente como parte de uma programação voltada para utilização de um segmento de filme tradicionalmente considerado um “privilégio das camadas sociais de maior renda” (SESC, 2007, p. 9). Para tanto, utiliza da mediação cultural na constituição de estratégias de acesso que possibilitem, na experiência social, educar as massas para o consumo de um perfil de produções normalmente restritas ao universo das elites. O deslocamento de um consumo de massas10 para um consumo de um segmento de elite - e este tratado novamente como um consumo voltado para as massas - é o ponto objetivo da lógica cultural de acesso e estratégias que o SESC pretende expandir nos anos 1980, tomando como referência ambiências de formação culturais mais diversas. Álvaro de Melo Salmito, que desde os anos 1970 foi um dos agentes centrais no DN para tornar este tema um traço permanente na instituição, aponta os caminhos encontrados para o diálogo com a nova dinâmica que estruturaria novos caminhos para a entidade: “tínhamos o Danilo (Miranda) em São Paulo e nós no Departamento Nacional, sem que houvesse uma diretriz institucional para o fortalecimento desse Programa. E qual era o caldo de cultura que esse programa vicejava? Era a redemocratização do Brasil, ao meu juízo”. E prossegue11: Nos primórdios da redemocratização brasileira, onde era que a política fluía? Ela só foi ter aqueles grandes comícios depois, quando a Ditadura fraqueja. Era nos movimentos e nos shows. A bomba do Rio Centro foi no show de Chico Buarque e outros artistas. Era a cultura por onde se respirava novos ares e por onde se respirava a política. Onde estava a respiração da redemocratização? Nas atividades artístico-culturais do Brasil... e o SESC foi nessa. A evidência da cultura consistia num ato político. Permeava as várias instâncias na vida brasileira, evidenciando a voz artística e popular; era um espaço para arregimentar multidões, o que, até bem pouco antes, era temível e fortemente repreendido pelos tempos mais duros da ditadura. Ao que Salmito complementa: No início dos anos 80, quando passa o núcleo duro da ditadura, no Rio e em São Paulo começa uma série de debates pelos movimentos artísticos. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, no Teatro Casa Grande e nós aqui no SESC. Esse fortalecimento do SESC coincide com o fim da ditadura Entendendo o cinema como um produto industrial e, portanto, voltado para um mercado de grandes públicos. Entrevista concedida a Marcelo Costa Lopes, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 18 ago. 2014.

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militar, com a saída do governo Figueiredo e a entrada do governo Sarney, a Nova República. Isso por volta da primeira metade dos anos 80. É nesse momento que assume em São Paulo, o Danilo Santos de Miranda, como Diretor Regional. (...) Isso faz a maior diferença, porque o Danilo tem o maior orçamento do SESC do Brasil e colocou na cultura a sua missão maior. Ora, o SESC São Paulo corresponde a aproximadamente a 40% do orçamento nacional, de todo o Brasil. O SESC de São Paulo está para o SESC/Brasil assim como o estado de São Paulo na economia está para o Brasil. A presença de Danilo Miranda no SESC São Paulo é estratégica: gestor desde 1984, Miranda imprimiu a forte herança cultural dos anos da sua juventude e formação. Para ele, a cultura passou a ser, com o passar das décadas, o lugar de excelência para as transformações sociais, e “o SESC percebeu isso muito cedo, assumindo uma perspectiva educativa, não no caráter da educação regular, da escola, mas de uma educação permanente. É daí que vem a cultura, desse processo de amadurecimento”12. No documento interno intitulado Avaliação das Diretrizes Gerais de Ação do SESC, de 1988, a noção de cultura já se demonstra como uma preocupação mais sistemática, tendo o: ‘Campo Cultural’ como a área mais expressiva para a elevação dos indivíduos aos patamares superiores da condição humana e da produção do conhecimento. Possibilidade de enriquecer intelectualmente o indivíduo; levá-los à preparação mais acurada; propiciar nova compreensão das relações sociais; releitura do seu estar-no-mundo, para transcender suas condições de origem e formação; dotá-los de consciência universal (LEMOS, 2005, p.81). A partir de então, na continuidade de debates, cursos e instâncias de discussão nos âmbitos nacional e regional, a instituição passa por uma revisão da sua relação com as diversas artes na perspectiva da recreação e/ou do entretenimento. Na ampliação do referencial sobre a cultura, em que algumas atividades ganharam especial relevo, o cinema encontrou um espaço de evidência. É quando este, como uma das vertentes mais importantes do consumo cultural, de considerável alcance e influência na formação de afetos e comportamentos, se tornaria ponto de apoio para novas práticas formativas acessíveis para o tempo livre do trabalhador. Sistematizada numa programação de educação permanente, as ações de cinema integrariam, de maneira articulada, a ampla política de construção da cidadania, tema central na missão declarada do SESC. Em termos operacionais, as novas estratégias adotadas nas atividades de cinema possibilitaram, entre as décadas de 1980/2000, uma ampliação no seu modelo de acesso, ao demonstrar-se potencialmente capaz de se estender por todo o país. Conforme descrita no início deste artigo, sua programação, voltada para o estímulo ao consumo de filmes de arte por grupos mais populares Entrevista concedida a Marcelo Costa Lopes, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 25 ago. 2014.

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demarcou espaço ao possibilitar uma alternativa ao mercado hegemônico, num período em que, segundo José Carlos Avellar (2014), os cineclubes vinham perdendo força e era cada vez menor número de salas dedicadas a um cinema autoral. Se nacionalmente, a principal ação da política do SESC, ainda nos anos 1980/90, era projeto Filmoteca, cujos filmes eram oriundos do acervo adquirido junto à Embrafilme e/ou a variados consulados, o que se propunha então, na contramão do mercado, era uma ostensiva difusão de filmes nacionais e outros tantos não-hollywoodianos. Nos anos seguintes, com a implantação consecutiva dos projetos A Escola vai ao Cinema (20012007) e CineSESC (2008), o que se pôde observar foi uma articulação cada vez mais maior com as instâncias da vida cotidiana do seu público, por dento da escola formal ou nas parcerias com instituições públicas e/ou privadas para a oferta sistemática e contínua de filmes que pudessem ampliar o raio de circulação de obras de outras origens, estéticas e formatos. Contudo, mesmo desenvolvendo um amadurecido projeto de cultura na perspectiva de uma educação permanente, alguns obstáculos são muito mais amplos. Apesar de constituir-se, ao longo dos anos, numa situação bem mais estável que outras organizações atuantes no circuito alternativo de exibição, graças à sua condição jurídica paraestatal, que administra uma considerável soma de recursos públicos, alguns dos maiores empecilhos para cumprir as finalidades de ações culturais como as que propõe, situam-se, segundo Isaura Botelho (2003), nos condicionantes do consumo de bens culturais que, mesmo no caso do SESC, compõem-se de entraves que não se limitam à realidade das estruturas ofertadas pela instituição. As pesquisas internacionais existentes apontam para o fato de que as maiores barreiras à aquisição de hábitos culturais são de ordem simbólica. A primeira lição que se extrai desta evidência é a lei do sistema de gostos: não se pode gostar daquilo que não se conhece; logo, o gostar e o não gostar só podem existir dentro de um universo de competência cultural, significando uma soma da competência institucionalizada pela hierarquia social, pela formação escolar e pelos meios de informação. Neste sentido, todos os estudos internacionais sobre práticas e consumos culturais mostram que é necessário observar a correlação entre acessibilidade a equipamentos (...) e outros fatores, tais como recursos econômicos, escolaridade e a existência de hábitos culturais prévios aliados à educação (BOTELHO, 2004, p.13). Na busca por vencer constrangimentos – de razão econômica, social, política e educacional – para tentar aproximar os públicos diversos da classe trabalhadora de uma curadoria de filmes cujo perfil de cinema de arte, de um modo geral, pouco lhes interessa de maneira imediata, as realizações do SESC permanecem como importantes referências para o circuito paralelo de exibição brasileiro. Como lembra Avellar (2014), a existência de um circuito de cinema de arte é uma raridade na América Latina, e isso equivale dizer que a manutenção, a continuidade, a regularidade,

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as alternativas de difusão num cenário de lógica comercial mantém-se como fatores altamente complexos que dificultam a sedimentação do acesso a outros formatos e linguagens cinematográficos. É neste sentido, que a compreensão da política de cinema do SESC, como resultado de um projeto cultural ampliado a partir de discussões sobre o lazer socioeducativo, permite-nos analisar a extensão desta ação, não apenas pela perspectiva curatorial, mas também pelo alcance geográfico da instituição, e sua importância no contexto de formação de novos públicos para o cinema de arte. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Percorrendo o caminho das práticas formativas do SESC tematizadas pelas discussões entre o lazer e a cultura, é possível compreender minimamente como uma instituição, que tem sua origem ligada ao comércio, dá suporte a uma das maiores redes de difusão do cinema “não-comercial” do país. Para tanto, este artigo se apoiou numa reflexão que tangencia os debates sobre as transformações nos padrões que cercam as políticas do trabalho e suas abordagens sobre o tempo livre, orientadas para a formação de um outro perfil de trabalhador na contemporaneidade. E, desse modo, tratou também sobre como o acesso a manifestações da cultura, como o cinema, cumpre este papel. Na construção do Programa de Cultura do SESC, a função recreativa no mundo do trabalho aparece no diálogo com processos de formação diversos, que seguem avançando por discussões mais complexas pertinentes à mudança de tônica dos novos modelos econômicos e dos contextos políticos o país. Na história da instituição, isto se demonstra nos percursos formativos dos técnicos do lazer e cultura, desenvolvidos no acompanhamento de temas sociais que vão se atualizando, contribuindo para a constituição de uma politica de mediação cultural que conferiu consistência e articulação às ações com o cinema. Embora consistente, esta política cinematográfica, amparada por recursos substanciais de manutenção, também é afetada pelas adversidades pelas dinâmicas do contexto geral do mercado cinematográfico. A autonomia de sua gestão, no entanto, diferente das organizações estatais, permite a adequação das ações de forma mais efetiva dentro um projeto maior, que visa, em última instância, o fomento à aquisição de competências culturais pelo seu público comerciário. Neste sentido, a transição no SESC operada pelas transformações nos significados do lazer – anteriormente com tendências ao campo do entretenimento - e da cultura – pensada como fruição – é resultante da busca por fornecer acesso cada vez maior a uma produção de bem simbólicos e uma reflexão necessária sobre os usos e interpretações de uma arte tornada “comercializável”. Somado a natureza formal de uma entidade de função social, seus objetivos tratam de possibilitar, com a promoção da cultura em geral, e do cinema em particular, alternativas para formação de perfil de consumo diferenciado daquilo que é ofertado no grande mercado da cultura.

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A modalidade cinema no SESC redunda numa quase obrigatória vinculação aos espaços alternativos de exibição, não por uma indicação arbitrária, mas porque dialoga com os processos de reflexão sobre a arte. A criação de estratégias que permitam o retorno social ao segmento de classe que lhe dá sustento, fez com que, no desenvolvimento de políticas mais sistemáticas para a cultura, o cinema avançasse na articulação para a promoção de filmes de arte, cumprindo uma função educativa de levar diversidade de linguagens, estéticas, nacionalidades, formatos e narrativas cinematográficas, tão pouco disponíveis, ao seu público-alvo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, M. SESC São Paulo, uma ideia original. São Paulo: SESC, 1997. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: o novo modernismo paulista em meados do século. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, São Paulo: 39-52, Out. 1997. AVELLAR, José Carlos. Espaço aberto ao cinema de arte. Jornal O Globo (online). 19 Fev. 2014. Disponível em: Acessado em: 23 Jul. 2014. BOTELHO, Isaura. Os equipamentos culturais na cidade de São Paulo: um desafio para a gestão pública. Espaço e Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos. São Paulo: Annablume, n. 43-44, 2004. BRANDÃO, Ignácio Loyola. SESC: 50 anos. Rio de Janeiro: Melhoramentos, 1997. BULLA, Leonia C. Relações sociais e questão social na trajetória histórica do serviço social brasileiro. Revista Virtual Textos & Contextos [Online], Porto Alegre / RS, v. 02, 2003. Disponível em: Acessado em: 08 abr. 2011. DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular – Debates. São Paulo: Perspectiva, 1976. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. LEMOS, Carmen Lia N. Práticas de lazer em São Paulo. Atividades gratuitas no SESC Pompéia e Belenzinho. 2005. 129 f. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. LOPES. Marcelo Costa. Memória Social e Políticas Culturais nas Ações de Cinema do SESC. 2015. 140 f. Dissertação (Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2015. OLIVEIRA, Maria Carolina Vasconcelos. Instituições e públicos culturais: Um estudo sobre mediação a partir do caso SESC-São Paulo. 2009. 233 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 2006. SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO, Departamento Nacional. Disponível em: Acessado em: 07 mar. 2014. 1402

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______. Modelo da Atividade Cinema – Modelo Programação. Rio de Janeiro, 2007. ______. Modelo da Atividade Cinema – Modelo Instalação de Salas de Cinema. Rio de Janeiro, 2008. ______. Legislação do SESC. Rio de Janeiro: Departamento Nacional, 2010. ______. Sesc/ Senac: patrimônios do Brasil. Rio de Janeiro, 2011. SIMIS, Anita. A política cultural como política pública. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre. (Orgs). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007, v. 1, p. 133-155.

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PRESTANDO CONTAS À SOCIEDADE: 10 ANOS DOS EDITAIS DE FOMENTO ÀS ARTES CÊNICAS DA FUNARTE Marcelo Gruman1 RESUMO: A principal ação do Centro de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes na área de fomento são os editais voltados às suas três linguagens (teatro, dança e circo), criados em 2006 como forma de perenizar a atuação do Estado no campo da produção, manutenção e circulação das artes cênicas no país. O presente artigo é um excerto de um extenso relatório elaborado pelo Setor de Políticas de Fomento do CEACEN, pondo em prática o conceito de “transparência ativa” e subsidiando os gestores públicos com dados e indicadores que auxiliam na avaliação de suas políticas institucionais a partir de um diagnóstico o mais preciso possível da realidade. Este relatório é parte constituinte fundamental do projeto de reformulação dos editais que a instituição promoverá no ano de 2016, bem como uma prestação de contas à sociedade e a publicização dos resultados obtidos com as ações de fomento que fazem uso de verbas públicas. PALAVRAS-CHAVE: editais de fomento; gestão; Funarte; políticas culturais; indicadores.

1. APRESENTAÇÃO A Fundação Nacional de Artes — Funarte é o órgão responsável, no âmbito do Governo Federal, pelo desenvolvimento de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, ao teatro, à dança e ao circo. Os principais objetivos da instituição são o incentivo à produção e à capacitação de artistas, o desenvolvimento da pesquisa, a preservação da memória e a formação de público para as artes no Brasil. Para cumprir essa missão, a Funarte concede bolsas e prêmios, mantém programas de circulação de artistas e bens culturais, promove oficinas, publica livros, recupera e disponibiliza acervos, provê consultoria técnica e apoia eventos culturais em todos os estados brasileiros e no exterior. Segundo o Regimento Interno da Funarte, compete ao Centro de Artes Cênicas formular, promover e fomentar programas, projetos e atividades voltadas para as artes cênicas, inclusive na formação de recursos humanos, na produção artística, na difusão e no intercâmbio cultural no Brasil e no exterior. Suas ações de fomento devem estar consoantes com as diretrizes institu Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ), Administrador Cultural da Funarte/MinC. E-mail: [email protected]. 1

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cionais definidas para cada uma de suas linguagens, como depreendido do relatório de atividades da instituição de 2007, bem como com seus Planos Setoriais construídos a partir do Plano Nacional de Cultura: Dança: “A rica oferta da produção brasileira na área de dança está restrita a uma pequena parcela da população. (...) A dependência de modelos de financiamento baseados em mecanismos de renúncia fiscal não superou ainda o problema da exclusão de grande parte das manifestações coreográficas do acesso às fontes de financiamento e oportunidades de difusão e preservação. É preciso promover a formação de público e dos artistas, estimular a circulação da produção, garantir que as atividades realizadas no país sejam identificadas, registradas e divulgadas e estabelecer modelos sustentáveis de manutenção dos grupos de baile e da pesquisa na linguagem da dança”. Teatro: “A exemplo das demais linguagens artísticas, o teatro requer uma política de financiamento que suporte o desenvolvimento, a produção e a circulação de suas obras. Por conta de sua natureza de espetáculo vivo, dependente da interação de elementos cênicos e da presença simultânea e física do público, trata-se de uma modalidade de expressão artística irredutível à reprodução em escala pela indústria cultural. Nesse contexto, o teatro carece de oportunidades de autonomia financeira equivalentes às cadeias produtivas do audiovisual, música popular ou literatura. Esse panorama se agrava por conta das disparidades regionais na oferta de infraestrutura de apoio à produção e fruição teatral, bem como pela distribuição irregular dos meios de capacitação de atores e técnicos e de formação de público”. Circo: “A diversidade de práticas circenses coloca desafios específicos para a elaboração de uma política para o setor. Cabe ao poder público e em especial à Funarte criar condições para que o circo brasileiro possa ver suas demandas e precariedades resolvidas com apoio, capacitação e acesso a espaços dotados de condições satisfatórias de infraestrutura e localização para suas apresentações. O Estado deve, ainda, promover a pesquisa e a preservação da memória das atividades circenses, visando o reconhecimento dessa tradição e a criação de programas de circulação de espetáculos, principalmente em regiões de maior isolamento geográfico”. A principal ação do Centro de Artes Cênicas na área de fomento são os editais voltados às suas três linguagens, criados em 2006 como forma de perenizar a atuação do Estado no campo da produção, manutenção e circulação das artes cênicas no país: 1. Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz: desenvolvimento de atividades teatrais, de temática livre e nos mais diversos formatos, incentivando a criação e a circulação de espetáculos, além de contribuir para a manutenção de coletivos, grupos e companhias. 2. Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna: desenvolvimento de atividades de dança, contemplando a circulação nacional de espetáculos, atividades artísticas de artistas consolidados e atividades artísticas de novos talentos.

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3. Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo: renovação ou manutenção da infraestrutura dos circos brasileiros, incentivo à montagem, renovação e circulação de números e espetáculos bem como formação em artes do circo. A Funarte vem pondo em prática o conceito de “transparência ativa”. O Centro de Artes Cênicas, em consonância com este preceito, está finalizando um relatório estatístico de suas quatro tradicionais premiações, que pretende subsidiar a avaliação de suas políticas institucionais a partir de um diagnóstico o mais preciso possível da realidade. Este relatório é parte constituinte fundamental do projeto de reformulação dos editais que a instituição promoverá no ano de 2016, bem como uma prestação de contas à sociedade e a publicização dos resultados obtidos com as ações de fomento que fazem uso de verbas públicas. Ao “zerar o passivo” de dados dos editais de fomento o Centro de Artes Cênicas coloca no centro da discussão a importância do monitoramento e avaliação das políticas públicas de cultura a partir de indicadores sólidos referenciais para a gestão. Para tanto, alguns passos são condição essencial para o sucesso da iniciativa: levantamento de informações; organização das informações; disponibilização das informações; reflexão crítica sobre as informações. Evitam-se, assim, tradicionais percalços da administração pública brasileira, exatamente a falta de informação e consequente ausência de memória institucional e dificuldade de comunicação com o cidadão. O levantamento de dados e sua constante atualização constituem aquilo que poderíamos chamar de “cadastro vivo” em oposição ao “cadastro morto”, planilhas deixadas numa pasta de arquivos analogamente a livros pegando poeira no fundo da estante de uma biblioteca. Ao assumir um papel ativo como formuladora de políticas públicas em todas as suas etapas, a instituição vai ao encontro do preconizado pelos planos setoriais, especialmente o do teatro2 e da dança3 no que diz respeito ao acompanhamento das informações e dados relativos às ações, editais e recursos econômicos da área cultural, buscando garantir a transparência e o acompanhamento dos processos em curso, bem como a divulgação e análise desses resultados. Desta forma, abandonam-se as “políticas de evento”, descontínuas, em prol de políticas de Estado, planejadas e de longo prazo, com desdobramentos qualitativos mensuráveis. O próprio Ministério da Cultura reconhece a necessidade de levantamento de dados e construção de indicadores que auxiliem na avaliação das ações planejadas e vem “fazendo o No caso do teatro, chama-nos a atenção, por exemplo, o item 4.2. e o subitem 4.2.2 do Capítulo IV – Do Desenvolvimento Sustentável: 4.2: Promover o levantamento e avaliação dos dados estatísticos do setor teatral. 4.2.2: Ampliar e atualizar o sistema de acompanhamento das informações e dados relativos às ações, editais e recursos econômicos da área cultural, de forma a garantir a transparência e o acompanhamento dos processos em curso. 3 No caso da dança, dois itens (4.3.7 e 5.1.2) do seu plano setorial são relevantes para a discussão sobre o acesso à informação e a transparência da gestão pública. O primeiro, constante do eixo Desenvolvimento Sustentável, diz respeito à ampliação e atualização do sistema de acompanhamento das informações e dados relativos às ações, editais e recursos econômicos da área cultural, “buscando garantir a transparência e o acompanhamento dos processos em curso”. O segundo, constante do eixo Da Participação Social, fala da “ampliação dos instrumentos de acompanhamento e avaliação das políticas culturais voltadas para a dança, com a divulgação e análise desses resultados”. 2

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dever de casa” por meio da Coordenação-Geral de Monitoramento de Informações Culturais da Secretaria de Políticas Culturais, responsável pela implantação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, cujo caráter inovador se dá por agregar e entregar à sociedade informações atualizadas de distintos bancos de dados do próprio MinC, fundamentais para uma gestão pública transparente. Também merece destaque a parceria entre o MinC e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE na publicação do suplemento de Cultura da Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC e Pesquisa de Informações Básicas Estaduais – ESTADIC, com informações valiosas para a gestão pública. A publicação do relatório dos editais de fomento do CEACEN se coaduna com a Lei de Acesso à Informação, que estabelece o princípio de que o acesso é a regra e o sigilo a exceção, cabendo à Administração Pública atender às demandas de cidadãos e cidadãs. O acesso a estes dados constitui-se em um dos fundamentos para a consolidação da democracia, ao fortalecer a capacidade dos indivíduos de participar de modo efetivo da tomada de decisões que os afeta. A seguir, apresento alguns dados constantes do relatório e que devem servir de ponto de partida para uma profunda avaliação das políticas de fomento da Funarte e, especificamente, do CEACEN. Os dados: para início de conversa (e análise) PRÊMIO FUNARTE DE DANÇA KLAUSS VIANNA Gráfico 1: Premiação, por ano. (em milhões de reais)

O valor da premiação varia bastante ao longo dos anos, embora tenha havido estabilidade entre 2012 e 2014. A variação percentual entre os anos de 2006 e 2015 foi de -40%.

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Gráfico 2: Número de prêmios, por ano.

Assim como o valor da premiação, o número de prêmios varia muito de ano para ano, dependendo, por exemplo, de suplementação orçamentária via emendas parlamentares. Gráfico 3: Número de prêmios, por região geográfica. 2006-2015 (total/%)

Cerca de um terço dos prêmios foi destinado à região sudeste, seguida da região nordeste. Gráfico 4: Concentração de premiados na capital, por região geográfica. 2006-2015

Nas regiões norte e centro-oeste praticamente apenas projetos inscritos nas capitais dos estados foram premiados. As demais regiões também apresentam alta concentração de premiados nas capitais, o menor índice sendo de 75% no sudeste.

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Gráfico 5: Investimento sobre o total investido, por região geográfica. 2006-2015 (em %)

A região sudeste concentrou quase 40% do investimento do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, quase o dobro da região nordeste, a segunda com maior volume de recursos investido. Por outro lado, as regiões norte e centro-oeste obtiveram o menor volume de recursos. Gráfico 6: Número de inscritos, por região geográfica. 2006-2015

Metade dos inscritos no edital de fomento à dança da Funarte é da região sudeste, seguida das regiões nordeste e sul, respectivamente. As regiões norte e centro-oeste foram representadas, somando-se os projetos, pelo mesmo número daqueles da região sul. Gráfico 7: Concentração de inscritos na capital, por região geográfica. 2006-2015

Tanto quanto o verificado para os premiados, há forte concentração de inscritos nas capitais dos estados, nunca inferior a três quartos do total para cada região do país. As regiões norte e centro-oeste registraram os maiores índices de concentração.

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PRÊMIO FUNARTE DE TEATRO MYRIAM MUNIZ Gráfico 1: Premiação, por ano (em milhões de reais)

Há grande variação nos valores da premiação no edital de fomento ao teatro, declinando pela metade entre 2014 e 2015. Na comparação entre a primeira e décima edições, a variação foi de -72%. O investimento depende, dentre outras variáveis, da possibilidade de suplementação orçamentária, o que ocorreu em 2006 e 2009. Gráfico 2: Número de prêmios, por ano.

O quadro verificado na premiação se repete no número de prêmios distribuídos ao longo dos anos. Nos anos de 2006 e 2009, quando houve suplementação orçamentária via emendas parlamentares, o número de prêmios foi muito superior às demais edições, quase seis vezes maior na primeira edição do que na última.

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Gráfico 3: Número de prêmios, por região geográfica. 2006-2015

A região sudeste concentrou mais de um terço dos prêmios distribuídos pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, seguida da região nordeste. As demais regiões distribuíram, percentualmente, semelhante número de prêmios. Gráfico 4: Concentração de premiados na capital, por região geográfica. 2006-2015

A concentração de premiados nas capitais é, embora ligeiramente menor do que a verificada no edital de fomento à dança, bastante significativa. Na região norte ultrapassa 90%; nas demais regiões, nunca é inferior a 70%. Gráfico 5: Investimento, por região geográfica. 2006-2015 (em %)

A região sudeste concentrou quase metade do valor investido no edital de fomento ao teatro, seguida da região nordeste. A região nordeste, por sua vez, representa, em termos de recursos investidos, o dobro da soma das regiões norte e centro-oeste.

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Gráfico 6: Número de inscritos, por região geográfica. 2006-2015

A região sudeste concentrou 60% dos projetos inscritos, seguida pelas regiões nordeste e sul, respectivamente, que apresentam índices semelhantes. A região norte foi a menos representada. Gráfico 7: Concentração de inscritos na capital, por região geográfica. 2006-2015

A concentração de inscritos nas capitais dos estados é mais acentuada na região norte; a região sul é a única cuja concentração ficou abaixo de 70%. PRÊMIO FUNARTE CAREQUINHA DE ESTÍMULO AO CIRCO Gráfico 1: Premiação, por ano. (em milhões de reais)

Há significativa variação no volume de recursos investidos no edital de fomento ao circo, que não aconteceu em dois anos (2008 e 2014).

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Gráfico 2: Número de prêmios, por ano.

A significativa variação também ocorre com o número de prêmios distribuídos ao longo dos anos. Se é verdade, por um lado, que este número quase dobrou na comparação entre 2006 e 2015, houve uma queda de 40% entre as edições de 2013 e 2015. Gráfico 3: Número de prêmios, por região geográfica. 2006-2015

A região sudeste concentrou pouco mais da metade dos prêmios distribuídos pelo Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo, seguida das regiões nordeste e sul. O número de prêmios das regiões norte e centro-oeste, somado, não alcança o da região sul. Deve-se atentar para o fato de o edital de fomento ao circo não dividir o número de prêmios por região do país. Gráfico 4: Concentração de premiados na capital, por região geográfica. 2006-2015

Diferente do que ocorre nas editais de fomento ao teatro e à dança, a concentração de premiados nas capitais dos estados e bem menos significativa em, pelo menos três regiões do país, não chegando a 50% no caso da região sul. A região centro-oeste é a que apresentada o maior índice, acima de 80%.

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Gráfico 5: Investimento, por região geográfica. 2006-2015 (em %)

A região sudeste concentrou pouco mais da metade do investimento destinado ao edital de fomento, seguida da região nordeste que engloba, praticamente, o volume de recursos investido nas regiões norte, centro-oeste e sul. Gráfico 6: Número de inscritos, por região geográfica. 2006-2015

A região sudeste concentrou mais de metade dos inscritos no edital de fomento ao circo, seguida da região nordeste. Assim como no índice referente ao investimento regional, a região nordeste engloba numericamente os inscritos das regiões norte, centro-oeste e sul. Gráfico 7: Concentração de inscritos na capital, por região geográfica. 2006-2015

Assim como no índice referente à concentração de premiados nas capitais, no caso dos inscritos também observamos uma menor concentração do que nos editais de fomento ao teatro e à dança, nunca ultrapassando 80% em qualquer das cinco regiões do país. Na região sul, por exemplo, o índice ficou abaixo de 50% e, na região sudeste, pouco acima.

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2. REFLETINDO SOBRE OS DADOS Os dados apresentados neste artigo e os demais que compõem o relatório a ser divulgado num futuro breve levantam diversos pontos para reflexão, alguns dos quais colocamos a seguir: 1. A variação no montante destinado aos editais deveria ser técnica, baseada na demanda nacional por incentivos a projetos, entretanto, o que ocorre é que a decisão passa a ser política ao depender da agenda do governo, de possíveis suplementações orçamentárias, das oscilações do mercado e da disputa por recursos incentivados. O Estado, ironicamente, passa a disputar com a iniciativa privada a destinação de verbas públicas. A título de exemplo: em 2006, o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz distribuiu 323 prêmios, embora neste ano o número de proponentes tenha sido o terceiro menor na série histórica. Por outro lado, em 2015 o volume de recursos foi menos do que um terço do distribuído em 2006 ao passo que o número de inscritos foi 30% maior na última edição. O caso do circo também reflete a politização de um processo que, a princípio, deveria ser eminentemente técnico. Para compensar sua não realização no ano de 2014, a Funarte destinou a maior fatia de sua verba para os editais de fomento do Centro de Artes Cênicas ao Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo, assim como o maior número de prêmios. Não se questiona o maior investimento na área do circo, mas a falta de critérios objetivos que norteiem a distribuição de verba entre as linguagens do CEACEN. Isto vale, também, para o teatro e a dança que, ao longo dos anos, vêm recebendo maior investimento direto através dos editais Myriam Muniz e Klauss Vianna mais por intuição de maior demanda do que por fruto de estudos que a comprovem. 2. Deve-se discutir a melhor forma de distribuição dos prêmios, se por estado, região ou nacionalmente. Esta discussão é importante na medida em que a qualidade dos projetos varia enormemente, mesmo dentro de uma região e de um estado, fato confirmado quando observamos que a maior parte dos contemplados vem das capitais. 3. A evolução no número de prêmios e no valor total das premiações em regiões historicamente preteridas pelas políticas culturais é um fato a ser louvado. Por outro lado, não há critérios objetivos para a distribuição de prêmios e definição de categorias financeiras de premiação para cada região do país. É por este motivo que a discrepância entre as regiões norte e sudeste não diminui a despeito dos esforços por melhor distribuição de prêmios e premiações, na medida em que o sudeste é contemplado com módulos financeiros dos valores mais elevados. Na teoria, sabemos que os custos de produção na região norte são mais elevados (o “custo Amazônia”), mas não há estudos objetivos que o comprovem.

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4. Observa-se alta concentração dos projetos inscritos nas capitais dos estados. Em alguns casos, especialmente na região norte, praticamente apenas a capital participa. No médio e longo prazo pretende-se que os editais alcancem de forma homogênea todas as regiões do país. Um dos meios possíveis de alcançar este objetivo é o estabelecimento de parcerias entre a Funarte e as Secretarias Estaduais e Municipais de Cultura no intuito de elaborar um plano de divulgação maciça de suas ações. 5. Os projetos encaminhados não são homogêneos no que concerne à qualidade. Assim, outro caminho a ser trilhado é a realização de cursos de capacitação para a elaboração de projetos, melhorando as condições de acesso e maior igualdade entre os proponentes, por meio de ações sistemáticas da Funarte em parceria com os governos estaduais e municipais. 6. A baixa qualidade dos projetos apresentados ou a não participação no edital por desconhecimento ou falta de qualificação para a elaboração de propostas podem explicar tanto a pouca representatividade de alguns estados no processo quanto a baixo índice de premiados destes mesmos estados (Acre, Amapá, Piauí, Sergipe, por exemplo). Seria necessário verificar se, realmente, tais hipóteses são comprovadas ou se, simplesmente, estes estados não contam com grupos artísticos nas três áreas em destaque neste relatório. 7. A modalidade de seleção pública por edital democratiza a aplicação dos recursos públicos na área cultural, tornando-a transparente, equitativa, ampla e aberta, com regras claras, objetivos específicos e critérios de avaliação previamente divulgados. No entanto, diante da forte demanda por parte das três linguagens (teatro, dança e circo) e de recursos escassos, o percentual de contemplados é muito baixo. Portanto, deve-se discutir aquilo que a Funarte quer fomentar, uma vez que a pulverização dos prêmios pelas categorias de inscrição coloca em dúvida o impacto real da ação. 8. É fundamental uma discussão sobre as atribuições de cada uma das esferas da administração pública (federal, estadual, municipal), evitando-se que as premiações se transformem em grandes “guarda-chuvas” abarcando uma gama de categorias de inscrição cuja pretensão é de alcançar tudo e a todos. Estudos sobre o fomento público e privado às artes em geral podem revelar sombreamentos no financiamento, concentrado em determinados elos da cadeia produtiva. Podemos citar, como exemplo de ausência ou pouca presença do poder público, a circulação internacional das artes cênicas no âmbito do governo federal. 9. A informatização dos processos de seleção pública, economizando tempo e recursos do poder público e dos próprios proponentes, é uma realidade inescapável. Isto não significa ignorar que grande parte da população brasileira não tem acesso de qualida-

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de à Internet ou simplesmente estão desconectados do mundo virtual, mas de enfrentar o desafio irredutível de qualificar o processo através de parcerias institucionais (SEI, SESC, prefeituras etc.) que ajudam a capilarizar o acesso às inscrições por meio virtual a garantam a participação de grupos historicamente à margem das ações das políticas culturais e que vem conseguindo, nos últimos anos, terem reconhecidas sua cidadania cultural. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para dar conta de uma atuação verdadeiramente nacional e enfrentar os desafios colocados nas observações acima, a Funarte tem de se revitalizar e, mais do que isso, se reestruturar. Tal reestruturação articula-se à construção da Política Nacional das Artes (PNA), cujo objetivo primordial é a implantação de políticas públicas atualizadas, fundamentadas e duradouras para as artes. Três temas são prioridade, transformados em projetos transversais estruturantes: a) Rede Nacional de Difusão das Artes: formação de uma rede que possibilite a circulação e intercâmbio da produção artística de cada linguagem por meio de uma plataforma digital (ou uma série delas) cujo objetivo é funcionar como espaço de agenciamentos das linguagens artísticas, especialmente voltada para a circulação. A ideia é que o poder público desenvolva funcionalidades e os setores se apropriem dos mecanismos, tornando-a viva e sempre atualizada. A Funarte vincularia a esse espaço os seus editais; os proponentes passariam a se inscrever por meio dele, que assim induziria à formação de cadastros e indicadores, podendo orientar melhor as ações da própria Funarte; b) Sistema Federativo do Fomento às Artes: dentro do problema complexo da criação de um sistema federativo da cultura, é exequível em curto prazo um “pacto federativo de fomento”, uma articulação com secretários estaduais de cultura, gestores de fundos e outros atores a fim de definir as condições para uma nova forma de relação entre os entes federados no que diz respeito ao fomento; c) Marcos Legais das Artes: tem como foco quatro eixos principais (tributário, fiscal, trabalhista e previdenciário), empreendendo-se estudos sobre as legislações vigentes e constituídas propostas que as revisem no sentido de liberar gargalos, desburocratizar o trabalho dos gestores públicos, regulamentar leis que regem a profissão dos artistas, dentre outros temas. Os três temas são etapas importantes a serem vencidas para que haja uma política de fato estruturante para a arte brasileira e se constitua num sistema que possa fornecer dados para o planejamento e avaliação das políticas de forma integrada a articulada nacionalmente.

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Sem um diagnóstico preciso da realidade, não é possível modifica-la e, se um dos pilares da atuação da Funarte é a promoção, em âmbito nacional e internacional, das artes e, especificamente das artes cênicas a partir do conceito de “cidadania cultural” e respeito à diversidade, dados e indicadores como os apresentados neste artigo e aqueles produzidos pelo IBGE, como o Suplemento de Cultura dos Perfis de Informações Básicas de Estados (ESTADIC) e Municípios (MUNIC), bem como metas e estratégias do Plano Nacional de Cultura relacionadas à produção e circulação de espetáculos, devem ser levados em consideração no momento de elaboração da política institucional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FUNARTE. Relatório de gestão 2007. Rio de Janeiro: Funarte. 2007. 107 páginas. MINISTÉRIO DA CULTURA. Câmara e colegiado setorial de teatro: relatório de atividades 2005-2010. Brasília: MinC. 2010. ______. Câmara e colegiado setorial de dança: relatório de atividades 2005-2010. Brasília: MinC. 2010. ______. Câmara e colegiado setorial de circo: relatório de atividades 2005-2010. Brasília: MinC. 2010.

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JAPARATUBA EM REDE: A EXPERIÊNCIA DE UMA METODOLOGIA PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DE JOVENS AGENTES CULTURAIS Marcelo Rangel1 Bruna Távora2 RESUMO: O presente trabalho relata a experiência que vem sendo desenvolvida no projeto Japaratuba em Rede: Juventude, Cultura e Cadeias Produtivas que atua na integração de jovens agentes culturais da cidade de Japaratuba, Sergipe, através do fortalecimento de suas potencialidades e habilidades. Isto, por meio da educação profissional em gestão cultural, comunicação & cultura digital e criatividade. Com foco no fortalecimento das identidades culturais dos participantes e na manutenção do patrimônio cultural de Japaratuba, a iniciativa busca qualificar profissionalmente, dentro da cadeia produtiva do setor cultural, jovens atuantes de movimentos culturais. PALAVRAS-CHAVE: gestão cultural, educação, cadeias produtivas

1. INTRODUÇÃO Marcada por uma forte concentração nos pólos de produção e distribuição, os bens culturais da sociedade têm sido produzidos sob orientações fortemente mercadológicas. A fruição de bens culturais de comunidades de todo o Brasil é uma mescla entre produções ancoradas nas práticas culturais locais e aqueles produtos advindos dos grandes centros e escoados pelas mídias massivas, como o rádio e a TV. Às expressões culturais locais se juntam bens simbólicos vindos desde os centros e carregados de significados que, muitas vezes, estão distantes do cotidiano e do dia-a-dia de comunidades quilombolas, ribeirinhas, rurais de todo o Brasil. Embora seja uma tendência geral dos processos sociais, a produção cultural fortemente industrializada se estabelece como problemática pela natureza destes bens. MARTIN-BARBERO (1997) explica que os bens culturais são bens simbólicos que funcionam como elementos de Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/Itaú Cultural. Diretor de Programas e Projetos do Instituto Banese/Museu da Gente Sergipana. Email: [email protected] 2 Mestre em Comunicação e Sociedade pela UFS, especialista em Mídias Digitais pela FANESE. Professora substituta do curso de Comunicação Social da UFS, membro do grupo de pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS). E-mail: [email protected] 1

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mediação da vida das pessoas e pautam as relações sociais do homem com suas comunidades, com suas culturas e entre si. Embora disputem com outras referências culturais próprias das comunidades, estes bens produzidos industrialmente têm pautado, de maneira ampla, as referências culturais da sociedade e, tem contribuído para o enfraquecimento de polos locais de produção e distribuição cultural e para o enfraquecimento do sentimento de pertencimento cultural de grupos com suas comunidades (HALL, 2005). Esse conteúdo massivo, por se estruturar de maneira organizada e em escala global, muitas vezes, representa a maioria das referências as quais as comunidades têm acesso, enfraquecendo as práticas locais e consolidando elementos simbólicos que tem baixa referência com os pontos regionais/locais. Frente a essa realidade, grupos e movimentos sociais ao redor do globo tem se apropriado de estratégias e ferramentas de produção para viabilizarem a produção cultural de suas comunidades. Estas práticas ora funcionam incorporando a lógica predatória do mercado cultural, ora se configuram como ferramentas de apropriação social (NEUMAN, 2010) e são produzidas em contextos de atuação cultural com foco no desenvolvimento local e na emancipação humana dos grupos e seu entorno. Embora se configurem de maneira dispersa na paisagem cultural consolidada pela indústria da cultura, esta produção cultural advinda das práticas das comunidades tem sido responsável por manter vivas expressões tradicionais e seculares de territórios. No entanto, fazer frente aos processos massivos e industriais dos bens simbólicos se configura como desafiador já que essas comunidades apresentam uma população vulnerável socialmente, com baixa renda econômica, baixa escolaridade, reduzida educação e qualificação profissional e uma cadeia produtiva da cultura dispersa e organizada de modo aleatório. A partir da compreensão desta realidade, o projeto Japaratuba em Rede: Juventude, Cultura e Cadeias Produtivas pretendeu fazer frente a estes desafios e integrar uma rede local de produção cultural. Tem o objetivo de contribuir para a formação e educação profissional da juventude participante do movimento cultural local e contribuir para o fortalecimento de suas práticas culturais, para assim possibilitar a articulação de um pólo produtor de cultura capaz de remunerar os seus agentes, movimentar a economia e sustentar econômica e culturalmente as expressões já existentes na região. 2. A MATRIZ CULTURAL EM JAPARATUBA O município de Japaratuba, localizado a 56km de Aracaju, capital de Sergipe, no nordeste do Brasil, tem área de 364,899 km2, população de 16.874 habitantes (IBGE, 2010), sendo que 53% vivem nas áreas rurais, segundo dados do Sistema de Informação de Atenção Básica de 2010. A densidade demográfica é de 39,13 habitantes por Km², com renda per capita média de R$ 74,65. A população pratica uma agricultura de subsistência e ocupa-se de serviços tem-

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porários, sendo a administração pública responsável pela maior parte de empregos ofertados à população economicamente ativa. Quanto aos jovens, dados do Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil 2013, realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), informam que apenas 30% dessa população finalizou a matriz educacional do ensino médio e, assim como a tendência geral, também na juventude a taxa de empregabilidade se concentranos serviços informais e na administração pública. A cidade de Japaratuba guarda em sua história e tradição muito das culturas indígena, portuguesa e, sobretudo, negra. Trata-se de um dos mais ricos celeiros de manifestações tradicionais da cultura popular de Sergipe. Apresenta manifestações culturais que reverberam o passado e garantem, no presente, uma permanente interação entre as gerações, mantendo a memória cultural das comunidades viva e garantindo a reprodução simbólica de suas culturas. Japaratuba é uma usina de tradições e alegorias. A riqueza cultural de Japaratuba tem raízes importantes que contam a história de um povo através das suas danças, cantos, gestos e ritmos, aliados a uma forte religiosidade que presta homenagens aos seus santos e crenças (BARRETO, 2013) O Censo artístico-cultural (2013) do município, realizado pela Prefeitura Municipal de Japaratuba, 2013 confirma essa realidade: Modalidade 1 GRUPOS FOLCLÓRICOS & PARAFOLCLÓRICOS

Quantidade 26

2 3 4

TEATROS POETAS GRUPOS DE DANÇAS & AFINS

10 31 31

5 6 7 8 TOTAL

BANDAS FILARMÔNICAS & MARCIAIS BANDAS, MUSICAIS & AFINS. GINÁSTICA & ARTES MARCIAIS QUADRILHAS JUNINAS

10 36 03 11 154

Somado aos grupos catalogados e expostos acima, a cidade ainda apresenta festas tradicionais seculares, como por exemplo, a Festa das Cabacinhas, a Coroação da Rainha do Cacumbi, a Festa de Santos Reis e São Benedito, dentre outras. Acrescenta-se a isso, a recente apropriação das referências artísticas de Artur Bispo do Rosário pelos artistas e moradores da região, que a partir da transferência de seus restos mortais para a cidade, se configurou como referencial simbólico para os cidadãos. Isto impulsionou, nos últimos anos, a criação de festivais de arte, além de uma produção cultural que vem se nutrindo de sua memória artística e cultural.

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Além disso, entidades organizadas também são identificadas no município como o Ponto de Cultura Caatingart, no povoado São José, a Associação de Catadoras de Mangaba do Povoado Porteiras, a Cooperativa Mista dos Agricultores Familiares do Assentamento Caraíbas - Doce Lar (Coomafac), a Associação Quilombola da comunidade Patioba, na comunidade tradicional de quilombolas Patioba, que recebeu a Certidão de auto reconhecimento sob o número de 06/2006, emitida pela Fundação Cultural Palmares e publicada em Diário Oficial da União em 12 de maio de 2005. Nesse sentido, a realidade em que o projeto atua apresenta fortes registros de expressão e organização culturais. No entanto, por não deterem ferramentas de educação profissional que possibilitem a sustentabilidade dos processos culturais, muitos grupos apresentam déficit de apoio e tem suas práticas e expressões culturais ameaçadas pela concepção industrial de produção cultural da nossa sociedade. Na perspectiva do local de atuação deste projeto, o que pode ser visto é o desenho de uma realidade onde, embora a vitalidade cultural da região seja facilmente identificada, a organização das cadeias produtivas da cultura apresenta-se desestruturada e sem promover um retorno sociocultural equivalente a sua capacidade para o município e seus habitantes. 3. QUALIFICAÇÃO PARA A PRODUÇÃO CULTURAL Assim, o projeto Japaratuba em Rede: Juventude, Cultura e Cadeias Produtivas foi contemplado para patrocínio por meio da seleção pública Integração Comunidades Petrobras 2013 Nordeste, na linha programática Educação para Qualificação Profissional. Com tempo de 2 anos para execução, configura-se como uma proposta de formação, educação profissional e integração de jovens agentes culturais de baixa renda de Japaratuba atuantes na cadeia produtiva da cultura. Realizado pelo Instituto Banese, associação sem fins lucrativos criada e mantida com recursos oriundos do Banco do Estado de Sergipe e suas empresas relacionadas, voltada para o desenvolvimento de ações de responsabilidade socioambiental através de apoio e/ou realização de projetos em sintonia com políticas públicas, com destaque para a promoção da cultura. Entre suas ações, a mais destacada é a gestão do Museu da Gente Sergipana, voltado para a promoção do patrimônio cultural de Sergipe através de instalações em multimídia interativa e exposições de curta duração. Inaugurado em novembro de 2011, já recebeu mais de 300.000 visitantes, de diferentes idades e origens, cerca de 100 mil estudantes de todo o estado de Sergipe e uma média de 2.000 viajantes por mês. Através da integração de jovens de comunidades da cidade de Japaratuba procura-se destacar as potencialidades, as vitalidades culturais e a ênfase no fortalecimento das identidades culturais (HALL, 2005) dos participantes. Assim, estão sendo formados para a educação profis-

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sional no campo cultural jovens atuantes em movimentos culturais, na perspectiva de qualificar profissionalmente - dentro da cadeia produtiva do setor cultural - o grupo do qual os jovens originalmente participam. Sua área de abrangência corresponde à cidade de Japaratuba incluindo suas comunidades e povoados. A proposta inicial previu a participação direta de 50 jovens, e indiretamente, de suas famílias, suas comunidades e dos grupos artísticos da região que tem na manutenção de suas práticas culturais suas formas de reprodução simbólica do mundo da vida e são os responsáveis por manterem vivas as expressões culturais locais e regionais de Japaratuba. São jovens que atuam em movimentos culturais e, em paralelo, desenvolvem outras atividades para sustento econômico. Com dificuldades para sustentar economicamente o pulsante movimento que se desenvolve no local, muitos grupos se extinguem ou se mantém dependentes de financiamentos aleatórios ou tem acesso limitado às políticas públicas que possam garantir a manutenção de suas práticas e expressões culturais. Em contraponto a essa situação, o projeto tem buscado contribuir para o fortalecimento e sustentabilidade destas práticas por meio da aprendizagem e implementação de metodologias participativas de produção cultural e de auto-organização dos grupos. Isto para proporcionar espaços e educação profissional ancorados na cooperação, responsabilidade e respeito ao patrimônio cultural da cidade. Em linhas gerais, pretende se estabelecer como um espaço de aprendizagem de práticas de comercialização, financiamento, criação artística e gestão cultural, tendo como objetivo final a criação de uma linha de produtos de comercialização de moda, decoração & ambientação e utilitários inspirados nas referências culturais da cidade. Ao final da execução do projeto, espera-se obter como resultados uma profissionalização da cadeia produtiva da cultura na região, através do lançamento de um selo de comercialização que possa, no futuro, viabilizar uma melhora econômica dos participantes, da realização de rodada de negócio e visitas técnicas de intercâmbio de experiências e da educação profissional destes jovens para uma gestão cultural não predatória, cooperada e sustentável. Além destes benefícios, o projeto visa fortalecer a apropriação social (NEUMAN, 2010) de ferramentas, práticas e técnicas pelos participantes de modo que eles possam participar ativamente das mudanças e dos rumos da produção cultural de suas comunidades. 4. METODOLOGIA De forma participativa e interdisciplinar, prioriza-se o trabalho coletivo e solidário, a cooperação e a auto-gestão dos processos culturais, sendo flexível e adaptável à realidade e às demandas das(os) participantes. O trabalho foi iniciado em outubro de 2014, em processo de mobilização social por meio de reuniões abertas de apresentação do projeto, em articulação com órgãos de gestão de políticas

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para a cultura e juventude do município, associações e grupos culturais da cidade que resultou no cadastramento de 146 jovens. Ao longo de sua realização, alguns jovens afastaram-se do projeto por questões pessoais (dificuldade de integração, desmotivação, trabalho, problemas familiares, etc). Outros, mesmo com redução da frequência por questões pessoais (trabalho, estudos, dificuldades pessoais, etc), procuram não se desligar do projeto, participando de algumas atividades para assim manter seus laços com o projeto e o grupo. Do total de selecionados, o projeto envolve no momento 43 participantes, oriundos da sede e dos povoados. Mapa de povoados participantes do projeto.

Elaboração própria.

Após a etapa inicial, os jovens participaram de uma oficina de mapeamento de identidades culturais, conduzida pela Prof. Dra. Maria Augusta Mundim Vargas, professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Foi realizado um diagnóstico participativo, um levantamento das festas, saberes e tradições, com ênfase na memória de símbolos e referenciais culturais, bem como estímulo ao sentimento de pertencimento e à coesão social, através da valorização das expressões culturais 1424

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da cidade. O resultado deste trabalho inspirou a produção da cartografia cultural de Japaratuba, disponível em: www.japaratubaemrede.wix.com/japaratuba-em-rede. A partir deste mapeamento aberto, fruto do enredamento de agentes e experiências, foram desenvolvidas aulas práticas com foco em duas linhas de atuação: a) oficinas de criatividade; e b) oficinas de gestão cultural associativa e participativa. As oficinas de gestão cultural associativa e participativa foram iniciadas em um módulo sobre produção colaborativa de eventos visando o planejamento e realização de uma feira cultural na cidade, denominada pelos participantes como I Mostra Cultura em Rede. Neste módulo, foram apresentados temas como prospecção de apoio e patrocínio, técnicas de comunicação, promoção, divulgação e avaliação de eventos, além da produção de infraestrutura para realização da mostra. A I Mostra Cultura em Rede foi organizada sob a supervisão da equipe técnica, e apresentou um cortejo cultural pelas ruas da sede do município, mostra de produtos de diferentes comunidades e apresentações culturais em diferentes linguagens. A perspectiva de apresentar o trabalho coletivo, com diferentes comunidades em integração, como possibilidade de ação, movimentou a sede do município e foi prestigiada por autoridades locais e por moradores de diferentes regiões da cidade. Após a mostra, a qualificação dos jovens agentes culturais foi aprofundada em um trabalho de introdução à gestão cultural, envolvendo noções de cultura e gestão, empreendedorismo e trabalho colaborativo. Foram introduzidos conhecimentos sobre a interface entre cultura e mercado, como pensar a equipe e o projeto, informações sobre espaços e equipamentos culturais e as habilidades e saberes do trabalho em cada frente da gestão cultural. Promovemos ainda debates e exibições de filmes para propor reflexões sobre hábitos, gostos e consumo cultural, que geraram uma pesquisa de hábitos e gostos culturais de Japaratuba, em que os participantes entrevistaram os comerciantes e frequentadores da Feira de Japaratuba, realizada tradicionalmente aos sábados. As oficinas de criatividade foram idealizadas como espaço de aprendizagem coletiva para a produção de itens que comporão um selo de comercialização inspirado nas referências culturais da cidade de Japaratuba, como a arte de Arthur Bispo do Rosário, as danças populares como o Guerreiro, o Cacumbi, o Maracatu, as quadrilhas juninas, o artesanato em palha e cipó, os bordados dentre outros. Conduzidas pela Profa. Dra. Germana Araújo, do curso de design da Universidade Federal de Sergipe (UFS), foram apresentadas dimensões simbólica, estética e prática de objetos e produtos de design e foi discutido o que cada comunidade pode produzir para potencializar a relação de mercado da outra comunidade, buscando ícones locais que pudessem se desdobrar em sinais gráficos para a configuração de objetos/serviços culturais e comercializáveis.

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Em seguida, a artista plástica Claudia Oliveira (Claudia Nên), graduada em Educação Artística (Artes Visuais) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e pós-graduada em Cultura e Criação pelo SENAC-SE, orientou a produção de versões do Manto de Artur Bispo do Rosário com as referências culturais da cidade e suas comunidades/povoados, bem como orientação do olhar para a produção de pinturas de fachadas de casas históricas de Japaratuba. Ainda neste eixo, foram ofertados cursos profissionalizantes em Xilogravura e Serigrafia pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial de Sergipe (SENAC-SE). Estas ações desembocaram na produção de objetos de: a) moda, b) decoração e ambientação e c) utilitários. 5. DIÁLOGOS, INTERCÂMBIOS E POLÍTICAS PÚBLICAS Durante todo este processo, foram realizadas ações de interação com outros jovens, como os realizadores do Festival Culturarte, na cidade vizinha, Pirambu, com o objetivo de trocar experiências na elaboração de eventos culturais protagonizados por jovens de locais próximos. Também participaram de rodas de diálogo com jovens que tem exemplos para apresentar, como a conversa com Julio Andrade, líder da banda The Baggios, morador da cidade de São Cristóvão (SE). A atividade teve o objetivo de apresentar a trajetória e as estratégias de ação de uma banda sergipana com alcance nacional e internacional. Devido ao intenso diálogo com a Secretaria Municipal de Juventude, Esporte e Lazer, que nos dá o suporte necessário para consolidar o apoio da gestão pública local para a realização do projeto, e na perspectiva de fortalecer a ideia de interagir e atuar nas políticas públicas locais como possibilidade de ação na ação cultural, fomos convidados para atuar na Conferência Municipal de Políticas para Juventude. Do grupo de jovens participantes, 3 foram escolhidos como delegados para a Conferência Estadual. Ainda em relação às trocas de experiências, a Visita Técnica “de Jovem a Jovem” à Fundação Casa Grande/Memorial do Homem Cariri, na cidade de Nova Olinda- CE, proporcionou ao grupo sua experiência mais marcante, pela imersão de 3 dias em um contexto caracterizado pela gestão cultural participativa e sustentável, conduzida por jovens. Nesta viagem, conhecemos todas as frentes de atuação da Fundação (TV Casa Grande, rádio comunitária, agência de turismo de base comunitária, editora, biblioteca, gibiteca) e participamos da Mostra Cine Cariri, produzida pelos jovens integrantes da fundação. Além disso, visitamos equipamentos culturais da região e conversamos com o célebre artesão Mestre Espedito Seleiro sobre sua história, motivações e inspirações para a produção de suas peças, hoje consagradas até internacionalmente. 6. ESPAÇOS DE APRENDIZAGEM Após a introdução geral aos dois focos centrais do projeto, aprofundamos a ação através da divisão do grupo em 3 frentes de ação: criatividade/produção criativa, gestão cultural e

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comunicação & cultura digital. Os participantes se dividiram de acordo com suas habilidades e identificações pessoais, e propusemos a cada um dos grupos um trabalho dirigido para uma segunda ação coletiva, a II Mostra Cultura em Rede, a ser realizada dentro do Festival de Artes Arthur Bispo do Rosário, que acontece tradicionalmente em janeiro, na Festa de Santos Reis e São Benedito do município. A equipe de Gestão Cultural fez reflexões sobre o fazer cultural e buscou ampliar as referências em ação cultural local, aprofundando a análise sobre a realidade cultural de Japaratuba por meio do aprimoramento da pesquisa de hábitos e gostos culturais, além do desenho de atividades para a referida mostra. Estas atividades foram conduzidas pelo Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Ivan Masafret, que atua na elaboração, gestão e execução de projetos sociais e culturais e é consultor e facilitador em gestão e elaboração de projetos culturais e sociais. O grupo de Criatividade trabalhou na confecção dos artigos da linha de produtos inspirados nas referências culturais da cidade e no aprimoramento de técnicas de pintura, impressão e bordados. Apropriando-se do resultado dos cursos de xilogravura e serigrafia, foram produzidas bolsas e camisas e gerados os primeiros protótipos de objetos de decoração & ambientação, moda e utilitários. As ações foram coordenadas e executadas por Claudia Nên, com apoio de Ilma Santos, artista plástica e produtora cultural, graduada em Artes Visuais pela UFS. A oficina de Comunicação & Cultura Digital, conduzida por Aline Braga, jornalista graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais com atuação em mídias digitais, foi desenvolvida no sentido de habilitar os jovens na utilização de ferramentas de comunicação digital. Além de instrumentalizar os jovens no uso das mídias digitais para a divulgação dos produtos e ações gerados através do projeto e do patrimônio cultural de Japaratuba, esta oficina contempla uma análise crítica da cultura e propõe saídas coletivas para problemáticas existentes. Como forma de exercício prático, antes da II Mostra Cultura em Rede o grupo participou de uma Feira Cultural promovida pela Associação de Catadoras de Mangaba do Povoado Porteiras (Japaratuba-SE), da qual fazem parte alguns dos jovens. Nela, os alunos de gestão cultural promoveram uma mostra de curtas infantis, os participantes do grupo de comunicação & cultura digital exercitaram técnicas de cobertura de eventos, e os integrantes do grupo de criatividade apresentaram alguns produtos em fase de finalização. Concomitantemente a este trabalho segmentado, periodicamente os grupos foram reunidos para avaliação de atividades, integração e planejamento da II Mostra Cultura em Rede, realizada entre os dias 04 e 07 de janeiro de 2016, que envolveu exposições de artes visuais e de produtos de moda, decoração & ambientação e utilitários produzidos no escopo do projeto, apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos, mostras de cinema, biblioteca volante (ofertada graças a parceria com o Sesc-SE) e mini-curso, conforme a programação a seguir exposta.

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04 de janeiro (Segunda-feira) 9h às 18h – BiblioSesc Local: Praça da Igreja Matriz 17h – Abertura da exposição ‘Cultura em Rede’, com obras de artistas sergipanos e produtos gerados nas oficinas do Projeto Japaratuba em Rede Local: Centro Social Dona Janoca 05 de janeiro (Terça-feira) 9h às 18h – BiblioSesc Local: Praça da Igreja Matriz   14h – Apresentação da pesquisa ‘Hábitos e Gostos Culturais de Japaratuba’ na Jornada Acadêmica Artur Bispo do Rosário Local: Pólo Universidade Aberta do Brasil (UAB)/UFS   16h às 19h – Exposição ‘Cultura em Rede’, com artes visuais e produtos gerados nas oficinas do Projeto Japaratuba em Rede Local: Centro Social Dona Janoca   06 de janeiro (Quarta-feira)  8h – Mesa Redonda: Vivências e Experiências, na Jornada Acadêmica Arthur Bispo do Rosário Participantes: Marcelo Rangel e Bruna Távora, coordenadores do Projeto Japaratuba em Rede Local: Igreja Matriz   9h às 18h – BiblioSesc Local: Praça da Igreja Matriz   15h – Cine Cultura em Rede: curtas da Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis Local: Câmara de Vereadores de Japaratuba   16h às 19h – Exposição ‘Cultura em Rede’, com artes visuais e produtos gerados nas oficinas do Projeto Japaratuba em Rede Local: Centro Social Dona Janoca  

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07 de janeiro (Quinta-feira) 9h – Mini-curso História das Artes Visuais em Sergipe, com Prof. Marcelo Uchoa (CODAP/ UFS) Aberto ao Público Local: Centro Social Dona Janoca   9h às 18h – BiblioSesc Local: Praça da Igreja Matriz   16h às 19h – Exposição ‘Cultura em Rede’, com artes visuais e produtos gerados nas oficinas do Projeto Japaratuba em Rede Local: Centro Social Dona Janoca   17h – Cine Cultura em Rede: ‘Vou Rifar Meu Coração’, de Ana Rieper Roda de conversa com Raphael Borges, integrante da equipe do filme Local: Câmara de Vereadores A diversidade de atividades foi planejada para enriquecer a programação do Festival de Artes Arthur Bispo do Rosário. Deste modo, procuramos mostrar na prática como a diversidade da oferta de bens e serviços culturais pode produzir resultados significativos para o empoderamento do grupo e para a vitalidade cultural local. Os jovens atuaram em todo o processo de produção, mobilização popular e divulgação das ações, sob a coordenação dos instrutores e da equipe técnica do projeto e de ação educativa do Museu da Gente Sergipana. Durante a mostra, também foi realizada uma visita de familiarização (FAMTOUR), com jornalistas e produtores culturais de Aracaju, para proporcionar visibilidade às ações do projeto e à cidade e sua diversidade cultural, que geraram inserções em mídia espontânea com destaque para os jovens agentes culturais. Estes se envolveram em ações de divulgação, acompanharam debates acadêmicos, aulas abertas e rodas de conversa, ampliando seu repertório cultural e o relacionamento com a comunidade e os gestores locais. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS As atividades desenvolvidas neste projeto possuem como característica fundamental a inclusão social e integração comunitária da região, a partir de ações formativas e de espaços de aprendizagem que são desenvolvidas visando colaborar para a educação profissional dos jovens. De um modo geral, já percebemos maior coesão do grupo participante, um reconhecimento da comunidade local sobre a relevância das ações do projeto, observada a partir da par-

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ticipação de moradores da cidade em nossas atividades e convites para participação em outras ações locais. Nas atividades coletivas, fomentamos a integração dos jovens, a participação da população local e os laços culturais e sociais com as comunidades de Japaratuba, através da participação em eventos da cidade e do diálogo com agentes externos, parceiros e coletivos culturais, escolas e comunidades. Em conjunto, tais atividades têm materializado e fortalecido a proposta de criação do “espaço de aprendizagem” previsto no escopo do projeto. Além do aprendizado de novas possibilidades de geração de renda, os cursos profissionalizantes do SENAC têm possibilitado que alguns alunos exercitem o que aprenderam fora do espaço do projeto. Isto pode ser observado na confecção de faixas pintadas à mão (técnica aprendida na oficina de serigrafia) para divulgação do comércio familiar por um jovem do povoado Sibalde e na divulgação da feira cultural das catadoras de mangaba em faixa pintada por aluno da comunidade de Porteiras. O resultado do curso de xilogravura do Senac é notável do ponto de vista estético, nos trabalhos produzidos com esmero de traços e sensibilidade artística, inspirados nas referências culturais do município, fato salientado até mesmo pelo instrutor do curso, Elias Santos, e pela coordenadora pedagógica do Senac, Maria José, em reuniões com a coordenação do projeto. Por observarmos a necessidade de maior compreensão coletiva e individual sobre o processo de aprendizagem e do trabalho em equipe, passamos a utilizar métodos de avaliação aberta e coletiva, em que foram apontados pelo grupo, destacadamente, necessidades de melhoria de relações interpessoais e de maior envolvimento dos participantes. Deste modo, procuramos demonstrar a importância do exercício da reflexão e da avaliação no mundo do trabalho cultural, na perspectiva de construção de um trabalho coletivo, solidário, responsável, baseado na cooperação e na gestão participativa. Para o próximo ciclo, marcado pela finalização do projeto com o lançamento da linha de produtos inspirados nas referências culturais da cidade no Museu da Gente Sergipana, pretende-se aprofundar o conteúdo programático dos 3 grupos de trabalho, de modo a habilitar os jovens ativistas culturais nas etapas da cadeia produtiva de produção cultural, da pré-produção até a distribuição. Um mapeamento dos elos da cadeia produtiva local da cultura será desenvolvido para provocar uma rede de articulação e contatos que possibilite o fortalecimento das cadeias produtivas da cultura durante e após o trabalho do projeto, de modo a promover a percepção crítica sobre cultura e formas predatórias de trabalho cultural. Através de aulas teóricas e práticas, alternando-se entre aulas específicas para os grupos e outras envolvendo todos os participantes e até mesmo a comunidade em geral, visamos o desenvolvimento local através da cultura, incentivando o comércio justo, as parcerias e a sustentabilidade.

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Tendo em vista a análise sobre as possíveis contribuições da cultura para o desenvolvimento, Martinell (2011) avalia que a formação de capacidades dos atores da vida cultural pode ser vista como um primeiro nível do processo de desenvolvimento. Portanto, orientamos nossa ação pela qualificação de competências e capacidades que o mesmo autor (2011b) aponta como habilidades, atitudes e sensibilidades necessárias para o exercício profissional do gestor cultural. Para que assim, estes jovens agentes culturais possam contribuir para o desenvolvimento de seu município através das artes e das culturas que praticam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRETO, Luiz Antônio. Japaratuba: da Origem ao século XIX. Comentários sobre livro. Disponível em http://www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=61645&titulo=Luis_Antonio_Barreto acesso em 19 de setembro de 2013 às 8h56min. CABRAL, Eduardo Carvalho. Japaratuba: Da origem ao século XIX. Aracaju: Gráfica Triunfo, 2007  Catálogo: Sergipe, Cultura e Diversidade. Conhecer, Reconhecer e Valorizar. Governo de Sergipe, Aracaju. 2010 Censo Artístico-Cultural do Município de Japaratuba. Secretaria de Cultura, Turismo, Juventude e Desporto. 2013 HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios as mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. MARTINEL, Alphons. La Gestión Cultural: Singularidad professional y Perspectivas de Futuro. Espanha, Universidad de Girona, 2011. MARTINEL, Alphons. Aportaciones de la cultura al desarrollo y a la lucha contra la pobreza. Documento para uso de la Maestría en Desarrollo y Cultura. UTB, Espanha, 2011. MENDONÇA, César. Política pública cultural e desenvolvimento local: análise do ponto de cultura Estrela de Ouro de Aliança. In: Orgs: BARBOSA, Frederico; CALABRE, Lia. Pontos de Cultura – Olhares sobre o programa Cultura Viva. Brasília, IPEA, 2011 NEUMAN, Maria Isabel. Apropriación, tecnologia y movimientos sociales em America Latina. In BOLAÑO, JESUS, SANTOS (orgs). Comunicación, Educación e Movimientos Sociales em America Latina. 1ª Ed, Brasília: Casa das Musas, 2010. OLIVEIRA, Lúcia. Ação e Experimentação: o caso da Fundação Casa Grande. In: Políticas Culturais em Revista, 2(2), p.60-71, 2009 PEREIRA, Daniel; NETO, Gaudêncio; TELES, Glauberter. Patioba: memórias e identidades. Monografia apresentada no curso de História da Universidade Tiradentes, 2009

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O SURGIMENTO DOS CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO UNIVERSITÁRIOS E SUA RELAÇÃO COM A PNC DE 19751 Márcia T. Cavalcanti2 RESUMO: Nos anos de 1970 se configura um contexto político social particular, no Brasil, que permite o surgimento dos centros de documentação, especialmente nos espaços universitários. Podemos identificar, neste momento, o surgimento de centros de documentação voltados para a pesquisa histórica, como, por exemplo, o Arquivo Edgar Leuenroth/AEL. Acreditamos que diversos fatores, em conjunto, colaboraram para que esse contexto se configurasse, e que estariam diretamente relacionados não só à academia, mas também aos cenários social, cultural e político do período. Dentre estes fatores destacamos a publicação da Política Nacional de Cultura (PNC) em 1975. PALAVRAS-CHAVE: centros de documentação; políticas culturais; PNC

1. O SURGIMENTO DOS CENTROS DE DOCUMENTAÇÃO NAS UNIVERSIDADES Nos anos de 1970 se configura um contexto político social particular, no Brasil, que permite o surgimento dos centros de documentação, especialmente nos espaços universitários. Podemos identificar, neste momento, o surgimento de centros de documentação voltados para a pesquisa histórica, como, por exemplo, o Arquivo Edgar Leuenroth/AEL, que foi o primeiro arquivo brasileiro de história social a se constituir, no ano de 1974, durante o período do governo civil militar. Acreditamos que diversos fatores, em conjunto, colaboraram para que esse contexto se configurasse, fatores estes que estariam diretamente relacionados não só à academia, mas também aos cenários social, cultural e político do período. Segundo Moreira (1990), a década de 1960 foi marcada pela pesquisa histórica realizada pelos chamados brasilianistas, os pesquisadores estrangeiros que fizeram um extenso levantamento sobre a História do Brasil em apenas uma década, financiados por agências de fomento e universidades americanas.

Este artigo se originou da tese de doutorado defendida em 2014, no IBICT/UFRJ. Doutora em Ciência da Informação. Bolsista CNPq-PCI/IEN. Integrante do GP Informação, Memória e Sociedade. [email protected] 1 2

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Motivadas inicialmente pela surpresa da revolução cubana (1959) - que desperta as agências de financiamento e as universidades norte-americanas para a necessidade de conhecer a América Latina e, assim, melhor avaliar a política externa dos EUA - grandes levas de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, e, principalmente, historiadores, passam a vir para cá com o objetivo de explicar a história política e econômica do país, estabelecendo, assim, seu perfil como nação. (MOREIRA, 1990, p.66) Esse interesse estadunidense pela América Latina pode ser analisado como uma das formas não só de conhecer esse novo horizonte que se descortina, mas também implementar modos de se impor como modelo de nação, especialmente econômica e política, aos então subdesenvolvidos países latino-americanos. Longe de nos voltarmos para esta questão, o que nos interessa é perceber que o governo que se institui a partir de 1964, de certa forma, também se utiliza dos meios acadêmicos para obter informação sobre sua população, sendo o viés da memória e de sua preservação uma forma eficaz de realização deste intento. Podemos ilustrar esta ideia a partir dos incentivos que ele passa a dar às universidades para a criação de centros de documentação que dessem suporte à pesquisa acadêmica em diferentes áreas, expressos em sua Política Nacional de Cultura. A temática dos brasilianistas nos é importante porque a partir de suas pesquisas passamos a tomar conhecimento dos diversos problemas que surgem no Brasil relacionados às pesquisas acadêmicas, dentre eles o que nos interessa é justamente a situação do acesso dos pesquisadores aos documentos necessários às suas pesquisas, e, consequentemente, à informação. Segundo Moreira (1990), além da própria deficiência nos cursos de formação universitários, voltados essencialmente para a formação de professores e não de pesquisadores, e a falta de uma estrutura financeira eficaz no que tange ao desempenho profissional, é preciso acrescentar a dificuldade de acesso aos documentos pelos pesquisadores brasileiros, principalmente pela inexistência de uma lei geral que regulamentasse o funcionamento dos arquivos. Mesmo para esses pesquisadores estrangeiros, a consulta a determinados documentos foi tão dificultosa quanto para os brasileiros, justamente pela quase inexistência de acervos documentais disponíveis organizados em espaços próprios e que permitissem o acesso à informação especializada. Para Moreira (1990), outra dificuldade relacionada à produção acadêmica no período inclui a própria condição de marginalidade a que foram confinados muitos pesquisadores após a implantação do governo militar, com a demissão de um número significativo de professores das universidades públicas. Segundo Moreira (1990), ao analisar a atuação do CNPq pode-se perceber que somente em 1966 as Ciências Sociais e Humanas foram incorporadas aos setores do conhecimento reconhecidos por este órgão, e somente em 1976 deixou de ser a área que menos recurso recebeu. Em 1975 o Programa de Apoio à Cultura (Procultura) direcionou recursos para a implementação

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de projetos na área de Ciências Sociais, visando a ampliação e o aperfeiçoamento dos programas de pós-graduação e a realização de pesquisas. Ainda a partir de 1975, esse movimento de apoio às ciências sociais foi reforçado com a nova política nacional de cultura definida pelo Ministério da Educação e Cultura, que, ao estabelecer a participação das universidades nas atividades de levantamento de acervos arquivísticos com valor histórico, estimulou, por seu lado, o surgimento de centros de documentação vinculados aos estabelecimentos federais de ensino. (MOREIRA, 1990, p.73) Ao falar dos centros de documentação não podemos deixar de abordar as questões relacionadas à memória nacional. Até a década de 1970 podemos afirmar, com certa margem de segurança, que a preocupação com a chamada memória documental, no Brasil, era restrita a algumas poucas pessoas e instituições. Com relação à pesquisa no campo da História, a memória (mal) preservada se relacionava a lugares como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e arquivos públicos, sempre com ênfase na documentação relativa à Colônia e ao Império. Novos interesses de pesquisa neste campo, que se volta para o período republicano, não encontravam retorno nas principais instituições de arquivo existentes, pois as fontes históricas tratadas e disponibilizadas para pesquisa eram escassas, além de evidenciarem a própria dificuldade em que estas instituições se encontravam com relação ao atendimento da demanda que surge por parte dos pesquisadores. Podemos supor que os pesquisadores ampliaram o interesse pela compreensão da sociedade brasileira e não se restringiram mais, ou apenas, a analisar ou buscar uma identidade nacional. Esta busca perpassava outros caminhos e temáticas, como as questões femininas, dos trabalhadores, do negro etc. Segundo Costa, O Arquivo Nacional, criado em 1838, e os arquivos públicos estaduais e municipais, organizados somente após o advento da República, apresentavam problemas de natureza diversa, que dificultavam o desenvolvimento de suas atribuições de recolher, preservar e dar acesso aos documentos oriundos dos órgãos da administração pública A inexistência de um modelo sistêmico de arquivos, bem como a carência de recursos humanos e materiais contribuiu, entre outros fatores, para que os documentos gerados pelo poder público fossem descartados de forma arbitrária e recolhidos assistematicamente. Tal realidade dificultou e por vezes impediu o tratamento e acesso a um volume considerável de documentos, sobretudo os de períodos mais recentes. (COSTA et al, 1986 apud MOREIRA, 1990, p. 69) Portanto, as novas demandas da pesquisa histórica corroboraram a necessidade que passou a surgir de se preservar estes documentos, incluindo aí até mesmo os documentos privados (documentos particulares de indivíduos, famílias, grupos de interesse ou empresa), e também

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expos a falta de legislação e de uma política voltada para arquivos e para a preservação da memória nacional. Moreira (1990) identifica o surgimento dos centros de documentação ao longo da década de 1970 como uma resposta a essa necessidade, e reflexo até mesmo desta reconfiguração da ordem, pois eles tinham como objetivo principal, segundo a autora, a preservação dos documentos contemporâneos, principalmente os privados. Mas não podemos esquecer que em 1975 é publicada a Política Nacional de Cultura, que objetivava preservar o patrimônio artístico e histórico nacional, tendo os museus, bibliotecas e as diversas categorias de arquivos um papel importante para a preservação da cultura nacional. Como o governo propôs fazer isso? Ele passa a incentivar a preservação dos arquivos nacionais, estaduais ou locais, incluindo até mesmo os arquivos particulares, podendo estes arquivos ser incorporados aos arquivos oficiais. E vai além, destacando o papel das universidades neste processo e incentivando estas a criarem arquivos e centros de documentação. Segundo Knauss (2009), os centros de documentação universitários se constituem em uma espécie ímpar dentro do universo dos arquivos na atualidade. E sua unicidade decorre do fato de que surgem como núcleos de apoio à pesquisa, mas também pelo seu perfil diversificado, pois além de custodiarem diferentes tipos de acervos (museológicos, arquivísticos e bibliográficos), vão além e produzem instrumentos de pesquisa (bases de dados, guias etc.). Os centros de documentação criados nos ambientes universitários, frequentemente, ocupam um espaço deixado em aberto pelas instituições públicas. Além de preservarem os documentos privados, eles também acabam por resgatar documentos de valor histórico que estejam com sua integridade ameaçada, como documentos jurídicos, cartorários etc. Camargo (2003), analisando um texto de Sérgio Miceli de 1984, mostra como este chamou a atenção para um processo que ele nomeou de “estatização da cultura” no Brasil dos anos 1970, quando analisa as diferentes iniciativas do governo para a proteção do patrimônio cultural e do aparato institucional estatal que estendia seu alcance às diversas dimensões do ato cultural. Uma de suas principais constatações era a de que, ao contrário do que se poderia supor, não foi apenas o Ministério da Educação e Cultura (MEC) que, por força de suas atribuições, esteve envolvido nesse processo. A Secretaria de Planejamento da Presidência da República, o Ministério do Interior, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, entre outros, participaram ativamente de programas federais voltados para a criação cultural e, particularmente, para o desenvolvimento da vertente patrimonial de uma política nacional de cultura. Esse movimento foi acompanhado pelos estados e municípios brasileiros, que historicamente tendem a reproduzir o modelo federal em suas respectivas esferas de poder. O mundo empresarial, não somente pelo desenvolvimento da indústria cultural e pela prática do mecenato – que passou a ser estimulada pelo

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poder público –, também integrou esse conjunto de iniciativas, voltando-se para a sua própria memória e para a produção de uma história empresarial no Brasil. (CAMARGO, 2003, p.24-25) Na área das humanidades verifica-se que, desde a década de 1970, várias universidades partiram para a resolução de um dos principais problemas com os quais se deparava o pesquisador, que era a falta de acesso aos documentos necessários à realização da pesquisa. Isso ocorria tanto pela ausência de instituições voltadas para a preservação destes documentos como pelo descaso do poder público e instituições privadas que não destinavam, até então, recursos financeiros e humanos para a sua organização e preservação. A Política Nacional de Cultura (PNC) vem como uma resposta a esse impasse, publicada em 1975, além de recomendar a criação destes centros delegava as universidades a função de preservar e organizar estes acervos (CAMARGO, 2003). Os centros de documentação criados nas universidades, em especial nas áreas de humanidades, letras e artes, inicialmente não conseguiram reconhecimento e apoio como órgãos geradores de base informativa, acreditamos que o motivo tenha sido o fato de que naquele momento o modelo de desenvolvimento econômico do país priorizava o conhecimento gerado pela área tecnológica. Para que pudessem ser criados precisaram assumir também a função de preservação da memória, especialmente a memória regional (CAMARGO, 1999). O início da década de 1970 vê surgir no Brasil os primeiros centros de documentação voltados para a pesquisa histórica: o Centro de documentação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas-, Unicamp (1971); o Centro de Memória Social Brasileira, do Conjunto Universitário Cândido Mendes (1972), e o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (1973). (MOREIRA, 1990, p.66) Os motivos que deram origem a estes centros, combinados entre si, não são suficientes para explicar seu surgimento e sua proliferação, acreditamos que políticas públicas no campo da cultura, além da reforma na educação, também tenham ajudado para que estes espaços de memória se multiplicassem nas décadas de 1970/80. 2. O ESTADO E A CULTURA A atuação do Estado no setor cultural durante o período do governo militar foi muito mais profícua do que podemos imaginar, existindo uma preocupação e incentivos por parte dos diferentes governos instituídos ao longo do período (1964-1985), com a cultura tornando-se até mesmo um setor estratégico. Diferentes instituições dedicadas à cultura nacional são criadas, além de programas, documentos e campanhas. A construção da política cultural no governo militar seguiu os moldes da Doutrina da Escola Superior de Guerra (ESG), por ter sido um projeto nacional para o desenvolvimento

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do Brasil nos moldes defendidos pelas Forças Armadas (SILVA, 2001). A decisão do governo de estimular o desenvolvimento cultural fundamenta-se num conjunto de legislações, como a Constituição Federal e Decretos-Lei, sendo o de número 200, de 25.2.1967, em seu artigo 39, o que inclui a cultura como área de competência do Ministério da Educação e Cultura: SETOR SOCIAL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. I Educação; ensino (exceto o militar); magistério. II - Cultura - letras e artes. III - Patrimônio histórico, arqueológico, científico, cultural e artístico. IV - Desportos. (BRASIL, 1967, art.39) Essa atuação por parte do Estado na área da cultura resultou na criação, em 1975, de uma Política Nacional de Cultura (PNC), um programa político criado por Ney Braga, que estava à frente do antigo Ministério de Educação e Cultura durante o governo do General Geisel, pois ainda não existia um ministério apenas da cultura. Este documento pode ser visto como uma forma encontrada pelo governo de reconhecer de maneira oficial a necessidade da inclusão da cultura nos projetos de desenvolvimento previstos para o país, pois, de acordo com o discurso governamental do período, a construção do futuro de um país não se fundamenta apenas em alicerces materiais. Para isso, o Estado deve atuar no sentido de incentivar a produção de cultura e generalizar ao máximo seu consumo, entendendo cultura a partir de duas vertentes: como elemento de identidade nacional e como elemento criador de civilização. No ano de 1966 foi formada uma comissão com a função de apresentar sugestões para a reformulação cultural do país, que propõe a criação de um conselho como o Conselho Federal de Educação. Neste mesmo ano, em 12 de novembro, foi criado, sob a presidência de Castello Branco, o Conselho Federal de Cultura (CFC), pelo Decreto-Lei nº 74/1966, tendo o início de suas atividades em 1967 e seu funcionamento até 1990, quando da sua extinção. O objetivo da criação deste órgão era decidir sobre assuntos pertinentes às artes, às letras, às ciências e ao patrimônio histórico e artístico nacional, ou seja, institucionalizar a ação do Estado no setor cultural (MAIA, 2012, p.35). E suas atribuições principais eram a elaboração do Plano Nacional de Cultura e a formulação da política cultural nacional. Sua constituição se deu em quatro câmaras - Artes, Ciências Humanas, Letras e Patrimônio Histórico e Artístico - para deliberação dos assuntos de sua competência, e para decidir sobre matéria de caráter geral ocorriam reuniões em sessão. Além da elaboração do Plano Nacional de Cultura outras dezenove atribuições foram estabelecidas ao CFC, dentre elas: 1) formular a política cultural nacional; 2) articular-se com os órgãos federais, estaduais e municipais, bem como as Universidades e instituições culturais, de modo a assegurar a coordenação e a execução dos programas culturais; 3) promover a defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional; 4) conceder auxílios e subvenções às ins-

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tituições culturais oficiais e particulares de utilidade pública, tendo em vista a conservação de seu patrimônio artístico e a execução de projetos específicos para a difusão da cultura científica, literária e artística; 5) promover campanhas nacionais que visem ao desenvolvimento cultural e artístico; 6) manter atualizado o registro das instituições culturais e oficiais e particulares e dos professores e artistas que militam no campo das ciências, das letras e das artes; 7) reconhecer, para efeito de assistência e amparo através do Plano Nacional de Cultura, as instituições culturais do País, cujo reconhecimento se dará mediante solicitação da instituição interessada; 8) estimular a criação de Conselhos Estaduais de Cultura e propor convênios com esses órgãos, visando ao levantamento das necessidades regionais e locais, nos diferentes ramos profissionais, e ao desenvolvimento e integração da cultura no País; 9) elaborar o Plano Nacional da Cultura, com os recursos oriundos do Fundo Nacional da Educação, ou de outras fontes, orçamentárias ou não, colocadas ao seu alcance. (BRASIL, 1966, art.2) Ao lado da figura do Estado repressor vemos uma tentativa de recuperação de sua imagem no campo da cultura com a criação do CFC. No discurso de instalação do CFC o Presidente Castelo Branco declara que: Não estaria concluída a obra da Revolução no campo intelectual se, após trabalhos tão profícuos em benefício da educação, deixasse de se voltar para os problemas da cultura nacional. Representada pelo que através dos tempos se vai sedimentando nas bibliotecas, nos monumentos, nos museus, no teatro, no cinema e nas várias instituições culturais, é ela, naturalmente, nesse binômio educação e cultura, a parte mais tranquila e menos reivindicante. Poderia dizer que é a parte dos cabelos brancos, e, talvez, por isso, já segura do que fez e do que fará pelo Brasil. Cumpre, porém, dar-lhe principalmente, condições de preservação, e, portanto, de sobrevivência e evolução. (CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, 1975, p.21-22) Pelo conteúdo do decreto-lei de sua criação é possível percebermos que o objetivo do CFC, além da formulação de uma política cultural nacional, também se voltava para a preservação do patrimônio histórico e artístico. O que permitia a construção de uma identidade nacional e ao mesmo tempo a defesa de um determinado projeto político para o país, definido pelos militares e civis que o apoiaram, sendo instrumentos importantes incluídos neste projeto a cultura, a memória e a informação. Por força do decreto-lei de sua criação, o novo órgão do Ministério da Educação e Cultura tinha apenas o caráter normativo, consultivo e fiscalizador, tal como definido no seu Regimento. Na prática, o Conselho tornou-se encarregado pela distribuição das verbas; financiamento de instituições públicas e privadas do setor cultural; assessoramento ao ministro da Educação e Cultura; definição das áreas de atuação do Estado;

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realização de convênios com instituições culturais; elaboração de regulamentos e resoluções; organização de campanhas nacionais de cultura; e defesa do patrimônio cultural. (MAIA, 2012b, p.3) Foram feitos convênios com diferentes instituições voltadas para a defesa da cultura e do patrimônio cultural nacional objetivando a compra de materiais, equipamentos, restauro de fachadas. Estes convênios também buscavam garantir a essas instituições todas as condições indispensáveis para a implementação dos programas instituídos. Como uma destas instituições, as universidades aparecem com a função de coordenar e executar programas culturais. Apesar de aparentemente estarem em campos opostos na arena política e social durante o período do governo civil militar, estes dois agentes, universidade e governo, muitas vezes acabam por estabelecer alianças, traçando projetos comuns, que atendessem aos interesses de ambas as partes. Para promover a defesa e conservação do patrimônio o CFC também contava com a realização de convênios, existindo dentro do conselho a câmara para o patrimônio histórico e artístico nacional, sendo de competência desta câmara a deliberação de verbas oriundas do Ministério da Educação e Cultura para a manutenção de prédios e acervos documentais e bibliográficos dos Institutos Históricos e Geográficos. A concessão de “(...) auxílios e subvenções às instituições culturais oficiais e particulares de utilidade pública, tendo em vista a conservação de seu patrimônio artístico e a execução de projetos específicos para a difusão da cultura científica, literária e artística” (BRASIL, 1966, art.2) somente poderia ocorrer se a instituição solicitante estivesse registrada junto ao conselho. Além das obras arquitetônicas o CFC considerava como patrimônio nacional também os museus e as bibliotecas. No ano de 1975 foi criada a Política Nacional de Cultura (PNC), um documento elaborado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) que contou com a contribuição do Conselho Federal de Cultura. De acordo com as evidências de que dispomos, a elaboração e redação do documento enfim aprovado resultou de um trabalho coletivamente diluído entre os principais dirigentes culturais do MEC na época da gestão Ney Braga, mormente os ocupantes de cargos decisórios, como o prof. Manuel Diegues Jr., diretor do DAC; Roberto Parreira, gestor do DAC, prof. Carlos Alberto Direito, chefe de gabinete; ao lado de mentores da área cultural oficial, entre os quais, intelectuais eminentes do CFC, como por exemplo Josué Montello, Artur César Ferreira Reis, Clarival do Prado Valladares, Afonso Arinos de Melo Franco, Gilberto Freyre, entre outros. (MICELI, 1984, p.57, nota 11) O texto introdutório, assinado pelo Ministro Ney Braga, esclarece que a divulgação da PNC completa a elaboração de políticas específicas para as três áreas de atuação do MEC, ainda estando em fase de execução a Política Nacional Integrada da Educação e a Política Nacional de Educação Física e Desportos. Neste documento estão contidos:

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a) a concepção básica do que se entende por uma política de cultura; b) definir e situar, no tempo e espaço, a cultura brasileira; c) explicitar os fundamentos legais da ação do governo no campo cultural; d) traçar diretrizes que nortearão o trabalho do MEC; e) detalhar objetivos e componentes da Política Nacional de Cultura; f) exprimir ideias e programas; g) revelar as formas de ação. O objetivo central da ação do MEC consistia em “apoiar e incentivar as iniciativas culturais de indivíduos e grupos e zelar pelo patrimônio cultural da Nação, sem intervenção do Estado, para dirigir a cultura” (BRASIL, 1975, p.5). Podemos perceber neste trecho uma certa preocupação do ministro Ney Braga em se defender de qualquer tipo de acusação de tentativa de controle ou até mesmo de manipulação da produção cultural. Não podemos esquecer que na década de 1970 o Presidente Geisel inicia um período de abertura política em que a cultura assume um importante papel como espaço de diálogo entre os intelectuais e o regime militar, basta vermos os integrantes dos quadros do CFC e até mesmo os que contribuíram na formulação da PNC. Segundo Cohn (1984), a publicação da PNC em 1975 seria o ponto culminante de um processo que “percorreu toda a primeira metade da década, de busca de um equacionamento da cultura adequado ao regime político que se procurava consolidar” (COHN, 1984, p.87). Para ele, a busca de uma política nacional de cultura no período tem um objetivo bem definido: a codificação do controle sobre o processo cultural, já que no terreno da cultura o regime político se encontrava em posição de desvantagem, com uma relativa hegemonia cultural da esquerda no país. O lançamento da PNC vem consolidar a importância da necessidade de incluir a cultura nos planos de desenvolvimento nacional. A PNC esclarece que essa política (cultural) significa a presença do Estado como um elemento de estímulo e apoio às diferentes manifestações culturais e apresenta um conjunto de oito diretrizes que condicionam e orientam a ação do governo como instrumento de estímulo e formação de manifestações culturais: 1. o respeito as diferenciações regionais da cultura brasileira, oriundas da formação histórica e social do País, procurando relacioná-las em seu próprio contexto; 2. a proteção, a salvaguarda e a valorização do patrimônio histórico e artístico e ainda dos elementos tradicionais geralmente traduzidos em manifestações folclóricas e de artes populares, características de nossa personalidade cultural, expressando o próprio sentimento da nacionalidade; 3. o respeito à liberdade de criação, em todos os campos da cultura, fator precípuo para que esta possa desenvolver-se dentro das aptidões de cada um e através da vocação criativa do espírito humano; 4. o estímulo à criação nos diversos campos das letras, das artes e artesanato, das ciências e da tecnologia, bem como a outras

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expressões do espírito do homem brasileiro, visando à difusão desses valores através dos meios de comunicação de massa; 5. o apoio à formação de profissionais que contribua para desenvolver uma consciência nacional capaz de zelar e dar continuidade ao que é culturalmente nosso; 6. o incentivo aos instrumentos materiais, atuantes ou em potencial, para imprimir maior desenvolvimento à criação e à difusão das diferentes manifestações da cultura, tendo-se sempre em vista a salvaguarda dos nossos valores culturais, ameaçados pela imposição maciça, através dos novos meios de comunicação, dos valores estrangeiros; 7. a maior aproximação da cultura brasileira com a de outros povos, como elemento capaz de estimular a atividade criadora e, ao mesmo tempo, promover maior contato entre diferentes realidades nacionais, possibilitando assim o acolhimento do que representa criação de outros grupos humanos dentro da própria vocação brasileira, aberta aos mais amplos contatos e à compreensão do sentido pluralista da cultura contemporânea, em suas diversas expressões; 8. o desenvolvimento nacional não é puramente econômico, mas também sociocultural, ao abranger a plena participação de cada indivíduo como gerador e assimilador de cultura, contribuindo de maneira efetiva para elevar o nível de vida. (BRASIL, 1975, p.24-25) Ao final atribui a responsabilidade de coordenação destas ações por parte do Estado ao Ministério da Educação e Cultura, sendo que isto se dará através de dois órgãos especializados, o Conselho Federal de Cultura, normativo e incentivador, e o Departamento de Assuntos Culturais (DAC), ficando as unidades a este subordinadas ou vinculadas como órgãos executivos. Dentre os objetivos da Política Nacional de Cultura podemos apontar o de preservar os bens de valor cultural, tendo como meta resguardar o acervo constituído e manter viva a memória nacional, assegurando a perenidade da cultura brasileira. O desaparecimento do acervo cultural acumulado e o desinteresse pela contínua acumulação da cultura, segundo o documento, representa risco para a preservação da personalidade brasileira e, portanto, para a segurança nacional. Mas preservar não significa uma atitude de conservação e sim manter a vivência do povo em consonância com os valores vigentes. Segundo Miceli (1984), a noção de patrimônio presente na PNC envolve tanto o acervo associado à história dos grupos dirigentes como às tradições e costumes das classes populares (folclore ou populário). A parte do documento que cita a dificuldade encontrada na formação de profissionais com conhecimentos básicos específicos como um dos obstáculos existentes para dinamizar e desenvolver as atividades no âmbito da cultura pode ser relacionada com os incentivos promovidos pelo governo, via MEC e CNPq, na capacitação de profissionais tanto na formação básica quanto na superior, incluindo aí a pós-graduação. Ainda não existia no Brasil, antes do período do governo militar, um esforço articulado e com metas claras que ligasse o desenvolvimento socioeconômico ao conhecimento científico e tecnológico, e muito menos que relacionasse estes dois com a cultura. Mas a PNC deixa muito 1441

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claro, no item objetivo, que na estratégia do desenvolvimento a intensificação destes objetivos propostos representa uma das ações fundamentais. Para que o Brasil ocupe uma posição de vanguarda não são suficientes o desenvolvimento econômico, a ocupação do território, a industrialização, dentre outros. É necessário que ele desenvolva uma cultura vigorosa que lhe dê uma personalidade nacional forte e influente. Nesse rumo de concepções e na conformidade de nossa vocação democrática, a Política Nacional de Cultura entrelaça-se, como área de recobrimento, com as políticas de segurança e de desenvolvimento; significa, substancialmente, a presença do Estado como elemento de apoio e estímulo à integração do desenvolvimento cultural dentro do processo global de desenvolvimento brasileiro. (BRASIL, 1975, p.30) O documento apresenta nove componentes básicos entendidos como os elementos para a ação do Ministério da Educação e Cultura no setor. Dentre estes componentes, nos interessa explicitamente o de número 3: Revalidação do patrimônio histórico e científico brasileiro – Abrange a preservação do patrimônio artístico e histórico propriamente dito, e mais o paisagístico, o arqueológico e o etnográfico. O objetivo central é preservar os símbolos culturais de nossa história. Nessa área, desempenham também papel básico os museus, as bibliotecas e as diversas categorias de arquivos. (BRASIL, 1975, p.33) Aparece pela primeira vez no documento a menção à importância dos arquivos, além dos museus e bibliotecas, como órgãos necessários para a execução destes objetivos de preservação da cultura nacional. Os meios adotados pelo governo e considerados por ele como adequados para a execução destas medidas englobam ideias e programas que visem atender a uma lista de quinze itens. Dentre estes itens nos chama atenção o que pretende incentivar a preservação dos arquivos nacionais, estaduais ou locais, de modo particular os de caráter eclesiástico, além de incentivar a conservação de arquivos particulares ou a incorporação dos documentos conservados pelas famílias aos arquivos oficiais. f) incentivar a preservação dos arquivos nacionais, estaduais ou locais, de modo particular os de caráter eclesiástico, considerada a importância da paróquia na vida das diferentes regiões do País, e estimular ao mesmo tempo a conservação de arquivos particulares ou a incorporação dos documentos conservados em famílias aos arquivos oficiais. (BRASIL, 1975, p.36-37) Podemos considerar, no mínimo, curioso este item, pois não existia no país, naquele período, nenhuma política que se voltasse especificamente para arquivos, ou seja, uma política nacional de arquivo, e como acontecia com a maioria dos assuntos sem uma pasta específica, se coubessem eles eram discutidos na pasta da cultura. Segundo Jardim (2008), somente em

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janeiro de 1991 o Estado brasileiro passa a contar com um Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ, que seria incumbido de definir uma política nacional de arquivos e atuar como órgão central de um Sistema Nacional de Arquivos - SINAR. O último item do documento, intitulado formas de ação, descreve as ações que deveriam ser tomadas para a execução das medidas apresentadas e indispensáveis à realização de seus programas. Essas diversas formas de ação levavam em conta a regionalização cultural do Brasil e o sistema de cooperação que deveria ser estabelecido para se implementar os projetos decorrentes da Política Nacional de Cultura. Também apresentava os órgãos que deveriam fazer parte deste sistema de cooperação, composto pelo CFC, DAC, Unidades federadas, Ministérios, Secretarias e, dentro do nosso interesse neste trabalho, as universidades, consideradas como focos capazes de contribuir para o surgimento do espírito científico e criativo ao associar análise e pesquisa, cabendo a elas: b) promover estudos e pesquisas, em nível de planejamento próprio ou em convênio com outras instituições culturais, para levantamento de acervos arqueológicos, históricos, etnográficos, artísticos ou folclóricos, centralizando os dados em organizações de livre acesso aos estudiosos. Constituir centros de documentação iconográfica e de reprografia dos acervos e manifestações culturais de suas áreas; c) incentivar o levantamento da documentação histórica, científica e artística de referência imediata ao Brasil, de diversa data ou atual, retida em fontes estrangeiras, para a obtenção de reproduções ou reprografias destinadas às instituições brasileiras atinentes a cada especialização; d) construir centros de documentação iconográfica e de reprografia dos acervos e manifestações culturais de suas áreas. (BRASIL, 1975, p.41) 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do texto discorremos sobre como os militares, durante sua permanência no governo, interferiram no cenário cultural via a elaboração de uma Política Nacional de Cultura (PNC), que buscava preservar uma memória e cultura nacionais. Entendemos, portanto, que o efeito desta política ocorre em função da preocupação com a preservação de uma cultura e uma memória nacionais presentes na sociedade da época. Ao fixar formas de ação, a PNC criou um sistema de cooperação que deveria ser realizado com a participação de diferentes órgãos, inclusive as universidades. Para atender às demandas apresentadas, era preciso que estes órgãos se estruturassem, e, no caso das universidades, a criação dos centros de documentação é um sinal dessa estruturação. Se, segundo Camargo (2003), é possível percebermos um movimento voltado para a criação de centros de documentação e pesquisa, memória e referência nas universidades, especialmente a partir de 1975, acreditamos que a PNC vem embasar esse movimento.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Decreto-lei nº 74, de 21 de novembro de 1966. Cria o Conselho Federal de Cultura e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2013. BRASIL. Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sôbre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2013. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Política Nacional de Cultura. Brasília: Departamento de Documentação e Divulgação, 1975. CAMARGO, Célia Reis et al. CPDOC 30 anos. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas/CPDOC, 2003. _________. Os Centros de Documentação das universidades: tendências e perspectivas. In: SILVA, Zélia Lopes da (Org.). Arquivos, patrimônio e memória. Trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora UNESP: FAPESP, 1999. cap. 4, p. 49-64. COHN, Gabriel. A concepção oficial da política cultural nos anos 70. In: MICELI, Sérgio (Org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984. CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. Aspectos da política cultural brasileira. Rio de Janeiro: MEC, 1975. JARDIM, José Maria. Políticas públicas de informação: a (não) construção da política nacional de arquivos públicos e privados (1994-2006). Comunicação oral apresentada ao GT-5 - Política e Economia da Informação. In: ENANCIB, 1, SP: USP, 2008. KNAUSS, Paulo. Usos do passado: arquivos e universidades. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, ano 22, n.40, p. 09-16, 1º sem. 2009. MAIA, Tatyana de Amaral. Os cardeais da cultura nacional: o Conselho Federal de Cultura na ditadura civil-militar (1967-1975). São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2012. (Rumos Pesquisa) _________. Políticas culturais e patrimônio histórico: as ações do Conselho Federal de Cultura (19671975). Revista Memória em Rede, Pelotas, v.2, n.7, jul./dez. 2012b. MICELI, Sérgio (Org.). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984. MOREIRA, Regina da L. Brasilianistas, historiografia e centros de documentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.3, n.5, 1990. SILVA, Vanderli Maria da. A construção da política cultural no regime militar: concepções, diretrizes e programas (1974-1978). Dissertação (Mestrado em Sociologia). São Paulo: FFLCH, 2001.

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PERSPECTIVAS PARA AS UNIDADES DE CULTURA E INFORMAÇÃO1 Marco Antônio de Almeida2 Héctor René Mena Méndez3 Ieda Pelógia Martins Damian4 RESUMO: O trabalho reflete sobre perspectivas proporcionadas pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nas unidades de cultura e informação. São discutidas questões teóricas relacionadas ao acesso à informação e ao enraizamento social das tecnologias. São analisados casos empíricos de políticas culturais gestadas a partir de unidades de cultura e informação no Brasil (BSP) e na Colômbia (Medellín), buscando traçar um quadro que aponte a riqueza das possibilidades em aberto e os desafios correlacionados. Na BSP, foi realizada uma observação no local. Constatou-se a tendência dessas unidades em configurarem-se como ambientes culturais da informação, capazes de sistematizar, disponibilizar e comunicar conhecimento intercultural, numa relação dialógica com seu entorno e seus usuários, especialmente os jovens, apesar das dificuldades relacionadas. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Mediações Culturais, Tecnologias de Informação e Comunicação, Bibliotecas, Unidades de Cultura e Informação.

1. INTRODUÇÃO No decorrer da História, mudanças sociais e tecnológicas influenciaram modificações e adaptações das unidades de cultura e de informação (independentemente de sua denominação), isso quando não foram diretamente determinantes em seu surgimento. O longo processo histórico de transformação e especialização pelo qual passaram as unidades de informação no passado levou à especialização das mesmas (bibliotecas, arquivos, museus, centros de documentação). A apropriação social da informação, dos conhecimentos e da tecnologia não é um processo simples e linear. A reflexão acerca das práticas e políticas culturais de mediação necessita considerar essa complexidade, bem como as dificuldades de distintas naturezas para seu enraizamento social. Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) os apoios concedidos. 2 Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP). Docente da FFCLRP-USP e do PPGCI/ECA-USP. Email: marcoaa@ ffclrp.usp 3 Mestrando em Ciências da Informação, PPGCI/ECA-USP. Email: [email protected] 4 Doutora em Administração de Organizações (USP). Docente da FFCLRP-USP. Email: [email protected] 1

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Por outro lado, é importante não se considerar apenas os aspectos restritivos, mas também estar atento para a criatividade das práticas sociais, para as maneiras pelas quais indivíduos e grupos se apropriam das informações e das tecnologias, como nos lembra Michel de Certeau (1994). A ideia, sempre reiterada, de que vivemos numa “sociedade da informação”, joga com o fato de que, além dos meios de comunicação tradicionais – jornais, rádio, televisão, telefone – também lidamos hoje com outros meios, mais recentes e interativos, como computadores e laptops com acesso à Internet, câmeras, celulares, Ipods, GPS, etc. Uma questão formulada com cada vez mais frequência é se a organização da informação nesses ambientes é a mesma de uma unidade de informação tradicional. Clay Shirky (2010) lembra-nos que na web “não existem estantes”, e que as classificações podem ser feitas de modos alternativos aos modos tradicionais, inclusive pelos próprios usuários – entraríamos aqui no território das folksonomias (WALL, 2007; CATARINO e BAPTISTA, 2007). As TICs vêm gerando novos e acelerados processos de transformação nesse campo: as diferenciações não cessam de existir enquanto funções/vocações de cada unidade, mas tendem a convergir em novos espaços híbridos. Há muito mais uma solução de continuidade do que de ruptura das bibliotecas às modernas Unidades de Cultura e Informação, na medida em que foram se adaptando às mudanças tecnológicas e socioculturais que se sucederam em termos de uma história de longa duração. Por outro lado, definir hoje o que seria uma unidade de cultura e informação torna-se cada vez mais difícil, dada a variedade e complexidade de perfis possíveis que as mesmas podem adotar. Nesse sentido, a centralidade cada vez maior da dimensão cultural, bem como o valor atribuído ao conhecimento no mundo contemporâneo, jogam um papel proeminente. No caso da internet, nota-se que o conhecimento está na rede, mas que é um conhecimento codificado; “trata-se antes de saber onde está a informação, como buscá-la, transformá-la em conhecimento específico para fazer aquilo que se quer fazer”. (CASTELLS, 2003, p. 266). Repousa, portanto, nesse tipo de “competência”, o que define, efetivamente, a ideia de uma “divisória digital”, tal como apontada por Castells: o elemento de divisão social mais importante nesse momento é a capacidade educativa e cultural de utilizar a internet. Embora o mote do “aprender a aprender” já tenha quase se tornado um clichê, ele expressa essa competência de localizar e utilizar efetivamente o conhecimento, competência desigualmente distribuída e relacionada à origem social, à origem familiar, ao nível cultural e ao nível de educação. Isso é particularmente verdadeiro no caso dos jovens. A condição de ser jovem e, simultaneamente, possuir habilidades digitais não é natural, universal, nem homogênea. Pelo contrário, é um setor que apresenta diferenças, desigualdades e desconexões. Nas palavras de Livingstone (2011, p. 26), “a literacidade dos jovens na internet ainda não se relaciona com a imagem valorizada do intrépido pioneiro [...] já que as instituições que gerenciam seu acesso à internet e seu uso são restritivas ou não dão suporte”. Trata-se de uma perspectiva que desconstrói o clichê

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de que os jovens seriam, naturalmente, “nativos digitais”. Livingstone aponta a diferença entre as habilidades demandadas pelas mídias massivas e pela internet. Enquanto que em relação às primeiras o acesso não era um problema para o desenvolvimento da literacidade, permitindo a concentração no entendimento e na crítica dos conteúdos, em relação à internet há uma diferença: o próprio acesso em si já é mais complexo. O desenvolvimento da literacidade nesse meio envolve habilidades de navegação, busca e seleção de informações, avaliações de relevância e confiabilidade, identificação de erros. Assim, buscaremos discutir a seguir aspectos de alguns locus de cultura e informação que abrem possibilidades interessantes, quiçá inéditas, e que ainda permanecem pouco explorados. São espaços tradicionais, mas com novas configurações, como as bibliotecas e os parques biblioteca da cidade de Medellín, na Colômbia. E, no caso brasileiro, uma instituição que, pelo nome e função, deveria ser em princípio aparentada às experiências de Medellín: a Biblioteca São Paulo (BSP), no Parque da Juventude, na cidade de São Paulo. No caso da BSP, o foco das análises concentrou-se na prestação de serviços de referência virtual (SRV), na utilização de redes sociais e na oferta de tecnologia nas unidades de informação. O SRV está relacionado às diversas formas de disponibilizar os serviços de referência por meio da utilização das TICs, que podem oferecer uma série de benefícios para os envolvidos. Por tratar-se de uma tecnologia relativamente recente, existem muitos recursos que podem ser explorados em benefício tanto das unidades de informação quanto dos usuários que interagem por meio dessa ferramenta. Em relação às redes sociais e à oferta de tecnologia nas unidades, foi analisada a estratégia de incorporação de possíveis usuários e a comunicação estabelecida com os mesmos. No caso específico da BSP, além da análise dos serviços ofertados online, optamos por buscar incorporar alguns elementos qualitativos à reflexão acerca da relação dos usuários com a tecnologia. Assim, foi feita uma imersão no ambiente do objeto de estudo, as áreas multimídia da Biblioteca, no pavimento inferior do prédio, que consiste num módulo restrito para o uso de computadores por crianças e jovens. Por se tratar de uma pesquisa-piloto exploratória visando lançar as bases para uma pesquisa mais abrangente, a escolha das unidades se deu, basicamente, pela diferenciação e diversidade de acervos e seus suportes, bem como dos serviços disponibilizados a partir dessas distintas realidades. Há pouca bibliografia específica acerca dessas experiências, e a maior parte do que será apresentado a seguir foi organizado a partir de observações in loco dos autores, bem como de entrevistas com gestores, funcionários e usuários dessas unidades.

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2. POLÍTICAS E MEDIAÇÕES EM UNIDADES CULTURAIS E DE INFORMAÇÃO: SÃO PAULO E MEDELLIN 2.1. Bibliotecas e Parques-Biblioteca em Medellín No caso de Medellín, o que desperta a reflexão é, de um lado, a conexão das políticas culturais com outras políticas setoriais, e, de outro, a busca de integração da cultura e dos conhecimentos locais com as formas consagradas de conhecimento cultural. Um dos pilares dessa política cultural, o Sistema de Bibliotecas Públicas de Medellín compreende a Biblioteca Pública Piloto, os parques-biblioteca, o Arquivo Histórico e as bibliotecas de bairro. O sistema possui um modelo de gestão cooperativo, coordenado pela Biblioteca Pública Piloto e administrado pela prefeitura ou por meio de convênios de associação, administração delegada e cooperação. O uso das TICs já se manifesta aqui, na busca de facilitar trocas e proporcionar o diálogo entre os diversos atores e saberes envolvidos, conectando em particular o sistema Municipal à Rede Metropolitana, buscando um desenvolvimento harmônico com os demais programas sociais, em especial os de educação. Vale destacar que, em relação ao desenvolvimento urbano, as bibliotecas e os parques biblioteca vêm desempenhando um importante papel na recuperação do tecido urbano e no fortalecimento do capital social. As unidades são geoestrategicamente localizadas, outorgando-lhes um papel detonador de processos de desenvolvimento de territórios com altas densidades populacionais caracterizados por condições de habitação precárias, déficits de equipamentos públicos e zonas de risco socioambiental. São regiões que concentram elevada população em idade escolar e grande número de estabelecimentos educativos, mas sem a contrapartida de equipamentos culturais, desportivos e recreativos, além de barreiras de comunicação, mobilidade e limitado acesso a ferramentas tecnológicas. (MEDELLÍN, 2012). A Biblioteca Espanha, uma das maiores, é um exemplo de conexão com outros serviços públicos, especialmente no que diz respeito à acessibilidade: localiza-se próxima a uma estação de teleférico. Em Medellín, a prefeitura instalou essas linhas de teleféricos para estabelecer uma conexão entre os morros, que concentram grande parte da população de menor renda, com o sistema de transporte público de larga escala (metrô/ônibus) que transita no vale, facilitando seu acesso ao trabalho. Sem essa linha de teleféricos, muitos dos habitantes que teoricamente residiriam próximos à biblioteca, não teriam facilidade de acesso a mesma. Em um estudo realizado em 2010 para a Rede Metropolitana de Medellín, constatou-se que 81% dos usuários eram de estratos socioeconômicos baixo e médio baixo, sendo que o primeiro representava 49% dos usuários. (MEDELLÍN, 2012). No âmbito instrumental, portanto, os parques biblioteca, com suas associações e conexões, além do impacto sociocultural positivo, vêm colaborando ativamente na redução da “brecha digital” (nos termos de Castells) em Medellín. Além da agenda cultural e das oficinas

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de formação e encontro da comunidade, são oferecidos, entre outros serviços: a) serviços de informação, com consulta e empréstimo de material; b) serviços tecnológicos como salas virtuais, bases de dados, oficinas de formação e cadernos digitais (respaldados por 1050 computadores e portal web); c) salas de leitura e estudo com acesso a livros, CDs e DVDs; d) salas “Mi Barrio” (Meu Bairro), cenários para a promoção da história e da memória local. Do ponto de vista das instalações, chama a atenção o cuidado e o planejamento reservado para estes espaços. Os edifícios são fruto de concursos arquitetônicos promovidos pela prefeitura, que escolhe os projetos a partir de sua funcionalidade e adequação ao local – tanto do ponto de vista prático como simbólico. O edifício do parque biblioteca Bélen foi o único cujo projeto não foi resultado de concurso público, sendo uma doação do governo do Japão. A universidade de Tóquio selecionou o arquiteto Hiroshi Naito, que trabalhou com o apoio dessa instituição e, localmente, da Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín. Ele mudou-se um tempo para a Colômbia, vivendo na comunidade, e criou um projeto que visava constituir pontes entre a cultura local e a cultura japonesa, além de ter doado sua coleção de livros de arte e arquitetura para a biblioteca. O resultado foi um conjunto que, além de funcional, possui grande beleza, constituindo-se hoje num dos pontos turísticos da cidade. Muitos desses parques bibliotecas agregam outras atividades e serviços ao espaço – quadras poliesportivas, agências de microcrédito, postos de realocação de emprego. Outro aspecto importante no caso dos parques biblioteca é que eles buscam atender a uma estratégia simbólica de redução dos estigmas territoriais e de melhoria da inserção social da população urbana. Muitas dessas unidades foram construídas em territórios nos quais o imaginário da comunidade estava associado a situações ou eventos conflitivos ou dramáticos. O parque biblioteca Léon de Greiff/ La Ladera, por exemplo, ocupou as instalações do antigo Cárcel de Varones (Prisão); o parque biblioteca La Quintana ergue-se num local que era utilizado como “botadero de cadáveres” (cemitério clandestino das forças de repressão e do narcotráfico); e o Parque Belén ergue-se sobre as antigas instalações da Polícia Judicial e de Inteligência do Estado Maior (instituição similar ao nosso antigo DEOPS). A localização dos parques biblioteca em territórios cujo imaginário da coletividade estava relacionado a fatos ou episódios socialmente conflitivos, como antigos aparatos de repressão (cadeias, quartéis), zonas de conflito com o narcotráfico ou regiões sujeitas a desastres naturais, visava, segundo a administração municipal, reescrever a cidade sobre espaços que outrora foram de dor e morte. Esse cenário ainda não está totalmente distante. Em um dos parques biblioteca, por exemplo, alguns funcionários “negociaram” com representantes de gangues locais que aquele espaço seria uma “zona neutra” – o seja, que os conflitos e disputas não se reproduziriam ali. Foram bem sucedidos, até o momento. Algumas das formas de mediação cultural da informação confundem-se, dentro da perspectiva de Certeau, com uma nova “produção”. Um exemplo são as salas “Meu Bairro”, uma

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iniciativa de conectar o conhecimento local (através de registros de história oral, entre outros), assim como a produção de informações de interesse da comunidade (jornais e impressos locais, ou outras formas de produção dos moradores da região), aos demais serviços das bibliotecas parque. Sintonizam-se, assim, a um objetivo mais amplo, que é o de fortalecimento do tecido social e do aumento da auto-estima dos cidadãos pela modificação dos imaginários coletivos e empoderamento local. Em alguns espaços foram desenvolvidas exposições relacionadas às histórias de ocupação do bairro ou da peculiaridade de algumas atividades locais. No caso do parque biblioteca 12 de Octubre, por exemplo, foi dado destaque ao desenvolvimento de movimentos culturais alternativos na localidade em que a instituição está localizada. Foram recolhidos depoimentos, antigas fotos, objetos, que compõem um mapeamento de grupos teatrais, artistas plásticos, eventos, etc. que floresceram apesar das contingências econômicas e políticas. Obviamente, atividades dessa natureza demandam uma equipe com formação interdisciplinar, que é outra das características dessas unidades, que aglutinam não só profissionais da informação, como também historiadores, antropólogos, tecnólogos, economistas, arte-educadores. 2.2. Biblioteca São Paulo5 A Biblioteca São Paulo (BSP), inaugurada em 2010, faz parte do conjunto de iniciativas da Secretaria de Estado da Cultura para incentivar e promover o gosto pela leitura, que se dá tanto pelo livro tradicional como pelo digital. Desse modo, na BSP os livros de papel convivem com as novas tecnologias – como os e-readers e outras mídias digitais, por meio de oferta presencial e online. No contexto online, deve-se considerar a experiência na web, ou seja, a impressão que o usuário tem da organização online, que compreende elementos como pesquisar, navegar, encontrar, selecionar, comparar e avaliar informações bem como interagir e transacionar com a organização online. A impressão total do usuário virtual e suas ações são influenciadas pelo design, eventos, emoções, atmosfera e outros elementos experimentados durante a interação com um site, destinados a induzir a boa vontade do usuário e a afetar o resultado final desta interação (CONSTANTINIDES, 2004). Ocorre, nesse caso, um processo de mediação cultural e sociotécnica da informação, envolvendo entidades humanas, sistemas tecnológicos, linguagens e símbolos culturais. O método SWOT parece, nesse contexto, bastante indicado para avaliar o uso das TICs nos serviços prestados pelas unidades de informação. A palavra SWOT é, de acordo com Dias (2006), um acrônimo formado pelas palavras inglesas: Strengths (forças), Weaknesses (fraquezas), Opportunities (oportunidades) e Threats (ameaças). As forças, também denominados pontos fortes são, de acordo com o autor, caracte As informações e análises dessa sub-seção retomam considerações realizadas em um âmbito mais amplo em DAMIAN, I. P. M.; ALMEIDA, M. A.; MENDEZ, H. R. M., 2015.

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rísticas internas positivas como habilidades, capacidades e competências que uma organização deve utilizar para atingir as suas metas, enquanto as oportunidades são características do ambiente externo, que não estão sob o controle direto da organização, mas que apresentam potencial para ajudá-la a atingir ou exceder as metas planejadas. As fraquezas, também chamadas de pontos fracos, conclui o autor, são características internas negativas, como a ausência de capacidades críticas, que podem restringir o desempenho da organização, enquanto as ameaças são características do ambiente externo, que não são controláveis pela organização, mas que podem impedi-la de atingir as metas planejadas. A análise está sistematizada no Quadro 1: Quadro 1: Análise SWOT do site da Biblioteca São Paulo (BSP) Pontos Fortes

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oferece ampla gama de ferramentas interativas como Twitter, Facebook, Flickr, BLOG e RSS; oferece opção de busca; apresenta uma extensa programação; disponibiliza a BSP em Números; disponibiliza na seção “Recomendamos” diversos links de interesses convergentes; oferece a opção “Ouvidoria”, onde se encontram as opções de contato por e-mail, telefone, fax e endereço completo e possui Pesquisa de Satisfação; a opção “Contato” traz o e-mail e o telefone para contato; disponibiliza e-mail para agendamento de visita técnica ou monitorada; oferece a opção de “Novas Aquisições”, onde os usuários tem a opção de conhecer as aquisições mais recentes da biblioteca; oferece localização da biblioteca por meio da ferramenta Google Maps; algumas informações estão disponíveis em português, em espanhol e em inglês; oferece consulta ao catalogo da biblioteca; opção para sugestão de livros e dvds; há informações sobre o endereço físico da biblioteca, telefone e endereço de e-mail. oferece a opção “Áudio” e “Vídeo” onde são disponibilizadas “faixas” e “vídeos” que podem ser ouvidas e assistidos sobre a série de entrevistas “Segundas Intenções”; a opção “BSP e você” é dedicada a informar sobre recursos, tecnologias e ferramentas disponíveis aos usuários da biblioteca; disponibiliza a opção “+60”, onde é possível encontrar informações sobre os programas e ações voltados especificamente ao público com mais de sessenta anos de idade; disponibiliza fotos da biblioteca; oferece na opção “Acervo Digital” a possibilidade de baixar uma série de livros e links a diversas bibliotecas virtuais; a página inicial (home) se utiliza de recursos que atraem a atenção do usuário como fotos, cores, movimentos e interação; não apresentava problemas de segurança e/ou privacidade porque nem o mesmo nem o seu usuário forneciam dados pessoais e/ou confidenciais.

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Pontos Fracos

Oportunidades

Ameaças

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não apresentou boa velocidade de acesso em todos os momentos verificados (houve necessidade de espera em seu carregamento);



alguns links testados não funcionaram;



não disponibiliza Política de Privacidade;



utiliza na grande maioria de suas páginas, a barra de rolagem que pode dificultar a visualização e o encontro das informações desejadas pelos usuários;



muita informação disponibilizada na página inicial: muita informação importante pode passar desapercebida pelos usuários ao utilizarem a barra de rolagem;



a pesquisa de satisfação deveria ser colocada em lugar de maior destaque ou utilizar maiores incentivos para que motive o usuário a respondê-la;

• •

o site era quase que totalmente informativo. ser acessível em libras;



disponibilizar visita virtual;



oferecer recursos de maior interação e acessibilidade para os usuários;



disponibilizar Politica de Privacidade;



maior divulgação do site da biblioteca e dos serviços ali disponibilizados;



inclusão de outros meios de comunicação entre a biblioteca e seus usuários como, por exemplo, a utilização de chat;



disponibilizar a ouvidoria com chamada telefônica gratuita (0800);

• •

poderia oferecer a opção “Dicas de busca”, para ajudar o usuário em dificuldades. falta de divulgação e promoção dos serviços oferecidos.



falta de costume dos usuários para utilizar serviços disponíveis em meio eletrônico;



falta de acesso à tecnologia;



ausência de recursos mais interativos;



custo de aquisição tecnológica principalmente por parte dos usuários.

Além da análise pela matriz SWOT, realizamos uma incursão de caráter exploratório pela Biblioteca de São Paulo (BSP), com o objetivo de conhecer quais seriam os principais usos da internet pelos jovens paulistanos que a frequentam. A partir das ideias desenvolvidas por Sonia Livingstone (2011) acerca dos “nativos digitais”, acreditávamos que estes seriam a exceção e não a norma nas novas gerações. Em uma pesquisa sobre o estudo de internet e outras mídias no que tange a seus usos, valorações, posse e acesso por parte de crianças e adolescentes brasileiros, Brasilina Passarelli

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(PASSARELLI et alii, 2014, p.159) associa o desenvolvimento econômico do Brasil, aliado à expansão e qualificação das redes de internet e barateamento dos equipamentos, com o aumento significativo do uso da rede por parte das novas gerações. “A presença de computadores conectados à internet nos lares das crianças e adolescentes revela que essa tecnologia, mesmo popularizada há pouco tempo, avança significativamente à medida que se torna mais acessível e se inova.” (Ibid., p.165). Vale ressaltar, contudo, que no Brasil e em outros países de América Latina, o segundo lugar de acesso é a escola; os lugares públicos, como as bibliotecas, ocupam o terceiro lugar. Nesse contexto e a partir do foco nas relações entre os usuários e as TICs, o estudo correspondeu ao desenho das pesquisas qualitativas, já que não foi um processo claramente definido, mas que partiu da imersão no ambiente do objeto de estudo: as áreas multimídia da Biblioteca, no pavimento inferior, sendo um módulo restrito para o uso de computadores por parte das crianças e jovens. Na abordagem qualitativa, a pesquisa não trabalhou com um número específico de amostra, mas se condicionou por atores que consideramos significativos em relação ao universo dessa unidade de informação __ 10 jovens da cidade de São Paulo, entre 11 e 18 anos que frequentam a Biblioteca. Trabalhamos a partir de observação in loco, com uma imersão de alguns dias no ambiente e com entrevistas não-estruturadas com funcionários da biblioteca, ambas focadas no entendimento da dinâmica do uso e acesso dos jovens às TICs. Importante enfatizar que o perfil do jovem que visita a BSP é muito diverso. No entanto, a partir das observações e dos dados adquiridos, se encontraram alguns denominadores comuns, por exemplo: a maioria dos jovens são estudantes de ensino médio e fundamental, de recursos econômicos limitados. Além disso, a Biblioteca atende uma parcela de população de rua que vive nas imediações do bairro onde se localiza a instituição cultural. Pelo período reservado às observações e pelo perfil dos casos escolhidos, podemos afirmar que a amostra selecionada era representativa do público que costuma frequentar o espaço. Assim, as observações realizadas legitimam a premissa de Livingstone, que afirma: “os jovens mesmos conscientes do fato de que são a primeira geração a crescer com a internet, corroboram a exaltação pública de seu status de nativos digitais” (LIVINGSTONE, 2011, p. 12). Por exemplo, um dos jovens selecionados acredita que tem o conhecimento necessário no uso das ferramentas que lhe são possibilitadas pela internet; “eu sei muitas coisas, porque pego um curso de informática em São José dos Campos; por isso não preciso de ajuda dos funcionários”. Da mesma forma, um segundo caso, expressou que, pela facilidade de contar com um computador em sua casa, não lhe resulta difícil o acesso ao equipamento informático disponível na Biblioteca; “só preciso da ajuda deles (funcionários da biblioteca) para ligá-lo. Em minha casa tenho computador e conheço bastante bem do que está aqui”, assinalou. Por outro lado, para além do acesso à “rede do conhecimento”, os jovens apresentam um comportamento restrito

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diante das telas. De acordo com a observação efetivada, dos 10 casos estudados, 8 se limitaram apenas à tela do Facebook. O uso da rede social está concentrado para atividades como o chat, compartilhamento de fotos, vídeos e jogar games. Há que se ressaltar que, apesar da importância que vem conquistando o Facebook no cotidiano dos jovens brasileiros, percebemos entre os casos selecionados algumas exceções, que tem considerado a emergência de outras redes sociais como o Instagram. “Eu não gosto muito do Facebook, porque você ali só encontra drama; no Instagram é diferente, você não tem que falar muito, sabe; só são fotos [...]”, declara um dos jovens entrevistados. Um fato a ser também destacado é o pouco critério na seleção da informação quando se trata de pesquisar pela internet: o site majoritariamente frequentado é Wikipédia. No que tange aos comportamentos relacionados aos gêneros, observa-se que as crianças e jovens do sexo masculino parecem identificar-se mais com atividades proativas, ou seja, baixar arquivos de músicas, filmes, e jogar games. Já as meninas e adolescentes do sexo feminino são visivelmente mais hábeis em atividades de sociabilidade: participar de salas de bate papo, enviar mensagens e compartilhar/comentar imagens entre seus grupos de pares. A partir das perspectivas de abordagem mencionadas, elaboramos uma matriz baseada em Livingstone (2011), para organizar os dados obtidos, os quais, posteriormente, foram enquadrados em categorias de análise, apresentadas no quadro 2: Quadro 2: Avaliação qualitativa BSP/Categorias de análise e aspectos gerais

Categorias de análise

Indicadores constitutivos

A. Identidade com a exaltação pública do status de nativo digital atribuída aos jovens



Os jovens acreditam que podem utilizar as ferramentas que disponibilizadas pela internet.



O jovem coloca-se na posição de autossuficiente frente aos funcionários da biblioteca.



Individualização e comportamento solitário diante das telas.



Seu tempo no computador está focalizado na rede social: Facebook e Youtube.



Pouco interesse e critério para pesquisar pela internet. Seu principal site é a Wikipédia.



A tendência no uso da internet por parte do sexo feminino está marcada pela necessidade de socializar; no caso do sexo masculino, está caraterizada pelas atividades de ação proativa: baixar música, filmes e jogar games.

B. Comportamento limitado diante das telas

C. Marcada heterogeneidade entre os gêneros, que determina hábitos e usos das TICs.

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3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: MEDIAÇÕES, PROCESSOS DE FORMAÇÃO E APROPRIAÇÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO De modo resumido, podemos dizer que o estabelecimento de uma educação formal se consolida com a Modernidade, tornando-se uma área de atuação e particular interesse tanto dos Estados-Nação como da sociedade civil organizada em instituições (pioneiramente a Igreja, e, posteriormente as empresas capitalistas). As TICs e as mudanças culturais decorrentes de seu emprego sempre estiveram presentes nesse processo, e seus posteriores desenvolvimentos acabaram por alterar, progressivamente, esse balanço entre educação formal e informal na contemporaneidade. O que se percebe, hoje, é um processo de descentramento e disseminação dos saberes que passa ao largo da escola e de outras instituições legitimadoras do conhecimento. Isto não significa que essas instituições tenham perdido totalmente sua importância ou poder, mas que seu papel na constituição do tecido social está sendo deslocado de lugar e que sua legitimidade esteja sendo contestada. Estas instituições não podem impedir agora que uma diversidade de saberes socialmente valiosos circule fora de seu território, sem lhes pedir permissão, nos espaços dos meios de comunicação e da internet. Uma questão que merece especial reflexão é a de como as políticas culturais, associadas às TICs, têm possibilitado a emergência de novos ambientes de informação/comunicação conectados a redes sociais, e redimensionado a relação dos indivíduos com a produção, a prática e a própria construção de identidades e memórias culturais. Estes ambientes surgem a partir de iniciativas do Estado ou, quando são decorrentes de iniciativas da sociedade civil, recebem o apoio do mesmo. A constituição de redes sociais a partir das unidades de informação que alocam essas políticas culturais de acesso e apropriação da informação e do conhecimento tem sido uma das consequências desse processo, nem sempre prevista, entretanto, no escopo inicial dessas políticas. Outro ponto relativo às questões que envolvem as políticas culturais e os processos de mediação é a presença, bastante marcante em alguns casos, de processos de acesso/divulgação-circulação da informação e de processos de acesso/apropriação-formação de competências técnico-culturais. Em outras palavras: a preocupação, de um lado, de fazer circular a informação e torná-la pública, especialmente a informação cultural; e, de outro, a preocupação em capacitar e formar os atores envolvidos (individuais e coletivos), traduzida numa oferta de cursos, oficinas, seminários, projetos abertos, etc. (ALMEIDA, 2014) De um modo geral, a concepção de mediação como ação educativa que se estabeleceu hegemonicamente prioriza algumas modalidades de informação, de tipos de leitura e de práticas de intermediação cultural legitimadas pelo status quo, em detrimento de outras, que valorizariam o estabelecimento de vínculos mais orgânicos dos sujeitos com o conhecimento prático, racional e técnico. Enquanto essa primeira concepção se satisfaria com a assimilação e não com a apropriação da cultura artística e científica, desenca-

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deando mediações e leituras esvaziadas, parece-nos fundamental refletir sobre este ponto, quando se tem em vista uma real inserção dos sujeitos na cultura. (MARTÍN-BARBERO, 2009). As práticas e políticas culturais de mediação brevemente discutidas apontam para essa complexidade, ilustrando como a construção de processos de mediação cultural voltados para o empoderamento dos atores enfrenta dificuldades de distintas naturezas para tentar se enraizar socialmente. A questão das mediações sociais nos contextos formativos das políticas e ações culturais mereceria uma maior reflexão. Trata-se do desafio de incorporar uma cultura pedagógica apoiada em formas de experiência que não se restringem à mediação escrita, ligadas a modos de negociação entre conteúdos e significados historicamente muitas vezes estigmatizados, discriminados e deslegitimizados. A construção do conhecimento é aqui um fenômeno ao mesmo tempo individual e social, e o saber, um “produto” da construção ativa dos sujeitos, mediada técnica, artística e culturalmente. O exemplo das salas “Meu Bairro” nas bibliotecas parque de Medellín nos permitem verificar que iniciativas dessa natureza são possíveis. Unidades de Informação, Espaços Culturais, Unidades Híbridas ... a terminologia cambiante poderia denunciar a falta de rigor metodológico – mas preferimos pensar que reflita, antes, a riqueza e multiplicidade das instituições e situações possíveis nesse cenário dinâmico que aproxima as TICs à cultura. Assim, procuramos destacar o valor social e o significado cultural de alguns desses lócus. Longe de opor tradição à inovação, parece-nos antes que esta última só se realiza quando consegue lidar criativamente com a primeira. Isso vale tanto para a incorporação das tecnologias, como para configuração de novos serviços e funcionalidades para os cidadãos e as comunidades que se relacionam com estas instituições. Desenham-se assim as possibilidades de constituição de novas ações e cadeias de mediações, numa perspectiva muito mais dialógica que impositiva. Essa convergência de perfis diversos e do papel jogado pelas atividades de formação no empoderamento dos sujeitos pode ser ilustrada pela experiência de Medellín. Outro aspecto importante presente nesse exemplo foi a equalização de perfis inter e multi disciplinares na efetivação dessas ações, perceptível no quadro funcional das bibliotecas parque, composto não só por bibliotecários, mas também por antropólogos, historiadores, pedagogos, informáticos, arte-educadores, etc. No caso da BSP foi possível verificar que o SRV representa uma oportunidade de aumentar a satisfação e a interação das unidades de informação com seus usuários. Os principais fatores identificados como possíveis limitadores do progresso desse serviço são a falta de acesso à tecnologia e o custo da infraestrutura, além de questões relacionadas à formação de profissionais e usuários na utilização da tecnologia. Nosso propósito não se restringiu a avaliar apenas os sites, mas também buscamos, na abordagem realizada no âmbito da BSP, alguns elementos que permitissem a reflexão acerca do

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relacionamento entre usuários e TICs no âmbito das próprias unidades de informação. Ali foi possível constatar algumas das dificuldades que apresenta a internet na prática, mostrando que, afinal, o acesso à rede não é tão convidativo ou simples como a retórica popular quer acreditar. Embora seja tentador caracterizar as habilidades on-line dos jovens contemporâneos, concebendo-os como nativos digitais, percebeu-se que é necessário estabelecer alguns limites a esta lógica de interpretação dos fenômenos que abrange o acesso socialmente significativo às TICs. Acreditamos que é importante considerar que a desigualdade social não é apenas uma questão referente à partilha adequada dos recursos, mas de participação na determinação das oportunidades de vida tanto individuais como coletivas. A premissa subjacente a essa afirmação é a de que a capacidade de acessar, adaptar e criar novos conhecimentos por meio das TICs é decisiva para a inclusão na chamada “Sociedade da Informação”. Como já nos mostraram Mark Warschauer (2006) e Manuel Castells (2003), o acesso é decisivo para a inclusão social. O acesso e o letramento digital estão intimamente ligados aos avanços da comunicação humana e aos meios de produção do conhecimento. A naturalização do status de nativo digital para os jovens contemporâneos com habilidades on-line é tentadora. No entanto, isso não os coloca isentos de uma observação crítica. Assim, dominar uma tecnologia significa manejar não só o hardware, mas tudo o que internet oferece a seus usuários, a partir de uma visão crítica e informada. O caso da BSP serve para refletir acerca dessa premissa, pois no contexto dessa sociedade, “tanto em termos educacionais, quanto culturais e econômicos, o desenvolvimento e a educação juvenil para o mundo digital não pode prescindir do suporte mediador das instituições tradicionais da sociabilidade e da educação formal e informal” (PASSARELLI et alii, 2014, p.175). Diferentemente das unidades observadas em Medellín, a BSP não se enquadra em um projeto integrado de políticas sociais com outros setores do Estado, dificultando assim um maior enraizamento no tecido social local e de apropriação de seu espaço por parte dos usuários. Também não se percebeu, diferentemente de Medellín, um papel mais ativo por parte dos mediadores da BSP. Desenham-se assim questões relativas às competências culturais e intelectuais dos indivíduos e grupos para lidar com a sociedade contemporânea. E finalmente __ mas não por último __ remete também à necessidade da mediação cultural e da informação e ao papel estratégico dos mediadores nos fluxos tecnoculturais que caracterizam a contemporaneidade. A reflexão sobre essa dinâmica social contemporânea nos leva a considerar dois pontos complementares. O primeiro, a importância estratégica que as unidades de cultura e informação e seus profissionais poderiam desempenhar na sociedade em termos de uma construção cidadã do conhecimento. Isso é válido tanto para as bibliotecas – públicas, escolares, comunitárias, especializadas – como para outras unidades, algumas delas com essa clara vocação, como os museus, e outras que eventualmente atuam nessa perspectiva, como arquivos e centros de documentação. O segundo ponto foi perceber que definir hoje o que seria uma Unidade de Informa-

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ção tornou-se cada vez mais difícil, dada a variedade e complexidade de perfis possíveis que as mesmas podem adotar. A partir das experiências discutidas, fomos cristalizando a convicção de que, de modo crescente, elas tendem a incorporar o universo das práticas culturais dos sujeitos, cada vez mais mediatizadas pelas tecnologias. A questão não é focar em mais conhecimento, na lógica da pura acumulação e difusão quantitativa. O desafio reside na necessidade de se refletir, a partir das mediações e políticas culturais, as questões relacionadas à formação de acervos, aos formatos informacionais, aos conteúdos das mensagens, às relações com os usuários. Desse modo, as políticas de informação e comunicação seriam, hoje, também políticas culturais. Os novos ambientes de informação seriam, na verdade, ambientes culturais da infocomunicação, aparatos, dispositivos e tecnologias mediadoras, capazes de transmitir conhecimento intercultural e proporcionar a comunicação e a expressão dos indivíduos e grupos. Nesse sentido é que buscamos compreendê-las como UCIs – Unidades Culturais de Infocomunicação, locais estratégicos para a realização de práticas e políticas culturais emancipadoras, passíveis de apropriação pelos sujeitos na perspectiva de construção da cidadania cultural e dos processos de formação permanente, cada vez mais exigidos por nossa sociedade. Não procuramos criar uma apologia ao digital e às TICs, mas de fazer constar que sua presença, mesmo que problemática, enriquece e disponibiliza novos meios e recursos para a criação cultural e para a dinamização das relações sociais. Essas considerações, ainda em construção, apontam para o fato de que o grau de autonomia e as condições socioculturais dadas para a apropriação da informação e dos usos das tecnologias variam contextualmente. A presença de recursos humanos capacitados tanto no plano dos processos culturais, como no domínio de habilidades tecnológicas, torna-se um elemento de fundamental importância para o sucesso dessas iniciativas. O encontro de indivíduos e de grupos com as instituições merece ser compreendido como um processo complexo povoado por práticas heterogêneas e não excludentes. Diante dos atuais conflitos públicos nos modos de representar a vida social Yúdice (2006, p. 47) chamará atenção para a função política dos “mediadores” na elaboração e implementação de “políticas socioculturais” que criem espaços onde as distintas narrativas culturais possam ser “concebidas e tornadas compatíveis”. O encontro de indivíduos e de grupos com as instituições merece ser compreendido como um processo complexo povoado por práticas heterogêneas e não excludentes. Nesse sentido, vale relembrar a lição de Michel de Certeau (1994), ao apontar não as restrições impostas pelos aparatos aos indivíduos, mas a criatividade das práticas sociais, para voltarmos nosso olhar para a apropriação das tecnologias e das informações nos processos vivos de produção e circulação da cultura. Desse modo, estabelece-se para os profissionais da cultura, da comunicação e da informação o desafio de refletir e construir estratégias de interação com estes e outros usuários

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que envolvam uma efetiva apropriação sociocultural das TICs. O desafio, ao que parece, está em cristalizar as relações on line/off line de maneira mais consistente, capaz de operar efetivas mudanças a partir de iniciativas coletivamente orientadas para a construção de habilidades e conhecimentos socialmente significativos, que contribuam para a construção do conhecimento socialmente relevante e na melhoria da qualidade de vida dos sujeitos e de suas comunidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Marco Antonio de. Políticas culturais e redes sociotécnicas: reconfigurando o espaço público. Revista Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 50, N. 1, 54-64, jan/abr. 2014. CATARINO, Maria Elisabete; BAPTISTA, Maria Alice. Folksonomia: um novo conceito para a organização dos recursos digitais na Web. In: DataGramaZero – Revista de Ciência da Informação v. 8 n. 3 jun 2007. Disponível em http://dgz.org.br/jun07/Art_04.htm Acesso em 20/03/2014. CASTELLS, M. Internet e sociedade em rede. In: MORAES, Denis de (org.) Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. (pp. 255-287) Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 255-288. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1994. CONSTANTINIDES, E. Influencing the online consumer’s behavior: the Web experience. Internet Research. 14:2, 2004, p. 111-126 DAMIAN, I. P. M.; ALMEIDA, M. A.; MENDEZ, H. R. M. Novas perspectivas para os usuários: as TICs em Unidades de Informação. Madrid. Actas del VII Encuentro Ibérico EDICIC. Madrid: UCM, 2015. Disponível em: http://edicic2015.org.es/ucmdocs/actas/tema-autor.html DIAS, C. A. Método de avaliação de programas de governo eletrônico sob a ótica do cidadão-cliente: Uma aplicação no contexto brasileiro. Tese do Programa de Doutorado em Ciência da Informação do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília. Brasília, UNB, 2006. FRAGOSO, S.: RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. LIVINGSTONE, Sonia. Internet literacy: a negociação dos jovens com as novas oportunidades on-line. Revista Matrizes, V. 4, 2011, p. 11-42. MARTÍN-BARBERO, Jesus. Cuando la tecnología deja de ser una ayuda didáctica para convertirse en mediación cultural. Revista Electrónica Teoría de la Educación v. 10, n. 1, 2009. Disponível em: http:// www.usal.es/teoriaeducacion .Acesso: 15/05/2015. MEDELLÍN, Alcadia. Laboratorio Medellín: catálogo de diez prácticas vivas. Medellín: Alcadía de Medellín/Mesa Editores, 2012. PASSARELLI, B.; JUNQUEIRA, A. H.; ANGELUCI, A. C. B. Os nativos digitais no Brasil e seus comportamentos diante as telas. Revista Matrizes, V. 8, 2014, p. 159-178.

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SHIRKY, C. Ontologias são superestimadas: categorias, links e etiquetas. Extralibris. Disponível em: http://extralibris.org/artigos-e-estudos/ontologias-sao-superestimadas-categorias-links-e-etiquetas Acesso em: 10 abr. 2015. WARSCHAUER, Mark. Tecnologia e inclusão social: a exclusão digital em debate. São Paulo: Senac, 2006. WAL, Thomas Vander. Folksonomy Coinage and Definition. Fevereiro/2007. Disponível em http://www. vanderwal.net/folksonomy.html. Acesso: 20/03/2014 YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

LINKS http://bsp.org.br/

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CULTURA E COMPLEXIDADE NOS PROJETOS E NAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS Maria Beatriz Afflalo Brandão1 RESUMO: O pensamento complexo se desenvolveu, numa contraposição a simplificação, já na primeira metade do século XX. A cidade contemporânea passou a ser referenciada através de palavras que revelavam a sua heterogeneidade, dentre elas, o fragmento, o vazio, a descontinuidade, a desordem, o caos. Tornou-se complexa. Examinar a relação entre a cidade contemporânea e a cultura, no sentido de refletir sobre a complexidade atual dos enfrentamentos dos projetos culturais e seus valores é nosso objetivo. Edgar Morin, Carlos Fortuna, Augusto Santos Silva, Marilena Chauí e Otília Arantes nos ajudam a percorrer este caminho. PALAVRAS-CHAVE: modernidade/complexidade, cidade contemporânea, projetos culturais, interações. .

1. COM QUAL O CONCEITO DE CULTURA TRABALHAR? O objetivo principal era estudar a relação entre a cultura e a cidade, observando os movimentos de culturalização da recuperação urbana. Ao exame dos textos, percebeu-se a interação dos conceitos de análise relativos ao tema e aqueles estabelecidos na teoria da complexidade, desenvolvida por Edgar Morin. O objetivo se transformou então na possibilidade de, através destas interações conceituais, estudar algumas relações entre a cultura e a cidade na complexidade da cidade contemporânea. De início, o exame conceitual de cultura. Segundo a definição da UNESCO, concluída na Conferência Mundial de Políticas Culturais em Mondiacult, na cidade do México em 1982, a cultura deve ser considerada como o conjunto de características espirituais, materiais, intelectuais e emocionais distintas de uma sociedade ou de um grupo social, e que abrange, além da arte e literatura, estilos de vida, maneiras de vida em comum, sistemas de valores, tradições e crenças. Poderíamos ter pensado em outras definições de autores que analisam a cultura de forma diversa, mas entendemos que, por se mais generalizada, esta é a versão do senso comum.

Professora da Escola de Belas Artes | UFRJ e Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, FAU | UFRJ. E-mail: [email protected]

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A abrangência da definição estabelecida abarca conflitos e contradições que devem ser examinados. Segundo Chauí, [2008:55], a origem da palavra está relacionada a colheita e significava uma ação que conduz a ‘realização de potencialidades’, ou seja, brotar, florescer, frutificar. Essa significação dá ao termo a dimensão ideal da produção cultural de uma comunidade. O conceito transformado, passa a ser referência de estado de civilização, ou seja o critério ou padrão que estabelece diferenças entre as sociedades, um conjunto de práticas que, no Iluminismo, permitia-se avaliar a evolução dos regimes políticos. Passa a definir comparações. Já com valor de hierarquia, passa a ser sinônimo de progresso, ressurgindo no século XIX, na Antropologia, para avalizar sociedades evoluídas ou primitivas; a partir de parâmetros de ausência ou presença de elementos constituintes da sociedade da Europa. Ganha um conceito de valor, de medida. Ainda a mesma autora, cita a filosofia alemã definindo cultura a partir da ‘ruptura da adesão imediata à natureza’, ou seja, a ordem humana tratada como a ordem simbólica, capaz de uma relação com o ausente, criando uma relação de transcendência. Pela linguagem e pelo trabalho o homem deixa de aderir ao meio ambiente em contraposição ao animal, “criando um sentido imanente, que vincula meios e fins para o desenvolvimento da ação, que provoca novas ações e faz do homem um agente histórico”. É essa concepção de cultura, entendida a partir da vivência humana de cada grupo, de seus valores e sentidos, que vai ser adotada pela antropologia social no século XX. É nesse ponto, que Chauí atenta para a diferença entre comunidade e sociedade. A comunidade é coesa, vive sob os mesmos valores e atribui os mesmos sentidos à vida e à morte. Possuem um sentimento de unidade e vigilância de valores. Na sociedade diversificada, os indivíduos separam-se uns dos outros por interesses específicos. E essa divisão, inevitável na sociedade contemporânea capitalista, vai dificultar que o conceito de cultura da UNESCO, seja aquele percebido plenamente, no âmbito das sociedades atuais. Surgem: a cultura dominante e a dominada, a popular, a clássica, a da elite, a opressora e a oprimida. Cada uma dessas classificações vai ser estudada sob abordagens diferentes, consequentemente, gerando vários posicionamentos que redundam em diversas políticas públicas que se pretendem a solução dos desníveis. Se analisarmos sob a perspectiva da complexidade, podemos perceber que o conceito de cultura estabelecido pelo Iluminismo, a partir da oposição dialética de ausência e presença, tem o mesmo raciocínio de contraposição entre a adesão animal ao meio ambiente e a transcendência do homem. A pluralidade de classificações culturais, surgidas a partir das divisões internas da sociedade, demonstram a fragilidade dos limites destas oposições. Para que as sociedades adotem uma visão aberta de cultura, é preciso, antes de tudo, perceber o problema da organização do conhecimento, que se atrela a paradigmas anteriores:

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Pode-se observar que tanto a dimensão como a transcendência cria a mesma organização do pensamento, a mesma lógica de afirmação/negação, num sistema fechado que não permite outras combinações e que, por isso mesmo, acaba gerando uma série de subclassificações dessa mesma dicotomia. A definição de cultura, estabelecida pela UNESCO, abarca as relações que regem a vida das sociedades que, como tal, compreende as oposições, complementaridades, relações e interações que geram valores e que se modificam, a partir de novas ações, relações, oposições e interações. Para trabalhar este conceito de cultura multifacetado é preciso compreendê-lo num sistema aberto. Segundo Morin, um sistema fechado pode ser exemplificado por uma pedra, uma mesa, ambas em estado de equilíbrio, se considerarmos a troca de matéria/energia com o exterior. Já uma vela acesa ou uma célula estabelece uma relação de desequilíbrio com a troca pelo fluxo energético que as alimenta. Sem ele, as duas se definhariam. Se observarmos o organismo humano, percebemos que nossas células se renovam sem cessar, enquanto nossa estrutura se mantém equilibrada, exatamente como um sistema aberto, onde sua estrutura se mantém em equilíbrio, mas seus constituintes são mutantes. Mesmo aberto deve se manter fechado ao exterior, e é sua abertura que vai permitir o fechamento, ou seja, um sistema organizando seu fechamento na e pela abertura. Disso deduzimos algumas observações interessantes: • as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio em constante recuperação; • a inteligibilidade do sistema não está ligada somente à ele mesmo, mas também ao meio ambiente; • e essa relação não é somente de dependência, mas constitutiva do sistema. “Qualquer conhecimento opera por seleção de dados significativos e rejeição de dados não significativos: separa [distingue ou disjunta] e une [associa, identifica); hierarquiza [o principal, o secundário] e centraliza [em função de um núcleo de noções chaves]; estas operações que se utilizam da lógica, são de fato comandadas por princípios ‘supralógicos’ de organização do pensamento ou paradigmas: princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos consciência disso.[Morin. 2011:10]”. Do ponto de vista da teoria da complexidade, a noção de cultura adotada pela antropologia social, a partir de meados do século XX, não se adequa ao real pela negação da relação do homem com meio ambiente. Perde-se um elo importante. Ainda trabalhando no conceito estabelecido pela UNESCO, podemos perceber que ‘características espirituais, materiais, intelectuais e emocionais distintas de uma sociedade ou de um grupo social, englobam tanto o conhecimento científico, como o genérico [concernente ao

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gênero humano], que abarca as criações e processos relativos às chamadas ciências humanas. E é nesse ponto que se situa um desafio cultural’ [Morin, 2002:17], que ainda nos dirige [ocultamente] e está entranhado no desenvolvimento da inteligência, a partir do século XIX, ou seja a divisão entre cultura de humanidades e cultura científicas. Essa divisão que proporciona a disjunção cada vez mais intensa do saber, ainda que tenha promovido admiráveis descobertas e um avanço tecnológico a se considerar, nos impede a reflexão sobre o desenvolvimento humano, torna-se incapaz de pensar os próprios problemas sociais e humanos que estabelece no seu desenvolvimento; torna-se impossível de abranger, ‘além da arte e literatura, estilos de vida, maneiras de vida em comum, sistemas de valores, tradições e crenças’ [Morin, 2002:19]. Subdivide a vida, enfraquecendo uma percepção global, e consequentemente o sentido de responsabilidade: cada um tende apenas a ser responsável pela sua tarefa específica. Quando os valores e crenças de um grupo perdem suas interações, o tecido cultural se esgarça, enfraquecendo a cultura como um todo. Conhecer a cultura é conhecer o humano. É preciso, então, trabalhar a ligação entre os conhecimentos, para daí fazer surgir o novo, que ultrapasse os problemas atuais. Todo o conhecimento deve ser orientado para e sobre a condição humana em toda a sua complexidade. A cidade é um resumo: conhecer a complexidade humana nos leva ao conhecimento da condição humana, que nos atenta para a vida com seres e situações complexas. A cidade contemporânea é a vida, que se desenrola no social, no unitário e no diverso. Assim, ao observarmos as relações entre a cultura e a cidade, é preciso, segundo Morin, atentar para a complexidade do mundo real e para tal, é preciso definir, a priori, algumas condições de provisão para o futuro: • preparar-se para o futuro incerto, ou seja, para a existência da incerteza; contextualizando, observando possibilidades e consequências; • esforçar-se para compreender e conceber estratégias, com cenários de ação que possam conter a possibilidade do acaso; • efetuar conscientemente nossas apostas, acreditando nas possibilidades, mas jogando com a incerteza. A visão unidimensional [na cidade] enfraquece a percepção do complexo e o sentido de responsabilidade [Morin, 2002:14]. “A realidade está tanto no elo quanto na distinção entre o sistema aberto e o seu meio ambiente... o sistema só pode ser compreendido se nele incluirmos o meio ambiente, que lhe é ao mesmo tempo íntimo e estranho e o integra sendo ao mesmo tempo exterior a ele” [Morin,2010:22]. Religar o que está disjunto é a proposta. A divisão da organização política em setores muito específicos que não se conversam tem sido um problema bastante evidenciado nas administrações públicas.

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Chauí [2008:65] nos dá, através da descrição do que seja a pintura, a essência do olhar cultural: a descrição de Chauí sobre a pintura é uma excelente metáfora sobre as contraposições complementares que a complexidade cultural comporta. “Que é a pintura? A expressão do enigma da visão e do visível: enigma de um corpo vidente e visível, que realiza uma reflexão corporal por que se vê vendo; o enigma das coisas visíveis, que estão simultaneamente lá fora, no mundo, e aqui dentro em nossos olhos; enigma da profundidade, que não é uma terceira dimensão ao lado, da altura e da largura, mas aquilo que não vemos e, no entanto, nos permite ver; o enigma da cor, pois uma cor é apenas a diferença entre cores; o enigma da linha, pois ao oferecer os limites de uma coisa, não a fecha sobre si, mas a coloca em relação com todas as outras”. Segundo Morin [2011:36], uma das conclusões dos estudos sobre o cérebro humano é sua capacidade de trabalhar com o insuficiente, com o vago, com aquilo que não é exato. No texto, o vidente que é visível, o que está lá fora, mas também dentro, o que não vemos, mas percebemos e o limite que não se fecha são ingredientes da complexa visão do mundo, que comporta um conceito de cultura mais real. A cultura deve ser vista a partir dos conceitos da complexidade, incorporando interações, contradições, complementaridades, acasos, conflitos, incapacidade de uma ordem absoluta; tendo em conta que a “aceitação da complexidade é a aceitação de uma contradição, é a ideia de que não se pode escamotear as contradições numa visão eufórica do mundo” [Morin, 2011:64]. 2. O ELO ENTRE CULTURA E CIDADE Um bom início para avaliar cidade e cultura está no exame do conceito de autonomia do homem, complexa por sua dependência das condições culturais e sociais. Entendemos que para conquistar a autonomia é preciso uma linguagem, uma cultura, um saber. É preciso um processo de escolha e decisão, e acreditamos que tanto mais variadas sejam as ideias melhor a capacidade de decidir, maior reflexão e maior a autonomia. Mas, na verdade, com frequência pensamos gozar de uma liberdade de escolha, que não é verdadeira. “Somos uma mistura de autonomia, de liberdade, de heteronímia, e eu diria mesmo, de possessão de forças ocultas que não são simplesmente do inconsciente trazidas à luz pela psicanálise” [Morin, 2011:67], mas que estão relacionadas ao nosso cérebro e que passam pela razão, racionalidade e racionalização. Considerando-se razão como a busca da coerência; racionalidade como o jogo de estruturas lógicas que nos permitem dialogar com o real e a racionalização como a tentativa de enquadrar a realidade num sistema coerente; percebemos que é nossa tendência descartar o que não entendemos, selecionar o que favorece a nossa ideia e menosprezar o que desfavorece. E neste processo cerebral, produzimos.

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Um dos postulados da teoria da complexidade reside na compreensão de que a parte faz parte do todo e que o todo não existe sem a parte. Como sujeitos integrantes de culturas, somos “produtores de um processo que é anterior a nós mesmos”, assim somos produtos e produtores simultaneamente: “indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos” [Morin, 2011:74]. Numa analogia com o espaço, vamos encontrar em Milton Santos uma correspondência quando ele define que “sistemas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma” [2008:63]. A partir desta constatação, Santos propõe considerar o espaço um conjunto indissociável, tratado como processo e como resultado, analisado através de sua multiplicidade e da diversidade de situações e processos e que, por isso, não é uno, mas complexo, contraposto à racionalização cartesiana da disjunção entre o homem e o objeto. Esta ideia é ratificada por Fortuna e Silva [2002:420], na proposta de analisar as relações entre cultura e cidade, definindo que a cultura, na sua diversidade de ações, tem uma espacialidade própria, que se caracteriza como contextos sociais e que vão ser utilizados nos planos e políticas de revalorização das cidades. Ainda, segundo eles, “a cidade e a cultura urbana são realidades incoerentes, recheadas de subcidades e subculturas. São estes fragmentos, no entanto, que constituem a cidade e a cultura urbana no seu todo, e lhes dão vigor”. Espaços homogeneizados contribuem para subtrair a complexidade, diminuindo a vitalidade local. Chauí, ainda em seu artigo de análise sobre cultura e democracia, chama atenção para a democracia como forma política na qual, “ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho sobre os conflitos” [2008:67]. Defende ainda que a democracia como uma forma de vida social, a cada solução que encontra, reabre seu próprio problema. Ora, esse é sem dúvida, um dos conceitos mais pertinentes da teoria da complexidade moriniana, que defende o não fechamento de soluções definitivas, “... a realidade é mutante, não se esqueça (sic) que o novo pode surgir, e de todo modo, vai surgir” [Morin, 2011:83]. Isto não implica em desprezar a ordem, o determinismo, mas considerar a possibilidade de renovação, de incerteza, do acaso; da possibilidade de uma nova ideia. A complexidade se situa num processo mais rico, no qual a ação é “a estratégia que permite, a partir de uma decisão inicial, prever certo número de cenários para a ação, cenários que poderão ser modificados segundo as informações que vão chegar no curso da ação e segundo os acasos que vão se suceder e perturbar a ação” [Morin, 2011:79]. Temos então a cidade, como o espaço no qual cada nova ação retroage sobre si mesmo e sobre o ambiente, estabelecendo um elo indissociável entre cultura e cidade.

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3. A CIDADE CONSUMIDA COMO MERCADORIA É Otília Arantes [2000], quem nos aponta a terceira etapa do urbanismo, no qual a cidade, até então plena de valor de uso, passa a ser examinada e gerenciada a partir de conceitos que estabelecem valores de troca, valores de mercado. O ‘tudo é cultura’, da segunda metade do século XX, se transformou numa cultura de mercado onde o ‘poder da identidade impera’. Diz-se, então que a cidade não ‘se vende’, ou seja, não se torna importante no cenário global, se não estiver enquadrada numa política culturalista, cuja base de conceitos gira em torno de ideias mercadológicas do tipo ‘image-making’ [consolidando a imagem], políticas ‘business-oriented’ [relacionadas aos negócios] e ações ‘market-friendly’ [adequadas ao mercado]. Os conceitos básicos desta teoria marqueteira, pela sua ligação direta com o consumo diário na organização capitalista atual, são teorias de fácil aceitação acrítica. Fazem parte da racionalização da decisão cotidiana de compra num mercado de consumo altamente competitivo, e por isso mesmo, pleno de estratégias de venda, exacerbadas diariamente, nos meios de informação e comunicação. Como diz Morin, são forças ocultas que nos impelem a uma racionalização estreita, com foco parcial, muitas vezes nos fazendo acreditar num processo racional de escolha, que na verdade nos é apresentado sob uma ótica específica. É interessante destacar, que no correr da história humana, a cultura tenha sido vista, muitas vezes, como um movimento de expressão contrário à opressão, mas que nos dias de hoje ganhe um lugar em estratégias urbanas que geram a gentrificação, a homogeneização de espaços e a cada vez mais clara partição da sociedade em camadas mais favorecidas e outras desfavorecidas. Otília afirma que para o sucesso dessa política, que transforma a cidade em mercadoria, não é possível perder de vista a dimensão cultural, usada aqui, exatamente neste valor literal de medida, de valor de troca das cidades no cenário global. Uma das características dessa estratégia de implantação de ações urbanas é o uso das palavras chaves, muitas vezes de forma a dirigir a percepção da ação, com adaptações sutis, que lhes conferem um valor de importância. O que tem resultado essa política cultural, aplicada em todo mundo em ‘pacotes estratégicos’? Ganham novas conceituações tais como “revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, promoção, requalificação, até mesmo renascença, mal encobrindo, pelo contrário explicitando o sentido inicial de reconquista, inerente ao retorno das camadas afluentes ao coração das cidades”. As cidades ganham também uma ‘organização’ em algumas áreas, definida a partir da exclusão da contraposição de quem entra e quem sai legitimada pela dimensão cultural. São muitos os exemplos, do Soho de Nova York a Docklands de Londres, o processo de recuperação urbana expulsou moradores locais, que viram destruídos anos de vivência social. Como será o Porto do Rio? Diferente?

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Segundo Morin [2011(2)], o pensamento fundado na noção do homo economicus, determinado pelo interesse pessoal não vê o que escapa deste interesse e destrói as relações que precisa para obter o que objetiva. É uma ‘visão produtivista/quantitativista’ que ignora a essência da qualidade de vida. Ele acredita ainda, que uma forma fechada de racionalização está se espalhando por todo o planeta, produzindo uma irracionalidade total. Alerta para o perigo da crise. “A crise se manifesta não somente como uma fratura no interior de um continuum, perturbação num sistema aparente estável, mas também como crescimento das eventualidades, isto é, das incertezas. Ela se manifesta pela transformação das complementaridades em antagonismos, pelo aumento rápido das transgressões em tendências, pela aceleração do processo desestruturante/desintegrante (feedback positivo), pela ruptura das regulações, pela deflagração de processos incontrolados tendendo a autoamplificar-se por si mesmos ou chocar-se violentamente com outros processos igualmente antagônicos e incontrolados. Examinando o mundo atual, a crise aparece não como um acidente, em nossas sociedades, mas como um modo de ser” [Morin, 2010:23]. A cultura, como elemento da produção humana, sofre as mesmas consequências. No entanto, a crise tem aspectos divergentes e antagônicos, mas necessariamente complementares. É na crise que se percebe as maiores necessidades. É a crise que nos traz a evolução através de rupturas e transformações radicais. Otília atenta para um aspecto crísico: a estetização do medo, com exemplos desde as habitações expulsas ou bloqueadas, até a impossibilidade de permanência nos parques requalificados e guardados por seguranças. Chama atenção, também, para o significado conflitante de cultura, que de ações socialmente espontâneas, deixa de ser “o outro ou mesmo a contrapartida, para tornar-se parte decisiva dos negócios...um grande negócio” [2000:48]. O grande negócio gera então Grandes Projetos por várias grandes cidades do mundo. Modelos e planos são reinventados. Novas articulações entre atores públicos e privados. Um conceito de progresso e desenvolvimento que, a cada tempo, se torna mais perigoso e catastrófico, ratificando a ideia dessa política cultural como uma estratégia fatal, título do texto de Otília Arantes. Há, ainda, nesse movimento, o dogma universal de “que o progresso é uma lei implacável da história humana” [Morin, 2011[2],23]. É preciso estar sempre em desenvolvimento, em competição, agora relativa às cidades em um mundo globalizado. Mas o certo é que há muito descobrimos que o futuro é incerto. A ideia de um progresso, que a partir do crescimento econômico gerava os desenvolvimentos econômico, social e individual não considerava pontos importantes: • estamos num universo onde atua um princípio de agitação, dispersão e desordem; • todo trabalho comporta desperdício e degradação de energia; • todo organismo vive, não somente da vida, mas também da morte.

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Assim, todo progresso corre o risco de se degradar e comporta o duplo sentido de progressão e regressão. O progresso como necessidade humana influiu na concepção do mito tecnoburocrático. Mas o futuro incerto nos faz olhar o passado e reconstruir a história, agora com o olhar do presente, percebendo a interdependência entre passado, presente e futuro. É preciso substituir a concepção simplista da causalidade linear para um futuro previsível, por uma visão complexa, já que o passado forma seu sentido de história a partir do olhar posterior. Efeitos e contrafeitos se entrelaçam: é um novo enfoque a cada novo presente, que modifica o passado. “O conhecimento do presente requer o conhecimento do passado, que requer o conhecimento do presente” [Morin 2010:14]. E as inovações, criações e invenções futuras dependem do presente. Parte do futuro já existe e vai operar as ações, interações e retroações que constituem o presente, mas de maneira incerta. Considerando o tempo como fator de referência cultural, é preciso, de acordo com o pensamento complexo desenvolvido por Morin, atentar que o instrumento de ligação que nos faz deslocar entre presente, passado e futuro é o conhecimento, e ele não é linear, é multidimensional, sem fator dominante. É importante ainda, perceber que também a realidade é multidimensional, comportando fatores geográficos, técnicos, políticos, econômicos, ideológicos e que existe uma rotatividade de evidência desses fatores na evolução humana. É fato que a evolução segue um princípio multicausal, tanto intrínseco ao processo, como exterior a ele. E são as invenções, inovações e criações que modificam a evolução, podendo ampliar-se e potencializar-se em tendências, infiltrar-se modificando a tendência dominante: “a evolução é deriva, transgressão, criação, é feita de rupturas, perturbações e crises” [Morin, 2010:17]. A teoria do modernismo para as cidades foi direcionada para a pretensão do equilíbrio da vida urbana organizada, dentro da perspectiva do progresso contínuo, do desenvolvimento linear. O pós-modernismo elaborou a crítica na superficialidade da meia solução de retomada de parâmetros culturais anteriores, mesclados a soluções intrinsicamente modernas. A evolução tecnológica e informacional reconfigurou as necessidades sociais humanas. Ainda não se tem clareza das profundas modificações que afetam os grupos sociais no presente, mas já se percebem modificações que estabelecem duas formas de ‘olhar o mundo’, analisadas por diversos autores: a global e a local. Contrapostos e complementares essas duas vertentes provocaram algumas modificações na organização dos contextos sociais. A cidade, desde os meados do Século XX, passa a exercer um elemento de destaque no jogo global do poder, criando as bases para que, como foi dito antes, adquira valores de mercadoria, inserida nos fluxos da economia global. A cidade, que passa por este projeto de revalorização da imagem, vai ter os seus espaços fragmentados, em relação aos dois aspectos importantes: o global e o local. De acordo com Santos [2008:284], há espaços que se agregam, sem descontinuidade, constituindo a versão tradicio-

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nal de região; e há aqueles que, embora separados uns dos outros, “asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia”. Os primeiros, as horizontalidades correspondem ao local e tem uma função básica de produção. Os outros, as verticalidades, controlam o poder, e estão ligadas através da circulação, do intercâmbio e do controle, relacionados à perspectiva Global. Fortuna e Santos [2002:433], citando Doreen Massey, indicam os espaços da “geometria do poder”, traduzidos pelo sucesso de aproximação ao centro [global] contraposto a localização, que vai significar “incapacidade e sujeição à condição de marginalidade social, política e cultural”. Essa marginalidade, caracterizada como “laterização social” é muitas vezes inserida numa estratégia de reconhecimento dos direitos, dentro das perspectivas de “promoção transnacional da imagem da cidade”, resultando em “fragmentações sociais, políticas espaciais ou mesmo estéticas”. Essas fronteiras construídas e imaginadas socialmente, sem delimitação específica no espaço das cidades, terminam por sofrer as interações e retroações consequentes de um sistema complexo: “....temos assistido à desterritorialização dos fluxos econômicos, culturais, simbólicos e informativos.” [Fortuna e Silva, 2002:432] É neste contexto espacial incerto, que a recuperação urbana culturalista vai ser implantada, de acordo com as exigências da verticalidade, mas num contexto complexo, que compreende também as horizontalidades, incluindo em várias perspectivas as ações, interações e retroações, que se mesclam na vida das cidades. 4. REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ESPAÇO E CULTURA A primeira questão que se coloca é relativa à ideia da cidade como espetáculo. A outra se relaciona aos centros das cidades. Fortuna e Silva, citando Mumford, consideram que a cidade é “a teatralização da ação social e a estética simbólica da unidade coletiva” [2002:423]. Os centros citadinos da pré-industrialização eram o palco principal das ações culturais ritualizadas, específicas de cada cultura. Hoje, já não traduzem mais a heterogeneidade e a diversidade urbana, e tornaram-se locais de passagem ou espaços homogêneos segregadores ou foram convertidos em locais de visitação. Algumas indagações importantes se colocam neste ponto: será possível que os “palcos” do espetáculo urbano, ou seja, seus espaços públicos centrais ou não, possam ser resgatados como espaços de ação social, através de planos e projetos de recuperação urbana baseados em atividades culturais? Quais são os desvios que este tipo de estratégia pode sofrer? Na cidade contemporânea, o que tem acontecido com a cultura urbana? Arantes [2000:23] aponta o nascimento desta etapa urbanística numa conjunção de ações tanto na Europa, como nos Estados Unidos e cita a crítica de David Harvey para o porto de Baltimore, que ele denomina “a utopia dos incorporadores: a renovação do Inner Harbor de Baltimore”. Em sua análise [Harvey, 2009:182, 189], apresenta dados de pesquisas que funda-

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mentaram os processos do projeto, demonstrando os equívocos dos investimentos públicos num processo de gentrificação sem escalas. Hotéis, arenas, centros de ciências, edifícios de escritórios e de apartamentos, que só conseguiram comercialização depois de alguns descontos, foram empreendimentos, na sua maioria, financiados por uma parceria público/privada, cuja parcela financiada com dinheiro da população era muito maior do que os investimentos privados. No caso do Hyatt Regency Hotel, avaliado em 35 milhões de dólares, o investimento da empresa foram “meros 500 mil dólares”. Depois de iniciado esse processo de recuperação as perdas públicas só tendem a aumentar, na medida em que surgem os acasos e incertezas, os quais o setor que lucra, não está disposto a assumir, requisitando para sua continuidade mais investimentos públicos. “Para tornar compensadora cada leva de investimentos públicos, faz-se necessária mais uma leva. A parceria entre o poder público e a iniciativa privada significa que o poder público entra com os riscos e a iniciativa privada fica com os lucros” [Harvey, 2009:190]. O simples fato de se trabalhar com os acasos e incertezas, vistos como parte do processo, pode ter consequências até mesmo nos níveis contratuais das parcerias público-privadas. Ainda no campo dos investimentos, Fortuna e Santos, em análise do processo do desenvolvimento português nos chama à atenção para a incapacidade das administrações locais de arcar com os custos dos grandes projetos, característica mais dominante nos processos atuais de recuperação urbana culturalista. Considera legítima “a suspeita acerca da sobrequalificação” de espaços específicos, “bem como a sua privatização e sujeição às regras do mercado” [2002:429]. Essa sobrequalificação, aliada à obediência mercantil, destrói as características de complexidade cultural das localidades, para atender à verticalidade mencionada por Milton Santos. Um dos pressupostos da teoria da complexidade pra mudar as características da evolução do mundo atual seria “dar autonomia as coletividades” [Morin, 2010:49]. Mas a política de desenvolvimento e recuperação das cidades baseadas num culturalismo global deteriora cada vez mais essa possibilidade de autonomia, conforme definida neste trabalho. Ainda citando Fortuna e Santos que, em referência a outros autores, indicam que, pode-se perceber nos projetos de renovação cultural bem sucedidos, uma importante participação dos agentes culturais locais. Em contraposição, outros projetos, cuja assimilação é demorada, muitas vezes, dependentes de novos investimentos públicos, como no caso de Baltimore, percebe-se a ocorrência de “exclusão social, fechamento e atomização dos sujeitos no espaço privado, com prejuízo da consolidação da participação na vida pública de um conjunto de agentes de idade, sexo, classe, estilos e vida e etnias diferentes” [2002:430]. Outra tendência que se destaca no processo de globalização é a hegemonização dos campos de produção e consumo cultural, que pode ser analisada de outro ponto de vista. Considerando-se as retroações, conceito do pensamento complexo, podemos avaliar uma complemen-

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taridade importante neste processo: “o impulso de homogeneização da oferta contrapõe-se a um impulso de heterogeneização na procura”, que pode ser uma possível interpelação que a cultura local pode fazer e já o faz à globalização. Para tal é importante “complexificar essa dicotomia” [Fortuna e Santos, 2002:237]. Uma análise do Professor Carlos Lessa, em sua palestra no evento de comemoração dos 40 anos da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, ao descrever a capacidade criativa brasileira, no sentido de absorver o que lhe é externo e transformá-lo em outra coisa, com significado local, nos fez atentar para um exemplo peculiar: o XTUDO. Nos fez perceber o caráter antropofágico inerente à nossa cultura, demonstrando que desde sua chegada ao Brasil, como cheeseburger, esse sanduíche transformou-se em outro, com novas características e outros ingredientes, e acima de tudo, com outra identidade. De hambúrguer, queijo e pão, passou a um sistema combinatório com diversos elementos adicionados aos originais, como milho, ervilha, queijo parmesão, maionese, batata frita, salada e outros, que permitem ao comprador estabelecer suas preferências, montando a combinação que lhe convier. Foi absorvido e devolvido em transformação. É fato que apesar desse processo culturalista globalizado intensificar a uniformização cultural, o XTUDO comprova que o poder de retrabalho dessa cultura autoritária pelas sociedades locais não deve ser subvalorizado. Ainda sobre a complexificação das relações que articulam o sistema mundial, nessa vertente de recuperação urbana culturalista, existe o fator de localização do global ou seja, “fica cada vez menos possível tratar indiferencialmente (sic) os públicos sem cuidar da diversidade das maneiras de ser e agir e das referências simbólicas [tradições, linguagens e ícones, etc..] que os caracterizam” [Fortuna e Santos, 2002:442]. Este é um dado, o aumento da interdependência, que pode e deve ser explorado na contramão dos processos de homogeneização. Se examinarmos a história, a partir da perspectiva dos valores do presente, podemos “perceber que as cidades coloniais foram arenas multiculturais muito antes de se tornarem metrópoles urbanas do século XX”, e que o processo de globalização não é novo na história da humanidade, variando somente a escala, na contextualização das tecnologias existentes. Mas é exatamente esta tecnologia que vai permitir o acirramento do que Mike Featherstone, citado por Fortuna e Santos [2002:448], denominou de terceira cultura, referindo-se a agentes “detentores de competências técnicas e profissionais específicas, que lhes permitem viver entre culturas e estabelecer comunicação entre si, através da retradução dos seus sentidos e significados”. Têm em geral um descolamento em relação ao local, contraposto ao sentido antropológico que o espaço adquire para os cidadãos locais. Ora, uma das premissas do pensamento complexo, definido por Morin, é a disjunção do saber em especialistas, desconectados do contexto e direcionados para relações específicas que

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lhes subtrai, primeiro a possibilidade de interação com o todo; no caso da cultura, com o contexto; e segundo, a responsabilidade sobre as consequências da sua ação em relação a este contexto. Este monopólio de expertise, defendem Fortuna e Santos, interfere no relacionamento dos sujeitos na sociedade: “O grau de maior ou menor resistência, visibilidade e reconhecimento do local encontra-se cada vez mais desligado daquilo que seus representantes conhecem, e mesmo de quem conhecem e com quem se relacionam, e, em contraposição surge crescentemente condicionado por circunstâncias e ambientes sociais e técnicos alheios à vontade destes” [Fortuna e Santos, 2002: 450] O movimento de resistência deste sentido autoritário do conhecimento nos é dado pelo resultado criado pela superespecialização que permitiu um avanço científico e tecnológico considerável que nos aponta em duas direções. Segundo Morin, há a necessidade de religar esse conhecimento, e o devemos fazer trabalhando a relação entre a parte e o todo, entre o todo e a parte. Defende que a patologia da razão está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real. Fortuna e Santos defendem o uso das modernas tecnologias de informação, como recursos decisivos, a partir dos quais os mapas cognitivos do local e do global podem ser reelaborados, ou seja, efetuada uma religação entre essas duas perspectivas que evite que o local fique cada vez mais a margem do global. Muito ainda se pode explorar, na relação entre cultura, espaço e a teoria da complexidade. Mas trabalhar com a complexidade é compreender que a ação é estratégia, e entender que devem ser previstos os acasos que vão se suceder e perturbar a ação. A estratégia luta contra os acasos e busca a informação, mas o acaso não é apenas o fator negativo a ser reduzido. “É também a chance que se deve aproveitar” [Morin, 2011:79], principalmente para trabalhar com a cultura e o espaço da cidade. Para tal, é fundamental pensar o projeto em toda a sua complexidade de decisões, em função das relações local/global, parte/todo, específico/genérico, certeza/ incerteza, definições/acasos e principalmente exclusão/ inclusão. A partir do pensamento de Morin, e juntamente com ele, considerar que, estamos num mundo que nos parece simultaneamente em evolução, em revolução, em progressão, em regressão, em crise, em perigo. Vivemos tudo isso ao mesmo tempo. Precisamos considerar que, a eficácia política, assim como a eficácia da sexualidade precisa de incontáveis esforços infrutíferos, de desperdício de energia e de substância vital para chegar a uma fecundação. Que semear a vida, para nós, é dispender esforços inumeráveis, é produzir embriões sem número. Semear pode coincidir com se amar, isto é, com o amor que transfigura dois seres e encontra sua finalidade em seu êxtase de comunhão [Morin, 2010:35]. E eis o símbolo que cada qual pôde e pode viver....

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, O. (2000) Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas, in A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. CHAUÍ, M.. (2008) Cultura e Democracia, in Critica y Emancipación, junio[1] 53-76, FORTUNA, C. e SILVA, A. S.. (2002) A cidade do lado da cultura: Espacialidades sociais e modalidades de intermediação cultural, in A globalização e as Ciências Sociais de Boaventura de Sousa Santos, São Paulo, Cortez. HARVEY, David. (2009) Espaços de Esperança, São Paulo, Edições Loyola. MORIN, Edgar. (2002) Repensar a reforma/ Reformar o pensamento: a cabeça bem feita. Lisboa, Instituto Piaget. —idem. (2010) Para onde vai o mundo? Petrópolis, Editora Vozes. — idem. (2011) Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina. — idem. (2011_2) Para um pensamento do sul, in Anais do Encontro Internacional para um pensamento do Sul, SESC | Departamento Nacional. Rio de Janeiro SANTOS, Milton. (2008) A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. Edusp – Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo.

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CLUBE DE ESPECTADORES: OS SÓCIOS COMO PROTAGONISTAS PARA O DESENVOLVIMENTO CULTURAL Maria Emília Ribeiro1 Janaína Dias2 RESUMO: O Clube de Espectadores representa para a Gerência de Cultura da Escola Sesc de Ensino Médio um grande avanço na formação de público. Depois de seis anos de existência do programa, venho traçar um perfil de alguns dos seus principais sócios, na tentativa de elucidar as ações futuras do programa, estabelecendo um diálogo direto entre espaço e comunidade, através de atores sociais e culturais que assim se tornaram espontaneamente. O Clube de Espectadores é, antes de qualquer coisa, uma política cultural de ação formativa, e com esse intuito, escrevo este artigo, a fim de mostrar como os sócios podem se tornar peças chaves no desenvolvimento cultural local. PALAVRAS-CHAVE: Clube de Espectadores, Sócios, Cidadania Cultural.

1. APRESENTAÇÃO O Clube de Espectadores é um programa que foi desenhado pela Gerência de Cultura da Escola Sesc de Ensino Médio desde 2008, quando o Teatro Escola Sesc foi inaugurado, e tomou forma ao longo desses anos, chegando ao ano de 2014 com 2.156 sócios. Atualmente, o que hoje se tornou o Espaço Cultural Escola Sesc, ainda trabalha com as mesmas questões que existiam quando o Clube de Espectadores foi criado: como atrair o público que está próximo ao espaço? A programação interage com o gosto do público? O gosto do público é necessário ao espaço, ou é sua função oferecer a diversidade e fruição de diversas linguagens e produções artísticas? A partir dessas questões, percebi que se fazia necessário uma análise do perfil dos sócios, para tentar diagnosticar benefícios para além dos já estabelecidos pelo programa e, através de entrevistas realizadas com cinco sócios, entender a relação deles com o espaço físico, o entorno, Graduanda do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense. Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/FAPERJ) e componente do grupo de pesquisa de Gestão Cultural do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (PPGAd/UFF). [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (PPGAd/ UFF). [email protected] 1

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a atividade cultural, como também a frequência no espaço e nas ações da Gerência de Cultura. Para tanto, será necessário expor melhor o programa, o que ele oferece, o que a Gerência de Cultura entende como sócio e o como o sócio se percebe dentro deste espaço. 2. INTRODUÇÃO 2.1. A escola Sesc de ensino médio A Escola Sesc de Ensino Médio foi inaugurada no ano de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Jacarepaguá. É uma escola-residência, gratuita, que recebe alunos de todo o Brasil. No ano de sua inauguração, a escola recebeu 1763 alunos, que iniciaram na primeira série do ensino médio. Atualmente, a capacidade é para 500 alunos nas três séries. Com no máximo 15 alunos por turma, a escola trabalha a formação cidadã do indivíduo, aliada a formação acadêmica e profissional. Os alunos residem na escola, assim como a maioria dos professores e gestores. Visto que convivem em comunidade, a escola tem toda estrutura necessária ao convívio desta. Vamos focar particularmente na Gerência de Cultura e sua atuação no campus escolar e ao redor dele, no entorno da Escola Sesc de Ensino Médio, onde o Clube de Espectadores tem sua atuação. A Gerência de Cultura é a responsável por administrar todo equipamento cultural da Escola Sesc de Ensino Médio, promover ações, programas e atividades que proporcionem a comunidade, tanto interna quanto externa4 a vivência no âmbito cultural. 2.2. O Clube deEspectadores Quando a equipe da Gerência de Cultura assumiu o espaço em 2008 e inaugurou o equipamento cultural hoje denominado Espaço Cultural Escola Sesc, se viu inserida em um contexto que não é muito habitual para espaços culturais: localizar-se dentro de um campus escolar com dedicação a formação cultural destes alunos, mas também compromissada a abrir suas portas a quem desejasse ter acesso à cultura por meio do espaço. Se constitui aí, então, a necessidade da Gerência de Cultura conhecer seu público, afinal o desafio de programar atividades culturais não é pertinente se um espaço não conhece seu público, quem ele quer atingir, quem está por perto. Surge neste ano o programa Clube de Espectadores com este intuito: conhecer o público, agir na sua formação e fidelizar ele, tornando a prática de convívio com um espaço cultural possível e essencial. Desde então a equipe da gerência começa a se dar conta do desafio ali constituído e a importância do programa que estava vindo à tona. Neste panorama é inserido o programa do Informações retiradas do site da Escola Sesc de Ensino Médio; http://www.escolasesc.com.br/a-escola/quem-somos/acesso em 03 de novembro de 2014. 4 Internos e externos é uma denominação utilizada para diferenciar quem é residente na Escola Sesc de Ensino Médio e quem não reside nela. Assim, alunos e professores são exemplos de internos e o público espontâneo, que não reside na Escola, é exemplo de externo. 3

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Clube de Espectadores, com a perspectiva de trabalhar naquele local o conceito de cidadania cultural, como elucida Marilena Chauí neste trecho: Trata-se, pois, de uma política cultural definida pela ideia de cidadania cultural, em que a cultura não se reduz ao supérfluo, entretenimento, aos padrões do mercado, à oficialidade doutrinária (que é ideologia), mas se realiza como direito de todos os cidadãos, direito a partir do qual a divisão social das classes ou luta de classes possa manifestar-se e ser trabalhada porque no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural. (CHAUÍ, 2008, p.66) Quando o programa foi criado - com a expectativa de alinhar o público do teatro à sua programação, tornando-os assíduos a uma variada grade de espetáculos para diferentes gostos – o novo associado deveria concordar com o regulamento5 que lhes informavam os objetivos do programa, de modo que aqui escritos, também se tornam claros aos leitores deste artigo. Inicialmente, deixo expostos os conceitos norteadores do programa, traçando assim, em seu início, estratégias de ação para alcançar objetivos e metas: • Desenvolvimento cultural da sociedade – todos os indivíduos devem ter a possibilidade de aperfeiçoamento do conhecimento em relação à cultura, ao acesso e contato com linguagens artísticas distintas e a expressar sua cultura de forma artística, já que todos são sujeitos e produtores culturais e não apenas os artistas; • A democratização dos bens culturais – distribuição e popularização da arte, através da ampliação do acesso às peças, exposições, filmes, livros, ou seja, todo e qualquer produto resultado de uma atividade cultural, assim como seus locais de fruição e consumo; • A ocupação e utilização das potencialidades dos equipamentos culturais disponíveis – iniciativas que tenham como princípio o envolvimento de comunidades do entorno com as práticas culturais desenvolvidas nos equipamentos culturais disponíveis no campus da Escola Sesc. Os materiais devem ser utilizados pela comunidade, pois este é o foco das atividades e programas. É através da participação que se concretiza o direito à cultura; • Pertencimento comunitário que visa contribuir para a construção do direito à cidadania – cidadania é a qualidade de quem usufrui dos seus direitos civis e políticos. O acesso às produções culturais é um desses. O programa auxilia os indivíduos através do sentimento de pertencimento – de fazer parte de uma coletividade e se identificar com esta por possuírem os mesmos símbolos que expressam valores, medos e aspirações – a desfrutar desse direito; O regulamento foi retirado da dissertação de mestrado “Clube de Espectadores: a relação entre cultura e cidadania”, de Viviane da Soledade Tôrres, assessora técnica da Gerência de Cultura da Escola Sesc de Ensino Médio. 5

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A Revista Clube de Espectadores é uma estratégia de ação que já foi implantada e segue sendo o principal meio de divulgação do Espaço Cultural Escola Sesc. Publicada trimestralmente, a revista cumpre com o seu papel informativo, sendo entregue em casa pelos Correios, benefício exclusivo para os sócios. O restante do público que não é associado pode ter acesso à revista em pontos de distribuição e no Espaço Cultural Escola Sesc; • A criação da revista Clube de Espectadores como veículo de aproximação entre público, artistas e técnicos. A revista apresenta a programação detalhada do Espaço Cultural Escola Sesc, pretendendo informar aos sócios, parceiros sociais e demais frequentadores (e possíveis sócios) as ações desenvolvidas ao longo do ano. Bimestralmente são publicadas entrevistas com artistas que fazem parte dos programas, dicas culturais disponíveis para consulta no acervo, tais como livros, dvd’s e cd’s do Canto Poético6 e Banco de Con/Textos7, além de informações sobre todos os programas realizados, as linhas de ação da Gerência de Cultura da Escola Sesc e caminhos para que o espectador maximize sua fruição. É também um convite a todos os interessados para um convívio cultural regular num dos poucos equipamentos culturais da Zona Oeste. O regulamento ainda prevê benefícios aos sócios: • Prioridade na inscrição de oficinas, cursos, palestras, debates e/ou qualquer atividade cultural que haja limitação no número de vagas; • Brindes produzidos para os programas realizados no teatro (camisa, chaveiro, boné, livro, etc.); • Recebimento através de e-mail e correspondência informações sobre a programação do Espaço Cultural Escola Sesc, bem como a Revista Clube de Espectadores; • Participação em assembleia anual para sugestão de programação do teatro; • Atividades exclusivas para associados; • Prioridade de agendamento nos ônibus de Público Dirigido e no acesso ao Ônibus Cultural; • Acesso livre na portaria da Escola Sesc de Ensino Médio mediante a apresentação da carteirinha em dias de programas de fruição realizados no Espaço Cultural Escola Sesc; • Empréstimo de livros, cd’s, dvd’s e outros materiais que compõem o acervo do Canto Poético e do Banco de Con/Textos. Cada sócio tem o direito de retirar até três volumes, podendo permanecer com estes por até quinze dias. O Canto Poético é um espaço cultural no mezanino do teatro, voltado para a leitura de livros e audições de CD’s de poesia. 7 O Banco de Con/Textos se configura como importante fonte de pesquisa e acuro técnico no campo das artes cênicas. Com atividades voltadas para artistas, produtores, estudantes de artes cênicas e demais interessados nos estudos teatrais, o Banco de Con/Textos é um espaço de convivência para pesquisa e estudos coletivos, além de ser destinado também a encontros e oficinas de dramaturgia. 6

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É também de dever do sócio cumprir com alguns compromissos com o Espaço Cultural Escola Sesc: • Respeitar as regras da Escola Sesc de Ensino Médio, tais como: não fumar nas dependências da escola (inclusive em lugares abertos) e não consumir ou portar bebidas alcóolicas no campus; • Zelar pela conservação do espaço cultural, assim como do material oferecido para sua fruição; • Seguir as normas de utilização dos coletores de lixos recicláveis, colaborando com a política de coleta seletiva proposta pela instituição; • Não consumir qualquer tipo de alimento nem mesmo bebidas dentro do teatro, para evitar que suje o mesmo; • Desligar ou colocar o telefone celular em modo silencioso porque o barulho desconcentra os artistas e a plateia; • Filmar e/ou fotografar o espetáculo somente com autorização prévia da produção do espaço cultural. Alguns itens desse regulamento estão sendo implantados pouco a pouco, como é o caso do livre acesso através da carteirinha de sócio, que necessita de um sistema de softwere capaz de ler individualmente a carteirinha dos sócios na portaria da Escola Sesc. Outros itens estão temporariamente suspensos, pois irão passar por melhorias, como o empréstimo de livros, cd’s e dvd’s do Banco de Texto e Canto Poético, que vão passar por reformas para reestruturar todo seu espaço físico e sua catalogação, de forma que fique mais fácil para que o associado encontre as peças que necessita. Já sobre a assembleia, a primeira foi realizada no ano de 2014, e foi utilizada com estratégia de ação para esta pesquisa, que irei explanar mais a frente. É de extrema importância frisar que o Clube de Espectadores, além de uma formação de público, age como política cultural no meio onde está inserido, tentando dinamizar uma área que antes não tinha uma oferta de programação variada. A criação de direitos e deveres para o sócio dentro do regulamento do Clube é feita na intenção de não apenas regulamentar as regras para convivência no espaço, mas principalmente para que o sócio sinta-se pertencente ao local, com trocas efetivas entre o espaço e a parte constituinte dele e todos os sócios que se dedicam a participar ativamente. A participação do cidadão nesse programa fortalece uma rede de cultura, capaz de dinamizar as atividades culturais não só no próprio espaço, mas também fora dele, nas comunidades e no entorno de cada sócio, que transmite assim a importância de se fazer articulação entre entidades e população em áreas que o governo sozinho não dá conta para oferecer atividades culturais. A formação de uma rede no entorno do Espaço Cultural Escola Sesc proporcionaria a dinamização das atividades, sem a necessidade de uma liderança governamental, tendo no cidadão o principal ator, e no nosso caso, o sócio como protagonista do desenvolvimento

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cultural local, em articulação com o nosso Espaço. O próprio conceito de “redes” elucida que os cidadãos se unem em torno de um objetivo final, respeitando as diversidades e pluralidades, mas se mobilizando em torno de ações compatíveis com este objetivo. Segundo Luana Vilutis: Redes são formas de organização sem hierarquia, autônomas e conectadas. A participação é um de seus principais motores e a gestão compartilhada de responsabilidades é o que organiza o fluxo de tomadas de decisões. As redes configuram estruturas abertas e com expansão ilimitada; elas superam as formas tradicionais de organização piramidal, vertical e centralizada. As ligações em rede propõe outra forma de convívio, orientada pela horizontalidade, pela descentralização e desconcentração das relações. (VILUTIS, 2014, p.11) Localizado ao lado da Cidade de Deus, e à frente da Gardênia Azul, no bairro de Jacarepaguá, o Espaço Cultural Escola Sesc, ao lançar o programa Clube de Espectadores, entende que não conhece seu público no geral, nem os internos nem os externos. O desafio era saber quem estava fruindo e consumindo aquela programação, o que essa relação trazia de troca para o espaço e para o sócio e como o gosto desse público influencia na programação do teatro. No ano de 2013 foram realizadas entrevistas com alguns sócios do Clube de Espectadores (publicadas na dissertação que tomo como base meu artigo), no intuito de verificar se o sócio compreende o conceito e objetivo do programa, trabalhando e focando na construção de uma coletividade, entorno da cidadania cultural que o programa visa trabalhar. Essas entrevistas serviram de material de base para uma pesquisa feita por Viviane da Soledade Tôrres, assessora técnica da Gerência de Cultura da Escola Sesc, que desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre o Clube de Espectadores e a sua relação com a cultura e cidadania, como exemplifica no trecho: A necessidade de desenvolver o Clube de Espectadores partiu da compreensão de que a função de uma programação cultural é adequar-se ao seu público e às suas expectativas, buscando proporcionar novas experiências artísticas e culturais. O desenvolvimento do hábito de frequentar um espaço cultural é o início do processo de formação de espectador. (TÔRRES, 2014, p. 14) Diferentemente da pesquisa de Viviane, o viés que será abordado nesta pesquisa é mais individual, buscando conhecer o perfil de alguns dos sócios mais assíduos na programação do Espaço, identificando o envolvimento deles na cultura e desenvolvimento cultural, tanto em ações promovidas pelo Espaço Cultural Escola Sesc, quanto no papel desses sócios nos locais que atuam, em seu território, promovendo a articulação com diferentes tipos de pessoas e atores sociais e culturais para a melhoria da cena cultural na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

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3. DESENVOLVIMENTO 3.1 Assembleia para Sócios Como previsto em regulamento, uma vez por ano deve ser realizada uma assembleia para que os sócios possam expor o que eles estão achando da programação, dar sugestões acerca dela, críticas e opiniões sobre o espaço físico e o que pode melhorar, dentre outras ações. No dia 15 de setembro de 2014, às 15 horas, aconteceu a assembleia para sócios. O intuito é começar a implantar um sistema anual, participativo, no qual a maioria tenha direito a fala. Para isso, convidamos 25 sócios que mais frequentam o Espaço Cultural Escola Sesc a participar desta primeira assembleia, e mais 05 sócias, professoras do ensino público, que participam conosco do programa Público Dirigido8 que trabalha a formação de público e fruição de espetáculos em parceria com escolas públicas do estado e município do Rio de Janeiro. Nesta primeira assembleia, foram discutidos alguns pontos como segurança, programação, cursos oferecidos, dentre outros assuntos. Notou-se então a diferença entre a realidade dos nossos sócios, e a articulação de alguns deles na área de cultura. O contexto social se fazia presente em todo momento, gerando discussões sobre o oferecimento de atividades gratuitas, sobre a relação entre poder aquisitivo e possibilidade de fruição e diferenciação de públicos. Foi posto em questão por uma sócia a necessidade, segundo ela, de uma oferta de cursos gratuitos para as pessoas que tem baixa renda. A questão discutida gerou um debate sobre oportunidades, afinal, o espaço e os cursos são para todos? Se forem para todos, é necessário criar uma ferramenta para garantir que todos aqueles que não possam pagar um curso ou espetáculo tenha a vaga garantida? A pesquisa inicialmente era delimitar a presença dos sócios em termos quantitativos, porém, diante o material recolhido na assembleia, identificamos um potencial a ser estudado: os perfis do nosso público, dos principais sócios, que representam os associados participando ativamente de tudo que o Espaço Cultural Escola Sesc oferece, e isto identificado, resolvemos pesquisar de que maneira esta relação pode ser proveitosa tanto para o espaço quanto para os sócios. Na assembleia foi aplicado um questionário proposto por nós, que buscava identificar quais os pontos positivos no Espaço Cultural Escola Sesc, o que faltava lá, quantas vezes eles frequentavam, dentre outras perguntas. A maioria deles participa do Projeto Uzina9, e frequentam quase que semanalmente o Espaço Cultural, sendo assim, um público potencial para espetáculos, shows, oficinas, etc. O programa Público Dirigido trata-se de formação de público desenvolvido em parceria com escolas públicas municipais e estaduais do Rio de Janeiro. A Gerência de Cultura, além das atividades para fruição, disponibiliza o transporte desses alunos para que eles tenham fácil acesso ao nosso Espaço e programação. 9 O projeto Uzina oferece laboratórios de artes e produção cultural gratuito para a comunidade interna e externa. Os laboratórios acontecem, em sua maioria, nas instalações do Espaço Cultural Escola Sesc, e garantem certificação ao final do semestre letivo, se cumprido 75% de presença. 8

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A assembleia se constitui, então, como uma estratégia de ação para a pesquisa, por ter um caráter participativo dos sócios, e por ter um diálogo aberto a melhorias no espaço, no programa do Clube de Espectadores, nos benefícios reconhecidos e nos questionados (como o Banco de Con/Textos que se encontra inativo) e nos que ainda podem integrar o programa. 3.2. Entrevistas com os sócios Após a assembleia, foi percebida a necessidade de aprofundar a relação com alguns sócios que nela compareceram, e mostraram diferentes questionamentos e posicionamentos acerca do programa do Clube de Espectadores, como experiências, maneiras de fruir a programação, repertório cultural diferenciado, mobilização de certos locais em torno da cultura, e diferentes realidades cultural/socioeconômica. Para aprofundar este universo, foram feitas 04 entrevistas com quatro diferentes sócios, para po\der traçar o perfil dessas pessoas e identificar como elas podem contribuir, interagir e caracterizar melhorias no programa. Foram elas Vinícius Longo, Ana Clara Katopodis, Jhoalerson Dias e Mônica Maria Rocha. Abaixo seguem relatos dessas entrevistas, onde destacarei o que os sócios ditam como ponto principal do diálogo com a comunidade e as minhas considerações sobre elas. As entrevistas tiveram duas perguntas centrais, que foram “Como é sua relação com o Clube de Espectadores?” e “Como você entende a relação e o diálogo do Clube de Espectadores e a comunidade?”. 3.3. Entrevistas A primeira entrevista foi feita com Vinícius Longo, 31, artista e produtor, morador da zona oeste e sócio do Clube de Espectadores desde 2012. Segundo seu relato, a sua relação com o Clube de Espectadores é intensa, já que ele usufrui muito de todo equipamento cultural do Espaço Cultural Escola Sesc, e que é efetiva a comunicação dessa política cultural com ele, porém não para outras pessoas, pelos mais variados motivos, e um deles é segurança. Para ele a passarela que se localiza em frente a Escola Sesc de Ensino Médio e que a liga o bairro Gardênia Azul e o ponto de ônibus tem um alto nível de periculosidade. Como ele relata neste trecho, livremente transcrito: Porque que eu não vinha mais vezes, eu me perguntava. E hoje eu tenho a conclusão que é de uma possível segurança. O Espaço é muito bom, excelente, mas o Rio de Janeiro, assim como grandes capitais, não são lugares seguros. E a maior fragilidade de vocês nesse sentido é a passarela. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) A segurança, embora atrapalhe o acesso das pessoas, não às impede de ter conhecimento das atividades que acontecem no Espaço Cultural Escola Sesc, segundo ele. A comunicação é classificada como boa por Vinícius, principalmente pelo fato de ter a possibilidade que receber a Revista Clube de Espectadores em casa, isso seria uma forma de atingir o público de

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uma maneira mais sensível, de modo que a Gerência de Cultura transparece sua dedicação para com os sócios. Quando perguntado sobre a relação do Clube de Espectadores em diálogo com a comunidade, Vinícius reflete: Isso é uma coisa muito complicada porque, na verdade, requer um programa político. Quando você quer envolver pessoas que não querem ser envolvidas, você tem que primeiro partir do pressuposto de criar interesse, e pra você criar interesse você tem que falar a mesma língua. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) O diálogo se faz completamente necessário para a inserção das pessoas no fazer cultural da região em que elas se encontram, logo a linguagem aproximada de cada pessoa tem que se fazer presente, para a construção de uma política cultural efetiva, no dia-a-dia, relacionando o cotidiano das pessoas com a possibilidade de acesso à cultura. Para ele, é necessário que uma política cultural crie atores sociais dentro do espaço em que ele está inserido. Desta forma, o diálogo é possível. Vinícius também aponta que as redes – que conceituei ao na introdução deste artigo como forma de troca entre espaço/sócio – são possíveis para manter esse diálogo, já que a sociedade civil se vê envolvida de uma forma autônoma. Eu descobri que a rede é a verdadeira política de fortalecimento da sociedade civil, porque é a sociedade civil por ela mesma, fazendo o que precisa ser feito para fruto dela própria. Tudo que vira diretriz maior e precisa ser aprovado em leis, isso leva tempo, e nesse tempo que passa, os interesses já vazaram. O Espaço Cultural Escola Sesc tem essa potencialidade, vocês tem tudo, tem orçamento próprio, é uma entidade que está muito à frente de outras da zona oeste. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) Ana Clara Katopodis, 20, estudante de medicina, sócia do Clube de Espectadores desde 2012. Faz a leitura da sua relação com o Clube e o espaço muito boa, pois o programa, para ela, é capaz de atingir muitas pessoas de Jacarepaguá, bairro em que reside e se localiza no entorno da Escola Sesc de Ensino Médio. Ela enxerga que o bairro tem um déficit de atividades culturais, e que o Espaço Cultural Escola Sesc, através do Clube de Espectadores, tem a intenção de sanar essa carência: Em Jacarepaguá você vê um déficit de espaços que tenham esse mesmo propósito que o Espaço Cultural Escola Sesc, ele consegue promover ainda mais a cultura, então eu acho que cada vez mais está havendo uma divulgação maior, de boca-a-boca mesmo, para o crescimento do Espaço e dessa interação com a comunidade. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) Ana ainda fala sobre os benefícios que ela reconhece que acha interessante e que são essenciais à fidelização, como o recebimento da Revista Clube de Espectadores antecipadamente, em sua residência: 1483

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O sócio do Clube de Espectadores tem acesso às informações antes, o que eu acho legal também, porque a gente pode se inscrever antes de todo mundo, temos uma prioridade para se inscrever nos cursos, e eu acho isso muito importante. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) Jhoalerson Dias, 16, estudante da Escola Sesc de Ensino Médio, sócio desde 2012. O ponto referencial de Jhoalerson é um pouco diferente, pois ele mora ao lado do Espaço Cultural Escola Sesc, está inserido nesta comunidade interna, e nos apresenta aqui o seu ponto de vista de acordo com a vivência que tem dentro da Escola Sesc de Ensino Médio. Jhoalerson conta que nunca utilizou a carteirinha em si para nenhuma atividade em nosso Espaço, mas que utiliza a Revista do Clube de Espectadores e faz um julgamento importante, dizendo que é o principal meio de comunicação com os alunos da Escola Sesc de Ensino Médio sobre a programação que a Gerência de Cultura disponibiliza. Embora ele tenha apreço para com a revista, acha que os benefícios do Clube de Espectadores para quem é aluno não são eficientes: (O aluno da Escola Sesc) não tem muito conhecimento do Clube de Espectadores não é nem por falta de interesse, é mais pela correria. Em relação aos benefícios, como prioridade por ser sócio, acho que os alunos não veem a necessidade de associar-se porque como moramos aqui fica mais fácil de ter acesso a tudo, é só chegar um pouco mais cedo e pegar o bilhete pra o espetáculo, por exemplo. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) Em sua opinião, os benefícios poderiam ser repensados para a comunidade interna, já que o modo de operação do Teatro com a vida residencial dos estudantes e professores que moram lá é um pouco diferente, acerca de coisas como horários, atividades exclusivas e protagonismo. O diálogo com o Grêmio Estudantil da Escola é uma ferramenta, segundo ele, para mobilizar o programa dentro da comunidade interna. Mônica Maria Rocha, bonequeira, sócia desde 2010. Para ela, o programa do Clube de Espectadores foi uma conquista para a comunidade de Jacarepaguá, bairro que nasceu e ainda hoje mora. Mônica me conta sobre a importância de participar de debates acerca da cultura e também de atividades que são promovidas pelo Espaço Cultural Escola Sesc, pois pra ela aquele é um espaço de inclusão, de produção de pensamento e diretrizes para pensar o fazer cultural da zona oeste: O Espaço Cultural Escola Sesc é um grande parceiro, eu vim crescendo com ele, desenvolvendo questões, pois eu digo que sou uma ativista enquanto espectadora, isso é um bem cultural nosso, e eu vejo que temos um tempo valorizado, toda uma curadoria que é importante para o espectador, principalmente o debate com os sócios do Clube de Espectadores. Isso é uma grande conquista. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014)

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Segundo Mônica, o diálogo com a comunidade existe, mas pode melhorar, pois isso é um amadurecimento de todos, da comunidade e do programa enquanto política. A comunidade precisa reconhecer o espaço como um direito de fruição e o programa pode também aumentar seus esforços para isso. São várias faces que você tem dentro de Jacarepaguá, de espectadores, desde o mais simples até o mais requintado, ou seja, esse diálogo vai se tecendo com o tempo. É uma questão de conquista. Entender as questões de cada grupo específico é essencial. (trecho de entrevista realizada em novembro de 2014) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante o diálogo promovido com estes 04 sócios, observa-se a necessidade de implantação de melhorias no programa Clube de Espectadores para se chegar a uma efetiva formação de redes culturais e conhecimento do público ainda tão diversificado. A implantação de medidas práticas, tomadas como estratégias de ação pela equipe da Gerência de Cultura, pode sanar estas necessidades. Por este motivo, elaborei, com a ajuda dos relatos, uma série de metas que poderão ajudar a desenvolver o Clube de Espectadores junto à comunidade e seus sócios: • Verificar a presença de cada sócio do Clube de Espectadores: como já foi informado, cada sócio recebe uma carteirinha de identificação, com um número de cadastro. Através da implantação de um softwere capaz de ler as informações desse número de cadastro, será possível saber qual a frequência de cada sócio no nosso espaço, direcionando assim as ações ao perfil do sócio mais frequente, com o intuito de torná-lo um agente cultural em seu círculo de influência. • Promover o diálogo com o Grêmio Estudantil: conforme sugerido na entrevista com Jhoalerson, é necessária a implantação de um diálogo com o grêmio, afim de mobilizar os alunos da Escola Sesc de Ensino Médio em torno da formação cultural oferecida pela Gerência de Cultura, e pautar, de acordo com suas necessidades, benefícios diferenciados para alunos da Escola, devido a situação especial dos alunos. • Promoção de uma rede articulada: o conceito de cidadania cultural nos permite explorar uma maior inserção no entorno, a fim de demonstrar o espaço de fruição que está a disposição de todo cidadão, como é de direito. Isso nos possibilita criar uma forma de diálogo independente e horizontal, capaz de produzir atores dentro e fora da instituição, com a capacidade de disseminar o fazer cultural. A abertura do espaço possibilita essa criação, e a aproximação do Clube com o sócio é a forma mais próxima que temos para o diálogo pertinente e legitimado. • Criação de uma webtv: a criação de uma webtv exclusiva para o Clube de Espectadores, cumprindo o papel tal qual a revista, de divulgação e promoção, pode ser uma

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estratégia eficiente no fortalecimento da imagem do sócio, mas principalmente pode ajudar a conquistar novos associados através de uma diferente plataforma, diferente linguagem, como é o audiovisual na internet. A identificação do sócio na programação, a criação de programas em parcerias com eles, a diversificação e a autenticidade são exemplos de uma nova linguagem que não é cara e funciona por conta da disseminação rápida. Deste modo, alcançando estes objetivos acima listados, é possível dar o primeiro passo para a democratização efetiva do Espaço Cultural Escola Sesc, através do Clube de Espectadores como política cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. In: Crítica y emancipación: Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales. Año 1, n. 1 (jun. 2008). Buenos Aires: CLACSO, 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DPeA, 2011. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. TÔRRES, Viviane da Soledade. Clube de Espectadores: A relação entre cultura e cidadania. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2014. TÔRRES, Viviane da Soledade. “Clube de Espectadores: um programa de cidadania cultural para além dos muros da Escola Sesc de Ensino Médio”. In: Revista Intercâmbio/Sesc, Departamento Nacional. Vol. 1, n. 3 (out. 2013). Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2011. VILUTIS, Luana. Redes e Consórcios. In: Coleção Política e Gestão Culturais. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. 2014. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.

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O ENSINO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E A INTERFACE COM AS POLÍTICAS PÚBICAS NO BRASIL: UM DEBATE EM CONSTRUÇÃO. Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues1 Pedro Diniz Coelho de Souza2 RESUMO: Pretende-se neste trabalho esboçar a discussão sobre as interfaces de implementação do ensino do patrimônio cultural nas políticas públicas no Brasil, lastreadas pela criação de leis educacionais, portarias, decretos e projetos neste âmbito. Essa discussão encontrará respaldo em algumas iniciativas já implantadas no país com tempo de maturação dos seus resultados, como a implantação da Educação Patrimonial no Mais Educação do Ministério da Educação e a inserção da disciplina de Patrimônio: Parque Nacional Serra da Capivara na parte diversificada do currículo escolar do município de Coronel José Dias, na região da Serra da Capivara, PI. PALAVRAS-CHAVE: Educação, patrimônio cultural, políticas públicas, Brasil.

1. INTRODUÇÃO O valor cultural está nas coisas, mas é produzido no jogo concreto das relações sociais. (ULPIANO BEZERRA DE MENESES, 2006). A proteção e conservação do patrimônio cultural (arqueológico e histórico cultural) é um tema de constante preocupação por parte da comunidade científica, além disto, a legislação brasileira determina os cuidados que devem ser tomados para assegurar a sua conservação e proteção. Inevitavelmente, essa preocupação ganhou atenção especial dos órgãos públicos que vem intensificando o debate quanto a inserção do patrimônio cultural nas políticas públicas, no sentido de contribuir para o empoderamento cultural, a conservação, a fruição social e o engajamento cívico como medida de sustentabilidade cultural no presente e para o futuro da comunidade nacional. Licenciada em Letras Português, especialista em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP/IPHAN), mestre em arqueologia Pré- Histórica e Arte Rupestre (UTAD/PT), doutoranda em Quaternário, Materiais e Culturas (UTAD/ PT). Diretora executiva do Instituto Olho D´ Água, Coordenadora do Núcleo de Educação Patrimonial e Acervos do Grupo Documento Cultural (SP),. E-mail: [email protected]; [email protected] 2 Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Políticas Públicas Internacionais pela Univesity College of London – UCL. Membro da Think Tank do Grupo Documento Cultural (SP), colaborador do Instituto Olho D´ Água. E-mail: [email protected] 1

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Nesta arena, a Educação Patrimonial pode ser considerada como uma medida de política pública de preservação patrimonial, visto que segundo Oliveira (2011) uma das principais políticas públicas brasileira na área da cultura é a de preservação do patrimônio cultural, na qual estão englobadas as ações de identificação, proteção, preservação, promoção e disseminação (educação). Dentro desta perspectiva, fundamentada na importância das ações desenvolvidas com a comunidade, a inserção de ferramentas de cunho educativo para o fortalecimento da conservação patrimonial tem papel indispensável, já que a sua prática tem como foco transcender o esforço escolar regular e alcançar a sociedade em geral, no intuito de contribuir para o estreitamento de vínculos dos atores sociais com o seu patrimônio. (ROBRHAN- GONZÁLEZ, 2004; RODRIGUES, 2015a). Deve-se destacar que este movimento tem ocorrido decorrente da democracia, das legislações nacionais e internacionais, da participação cada vez mais ativa das comunidades na política, na academia e nos movimentos sociais. Observa-se, inclusive, o número crescente de publicações, congressos, seminários, encontros, programas que abordam a questão, indicando esse avanço no Brasil. Embora essas discussões venham sendo amplamente abordadas nas últimas duas décadas, optamos por esboçar nesse artigo as interfaces de implementação do ensino do patrimônio cultural nas políticas públicas no Brasil, lastreadas pela criação de leis educacionais, portarias, decretos e projetos neste âmbito, demostrando, como afirma Oosterbeek que “o Brasil possui a melhor legislação no planeta, pois faz dela uma exigência e não apenas um adereço” (2010:12). Essa discussão encontrará respaldo em algumas iniciativas já implantadas no país com tempo de maturação dos seus resultados, a saber: a implantação da Educação Patrimonial no Mais Educação do Ministério da Educação e a inserção da disciplina de Patrimônio: Parque Nacional Serra da Capivara na parte diversificada do currículo escolar do município de Coronel José Dias, na região da Serra da Capivara, Piauí. 2. A POLÍTICA NACIONAL DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÕNIO CULTURAL: PREFÁCIO Para embasar essa discussão cabe, inicialmente, traçar uma linha do tempo destacando os principais momentos em que, no Brasil, o campo da preservação patrimonial foi instituído como política nacional. Nesse cenário o apogeu da política de proteção do patrimônio cultural ocorreu na década de 1930. A primeira atuação neste âmbito se deu através do decreto nº 22.928 de 12 de julho de 1933, quando a arquitetura da cidade de Ouro Preto foi reconhecida como monumento nacional. Em 1934 cria-se o primeiro órgão federal voltado para proteção do patrimônio brasileiro: a Inspetoria dos Monumentos Histórico Nacionais, vinculado ao Museu Histórico Nacional, com

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uma atuação restrita devida à ausência, na Constituição de 1891 e no código civil vigente, de cláusulas que regulamentassem o direito de propriedade e punições aos que cometessem qualquer dano à integridade do patrimônio. (CHUVA, 2011; BAREL FILHO, 2013). Em 1930, Mário de Andrade, diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, entrega um anteprojeto de lei visando a proteção do patrimônio cultural brasileiro que daria origem à política de proteção do patrimônio cultural através do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Desde então o ensino e a disseminação do patrimônio à sociedade foi considerado um instrumento político de preservação. (ORIÁ, 2008). Digno de nota foi a influência do humanista Paulo Duarte, vanguardista nos debates sobre a preservação e difusão do patrimônio arqueológico brasileiro, responsável pela implantação da mais importante lei de defesa do patrimônio arqueológico - a lei 3.924, em 1961 (SANABRAIA, 2013) que trata dos “monumentos arqueológicos e pré-históricos” e estabelece sua proteção pelo Estado. Sua trajetória em prol da preservação do patrimônio arqueológico brasileiro trouxe grandes influências na construção de projetos de difusão do conhecimento arqueológico para a sociedade brasileira. Posteriormente muitos debates avançaram dentro do IPHAN, todavia, o passo mais importante foi dado com a criação da portaria 230/2002 do IPHAN que legaliza a obrigatoriedade da Educação Patrimonial – Educação na ótica do Patrimônio Cultural -, tornando-a um elemento fundamental durante etapas de pesquisas arqueológicas preventivas, em áreas onde haverá empreendimentos de grande porte, pelas diversas fases do licenciamento ambiental, mas a sua regulamentação é válida também para outras iniciativas, no âmbito da pesquisa e nos investimentos acadêmicos (BASTOS et al., 2007). A partir daí, como indicado anteriormente, a portaria Interministerial 419/ 2011 surge para enfatizar essa obrigatoriedade em todas as etapas do licenciamento ambiental, envolvendo ações de divulgação, inclusão e socialização do patrimônio arqueológico. Já em 2015 foi lançada a Instrução Normativa IPHAN 01/15 (IN/IPHAN), criada para reorganizar a realização dos estudos arqueológicos no processo de licenciamento ambiental de acordo com a magnitude do impacto sobre o patrimônio. A IN/15 recomenda também, para o planejamento e desenvolvimento das atividades de educação patrimonial, a consulta da publicação “Educação Patrimonial, Histórico, Conceitos e Processos”. A inovação mais importante desta instrução normativa no que diz respeito à educação patrimonial, no entanto, foi a obrigatoriedade da existência de um profissional da área de educação, formado em pedagogia, ou com licenciatura. Esta exigência visa garantir que a condução das atividades de educação patrimonial, assim como seu conteúdo, seja condizente com a realidade do público alvo, possibilitando maior absorção de conteúdo e satisfação por parte do público alvo.

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Com relação à educação patrimonial no sistema de ensino brasileiro, há de se destacar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – 9.394/96, que dá autonomia para que os sistemas de ensino inserissem nos seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) 3 as peculiaridades culturais locais, uma vez que se apresenta como uma possibilidade para inserir de forma mais sistemática, reflexiva e contínua, a temática do patrimônio arqueológico e histórico cultural na Educação Patrimonial. Nesse escopo, entende-se que a elaboração de um PPP deve desencadear no corpo escolar uma prática constante de reflexões e debate sobre as questões que permeiam o patrimônio cultural, visto que tais questões deverão ser enfocadas no sentido de criar sujeitos capazes de apropriar-se dos estudos ali discutidos numa constante construção de respeito com o patrimônio cultural identificado e valorado (diz-se valor intangível). É importante lembrar que nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) a temática da Educação Patrimonial está prevista no ensino de História. Fica claro, contudo, que a LDB e os PCNs legitimam a inserção da temática do patrimônio cultural em seus currículos, permitindo aos educandos reconhecerem o patrimônio cultural do seu lugar, gerando um sentimento de revalorização e empoderamento, garantindo a sua preservação e perpetuação. Avançando nas políticas públicas educacionais, em 2003, a LDB foi alterada pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, sendo que a primeira torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, e a segunda inclui o ensino da história e cultura indígena em todos os níveis da educação básica (fundamental e médio) nas instituições de ensino público e privado. A lei 11.645/08 vem trazer para a escola uma série de questões que antes eram silenciadas, ou simplesmente ignoradas pela comunidade escolar, tornando-se de fundamental importância para que haja um reconhecimento da pluralidade da sociedade brasileira, que foi e é formada por diferentes histórias e culturas. (CRUZ e JESUS, 2013, RODRIGUES et al., 2013). Como vimos, para a efetivação das referidas leis o Ministério da Educação (MEC) homologou o parecer nº 01/2004 criando as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Na perspectiva do MEC as leis e diretrizes propõem a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem os cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendestes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos O projeto político-pedagógico é um instrumento teórico-metodológico que a escola elabora no coletivo com a participação da comunidade escolar, em busca de um rumo, que fornece aporte para a escola inserir as peculiaridades culturais, históricas e artísticas locais. Veiga (1995) define projeto-pedagógico da escola como instrumento político, por estar intrinsecamente ligado ao compromisso sócio-político, e com os interesses reais e coletivos de um determinado grupo social. É, portanto, político por representar um compromisso com a formação do cidadão para uma determinada sociedade e “pedagógico”, no sentido de definir ações educativas e características necessárias às escolas de cumprir seus propósitos e suas intencionalidades. Nesses termos, o projeto político-pedagógico vai além de um simples argumento de planos de ensino e de atividades diversas.

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- para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2013). 3. O PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO DO MEC: A INCLUSÃO DA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL (CONTEXTO NACIONAL) O Programa Mais Educação foi criado pelo Ministério da Educação (MEC) através da portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo Decreto 7.083/10, integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como uma estratégia do Governo Federal para induzir a ampliação da jornada escolar e a organização curricular, na perspectiva da Educação Integral (7 horas diárias) nas redes estaduais e municipais de ensino por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico; educação ambiental e desenvolvimento sustentável; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital e tecnológica; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das ciências da natureza, economia solidária/educação econômica. (MEC, 2014). A inclusão da Educação Patrimonial no Programa Mais Educação, está integrada no macrocampo Cultura e Artes do referido Programa, envolvendo temas associados às políticas federais desenvolvidas pelos ministérios parceiros, como o Ministério da Cultura, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Ministério do Esporte, o Ministério do Meio Ambiente e a Controladoria Geral da União, entre outros. O principal objetivo desse macrocampo é, segundo o MEC, incentivar a produção artística e cultural, individual e coletiva dos estudantes como possibilidade de reconhecimento e recriação estética de si e do mundo, bem como da valorização às questões do patrimônio material e imaterial, produzido historicamente pela humanidade, no sentido de garantir processos de pertencimento do local e da sua história. (MEC, 2014:25). Ainda dentro desse escopo há outro macrocampo “Memória e História das Comunidades Tradicionais” cujo objetivo é a: Valorização da cultura local e diversidade cultural, história oral, identidade e territorialidade das matrizes africanas no Brasil, história e cultura afro-brasileira e africana, consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidade e direitos, ações educativas de combate ao racismo e às discriminações, [...]. Apoio às práticas que promovam a afirmação da história da comunidade por meio da história oral, além de ações afirmativas que promovam a identidade da comunidade pela cooperação, socialização e superação dos preconceitos pessoais e coletivos. (MEC, 2014:28) Fica claro, contudo, que os macrocampos de estudo em educação patrimonial e das comunidades tradicionais no Mais Educação propõem uma forma dinâmica e criativa às escolas

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se relacionarem com sua herança, sua identidade e o patrimônio cultural de sua região e, a partir dessa ação ampliar o entendimento dos vários aspectos que constituem o Patrimônio Cultural brasileiro – nacional, regional e local. 4. O PATRIMÔNIO CULTURAL NO CURRÍCULO ESCOLAR: CASO DE CORONEL JOSÉ DIAS – SERRA DA CAPIVARA - PI (CONTEXTO LOCAL) As condições de melhoria de vida estão no próprio lugar onde se vive. Basta acreditar em uma vida possível no semiárido a partir de um novo olhar para a realidade e um novo jeito de se viver. A educação para convivência com o semiárido é necessária. (Carvalho e Oliveira, 2010). Em 2000 a Cáritas Brasileira selecionou o município de Coronel José Dias, no sudeste do Piauí, situado do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara (Patrimônio Cultural da Humanidade) com uma população de 4.541 habitantes, para implantação de um projeto piloto, com objetivo de “desenvolver um conjunto de ações articuladas que possibilitasse melhoria nas condições de vida das famílias” no município, e propor políticas públicas apropriadas para a convivência com o semiárido (CARVALHO E OLIVEIRA, 2010). Para que efetivamente as ações fossem executadas, a Cáritas contou com o apoio dispendido do poder público municipal de Coronel José Dias, cujas principais diretrizes de ações foram centradas na educação de convivência com o semiárido; democratização das políticas públicas; fortalecimento a participação da sociedade civil na elaboração, implantação e controle social das políticas públicas; capacitação de agentes locais para o desenvolvimento sustentável da região, garantindo a visibilidade e difusão das ações e resultados. O trabalho educacional configurou-se como a etapa mais importante. As escolas (zona urbana e zona rural) foram escolhidas como palco principal para atingir toda a população. O projeto foi batizado como “Projeto Fecundação”, cujos eixos de atuação foram delimitados como: Gestão; Recursos Hídricos, Produção Apropriada e Educação Contextualizada. No cenário da Educação Contextualizada4, as ações foram sistematizadas através dos três princípios básicos da convivência: conhecer; refletir e conviver. (CARVALHO E OLIVEIRA, 2010; RODRIGUES, 2011) Nesse sentido, a prática pedagógica do projeto educação contextualizada foi pautada na necessidade de se conhecer a realidade, sobre ela refletir e para nela intervir, numa perspectiva de desconstruir saberes internalizados em torno do semiárido, modificando dessa forma “hábitos, atitudes, valores, comportamentos e conceitos” (SOUSA e REIS, 2003 apud CARVALHO e OLIVEIRA, 2010:47). Nesta análise não iremos nos estender a todas as ações do Projeto Fecundação, iremos nos atentar, especificamente, para a educação contextualizada, mas para maiores informações recomenda-se a leitura do livro CARVALHO, R. E OLIVEIRA, J.E. S (2010) O sonho construído em mutirão: uma experiência de convivência com o semiárido. Projeto Fecundação. Cáritas Brasileira Regional do Piauí. Teresina-PI 4

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Durante 4 anos foram desenvolvidas uma série de atividades, que culminaram na criação do Plano Municipal de Educação Contextualizada (PMEC). Plano este, elaborado por professores, alunos e sociedade em geral, que foi votado e aprovado pela lei municipal nº 078/2003. O PMEC de Coronel José Dias é o primeiro no Piauí que institucionaliza a educação contextualizada no semiárido. Dentro da ótica da Educação Contextualizada, em 2002, a secretaria municipal de educação junto com o corpo pedagógico e docente inseriu formalmente na parte diversificada do currículo municipal a disciplina Patrimônio: “Parque Nacional Serra da Capivara só ama quem conhece (PNSC)”. Mais uma vez o município dá um salto no pioneirismo, pois dos quatro municípios do entorno do Parque, este é o primeiro e único até a presente data a inserir nos seus currículos a disciplina PNSC. Importante, destacar, que essa iniciativa contou com a colaboração e participação de toda a comunidade - alunos, pais, professores e gestores municipais, sociedade civil, por meio de fóruns de discussões, oficinas, reuniões, chegando ao consenso de inserir essa temática no Plano Municipal de Educação, e por meio de Grupos de Trabalho criaram a grade curricular – as aulas acontecem semanalmente, uma vez em cada série do Ensino Fundamental Maior (6º a 9º ano) abordando assuntos da pré-história regional e local, patrimônio material e imaterial com destaque para os modos de vida locais. Tal iniciativa é uma das principais responsáveis pelo engajamento local no que concerne a preservação, empoderamento e fruição social do Parque Nacional Serra da Capivara (RODRIGUES, 2011). A proposta está amparada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 9394/96, quando esta diz que a escola tem a incumbência de inserir na parte diversificada dos currículos dos ensinos fundamental e médio as características regionais e locais da sociedade e da cultura, abrindo espaço para a construção de uma proposta de ensino direcionada para o contexto em que cada escola esteja inserida. Nesses mais de 10 anos de implantação vários são os resultados obtidos, com destaque para as feiras culturais e o evento anual de cultura (em setembro) um evento em praça pública em comemoração à Independência do Brasil que reúne a comunidade. Alunos e professores desfilam na avenida e trazem, em suas alegorias, elementos da cultura local e do Parque Nacional Serra da Capivara, mostrando as suas peculiaridades históricas, culturais e artísticas (RODRIGUES, 2011; 2015b). Todos os eventos escolares (feiras culturais, desfiles, quadrilhas, semanas do meio ambiente) estão relacionados com o Parque Nacional Serra da Capivara, com a arte rupestre, com a fauna, flora da caatinga e os modos de vida no semiárido. Isso demostra que o empoderamento cultural, a apropriação e fruição do patrimônio local pelos jovens já está consolidado, ou seja, é uma realidade local.

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De fato, a escola é esse local privilegiado na formação cidadã e tem papel preponderante na compreensão dos alunos sobre a realidade no qual estão inseridos. A intencionalidade de criar uma disciplina com esses conteúdos reforça o entendimento sobre o lugar, os modos de vida, as tradições que são passadas de geração em geração, as potencialidades histórias e artísticas, em síntese, a história que não está escrita nos livros didáticos e que, muitas vezes, fica encortinada pela rotina cotidiana. A iniciativa tem oportunizado a problematização de questões relevantes e tidas na comunidade como “tabus”, como a prática da caça de animais silvestres, o processo de desapropriação das comunidades de dentro da área do Parque (no período de sua criação – 1979), os desentendimentos com os gestores do Parque, entre outros. A mediação de um debate, orientado pelos professores, ajuda a superar tensões, mágoas e construir entendimentos em prol da preservação do patrimônio mundial em sinergia com o patrimônio local, pensando no bem-estar da comunidade. Na compreensão de Morin “é preciso situar as informações e os dados no seu contexto para adquirirem sentido. Para ter sentido a palavra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto no qual se anuncia.” (MORIN, 2000:36). O valor de um patrimônio está no sentimento de pertencimento que ele desperta nas pessoas, o que reforça a sua identidade coletiva e a formação da cidadania (FONSECA, 2005). Outros pontos que merecem ênfase, cujos programas educativos implantados tem influência direta e indireta, são as iniciativas na cadeia operatória do turismo e da cultural tradicional capitaneadas pelos jovens locais, tais como: • Jovens montaram associações de guias condutores do Parque e hoje tem como principal renda o turismo cultural; • Intercâmbio das escolas locais com escolas de outros estados, sobretudo de São Paulo. As escolas fazem os pacotes para visitar o Parque e dentro das atividades estão inclusas vivências nas escolas de Coronel José Dias, onde são preparadas diversas atividades culturais e trocas de vivências; • Roteiros culturais alternativos sobre os modos de vida da população local foram montados e os visitantes tem a oportunidade não só de visitar o patrimônio arqueológico, mas de conviver com a comunidade tradicional, conhecendo locais de referências históricas. • Criação do Instituto Olho D’ Água, uma associação de pesquisa e desenvolvimento, cujo objetivo se assenta na (re) valorização da memória, tradição e identidade local, aliada a defesa do Meio Ambiente Cultural e a promoção do desenvolvimento sustentável, na busca pela integração dos conhecimentos arqueológicos existentes

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com as tradições culturais e saberes das comunidades tradicionais do município de Coronel José Dias5. • Aprovação pelo poder legislativo e executivo, dos departamentos municipais de patrimônio arqueológico e histórico cultural local, vinculados a secretária de turismo. • Criação da lei municipal de tombamento municipal. Podemos inferir, portanto, que o fortalecimento das políticas públicas municipais no setor cultural (arqueológico e histórico cultural) vem contribuindo para que a comunidade de Coronel José Dias passe a olhar para a sua cultura com o entendimento de que os seus saberes tradicionais, os seus ofícios, os seus lugares, a arquitetura vernacular, os seus mitos, as suas festas tradicionais, os seus objetos e os modos de fazer são tão importantes quanto o patrimônio arqueológico milenar da Serra da Capivara. Logo, essa integração fortalece o sistema de ensino e o potencial turístico da região, unindo ciência e tradição em prol da preservação e perpetuação do patrimônio arqueológico e histórico-cultural, contribuindo em última instância com o bem estar comunitário. 5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Devemos considerar que os esforços empreendidos, nos últimos anos, em politicas públicas de inserção da cultura (na valorização da memória e identidade nacional, regional e local) tem ganhado destaque em debates, seminários, na criação de decretos, normativas, projetos políticos pedagógicos (entre outros), mostrando um significativo avanço para o fortalecimento da pluralidade cultural brasileira. Nota-se, todavia, que esse tem sido um compromisso não apenas do poder público, mas de toda a sociedade. Nessa arena, a inserção da temática do patrimônio cultural nas políticas públicas educacionais para a preservação, gestão e fruição do patrimônio cultural brasileiro em âmbito local, regional e nacional já é uma realidade, que cria uma atmosfera propícia para promover a (re) valorização da história e memória das comunidades, a integração e empoderamento da comunidade local a este conhecimento, de forma sustentável, visando sua continuidade - exemplo do estudo de caso do município Coronel José Dias aqui apresentado. 6. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Grupo Documento em nome da professora L.D. Drª Erika Marion Robrahn- González pelo apoio institucional e científico ao Instituto Olho D’ Água, e ao Jorlan da Silva Oliveira, diretor presidente, do Instituto Olho D Água. . Acompanhar no blog do Instituto as principais iniciativas em andamento: http://documentoculturalolhodagua. ning.com/ 5

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PROJETOS CULTURAIS DE EMPRESAS SUSTENTÁVEIS E AS LEIS DE INCENTIVO À CULTURA NO BRASIL Mariana de Barros Souza1 Adriana Cristina Ferreira Caldana2 Lara Bartocci Liboni3 RESUMO: Ao se tratar dos atuais problemas globais, apresentam-se, frequentemente, discussões acerca da sustentabilidade. Por isso, é válido verificar quais práticas vem sendo realizadas por empresas reputadamente sustentáveis. O Modelo de Criação de Valor Sustentável (CVS) aponta, nesse contexto, a importância das ações vinculadas à responsabilidade social corporativa. Naji (2010), conseguintemente, cita a relevância do componente cultural como base para o desenvolvimento social. O presente trabalho revela, por meio do método de análise de conteúdo aplicado em pesquisa documental, quais as práticas culturais desempenhadas por empresas sustentáveis no Brasil. A partir de então, vinculam-se tais práticas à legislação de incentivo à cultura atualmente vigente no país e verificam-se quais aspectos poderiam ser mais bem explorados no ambiente corporativo. PALAVRAS-CHAVE: Índice de Sustentabilidade Empresarial; Desenvolvimento sustentável; Desenvolvimento Social; Cultura.

1. INTRODUÇÃO Ao se tratar dos atuais problemas globais, apresentam-se, frequentemente, discussões acerca da sustentabilidade. Abordar tópicos referentes à marginalização de grupos sociais significativos, por exemplo, assim como a degradação ambiental, torna-se cada vez mais necessário nos dias de hoje (JABBOUR e SANTOS, 2008). Nesse contexto, Nobre e Ribeiro (2013) estudaram a Sustentabilidade em Organizações (SEO) de empresas listadas no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE). O trabalho revelou que as empresas estudadas atuam, com maior facilidade, nos campos de Gerenciamento Possui graduação em Administração pela Universidade de São Paulo (2013) e é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Administração de Organizações da FEA-RP/USP. E-mail: [email protected] 2 Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1996), mestre em Psicologia (2000) e doutora em Psicologia também pela USP (2005). É docente da FEARP-USP. E-mail: [email protected] 3 Doutora em Administração (2009) e mestre em Administração pela FEA-USP (2005). Possui graduação em Administração pela FEA-RP/USP (2002). Atualmente é docente da FEARP-USP. E-mail: [email protected] 1

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de Produto e Combate à Poluição. De acordo com o Modelo de Criação de Valor Sustentável (CVS), o campo “Gerenciamento de Produto” envolve práticas relacionadas, por exemplo, à ecologia industrial, ao seu ciclo de vida, ao gerenciamento de stakeholders e à responsabilidade social corporativa. Quanto à Responsabilidade Social Corporativa (RSC) – ou Responsabilidade Social Empresarial (RSE) –, Sousa et al (2011) apontam que esse conceito se formou, no Brasil, a partir da realização de diversos projetos liderados por ícones de lutas pelas causas sociais, como Herbert José de Souza. Tais projetos buscaram conscientizar os cidadãos e envolvê-los na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. É nesse contexto que o setor econômico também começa a se engajar, procurando reconhecimento pelo mercado consumidor. Ashley (2002) considera que tais práticas são uma tendência gerada por mudanças no comportamento dos consumidores, já que os mesmos passaram a sentir afeição por produtos e práticas que trazem melhorias à sociedade ou ao meio ambiente. A partir dos resultados apresentados por Nobre e Ribeiro (2013) e com base nas definições acerca de RSC, assume-se a hipótese de que empresas brasileiras com perfil sustentável tendem a adotar não apenas práticas de caráter ecológico e ambiental, mas também concentrar esforços na melhoria dos padrões de vida da sociedade. Recorre-se, portanto, a Naji (2010), que cita a importância do componente cultural como base para o desenvolvimento social. Em meio a essa discussão, há de se destacar que, segundo Yang (2007), a cultura pode ser vista como um aspecto existente em qualquer grupo social – como etnias, grupos religiosos ou organizações – desde que haja compartilhamento de conhecimentos e comportamentos. E, nesse contexto, investimento cultural não apenas gera impactos econômicos, mas, principalmente, benefícios à comunidade, em termos de melhorias sociais – é importante, portanto, que haja atuação governamental, ao menos no sentido de exercer o papel de investidor público (COMUNIAN; MOULD, 2014). No Brasil, para atender a essa problemática, destaca-se a atuação governamental por meio das leis de incentivo fiscal à cultura. Por todo o supracitado, este trabalho objetiva, primeiramente, verificar quais são as ações culturais realizadas por empresas que se destacam como organizações engajadas com o desenvolvimento sustentável. Isso porque a cultura é um componente de grande importância para o aspecto social e este, por sua vez, é um dos pilares do desenvolvimento sustentável. Em um segundo momento, pretende-se descobrir se tais práticas fazem proveito da legislação de incentivo atualmente vigente no Brasil e, por outro lado, quais aspectos das leis poderiam ser mais bem explorados.

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2. REVISÃO DA LITERATURA 2.1. Desenvolvimento sustentável e Responsabilidade socioambiental Durante os anos 1960, começam a surgir preocupações relacionadas ao conceito de responsabilidade socioambiental corporativa, levantadas em meio às discussões sobre o Apartheid e a Guerra do Vietnã, por exemplo. Mais adiante, nas décadas de 1980 e de 1990, veem-se aumentar as iniciativas relacionadas à temática ambiental, as quais eram abordadas, entre outros fatores, pelo fortalecimento do movimento ambientalista (MONZONI, BIDERMAN e BRITO, 2006). Também nesse período, mais precisamente em 1987, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (WCED) divulga o Relatório Brundtland, que traz a definição do termo “Desenvolvimento Sustentável” como um desenvolvimento que vai de encontro às necessidades do presente sem comprometer a habilidade das gerações futuras no alcance de suas próprias necessidades. A responsabilidade socioambiental, por sua vez, pode ser definida como uma obrigação, enfrentada pela gerência organizacional, referente à decisão e ao empreendimento de ações que visem à melhoria do bem-estar social e sejam compatíveis com os interesses da sociedade e da organização (DAFT, 1997). Em busca de se determinar as melhores formas de se atingir desenvolvimento sustentável, destaca-se a abordagem “Triple Bottom Line”. De acordo com tal modelo, a garantia de sucesso na adoção de uma estratégia de desenvolvimento sustentável somente se faz possível quando há ênfase em três diferentes dimensões, a saber: dimensão econômica, dimensão ambiental e dimensão social. Esses três aspectos estão inter-relacionados, exercendo influência uns sobre os outros e, portanto, uma organização que pretende desenvolver práticas de sustentabilidade corporativa não pode visualizar separadamente a sustentabilidade econômica e as práticas sociais e ambientais (ELKINGTON, 1998, 2004). 2.2. O aspecto social do desenvolvimento sustentável Com base em extensa revisão da literatura, Amini e Bienstock (2014) propuseram uma definição multidimensional para o que chamaram de Sustentabilidade Corporativa, ilustrando-a por meio de um framework. O modelo compreende cinco dimensões de sustentabilidade, as quais podem se apresentar em quatro diferentes níveis de sofisticação, de acordo com as práticas adotadas por empresas. Uma das dimensões apresentadas considera a ênfase nos aspectos econômicos, ecológico-ambientais e social-igualitários. Para essa dimensão, organizações que apresentam menor nível de sofisticação enfatizam apenas a sustentabilidade econômica, pois não estão preocupadas com aspectos socioambientais, ou não conseguem entender sua relação com questões financeiras. Segundo os autores, conforme se amplia a sofisticação referente a essa dimensão, gradualmente se começa a entender a importância de cada uma das dimensões

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sustentáveis e, então, novas práticas são adotadas. As organizações mais sofisticadas, portanto, incorporam preocupações econômicas, ambientais e sociais na estratégia empresarial. Pretende-se, aqui, explorar o pilar social da sustentabilidade. Para tal, aborda-se, primeiramente, Vallance et al (2011). Em seu estudo, os autores identificaram a existência de três tipos de sustentabilidade social, a saber: (1) “sustentabilidade social de desenvolvimento”, a qual está relacionada com as necessidades da sociedade, como a redução da pobreza e das desigualdades; (2) “sustentabilidade social de ponte”, referente às mudanças comportamentais que precisam ocorrer para que se atinjam os objetivos ambientais na sustentabilidade; e (3) “sustentabilidade social de manutenção”, que diz respeito à preservação de práticas e padrões socioculturais em um contexto de mudança econômica e social. Ou seja, os autores argumentam que a sustentabilidade social é atingida quando se trabalha com questões como o subdesenvolvimento, as necessidades básicas da população, o fortalecimento de sua ética ambiental e a preservação de seus valores sociais, suas tradições culturais e seu estilo de vida. Outros autores (SACHS, 1999; AGYEMAN, 2008), entretanto, defendem que a sustentabilidade social está fundamentada pelos conceitos de igualdade, democracia e justiça social. Desvencilhando-se do aspecto puramente conceitual, atenta-se à questão das práticas socialmente sustentáveis realizadas por empresas. Nesse contexto, nota-se que dois tipos de público compreendem seu universo: o interno e o externo. No que diz respeito ao público interno, Jabbour e Santos (2008) apontam ao fato de que o desempenho social de uma organização pode ser avaliado a partir da efetividade no gerenciamento da diversidade de seus recursos humanos. Quanto ao público externo, Ashley (2002), aponta que uma postura empresarial socialmente responsável está vinculada a todo tipo de ação que contribui para a qualidade de vida da sociedade como um todo. A responsabilidade social empresarial, segundo o Instituto ETHOS (2010) pode ser definida como: (...) a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais. Nesse sentido, em busca de evidenciar seu comprometimento com práticas sociais, as empresas trazem a questão da responsabilidade social como a forma com que se preocupam com as pessoas. Em alguns casos, as práticas estão mais voltadas à preocupação com seus colaboradores. Em outros, as organizações se empenham, também, em atender e apoiar as comunidades locais, ou as famílias de seus funcionários. Há, ainda, empresas que interpretam a responsabilidade social como seu potencial de contribuir para uma melhor qualidade de vida dos indivíduos (EHNERT, 2008).

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2.3. A cultura como componente da responsabilidade social A Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural aponta que a cultura deve ser vista como um conjunto de características materiais, espirituais, intelectuais e emocionais que diferenciam sociedades ou grupos sociais. Não se deve pensar em cultura apenas como arte, pois ela também compreende estilos de vida, formas de vivência em comunidade, tradições, sistemas de valores e convicções (UNESCO, 2002). Sem uma identidade cultural independente, nenhuma nação poderia se tornar um país desenvolvido, pois a formação cultural é base para o desenvolvimento econômico, político e social. Por isso, é importante atingir um nível de desenvolvimento cultural tal em que propicie expansão de acesso à cultura a toda população de maneira igualitária (NAJI, 2010). Yúdice (2006) aponta, ainda, que por associar-se às práticas políticas e econômicas, a cultura está também envolvida com a cidadania. As iniciativas políticas, nesse contexto, podem exercer influências positivas ou negativas na gestão cultural. No que diz respeito aos benefícios que podem ser gerados, Nemati (2012) propõe que o governo forneça liderança em nível macro, deixando que os detalhes de dinamização do mercado sejam tratados por organizações não governamentais. Dessa forma, a iniciativa privada deve contar com administradores da cultura para assumir tais atividades. No Brasil, conta-se com as Leis de incentivo à Cultura como principal mecanismo para o funcionamento desse mercado. 2.4. Legislação referente ao incentivo à cultura atualmente vigente no Brasil Grande parte da produção cultural brasileira hoje se apoia nas leis de incentivo fiscal federal, estaduais e municipais. Tal realidade é, em parte, reflexo de um movimento mundial que teve início nos anos 80, motivado pela crise econômica e apresentou soluções embasadas no quadro neoliberal vigente. Nesse contexto, governos buscaram cortes de seus financiamentos em áreas sociais e, particularmente, em cultura. Poucos países deixaram de seguir essa tendência – a França é destaque em tal cenário, pois manteve as práticas estatais de financiamento às atividades culturais e artísticas (BOTELHO, 2001). No Brasil desse período, segundo Arruda (2003), destacam-se iniciativas que prepararam a fundação do Ministério da Cultura, em 1985, durante o governo de José Sarney. A partir da criação desse Ministério, toda política cultural passa a ser tema exclusivamente destinado a um órgão governamental. Também nesse momento, as leis de incentivo fiscal – como a denominada Lei Sarney, de 1986 (a qual foi reformada em 1991 pela Lei Rouanet) e a Lei do Audiovisual, que data de 1993 – passam a representar importante papel no que diz respeito à produção cultural brasileira. As leis supracitadas são federais, mas, posteriormente, os governos estaduais também lançaram iniciativas nesse sentido. Como exemplo, toma-se a Lei n° 12.268, de fevereiro de

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2006, a qual trata do incentivo fiscal destinado à realização de projetos culturais no Estado de São Paulo. Há, ainda, leis municipais de incentivo fiscal em algumas cidades do país. Segundo Kavantan (2012), uma das principais diferenças entre as leis de cada esfera reside na abrangência dos impostos que podem ser repassados para o financiamento de projetos culturais – enquanto as federais lidam com Imposto de Renda, as estaduais garantem redução do valor patrocinado no pagamento de ICMS (Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços). As municipais, por sua vez, tratam de impostos como ISS e IPTU. As leis de Incentivo à cultura têm como fundamentos: (a) o fato de oferecerem redução fiscal a incentivadores de produtos culturais mediante contribuição financeira; (b) o princípio de que não oferecem recursos, mas sim a chance de que os recursos sejam captados na iniciativa privada; (c) a possibilidade de cadastramento de projetos, com as condições de que tenham como objeto a cultura e de que sejam de acesso público; e (d) o fato de que os recursos obtidos de patrocinadores são tomados como recursos públicos, uma vez que incluem o incentivo fiscal e, por isso, o realizador deve prestar contas da execução financeira e artística do projeto ao governo (KAVANTAN, 2012). 2.5. Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) A BM&FBOVESPA, em parceria com outras importantes instituições – Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (ABRAPP); Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), Associação dos Analistas e Profissionais de Investimentos do Mercado de Capitais (APIMEC); Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC); International Finance Corporation (IFC); Instituto Ethos, Ministério do Meio Ambiente e Fundação Getúlio Vargas (FGV) –, criou o ISE como um referencial para os investimentos sustentáveis e responsáveis no Brasil. O índice é calculado e gerido tecnicamente pela BM&FBOVESPA e reflete o retorno de uma carteira composta por ações de empresas reconhecidas por seu comprometimento com o desenvolvimento sustentável. Assim, tais empresas destacam-se para investidores e a bolsa de valores se São Paulo atua como indutora de boas práticas no meio empresarial (ISE – METODOLOGIA COMPLETA, 2014). Para que se avalie o desempenho das empresas em relação à sustentabilidade e, assim, selecionem-se quais delas comporão o índice, existe uma parceria técnica entre a BM&FBOVESPA e Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da Fundação Getulio Vargas (FGV). A metodologia de avaliação foi desenvolvida pelo GVces e conta com um questionário que avalia o desempenho sustentável das organizações emissoras das 200 ações mais negociadas da BM&FBOVESPA. Esse questionário se baseia no conceito “Triple Bottom Line”, que considera elementos ambientais, sociais e econômico-financeiros de maneira integrada, além de tratar de questões como governança corporativa, características gerais de postura em relação ao desen-

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volvimento sustentável e, ainda, a natureza do produto comercializado pelas empresas. (ISE – METODOLOGIA COMPLETA, 2014). Segundo Macedo et al (2012), o ISE se confirma, a cada ano, como um elemento indutor de empresas na busca de um modelo de negócios que seja adequado ao desenvolvimento sustentável. Por sua vez, as organizações brasileiras também conseguem notar, de forma cada vez mais clara, quais os benefícios gerados pela aparição na carteira do índice. Em sua perspectiva, torna-se evidente o valor da participação em iniciativas voluntárias relacionadas à sustentabilidade, pois por elas são proporcionados ganhos intangíveis – como a reputação e o compartilhamento de experiências no meio empresarial – e ganhos tangíveis – relacionados a valor de mercado, desempenho financeiro e valor das ações. 3. METODOLOGIA 3.1 Tipo de pesquisa Realiza-se um estudo documental qualitativo para abordar a questão das práticas culturais desempenhadas por empresas sustentáveis no Brasil. 3.2. Amostra e Coleta de dados O corte amostral deste estudo selecionou empresas que, além de estarem listadas no ISE em 2014, também já apareceram, ao menos uma vez mais, nas listas dos cinco anos anteriores de publicação do índice. Assim, selecionam-se empresas que são reconhecidas em relação à responsabilidade social e à sustentabilidade empresarial, mas que não apenas recentemente iniciaram suas atividades nesse ramo. Empresas que, portanto, tem um histórico de preocupação com o desenvolvimento sustentável. Destaca-se que, a princípio, a carteira vigorava de 1° de dezembro do ano em curso a 30 de novembro do ano posterior. Porém, em 2011, houve alteração nesse período, que passou a iniciar-se na primeira segunda-feira de janeiro, perdurando até o dia que antecede a vigência da nova carteira, em janeiro do próximo ano (ISE – METODOLOGIA COMPLETA, 2014).

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Quadro 1: Carteiras do índice de sustentabilidade empresarial.

Fonte: Adaptado de BM&FBovespa (2014)

No quadro 1 – em que se expõem todas as empresas listadas nos últimos seis anos de elaboração do índice – foram cortadas as cinco empresas que apareceram pela primeira vez em 2014 (CIELO, EDP, FLEURY, KLABIN e OI), conforme proposto anteriormente. As outras 35 empresas de 2014 compõem a amostra deste estudo.

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Quadro 2: Empresas que compõem a amostra deste estudo. Fonte: A autora

Conseguintemente, a coleta de dados se iniciou com a busca pelo último relatório de sustentabilidade de cada uma das empresas que compõem a amostra. O Relatório de Sustentabilidade, segundo (ROVER et al, 2008), é um documento elaborado pela própria empresa, voluntariamente, para que se demonstre sua relação com o meio ambiente e a sociedade. Esses relatórios foram salvos em formato pdf e, em seguida, houve busca pelos seguintes termos no corpo de texto dos arquivos: “cultura” (que encontra também os termos “cultural” e “culturais”), “arte” (que encontra também os termos “artes cênicas” e “artes visuais), “livro”, “musica” (que encontra os termos “música”, “musical” e “musicais”), “exposições”, “exposição”, “acervo”, “biblioteca”, “museu”, “cinema” (que encontra também o termo “cinemateca”), “audiovisual” e “teatro”. A escolha dos termos de busca se baseou na redação do artigo 18 da Lei Rouanet, o qual determina segmentos passíveis de recebimento de doação e patrocínio na produção cultural. Esta lei foi escolhida, primeiramente, pelo fato de ser considerada a mais antiga das leis de incentivo fiscal à cultura no Brasil, após ter reformado a Lei 7.505, de 2 de julho de 1986. Em segundo lugar, a escolha se justifica pelo fato de ser uma lei federal e, portanto, todas as empresas listadas na amostra, em qualquer região do país que atuem, são por ela atingidas. A partir de tal busca, foram compiladas as ações culturais executadas por cada uma das empresas que compõem a amostra e, em seguida, houve categorização de tais iniciativas seguindo o critério da análise de conteúdo, o qual envolve a análise das comunicações, por meio de um conjunto de técnicas, a fim de se obter indicadores capazes de gerar determinada inferência de conhecimentos referentes a essas mensagens (BARDIN, 2009). 3.3. Análise dos dados Flick (2009) garante que a análise de conteúdo representa um procedimento clássico para análise de material textual, não importando a origem desse material. Por isso, realizou-se a pré-análise – segundo Bardin (2006), a fase em há organização do material a ser analisado para torná-lo operacional –, na qual foram coletadas, nos Relatórios de Sustentabilidade, as iniciativas empresariais em relação à cultura. Posteriormente, houve exploração do material com a definição de categorias e, por fim, tratamento dos resultados e interpretações. Verificou-se, então, o vínculo entre as ações culturais realizadas e as leis de incentivo fiscal vigentes no Brasil. Assim, foi possível perceber quais das

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práticas culturais desempenhadas por empresas sustentáveis estão alinhadas com os mecanismos determinados pela legislação de incentivo à cultura e, por outro lado, quais vertentes legislativas poderiam ser mais bem exploradas. Para isso, utiliza-se de intuição e análise reflexiva e crítica (Bardin, 2006). 4. RESULTADOS E CONCLUSÃO Por meio da análise de conteúdo, conforme Vergara (2005), foi possível trabalhar os dados coletados para que identificassem o que está sendo dito a respeito do tema “Cultura” em organizações sustentáveis. Para isso, fez-se uso da técnica de análise temática ou categorial, que consiste em desmembrar textos em unidades (categorias), seguindo reagrupamentos analógicos (MINAYO, 2000). Depreendeu-se, como primeiro resultado da análise, que as empresas com perfil sustentável no Brasil têm percepções diferentes acerca da importância das práticas culturais. Nem todas elas realizam ou, pelo menos, evidenciam tais ações em seus relatórios de sustentabilidade – fato que pode ser interpretado de duas diferentes formas: (1) o tema não lhes parece atrativo a ponto de que seus recursos sejam alocados em prol de tais ações; ou (2) a cultura não é percebida como um componente do desenvolvimento social e, consequentemente, como um aspecto relevante do desenvolvimento sustentável. Quanto a esta segunda interpretação, é importante demonstrar que diferentes pontos de vista são apresentados nos relatórios em relação à conceituação de termos ligados à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável. Enquanto algumas empresas consideram o componente cultural um dos aspectos principais desse desenvolvimento, outras nem sequer citam a relevância de tais práticas. Da mesma forma, algumas destacam fortemente a importância das práticas culturais para a realização de seus negócios, ao passo que outras não o veem da mesma forma. O Quadro 3 apresenta exemplos de definições trazidas por empresas engajadas com a prática cultural e determinadas a expor tais ações em seus relatórios como parte importante de sua atuação em prol do desenvolvimento sustentável.

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Quadro 3: Definições trazidas por empresas que consideram a cultura como componente do Desenvolvimento Sustentável.

Fonte: A autora

Seguindo linha similar, o Quadro 4 demonstra exemplos de empresas que consideram ações culturais parte essencial de sua estratégia de atuação, independentemente do link desse conceito com a sustentabilidade. Expõe-se, portanto, que a cultura empresarial está fortemente voltada à valorização de práticas de cunho cultural. Quadro 4: Empresas que integram a ação cultural à sua estratégia.

Fonte: A autora

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Por outro lado, há de se destacar que algumas empresas destinam pouca ou nenhuma atenção, em seus relatórios, a projetos relacionados à promoção e ao incentivo da cultura no Brasil. É o caso, por exemplo, da Itaúsa. A única menção referente ao tema em seu relatório diz respeito ao fato de a empresa aparecer listada pela 10ª vez na carteira do Dow Jones Sustainability World Index (DJSI), o que garante seu compromisso social, cultural e ambiental. Entretanto, não se aponta como isso ocorre. Interessante é que empresa controla a Itaú Unibanco Holding S.A., que também foi objeto de estudo deste trabalho. Esta, por sua vez, evidencia bastantes ações realizadas em prol do incentivo à cultura. Outras empresas chegam a citar que apoiam e incentivam iniciativas culturais, mas não há grande ênfase a isso. Apenas um parágrafo em todo o relatório. Ou, ainda, apenas evidenciam em seu Balanço Social Anual que houve investimento interno e externo em cultura, mas não há explicitação de como isso ocorreu. É o caso de companhias como SulAmérica, Coelce, Embraer e Gerdau. Ainda sustentando a afirmação de que as empresas sustentáveis no Brasil têm perfis diferentes acerca da realização de práticas culturais, aponta-se que nem todas elas utilizam as leis de incentivo quando financiam projetos voltados à cultura. Ou, ao menos, nem todas evidenciam o conhecimento e a utilização leis em seus relatórios anuais, pois apenas 22 das empresas dizem fazer uso das leis. Esse número fica ainda mais escasso quando tratamos exclusivamente da Lei do Audiovisual, pois, em geral, as empresas que financiam projetos via Lei de Incentivo, costumam fazê-lo por meio das leis estaduais ou pela Lei Rouanet. Foram apenas três as empresas que citaram explicitamente a Lei do Audiovisual em seus relatórios. Isso pode ser um indício de desconhecimento, no mundo corporativo, dos mecanismos legais, pois, como explicita Ikeda (2013), a Lei do Audiovisual, quando comparada à Lei Rouanet, garante mais benefícios ao investidor. A principal diferença entre as leis supracitadas é que os valores aportados por meio da Lei do Audiovisual não são apenas um patrocínio ou uma doação – como ocorre com a Lei Rouanet. Para a primeira lei, esses valores são contabilizados como investimento. O agente que aporta recursos, portanto, assume papel de investidor. Os valores investidos são integralmente abatidos do imposto de renda devido pelo investidor, assim como ocorre com os projetos enquadrados no Art. 18 da Lei Rouanet e, além desse abatimento, o investidor pode lançar tais montantes como despesa operacional, o que faz com que a base de cálculo de seu imposto de renda a pagar seja reduzida. Além disso, ainda há a possibilidade de o investidor vincular sua marca ao material promocional da obra. Por fim, o investimento à Lei do Audiovisual garante a aquisição de um percentual dos direitos de comercialização da obra. Assim, divergentemente da Lei Rouanet, o retorno financeiro existe, por previsão legal (IKEDA, 2013).

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O que, então, poderia justificar a falta de investimento em obras de audiovisual é o fato de que nenhuma das empresas estudadas trabalha em um ramo diretamente ligado a esse e, por isso, não há uma cobrança externa nesse sentido. Seuring e Müller (2008) afirmam que, em diversos casos, as iniciativas sustentáveis são motivadas por pressões externas à companhia, provenientes, por exemplo, de agências governamentais, clientes e stakeholders em geral. Neste estudo, verificou-se que, realmente, muitas das ações culturais apresentadas pelas empresas impactam diretamente seus stakeholders. O Quadro 5 traz alguns trechos que comprovam o supracitado. Quadro 5: Ações culturais motivadas e realizadas em função de stakeholders.

Fonte: A autora

Porém, não só essa questão da pressão externa justifica que a baixa incidência de adesão à Lei do Audiovisual esteja ligada ao fato de que nenhuma das empresas atua em ramo diretamente ligado a esse. Outra possível justificativa para isso está relacionada ao nível de sofisticação das empresas ao implementarem suas ações sustentáveis. Amini e Bienstock (2014) afirmam que, conforme as organizações se tornam mais sofisticadas em sustentabilidade, suas atividades com esse escopo deixam de apenas cobrir apenas aquilo que lhes é imposto por regulamentações, ou que é simples de ser desenvolvido, devido a seu core business. Empresas com alto grau de sofisticação chegam, inclusive, a participar do desenvolvimento e da alteração de tais regras. As companhias mais sofisticadas conseguem reconhecer que uma abordagem proativa voltada às práticas sustentáveis pode reduzir seus custos. Comprova-se, com o Quadro 6, que as ações culturais realizadas por algumas empresas estão diretamente ligadas a seu ramo de atuação, o que pressupõe maior facilidade e relativo comodismo.

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Quadro 6: Ações culturais motivadas e realizadas em função do setor de atuação empresarial.

Fonte: A autora

Nesse sentido, levando em conta a questão da proatividade para apontar empresas com maior nível de sofisticação, vale destacar, por exemplo, qual o papel assumido pela empresa ao se envolver com as Leis de Incentivo à Cultura. Para todo e qualquer projeto incentivado, conforme Kavantan (2012), o governo é o órgão regulador em questão. O realizador, por sua vez, é o proponente, o produtor de cultura. Por fim, o incentivador é aquele que destina o dinheiro à execução do projeto, o que o coloca na condição de patrocinador. Em geral, as empresas estudadas assumem o terceiro papel, apenas incentivando projetos por elas selecionados. Há, entretanto, empresas envolvidas com as práticas culturais e familiarizadas com as leis a ponto de não apenas atuarem patrocinadoras. Tais empresas assumem a função de produtoras de cultura. A Tractebel Energia, por exemplo, expõe em seu relatório: A implantação desses locais [“Centro de Cultura” ou “Centro de Cultura e Sustentabilidade”] em diferentes regiões vem sendo viabilizada por meio de recursos próprios da Companhia e também, de forma inovadora, por recursos incentivados. Isso porque a construção dos Centros pode ser contemplada pela Lei Rouanet, atendendo às diretrizes do Ministério da Cultura, com foco no resgate, preservação e valorização da história, costumes e tradições locais, geração de emprego e renda, inclusão social e digital. O maior resultado dessa política é, portanto, a união de esforços em torno de um bem maior e duradouro: o acesso à cultura. Outras delas, apesar de não demonstrarem fazer uso das leis nesse sentido, também atuam como produtoras culturais, já que mantêm fundações, centros, teatros, entre outros – os quais realizam ações culturais como atividade principal ou eventualmente. Esse é o caso, por exemplo, da Fundação Bradesco; da Fundação CESP; da Fundação Itaú Social; do Instituto Itaú Cultural; do Instituto Unibanco; do Instituto Unibanco de Cinema; da Fundação Banco Santander (Espanha); do Santander Cultural (Brasil); da Fundação Telefônica; da Fundação Vale; do Museu Vale; do Museu WEG etc. Mais uma vez, portanto, afirma-se a heterogeneidade presente na atuação cultural das empresas sustentáveis no Brasil. Diversidade essa que se apresenta tanto em forma, quanto em

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intensidade, já que há variação no que diz respeito ao escopo de atividades desempenhadas pelas empresas e, ainda, no que diz respeito à frequência e quantidade de projetos financiados, elaborados e divulgados por elas. 5. RESULTADOS E CONCLUSÃO O Ministério da Cultura divulga lista das empresas que apoiam projetos incentivados no Brasil. Um importante trabalho futuro seria investigar quais das empresas listadas emitem relatórios anuais de sustentabilidade e se, de fato, todas elas evidenciam esse apoio em seus relatórios. Isso porque, assim, perceber-se-ia se, realmente, todas as empresas que não divulgam o contato com as leis em seus relatórios, não apoiam projetos via lei de incentivo. Dessa forma, seria possível descobrir se há companhias que não veem a prática cultural como um componente do desenvolvimento sustentável ou se, simplesmente, essas empresas não estão dispostas a apoiar tais iniciativas. Outro estudo pertinente refere-se à descoberta de motivos concretos pelos quais há pouca utilização – ou, ao menos, evidenciação – da Lei do Audiovisual. Considerando todos os benefícios trazidos por tal mecanismo legal, é importante verificar por que não há maior aderência por parte das empresas – sustentáveis, ou não. Pode-se, ainda, verificar como as Fundações mantidas por grandes empresas realizam suas ações culturais e como toda essa atividade costuma ser financiada. No caso de não haver atuação como proponente em Leis de Incentivo, cabe-se investigar o motivo.

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POLÍTICAS PARA A CULTURA NO PLURAL: LIMITES E ABERTURAS Mariana Luscher Albinati1 RESUMO: Pensar as políticas culturais na sociedade contemporânea requer um esforço especial no sentido de enxergar os agentes que, reconhecidos ou não, legitimados ou não, produzem cultura ao expressarem de diferentes maneiras suas subjetividades. Nesse sentido o artigo propõe encarar a ideia de Cultura no Plural, formulada por Michel de Certeau, como baliza para a reflexão sobre políticas culturais, tratando de algumas das implicações que a crescente imbricação entre economia e cultura lança sobre a possibilidade de realização efetiva dessa perspectiva. Em especial, trata do movimento atual de culturalização das mais diversas mercadorias, inclusive da cidade-mercadoria. PALAVRAS-CHAVE: Cultura no Plural, culturalização, empreendedorismo urbano

A palavra cultura é preenchida com significados variados em diferentes disciplinas, épocas e grupos sociais. E diferentes entendimentos sobre cultura implicam, é claro, na produção de políticas culturais com objetivos e procedimentos bastante diversos ou mesmo antagônicos. Pensar as políticas culturais na sociedade contemporânea requer um esforço especial no sentido de enxergar os agentes que, reconhecidos ou não, legitimados ou não, produzem cultura ao expressarem de diferentes maneiras suas subjetividades. Especialmente nas grandes cidades, a reflexão sobre políticas culturais ou o seu planejamento demandam a compreensão das qualidades daquilo que Henri Lefebvre chamou “espaço diferencial urbano” (LEFEBVRE, 1999). É assim que o autor caracteriza o espaço-tempo que surge após a era da industrialização, onde está sendo construída a sociedade urbana, conjunto das sínteses produzidas a partir da reunião dos diferentes, ou seja, da proximidade – inevitavelmente conflituosa - dos diversos sujeitos, objetos, usos, desejos, etc. Se a cidade, marca da nossa sociedade, é a centralidade onde se reúnem todas as diferenças, a cultura urbana não pode ser entendida senão a partir dos diferentes agentes engajados na produção de espaços de expressão cultural. A apropriação social é a chave de leitura para a ideia de cultura de que tratam estas notas. Segundo Michel de Certeau, a cultura “não consiste em receber, mas em realizar o ato Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa. [email protected]

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pelo qual cada um marca aquilo que os outros lhe dão para viver e pensar” (CERTEAU, 1995, p.143). Trata-se, portanto, de uma apropriação que significa ou ressignifica objetos, espaços, narrativas, símbolos, etc. Segundo esta visão, os sujeitos da cultura não são apenas aqueles que a representam colocando nos formatos socialmente legitimados e reconhecidos como artísticos, mas todos aqueles que empregam suas referências e sua sensibilidade na apropriação do mundo que lhes é dado. Com certeza, se é verdade que qualquer atividade humana possa ser cultura, ela não o é necessariamente, ou não é ainda forçosamente reconhecida como tal. Para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza” (CERTEAU, 1995, p.141, grifo do autor). O conceito de cultura em Certeau não se restringe às artes, se aproxima do cotidiano e pressupõe o engajamento de um sujeito. Trata dos “comportamentos, instituições, ideologias e mitos que compõem quadros de referência e cujo conjunto, coerente ou não, caracteriza uma sociedade como diferente das outras” (CERTEAU, 1995, p.194). No entanto, a definição desses quadros de referência cultural é objeto de disputas políticas que, frequentemente, resultam na imposição da produção simbólica elaborada pelo grupo dominante aos demais grupos de uma sociedade. Uma cultura monolítica, como define Certeau, impede que outras atividades criadoras sejam reconhecidas como cultura e se tornem socialmente significativas. Como afirma o autor, a tal ou tal modo fragmentário de prática social atribui-se o papel de ser ‘a’ cultura. Coloca-se o peso da cultura sobre uma categoria minoritária de criações e de práticas sociais, em detrimento de outras: campos inteiros da experiência encontram-se, desse modo, desprovidos de pontos de referência que lhes permitiriam conferir uma significação às suas condutas, às suas invenções, à sua criatividade (CERTEAU, 1995, p.142). Essa cultura, ora imposta de forma sutil e sofisticada, ora de forma simples e direta, é denominada por Certeau como Cultura no Singular, em oposição à Cultura no Plural, que parte da diversidade dos agentes produtores de cultura, acolhendo sua múltipla produção de significados. A dominação cultural expressa pela noção de Cultura no Singular, ou seja, a determinação daquilo que uma sociedade deve ou não reconhecer como cultura, é produzida a partir da dominação político-econômica com quem colabora. No contexto atual, a cultura comparece de forma marcante em variadas esferas da vida individual e social e o seu conteúdo é elaborado em um jogo que envolve poder (das elites) e astúcia (dos fracos). Algumas transformações recentes da sociedade nos parecem importantes para pensar a Cultura no Plural, objeto complexo a que devem corresponder as políticas culturais. Ao discuti-las pretendemos avançar no reconhecimento da multiplicidade de agentes produtores de cultura e do complexo jogo onde agentes dominantes e insurgentes buscam se apropriar das formas contemporâneas de produção simbólica. Para refletir sobre políticas existentes e também sobre a

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possibilidade de outras políticas, vale o esforço de olhar a produção cultural da sociedade a partir de diferentes prismas, considerando sempre o jogo, a relação dialética, nunca absoluta, entre as forças que interferem tanto nas formas culturais como nas suas políticas. Este jogo acontece no campo da cultura, desde o momento original da definição do próprio campo, uma vez que “quem são os agentes culturais” e “como se posicionam no seu campo” não são questões pacíficas. 1. CAMPO DA CULTURA – LIMITES E ABERTURAS O conceito de campo, de Pierre Bourdieu, se refere a um “espaço estruturado de posições e tomadas de posição” (BOURDIEU, 2007, p.09) onde os agentes sociais se movem conforme o volume e tipos de capitais que possuem. O campo da cultura envolve os artistas, intelectuais, comunicadores e também uma série de profissionais ligados à organização da cultura, como planejadores, produtores e gestores culturais, captadores de recursos, curadores e programadores de espaços culturais, museólogos, bibliotecários, dentre outras tantas profissões, além de incorporar crescentemente novas categorias sociais e profissionais ligadas às chamadas economia ou indústrias criativas2. Estas incluem, por exemplo, os designers das diversas especialidades, stylists, gastrônomos, sommeliers, entre outras profissões ligadas ao que Rubim denomina culturalização da mercadoria, que é o “crescente papel de componentes simbólicos na determinação do valor das mercadorias, inclusive bens materiais” (RUBIM, 2011, p.105)3. O acúmulo de práticas culturais tradicionais também confere ao público (das artes) uma posição dentro do campo. De modo geral, o capital cultural tradicional (acúmulo de educação formal, erudição, conhecimento sobre as obras de uma suposta alta cultura ocidental) é ainda o mais distintivo dentro do campo e também aquele que mais interfere na posição dos agentes culturais no campo de poder mais amplo. No entanto, é importante lembrar que nos diversos sub-campos da cultura outros ativos podem ser valorizados, constituindo diversas formas de capital cultural que entram em disputas com aquele tradicional ou buscam reconfigurá-lo. O capital político entra também no jogo interno ao campo cultural, onde alguns agentes (indivíduos, grupos ou instituições) se julgam (e são julgados pelos demais) mais aptos a tomar decisões do que outros, por seu engajamento em determinadas atividades profissionais ou instituições. Pode-se até propor, grosso modo, uma hierarquização do campo a partir das diferentes formas de envolvimento dos agentes na atividade cultural, vindo no patamar mais alto os artistas profissionais, depois os profissionais da área meio (gestores, produtores, comunicadores, Segundo Reis, sob o termo economia criativa estão compreendidos “do artesanato e indústria culturais ao que se poderia dizer que ‘bebe’ cultura para devolver funcionalidade, a exemplo de design, arquitetura, moda, propaganda, software de lazer, etc.” (2011, p.152). Como veremos, a economia criativa tornou-se um conceito central no processo, de que fala Fredric Jameson (2001), de desdiferenciação entre cultura e economia, em especial na sua imbricação com o urbanismo neoliberal. 3 Exagerando na caracterização deste movimento de culturalização da mercadoria, um tumblr lista uma série de exemplos de produtos que demonstram a crescente “gourmetização da vida”: http://gourmetizacaodavida.tumblr.com/ 2

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técnicos, etc.), abaixo destes os artistas amadores, chegando até os fruidores habituais das artes, agentes não profissionais, mas que por afinidade são frequentemente incorporados ao campo. Esta hierarquia, na maior parte dos territórios, teria a forma de uma pirâmide, tendo no topo uma pequena população de artistas e na base uma população maior que corresponde ao “público”. No entanto, a maioria da população, na maior parte dos territórios brasileiros, não entraria sequer nesta base mais larga, por seu baixo capital cultural, se considerarmos o sentido bourdiesiano do termo. Tomar a cultura apenas pelo seu campo seria, portanto, deixar de fora uma população de agentes sociais que significam, resignificam e expressam seu universo de referências, mas que não são reconhecidos socialmente como sujeitos culturais4. As lutas por reconhecimento tensionam essa hierarquização, afirmando o capital político de grupos culturais marginalizados e desconstruindo a noção de capital cultural bourdiesiana a partir da valorização de outras formas culturais, como os saberes ancestrais e populares. 2. LUGAR DA CULTURA – TRANSVERSALIDADE E ISOLAMENTO Para além do seu campo específico, o lugar da cultura na sociedade moderna também passa por redefinição. Nos anos recentes, a transversalidade da cultura vem sendo tomada como pauta de reivindicação em estudos que defendem a importância das políticas culturais e orientam sua formulação. Albino Rubim, apresentando um panorama da cultura contemporânea, afirma que “A cultura, além de ser um campo social específico, transborda tais limites e adquire uma transversalidade que perpassa toda a complexa sociabilidade contemporânea. Por conseguinte, as políticas culturais têm que dar conta do seu campo social específico e dessa transversalidade que faz a cultura permear os mais diferentes campos da sociabilidade atual e interagir cada vez mais com eles” (RUBIM, 2011, p.106). Na contraface do processo de autonomização e fortalecimento do cultural nas estruturas do Estado, observa-se o seu isolamento em relação às demais esferas da vida social. É paradoxal que a reinvindicação do caráter transversal da cultura seja ladeada pela reivindicação da sua maior autonomia e institucionalização, o que acontece frequentemente em estudos, encontros e documentos que orientam as políticas culturais governamentais. Este paradoxo tem origem no modelo francês de política cultural, que se tornou um paradigma para a atuação estatal. A autonomização da cultura frente à administração pública, ou seja, seu entendimento enquanto coisa de interesse público e passível de ser administrada, tem como momento fundacional no mundo

Pode-se considerar, de acordo com Certeau e com a concepção de campo bourdiesiana, os “agentes culturais” como “aqueles que exercem uma das funções ou uma das posições definidas pelo campo cultural: criador, animador, crítico, promotor, consumidor, etc.” (CERTEAU, 1995, p.195). Assim, usa-se aqui os termos “agentes produtores de cultura” ou “sujeitos de cultura” para tratar daqueles que, mesmo não sendo reconhecidos pelo campo, produzem cultura, entendida de forma mais ampla, conforme o conceito do próprio Certeau.

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ocidental a criação do Ministério dos Assuntos Culturais da França, em 19595. Esta experiência, segundo Rubim, “fez emergir os modelos iniciais e paradigmáticos de políticas culturais, com os quais ainda hoje lidam os dirigentes e estudiosos do tema” (RUBIM, 2011, p.109). Michel de Certeau, no livro A Cultura no Plural, originalmente publicado em 19746, observa a reconfiguração da cultura e das políticas culturais na França diante dos movimentos insurgentes que culminaram nas manifestações de maio de 1968. O autor adverte sobre a inocuidade das políticas produzidas a partir das pastas de cultura, marcadas por “considerações demasiadamente longas e medidas demasiadamente curtas” (CERTEAU, 1995, p.210), argumentando que o estabelecimento das questões culturais de maneira própria com relação aos problemas sociais, econômicos e políticos, acentua a tendência do “cultural” a se isolar, formando “um tumor inerte no corpo social” (op cit, p.205). Nesse sentido, a expressão política cultural, conforme o modelo francês de então, camuflaria “a coerência que liga uma cultura despolitizada a uma política aculturada” (op. cit., p.217). Desse modo, o encolhimento e/ou isolamento das instâncias tradicionais onde são formuladas políticas culturais, dentro do Estado, é consequência de duas operações distintas: por um lado, o elitismo que limitou a atuação dos órgãos de cultura às artes e por outro, a assunção da cultura pela economia, legando a outros órgãos do Estado e ao próprio mercado a elaboração de políticas culturais. Se entendermos política cultural como “um conjunto mais ou menos coerente de objetivos, de meios e de ações que visam à modificação de comportamentos, segundo princípios ou critérios explícitos” (CERTEAU, 1995, p.195), fica evidente que os órgãos de cultura não são os únicos nem os principais agentes dessas políticas. Também atuam neste campo grupos identitários, movimentos sociais e culturais, entre outros tantos agentes, com destaque para os grupos econômicos e mais ainda aqueles interessados em criar nas grandes cidades um ambiente favorável aos negócios, operação em que a cultura vem sendo crescentemente utilizada. 3. ECONOMIA DA CULTURA – CENTRALIDADE E SUBORDINAÇÃO A centralidade assumida pela cultura nos diversos campos da vida social é sem dúvida devedora da sua associação à economia ou, como propõe Fredric Jameson (2001), do duplo movimento da cultura para a economia – através da bilionária indústria do entretenimento – e da economia para a cultura – com a estetização generalizada da mercadoria. O primeiro movimento, O Ministério foi dirigido durante 10 anos pelo escritor André Maulraux, escritor e intelectual reconhecido na França e internacionalmente, que implementou um modelo chamado democratização cultural, que, centrado na construção de Maisons de Culture, propunha a difusão das obras da alta cultura francesa, projeto ideológico integrado ao governo Charles de Gaulle (1959-1969) e à tentativa de recuperação do poder da civilização francesa. 6 A primeira publicação, em 1974, era uma compilação de textos para um colóquio, editada em livro apenas em 1980, em francês, e em português no ano de 1995. Referência do original: CERTEAU, Michel de. La Culture au Pluriel, Paris, UGE, 10-18, 1974: 2ª Ed., Paris, Christian Bourgois, 1980. 5

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da cultura para a economia, pode ser identificado com a indústria cultural e seus aprimoramentos produtivos a partir do desenvolvimento da informática e dos meios de comunicação eletrônicos. Parte-se de modos de difusão cultural artesanais para a produção seriada, em escala industrial, com grande aporte tecnológico, criando indústrias como a cinematográfica, a fonográfica, a editorial, entre outras. O desenvolvimento dessas indústrias, vale notar, não se deve somente às possibilidades dadas pela técnica, mas sobretudo às políticas adotadas pelos Estados onde elas tiveram um desenvolvimento significativo. O maior exemplo é o dos Estados Unidos, que desde meados do século passado vem tentando derrotar as políticas protecionistas que possam impedir ou limitar o alcance das produções de corporações americanas de entretenimento no mercado mundial, intervindo politicamente junto aos organismos multilaterais em favor de uma indústria que figura entre as mais rentáveis do país. O segundo movimento, da economia para a cultura, conflui com a etapa mais recente da reestruturação capitalista, a pós-fordista ou da “acumulação flexível” (HARVEY, 2005), marcada pela “culturalização” da mercadoria. Aqui não se trata necessariamente da produção cultural em escala industrial, mas do acréscimo de aspectos simbólicos aos mais diversos produtos, inclusive os industrializados: “A produção de mercadorias é agora um fenômeno cultural, no qual se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso imediato” (JAMESON, 2001, p.22). A sofisticação dos recursos de marketing e publicidade, além do uso intensivo do design com funções estético-expressivas e não mais apenas de funcionalidade e ergonomia dos produtos, demonstram esse movimento. A presença da cultura no consumo cotidiano das populações urbanas sinaliza o estado atual de imbricação entre economia e cultura, onde a desdiferenciação entre ambas se encontra naturalizada pelo senso comum. A incorporação dessa desdiferenciação pelo status quo, promovendo a valorização da cultura (em termos de estima social) pelo seu potencial de valorização econômica dos mais diversos produtos e lugares, tem no ideário da Economia Criativa uma ferramenta central. Esse ideário, difundido a partir da década de 1990, trata da apropriação da produção simbólica como insumo da produção econômica de forma geral, transformando algumas formas culturais – expressas nas artes, na criatividade popular, nos diferentes modos de vida – em ativos de grande importância na reestruturação do capitalismo pós-fordista. 4. COMUNICAÇÃO DA CULTURA – PRODUÇÃO E CONSUMO A imbricação entre cultura e economia, realizada em grande parte através da comunicação, é interpelada por novas questões a partir do recente advento das tecnologias que liberaram o polo emissor de informações. Mesmo o desenvolvimento dessas tecnologias sendo patrocinado e explorado pelo capitalismo, colaborando em suas estratégias político-econômicas, não se pode ignorar o potencial que a comunicação adquire quando cada usuário deixa de ser somente

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receptor, mas passa também a emissor de dados, possibilitando uma maior democratização da comunicação e uma maior diversidade na produção cultural. Este fenômeno, que deu origem ao termo cultura digital, carrega um potencial transformador e contra hegemônico que certamente precisa ser considerado em qualquer reflexão atual sobre cultura, pois coloca novas questões no debate da cultura de massa, desestabilizando o discurso que atribui à indústria cultural a diminuição dos criadores e a multiplicação dos consumidores, como fez Certeau há mais de quatro décadas, e trazendo dados novos para se pensar a relação entre cultura e passividade. No bojo das contradições próprias ao capitalismo, as novas possibilidades tecnológicas são apropriadas também pelos movimentos anti capitalistas, além de inúmeros outros movimentos, valorizando e ressignificando termos como compartilhamento e colaboração. Assim, a pirataria por um lado – de forma predatória, porém capitalista – e as tecnologias livres por outro – com licenças do tipo copyleft para produtos culturais e softwares utilitários –, funcionam como reverso das estratégias de dominação das grandes empresas que crescem apoiadas na eliminação ou no encapsulamento dos produtos concorrentes (comprando outras empresas, fundindo marcas, cooptando profissionais, etc.). A hipervigilância do Estado, com seu aparato de captura de imagens em tempo real em todo o espaço urbano tem como contraface a captura de imagens pelos cidadãos, em tempo real, denunciando a atuação do próprio Estado. A impregnação dos meios de comunicação pela propaganda do mercado, inclusive com invasão da privacidade dos potenciais consumidores, tem como contraface a produção de paródias e de denúncias sobre marcas e produtos, disseminadas de forma viral. 5. LEGITIMAÇÃO PELA CULTURA – RECURSO MATERIAL E RECURSO SIMBÓLICO A noção de cultura como recurso, formulada por George Yúdice (2006), ajuda a pensar nas estratégias contemporâneas com as quais o capitalismo mantém sua dominação nas mais diversas esferas da vida, ultrapassando a associação automática entre cultura de massa e alienação. Para além da indústria cultural ou da produção de mercadorias estetizadas, ONGs, movimentos, grupos identitários, entre outros agentes sem fins lucrativos passaram a fazer uso da cultura como recurso para os mais diversos fins. No livro A Conveniência da Cultura, Yúdice trata do momento histórico atual marcado por uma nova forma de legitimação da cultura, baseada em sua utilidade, onde “uma vez que todos os atores da esfera cultural se prenderam a essa estratégia [utilitária] a cultura não é mais experimentada, valorizada ou compreendida como transcendente”, mas sim como um recurso. Segundo o autor,

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hoje em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que não arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura, ora para melhorar as condições sociais, (...) ora para estimular o crescimento econômico através de projetos de desenvolvimento cultural urbano e a concomitante proliferação de museus para o turismo cultural (YÚDICE, 2006, p.27). Podemos acrescentar ainda o uso da cultura no marketing empresarial, através da associação das marcas ao financiamento de determinados produtos culturais e também, conforme Yúdice, nas lutas por reconhecimento, como recurso político para a conquista de políticas redistributivas. Estes usos da cultura, distintos em seus objetivos, se igualam no tratamento do cultural como meio para alcançar os fins desejados. Desta forma, importa menos o conteúdo transmitido por um projeto sociocultural do que seus resultados quanto a ocupar o tempo livre de populações entendidas como potencialmente perigosas ou a favorecer a pacificação e construir um ambiente seguro para investidores; menos a programação dos museus construídos em áreas degradadas do que o fluxo de visitantes desejados que eles efetivamente atraiam e a valorização imobiliária que a sua proximidade acarrete; menos o impacto simbólico produzido por uma montagem teatral do que a transmissão desse capital simbólico para a imagem das empresas patrocinadoras; menos o conteúdo cultural que distingue um grupo social marginalizado do que o poder de barganha política que esta distinção confira ao grupo na conquista de direitos que lhe são negados quando se integra à massa marginalizada da sociedade. 6. DIVISÃO SOCIAL DO TRABALHO CULTURAL – INTEGRADOS E CAPTURADOS O processo atual, em que a cultura ocupa um papel central na sociedade, não pode ser considerado fora da sua conexão visceral com o capitalismo em sua etapa global. Segundo Yúdice, “a culturalização da assim chamada nova economia, baseada no trabalho cultural e mental (...), tornou-se, com o auxílio da nova tecnologia de comunicações e informática, a base de uma nova divisão do trabalho” (YÚDICE, 2006, p.38). Grosso modo, pode-se distinguir três posições básicas nesta nova configuração: os detentores de Propriedade Intelectual, os trabalhadores da cultura e os grupos que representam a diversidade cultural e a convivência multicultural. Assim como em qualquer negócio do capitalismo flexível, os proprietários de direitos autorais podem estar em um lugar (geralmente nos países dominantes) e aferir seus lucros a partir do trabalho e do consumo realizados em outros lugares. Os trabalhadores da cultura incorporam, além do campo mais tradicional das artes, os chamados “criativos”, que trabalham na culturalização de mercadorias diversas e são remunerados, em geral, por sua força de trabalho, como em qualquer tipo de produção. Vale destacar que a precarização do trabalho, característica do capitalismo flexível vigente, marca também o trabalho cultural, que passou a incorporar a “razão empreendedora” (ALVIM et al, 2012), difun-

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dindo formas como o co-working ou home-office7, que vem sendo enaltecidas por permitirem práticas que diferem do universo do trabalho formal, como o convívio com a família ao longo da jornada, a possibilidade de conciliar cuidados domésticos e atividade profissional, a liberdade para se vestir informalmente, a redução de custos de locação, o compartilhamento de redes de trabalho, etc. Não se pode ignorar, no entanto, que essas novas formas de organização corroboram o movimento de precarização do trabalho, que inclui novas e antigas formas de exploração da mais-valia e exclui as garantias sociais que configuraram a noção tradicional de cidadania. O que distingue a cultura na divisão do trabalho, enfim, talvez seja a posição dos grupos culturais subalternos, que desempenham um papel econômico, mas não são remunerados por ele. Em relação ao trabalho cultural, esses grupos, raramente vislumbrados pelas políticas culturais governamentais, não constituem um exército de reserva, na acepção marxista, mas sua existência confere lucros ao segmento empresarial que, mesmo não se relacionando diretamente com questões culturais, é atraído e beneficiado por um ambiente multicultural, como acontece nas cidades globais: “A culturalização, portanto, também é baseada na mobilização e no gerenciamento de populações marginais” (YÚDICE, 2006, p.40) que, conforme Manuel Castells (apud YÚDICE, 2006), “realçam a vida” e nutrem a inovação dos “criadores”. Ou, conforme Harvey (2005), na apropriação privada do capital simbólico coletivo. 7. CULTURA E CIDADE – EMPREENDEDORISMO E INSURGÊNCIAS O capitalismo, em sua fase atual, se apropria da cultura não mais apenas na superestrutura, onde ela teria o papel de colaborar para a reprodução do modo de produção, mas também na própria produção capitalista, que incorpora crescentemente aspectos simbólicos como fonte de valor das mercadorias. Este movimento de culturalização da mercadoria atinge desde a produção de automóveis até alimentos, mas é na cidade-mercadoria, talvez o artigo mais complexo que o mercado busca negociar, que suas múltiplas estratégias se revelam. David Harvey (2005) procura entender o que diferencia os bens culturais de outras tantas mercadorias no capitalismo, chegando a uma forma de renda que é obtida pela conservação do caráter único das mercadorias, inclusive os lugares apropriados pelo mercado: a renda monopolista. O empreendedorismo urbano e o grande interesse pelo local que esta forma política suscita correspondem aos interesses do mercado globalizado, na tentativa de obtenção e/ou preservação da renda monopolista na exploração desses lugares. Assim, as peculiaridades de uma localidade são seletivamente destacadas e reinventadas, na forma conveniente ao mercado, em A expressão co-working se refere aos escritórios onde empreendedores compartilham seu espaço de trabalho e infraestruturas como rede de internet, na maior parte das vezes compartilhando também suas redes de clientes e fornecedores. O termo home-office, literalmente traduzível como casa-escritório, caracteriza o trabalho daqueles empreendedores que dedicam parte do seu espaço residencial e, em geral, também do seu tempo pessoal, para exercerem sua atividade profissional.

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um esforço conjunto com os governos movidos pela lógica neoliberal, que impõe a necessidade de que as cidades tornem-se atraentes para o capital e concorram entre si, mundialmente, para sediar negócios transnacionais. Os capitalistas envolvidos na elaboração dos marcos de distinção dos lugares onde desenvolvem seus negócios se escondem, conforme Harvey, “nas moitas do multiculturalismo, da moda e da estética, pois é precisamente por esses meios que as rendas monopolistas podem ser conquistadas, pelo menos por um tempo” (HARVEY, 2005, p.237). Daí a relação que se estabelece entre as lutas por reconhecimento dos grupos marginalizados da sociedade – cuja produção cultural constitui em geral grande parte daquilo que distingue as cidades e as torna atraentes – e as estratégias contemporâneas do capitalismo. Para o capital não destruir totalmente a singularidade, base para a apropriação das rendas monopolistas (e há muitas circunstâncias em que o capital fez exatamente isso), deverá apoiar formas de diferenciação, assim como deverá permitir o desenvolvimento cultural local divergente e, em algum grau, incontrolável, que possa ser antagônico ao seu próprio e suave funcionamento. (HARVEY, 2005, p.238) Segundo Harvey, “O problema para o capital é achar os meios de cooptar, subordinar, mercadorizar e monetizar tais diferenças apenas o suficiente para ser capaz de se apropriar das rendas monopolistas disto” (HARVEY, 2005, p.238). E do lado dos movimentos oposicionistas (os anticapitalistas ou os que estejam mais interessados em suas questões próprias do que na competição por visibilidade e financiamento), o problema é usar a validação da sua produção cultural para abrir novas possibilidades e alternativas, aproveitando a facilidade que as circunstâncias oferecem para sua participação cultural de forma a impor a sua participação política. 8. OBSERVAÇÕES SOBRE AS POSSIBILIDADES DA CULTURA NO PLURAL EM TEMPOS DE CULTURALIZAÇÃO Como vimos, as práticas culturais extrapolam o campo da cultura, não coincidem com seu desenho e não se limitam às suas regras. Tanto pela existência de uma massa de agentes produtores não reconhecidos dentro do campo, como pela imbricação entre cultura e economia, gerando formas de consumo e de produção de mercadorias que são também práticas culturais. Para o Estado, é imensa a dificuldade em produzir e apoiar políticas culturais em diálogo com esse campo ampliado da cultura, ou seja, políticas capazes de considerar a Cultura no Plural. Enquanto isso, outros agentes e instituições, do mercado, ocupam o lugar onde se elaboram as políticas culturais para a sociedade. Nesse contexto, as lutas que se fazem a partir do campo da cultura, assim como as disputas dentro do próprio campo (por financiamento, visibilidade, direitos, etc.) passam a ser travadas na língua do capitalismo, tratando a cultura como recurso. Esse debate sobre as transformações recentes na cultura ganha maior relevância quando se de-

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seja pensar e agir a partir do contexto das grandes cidades, em especial aquelas onde uma gestão de tendência neoliberal trabalha pela sua competitividade no mercado mundial, capturando aspectos da expressão simbólica dos cidadãos como ingrediente de um amálgama artificial que passa a ser “a cultura” do lugar. A idéia de Cultura no Plural não é difícil de entender em uma sociedade cada vez mais multicultural, situada em cidades onde convivem línguas e costumes de dezenas de lugares, marcadas pela divisão espacial que ora segrega, ora aproxima grupos constituídos por diferenças e desigualdades. O mercado, mais sagaz que toda a lenta produção intelectual e do que o pesado aparelho do Estado, entendeu rapidamente que essa pluralidade possibilitava novas formas de acumulação de capital econômico. As cidades globais são, nessa conjuntura, uma mercadoria complexa que incorpora cultura, gerando renda de diferentes maneiras. Uma delas é a reunião, na cidade, entre os consumidores e as mercadorias diferenciais com as quais aqueles afirmam suas identificações culturais e se diferenciam em meio à enorme população urbana. Neste sentido, Nestor Garcia Canclini (1995) e George Yúdice (2006) afirmam a possibilidade de exercício efetivo da cidadania mesmo nesta conjuntura de dominação capitalista através da cultura. Se é verdade que o consumo cultural de mercadorias não obedece à lógica da satisfação de necessidades e sim à da identificação/diferenciação, também é verdadeiro, segundo os autores, que ele não serve apenas para dividir a sociedade, mas também para que ela compartilhe significados. Outra fonte de renda que se realiza na cidade com a imbricação entre cultura e economia é a conversão da Cultura no Plural em caricatura, sua transformação em Cultura no Singular, a ser usada como marca nos rótulos com que se vende a própria cidade. Nesse movimento, enquanto alguns aspectos da cultura local são destacados – pinçados, costurados, colados, remontados numa bricolagem à moda do mercado internacional de cidades –, outros aspectos, e as populações que os produzem, são esquecidos ou ativamente apagados, configurando uma das formas mais autoritárias de imposição de uma Cultura no Singular.

REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, J. L. R., NUNES, T. de G., CASTRO, Carla Appollinario de. Empreendedorismo tupiniquim: notas para uma reflexão. In: Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. Niterói: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

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CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. Campinas: Papirus, 1995. HARVEY, David. A produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005. JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Vozes, 2001. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. REIS, Ana Carla Fonseca. O desenvolvimento de uma economia criativa. In: URANI, André; GIAMBIAGI, Fabio. Rio: a hora da virada. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Cultura e Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

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DISCUSSÕES SOBRE UMA OBRA UNIVERSITÁRIA – BREVE ENSAIO SOBRE A ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA DO INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO E OS PROJETOS DA DÉCADA DE 1950 Mariana Rodrigues Tavares1 RESUMO: Este trabalho se destina a apresentar e analisar o projeto cultural de publicação da Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional do Livro (1937-1990). Para isto, a narrativa destacará as principais disputas em torno da escolha dos diretores e chefes de seção, tal como, a ocorrida com o poeta Mário de Andrade. Além disso, esta análise contemplará também os nomes dos principais ministros que acompanharam o Ministério da Educação e Cultura ao longo dos anos 1930 e 1970, salientando seus nomes, partidos e ações. Em linhas gerais, o que esta comunicação almeja é discutir as políticas públicas de edição em voga nos anos 1930-70, destacando a principal delas que foi a Enciclopédia Brasileira do Instituto Nacional do Livro e suas aspirações modernistas e nacionalistas. PALAVRAS-CHAVE: Instituto Nacional do Livro; políticas culturais de edição; Enciclopédia Brasileira; disputas intelectuais.

A discussão sobre o desenvolvimento foi emblemática na década de 1950, não apenas, para se pensar os programas políticos vigentes, mas para questionar a concepção da ciência como instrumento de modernização do Brasil. Neste período pôde-se verificar o que alguns autores denominam por aprofundamentos de processos sociais de décadas anteriores, dando origem a instituições e agências de fomento à pesquisa (Botelho, 2008:271). São frutos desses anos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) criada em 1948, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas de 1949, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ambos datados de 1951. Como parte importante desse processo, há de se considerar também as universidades. A década de 1950 condensou os primeiros resultados acadêmicos das instituições criadas nos anos Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-graduação da UFF. Bolsista de mestrado CNPq com o projeto Editar a Nação e escrever sua História: Livros, projetos editoriais e disputas letradas no Instituto Nacional do Livro, 1937-1991 sob a orientação da professora doutora Giselle Martins Venancio. Email para contato: historia. [email protected].

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1930, destacando-se nesse período, as produções assinadas pelo Rio de Janeiro e São Paulo, a saber, as da USP e as da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). Junto dessas duas instituições há de se acrescentar o papel do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), fundado em 1955 e vinculado ao Ministério da Educação. Ao lado das instituições anteriores, o Iseb foi ao longo da segunda metade do século XX um dos mais destacados lugares de legitimidade intelectual brasileira (Venancio; Furtado, 2013). O “furor” desenvolvimentista e a mudança na concepção do projeto de modernização do Brasil, neste momento pautado na ciência como a força motriz das transformações, fez com que até mesmo o Instituto Nacional do Livro quisesse imprimir uma nova feição a sua obra principal, a Enciclopédia Brasileira. Por essas razões, este texto pretende analisar os projetos editoriais da Enciclopédia preparados na década de 1950, destacando as mudanças que decorreram desses anos. 1. OS PRIMEIROS TEMPOS DO INL Durante os primeiros anos de funcionamento, compreendendo o período de 1937-1945, o Instituto Nacional do Livro teve como diretor o poeta gaúcho Augusto Meyer e como consultor técnico da Enciclopédia Brasileira, o também escritor Mário de Andrade. Este último foi autor do anteprojeto mais célebre desta obra e imprimiu aos esboços da publicação o caráter das discussões nacionalistas em voga no Brasil. A iniciativa de conferir ao país uma obra de cunho nacional é ilustrativa do projeto político de Vargas que teve na nacionalização o instrumento para a dissolução dos conflitos de classe (Mendonça, 1986). Contudo a mudança mais radical na concepção do plano apenas aconteceu na década de 1950 quando a obra se universalizou. A partir de então, o plano deixava o nacional interno para se concentrar nas disciplinas curriculares das universidades. Nesse período a ciência adquiriu legitimidade e valor social, originando projetos no âmbito estatal. Se em 1930 a legitimidade veio por meio das políticas estatais de promoção da cultura brasileira, nos anos 1950 a questão girou em torno da consagração do discurso científico produzido e difundido pelas Universidades. Nesse ínterim, o projeto da Enciclopédia brasileira se redefiniu e também se transformou numa nova obra. Sob a justificativa de desenvolver o país em termos nacionais houve o fortalecimento da ciência, dotada de uma autoridade singular, e pensada enquanto uma atividade que fundamentaria os projetos de crescimento e modernização do Brasil. É por este motivo que a década de 1950 concentrou debates na área da atividade científica e do desenvolvimento associando posicionamentos de diferentes classes sociais e de diversas orientações ideológicas. (Botelho, 2008). Assim como nos demais setores da sociedade brasileira, englobando de governantes a intelectuais, o tema da modernização através da atividade científica das universidades também dominou o cenário de discussões acerca da Enciclopédia brasileira do Instituto Nacional do Livro.

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2. REALIZANDO UMA OBRA UNIVERSITÁRIA A função principal da Enciclopédia, tal qual a definição em 1956, era a de atender às necessidades do público universitário não especializado. Assim, A Enciclopédia visa também a fornecer idéias claras sôbre os conceitos fundamentais, nos vários campos de conhecimento. É imprescindível que o consulente cujo grau de cultura geral é o universitário possa, ao recorrer à Enciclopédia, nela encontrar a conceituação específica exposta com o máximo de precisão e clareza, possibilitando-lhe a compreensão do assunto que desperta o seu interêsse. Contudo cerca de um ano depois, uma nova publicação foi realizada pelo Instituto Nacional do Livro com vistas a divulgar a formatação da obra, suas normas e diretrizes. No prefácio da Enciclopédia Brasileira – introdução, diretrizes e normas gerais datado de 1957, José Renato Santos Pereira, diretor do órgão afirmava, Pareceu-nos, tão logo assumimos a direção do Instituto Nacional do Livro, que era nosso inadiável dever levar a cabo a tarefa de reunir em obra especial todo o acervo de nossas riquezas, do que somos como Nação, como aglomerado humano com língua própria, tradições, tipicidades, características culturais originais e autônomas. A Enciclopédia brasileira, de que este função me é um anteprojeto, poderá atingir esse objetivo fundamental, paralelamente à sua função enciclopédica universal. Imperiosa era a necessidade de ser formada uma equipe inicial. Apressamo-nos a organizá-la, orientados por critérios de competência profissional comprovada, ilibado renome intelectual e existência de indiscutível folha de serviços à coletividade. Integram a Comissão Central os srs. Euryalo Cannabrava, Paulo de Assis Ribeiro, Antônio Garcia de Miranda Netto, Cristiano Martins e Srta. Suzana Gonçalves. Em outros setores, prestam valiosa colaboração as sras. Vera de Assis Ribeiro, Maria Eugênia Aché Pillar e o Sr. Afrânio Coutinho. Pelo que assegura José Renato, a intenção da Enciclopédia foi a de publicar uma obra que tratasse sobre o patrimônio cultural do Brasil. No entanto o foco da nova versão deste empreendimento se centrou em contemplar não o Brasil e as suas peculiaridades, mas as diversas áreas do conhecimento que faziam parte do universo acadêmico, recém-instalado no Brasil com as universidades. Nas palavras do diretor, A esse grupo de profissionais de alto saber e conhecimento da matéria cabe no momento a tarefa de fornecer às futuras numerosas comissões de especialistas nos vários campos do conhecimento humano os elementos básicos para o trabalho de elaboração de verbetes e monografias referentes às 26 letras de que se compõe o nosso Alfabeto, na natural ordem seqüencial de A a Z.

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Amparados pela compreensão e pelo apoio do Excelentíssimo Senhor Ministro da Educação e Cultura, Professor Clóvis Salgado, que neste caso traz implicitamente a alta aprovação do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Dr. Juscelino Kubitscheck, e certos de estarem refletindo necessidade premente da vida universitária e cultural do Brasil, esses técnicos não vêm poupando esforços no sentido de superar as barreiras destrutíveis pelo trabalho tenaz e pelo amor superior a Pátria. (grifos meus) Na tentativa de superar as carências do Brasil quanto à modernidade, a Enciclopédia brasileira se adequou as necessidades trazidas pela nova época. Alterou os seus objetivos, assemelhando-se muito mais aos pressupostos curriculares universitários do que os defendidos pelo plano de 1937. Para compreendê-los, faz-se necessário remontar os princípios norteadores da década de 1930 e as questões travadas por Mário de Andrade. Na década de 1930 as perguntas norteadoras da Enciclopédia brasileira se referiam a qual público ela atenderia e qual deveria ser o seu caráter cultural. Foram essas as questões elaboradas por Mário de Andrade e direcionadas para o anteprojeto que havia preparado a respeito da Enciclopédia do Instituto Nacional do Livro. A principal característica da publicação era o seu caráter nacional e alertava Mário de Andrade que esta deveria atender a todas as camadas sociais, desde as mais cultas até mesmo as mais populares (Andrade, 1993). O ideal da Enciclopédia projetada pelo Instituto e encomendada a Andrade foi o da multivalência. Nas palavras do poeta, “cria-se uma obra de caráter misto que possa, conforme o assunto, se dirigir à classe que este assunto diretamente interesse, e a todas as classes ser útil.” (Andrade, 1993). Para além disso, a Enciclopédia trazia em sua essência o peso nacional e se diferenciaria das demais, principalmente da Britânica e da Italiana. Segundo Andrade, ela deveria conter “conhecimentos a respeito da coisa brasileira”. E justifica por meio dos conteúdos que a obra deveria abordar como, por exemplo, o conteúdo biográfico-histórico. Para Mário, Qual a mais importante, a que deverá ter maior desenvolvimento na Enciclopédia Brasileira, entre as personalidades de Pedro o Grande da Rússia e o Duque de Caxias? Apesar da importância civilizadora e universalmente histórica do primeiro, parece evidente que o Duque de Caxias e mesmo a imperatriz Leopoldina são mais importantes dentro da Enciclopédia Brasileira. Só por este critério é que a nossa enciclopédia terá uma funcionalidade nacional mais legítima, bem mais profunda e fecunda. Mas não foi apenas isto que inquietava os protótipos da Enciclopédia. Sabendo das escassas informações que circulavam a respeito do Brasil no exterior, a proposta de Mário de Andrade ao projetar uma Enciclopédia nacionalista também procuraria corrigir o déficit de conhecimento a respeito do Brasil e, mais uma vez, justificava a desproporcionalidade funcional que faria a Enciclopédia ao dedicar vinte linhas para Pedro o Grande e quarenta linhas para a

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imperatriz Leopoldina. (Andrade, 1993) Sem dúvida, a discussão nacional deu o tom dos debates na década de 1930 e, principalmente, foi definitiva para fazer emergir a ideia de se produzir uma Enciclopédia brasileira ao ponto de mobilizar um Instituto e intelectuais nesse serviço. Entretanto pouco mais de vinte anos depois de criado o Instituto Nacional do Livro e de elaborado o plano da Enciclopédia Brasileira por Mário de Andrade, o perfil e a função da Enciclopédia havia sido modificado radicalmente. Considerando todas as razões levantadas na abertura desse texto que englobam desde a discussão do nacionalismo enquanto uma categoria conceitual que foi definida nos anos 1930 pelo viés da homogeneidade e, sobretudo, pela busca das origens culturais brasileiras, até mesmo, a mudança de definição que marcou os anos 1950, pode-se afirmar que na década de 1950 a Enciclopédia nacionalista havia se transformado numa obra de caráter universitário. Tudo isso porque foi neste período que o Brasil ingressou numa nova fase de desenvolvimento econômico, industrial e cultural sendo a força motriz desse momento a posição do país no cenário internacional. A partir de então, não foi necessário apenas ter uma obra que apresentasse o Brasil aos brasileiros, mas que, sobretudo, inserisse o país no quadro de desenvolvimento da época e que estimulasse as pesquisas e os conhecimentos universitários do período. Por essas razões, as diretrizes da Enciclopédia brasileira postuladas por Euryalo Cannabrava ilustram a inquietação desse momento e que, especialmente, procuram explicitar as razões pelas quais a Enciclopédia ainda não havia sido lançada. Nas palavras de Cannabrava, A principal razão por que a Enciclopédia Brasileira até hoje os seus trabalhos apenas iniciados, sem possibilidades de se levar essa ingente tarefa a bom termo, decorre do excesso de escrúpulos e do ideal de perfeição que animava os seus organizadores. Observa-se comumente no Brasil e em toda a América Latina a preocupação de realizar certa obra de maneira tão satisfatória que o resultado de tudo é o malogro ou a confinação ao que se denomina os árduos trabalhos preparatórios. (...) O resultado de tudo isso é que a aventura enciclopédica implica, também, espírito de renúncia, sacrifício do pitoresco e do interessante em proveito da solidez, precisão e objetividade. Pode-se perfeitamente elaborar uma imensa obra que incluiria tudo aquilo que as enciclopédias não registram. O trabalho, portanto, não é de assimilação indiscriminada, mas de espírito seletivo e alerta perante as indispensáveis omissões. A Enciclopédia, portanto, não representa apenas o epítome da sabedoria ecumênica, mas também o compêndio, por exclusão, daquilo que se considera acidental, fortuito, ocasional ou aleatório. A tarefa, sendo de escolha, inclui assim não somente o que se aproveita, como também o que se refuga. As omissões em obra de tal magnitude frequentemente são mais trabalhosas e difíceis do que aquilo que se inclui, seguindo as normas do consenso universal.

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Além das explicações e enaltecimentos para o trabalho, a questão da Enciclopédia deixava de ter como escopo o nacionalismo para se centrar nos aspectos científicos. Conforme destacou André Botelho, o caráter dos anos 1950 foi o da definição da ciência e de sua produção como práticas universitárias. Para Cannabrava, a Enciclopédia deveria atender justamente esse público e, para isso, o novo plano de redação recuperaria os programas das faculdades e das instituições de ensino superior para contemplar o novo perfil da publicação. Sobre isso, o chefe argumenta que: A Enciclopédia Brasileira, que dedicará ao conhecimento científico papel relevante em suas páginas, pretende focalizar a dimensão prospectiva, sem prejuízo do inventário retrospectivo de importantes aquisições. Mas é preciso não esquecer que o nosso objetivo consiste em atender às necessidades culturais do estudante de nível universitário. Daí o estudo meticuloso dos programas das faculdades e instituições de ensino para que se possam incluir na enciclopédia verbetes e monografias aptos a ministrar os conhecimentos exigidos pelo currículo. Bastaria que a obra em debate satisfizesse esse requisito para que ficasse demonstrada a sua utilidade. Em nosso meio faltam os manuais escritos na língua portuguesa e adaptados às nossas necessidades. Se a Enciclopédia Brasileira fornecer aos estudantes universitários indicações precisas no texto e na parte bibliográfica sobre a matéria de ensino em nossas escolas e faculdades terá, sem dúvida alguma, preenchido uma de suas mais altas finalidades. E ainda insistiu na questão da divulgação dos conhecimentos destinados para o público universitário, A divulgação dos conhecimentos de nível superior, realizada sob forma acessível aos indivíduos medianamente dotados, constitui obra de maior relevância em nosso meio. Não acredito que as deficiências apontadas em nosso sistema universitário sejam motivadas por incapacidade dos professores ou falha no preparo dos alunos. O que suscita a desmoralização do ensino nacional é a falta de seriedade e de honesto cumprimento do dever por parte daqueles que exercem postos importantes na administração pública. Acredito sinceramente que a nossa enciclopédia possa influir na melhoria do ensino nacional, levando até os estudantes e as pessoas de nível cultural universitário um repositório de ideias, teorias e princípios que contribuam diretamente para enriquecer o acervo da civilização brasileira. Com concepções bastante distintas, a Enciclopédia brasileira do Instituto Nacional do Livro chegava ao fim da década de 1950 modificada. Se outrora a publicação foi mais nacionalista e, até mesmo, modernista, a partir de 1956 ela se consolidou como sendo uma obra

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universitária. Nessa época, as principais discussões centravam-se no nacionalismo e nas suas implicações, não apenas, no Brasil, mas no mundo. No entanto, para muitos estudiosos, os intelectuais brasileiros chegavam ao fim dos anos 1950 sem bases teóricas que pudessem legitimar o nacionalismo e a consciência nacional (Côrtes, 2008). Ainda que tenha havido toda uma publicação editorial preocupada com a temática nacional, para analistas como Norma Cortês, tais produções não chegaram a contribuir para a querela nacionalista brasileira. Para a autora, os anos 1950 marcavam uma superação de pontos de vista de duas gerações de intelectuais compreendidos entre os que debatiam os aspectos que caracterizaram a nacionalidade brasileira, os modernistas, e aqueles que problematizaram o real. Nas palavras de Norma Cortês, “longe de consistir numa simples rixa entre antigos e modernos, a superação dos topoi cognitivos da tradição sociológica envolvia um claro esforço para a re-significação do ser nacional.” (Côrtes, 2008). Nesse processo de redefinição e, principalmente, de ressignificação de projetos e discussões nacionalistas, a Enciclopédia brasileira emergia numa nova forma e destinada para um novo público. Além de uma nova definição, o espaço da seção de Enciclopédia do Instituto Nacional do Livro esteve imerso em disputas intelectuais, ideológicas e políticas. Talvez um indício desses conflitos esteja na separação entre os intelectuais cariocas que ocupavam a função nas comissões organizadoras da obra e naqueles que se direcionavam, cada vez mais, para o discurso vitorioso e científico da Universidade de São Paulo. Ao que parece, Paulo de Assis Ribeiro esteve inserido no segundo grupo, o do discurso paulista. Sua saída certamente também foi condicionada por esse debate de concepções e não apenas por motivos de saúde e da improbidade de alguns funcionários. Ao se mapear os intelectuais que foram membros das comissões depara-se com nomes conhecidos do universo católico, do movimento integralista, da filosofia e da história. Os nomes são: Euryalo Cannabrava como presidente comissão central; Paulo de Assis Ribeiro como coordenador; Fernando de Bastos d’Avila (padre); Coronel Figueiredo; Armando Hildebrand; Yolanda Monteiro como secretaria; Antonio Houaiss na comissão de filologia; Celso Cunha na mesma comissão; Afrânio Coutinho, Otávio Melo Alvarenga e José Galante na comissão de literatura e artes; na comissão de atividades econômicas e sociais tivemos René Laclette, Paulo Sá e Manoel José Ferreira; na comissão de economia e administração tivemos os nomes de João Paulo de Almeida Magalhães; Wanderbilt Duarte de Barros e Ostand Cardim; na comissão de ciências naturais tivemos os nomes de Leonam Azevedo Pena; Othon Henry Leonardes e Carlos Chagas Filho; e por fim, na comissão de ciências histórica e sociais tivemos os seguintes nomes: Arthur Rios; Hélio Viana; Américo Lacombe; Giorgio Mortara; Francisco Clementino Santiago Dantas; Prudente de Morais Neto e Mário Filho. Há de somar a entrada posterior de Miguel Reale na comissão de religião da Enciclopédia. Os nomes dos personagens que compuseram as comissões da Enciclopédia foram todos e se não em sua grande maioria,

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pessoas ligadas às antigas instituições que legitimavam o campo dos conhecimentos antes do advento científico promovido pelas universidades na década de 1950. O Instituto Nacional do Livro foi um espaço de consagração, concentrando os maiores nomes da intelectualidade que apenas perderiam a visibilidade anos mais tarde com a consolidação do discurso científico advindo das Universidades. 3. UMA ENCICLOPÉDIA MODIFICADA – ALGUMAS OBSERVAÇÕES A Enciclopédia foi refeita no momento de se repensar a realidade social brasileira. Disso não se tem dúvida, uma vez que, a obra concentrou em seu conteúdo as mudanças e as indagações que marcaram a década de 1950. Em tempos de democracia como foram os “dourados anos” de Juscelino Kubitschek, as transformações atingiram, não só, as obras impressas, mas também a arte e a arquitetura. Nesse período, além da construção de Brasília, a novacap, com uma estrutura arrojada e que rompeu com os modelos até então existentes, as artes plásticas, a poesia e a prosa, a música romperam com os cânones do passado, ou seja, o modernismo de antes (Côrtes, 2008). Por essas razões, que a década de 1950 marcou uma ruptura com a concepção de nacionalismo existente desde a década de 1930 e passou a privilegiar, não apenas o conjunto de características que “definiam os brasileiros”, mas aquilo que inseria o Brasil na modernidade e principalmente no futuro, tudo isso, a nível mundial. Para muitos estudiosos da década de 1950, a palavra de ordem desse período foi a ideia de movimento dadas as transformações decorrentes dos processos de industrialização e de urbanização que marcaram estes anos. Foram anos de remissão com o passado e busca por um futuro de progresso e de desenvolvimento. Talvez tenha sido este o espírito que prevaleceu nos anos pós Segunda Guerra Mundial, mas no Brasil as novas perspectivas sociopolíticas consolidaram um debate antecedente sobre a identidade nacional e as suas raízes. Seja pela modernidade trazida pela ciência e pelas universidades, seja pela mudança de concepção da Enciclopédia brasileira. Nas palavras de André Botelho, Ao longo da década de 1950, contudo, outras vertentes interpretativas passaram a conceber o moderno como construção da sociedade, através de perspectivas mais universalistas, como uma sociedade de classes sob o domínio de uma ordem democrática, secularizada e competitiva, perspectivas corroboradas também na criação de instituições de caráter democrático, alicerçadas na ciência (Botelho, 2008). E foi sob o alicerce da ciência e da modernidade que a década se constituiu. A Enciclopédia brasileira e o próprio Instituto Nacional do Livro foram frutos dessa mudança e desses novos tempos. Nas décadas seguintes, a situação brasileira se reconfiguraria mais uma vez. O tempo democrático se esvaia para dar lugar ao longo período ditatorial. Dessa vez, com os militares no comando. Junto deles, uma nova etapa se instauraria no Instituto Nacional do Livro e

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a Enciclopédia brasileira entraria numa fase de estagnação, e estaria, mais uma vez, imersa nas disputas entre diretores, chefes de seção e tramas de publicação até a sua consequente extinção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. A Enciclopédia Brasileira. Edição crítica e estudo de Flávia Camargo Toni, Edusp, 1993. BENEVIDES, Maria Victoria. O governo Kubistchek: a esperança como fator de desenvolvimento. In: GOMES, Angela Maria de Castro. (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, p. 9-22, 1991. BOMENY, Helena. Utopias da cidade: as capitais do modernismo. In: GOMES, Angela Maria de Castro. (Org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, p.144-161, 1991. BOTELHO, André. Ciência pelo desenvolvimento: a escrita pública de José Leite Lopes. In: BOTELHO, André; VILLAS BÔAS, Glaucia. (Org.). O Moderno em questão. A década de 1950 no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, p.271-309, 2008. CÔRTES, Norma. Ser (é) Tempo. Álvaro Vieira Pinto e o espírito de 1956. In: BOTELHO, André; VILLAS BÔAS, Glaucia. (Org.). O Moderno em questão. A década de 1950 no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, p. 103-133, 2008. FARIA, Daniel Barbosa Andrade de. O mito modernista. 297f. Tese (Doutorado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2004. FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade do Brasil: das origens à construção. 2.ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. FERREIRA, Marieta de Moraes. A História como ofício: a constituição de um campo disciplinar. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 20-21, 2013. MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1986. SCHWARTZMAN, Simon. A ação cultural. In: Tempos de Capanema. Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria Ribeiro Costa (orgs.). São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, pp.97-122, 2000. _______. A universidade primeira do Brasil: entre intelligentsia, padrão internacional e inclusão social. Estudos Avançados, vol. 20, n.56, jan./abr. 2006, p.161-189, 2006. SILVA, Suely Braga da. O Instituto Nacional do Livro e a Institucionalização de organismos culturais no Estado Novo (1937-1945): Planos, ideais e realizações. 1992. 157f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-graduação convênio CNPq/IBICT – UFRJ/ECO, Rio de Janeiro, 1992.

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REFLEXÕES ACERCA DOS MARCOS LEGAIS PARA AS BIBLIOTECAS PÚBLICAS NO BRASIL Marília Cossich Ramos1 Elisa Campos Machado2 RESUMO: Apresenta uma reflexão acerca do cenário das políticas públicas de cultura, em vigor, voltadas para as bibliotecas públicas no Brasil. Parte das diretrizes internacionais para as bibliotecas públicas, ressalta a importância desse tipo de biblioteca para a democratização do acesso à leitura e à informação, e analisa a legislação e as ações do governo federal voltadas para o fomento e manutenção das mesmas. Conclui que as legislações existentes, na esfera federal, não garantem a existência e manutenção de bibliotecas públicas com acervos, espaços e serviços de qualidade para atender as necessidades de informação e leitura da população brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas, Políticas culturais, Bibliotecas públicas.

1. INTRODUÇÃO Identificada como o equipamento cultural mais presente nos municípios brasileiros nas últimas pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e integrantes do processo de democratização do acesso à leitura e à informação, a biblioteca pública é reconhecida como espaço estratégico de inclusão cultural dentro das políticas públicas de cultura de Estado no Brasil. A elaboração e implementação das políticas voltadas para bibliotecas pública, na esfera federal brasileira, é de responsabilidade do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), instituição que tem sua história iniciada dentro do Instituto Nacional do Livro (INL) e que atualmente é vinculado à Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) do Ministério da Cultura (MinC). Diferentemente de outros país da América Latina, o Brasil não possui uma lei específica para regular e garantir a existência e o bom funcionamento desse tipo de biblioteca nos 5.570 Bibliotecária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia (PPGB) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 2 Professora Doutora, do Departamento de Estudos e Processos Biblioteconômicos (DEPB) e do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia (PPGB) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Líder do Grupo de Pesquisa Bibliotecas Públicas no Brasil: reflexão e prática. 1

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municípios que compõe a federação. Segundo dados do SNBP atualmente o país conta com mais de 6.000 bibliotecas públicas, distribuídas nos 26 estados da federação. Apesar de reconhecer que as políticas públicas não são necessariamente criadas e implementadas pelo Estado, acredita-se que é determinante para o Brasil uma legislação específica para garantir a existência de bibliotecas públicas que ofereçam espaços, serviços e acervos de qualidade para a população, visto que os governos locais, em sua maioria, não reconhecem a leitura, a literatura e a informação como bem prioritário para a população. Uma lei desse porte se configura numa macropolítica, estruturante, constitutiva e regulatória, passível de agregar outras políticas públicas de nível intermediário e operacionais, de governo e de agentes não governamentais. Cabe registrar que no Brasil a incidência de instituições privadas e da sociedade civil no desenvolvimento de projetos voltados para o acesso à informação e à leitura tem se caracterizado como ações locais, pontuais e, em sua maioria sem continuidade, justamente por falta de marcos regulatórios nacionais. Entendo a biblioteca pública como um equipamento cultural estratégico para o desenvolvimento das habilidades de leitura, para o acesso, aquisição e apropriação da informação e, consequentemente, para o exercício da cidadania dentro dos princípios da formação humanista, esta pesquisa se propõe a analisar os marcos legais voltados para o apoio e fortalecimento desse tipo de biblioteca no país. O presente relato apresenta os resultados da primeira etapa da pesquisa de mestrado intitulada “Marcos regulatórios para as bibliotecas públicas no Brasil” 3. Esta pesquisa foi estruturada em 2 etapas, sendo a primeira relativa a construção do referencial teórico relativo ao tema, e a segunda etapa em uma análise das proposições de governo para as bibliotecas públicas no âmbito federal, vistas como políticas públicas operacionais. Trata-se de uma pesquisa aplicada, de abordagem qualitativa e documental, que teve início a partir de um levantamento bibliográfico em documentos primários e secundários obtidos como resultado das buscas nas seguintes bases de dados: Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI), no Portal de Periódicos Capes/MEC e a Web of Science, utilizando os seguintes termos para busca cruzada: políticas públicas, políticas culturais, bibliotecas públicas e formulação de políticas públicas, dentro do período de 13 anos, que compreende 2003 a 2015. No que se refere a legislação existente relativa a área tomou-se como base o resultado do mapeamento das políticas culturais nacionais voltadas para as bibliotecas públicas no Brasil, que vem sendo realizada por integrantes do Grupo de Pesquisa Bibliotecas Públicas no Brasil: Pesquisa em desenvolvimento no mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGB-UNIRIO), integrante do Grupo de Pesquisa “Bibliotecas Públicas no Brasil: reflexão e prática”, na linha de pesquisa “Biblioteconomia, cultura e sociedade”. 3

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reflexão e prática do qual as autoras fazem parte, e as informações disponibilizadas pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) do Ministério da Cultura (MinC). Para a realização da segunda etapa da pesquisa, que refere-se ao levantamento e análise da legislação que se encontra em fase de elaboração, identificado como proposições de governo, foi realizado levantamento no Portal das Atividades Legislativas Projetos e Atividades do Senado Federal4 e no Portal da Câmara dos Deputados Federal5 que resultou na recuperação de 35 registros sob temas ligados às bibliotecas públicas. 2. POR QUE BIBLIOTECAS PÚBLICAS NO BRASIL? Num país como o Brasil, com altos índices de exclusão e de analfabetismo funcional a biblioteca pública é o espaço da sociabilidade, o espaço da educação informal, da autoinstrução, que não pode ser reduzido a um espaço unicamente de leitura e de apoio a pesquisa escolar, como tantos autores vem alertando (MILANESE, 2013; MEDEIROS, 2013, entre outros). A biblioteca pública, é aquela que é aberta a toda comunidade local, crianças, jovens e adultos, e oferece espaço, acervo e serviços que objetivam a democratização do acesso à leitura e à informação. Sendo assim, é considerada equipamento cultural e está no âmbito das políticas públicas do Ministério da Cultura (MinC). Em sua maioria, é criada e mantida pelo Estado (Município, Estado ou Federação), mas pode ser criada e mantida também pela sociedade civil, desde que ofereça serviços gratuitos e não restrinja o acesso a grupos específicos. Oferece acesso ao conhecimento, à informação por meio diferentes recursos e serviços e “se coloca à disposição, de modo igualitário, a todos os membros da comunidade, independentemente de raça, nacionalidade, idade, gênero, religião, língua, deficiência física, condição econômica e social e nível de escolaridade” (FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIACÕES DE BIBLIOTECÁRIOS E BIBLIOTECAS, 2012). No campo da Biblioteconomia as bibliotecas diferenciam-se de acordo com o acervo e público que atende, por exemplo: a biblioteca pública atende a todos os tipos de público e portanto deve possuir espaços diferenciados, um acervo diversificado e serviços para atender aos diferentes interesses de informação e leitura; a biblioteca escolar trabalha em consonância com o projeto pedagógico da escola ao qual está inserida; a biblioteca universitária tem por objetivo apoiar as atividades de ensino, pesquisa e extensão a comunidade acadêmica; a biblioteca especializada é voltada para um campo específico do conhecimento. Trata-se de uma tipologia aceita internacionalmente. Cabe resgatar os pressuposto considerados pela União Europeia em seu Relatório de 1998:



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Endereço eletrônico: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/default.asp Endereço eletrônico: http://www2.camara.leg.br

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• a importância do domínio da informação como fator de integração econômica, social e cultural, sendo conveniente o livre acesso a informação por parte dos cidadãos; • a importância da cultura na aquisição de novos conhecimentos e de enriquecimento linguístico, principalmente através da literatura; • a importância dos fatores democrático, social e cultural na evolução da sociedade, e não apenas os fatores econômicos e tecnológicos; • a importância de se garantir o acesso à crescente quantidade de informação disponível em rede ou em outra forma digital; • o papel insubstituível das bibliotecas na organização do acesso ao conhecimento e na mediação entre os meios informacionais tradicionais e os novos; • a contribuição única das bibliotecas como instituição de apoio à aprendizagem ao longo da vida. Já o Manifesto da IFLA/UNESCO sobre bibliotecas públicas publicado em 19946, enumera as missões-chave da biblioteca pública, relacionadas com a informação, a alfabetização, a educação e a cultura, que são as seguintes: • Criar e fortalecer os hábitos de leitura nas crianças, desde a primeira infância; • Apoiar a educação individual e a auto formação, assim como a educação formal a todos os níveis; • Assegurar a cada pessoa os meios para evoluir de forma criativa; • Estimular a imaginação e criatividade das crianças e dos jovens; • Promover o conhecimento sobre a herança cultural, o apreço pelas artes e pelas realizações e inovações científicas; • Possibilitar o acesso a todas as formas de expressão cultural das artes do espetáculo; • Fomentar o diálogo intercultural e a diversidade cultural; • Apoiar a tradição oral; • Assegurar o acesso dos cidadãos a todos os tipos de informação da comunidade local; • Proporcionar serviços de informação adequados às empresas locais, associações e grupos de interesse; • Facilitar o desenvolvimento da capacidade de utilizar a informação e a informática; • Apoiar, participar e, se necessário, criar programas e atividades de alfabetização para os diferentes grupos etários.

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Endereço eletrônico: http://archive.ifla.org/VII/s8/unesco/port.htm

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O Manifesto de Caracas7, resultado de um encontro sobre biblioteca pública realizado em 1985, reafirma os compromissos com o Manifesto da IFLA/UNESCO e aprova diretrizes para nortear a ação das bibliotecas públicas na região. Nessa declaração as bibliotecas passam a ser compreendidas como um instrumento de transformação social em toda a América Latina e no Caribe. Assegurar a toda a população o livre acesso à informação em suas diferentes formas de apresentação. Esta informação deve ser ampla, atualizada e representante da soma de pensamentos e ideias do homem e da expressão de sua imaginação criativa de tal maneira para que tanto o indivíduo como a comunidade, possam ser colocados em seu contexto histórico, socioeconômico, político e cultural. Incentivar a participação ativa e efetiva da população na vida nacional, aumentando, assim, o papel da biblioteca como um instrumento para facilitar a mudança social e participação na vida democrática; servir como um centro de informação e comunicação para a comunidade; promover o resgate, compressão, distribuição e defesa da cultura nacional e local; apoiar o desenvolvimento de uma indústria editorial nacional e regional economicamente forte e culturalmente independentes. (DECLARACIÓN…, 1999, p.57, tradução nossa). O Brasil segue as diretrizes internacionais e desenvolve, por meio do SNBP, programas e projetos de apoio e estímulo a ampliação, valorização e manutenção de bibliotecas públicas. Vem trabalhando nessa direção desde 1937, quando foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL), no entanto, não implementou até o momento uma legislação que garanta que os municípios e estados brasileiros mantenham bibliotecas públicas com serviços, acervos e espaços de qualidade para atender a população local. 3. POLÍTICAS CULTURAIS PARA BIBLIOTECAS Milanesi (2013, p. 66) afirma que “as políticas culturais no Brasil, na prática nunca deram prioridade às bibliotecas públicas e ao acesso à informação. O resultado desse descaso de décadas é o atual panorama de bibliotecas vistas como repartições municipais de pouco e decrescente uso”. Ainda segundo o autor, o que se tem observado ao longo das últimas décadas é que os maiores investimentos em bibliotecas no país são realizados nas bibliotecas especializadas e universitárias, sem haver correspondente nas bibliotecas públicas. Mas para entendermos como se dá a construção de políticas culturais voltadas para um determinado campo é importante resgatar o conceito de política pública. De acordo com Secchi (2014, p.2) a política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público [...] a razão para o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente relevante”.

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Endereço eletrônico: http://snbp.culturadigital.br/manifestos/manifesto-de-caracas-sobre-bibliotecas-publicas/

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Nesse sentido cabe iniciar esta reflexão com a questão: a carência de bibliotecas públicas no Brasil é considerada um problema público? É importante registrar a defesa de Secchi (2010) por considerar políticas públicas o conjunto de diretrizes identificadas: - de nível estratégico, - de nível intermediário que envolve as políticas municipais, regionais ou estaduais e, - de nível operacional. “Essa noção implica que, a cada nível da política pública, há um entendimento diferente dos problemas e das soluções, há uma configuração institucional diferente, existem atores e interesses diferentes” (Giuliani, 2005, apud SECCHI, 2010, p. 7). Na visão de Ferreira (2003, p. 17) o Estado exerce papel primordial na elaboração de políticas públicas, sendo assim, estas podem ser compreendidas como: tomada de posição do Estado diante das demandas da sociedade, que se traduz, entre outras coisas, em legislações, programas e projetos de ação voltados à segurança, à educação, à geração de emprego e renda, à saúde, à regulação da economia, ao uso dos recursos naturais, à seguridade social e a tantos outros aspectos da vida econômica e social que puderem ser enumerados. A respeito dessa questão é importante reconhecer que os projetos “Acessibilidade em Bibliotecas Públicas”8, o “Mais Bibliotecas Públicas”9, e o Bibliotecas em Rede, implementados pelo SNBP nos últimos anos, são exemplos de tomada de posição do Estado em relação a uma demanda da sociedade. O primeiro refere-se à necessidade das bibliotecas públicas brasileiras se transformarem em espaços inclusivos respeitando e propiciando o acesso a todas a pessoas com deficiência. O segundo projeto trata-se de fomentar a ampliação do número de bibliotecas públicas e estabelecer um processo de monitoramento dos investimentos realizados pelo governo na implantação de novas bibliotecas públicas nos municípios brasileiros nos últimos anos. O terceiro, Bibliotecas em Rede, atuou na articulação de redes entre pessoas que atuam nas bibliotecas e a comunidade local. No entanto, o Estado ainda não criou uma legislação que garanta a existência e a manutenção de bibliotecas públicas em todo o país, o que resulta num cenário de baixos investimentos e de fragilidade na atuação do SNBP e dos Sistemas Estaduais e Municipais de Bibliotecas Públicas, instituições que deveriam ter força para atuar na democratização do acesso à informação e à leitura por meio da biblioteca pública. Estudos da área apresentam duas abordagens relativas as políticas públicas: a estatista e a multicêntrica. A abordagem estatista considera as políticas públicas de monopólio de atores estatais, já a multicêntrica considera além dos atores estatais no estabelecimento de uma política pública, as organizações privadas, organizações não governamentais (SECCHI, 2014). Uma lei

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Endereço eletrônico: http://acessibilidadeembibliotecas.culturadigital.br Endereço eletrônico: http://snbp.culturadigital.br/projetos/maisbibliotecaspublicas/

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federal para regular as bibliotecas públicas no Brasil se constitui numa política de governo, no entanto, essa lei deve prever a participação da sociedade, ou seja, pode ser construída em conjunto com diferentes agentes, sem favorecer grupos de interesses específicos. As políticas públicas geralmente agregam características de dois ou mais tipos de política e estão dentre as seguintes categorias: regulatórias, distributivas, redistributivas e constitutivas, segundo a visão de Lowi (apud SECCHI, 2014). A lei das bibliotecas públicas proposta pode ser caracterizada como uma política regulatória e constitutiva. O processo de elaboração de políticas públicas, também conhecido como o ciclo de políticas públicas, é composto por sete fases sequenciais e interdependentes: a identificação do problema, a formação na agenda, a formulação de alternativas, a tomada de decisão, a implementação, a avaliação e a extinção. Na fase de identificação do problema percebe-se a diferença entre a situação real e a ideal ante algum problema; a formulação de alternativas visa a escolha de potenciais soluções levando-se em conta custos e benefícios; a implementação é a fase em que são colocadas em prática regras e ações, e por fim, a avaliação tem por objetivo verificar se a política está sendo bem-sucedida ou não (SECCHI, 2014). A elaboração e execução de propostas para as bibliotecas públicas envolve diferentes atores, governamentais e não governamentais, políticos, tais como senadores e deputados, designados politicamente, tais como os integrantes do SNBP, grupos de interesse, como representantes de classe, editores e livreiros, professores, bibliotecários, formadores de opinião, movimentos sociais, entre outros. Vale ressaltar que no que ser refere ao segmento da cultura, a tendência atual tem mostrado que ao setor público não cabe produzir ou dirigir a cultura, mas fomentar a sua produção, a sua distribuição e o seu consumo, democratizando e proporcionando acesso à produção cultural (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2003). Como requisitos principais para uma política cultural Rubim ressalta que falar em políticas culturais implica, dentre outros requisitos, pelo menos: intervenções conjuntas e sistemáticas; atores coletivos e metas” (RUBIM, 2007, p. 13). De acordo com Rubim (2011) um dos grandes desafios das políticas culturais na contemporaneidade é contemplar as dimensões nacionais, locais, regionais e globais de um país, respeitando suas peculiaridades e singularidades. Neste novo panorama atual, as políticas culturais deixam de serem produzidas apenas pelo Estado e passam a também a serem formuladas por agentes da sociedade civil. Calabre (2007) lembra que cada vez mais a população vem buscando formas de participar e interferir nas decisões no campo das políticas públicas culturais, sendo assim:

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Um dos possíveis caminhos a serem seguidos nesse processo de construção de políticas de longo prazo é o do envolvimento dos agentes atingidos por tais políticas. O país vive hoje um movimento contínuo de construção de projetos coletivos de gestão pública nas mais variadas áreas. São cada vez mais atuantes os conselhos que contam com a participação efetiva da sociedade civil (CALABRE, 2007). O Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC) é um dos espaços abertos pelo governo a participação da sociedade na construção de políticas públicas e o Comitê Setorial do Livro e Leitura aborda atua especificamente no campo das bibliotecas públicas. De acordo com Figueiredo e Figueiredo (1986) as pesquisas de avaliação das políticas públicas podem ser de dois tipos: a avaliação de processos e a avaliação de impactos. A avaliação de processos busca verificar a eficácia dos programas, ou seja, se eles estão de acordo com as diretrizes estabelecidas e se atingiram as metas estipuladas. As análises dos impactos, por sua vez, orientam-se para os efeitos do programa sobre a população-alvo e estabelecem uma relação de causalidade entre a política e as alterações decorrentes dela. Nesse sentido, de maneira sistemática as metas do PNC são revisadas pelo CNPC, por meio de consulta pública e posterior a partir da análise dos resultados obtidos durante o ano de gestão. Como já mencionado anteriormente a extinção de políticas públicas também faz parte do ciclo de políticas públicas e, segundo Giuliani (2005, apud SECCHI, 2010, p. 53) existem 3 fatores que levam a extinção de uma política. São eles, a percepção de: - resolução do projeto original; - ineficácia das leis ou ações; - a perda de importância do problema e a sua retirada da agenda política. No Brasil, a programa de governo mais emblemático que foi extinto na área das bibliotecas públicas foi o Programa Livro Aberto que distribuía acervo, equipamentos e mobiliário para implantar uma nova biblioteca em pequenos municípios ou modernizar bibliotecas já existentes. 4. LEGISLAÇÃO, PLANOS E PROGRAMAS DO GOVERNO FEDERAL PARA BIBLIOTECAS PÚBLICAS O SNBP disponibiliza em seu site10 a legislação que incide direta e indiretamente nas bibliotecas públicas, no entanto, cabe registrar que nessa pesquisa estão sendo destacadas somente aquelas que tem relação direta com este tipo de equipamento cultural. Nesse contexto, o primeiro decreto que cabe destaque é o de criação do próprio SNBP no ano de 1992, subordinado a Fundação Biblioteca Nacional (BRASIL, 1992). Como já mencionado anteriormente, a formulação das políticas públicas nesse campo é gerenciada por este organismo. Ao SNBP cabe oferecer assessoria técnica as bibliotecas e profissionais que atuam no campo, fomentar a pesquisa e a formação de bibliotecários para atuar na área, a gestão da informação sobre as

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Endereço eletrônico: http://snbp.culturadigital.br/legislacao/

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bibliotecas públicas no país e o fomento a ampliação do número de bibliotecas e manutenção das já existentes. Dentre os recursos que o SNBP tem para planejar e implementar as políticas públicas voltadas para bibliotecas públicas no Brasil, encontra-se a Lei n.10.753, de 30 de outubro de 2003, chamada de Lei do Livro, institui a Política Nacional do Livro (PNL), que prevê em seu capítulo V que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão consignar, em seus respectivos orçamentos, verbas para as bibliotecas com a finalidade de possibilitar sua manutenção e aquisição de livros. E mais, estabelece a inserção de rubrica orçamentária pelo Poder Executivo para financiamento da modernização e expansão do sistema bibliotecário e de programas de incentivo à leitura por meio dos recursos advindos do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Em complementação a esta lei foi apresentado o Projeto de Lei n.1321/2011, pelo então Senador José Sarney, que propõe a criação do Fundo Nacional Pró-leitura (FNPL). Este Projeto de Lei é destinado a captação de recursos para atendimento aos objetivos da Lei 10.753, que pretende instituir a Política Nacional do Livro, e revoga o art.17 da referida lei. O Plano Nacional de Cultura (PNC), instituído pela Lei nº. 12.343, de 2 de dezembro de 2010, é outro instrumento que o SNBP segue. O PNC é composto por um conjunto de objetivos, diretrizes e estratégias que orientam a formulação das políticas culturais brasileiras em todas as esferas do MinC. Com base no PNC, foram estabelecidas 53 metas, das quais 6 delas estão voltadas diretamente para a área de bibliotecas públicas, a saber: Meta 20 – Média anual de 4 livros lidos fora do aprendizado formal por cada brasileiro. Meta 29 – 100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência. Meta 32 – 100% dos municípios brasileiros com ao menos uma biblioteca pública em funcionamento. Meta 34 – 50% de bibliotecas públicas e museus modernizados. Meta 35 – Gestores capacitados em 100% das instituições e equipamentos culturais apoiados pelo Ministério da Cultura. Meta 41 – 100% de bibliotecas públicas e 70% de museus e arquivos disponibilizando informações sobre seu acervo no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). Em 2010, no final da primeira gestão do Ministro Juca Ferreira, a preocupação com a manutenção das bibliotecas públicas no país levou a elaborada a Portaria MinC no. 117, que estabelecia como condição para liberação de recursos financeiros do MinC aos entes federados a existência de biblioteca pública em condições minimamente adequadas de atendimento à po-

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pulação. Apesar de ser considerada um avanço e um marco regulador para a área, a mesma foi revogada em 17 de abril de 2014, pela Ministra Marta Suplicy, por meio da Portaria no. 33/2014/ MinC (MACHADO, CALIL JUNIOR, ACHILLES, 2014). O Decreto n. 7559 de 1º de setembro de 2011 instituiu o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) que possui dentre seus objetivos: - a democratização do acesso ao livro; - a formação de mediadores para o incentivo à leitura; - a valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; - o desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual e ao desenvolvimento da economia nacional. É importante frisar que nos últimos anos vários representantes do poder legislativo têm apresentado Projetos de Lei (PL) que envolvem as bibliotecas públicas, entretanto, poucas foram as contribuições que estes PL’s de fato trouxeram para a área. Sendo assim, Machado, Calil Junior e Achilles (2014, p. 2291) afimam que: O fato do país não ter uma legislação reguladora na área de bibliotecas públicas fragiliza as estratégias de fortalecimento, valorização e qualificação desse tipo de equipamento cultural, tanto em relação às bibliotecas públicas mantidas pelo Estado, como em relação às bibliotecas públicas e comunitárias mantidas por entidades privadas. Portanto, avaliar a possibilidade de o país elaborar uma lei específica para a área passa a ser uma demanda emergencial. No que tange as proposições de governo, cabe destacar duas que atualmente tramitam no Senado e na Câmara dos Deputados, tratam-se dos projetos de lei no. 28 de 2015, que propõe a instituição da Política Nacional de Bibliotecas de autoria do Senador Cristovam Buarque e o Projeto de lei no. 3727 de 2012, que dispõe sobre a universalização das bibliotecas públicas no país, de autoria do Deputado José Stédile. Recuperando o ciclo de políticas públicas, entende-se que uma nova proposição deve ser feita a partir de análise de resultado das avalições das políticas públicas vigentes. No entanto, não foi possível identificar nenhum documento que registrasse avaliação dos processos, ou dos impactos da Lei do Livro e do PNLL. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do cenário das políticas culturais de governo voltadas para as bibliotecas públicas apresentado é possível inferir que este tipo de equipamento cultural, apesar de estar na agenda de governo, não ocupa papel de destaque, ou seja, não é prioridade dentro das políticas de cultura no país. Cabe lembrar que o estabelecimento da agenda envolve interpretações político-normativas dos próprios agentes políticos envolvidos no tema, portanto, entender a biblioteca como uma

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instituição social, um espaço de informação, memória, troca e produção cultural, nos seus mais diversos suportes e formatos é crucial para que a sua falta se transforme em um problema público. É possível constatar que as diretrizes e normas existentes na atualidade não atendem as necessidades específicas do país, de maneira a garantir a existência e manutenção de bibliotecas públicas acolhedoras, com acervos de qualidade, profissionais comprometidos, espaços e serviços voltados para o atendimento das necessidades de informação e leitura da comunidade local. Além disso, o fato do Brasil não ter uma lei específica para regulamentar uma macropolítica estruturante para esse campo é entendido como mais um problema para o estabelecimento e a implantação de políticas culturais operacionais efetivas para garantir a existência e a prestação de bons serviços para a população. Dentro desse contexto, a segunda etapa desta pesquisa irá analisar as proposições de governo, que se configuram em projetos de lei, com o objetivo de verificar se as mesmas trazem contribuições para resolver o problema da fragilidade deste tipo de equipamento nos municípios brasileiros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010. BRASIL. Decreto nº 520 de 13 de maio de 1992. Institui o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 14 maio 1992. Disponível em: . Acesso em: 05 fev. 2016. BRASIL. Decreto nº 7.559 de 01 de setembro de 2011. Dispõe sobre o Plano Nacional de Livro e Leitura - PNLL e dá outras providencias. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF: 05 set. 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7559.htm>. Acesso em: 10 jan. 2016. BRASIL. Lei nº 10.752 de 30 de outubro de 2003. Revoga a Medida Provisória nº 124 de 11 de julho de 2003, que dispõe sobre o Quadro de Pessoal da Agência Nacional de Águas e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 31 out. 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2016. BRASIL. Lei n.12.243 de 02 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura - PNC, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 03 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 10 fev. 2016. BRASIL. Ministério da Cultura. Portaria nº 117 de 01 de dezembro de 2010. Estabelece como condição para a liberação de recursos financeiros do Ministério da Cultura aos entes federados a existência de biblioteca pública em condições minimamente adequadas de atendimento à população. Diário Oficial [da]

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República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 03 dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2016. BRASIL. Projeto de lei n.1321/2011, que cria o Fundo Nacional Pró-Leitura (FNPL), destinado à captação de recursos para atendimento aos objetivos da Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, que institui a Política Nacional do Livro, e revoga o art. 17 da referida Lei. Disponível em: . Acesso em: 29 dez. 2015. BRASIL. Projeto de lei n. 28 de 2015. Institui a Política Nacional de Bibliotecas. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2015. CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 3., 2007, Salvador. Anais eletrônicos...Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2015. DECLARACIÓN de Caracas sobre la biblioteca pública como factor de desarrollo e instrumento de cambio social en América Latina y el Caribe - 1985. Revista El libro en América Latina y el Caribe, n. 87, p. 55-60, 1999. FEDERAÇÃO INTERNACIONAL DE ASSOCIACIÕES DE BIBLIOTECÁRIOS E BIBLIOTECAS. Diretrizes da IFLA sobre Bibliotecas Públicas. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 2012. FIGUEIREDO, Marcus Faria. FIGUEIREDO, Argelina Maria Cheibub. Avaliação política e avaliação de políticas: um quadro de referência teórica. Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v.1, n.3, p.107127, set./dez. 1986. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Cultura. In: _____. Políticas sociais: acompanhamento e análise. n.6, fev. 2003, p.65-77. MACHADO, Elisa Campos; CALIL JUNIOR, Alberto; ACHILLES, Daniele. Mapeamento das políticas culturais nacionais voltadas para as bibliotecas públicas no Brasil. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 15., 2014, Belo Horizonte.  Anais eletrônicos… Belo Horizonte: ECI, UFMG, 2014. p. 2283-2301. Disponível em: < http://enancib2014.eci.ufmg.br/ documentos/anais/anais-gt5>. Acesso em: 23 jan 2016. MEDEIROS, Ana Lígia Silva. Políticas públicas para as bibliotecas públicas brasileiras. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, IV, 2013, Rio de Janeiro. Anais do IV Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: FCRB, 2013. MILANESI, Luís. Biblioteca pública: do século XIX para o XXI. REVISTA USP, São Paulo, n. 97, 2013. p. 59-70. Disponível em: . Acesso em: 09 fev. 2016. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Cultura e políticas culturais. Rio de Janeiro: Ed. Azougue, 2011. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes contradições, enormes desafios. In: RUBIM, Albino; BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. p.11-36. SECCHI, Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos. 2.ed. São Paulo: Cengage Learning, 2014.

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UNIÃO EUROPEIA. Comissão para a Cultura, a Juventude, a Educação e os Meios de Comunicação Social. Relatório A4-0248/98 sobre o papel das bibliotecas na sociedade moderna. 1998. Disponível em: . Acesso em 14 jan. 2016.

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O PAPEL DO PODER PÚBLICO NO CARNAVAL DOS BLOCOS DE RUA: A FORMULAÇÃO DA FESTA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO HOJE Marina Bay Frydberg1 Alex Kossak2 Gustavo Portella Machado3 RESUMO: Este artigo busca compreender a atual configuração do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro a partir do papel do poder público na organização e gestão da festa. Relacionaremos o aumento quantitativo de blocos de rua, a expansão territorial e o crescimento vertiginoso de público frequentador com as ações e politicas públicas da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro para com a regulamentação, a mercantilização, a descentralização e a tradicionalização da festa. PALAVRAS-CHAVES: carnaval do blocos de rua, poder público, política pública, mercantilização, tradicionalização.

“Andar pelo centro do Rio de Janeiro em dias de carnaval é uma outra experiência. As pessoas estão, na sua maioria, fantasiadas. Fantasias tradicionais – colombinas, palhaços, ciganos –, fantasias modernas – personagens de desenho, artistas pop –, fantasias de cunho político – vice decorativo, batedores de panela com camisa da seleção de futebol – e outros tantos envoltos em muitas flores e, ainda mais, purpurina. Na cidade colorida se sobressai a cor azul, não do céu ou do mar, mas da marca de cerveja que patrocina o carnaval. Preços tabelados, seja para uma ou para três, vendedores com crachás numerados pela prefeitura, enquanto blocos oferecem no microfone recompensa por outra marca de cerveja (mesmo que fabricada pela mesma empresa, só que de outra cor). Banheiros químicos, estrutura com banheiros, bares cobrando dez reais para Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento do Arte da Universidade Federal Fluminense no curso de graduação em Produção Cultural e no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades. Coordena a pesquisa “Eu quero é botar meu bloco na rua”: Cultura e economia no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro, que conta com o financiamento da Faperj e CNPq – UFF. [email protected] 2 Graduando em Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense, bolsista CNPq-UFF no projeto “Eu quero é botar meu bloco na rua”: Cultura e economia no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro. alexkossak@ hotmail.com 3 Graduando em Produção Cultural na Universidade Federal Fluminense, bolsista Faperj no projeto “Eu quero é botar meu bloco na rua”: Cultura e economia no carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro. [email protected] 1

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usar o banheiro, multa de 510 reais para quem urinar na rua, mas a cidade permanece com o cheiro de urina de outros carnavais. Bloco com hora pra concentrar, pra sair, pra acabar, com percurso definido, tudo previamente aprovado e publicizado. Mas proliferam-se blocos piratas, blocos secretos, blocos não oficias. Tudo isso sob o olhar de meia dúzia de policias e da guarda municipal, sempre atento aos ambulantes ilegais (talvez a grande preocupação deles no carnaval).”4 Esta é a configuração atual do carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro hoje, uma série de exigências burocráticas e de aprovações necessárias para se colocar o bloco na rua; empresas que patrocinam, através da prefeitura, a estrutura do carnaval de rua; e várias críticas de organizadores de blocos e ligas ao que se chama da burocratização do carnaval por parte do poder público. O carnaval de 2015 contou com cinco milhões de foliões nas ruas da cidade, segundo a Riotur, e um milhão de turistas durante o período carnavalesco. Naquele ano foram aprovados o desfile, as vezes mais de um, de 465 blocos na cidade. Mas nossa pesquisa já identificou 574 blocos que desfilaram na cidade entre 2014 e 2015. Número expressivo e que representa uma multiplicidade de formatos e enfoques. Alguns desses blocos se organizam em ligas e associações que tem como objetivo unir forças para pleitear patrocínio junto as empresas privadas e uma melhoria na organização da festa junto ao poder público. Embora os blocos e as ligas e associações possam se relacionar com o poder público em diferentes níveis, é, sem dúvida, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro a principal instância organizadora da festa ao pensarmos no carnaval dos blocos de rua na cidade. A prefeitura é a responsável pela garantia da infraestrutura da festa e da manutenção de serviços básicos como trânsito e limpeza urbana. Vários são os órgãos da prefeitura que ajudam na organização, como a Secretaria de Ordem Pública, por exemplo, mas atualmente a gestão do carnaval, seja dos blocos ou das escolas de samba, está centralizada no órgão de turismo da prefeitura a Riotur – Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro. Todavia a prefeitura só subvenciona o carnaval das escolas de samba. Este artigo tem como objetivo problematizar o papel da prefeitura na organização do carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro, como instituição estruturante da festa e construtora dos seus significados. Considerando que esta é uma pesquisa ainda em andamento (os dados do carnaval de 2016 não serão aqui analisados), a pesquisa teve como metodologia a coleta de dados que saíram na mídia; recolhimento da legislação envolvendo o carnaval dos blocos de rua; entrevistas com membros do poder público e organizadores de blocos e ligas, além de uma etnografia nos dias da festa. Com um discurso de valorização da tradição da festa carnavalesca dos blocos, ao mesmo tempo que defende uma otimização da gestão pública do carnaval, a prefeitura se responsabiliza, na maioria das vezes indiretamente, com o carnaval de rua na cidade através de quatro eixos centrais: a regulamentação da festa; a mercantilização da festa; a Trecho de diário de campo de Marina Bay Frydberg referente ao carnaval de 2016.

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descentralização da festa; e a tradicionalização da festa. Estes quatro eixos da ação da prefeitura serão aqui explicitados e pensados a partir do exercício de formulação da festa – seja econômico, político, legal e conceitual – para que o carnaval dos blocos de rua permaneça com potencial turístico e econômico, além de elemento formador da identidade carioca. 1. A PREFEITURA E A REGULAMENTAÇÃO DA FESTA Foi a partir do boom, assim denominado por Herschmann (2013), do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro no início dos anos 2000, que houve a crescente demanda por uma maior organização logística na cidade para que o carnaval dos blocos de rua pudesse acontecer. Com a reunião de inúmeros blocos em ligas e associações - processo também iniciado nessa época, dado que a Sebastiana, primeira liga criada, foi fundada no ano 2000 - os mesmos adquiriram mais força política para pressionar e requerer suas necessidades frente ao poder público. É através dessa organização e suas demandas que o poder público inicia suas intervenções na gestão do festejo. Até o ano de 2009 as ações do poder público em relação a questões ligadas ao carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro eram inexpressivas em termos de regulamentação. O que encontramos são decretos sobre a patrimonialização de alguns blocos, o que veremos mais a frente neste artigo. Com a posse e começo da gestão do prefeito Eduardo Paes, inicia-se uma política pública com relação ao carnaval dos blocos, traduzida em uma série de decretos sobre a regulamentação do carnaval de rua na cidade. O decreto Nº. 30.453, de 9 de fevereiro de 2009, posteriormente complementado e revogado pelo decreto Nº. 30.659, de 7 de Maio de 2009, “dispõe sobre as normas e procedimentos para os desfiles de blocos carnavalescos no Município do Rio de Janeiro”5. Dentre elas está a necessidade de uma autorização concedida pela Riotur através do preenchimento do “requerimento para autorização de desfiles de blocos e bandas carnavalescas”. Um aspecto interessante sob esse decreto é a expansão temporal da festa formalizado no primeiro artigo, “Art. 1o Considera-se período pré-carnavalesco os trinta dias anteriores ao sábado de Carnaval, e período carnavalesco o compreendido entre o sábado de carnaval e o domingo seguinte ao sábado das campeãs”6. O decreto também determina um prazo máximo de duas horas para a concentração do bloco, banda ou escola de samba, e um máximo de quatro horas de desfile. Ainda em relação aos desfiles dos blocos, há o Decreto Nº 36.760, de 5 de fevereiro de 2013, que proíbe a demarcação de áreas privadas. Assim em seu artigo primeiro “fica proibida, na Cidade do Rio de Janeiro, a delimitação de espaços, por meio de cordas e/ou seguranças (“áreas privadas”), pagos ou não, nos desfiles de blocos ou bandas de rua e nos ensaios carna Retirado de RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto 30.659, de 07 de maio de 2009. Retirado de RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto 30.659, de 07 de maio de 2009.

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valescos de rua, no período de que trata o art. 1º do Decreto Nº 30.453/2009”7. Caso não haja o cumprimento do disposto no decreto o bloco tem sua autorização automaticamente cassada e o indeferimento do pedido de autorização do ano subsequente. E ainda no decreto fica disposto que a Riotur, tendo a Guarda Municipal como apoio, terá a função de coibir os desfiles de blocos que não cumpram essa normativa. Para que os blocos de rua possam desfilar é necessário que solicitem, no período determinado pela prefeitura, autorização para sair as ruas. A regulamentação desta autorização está normatizada no Decreto nº 37.182, de 20 de Maio de 2013, que criou a “Comissão Especial de Avaliação dos Blocos de Rua”8. É válido ressaltar que nesta comissão não há presença de nenhum representante da Secretaria Municipal de Cultura e de um número muito inferior de agentes diretamente envolvidos com a festa como organizadores de blocos e presidentes de ligas e associações. A comissão criada segue os seguintes critérios de avaliação às solicitações de desfiles: I - a tradição do Bloco de Rua; II - as características do Bloco em relação ao Carnaval de Rua do Rio de Janeiro; III - as características do Bairro/Região onde pretende desfilar o Bloco; IV - a relação que o Bloco de Rua mantém com a localidade/comunidade; V - o local de realização do desfile pretendido; VI - a estimativa de público; VII - os possíveis impactos que possam interferir no dia-a-dia da localidade. (RIO DE JANEIRO, Decreto No 37.182, de 20 de Maio de 2013) Constata-se através do texto do decreto um maior entendimento das necessidades logísticas do carnaval por parte do poder público. Além de reconhecer também a “importância do Carnaval de Rua para a vida social e cultural da Cidade, típicos do jeito de ser e do modus vivendi da população carioca”9, ficando com o cargo da coordenação da “Comissão Especial de Avaliação” a Secretaria Municipal de Turismo. Através desses decretos da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, juntamente com inúmeros outros aspectos ligados aos blocos de rua da cidade, como a sua expansão quantitativa e aumento expressivo de público frequentador, é possível constatar a ocorrência de um processo Retirado RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto 36.760, de 05 de fevereiro de 2013. A comissão é composta por representantes das: I - Secretaria Municipal de Turismo - SETUR/RIOTUR; II Coordenadorias das Áreas de Planejamento (Subprefeituras); III - Secretaria Municipal de Transportes - SMTR; IV - Companhia de Engenharia de Tráfego – CET RIO; V – Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos - SECON-SERVA; VI – Companhia Municipal de Limpeza Urbana - COMLURB; VII - Secretaria Municipal da Ordem Pública - SEOP; VIII - Guarda Municipal – GM-Rio; IX - Secretaria Municipal de Saúde - SMS; X - duas Entidades representativas dos Blocos e Bandas Carnavalescos, tendo em vista sua tradição e representatividade. 9 Retirado de RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto 37.182, de 20 de maio de 2009. 7 8

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de reconfiguração ao longo da última década. Um processo que está em constante movimento e aperfeiçoamento, que tem como base a regulamentação da festa, mas também opera sob a lógica da mercantilização dessa prática cultural popular. 2. A PREFEITURA E A MERCANTILIZAÇÃO DA FESTA A atual configuração do carnaval de rua já mostra um novo entendimento do potencial de aproveitamento da festa para diferentes âmbitos. A capacidade de retorno de marca não fica para trás, tanto para a prefeitura quanto para as empresas privadas aliadas nesse processo de mercantilização do carnaval. Se para a prefeitura a consequência da regulamentação e do investimento se dá em aspectos políticos e econômicos, como os 2,2 bilhões movimentados na economia da cidade em 201510, para as empresas não é diferente. O retorno não se restringe no sentido de associação de marcas privadas como investidoras do carnaval, mas também no sentido de utilização do espaço público para interesses privados, de mudança das cores sobressalentes na cidade - como a “onda azul” - e de venda e distribuição de produtos e brindes Após o início da regulamentação do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro em 2009, foi também implementado um modelo de parceria público-privada, no qual a Riotur atribui à uma empresa privada, através de um “Caderno de Encargos e Patrocínios”, a gestão do carnaval de rua. Desde o início desse modelo, a Dream Factory - empresa que organiza o Rock in Rio, a maratona do Rio, a corrida da ponte, entre outros eventos - ganha anualmente o direito da gestão do carnaval de rua. Também cabe a ela o papel de encontrar patrocinadores interessados em associar sua marca com a festa. Compete, então, aos patrocinadores financiar as exigências da prefeitura para suprir as necessidades de infraestrutura levantadas pela regularização do carnaval dos blocos de rua. No entanto, nos últimos anos, têm-se visto mais do que uma associação de marcas entre carnaval e empresas patrocinadoras da folia. A Ambev11, patrocinadora master do carnaval de rua nos últimos anos, que deve cadastrar os ambulantes que serão autorizados a comercializar durante o período carnavalesco. Os ambulantes, então, só podem vender os produtos autorizados pela cervejaria a preços previamente estabelecidos e tabelados, assim como devem utilizar objetos de identificação - isopor, guarda-sol, colete e crachá - disponibilizado pela marca. Um dossiê organizado pelo “Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro”, através da Fundação Dhesca, descreveu o processo para os ambulantes se regularizarem: Em 2013, eles tiveram que ficar dias acampados na fila e, depois de muita confusão, cinco mil conseguiram o crachá, o colete e o isopor da http://rio-negocios.com/turismo-durante-o-carnaval-movimenta-mais-de-r-22-bilhoes-no-rio-de-janeiro/ - Acessado em 13 de Fevereiro de 2016 11 Companhia de Bebidas das Américas (Ambev), faz parte do maior grupo cervejeiro do mundo, funcionando em 17 países com mais de 30 marcas de bebidas. 10

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Antarctica. Esse processo começou há poucos anos, quando o Carnaval de rua passou a ser patrocinado e ter regras mais rígidas por parte da Prefeitura, com cadastramento também de blocos e pedidos de autorização para desfiles. Além da autorização feita pelo cadastramento, os trabalhadores recebem uma tabela com o preço que devem comercializar os produtos, além de terem que comprá-los em postos autorizados ou supermercados, não sendo permitido vender mercadorias de outra cervejaria. A parceria público-privada para garantir o monopólio da venda de cerveja se estende também à fiscalização e à repressão. Enquanto a Ambev tem fiscais espalhados nos blocos para checar se as regras estão sendo cumpridas, a Guarda Municipal faz o papel de recolher as mercadorias caso haja alguma irregularidade. Os ambulantes se transformam, via Estado, em meros funcionários da cervejaria, com crachá, mas sem qualquer vínculo empregatício ou garantia trabalhista, recebendo por produção e absorvendo o prejuízo caso sua mercadoria seja recolhida por guardas municipais ou simplesmente sobre no fim do dia. (PLATAFORMA DHESCA BRASIL, 2014, p. 07) Durante o carnaval de rua de 2016, surgiram relatos sobre a violência praticada aos ambulantes e aos blocos, principalmente os que diferem da lógica imposta pela regulamentação. O primeiro relato ocorreu no dia 03 de Janeiro durante a abertura do carnaval não oficial, que foi paralisado após confronto da PM12. A repressão continuou durante o carnaval, principalmente em blocos não oficiais ou com caráter subversivo, como ocorreu com o Planta na Mente, que é autorizado, mas tem como público-alvo consumidores e defensores da legalização da maconha. A justificativa da polícia militar/guarda municipal para intervenção no festejo, com a utilização de armas e artefatos de repressão contra foliões, é somente a presença de ambulantes não cadastrados, mesmo que ironicamente os acontecimentos se restrinjam aos blocos que fogem dos padrões da prefeitura. A Desliga dos Blocos, que organiza a abertura do carnaval não oficial, é um dos grupos a se posicionar contra as ações da prefeitura, e apresentou em 2012 um “Manifesto do Carnaval de Rua Carioca”, declarando a necessidade de “[...] recusar o modelo empresarial da Prefeitura, apoiado por associações e blocos dependentes do poder público e do seu projeto de mercantilização da folia” (DESLIGA DOS BLOCOS DO RIO DE JANEIRO, 2012)13 já compreendendo o panorama que se criava com o tratamento do carnaval enquanto produto e não apenas enquanto manifestação cultural popular. Para agravar a situação, embora os blocos sejam de extrema importância para a consolidação desse produto carnavalesco a ser comercializado e precisem se adequar as regras da Rio http://oglobo.globo.com/rio/carnaval/2016/carnaval-nao-oficial-comeca-com-confusao-entre-ambulantes-gm-18401860 - Acessado em 13 de Fevereiro de 2016 13 https://curiosidadedecarnaval.wordpress.com/2012/12/19/manifesto-do-carnaval-de-rua-carioca-2012/ - Acessado em 13 de Fevereiro de 2016 12

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tur, a prefeitura não dispõe de nenhum mecanismo de incentivo direto aos blocos. Ela se restringe à criação do “Caderno de Encargos e Patrocínios” para demandar às empresas patrocinadoras os serviços que precisam ser contratados para atender aos blocos, como banheiros químicos, agentes de trânsito, ambulância, entre outros serviços. Existem, no entanto, outras necessidades cruciais para existência dos desfiles, bailes e cortejos, como aparelhos e estruturas sonoras, iluminações, ensaios técnicos, contratação de ritmistas, programação visual, trios elétricos, amplificações, etc. A falta de patrocínio tem gerado nos blocos a procura de novas estratégias de financiamento do carnaval de rua, seja através de oficinas, shows, comercialização de produtos correlatos (como camiseta e CD) dentro e fora do período carnavalesco e financiamento coletivo, assim como pressionar por mais subsídio público. Para o presidente da RioTur, Antônio Pedro, em sua entrevista para o jornal O Dia, que levantou demandas dos blocos, “existem diversos editais culturais, a Lei Rouanet. Carnaval é cultura. Os blocos poderiam usar outros elementos de arrecadação, como o financiamento coletivo, por exemplo. O Carnaval tem que ser bancado pelas pessoas que o fazem”.14 Foi apontado na mesma entrevista a dificuldade de conseguir patrocínios quando só há uma grande empresa patrocinadora - como é o caso da Ambev -, no entanto, Antônio Pedro discordou dessa afirmação. É certo no entanto que, devido ao crescimento do carnaval desde 2009, o modelo de parceria público-privado estabelecido tem apresentado resultados, seja através da adequação do carnaval aos moldes pensados pela prefeitura ou seja através da repressão por um Estado ainda um tanto quanto positivista. Colocado o problema, é preciso refletir até que ponto a atual gestão conseguiu coordenar uma das maiores e mais diversas festividades do Rio de Janeiro e do Brasil e se realmente há o interesse de se pensar a festa enquanto um espaço de diversidade por toda a cidade ou apenas enquanto um produto a ser comercializado em troca de retorno político, econômico e publicitário. 3. A PREFEITURA E A DESCENTRALIZAÇÃO DA FESTA O carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro de algum modo sempre respeitou, principalmente nos desfiles, a centralidade política da cidade, sejam de corsos (no início do século XX), dos primeiros blocos (na mesma época) e de toda história do carnaval das escolas de samba (dos primeiros desfiles à construção do Sambódromo). A história dos blocos também respeita esta ocupação territorial (PIMENTEL, 2002). O bloco mais antigo ainda em funcionamento o Cordão da Bola Preta, de 1918, foi fundado e sempre desfilou no Centro da cidade. Outros blocos que foram criados em outras regiões, como por exemplo o tradicional Cacique de Ramos, fundado em 1961, desfila também no Centro da cidade. Embora o carnaval dos blocos http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2016-01-09/em-tempos-de-crise-blocos-fazem-engenharia-para-desfilar-no-carnaval.html - Acessado em 13 de Fevereiro de 2016 14

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de rua possa acontecer em diferentes lugares da cidade o Centro permanece sendo o lugar tradicional de muitos desfiles. Com a retomada do carnaval dos blocos de rua da década de 1980, esta nova festa ganhou outra centralidade, estendendo o carnaval do Centro para a Zona Sul do Rio de Janeiro. Houve através da criação de blocos como Barbas, em 1981, Simpatia é quase amor, em 1985, Bloco de segunda e Suvaco de Cristo, em 1986, um deslocamento da centralidade da festa para os bairros da Zona Sul carioca. Esses novos blocos passaram a dividir aquela região da cidade com o já tradicional Banda de Ipanema, fundado em 1965, alterando também o perfil do público, o carnaval de rua passou a ser feito por jovens universitários (BEI, 2007). No início dos anos 2000 temos uma nova retomada do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro tanto com relação a fundação de novos blocos, com um aumento de 459% na criação de blocos se comparado às décadas anteriores (1980-1990), quanto de foliões brincando o carnaval. Herschmann (2013) aponta que esse crescimento no carnaval dos blocos representa uma tomada da rua pelas manifestações artísticas, a revitalização de novos espaços da cidade como a Lapa, uma certa sensação de segurança (principalmente se comparada com a grande onda de violência que a cidade passou no final da década de 1990) e uma readequação etária e musical da festa. Mesmo que se mantenha a centralidade da festa nos bairros do Centro a da Zona Sul da cidade, o aumento expressivo de blocos impactou também outras regiões da cidade e passou a ser impulsionado também pelo poder público. Bairros como Barra da Tijuca e Jacarepaguá apresentaram um crescimento expressivo na criação de blocos, representando um aumento de 750% desde os anos 2000 se comparado as décadas anteriores. Zona Norte e Ilha do Governador também tiveram um crescimento de 1000% na criação de blocos no século XXI em comparação com as duas últimas décadas do século XX. Embora o aumento seja expressivo a grande concentração de bloco, quase 50% do total, desfila em bairros da Zona Sul e no Centro da cidade. O carnaval dos blocos de rua encontra-se atualmente distribuído da seguinte maneira:

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Os reflexos do crescimento dos blocos na Zona Sul no início dos anos 1980 persiste reverberando nos números atuais, a grande concentração de blocos permanece nesta área da cidade. Os números da distribuição dos blocos por região da cidade é ampliado na disposição do público por região. Centro e Zona Sul da cidade somam mais de 80% do público do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro. Esse número tão expressivo reflete a potência de grandes blocos que desfilam nesta região da cidade, como por exemplo, Cordão da Bola Preta – com um milhão e trezentos mil foliões – e Monobloco – com cerca de 500 mil foliões. A distribuição do público por região apresenta-se da seguinte forma:

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Podemos afirmar que embora haja um aumento nos números de blocos em outras regiões da cidade não é ainda expressivo o crescimento do público nessas regiões. O Centro e a Zona Sul permanecem no imaginário carnavalesco como lugares privilegiados pra folia momesca. A Zona Sul começou a ficar muito incomodada porque além dos blocos que já existiam na Zona Sul, todo mundo começou a querer desfilar na Zona Sul. Então o AfroReggae foi desfilar em Ipanema. A Preta Gil que surgiu do nada - foi desfilar em Ipanema. O Sargento Pimenta - que também surgiu assim do nada - foi desfilar no mesmo lugar e no mesmo dia que o Bloco de Segunda, que tem 28 anos. Entendeu? Como é que você faz pra decidir naquele espaço publico, na territorialidade, quem tem direito ou não? Ai começa a precisar de uma regra porque se eu to disputando com você o mesmo espaço, qual é a regra? A prefeitura decidiu, a regra é a antiguidade. Quem já era dali, vai continuar ali. Rita Fernandes, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana, entrevista para a pesquisa em 22 de Junho de 2014. Com o grande aumento de blocos solicitando desfilar na Zona Sul a prefeitura restringiu a criação de novos desfiles nessa área da cidade, coligando o incentivo à criação de novos blocos em outras regiões da cidade. Critérios como antiguidade e associação com o território servem de parâmetro para a seleção de blocos, mas não garante a adesão aos mesmos. Não obstante a criação de novos blocos com características locais possa representar uma valorização da diversidade na cidade, também podemos pensar nessa ação pública associada a processos de gentrificação urbana e de exclusão social. A exclusão social pode ser vista através do desejo público de diminuir os deslocamentos na cidade, difícil na época carnavalesca, mas também de restringir a população ao seu local de origem, principalmente moradores da periferia. Já a gentrificação associada a determinadas regiões da cidade, como a Zona Portuária, por exemplo, ao mesmo tempo que ajudam na revitalização de algumas manifestações carnavalescas da região (o bloco Fala meu louro, fundado em 1938 voltou a desfilar em 2013) pode também expulsar seus foliões tradicionais. Pautado no discurso da valorização da tradição carnavalesca o poder público vem, ao organizar a criação e desfile de novos blocos, buscando descentralizar a festa a partir das suas especificidades locais, ao mesmo tempo que constrói políticas homogeneizantes. 4. A PREFEITURA E A TRADICIONALIZAÇÃO DA FESTA O poder público, especificamente a Prefeitura do Rio de Janeiro, também tem como preocupação a permanência da festa com suas características tradicionais. Essa almejada tradição dos blocos de rua é valorizada através de duas ações de preservação da prefeitura. A primeira foi o reconhecimento de alguns blocos como patrimônio cultural de natureza imaterial carioca. São eles: a Banda de Ipanema, declarada patrimônio em 200415; o bloco Cacique de Ramos, DECRETO N° 23.926 de 23 de janeiro de 2004 – D.O.M. do Rio de Janeiro.: 26/01/2004.

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declarado patrimônio em 200516; e o Cordão da Bola Preta, declarado patrimônio em 200717. Essa ações aconteceram antes do atual prefeito, Eduardo Paes, assumir a prefeitura da cidade e voltar seus esforços de modo mais objetivo para organização da festa. O gênero musical da marchinha de carnaval, também foi considerado patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro em 201518, já na gestão do atual prefeito. O instrumento da patrimonialização foi aqui utilizado como reconhecimento da manifestação cultural popular, limitando-se a legitimá-lo através do mecanismos legais. Todavia as ações de patrimonialização em nenhum momento garantem ou incentivam a permanência dessas manifestações, ou seja, processos legais não se transformam em ação efetiva de viabilização da manifestação cultural preservada. A segunda ação do poder público com relação a tradicionalização da festa está novamente pautada em mecanismos legais, agora não mais com relação a processos de patrimonialização, mas de regulamentação da prática carnavalesca. A defesa da tradição e das características do carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro se dá através de ações contra o uso de cordas identificando quem comprou o abadá, também proibido sua comercialização como pré-requisito para brincar o carnaval nos blocos de rua. Desta forma a prefeitura se posiciona contra a denominada baianização do carnaval carioca e, através de decretos, estabelece os limites do que pode ou não acontecer no carnaval de rua da cidade. O não respeito a essas fronteiras será punido pelo não reconhecimento oficial do bloco através da autorização para o desfile no ano posterior. Embora fosse pensado que a Riotur junto com a guarda municipal iria fiscalizar essas ações, no carnaval de 2016 este controle se deu através do órgão de proteção ao consumidor, o Procon, passando a ser tratado, assim, como assunto de demanda dos foliões. Assim, por meio de ações legalizantes, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro adentra o debate sobre os limites da prática carnavalesca tradicional e autêntica nos blocos de rua, legitimando e oficializando a distinção entre eles. E através de discursos que retomam as práticas tradicionais que o poder público justifica suas escolhas e usa da políticas públicas para preservação dessa tradicionalização. Tradicionalização aqui entendida não só como tradições inventadas (HOBSBAWAM; RANGER, 1984), mas como “reflexão acompanhada da práxis das expressões advindas das tradições culturais” (TEIXEIRA, 2004, p.09). Tradicionalização buscada através de ações de patrimonialização e exercícios de definição do que é o carnaval dos blocos de rua no Rio de Janeiro. O modelo do carnaval baiano é construído no discurso dos agentes públicos como o outro que deve ser evitado, aquele carnaval que já sucumbiu à lógica do mercado sofrendo um processo de mercantilização. Esta dicotomia entre o carnaval dos blocos de rua na cidade do Rio de Janeiro, pensado como manifestação cultural, em oposição a uma comercialização apontada no carnaval baiano, LEI Nº 4.068 de 24 de maio de 2005. – D.O.M.do Rio de Janeiro: 06/06/2005. DECRETO N° 27.594 de 14/02/2007. – D.O.M. do Rio de Janeiro.: 15/02/2007. 18 DECRETO Nº39.751 de 05/02/2015. - D.O.M. do Rio de Janeiro.: 06/02/2007 16 17

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pode ser facilmente questionado não só em termos das políticas de mercantilização do carnaval que a própria prefeitura incentiva, como já mostramos acima, mas, principalmente, pelo lugar que o carnaval ocupa na política pública, responsabilidade da pasta do turismo. Enquanto o carnaval de maneira geral, mas especificamente o carnaval dos blocos de rua, for pensado em termos de projeto turístico, associado a grandes cifras que justificam o seu incentivo por conta do retorno recebido, as políticas públicas que pensam e agem sobre o carnaval estarão considerando de forma superficial o potencial mobilizador e formador da identidades múltiplas que essa prática popular tem. Ações de tradicionalização da cultura carnavalescas só fazem sentido se pensadas enquanto política pública de cultura e não somente como políticas pública de turismo. Bakhtin (2010) compreende a festa como característica primeira e indestrutível da civilização humana por ser isenta de sentido utilitário e por usar de jogos, disfarces, risos, dança e etc. Desta forma, a festa possibilita que se exponha uma visão não oficial da sociedade, que se tenha a abolição, por um período determinado, das hierarquias e diferenças. Na mesma linha de interpretação da festa e do carnaval, Burke (2010) defende o carnaval como o momento de alteração da hierarquia e do status, o que o autor classifica de “mundo virado de cabeça para baixo”(p.252), gerando ambiguidades e ambivalências. DaMatta (1997) em seu estudo clássico sobre o carnaval no Brasil também parte da ideia da festa como um espaço de inversão, onde a sociedade brasileira nega e reitera a sua organização. Será que podemos permanecer pensando na festa do carnaval dos blocos de rua como momento da inversão da estrutura social, mesmo com toda gestão, regulamentação e mercantilização da festa?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: Ed. Da UnB, 1993. BEI. Guia do Carnaval de Rua do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: BEI Comunicação, 2007. BURKE, Peter. O mundo do carnaval. In: Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DESLIGA DOS BLOCOS DO RIO DE JANEIRO, Manifesto do carnaval de rua carioca, 2012. Disponível em Acessado em 13 de fevereiro de 2016. FERNANDES, Rita, Presidente do Imprensa que eu gamo e da Sebastiana. Entrevista para a pesquisa. Entrevistadora: Marina Bay Frydberg. Rio de Janeiro, 22 de Junho de 2014. 1 arquivo .mp3 (80 min.).

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HERSCHMANN, Micael. Apontamentos sobre o crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janeiro no início do século 21. In: Intercom – RBCC. São Paulo, v. 36, nº. 2, jul./dez., 2013. HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. PIMENTEL, João. Blocos, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. PLATAFORMA DHESCA BRASIL. Dossiê violações ao direito ao trabalho e ao direito à cidade dos camelôs no Rio de Janeiro. DHesca Brasil, 2014. Disponível em Acessado em 13 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 23.926 de 23 de janeiro de 2004 . Declara patrimônio cultural carioca a banda de Ipanema. Disponível em: Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Lei Nº 4.068 de 24 de maio de 2005. Declara Patrimônio Cultural do Povo Carioca o Bloco Carnavalesco Cacique de Ramos. Disponível em: Acesado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 27.594 de 14 de fevereiro de 2007. Declara patrimônio cultural carioca o Cordão da Bola Preta. Disponível em: Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 30.453, de 09 de fevereiro de 2009. Determina as normas e procedimentos para a realização de desfiles de blocos e bandas carnavalescas no âmbito do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências. Diário oficial do município, Rio de Janeiro, RJ, 9 fev. 2009. Disponível em: . Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 30.659, de 07 de maio de 2009. Dispõe sobre as normas e procedimentos para os desfiles de blocos carnavalescos no Município do Rio de Janeiro. Diário oficial do município, Rio de Janeiro, RJ, 8 mai. 2009. Disponível em: . Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 37.182, de 20 de maio de 2009. Dispõe sobre a Criação da “Comissão Especial de Avaliação de Blocos de Rua” na Cidade do Rio de Janeiro, e dá outras providências. Diário oficial do município, Rio de Janeiro, RJ, 21 mai. 2009. Disponível em: . Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 36.760, de 05 de fevereiro de 2013. Dispõe sobre a proibição da demarcação de áreas privadas nos blocos de carnaval na Cidade do Rio de Janeiro e dá outras providências. Diário oficial do município, Rio de Janeiro, RJ, 6 fev. 2013. Disponível em: < http://www. legisweb.com.br/legislacao/?id=251074>. Acessado em 1 de fevereiro de 2016. RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Nº 39.751, de 05 de fevereiro de 2015. Declara patrimônio cultural carioca o gênero musical conhecido por marchinha de carnaval. Disponível em: . Acessado em 1 de fevereiro de 2016.

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TEIXEIRA, João Gabriel L. C. Apresentação. In: TEIXEIRA, João Gabriel L. C.; GARCIA, Marcus Vinícius Carvalho; GUSMÃO, Rita. Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília: ICS-UnB, 2004.

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CULTURAS POPULARES E O PROCESSO FORMATIVO PARA ADENTRAR À DINÂMICA PATRIMONIAL: O CASO DA FOLIA DE REIS DE VALENÇA-RJ Marluce Magno1

RESUMO: Para as comunidades tradicionais, ter acesso aos recursos disponibilizados pelo Estado através de programas como o Cultura Viva, requer um processo formativo – uma “alfabetização patrimonial” – de alguns de seus membros. A dinâmica patrimonial conduzida pelo Estado pauta-se pela lógica racionalista ocidental e a sua aproximação com a lógica tradicional em que operam as culturas populares pode ter impactos indesejáveis sobre a segunda. Este trabalho descreve e analisa a experiência do movimento de Folia de Reis de Valença com esse processo. PALAVRAS-CHAVE: Culturas populares, dinâmica patrimonial, Folia de Reis.

1. INTRODUÇÃO Uma relação mais próxima entre as culturas populares e o Estado, foi inaugurada a partir da gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) com programas como Cultura Viva, convertido em política de Estado em 2014, através da Lei nº 13.018. Uma nova forma de gerir a cultura, com ativa e ampla participação da sociedade, configura a atual realidade das políticas culturais no Brasil, expressa através do Sistema Nacional de Cultura (SNC), incorporado à Constituição Federal (EC 71/2012) e dinamizada pelo Plano Nacional de Cultura (PNC), também incorporado à Constituição (EC 48/2005). Uma das ações do Cultura Viva, o Ponto de Cultura, no qual se apoiam os demais mecanismos do programa, expandiu o alcance do Estado no âmbito da cultura, que hoje se faz concretamente presente em todo o território nacional. De acordo com o Minc/SCDC, em abril de 2015 eram 3.500 Pontos2. A cidade de Valença-RJ, onde empreendi pesquisa de campo cujas observações analiso adiante, é detentora de três Pontos de Cultura: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. [email protected] Conforme consulta ao Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (e-SIC), acessado através de http://www.acessoainformacao.gov.br/sistema/site/index.html, em 9 Jul 2015.

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Tipo de Ação

Gestor

Entidade Responsável

Nome do Projeto

Rede Estadual

Secretaria de Estado do Rio de Janeiro

AGFORV - Associação dos Grupos de Folias de Valença

Projeto de Integração dos Movimentos Culturais e Afrodescendentes de Valença-Rj

Rede Estadual

Secretaria de Estado do Rio de Janeiro

Associação dos Pequenos Produtores Rurais e Artesãos de Conservatória

Aparcoarte

Ponto Direto

Ministério da Cultura

Associação da Comunidade Negra Remanescente de Quilombo da Fazenda São José da Serra

Núcleo de Cultura Popular do Vale do Paraíba – Quilombola São José

Fonte: e-SIC, Ministério da Cultura.

Minha pesquisa focou o movimento de Folia de Reis do município e incluiu um estudo das relações entre este e as políticas culturais em vigor. 2. A ALFABETIZAÇÃO PATRIMONIAL E A DINÂMICA PATRIMONIAL Dirigi minha atenção à aproximação dos foliões, detentores dos saberes tradicionais que alicerçam a expressão cultural em questão, com os mecanismos de acesso aos recursos públicos, os editais. Senti-me estimulada por questões propostas por Regina Abreu, que problematiza o encontro (ou desencontro) da lógica racionalista do Estado com a lógica tradicional das manifestações populares. Abreu discute essa relação na qual se espera um protagonismo das comunidades tradicionais que, entretanto, não estão familiarizadas com os códigos que conformam a “lógica patrimonial”, devendo-se inserir, então, num aprendizado que a autora denominou “alfabetização patrimonial”. Neste sentido, observa-se aqui um paradoxo: o projeto do Patrimônio Cultural Imaterial que visa “salvar” as diferenças, as alteridades ou as diversidades culturais, apresenta sua face universalista numa lógica racionalista fundada em conceitos e categorias ocidentais. (ABREU, 2014, p.43) A autora desenvolve suas reflexões tendo como foco os processos de patrimonialização empreendidos pelo IPHAN. Entretanto estou assumindo que suas questões podem ser estendidas a outros cenários nos quais interesses institucionais venham a interagir com interesses dos grupos tradicionais, envolvendo bens imateriais. Na prática, o Estado tem interagido com os grupos tradicionais a partir de duas frentes – a da patrimonialização e a das ações de fomento – mas fortaleceu uma visão combinada de ambas quando introduziu a Emenda Constitucional nº 48 (2005) que adicionou um novo parágrafo ao Art.215, estabelecendo o protagonismo do PNC na definição de ações integradas do poder público que conduzam a:

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I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;  II - produção, promoção e difusão de bens culturais;  III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;  IV - democratização do acesso aos bens de cultura;  V- valorização da diversidade étnica e regional. (BRASIL, 1988) O documento que instituiu o SNC ratifica tal posicionamento ao declarar que “é superada a tradicional separação entre políticas de fomento à cultura (...) e de proteção do patrimônio cultural, pois ambas se referem à produção simbólica da sociedade” (SNC, 2011, p.34). Assim, adoto o entendimento de que as ações que envolvem o patrimônio imaterial – seja de patrimonialização ou de fomento – acontecem dentro de uma mesma dinâmica, que eu estou chamando de “dinâmica patrimonial”:

Regina Abreu indica a necessidade de se pensar certas questões que emergem desse contato entre a lógica racionalista do Estado e as práticas tradicionais de grupos populares, lógica essa que naturaliza procedimentos tecnoburocráticos esperando que integrantes de comunidades tradicionais tenham participação ativa, sem questionar sobre o impacto em suas vidas com a aquisição e o manejo desses procedimentos, assim como suas repercussões. Quais os membros das “comunidades que serão “iniciados” no preenchimento de dossiês, formulários, solicitações de registros? O que significará para estas “comunidades” estas novas “iniciações”? Quais os novos estatutos que estes indivíduos terão em suas “comunidades” após a aquisição destas novas habilidades e destes novos modos de existência? (ABREU, 2014, p.43-44)

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3. A FOLIA DE REIS DE VALENÇA E A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DE FOLIAS LOCAL O movimento de Folia de Reis de Valença tem uma atuante Associação, a AGFORV (Associação de Grupos de Folia de Reis de Valença), que vem acumulando conquistas no acesso a recursos públicos através de editais. Das inscrições que efetuou obteve sucesso com: Instituição

Proposta inscrita

Recursos obtidos

2008

Ponto de Cultura do Programa Mais Cultura

Parceria entre o Ministério da Cultura e Secretaria Estadual de Cultura

Integração das manifestações culturais afrodescendentes com oficinas (confecção e execução de instrumentos musicais, culinária, dança, capoeira, roda literária,fundamentos religiosos e outros)

R$180.000

2010

Fomento direto (*) a projetos culturais

Secretaria Estadual de Cultura

Realização do 40º Encontro de Folias de Reis de Valença (2011)

R$ 29.735

2015

Premio de Cultura Afro-Fluminense 2015

Secretaria Estadual de Cultura

Realizações da AGFORV na promoção e valorização da cultura afrodescendente no município.

R$21.000

Ano

Referência no Edital

(*) Com exigência de coparticipação, que foi suprida pela Prefeitura.

A frente da AGFORV desde 2004 está o mestre-folião Francisco José Figueira Ferreira (Chico da Folia), 51 anos, exercendo papel de destaque nas conquistas acima relacionadas. A trajetória do Chico, que inclui um processo formativo que se encaixa na definição de Regina Abreu para alfabetização patrimonial, pode ser reveladora dos recursos (habilidades pessoais, mediadores, rede de contatos) que propiciaram a AGFORV o domínio dos mecanismos institucionais que lhe garantiram tais conquistas, e responder a algumas das questões propostas por Abreu, sobre o impacto da lógica racionalista na vida de grupos que se conduzem dentro de uma lógica tradicional. Chico contou do seu início ainda muito jovem na Folia, tendo aprendido a “cantar o Reis” por volta dos doze anos de idade. Há certa precocidade, pois, nessa idade, seguindo o percurso mais comum de ascensão dentro de um grupo de Folia, um jovem de doze anos estaria tocando algum dos instrumentos de percussão ou brincando como palhaço. Ele falou comigo que era pra eu ir na casa dele que ele ia me passar uma ‘cópia’. Então eu aí aprendi. Ele passou as passagens dos Reis e eu aprendi o que era necessário: que em primeiro lugar a gente tinha que ter respeito, que a gente tinha que fazer parte de uma religião, que

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o fundamento religioso da Folia de Reis é o maior fundamento religioso que tem nas escrituras sagradas. Então a gente não podia levar aquilo de brincadeira, que eu precisava aprender a cantar para fazer bonito na frente dos presépios, na época, por ocasião das festas natalinas... E a minha vontade de aprender era tanta que com 21 dias eu consegui aprender todas as passagens. E ele falou ‘só vou falar que você é um folião quando você estiver preparado’. E aí me passou e eu fui escrevendo, minha letra era muito ruim, minha irmã era que escrevia pra mim. E aí, quando inteirou 21 dias, eu cheguei na casa dele e falei com ele assim: ‘os papéis tão aqui e eu vou falar’. E aí ele falou: ‘não pode repetir um verso, que se você for cantar na casa de um folião, se você repetir um verso, ele manda você parar’. Aí deu aquele calafrio, aquele frio na barriga e eu falei a passagem desde quando ele começou até a hora que ele parou. Ele falou: ‘agora vou te dar uma viola e você vai montar sua folia e cantar Reis’. (Chico da Folia) Essa mesma autopropulsão que o fez, ainda menino, abordar um mestre-folião pedindo ajuda, vai continuar na idade adulta na busca do conhecimento e no aproveitamento de oportunidades que o levaram a aquisição de competências e habilidades que estreitaram distancias em relação a agentes e dispositivos institucionais. Em certo ponto, o estreitamento chega a desaparecer já que, ele próprio, se torna um agente institucional, ao ser contratado como assessor do Secretário de Cultura e Turismo do município em 2013. Antes disso, desde 2010, atuou pela Secretaria como agente cultural, difundindo conhecimentos sobre a Folia de Reis nas escolas municipais. Em algumas situações, eu, como observadora, não conseguia identificar, com clareza, qual era seu lugar de fala: representante das Folias ou da Secretaria municipal? Desconfio que essa dúvida também possa surgir, vez ou outra, na percepção de seus colegas foliões. A condição de presidente da AGFORV desde 2004 levou Chico a participar de várias das atividades que configuraram o extenso processo de reformulação da cultura no país, tais como conferências, seminários e cursos promovidos pelo Estado. Essas e outras experiências constituíram-se num processo educativo para o simplório Chico, mestre-folião, ex-pedreiro, com formação escolar restrita aos primeiros anos do Ensino Fundamental. Já no início da minha pesquisa o encontro desempenhando, também, a função de presidente do Conselho Municipal de Cultura. O processo de oficialização da Associação também foi uma experiência formativa. O principal orientador nesse processo foi Nélio Ricardo, fundador da Associação de Folia de Rio das Flores (2001). Nélio disponibilizou a documentação e outras orientações: O Francisco me procurou. Eu orientei o Francisco de como deveria fazer. Eu botei minha secretária à disposição para fornecer todo o material”. (...) Ele [Chico], muito dedicado... Eu notei que ele tinha, assim, uma vontade muito grande de organizar as Folias, em Valença.” (Nélio Ricardo)

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Mas o principal mediador no processo formativo do Chico foi o Padre Medoro, que esteve à frente da paróquia de Valença entre 1998 e 2010. Para Medoro, Chico é detentor de capacidade de aprendizado e de agenciamento que o distingue nas conquistas da AGFORV: a gente foi apresentando para o Francisco, que existiam organizações que poderia se fazer contato. Mas tenho que ser justo e dizer o seguinte: quanto a esse contato com os órgãos instituídos, do Estado sobretudo, isto foi pioneirismo dele! Iniciativa dele! Isso é mérito dele! O que eu mais fazia era apoiar, num momento em que descobri que era importante fazer determinado contato, eu fazia, às vezes, a mediação. Eu favorecia com recurso material de transporte, alimentação... Mas sem dúvida o protagonismo do Francisco tem que ser valorizado! Realmente a cultura dele ultrapassa a simplicidade dele! (Padre Medoro) Apesar de conferir mérito ao “protagonismo do Francisco”, no que tange a interação com os agentes institucionais, o processo que levou a conquista do Ponto de Cultura teve participação decisiva de Medoro. Algum tempo depois de instituída a AGFORV, o pároco promoveu um encontro entre Chico e um amigo de longa data, o chefe da Representação Regional do Ministério da Cultura para Rio de Janeiro/Espírito Santo, Adair Rocha. O propósito era, principalmente, o de orientar a AGFORV, sobre os mecanismos legais disponíveis para acesso a recursos públicos pelos grupos de cultura popular. Segundo Chico, uma das observações de Rocha foi quanto ao potencial reduzido de sucesso para uma iniciativa isolada por parte da AGFORV, recomendando que as lideranças dos movimentos culturais se organizassem num projeto único. Assim foi feito. Em 18 de Maio de 2008 foi registrado o Projeto de integração dos movimentos culturais e afrodescendentes de Valença RJ reunindo, além da AGFORV, as Associações de Capoeira Negrinho Mandigueiro, Pé na Lua e Pantera Negra, e o grupo de Dança Afro e Samba de Roda. Coube ao Chico a condição de representante legal do projeto, que se estendeu, posteriormente, à responsabilidade pela gestão do Ponto de Cultura. O documento já alinhavava as ações que posteriormente viriam a integrar o projeto inscrito no primeiro edital (2008) para implementação de Pontos de Cultura pela Secretaria de Cultura do estado, em parceria com o governo federal: Provocar a integração das diversas culturas presentes no seio da população valenciana; resgatar, prioritariamente, os elementos da cultura africana, aumentar e preservar as Folias de Reis e despertar o interesse pela música e pela dança conseguindo manter a tradição da cultura religiosa, folclórica e popular; desenvolver o potencial turístico do município, principalmente o turismo cultura; [...]3. Para compor a documentação e preencher os formulários, Chico contou com a colaboração de um amigo que atuava como assessor de um vereador local. A dependência da “boa Obtido do Anexo II, do formulário de inscrição para o Programa mais cultura – ponto de cultura / Ponto de cultura do Estado do Rio de Janeiro, para o projeto identificado por Projeto de integração dos movimentos culturais e afrodescendentes de Valença-RJ, disponibilizado pela AGFORV.

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vontade” de alguns especialistas tem sido apontada por Chico como fundamental às conquistas de recursos públicos por editais pela AGFORV. No Seminário de Folia de Reis do Estado do Rio de Janeiro promovido pelo IPHAN em 2013, que contou com a presença de outros foliões e de intelectuais, deu breve testemunho sobre a aprovação do Ponto de Cultura: Conseguimos aprovar o projeto e é o terceiro ano com o projeto e já conseguimos atender a 1.400 crianças e eu tenho certeza que a partir do momento que agente se organizar, precisa disso, procurar as localidades próximas, precisa ter a boa vontade de um advogado, a boa vontade de um contador, por que nós também não tínhamos, conseguimos tudo na base do voluntariado. (Chico da Folia apud SOUZA, p.16, 2013) Esse mesmo colaborador voltou a ajudá-lo na inscrição para outro edital, em 2010, no qual também logrou sucesso. Em 2015, outro amigo, que é produtor cultural, o ajudou na inscrição para o Premio de Cultura Afro-Fluminense. Uma das limitações para Chico é o uso dos recursos tecnológicos (computador, internet), cuja habilidade ainda não dispõe. Chico comentou que chegaram a estudar a possibilidade de inscrever um projeto para a Lei de Incentivo (Estadual), mas a exigência de compromisso prévio assumido por um patrocinador tem inviabilizado a inscrição. A Lei de Incentivo (custeada pela renúncia fiscal do ICMS), tal como a Lei Rouanet, delega às empresas patrocinadoras a decisão de qual iniciativa cultural patrocinar, produzindo substancial desigualdade de oportunidades, principalmente no âmbito das culturas populares, já que a preferência é por projetos que garantam maior visibilidade aos produtos ou nome da empresa. A minha pesquisa não contemplou análise da aplicação dos recursos conquistados pela AGFORV, ou avaliação do seu impacto sobre o público beneficiado, por exemplo, pelas oficinas promovidas pelo Ponto de Cultura. Quanto ao Prêmio Cultura Afro-Fluminense, tenho a informação preliminar de que a maior parte será distribuída aos grupos de Folia integrantes da Associação. Como trata-se de dezoito grupos, o impacto nas finanças de cada um não será mais do que um pequeno alívio para o dono da Folia, responsável pelos gastos do grupo com a jornada. Percebi, naqueles foliões que encontrei após a notícia da premiação, alguma satisfação pelo prestígio que a conquista de um prêmio implica, mas nada próximo da intensa satisfação demonstrada pelo próprio Chico da Folia que, a cada conquista, fortalece ainda mais sua liderança, não só a frente do movimento das Folias de Reis, mas no universo cultural do município. 4. UM MESTRE-FOLIÃO INTEGRADO AO PRAGMATISMO DA DINÂMICA PATRIMONIAL O processo de aprendizado do Chico tem sido motivado pela necessidade de obtenção de apoio financeiro externo para os grupos de Folia que, até o surgimento dos editais já referidos, contavam apenas com a “ajuda” incerta e esporádica da Prefeitura ou de políticos locais. Nas inte-

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rações entre os grupos de Folia e o poder local instituído, tem prevalecido processo estruturado a partir de laços de amizade, de lealdade, de compensações: um ethos que se reproduz por gerações. Esse aprendizado incluiu identificar e ler editais públicos; participar de conferência municipal e regional de cultura, que levaram-no a ser indicado como representante dos movimentos culturais populares do Médio Paraíba-RJ na II Conferência Nacional de Cultura (2010); atender cursos formativos, com destaque para o Curso de elaboração de projetos e captação de recursos – em Volta Redonda/Conservatória – promovido pela Secretaria Estadual de Cultura (2012); exercer seu papel de líder das Folias de Valença em eventos ou debates, como ocorreu no já citado Seminário Folia de Reis do Estado do Rio de Janeiro promovido pelo IPHAN (2013) para informar e debater sobre o processo de patrimonialização das Folias de Reis Fluminenses; além de estabelecer uma rede de contatos com outras lideranças de culturas populares e com representantes institucionais. Pode-se dizer que, hoje, Chico tem um bom entrosamento com a lógica racionalista que orienta os mecanismos institucionais que conformam a “dinâmica patrimonial”, relembrando que esta é entendida como o conjunto de ações e relações institucionais que envolvem o patrimônio imaterial, sejam elas voltadas para a patrimonialização ou para o fomento. Em outras palavras, Chico cumpriu o processo de “alfabetização patrimonial [que] consiste em ensinar a ‘linguagem patrimonial’ aos membros das ‘comunidades tradicionais’” (ABREU, 2014, p.43). Retorno, então, ao paradoxo que envolve esse processo – apontado por Regina Abreu – que se propõe a salvaguardar e fomentar a diversidade cultural, adotando para tal uma lógica universalista, de feições ocidentais, com potencial para impactos não desejáveis sobre a lógica tradicional (que se deseja salvaguardar) que rege as comunidades tradicionais. Ganha centralidade nas reflexões de Abreu os grupos que vivem sua cultura tradicional cotidianamente, como é o caso dos povos originários. Entretanto, temos grupos cujos membros se deslocam, num movimento cíclico, entre um e outro universo – o da lógica racionalista e o da lógica tradicional – que é o caso dos grupos de Folia de Reis. Seus membros são pessoas integradas ao sistema socioeconômico dominante, que operam dentro da lógica racional ocidental, e que a cada período natalino, reconstroem e experimentam um viver ancestral. Entendo, assim, que os possíveis impactos pensados por Abreu são suavizados quando pensados para grupos tradicionais cujos membros já estão habituados a se conduzir no universo pragmático que orienta as ações do Estado e dos agentes econômicos. Pensando na aproximação da lógica do Estado como algo absolutamente novo para uma comunidade tradicional, Abreu questiona: “O que seria para estas ‘comunidades’ estas novas ‘iniciações’?” No caso dos grupos cujos membros já vivenciam a lógica do Estado no seu cotidiano, como acontece com os integrantes de grupos de Folia de Reis, esse contato não seria, exatamente uma “iniciação”. Se aproximaria mais da percepção de um conjunto de novas demandas burocráticas, dentre as muitas às quais já estão sujeitos. Entretanto, tratam-se de demandas que

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envolvem técnicas complexas, exigindo conhecimentos mais específicos para o manejo de mecanismos que prometem reconhecer e valorizar sua expressão cultural tradicional, antes vivida apenas com expressão de fé, sem ânsias de reconhecimento público, para além das próprias famílias de devotos que os recebem em suas casas e/ou os prestigiam nos “Encontros de Folias” do município. Essas novas demandas burocráticas estariam compreendidas nos processos de patrimonialização e respectivas ações de salvaguarda formalmente estabelecidas, e na democratização do acesso a recursos públicos estaduais e federais através de editais, que despontaram no cenário cultural a partir de 2003. No caso do processo de patrimonialização das Folias de Reis Fluminenses pelo IPHAN, esse tem passado ao largo do movimento de Folias de Valença. O município não foi um dos quinze escolhidos para o inventário que vem sendo realizado, e que se propõe a dar suporte ao Registro que abrangerá todas as Folias do Estado do Rio de Janeiro. Logo, a lógica do Estado não adentrou ao universo das Folias de Valença pelo processo de patrimonialização, ainda. São as demandas burocráticas dos editais para acesso a recursos públicos que introduzem o movimento valenciano na dinâmica patrimonial. A existência de uma Associação de Folias, com um presidente legitimamente constituído, sugere que a primeira pergunta de Abreu, que versa sobre a escolha dos membros da comunidade a serem “iniciados” na burocracia Estatal, está respondida: o próprio presidente da AGFORV, Chico da Folia. Passamos, então a segunda questão: “Quais os novos estatutos que estes indivíduos terão em suas ‘comunidades’ após a aquisição destas novas habilidades e destes novos modos de existência?” (ABREU, 2014, p.43-44) O Chico tem usado com eficiência o conhecimento que adquiriu ao longo do seu processo formativo, como comprova a conquista de prêmios e editais ocorridos na sua gestão à frente da AGFORV. Ele ainda comentou que conquistou, para ele, não para a AGFORV, o Prêmio de Mestre da Cultura Popular, do Ministério da Cultura, em 2009, fazendo jus ao recebimento de dez mil reais. A ampliação de conhecimentos e conquistas o tem projetado no cenário cultural municipal, o que certamente contribuiu para levá-lo à assessoria da Secretaria de Cultura e à presidência do Conselho Municipal de Cultura, por exemplo. É de se esperar, então, que seu tempo esteja bastante tomado por tarefas e compromissos. No trato das questões da Folia, Chico lamenta, às vezes, a ausência do envolvimento de alguns colegas foliões, mais afeitos a críticas e menos interessados em colaborar nos compromissos e atividades da Associação. De minhas observações posso afirmar que a identidade de Chico como mestre-folião não se perdeu em meio a tantas novas atribuições e novos grupos nos quais se insere. De fato, ela prevalece, inclusive no trato com os novos conhecimentos que tem adquirido no campo das políticas públicas. Devemos tomar em consideração que um mestre-folião é valorizado e admirado pelo conhecimento que acumula (e externa) dos “fundamentos” da Folia. Que, no passado, esse conhecimento era o elemento acionado em disputas quando grupos se encontravam durante a jor-

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nada: momento muito temido, pois poderia desdobrar-se num conflito físico. Que a transmissão desses saberes segue certo protocolo e relações de confiança, podendo o acesso ao conhecimento ser dificultado e até restringido, como numa situação descrita pelo mestre Tachico, de Rio das Flores, ao pesquisador Wagner Chaves. O primeiro mestre a lhe transmitir ensinamentos, omitiu saberes relevantes, expondo-o a um cumprimento deficiente da jornada e a avaliação negativa de devotos mais entendidos, o que só foi solucionado quando outro mestre, ouvindo-o cantar as profecias, identificou suas limitações. Sensibilizado com sua dedicação, esse mestre se prontificou a ajudá-lo (CHAVES, p.84-86). O que julgo poder afirmar é que o ethos da Folia de Reis, que eu estenderia a outras culturas populares, contempla uma inclinação à centralização de conhecimentos na conduta dos seus mestres. Assim, arrisco avaliar que Chico, possivelmente conduzido pelo habitus, que Bourdieu conceituou como uma “disposição incorporada, quase postural” (BOURDIEU, 1989, p.61), exerce uma centralização que, ao mesmo tempo em que o sobrecarrega com tarefas e compromissos, estabelece uma relação de dependência da AGFORV e seus membros para com ele, no que tange ao acesso a mecanismos públicos de obtenção de recursos materiais para além da esfera municipal. Creio que essa situação foi percebida por um dos seus mentores, o Padre Medoro, revelando-se motivo de preocupação para o mesmo. Quando o questionei sobre sua visão de possíveis riscos à continuidade das Folias de Reis em Valença, ele imediatamente pensou na continuidade da Associação (que não era, de fato, a minha questão). Eu acho que a gente não teve tempo para ajudar o Francisco a preparar sucessores pra missão dele. Hoje, talvez seja uma visão equivocada, mas eu tenho uma impressão de que o Francisco é visto por alguns quase como “o dono das folias”. Nesse sentido, é uma liderança que não deixa crescer outras lideranças. Não digo que isso seja intencional ou por mal caráter ou qualquer coisa... Mas dentro da dinâmica dos estatutos deveria ter havido renovação nos quadros diretivos da Associação. Isso eu acho importante porque, em primeiro lugar, temos que garantir a continuidade, com pessoas que tenham competência pra levar adiante. Nós não somos eternos, como eu, que já saí daqui. (Padre Medoro) Sabe-se que é prática de um bom mestre-folião, preparar sucessor tão logo sinta-se cansado para continuar na condução da jornada. Creio que Chico, como competente mestre-folião que é, tão logo se sinta cansado para dar conta das inúmeras tarefas e responsabilidades que assume, se disponha a compartilhar os novos conhecimentos que adquiriu e a estimular o desenvolvimento das habilidades que hoje dispõe, em outros companheiros. Pode não ser fácil encontrar pessoas que tenham a combinação de inteligência, dinamismo e autopropulsão do Chico, mas não é impossível. Pessoas que, como ele, precisarão desfrutar do respeito e da confiança dos seus pares, ingredientes que avalio como essenciais na receita que tem produzido uma gestão de sucesso para o Chico, à frente da AGFORV. Entretanto, um risco não pode ser ignorado: o surgimento de alguma eventualidade que limite Chico no exercício das suas atuais funções, antes que o estágio

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do cansaço chegue e a subsequente preparação de sucessores aconteça. Poderia significar um retrocesso da AGFORV no entrosamento com as políticas públicas de valorização e fomento das culturas populares. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho descrevi a experiência do movimento de Folias de Reis de Valença, através da sua Associação (AGFORV), sob a liderança de um mestre-folião que experimenta um processo de aprendizagem que acaba por distingui-lo dos seus pares no trato com as políticas culturais. Os grupos de Folia têm acesso a recursos públicos, e a Associação e seu presidente, conquistam prestígio. Uma relação de dependência se estabelece entre a Associação e seus membros com o presidente, Chico da Folia, que centraliza o conhecimento adquirido da dinâmica patrimonial conduzida pelo Estado. O compartilhamento desse conhecimento com outros membros do grupo parece ser necessário para que o entrosamento com as políticas culturais do Estado não venha a sofrer um retrocesso, caso alguma eventualidade limite o Chico no exercício das suas funções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Regina. Dinámicas de patrimonialización y “comunidades tradicionales” em Brasil. In: In: CHAVES, Margarita; MONTENEGRO, Maurício; ZAMBRANO, Marta. (Org.) El valor Del patrimônio: mercado, políticas culturales y agenciamientos sociales. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH), 2014. p.39-66. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BRASIL. Constituição. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 21 dez. 2015. CHAVES, Wagner Diniz. Na jornada de Santos Reis – Conhecimento, ritual e poder na folia do Tachico. Maceió: EDUFAL, 2013. MINC. Estruturação, institucionalização e implementação do Sistema Nacional de Cultura. Brasília: Minc/SAI, 2011. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/documents/10907/963783/livro11-602-paraaprovacao.pdf/d17c52f9-3a60-4196-af5c-a6655f028f3b Acesso em: 7 dez. 2015. ______. As metas do Plano Nacional de Cultura. 3.ed. Brasília: MINC, 2013. Disponível em: http:// pnc.culturadigital.br/wp-content/uploads/2013/12/3%C2%AA-edi%C3%A7%C3%A3o-As-Metas-doPlano-Nacional-de-Cultura-at%C3%A9-a-meta-20-espelhado-para-site.pdf . Acesso em: 13 dez. 2015. SOUZA, Luiz Gustavo Mendel. Ressonância em um campo dissonante. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 29, 2014, Natal, Anais da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia. São Paulo: ABA, 2014. Disponível em: http://www.portal.abant.org.br/index.php/45-anais/534-anais-29-rba. Acesso em: 15 set. 2015.

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CINEMATECA POTIGUAR E SUA CONTRIBUIÇÃO NA POLÍTICA CULTURAL AUDIOVISUAL Mary Land Brito1 Vanessa Paula Trigueiro2

RESUMO: A Cinemateca Potiguar, situada no IFRN Cidade Alta, surge como espaço de contribuição na preservação e circulação do material audiovisual produzido pelos realizadores do Rio Grande do Norte e difusão de filmes nacionais. Com o avanço de suas atuações no universo audiovisual local, o projeto teve a chance de contribuir para o fortalecimento da politica cultural, levando o cinema às pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social e econômica. Para o presente artigo, apresenta-se tanto uma compreensão contemporânea a respeito do conceito de políticas culturais quanto à atuação da Cinemateca a partir da parceria com a Mostra Democratizando. Com isso, há também uma reflexão sobre o potencial do uso do cinema como agente de transformação social e inclusão cultural. PALAVRAS-CHAVE: Políticas culturais, Cinema, Cinemateca Potiguar.

1. INTRODUÇÃO Em outubro de 2015, o Ministério da Cultura (MinC) lançou o Programa Brasil de Todas as Telas – Ano 2. O Programa foi defendido pelos realizadores da ação, o MinC e a Agência Nacional do Cinema (Ancine), como o maior programa de desenvolvimento do setor audiovisual já construído no Brasil, com investimentos de R$ 646 milhões provenientes do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). A primeira edição do projeto, lançado em julho de 2014, rendeu 306 longas-metragens, 433 séries ou telefilmes, a estruturação de 55 núcleos criativos e a realização de Coordenadora Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa com Deficiência na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Também é docente do curso de Produção Cultural no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte e coordenadora da Cinemateca Potiguar, projeto de extensão do Campus Natal – Cidade Alta. Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: [email protected] 2 Docente do curso de Multimídia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte e coordenadora da Cinemateca Potiguar, projeto de extensão do Campus Natal – Cidade Alta. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected] 1

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620 projetos em todas as regiões do país3. O programa foi criado com a intenção de contribuir para que o Brasil se transforme em um centro atuante de produção e programação de conteúdos audiovisuais e tem o objetivo de estimular o desenvolvimento dos agentes econômicos e promover o acesso de um número cada vez maior de brasileiros ao conteúdo produzido também por brasileiros, em todas as plataformas de exibição. O Brasil de Todas as Telas é estruturado em quatro eixos: Desenvolvimento de projetos, roteiros, marcas e formatos; Capacitação e formação profissional; Produção e difusão de conteúdos brasileiros e o Programa Cinema Perto de Você. Esse último destina-se à abertura e a modernização de salas de cinema, dando destaque a digitalização. Em sua primeira edição, foram investidos R$ 350 milhões em abertura de novas salas, digitalização do parque exibidor e investimentos do projeto Cinema da Cidade, que tem o objetivo de construir salas de cinema em cidades de pequeno e médio porte onde estes espaços ainda não existem. Dos 1.371 municípios brasileiros com população entre 20 mil e 100 mil habitantes, foco do projeto, apenas 194, 14,15% do total, possuíam salas de cinema em 2014. Pelo menos 450 salas foram construídas ou reformadas no decorrer de 20154. Segundo texto veiculado pela assessoria de comunicação do Ministério da Cultura5 O ano da SAv (2015) ainda foi marcado pela política de democratização do audiovisual nacional, em especial pelos programas Canal Cultura e Quero Ver Cultura; pela retomada – em versão atualizada – de programas históricos e reconhecidos, como a Programadora Brasil, os Núcleos de Produção Digital (NPD) e o Cine Mais Cultura; pela ampliação da rede de exibição alternativa; e pela retomada da reestruturação da Cinemateca Brasileira e do Centro Técnico Audiovisual (CTAv). A secretaria também organizou a inscrição e a seleção do filme brasileiro a ser indicado ao Prêmio de Melhor Filme em Língua Estrangeira do Oscar 2016 (LEITE, 2016, online). Na mesma reportagem, o ministro da cultura reforçou o entendimento da importância da democratização da produção e acesso a conteúdo audiovisual nacional. O discurso de Juca Ferreira projeta o pensamento de que a democratização da produção cultural brasileira, bem como ações de fomento e proteção, deve ser inerente ao plano de desenvolvimento do país. Ainda nos aproximando dessa discussão que envolve as políticas culturais governamentais, Marta Suplicy, antecessora de Juca Ferreira no Ministério, traz a questão do audiovisual como ferramenta de inclusão na abertura do Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual – O Fonte: Disponível em: http://www.ancine.gov.br/sala-imprensa/noticias/minc-e-ancine-lan-am-o-programa-brasil-de-todas-telas-ano-2 Acesso: 04 fev. 2016. 4 Fonte: Disponível em: Acesso: 04 fev. 2016. 5 Disponível em: Acesso: 04 fev. 2016. 3

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Brasil de todos os olhares para todas as telas. De acordo com Suplicy (2013), o audiovisual desempenha um papel estratégico na economia e cultural, além disso, “constitui uma ferramenta fundamental de inclusão social, de exercício da cidadania e de manifestação de nossa identidade nacional” (Suplicy, 2013, p. 10). Com a apresentação desses discursos e dessas ações políticas, é notório que a postura dos agentes culturais governamentais tem confluído para uma defesa sobre a importância da participação social na construção e no acesso aos bens culturais. A partir disso, iniciamos uma complexificação do que envolve o termo políticas culturais. Trata-se de ampliar a compreensão que as ações no âmbito das políticas culturais tem se tornado um hábito de caráter público, devendo ser exercidas não só pelo Estado, mas pela soma da atuação de diversos setores. De acordo com Canclini (2001), as políticas culturais resumem-se a um conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis e grupos comunitários organizados a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social6 (CANCLINI, 2001, p. 78). Seguindo o conceito do autor, entendemos também que ignorar o papel que qualquer instituição possa vir a exercer no campo da cultura é ir contra os pensamentos, teorizações e ações da contemporaneidade. Ampliamos essa compreensão, apresentando também que, segundo Furtado (2012), a política cultural deveria ser um “estímulo organizado a formas de criatividade que enriquecem a vida dos membros da coletividade” (FURTADO, 2012, p. 41). A partir dessa perspectiva, confluímos para o pensamento de que os agentes de ações que contribuem tanto para a democratização de acesso aos bens culturais quanto para a transformação social de uma determinada realidade podem estar em diversas esferas sociais e agir em diversas frentes. É nesse contexto que surgiu a Cinemateca Potiguar, projeto de difusão de conteúdo audiovisual, tendo como ênfase a circulação de filmes produzidos no Rio Grande do Norte, mas atuando também na facilitação ao acesso das demais obras brasileiras. 2. CONHECENDO A CINEMATECA POTIGUAR A Cinemateca Potiguar é um projeto de extensão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte do campus Natal Cidade Alta que reafirma o compromisso do campus com a classe artística da cidade de Natal, oferecendo mais um espaço para a difusão da cultura local. Inaugurada no dia 29 de outubro de 2014, o projeto surge como espaço de contribuição na preservação e circulação do material audiovisual potiguar e nacional. Além Texto original: “al conjunto de intervenciones realizadas por el estado, las instituciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o transformación social” (CANCLINI, 2011, p. 78).

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do viés da difusão e da busca pelo fortalecimento do cinema do Rio Grande do Norte, destaca-se também o compromisso da Cinemateca Potiguar com a educação por meio do apoio à produção cinematográfica, principalmente vinculada aos alunos do IFRN Cidade Alta, bem como pelo incentivo à democratização do acesso ao cinema pela comunidade externa. O contato das comunidades interna e externa do Instituto com a linguagem cinematográfica propicia o acionamento da função social e educativa do audiovisual com benefícios refletidos em diversas esferas. O espaço físico da Cinemateca Potiguar está situado no prédio do IFRN Natal Cidade Alta, na Avenida Rio Branco, principal rua do centro de Natal. A estrutura do espaço conta com três computadores notebooks com fones de ouvido disponíveis para visualização dos filmes do acervo e uma sala de exibição climatizada com TV FullHD e home theather apta a receber grupos de até 12 pessoas. A Cinemateca Potiguar veio preencher uma lacuna latente do audiovisual do estado que era o fato de não conseguirmos ver os nossos próprios filmes. A partir da identificação desta demanda, por meio de diversas reuniões do setor, a professora do curso de Produção Cultural Mary Land Brito criou o projeto e o espaço no Instituto, onde o público pode assistir filmes gratuitamente, assim como os realizadores do audiovisual do estado podem deixar suas obras para serem vistas. Ou seja, o projeto passa a atuar também como elo entre os que queriam mostrar seus filmes e aqueles que queriam ver. No momento atual a equipe da Cinemateca Potiguar é formada por docentes do curso superior de Produção Cultural e do curso técnico de nível médio integrado em Multimídia, os professores efetivos Mary Land Brito, Vanessa Paula Trigueiro, Paulo Guilherme Cruz e os substitutos Fábio D’Silva e Rafaela Bernardazzi. Além disso, há também a participação dos alunos como bolsistas, cumprindo três horas diárias dedicadas ao projeto, Larissa Sales, Amina Dantas, Edo Sadistick, Alexandre Sérgio e Daliane Silva. Diariamente a sala de exibição da Cinemateca é frequentada por alunos do IFRN Cidade Alta e pela sociedade civil7, em sua maioria buscando filmes em caráter de entretenimento. Em nossa metodologia de trabalho, a equipe do projeto está à disposição do público para indicar filmes e publicações impressas de acordo com o interesse dos visitantes. Dentre as atividades desenvolvidas pela Cinemateca Potiguar estão a constante ampliação do acervo, que hoje conta com aproximadamente 600 títulos, por meio do contato com os realizadores regionais e instituições do setor audiovisual em âmbito nacional; a organização e manutenção do espaço; a organização de mostras, a produção de material audiovisual que divulgue o projeto; a criação e manutenção de canais de comunicação, como site e mídias sociais. Outra vertente do trabalho realizado pelo projeto junto ao setor audiovisual é a de parceria com Inseridos nessa categoria de sociedade civil estão pessoas em situação de rua, cujo contato inicial com a maioria deles se deu por meio das exibições itinerantes da Mostra Democratizando.

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os festivais de cinema, atuando nas áreas de produção de eventos e participação efetiva na programação dos mesmos. Desde a sua inauguração, a Cinemateca Potiguar esteve presente como apoio em todos os festivais de cinema do Rio Grande do Norte, como a Mostra de Cinema de Gostoso, o Festival Internacional de Cinema de Baia Formosa, o Cine Natal 2014, Goiamum Audiovisual, Urbano Cine, além de mostras alternativas de cinema de Natal. Além dos parceiros estaduais, o projeto tem configurado uma relação de parceria com iniciativas regionais como a produção local de cursos ofertados pelo Centro Audiovisual Norte-Nordeste (Canne) e exibição de filmes do projeto “Cine É Proibido Cochilar”, da Representação Regional Nordeste do Ministério da Cultura, com exibição de curtas e longas, mesas de apresentação e debates. A Cinemateca Potiguar também tem parcerias nacionais com o Núcleo de Produção Digital – NPD do Ministério da Cultura, que irá possibilitar o empréstimo de equipamentos de produção cinematográfica. Percebe-se, então, que é na esfera da exibição a principal atuação da Cinemateca Potiguar. O projeto é produtor ou co-produtor de todos os eventos audiovisuais realizados no espaço do IFRN Cidade Alta e também realiza parcerias com diversos eventos da cidade, ficando responsáveis pelas mostras de filmes – em especial, dos filmes potiguares. Além disso, em caráter mais amplo, também são realizadas parcerias nacionais como o Revelando os Brasis, quando o projeto atuou na ação de exibição dos filmes em Natal. A partir da natureza dessas atuações já apresentadas, surgiu o desejo de participar também do projeto Democratizando. O Projeto Democratizando é uma iniciativa integrante da 9ª Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul. Por meio do projeto, pontos de exibição de todo o país se inscreveram para receber os kits elaborados pela produção da Mostra; os kits contêm obras que buscam suscitar o debate sobre os Direitos Humanos em âmbito nacional. Além disso, os espaços inscritos poderão organizar palestras, workshops e outros tipos  de encontro para discutir Direitos Humanos e outros temas relacionados. As exibições acontecerão entre janeiro e março de 2015, e são de responsabilidade das instituições que se inscreveram para receber o material do Democratizando. O kit Democratizando é totalmente gratuito e será entregue em caixa personalizada, contendo camisa, bolsa, bloco de notas, caneta, catálogo do evento e o encarte com 3 DVDs. Em formato digital, os filmes enviados terão como opção a utilização de closed caption e audiodescrição, além de legendas para cinco idiomas: árabe, espanhol, inglês,  francês e mandarim (DEMOCRATIZANDO, 2014). No entanto, o que, inicialmente, seria uma parceria apenas de exibição e debate sobre o audiovisual, se tornou uma possibilidade de rever e reconstruir a política de atuação da Cinemateca Potiguar. Isso porque, durante as exibições, a equipe da Cinemateca ficou diante de um

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público periférico, que, comumente, não tem acesso ao cinema, ou seja, uma esfera da população que ainda não é afetada diretamente pelo universo das políticas culturais federais abordadas no início deste artigo. 3. UMA AGENDA PERIFÉRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Diante dessa contextualização, para o presente artigo estabelece-se um recorte nas atividades que o projeto tem desenvolvido a partir da realização da Mostra de Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul – Democratizando, em março de 2015. Além da Mostra ter sido disponibilizada na sala de exibição da Cinemateca, ela foi realizada em cinco diferentes locais: o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a Casa do Menor Trabalhador, o auditório do IFRN Cidade Alta e o Albergue Municipal. Por meio dessa vivência, o projeto teve sua efetiva inserção no universo do cinema como meio de transformação social. Para melhor compreender essa ação é importante expor, além da apresentação já realizada, um breve panorama da história do projeto Democratizando. Iniciada em 2006, pela então Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), a Mostra Cinema e Direitos Humanos transmutou-se ao longo dos anos nas suas mais diversas dimensões. Em relação à sua dimensão territorial, a Mostra se expandiu gradualmente. Em sua primeira edição, a Mostra Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul foi realizada em quatro capitais brasileiras (Brasília, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo). Em 2007, em sua segunda edição, a Mostra foi ampliada e exibida em oito capitais. No ano de 2008 alcançou o número de 12 capitais e em 2009 ampliou ainda mais esse número, sendo exibida em 16 capitais brasileiras. Em uma contínua expansão, em 2010, na sua quinta edição, atingiu 20 capitais, culminando, em 2011 na consolidação da Mostra e da sua chegada a todas as 27 capitais brasileiras. Nesse contexto, a Mostra chegou a Natal no ano de 2009 e desde então tem como produção local a empresa Mapa Realização Cultural. Em seu primeiro ano, a mostra aconteceu no auditório do SEBRAE, no ano seguinte no Teatro de Cultura Popular Chico Daniel (TCP) e, de 2011 a 2015, no auditório do IFRN Cidade Alta. Ainda em 2014, a Cinemateca Potiguar se tornou parceira do projeto e esteve engajada na divulgação e mobilização da Mostra, ajudando também na seleção dos alunos bolsistas que realizaram a produção do evento. Paralelamente a essa ação, foi realizado o cadastro da Cinemateca como ponto de exibição do Kit Democratizando. A partir desse contato, o projeto se tornou um dos pontos focais da Mostra Democratizando, que distribuiu quase 1.000 kits por todo o país com a intenção de levar o cinema para um grande número de pessoas das mais diversas realidades sociais, culturais e econômicas. O processo metodológico desenvolvido durante a Mostra Democratizando foi pensado a partir do contato com a Secretaria de Direitos Humanos. Após o cadastro da Cinemateca Po-

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tiguar como ponto de exibição e o recebimento do kit com os filmes a serem exibidos, a equipe da Cinemateca8 realizou um levantamento sobre instituições que trabalham com pessoas em vulnerabilidade social e assim foram escolhidos nossos 04 parceiros no projeto (Casa do Menor Trabalhador, IFRN Cidade Alta, CAPS e Abrigo Municipal). Para a participação na atividade da Democratizando, a Casa do Menor Trabalhador selecionou alunos de 06 a 13 anos de idade. Diante de um público de faixa etária tão diversa não foi possível conseguir completo êxito na exibição, já que a escolha dos filmes não agradou em sua totalidade ao público presente. Na ocasião, foram exibidas algumas animações e, em seguida, o filme Sophia. Já para os alunos do PRONATEC, com cursos sediados no IFRN Cidade Alta, foi selecionado o documentário Kátia. O diálogo após o filme demonstrou um engajamento dos alunos em relação à narrativa. As exibições no Centro de Atenção Psicosocial (CAPS) e no Albergue Municipal foram as grandes surpresas do circuito itinerante da Mostra Democratizando realizado pela Cinemateca Potiguar. O público presente demonstrou alto grau de interesse e de participação. Nesses dois locais, a equipe da Cinemateca realizou uma pré-curadoria dos filmes, selecionando obras que estivessem alinhadas as orientações do setor de psicologia das duas instituições. Ao chegar aos locais, foram apresentadas as sinopses dos filmes e o público realizou a escolha de qual filme seria exibido. Em uma das exibições do CAPS foi escolhido o documentário Cabra Marcado para Morrer, longa metragem do diretor Eduardo Coutinho. A psicóloga que acompanhou a turma nos alertou que eles tinham dificuldade de concentração e um filme muito longo poderia desmotivá-los durante a exibição. Diante do exposto, antes do início da sessão foi apresentado ao público o recurso de audiodescrição e a maioria optou pela exibição do documentário com a utilização desse recurso de acessibilidade. Ao final da exibição, no momento destinado ao diálogo sobre a história e sobre as impressões do público diante do filme, a equipe da Cinemateca foi surpreendida pela unanimidade da aprovação em relação à audiodescrição. Os presentes expuseram que o recurso possibilitou que eles acompanhassem o filme mesmo quando estavam cansados e baixavam a cabeça. Durante a sessão de Cabra Marcado para Morrer, longa com 119 minutos de duração, foi realizada apenas um intervalo na exibição, momento em que o público aproveitou para ir ao banheiro e, mediante a reivindicação dos fumantes, fazer o uso de cigarro. Após o filme, a equipe da Cinemateca Potiguar, com a participação da psicóloga da instituição, conduziu o debate tendo como centro da questão os direitos humanos. Outra resposta positiva durante a Mostra Democratizando diz respeito à exibição fílmica no Albergue Municipal, iniciativa da Prefeitura de Natal que atende pessoas em situação de rua e Na época da realização da Mostra Democratizando, a equipe era constituída pelas duas professoras coordenadoras, Mary Land Brito e Vanessa Paula Trigueiro, e pelos bolsistas do Curso de Produção Cultural do IFRN Cidade Alta, Amina Beatriz, Edo Sadistic, Ianne Freire e Larissa Sales. 8

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vulnerabilidade social. Assim como aconteceu no CAPS, o setor de assistência social apresentou o fato de o público ter dificuldade de concentração, apontando que a exibição de um filme muito longo poderia desmotivá-los. Diante do exposto, o filme Sophia, do diretor paraibano Kennel Rógis, foi escolhido para a exibição no Albergue. Com duração de 15 minutos, o curta metragem agradou os presentes e gerou um debate a respeito do apoio da família no processo de qualquer tipo de recuperação. Logo após esse diálogo, o público solicitou que fosse exibido mais uma obra audiovisual, o que surpreendeu a própria equipe responsável pelo Albergue. Na ocasião, a equipe da Cinemateca sugeriu a projeção do curta metragem potiguar Abraço de Maré, buscando, a partir da narrativa fílmica, uma aproximação com um cenário urbano já conhecido pela maioria dos presentes. Por fim, durante todo o ciclo itinerante da Mostra Democratizando, o diálogo após a exibição dos filmes foi realizado ao fim das sessões. Em vários momentos o público expôs seus medos e fraquezas diante dos problemas que estavam enfrentando, sempre fazendo relação com o filme apresentado. O filme sempre organiza algo. Essa organização não está na tela, nem na sua cabeça sozinha, está no encontro das duas. Onde está o filme? Não está na tela porque, se você muda sua capacidade de percepção, só vai ver luzes, sombras e nada mais. Onde está o filme? Ele está nesse encontro. A gente necessita das historias e dos filmes para ter muitas das nossas impressões. Às vezes os filmes que ajudam a organizar um sentido. Ou com a ajuda do seu instrumental, fabricar um sentido onde não se vê. É muito bom sair de filmes onde você enxerga estímulo pra seguir adiante. É onde você criou um sentido não estava vendo, mas claro que isso é com o seu repertorio. Junto com o que o filme se dá. O filme se oferece, se empenha, se dá pra você (CAKOFF, 2010, p.121-122). A partir das declarações dos presentes, os representantes das instituições aproveitavam para tratar de assuntos diversos na área dos direitos humanos e bem estar social. Percebe-se, com isso, que o recurso da exibição audiovisual possibilitou, além de um momento de imersão na narrativa fílmica, um momento de reflexão a respeito de suas próprias vidas. E essa reflexão também se estendeu ao projeto. Foi a partir dessas exibições e dos relatos ouvidos que se chegou a conclusão de que era preciso incluir este público no ciclo da política cultural e a Cinemateca Potiguar decidiu então dar continuidade a essa atividade iniciada com a Mostra Democratizando. Com isso, as ações do projeto passaram a não ter apenas o setor audiovisual e a comunidade interna do IFRN como fio condutor. Essa mudança de postura fez com que a Cinemateca passasse a dar mais ênfase as comunidades que se encontram à margem das políticas governamentais, trabalhando a inclusão das pessoas em vulnerabilidade social no universo do cinema.

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Levando-se em consideração que grande parte da população brasileira não mantém nenhuma convivência com as linguagens artísticas (ou vivências das mesmas), o processo de formação de plateia se torna muito mais complexo, as propostas de criação de espaços para amadores, experimentos, redes e oficinas se apresentam como prioritárias, para dar início a um processo de alteração deste quadro. (CALABRE, 2010, p. 100). Os resultados obtidos até então com a realização da Democratizando foi justamente o que propõe o nome da mostra: a democratização do acesso ao cinema, especialmente aos filmes nacionais e potiguares, incluído nas exibições. Isso projetou a Cinemateca Potiguar para um novo público que, como dito anteriormente, no momento de idealização do projeto, não fazia parte dos planos das ações. As parcerias com o CAPS e o Albergue Municipal foram então instituídas ainda em 2015. Acordado que a Cinemateca realizaria uma exibição mensal, seguindo o princípio da metodologia utilizada durante a Mostra Democratizando, o ciclo de exibições para as instituições foi retomado no mês de agosto de 2015. A dinâmica no Albergue Municipal continua a mesma, com a ida da equipe da Cinemateca até o local no turno da noite e a montagem da projeção na área comum do espaço. Já a dinâmica com a CAPS foi alterada devido uma necessidade interna identificada pela equipe psicopedagógica da instituição. Os responsáveis pelo Centro de Apoio perceberam que, para o tratamento dos pacientes, torna-se mais rica a saída deles do espaço de convívio diário, sendo articulada, dessa forma, a exibição na própria sala de projeção da Cinemateca Potiguar. Além disso, a Cinemateca Potiguar, antes frequentada muito mais pelos alunos do IFRN e por profissionais do audiovisual, desde o final do mês de abril de 2015 passou a receber visitas diárias das pessoas em situação de rua. Esse contato se deve diretamente ao trabalho realizado no Albergue Municipal, local que abriga essas pessoas durante a noite e fica há apenas alguns metros do Instituto. Os grupos que frequentam diariamente o espaço tornaram-se consumidores assíduos das obras cinematográficas disponibilizadas no acervo da Cinemateca e, aos poucos, tem se despertado também o interesse pela filmografia potiguar. Com esse contato próximo à nossas ações, as pessoas em situação de rua tem participado também de outras mostras realizadas pela Cinemateca Potiguar. O caso mais sintomático se deu durante a mostra “Cine É Proibido Cochilar”, um evento de exibição fílmica com duração de duas semanas que aconteceu em agosto de 2015 tanto na sala de projeção da Cinemateca quanto no auditório do IFRN Cidade Alta. A participação se deu de forma tão satisfatória que alguns deles chegaram a assistir os 24 filmes disponibilizados para a mostra, além de participarem dos debates com cineastas, pesquisadores e representantes do poder público ligados ao audiovisual. Desta maneira, a Cinemateca Potiguar passa a dar sua contribuição no fortalecimento de uma política cultural atuando não apenas na valorização do cinema potiguar e nacional,

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mas também apresentando uma linguagem artística a pessoas que fazem parte de uma agenda periférica das políticas públicas de todas as áreas. Pessoas que normalmente apresentam uma carência de tratamento digno em diversas áreas e que passam a ter a oportunidade de conhecer o audiovisual como público. 4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Consideramos que ações como esta, somadas a outras milhares que acontecem no país produzidas por instituições e pessoas diversas, exercem um papel importante no complemento da política cultural estatal. Em 2014, ano em que foi inaugurada a Cinemateca Potiguar existiam 26 salas de Cinema em Natal, todas em shoppings centers. E os 122 homens e mulheres que assistiram algum dos filmes da Democratizando nunca estiveram presentes em nenhuma delas. Uma pesquisa realizada pela equipe do projeto durante as sessões no CAPS e Albergue Municipal demonstrou que 5 pessoas nunca tinham visto um filme inteiro e que 19 nunca tinham visto um filme em uma tela grande. Ainda neste mesmo ano de inauguração da Cinemateca Potiguar, segundo o Informe Anual Preliminar 2014 da Ancine, 38 novos complexos cinematográficos foram abertos, totalizando 182 novas salas de cinema para o país. Cinco complexos foram reabertos e outros seis ampliaram seu número de salas, somando mais 205 novas salas, com um total de 2.830 salas de cinema existentes no Brasil em 2014. O país também fechou 2014 com 62,5% de seu parque exibidor, 1.770 salas, atuando com tecnologia digital9. Avanços importantes para o universo audiovisual, mas que, como apresentado no decorrer desse artigo, as políticas públicas não se mostram suficientes tendo apenas o estado como agente. É preciso, portanto, contar com a soma de vários esforços e com o potencial de instituições diversas. É preciso utilizar a força do audiovisual como ferramenta de inclusão social e cultural, de exercício da cidadania e de manifestação da identidade nacional com toda a sua diversidade. O ato de “ver filmes, ler e falar sobre eles nos conduz a imaginar outras formas de sociabilidade e socialização, assim como a nos interrogar sobre outras relações entre os indivíduos e a sociedade” (DAUSTER, 2008, p. 08). As ações realizadas pela Cinemateca Potiguar com a presença do público do Albergue Municipal e do CAPS já se tornaram uma constante. Isso se deu visto que o público, ao entrar em contato com as narrativas fílmicas, acionou memórias e despertou para reflexões sobre suas próprias vidas, passando assim a ver no cinema uma possibilidade tanto de entretenimento quanto de transformação social.

Disponível em: http://www.ancine.gov.br/sala-imprensa/noticias/ancine-divulga-informe-anual-preliminar-do-mercado-de-exibi-o-em-2014 Acesso: 10 fev. 2016 9

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Além disso, as ações realizadas nos dois locais, hoje se soma também a atuação na Casa de Apoio a Criança com Câncer Durval Paiva. A exibição cinematográfica é mesclada a uma conversa após o filme que propõe um diálogo entre o entendimento da própria narrativa e a história de vida do público que assistiu ao filme. A partir disso depreende-se que “ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais” (DUARTE, 2002, p. 17). Levar essa percepção ao universo de pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social e econômica confluiu para uma nova e importante proposta incorporada às ações da Cinemateca. Estamos vivenciando o cinema como ferramenta de transformação social, capaz de alterar vidas ao propiciar o contato com essa expressão artística. “Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação” (BRANDÃO, 1981, p.07) e com essa compreensão, torna-se intenção estimular e educar os mais diversos tipos de público para refletir e participar da vida cultural brasileira e potiguar por meio do cinema. Entendemos que o cinema pode se constituir um agente da educação que possibilita uma aprendizagem estética, sensibilização da inteligência, descobrimento de sensações, encontros, conhecimento e reconhecimento de diferentes mundos, ideias e culturas, estímulo para sonhar, desaprender o que foi aprendido para se reaprender com os olhos livres outras possibilidades de viver (FRESQUET, 2007). Além do crescimento do público a partir dessa formação crítica que vem sendo estimulada, há também o crescimento pessoal e profissional dos alunos bolsistas e dos docentes do projeto, tendo em vista que a equipe é constantemente sensibilizada pela realidade social com a qual trabalha e estimulada a refletir sobre o uso da linguagem cinematográfica e relacioná-la ao universo extra fílmico. E como no cinema, “uma boa história, uma história bem contada, ela tem duas características fundamentais: ela tem que mudar quem ouve e tem que mudar quem conta” (CAMPOS, 2003, p.29). Trazer para a Cinemateca Potiguar a responsabilidade de ajudar na construção de uma política cultural tem deixado também como grande contribuição, para todos os envolvidos, competências diversas como trocas solidárias, integração, valorização das diferenças, gerenciamento de conflitos, reconhecimento dos saberes individuais e o cuidado de si e do outro. É o público e o agente cultural trabalhando na construção de novos repertórios fílmicos e de vida, bem como na efetivação de uma política cultural que procure atender a todo e qualquer cidadão e toda e qualquer cidadã. É trabalhar para que cada indivíduo entenda que pode se fazer presente nas cadeiras de qualquer cinema ou espaço cultural existente no país.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCINE, Agência Nacional do Cinema. Conheça o Programa Brasil de Todas as Telas. Disponível: Acesso: 04 fev. 2016. ANCINE, Agência Nacional do Cinema. Plano de diretrizes e metas para o audiovisual: o Brasil de todos os olhares para todas as telas. 1ª edição. Rio de Janeiro: Agência Nacional do Cinema, 2013. BALÁZS, Béla. O Homem Visível. Tradução de João Luiz Vieira. In: XAVIER, Ismail (Org.). A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003. BODANSKY, Laís. Cine Tela Brasil e Oficinas Tela Brasil: 10 anos de cinema das periferias e comunidades de baixa renda São Paulo: Instituto Buriti, 2014. BRASIL. Ministério da Cultura. Plano Nacional de Cultura: diretrizes gerais para o Plano Nacional de Cultura. 1. ed. Brasília, Realização Câmara dos Deputados, 2007. CAKOFF, Leon (org.). Os filmes da minha vida. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: história e contemporaneidade. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2010. CAMPOS, Fernando Coni. Cinema: sonho e lucidez. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003. CANCLINI, Nestor García. Definiciones en transición. In: MATO, Daniel (org.) Estudios latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales em tiempos de globalización. Buenos Aires: Clacso, 2001, p. 65. DAUSTER, Tânia. Diversidade cultural e educação. In: BARROS, José Márcio (Org.). Diversidade cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. DEMOCRATIZANDO, 2014. Disponível em: . Acesso: 21 set. 15. DUARTE, Rosália. Cinema & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. FRESQUET, A. (Org.). Imagens do desaprender: uma experiência de aprender com o cinema. Rio de Janeiro: Booklink, 2007. FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. LEITE, Larissa. A sétima arte muito além da tela. Assessoria de Comunicação do Ministério da Cultura, 04 jan. 2016. Disponível em: Acesso: 04 fev. 2016. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no século: Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez Editora, 2004. SILVA, Carlos Rafael Braga; ONOFRE, Leonardo de Freitas. O cinema como representação da identidade cultural. In: Encontro de História, Rio de Janeiro: Anpuh, 2008. SUPERINTENDÊNCIA DE ANÁLISE DE MERCADO. Informe de Acompanhamento de Mercado: Segmento de Salas de Exibição. Ancine, 2014.

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CADASTRO CATARINENSE DE MUSEUS: A INICIATIVA DE COLETAR E PRODUZIR INFORMAÇÕES SOBRE O CAMPO MUSEAL NO ESTADO Maurício Rafael1 Renata Cittadin2 RESUMO: Este artigo discorre sobre o processo de construção de uma metodologia, coleta e análise das práticas, das estruturas e dos processos conceituais nos museus de Santa Catarina, tendo em vista as transformações do campo museológico brasileiro desde o advento da Política Nacional de Museus (PNM). Neste cenário, configura-se como estratégica a formatação de diagnóstico que aponte as limitações e os potenciais dos museus catarinenses, viabilizando, assim, uma base de dados que referencie o planejamento de políticas públicas que alcancem as necessidades apontadas. Dessa forma, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC), por meio do Sistema Estadual de Museus (SEM/SC), desenvolveu o projeto denominado Cadastro Catarinense de Museus (CCM), com a finalidade de sistematizar as informações obtidas sobre os museus catarinenses. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas, Museus, Santa Catarina, Indicadores, Cadastro Catarinense de Museus.

1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O CAMPO MUSEAL CATARINENSE: BREVE RETROSPECTO Os museus configuram-se como agentes de integração entre os indivíduos e as mais diversas narrativas culturais. São lugares de pesquisa, de reabilitação e de fortalecimento das identidades culturais, assim como de formação e produção de conhecimento. Nesse sentido, cada vez mais se faz necessário estabelecer um processo de valorização e articulação entre as políticas públicas para museus (federais, estaduais e municipais), na tentativa de viabilizar métodos para a qualificação dos processos museológicos desenvolvidos por essas instituições. Museólogo, mestrando do Programa de Pós-graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (PPGMus/USP). Coordenador do Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina no período compreendido entre 2011 e 2015. E-mail: [email protected]. 2 Museóloga, coordenadora Técnica do Cadastro Catarinense de Museus, atua no Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina desde 2011. E-mail: [email protected] 1

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A reunião ou a organização dos museus formam um campo próprio, denominado “museal”, em que valores, critérios, práticas e discursos específicos são reconhecidos (SANTOS, 2004). A dinâmica que ocorre entre as diversas organizações que operam num mesmo espaço pode ser compreendida por meio da noção de “campo organizacional”, elaborada por DiMaggio e Powell (1999). O Estado pode ser considerado um dos principais agentes influenciadores nos campos organizacionais. Desse modo, as organizações tendem a obedecer às regras do Estado, que é responsável pelo planejamento, execução e avaliação das políticas culturais. Isso pode ser percebido especialmente nas três últimas décadas, período que o Brasil vem experimentado importantes transformações no campo da gestão cultural, como afirma Bruno (2011, p.118): A área correspondente à gestão cultural, em função da sua expressiva pluralidade tem sido alvo de muitas e importantes iniciativas. Por um lado, os grupos sociais têm se organizado e atuado de forma sistemática em função da valorização das mais variadas manifestações culturais e, por outro, os distintos segmentos do poder público têm proposto diversos modelos de gestão, que se articulam a partir de redes e sistemas, contando com a dinâmica participação de representantes da sociedade. No campo da cultura, o Estado atua orientado pelas diretrizes de sua política cultural, que compreende um programa de intervenções que pode ser realizado tanto pelo próprio Estado quanto por instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários, “com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas” (COELHO, 2004, p.293). É, portanto, um “conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável” (Op cit.). Mesmo antes da criação da Política Nacional de Museus (2003) ― desenvolvida pelo Ministério da Cultura (MinC) por meio de esforços conjuntos de diversos profissionais da área museal ―, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC), por intermédio do Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina (SEM/SC), vinha construindo uma política pública para os museus no Estado, objetivando a organização do setor e a profissionalização no que concerne às singularidades e à diversidade das práticas e dos discursos sociais. Apesar de ter sido criado oficialmente em 1991 (Decreto nº 615/91) e de ser um dos primeiros sistemas de museus do país, a atuação do SEM/SC, enquanto rede articuladora de instituições museológicas, existe desde 1986, quando foi institucionalizado o antigo Sistema Nacional de Museus (SNM) pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN/ MinC), cujas normas de funcionamento estão regulamentadas na Portaria nº 13/86. No mesmo ano, foi criada também, em âmbito federal, a Coordenadoria de Acervos Museológicos - vin-

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culada à Fundação Nacional Pró-Memória (órgão executivo da SPHAN) – e que se destinava a assessorar os trabalhos técnicos, editar publicações e prover verbas financeiras para o desenvolvimento das atividades dos museus vinculados a esse órgão. O SPHAN foi extinto em 1990 dando lugar ao Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), que por sua vez foi absorvido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1994. Ainda no âmbito nacional, o antigo SNM (solapado juntamente com a Fundação Pró-Memória, em 1990, durante o Governo Collor) possuía competências voltadas para área museológica brasileira como um todo, tais como: sugerir diretrizes, métodos, estimular programas de capacitação na área, intercâmbio, pesquisas, prestar assistência técnica) e estava vinculado a um comitê, formado por representantes de entidades museológicas públicas e privadas (Portaria nº 284/86). Seguindo esse propósito, foi formatado dentro da estrutura da FCC o Sistema Estadual de Museus, subordinado à antiga Unidade de Ciências, com o objetivo de “articular museus existentes no Estado no sentido de integrar o Sistema Nacional de Museus, de forma que venham a merecer a devida atenção daquele organismo [...]” 3. Documentos arquivados na FCC demonstram que o Sistema Estadual de Museus daquela época pautava-se na intermediação com o SNM para apoio financeiro aos projetos das instituições museológicas catarinenses, bem como na execução de cursos de capacitação direcionados aos profissionais de museus. Contudo, de forma oficial, como já explicitado anteriormente, o SEM/SC existe desde 1991 e, nesse período, atuava vinculado à antiga Gerência de Organização de Museus da FCC (GEOMU), com o mesmo propósito de sistematizar ações de apoio aos museus, desta vez com foco na formatação de editais para auxílio financeiro a projetos técnicos (1995 até 1998). A partir de 1997, como consequência do sucateamento da estrutura da FCC e no intuito de expandir uma rede de cursos de capacitação que atingisse o interior do estado, a GEOMU/ FCC e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) empreenderam esforços na criação e atuação do Núcleo de Estudos Museológicos (NEMU). O NEMU (1997-2012) visava à capacitação dos agentes atuantes em museus catarinenses, bem como a integração dos técnicos em encontros distribuídos em diferentes cidades do estado. Isso pode ser considerada uma alternativa frente à inexistência de um curso de graduação em Museologia em Santa Catarina. A partir daí, as ações da GEOMU se orientaram mais no sentido de dar suporte ao NEMU, viabilizando a participação da Gerência como uma das organizadoras dos encontros regionais que o Núcleo realizava e garantindo seu transporte e hospedagem (OLIVEIRA, 2006, p.100). Em 2003, após reforma administrativa ocorrida em toda a estrutura do Governo do Estado de Santa Catarina, alguns setores e cargos foram extintos na FCC, dentre eles a GEOMU. A partir Ofício Circular nº 54/86, expedido pela FCC em 10 de outubro de 1986 e endereçado aos museus catarinenses.

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de então, e apesar de neste ano nenhuma ação concreta em benefício dos museus ter sido efetivada, os trabalhos relacionados ao campo museológico ficariam sob a responsabilidade da Gerência de Patrimônio Cultural (GEPAC). No ano seguinte, influenciada pela implantação do novo Sistema Brasileiro de Museus (SBM) a FCC desvinculou-se da proposta do NEMU, que a partir deste momento seria executado somente pela UFSC, e focou no desenvolvimento de um amplo debate a fim de reestruturar a política estadual de museus e reformular sua atuação para o campo museológico catarinense. Essa reestruturação foi efetivada a partir da realização do 1º Fórum de Museus de Santa Catarina, realizado na cidade de Florianópolis, em 2005. Na ocasião do evento, que agregou mais de 120 pessoas de todas as regiões catarinenses, foram formuladas e aprovadas, em plenária, as diretrizes que formam a base da Política Estadual de Museus (PEM), dividida em seis áreas (eixos) de atuação, denominadas eixos estruturantes, a saber: Capacitação e Formação (1); Gestão (2); Financiamento e Fomento (3); Democratização e Acesso aos Bens Culturais (4); Acervos (5); Pesquisa (6)4. Em 2006, como consequências das deliberações aprovadas durante o Fórum ocorrido no ano anterior, o SEM/SC foi reativado, por meio do Decreto 4.123/06 que institucionalizava novamente um programa de políticas públicas direcionado aos museus. Nos anos que se seguiram, o Sistema concentrou sua atuação na capacitação dos agentes atuantes em museus e nas instituições afins, com objetivo a instrumentalização de profissionais em diversas áreas do conhecimento da Museologia. Foram oferecidas oficinas de capacitação em parceria com o antigo Departamento de Museus e Centros Culturais (DEMU), vinculado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacioanl (IPHAN/MinC) ― e responsável pela implantação da Política Nacional de Museus, cujo um de seus eixos também versava sobre a capacitação e formação. Dando continuidade ao processo de construção da PEM, as diretrizes dos seis eixos supracitados tiveram seu momento de revisão durante o 2º Fórum de Museus, realizado em Joinville, no ano de 2010. Na oportunidade, outras diretrizes puderam ser acrescidas, preenchendo, assim, algumas lacunas existentes. Durante o encontro, também foi percebida a necessidade de construção de um marco regulatório, em formato de legislação, que efetivasse de forma concreta a política que vinha sendo construída até aquele momento e que, objetivamente, atingisse o interior catarinense. Atendendo a esse anseio, no ano de 2011, a atuação do SEM/SC foi novamente reformulada por meio do Decreto Estadual 599/11, estabelecido após consulta e discussão pública. De acordo com essa legislação o SEM/SC visa à coordenação, à articulação, à mediação, à quali Mais detalhes sobre as diretrizes de cada eixo programático da Política Estadual de Museus podem ser obtidos em: http://www.fcc.sc.gov.br/patrimoniocultural//pagina/4426/politicaestadualdemuseus

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ficação, ao fortalecimento e à cooperação entre os museus. Atualmente, reúne 193 instituições museológicas, entre públicas e privadas, de 106 municípios catarinenses.5. São, ainda, objetivos específicos do SEM/SC: I – promover a articulação entre as instituições museológicas existentes no Estado, respeitada a autonomia jurídico-administrativa, cultural e técnico-científica de cada uma delas; II – estimular e promover o desenvolvimento de programas, projetos e atividades museológicas entre as instituições integrantes do Sistema, respeitando e valorizando o patrimônio cultural de cada comunidade de acordo com as suas especificidades; III – divulgar padrões e procedimentos técnico-científicos que sirvam de orientação às equipes responsáveis pelas instituições museológicas estabelecidas no Estado; IV – estimular e promover programas e projetos de incremento e qualificação, bem como incentivar a formação, atualização e valorização dos profissionais de instituições museológicas existentes no Estado; V – estimular a participação de museus no Sistema, independente do tipo, porte e do segmento da sociedade do qual derivam ou fazem parte; VI – incentivar a criação de redes e sistemas municipais e regionais de museus, bem como promover o intercâmbio com sistemas e redes nacionais e internacionais; VII – criar cadastro e incentivar a inclusão de dados, promovendo sua manutenção e atualização das instituições museológicas estabelecidas no Estado; 6 VIII – propor a criação e o aperfeiçoamento de instrumentos legais, para aprimoramento de instituições museológicas; IX – propor medidas para a política de segurança e proteção de acervos, instalações e edificações dos museus no Estado; e X – estimular políticas de permuta, aquisição, documentação, investigação, preservação, conservação, restauração e difusão de acervos museológicos no Estado. Desde então, a atuação do SEM/SC ampliou-se, buscando especialmente à consolidação de um planejamento estratégico que permitisse, além de expandir o olhar da sociedade sobre a função sociocultural dos museus, instituir políticas de qualificação, valorização e fomento dessas instituições. Outra novidade, propiciada pela nova legislação, foi a divisão do território catartinense em sete regiões museológicas, quais sejam: Oeste: Meio-Oeste; Serra; Sul; Grande Florianópolis; Vale do Itajaí e Norte - permitindo, assim, um maior conhecimento das especificidades Informação obtida pelo Cadastro Catarinense de Museus, coordenado pelo Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina (SEM/SC). 6 Grifo nosso. 5

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de cada território e uma atuação regionalizada. Cabe salientar que cada região museológica possui representatividade no Comitê Gestor do SEM/SC, órgão colegiado responsável pelo planejamento, pela avaliação e pelo monitoramento das ações empreendidas pelo Sistema. Congregam, ainda, o referido Comitê, representações do Conselho Regional de Museologia (COREM), de Escolas de Museologia, assim como de algumas secretarias e autarquias públicas estaduais. Figura 1: Mapa de Santa Catarina com a identificação das sete regiões museológicas.

Figura 2: Reunião do Comitê Gestor do SEM/SC (maio/2014).

Fonte: Fundação Catarinense de Cultura (FCC).

O processo de regionalização das ações do Sistema impulsionou a realização do 3º Fórum de Museus de Santa Catarina no município de Chapecó, ainda em 2011. O evento oportunizou o início da construção do Plano Estadual Setorial de Museus (PESM) para o estado, por meio de consulta pública e de proposição de ações pelos participantes do encontro. O público presente foi dividido em grupos de discussão, conforme as regiões museológicas às quais pertencia, e convidado a analisar e construir ações que atendessem às necessidades identificadas por eles em cada um dos eixos da Política de Museus. Os resultados dessas discussões foram sistematizados em plenária final, permitindo ao SEM/SC a estruturação de uma proposta de planejamento das ações da FCC para os próximos anos. Esta estruturação foi efetivada em 2013, quando a equipe do SEM/SC, com o seu Comitê Gestor, iniciou o texto base do Plano Setorial de Museus a partir dos diagnósticos e das proposições encaminhadas pelo público presente no 3º Fórum de Museus. Foram promovidos sete encontros regionais para a discussão do documento base do Plano. Esses encontros reuniram, ao total, 312 pessoas e serviram como instâncias para consulta pública, por meio da qual a sociedade civil teve a oportunidade de contribuir para a construção do documento, realizando reflexões e proposições no texto original.

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Figura 3: Assembleia regional do 4º Fórum de Museus de Santa Catarina (Criciúma - Região Sul, 2013).

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Figura 4: Plenária estadual do 4º Fórum de Museus de Santa Catarina (Florianópolis, 2013).

Fonte: Fundação Catarinense de Cultura (FCC).

No período de 4 a 6 de novembro de 2013, ocorreu o 4º Fórum de Museus de Santa Catarina, em Florianópolis, no qual, na plenária final, foi deliberado e aprovado pelos presentes o documento final que compõe o referido Plano e que está sendo o norteador das ações da FCC para o campo museológico catarinense nos próximos dez anos. Esse documento, que é composto por 6 eixos (os mesmos da Política Estadual de Museus), 6 diretrizes, 22 estratégias e 130 ações, será incorporado à estrutura do Plano Estadual de Cultura (PEC), assim como a outros segmentos culturais (cinema, teatro, música etc.). Apesar de ainda não instituído oficialmente, o SEM/SC, desde então, baseia-se nas propostas aprovadas do PESM, sendo ele o principal norteador de suas ações. Um dos principais projetos instituídos nesse documento foi a elaboração e aplicação do Cadastro Catarinense de Museus (CCM), que objetiva a implantação de um sistema de indicadores que armazene e gere informações quanti-qualitativas sobre a atuação dos museus catarinenses e que, consequentemente, facilite a identificação de projetos prioritários para a área e sirva para o aprimoramento da gestão das políticas para o setor no estado de Santa Catarina. 2. AS MOTIVAÇÕES E O DESAFIO DA IMPLENTAÇÃO DO CADASTRO CATARINENSE DE MUSEUS Foi no intento de atender à expectativa de coleta e gerenciamento de indicadores que o SEM/SC iniciou o processo de identificação e mapeamento da estrutura, do funcionamento e das atividades executadas pelos museus no estado. Até meados de 2012, o SEM/SC tinha o acompanhamento de 133 museus, aderidos oficialmente à rede, por meio de assinatura de Termo

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de Adesão7. Contudo, o Cadastro Nacional de Museus (CNM), apresentava um mapeamento de 199 instituições no estado, o que apontava a necessidade de ampliação da rede do SEM/SC visando o conhecimento e alcance dos museus ainda não cadastrados. A realidade do funcionamento e das práticas museológicas nesses museus era conhecida pela equipe do SEM/SC, por meio de visitas técnicas ou de encontros regionais ocasionados pela realização de oficinas de capacitação, mas esses dados não eram registrados ou quantificados na forma de indicadores que fundamentassem mais precisamente o planejamento de ações da FCC para o campo museal. Contava-se, ainda, com o acesso parcial ao CNM por meio da publicação “Museus em Números”, editada pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM/MinC) no ano de 2011. Porém, esses indicadores por vezes apresentavam uma realidade que em muitos momentos era distante daquela percebida nas visitas técnicas e no contato com os profissionais em museus. Historicamente, o SEM/SC coletava dos museus, por meio de formulários cadastrais, dados básicos como nome da instituição, endereço, contato, identificação de esfera administrativa, produzidos por tentativas de mapeamentos nas décadas de 1980, 1990 e início dos anos 2000. Outras fontes de informação e pesquisa sobre os museus catarinenses foram as publicações do “Guia de Museus de Santa Catarina (1ª e 2ª edições)”, sendo o primeiro formatado pela extinta GEOMU/FCC e publicado em 2001 e o segundo organizado e publicado pelo SEM/SC em 2008. De acordo com a publicação “Museus em Números”, a divulgação dos dados da primeira pesquisa transnacional de museus realizada pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM/ UNESCO), denominada “Basic Factsand Figures: illiteracy, education, libraries, museums, books, newspapers, newsprint, filmand radio” 8 (1952), influenciou o Brasil numa rotina de publicações sobre museus em forma de guias: Não nos parece coincidência que a data de impressão do primeiro guia de museus no Brasil tenha ocorrido três anos após o trabalho inicial da UNESCO, e nem que sua edição tenha sido realizada pelo Ministério das Relações Exteriores, em inglês. Produzido por Heloísa Alberto Torres, em 1953, o Museums of Brazil é o resultado da compilação de dados provenientes do Arquivo do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), da Divisão de Estatísticas do Ministério da Educação e Saúde, e do Museu Nacional, instituição da qual a pesquisadora era diretora. No prefácio da publicação, Heloísa Torres faz menção Documento que oficializa a parceria do Sistema Estadual de Museus com as instituições museológicas, os sistemas municipais de museus, as universidades que mantêm cursos relativos ao campo museológico e as entidades organizadas vinculadas ao setor. Essa adesão estimula a articulação entre o poder público e a sociedade civil, aumenta a visibilidade institucional e favorece a melhoria da gestão e da configuração do campo museal. 8 Tradução livre: Números e fatos básicos: o analfabetismo, educação, bibliotecas, museus, livros, jornais cinema e rádio. A pesquisa fez o levantamento da quantidade de instituições museológicas em 52 países e tinha o objetivo de registrar informações capazes de auxiliar na padronização de definições, classificações e métodos para a coleta de dados. 7

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a dados recebidos que não foram incluídos no trabalho, por serem considerados “vagos e, em alguns casos, contraditórios” sem, no entanto, mencionar o instrumento para a coleta dessas informações. Na obra, 175 instituições museológicas foram agrupadas por natureza administrativa, tipologia utilizada pelo SPHAN à época (IBRAM, 2011, p. 8). Já a necessidade de informações mais aprofundadas sobre identificação e análise das práticas museológicas nos museus foi levantada no Brasil no início dos anos 2000 por Myrian Sepúlveda dos Santos. É o que ela aponta quando afirma que: Apesar de mais de 80% dos museus brasileiros serem ainda instituições públicas, nós não encontramos na esfera governamental, no âmbito municipal, estadual ou federal, nem levantamento de dados sobre os museus existentes, nem estudos ou avaliações sobre as práticas desenvolvidas por eles. (SANTOS, 2002, p. 53). Entre os anos de 2011 a 2013, durante o período de elaboração do Plano Estadual Setorial de Museus, ficou latente a necessidade de obtenção de informações não mais empíricas sobre os museus em Santa Catarina. Surgiu, portanto, paralelamente, o processo de criação de um cadastro de museus em âmbito estadual, como consequência da escassa produção de informações sistêmicas e periódicas sobre os museus até o referido momento. O SEM/SC necessitava saber, além do número de museus instalados no estado, informações qualitativas sobre essas instituições. A partir de 2013, portanto, foi dado início à criação e organização de uma pesquisa para levante de informações sobre o “ser e o fazer” dos museus no estado, com informações quanti-qualitativas que facilitassem a identificação de projetos prioritários para a área. A execução do Cadastro Catarinense de Museus (CCM) foi dividida em quatro etapas, sendo elas: coleta de dados; organização da informação; retorno aos museus e à sociedade sobre os dados coletados; análise e pesquisa para gerenciamento da informação. Para tanto, a equipe adotou como estratégia de pesquisa a aplicação de um formulário eletrônico. Esse questionário foi organizado em seis blocos informacionais, totalizando 96 perguntas, sendo eles: Identificação (24 questões); Institucional (16 questões); Estrutura e Funcionalidade (29 questões); Atividades Museológicas (20 questões); Responsável pelo preenchimento do cadastro (5 questões); Avaliação (2 questões). Para que fosse possível aplicar o formulário, optou-se por utilizar uma ferramenta livre disponível na Internet, o Google Docs, que possibilitou aos museus fácil acesso ao formulário por meio da homepage da FCC9 e envio de suas informações em meio digital. Outro ponto muito importante que validou a decisão do SEM/SC em utilizar essa ferramenta foi a possibilidade de exportação dos dados coletados e sua futura integração às demais Link para acesso ao formulário do Cadastro Catarinense de Museus disponível na Internet: http://www.fcc.sc. gov.br/patrimoniocultural//pagina/16649/cadastrocatarinensedemuseus

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plataformas de gerenciamento de informações culturais planejadas pela FCC, e que serão incorporadas ao Sistema Estadual de Indicadores Culturais (SEEIC). Sabendo dos desafios frente ao tamanho do formulário e às limitações da ferramenta adotada, foi elaborado um caderno de orientações10 com o intuito de dinamizar e facilitar a pesquisa por parte dos museus. O seu conteúdo era formado pelas 96 perguntas do formulário, além de uma indicação de metodologia de trabalho aos respondentes, sugerindo pesquisar e reunir previamente as informações solicitadas. Também faziam parte do compêndio orientações acerca do procedimento para acesso e envio dos dados e um glossário museológico. Essa publicação foi impressa e enviada a museus, prefeituras, fundações culturais e universidades do estado. Figura 5: Fragmentos do formulário do Cadastro Catarinense de Museus.

Figura 6: Fundação Catarinense de Cultura (FCC)

O lançamento do Cadastro Catarinense de Museus ocorreu durante o 4º Fórum de Museus de Santa Catarina (2013), em Florianópolis, na apresentação da mesa-redonda intitulada “A política museológica do Estado de Santa Catarina: avaliação e projeções do SEM/SC”. Na oportunidade, foram realizados o balanço das ações empreendidas e as prospecções de projetos futuros do Sistema – dentre eles o CCM. Após o lançamento foi expedida aos museus, às prefeituras, fundações culturais, universidades e aos órgãos vinculados à área museológica uma correspondência solicitando participação

Link para acesso ao Caderno de Orientação ao Cadastro Catarinense de Museus na Internet: http://www.fcc. sc.gov.br//arquivosSGC/Cadastro_Museus_18x24cm_web.pdf 10

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na pesquisa e encaminhando o caderno de orientação, com o intuito de não apenas obter o retorno dos museus já aderidos, mas também de identificar novos museus. 3. RESULTADOS E REFLEXÕES PRELIMINARES Ao final da data corte da pesquisa (março de 2015), foram iniciados os estudos e a organização para mensuração dos dados até então coletados. Nessa organização e checagem, identificou-se a existência de 258 museus em Santa Catarina, sendo que destes, 193 instituições estão aderidas formalmente ao SEM/SC e os demais se enquadram como mapeados (reconhecimento da existência do museu, mesmo sem adesão ao Sistema). Também foram identificadas propostas de criação ou implementação de instituições museológicas no estado. O quadro abaixo traz as informações detalhadas: Quadro 1: Informações sobre museus aderidos ao SEM/SC e mapeados em Santa Catarina

1 2 3

Museus aderidos ao SEM Museus mapeados ativos Museus mapeados inativos Museus mapeados extintos Projeto / propostas de museus

93 42 23 13 22

Ainda vale ressaltar que, dos 193 museus aderidos ao SEM/SC, 140 responderam e 53 deles não atenderam ao chamamento da pesquisa, denotando uma participação de mais de 72% das instituições pertencentes à rede ― um índice considerado satisfatório. Verificou-se também a identificação de 15 novos museus, denominados assim por não constarem nos índices de museus mapeados e por não estarem aderidos oficialmente a nenhum sistema, como o SBM. A tabela abaixo apresenta os índices citados:

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Quadro 2: Detalhamento sobre a distribuição dos museus em território catarinense

Museus em Santa Catarina Região

Área Territorial (km2)*

População *

Municípios *

Municípios com museus

Museus por região

Museus mapeados

Aderidos ao SEM/SC

Respondeu ao CCM

Novos Museus CCM

Oeste

15.119

732.263

76

25

34

4

28

23

2

Meio-Oeste

12.792

475.616

43

24

30

7

21

14

2

Serra

22.132

403.750

30

7

13

2

10

8

1

Sul

9.594

906.927

45

24

38

5

31

19

2

7.041

1.091.157

22

11

48

11

36

26

1

13.003

1.509.273

53

21

57

12

40

30

5

15.938

1.311.341

26

14

38

9

27

20

2

295

126

258

50

193

140

15

Gde Fpolis Vale Itajaí Norte

TOTAL

* Fonte: IBGE (2012)

Um ponto digno de registro sobre o CCM é seu caráter pedagógico, pois, no momento de coleta das informações e de responder ao formulário, os museus se questionaram sobre sua atuação ou sobre suas missões institucionais. Nesse sentido, durante o processo de contato com os museus para sensibilizá-los sobre a necessidade de encaminharem suas informações para pesquisa e, logo após, na análise dos formulários, foram identificadas várias instituições aderidas ao SEM/SC que não se enquadram ao conceito de museu, de acordo com a legislação brasileira para o campo. Algumas dessas organizações se configuram em outras tipologias de instituições de preservação de memória, como é o caso de centros de documentação, arquivos ou até mesmo setores administrativos de gestão cultural dos municípios. Já as informações qualitativas que aprofundam o conhecimento sobre a atuação dos museus estão em fase final de mensuração e deverão ser publicadas ainda no primeiro trimestre de 2016. Caberá ao SEM/SC, nesse caso, a discussão com o seu Comitê Gestor sobre novos procedimentos para adesão e registro de instituições ao SEM/SC, bem como a implantação de um projeto de certificação que estabeleça nivelamentos dessas instituições, segundo critérios específicos, até atingir o patamar exigido pelas normatizações nacionais e internacionais para museus. Essa mensuração inicial, aliada com outros dados obtidos pelo CCM, apresentou ao SEM/SC números e indicadores de um cenário bastante desafiador. Novas discussões estão sen1599

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do geradas na equipe e certamente irão guiar os gestores a prospectar e implementar políticas públicas com mais qualidade e que atendam às especificidades apontadas pelo cadastro. O perfil predominante entre os museus catarinenses aponta para organizações de pequeno porte, com natureza jurídica pública, ligadas aos poderes públicos municipais. Os acervos são predominantemente históricos, antropológicos ou etnográficos acerca de processos migratórios e colonizadores ocorridos no sul do Brasil na segunda metade do século XIX e início do século XX. Estas características refletem um perfil ainda conservador do campo museológico em Santa Catarina. Ainda durante o desenvolvimento do CCM foram registrados e observados alguns aspectos sobre os museus e a atuação do SEM/SC, sendo reflexões de grande valia para a análise e o amadurecimento do campo museal de Santa Catarina. O primeiro aspecto diz respeito ao envio das informações por parte dos museus: embasados pelo conhecimento prévio das instituições existentes, foram constatadas várias situações em que os dados enviados ao SEM/SC não estavam condizentes com a realidade; assim como se verificou que muitos campos ficaram sem resposta por falta de pesquisa na própria documentação do institucional do museu. Em algumas situações foi necessária a realização de uma, duas e, por vezes, até três validações (presencial, telefone ou via e-mail) para certificação de determinada informação. Por conta desse trabalho muitos gestores de museus conseguiram vislumbrar as responsabilidades técnicas, operacionais e sociais de uma instituição museológica. Outro ponto é a necessidade da criação de uma plataforma eletrônica para a transposição dos dados coletados e o consequente gerenciamento das informações, viabilizando sua constante atualização e dando acesso à sociedade a esse conteúdo para conhecimento e desenvolvimentos de futuras pesquisas. A iniciativa do SEM/SC em implementar um mapeamento denso sobre a realidade museológica no estado inspirou e motivou outros sistemas de museus a implementarem esse programa, como é o caso do Sistema de Museus do Sergipe, Sistema de Museus do Rio de Janeiro e mais recentemente o Sistema de Museus de São Paulo, que estão em fase de organização do seu cadastro. O Cadastro Catarinense de Museus, possivelmente será uma ferramenta de qualificação das políticas públicas para o setor em Santa Catarina, sendo que o volume de informações geradas proporcionará pesquisas multidisciplinares ao campo museológico catarinense.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSELHO INTERNACIONAL DE MUSEUS. Código de Ética para Museus, 2004. BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Políticas Públicas no Brasil Contemporâneo: qual é o papel dos museus e dos Centros de Memória? Cadernos Tramas da Memória, v. 1, p. 115-126, 2011. DIMAGGIO, Paul, J. Construcción de um campo organizacional como um proyectoprofesional: losmuseos de arte de los Estados Unidos, 1920-1940. In: POWELL, Walter W.; DIMAGGIO, Paul J. (orgs). El nuevoinstitucionalismo em elanálisis organizacional. México: FCE, 1999, p. 333-361. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Museus em Números. IBRAM/MinC, Brasília, 2011. ESTADO DE SANTA CATARINA. Decreto Estadual 599/2011. Cria o Sistema Estadual de Museus de Santa Catarina. OLIVEIRA, Rafael Pereira. Políticas Culturais e o campo museal em Santa Catarina (1987- 2006). Dissertação de Mestrado de Curso (Mestrado em Administração). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei Federal 11.904/2009. Estabelece o Estatuto de Museus. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus brasileiros e política cultural. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, ANPOC, 2004.

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CONTRIBUIÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NA LUTA POR RECONHECIMENTO Mirnah Leite Medeiros Mascarenhas Andrade1 RESUMO: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre as políticas culturais como ações de reconhecimento de grupos minoritários. Tomando como base as reflexões e conceitos trazidos por Axel Honneth e Nancy Fraser sobre a Teoria do Reconhecimento, este trabalho analisa o Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, considerando o aspecto discursivo de seus princípios e objetivos, ponderando atributos que o localizam nesse debate. Neste sentido, procuro demonstrar que essas políticas funcionam como uma estratégia tanto num sentido materialista, quanto num sentido de proporcionar experiências intersubjetivas dos indivíduos beneficiados, contribuindo na construção de um campo favorável ao reconhecimento social. PALAVRAS-CHAVE: Cultura, Política Cultural, Diversidade Cultural, Programa Cultura Viva, Luta por Reconhecimento.

1. INTRODUÇÃO Este artigo tem o objetivo de refletir sobre como as políticas culturais podem ser avaliadas como ações de reconhecimento de grupos minoritários. O recorte escolhido abordará as políticas praticadas a partir do Governo Lula, período da história da política cultural brasileira onde o discurso da diversidade cultural e do respeito às identidades teve destaque e serviu como diretriz nas suas formulações. A partir de 2003, as discussões sobre cultura no âmbito do governo brasileiro passou por grande mudança na sua abordagem conceitual que orientou a transformação da sua prática política. A gestão que se iniciou no Ministério da Cultura (Minc) é considerada um período salutar para a história das políticas culturais brasileira, que desde seus primeiros momentos demonstrou um novo caminho para a gestão da pasta, definindo diretrizes mais abrangentes para a sua administração, pautando como premissa principal a escolha por se trabalhar baseado num conceito antropológico de cultura.

Aluna de mestrado do Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba PPGS-UFBP. Contato: [email protected]

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Desde sua posse, o ministro demonstrou atenção aos contextos de desigualdade que estão nas bases do nosso país e indicou a necessidade de mudança dessa realidade: Temos de completar a construção da nação. De incorporar os segmentos excluídos. De reduzir as desigualdades que nos atormentam. Ou não teremos como recuperar a nossa dignidade interna, nem como nos afirmar plenamente no mundo. (GIL, 2003, s/p). Considerando os discursos adotados pelo Minc que recorrentemente orientam para a necessidade de transformação das injustiças sociais, neste trabalho utilizarei a experiência do Programa Cultura Viva, sobretudo no que diz respeito a sua concepção e princípios que o compõem, para compreender o alcance da contribuição desta política no tocante à luta por reconhecimento. Para tanto, utilizarei como referencial a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth, que parte dos processos de formação de identidade dos indivíduos através da interação social, para compreender de que maneira esse intercâmbio possibilita o reconhecimento e o “potencial de desenvolvimento moral e formas distintas de auto-relação individual” (HONNETH, 2003). Também utilizarei a contribuição de Nancy Fraser que propõe uma leitura mais materialista da mesma teoria, baseada na identificação das demandas de reconhecimento e redistribuição, conceitos que esclarecerei adiante. Por fim, procuro articular os conceitos desses teóricos com as possibilidades da política cultural como uma ferramenta nessa luta. 2. CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E RECONHECIMENTO Para falar de reconhecimento é necessário problematizar antes questões relacionadas à formação da(s) identidade(s) do indivíduo e como essa construção relaciona-se às suas experiências, à sua capacidade de ser ao mesmo tempo sujeito, objeto de “si mesmo” e sujeito social, de modo que se torna essencial trazer algumas contribuições elaboradas pela psicologia social. George Mead, em sua obra Spiritu, Persona e Sociedad (2009), fez um aprofundado estudo a este respeito e explicou que apenas através do olhar do outro ou do grupo social ao qual pertence é que o sujeito conforma a sua consciência enquanto tal e pode, indiretamente, experimentar a si mesmo e se ver como objeto de reflexão. Nesse ciclo individuo – interação social - consciência de si, a linguagem e a comunicação são imprescindíveis e, em certa medida, é o que proporciona esse processo reflexivo. O autor oferece uma explicação minuciosa da complexa construção do indivíduo a partir de estruturas que denomina “Yo” e“Mí”, onde este seria aquilo que assimila o comportamento social do(s) outro(s) e permite perceber qual o tipo de atitude mais recorrente ou socialmente aceita, enquanto aquele corresponde a parte mais reativa ou mais espontânea do sujeito, ao passo que consiste num lugar mais difícil de acessar (ou mais íntimo). Como num processo de conversação, essas duas camadas internas estão completamente relacionadas e sempre em processo de interação no contato com outros indivíduos (ou o “outro 1603

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generalizado”) e suas diversas atitudes sociais que passam a ser acumuladas na experiência dos indivíduos e conformam a “persona”. Esse contexto de interação e apreensão de normas sociais proporciona o duplo efeito de autoconhecimento e de aprendizado daquilo que lhe é direito e com isso pode reivindicar questões que serão legalmente cumpridas pelos demais. Assim, desenvolve-se a relação de reconhecimento social e “autorrespeito” ou “autoafirmação”. Em que pese não ser possível aprofundar aqui os estudos apresentados, é essencial compreender que para Mead esta relação não se encerra nos sujeitos, ao contrário, quanto mais se compreende a organização e o padrão social, mais possibilidades o sujeito tem de provocar mudanças sociais. Axel Honneth (2003), por sua vez, propõe reconstruir os conteúdos relativos ao reconhecimento a partir das teorias de Hegel e Mead, onde localiza três “formas de reconhecimento recíproco” (o amor, o direito e a solidariedade), que para ele carecem de maior atenção. Nesta etapa do trabalho nos valeremos das análises elaboradas no que se refere ao direito. Ao fazer um apanhado histórico do direito, ele nos revela como as relações jurídicas tradicionais estavam ligadas a um contexto social e dependia do status ocupado pelo indivíduo na sua comunidade, de modo que quanto mais estima social, maior o grau de reconhecimento dos seus direitos pela sociedade. Esse modus operandi se altera a partir de um processo histórico “que submete as relações jurídicas às exigências de uma moral pós-convencional; desde então, o reconhecimento como pessoa de direito [...] deve se aplicar a todo sujeito na mesma medida” (HONNETH, 2003), sendo conferidos assim, princípios universalistas, afastados da estima social e, portanto, de julgamentos relacionados ao apreço, afeição e comportamento individual. O autor se debruça então sobre as propriedades atribuídas ao ser humano que lhe confiram imputabilidade como sujeito de direito, afirmando que não existe uma resposta clara para a indagação e que, ao contrário, essas características tem a ver com a possibilidade de assumir certos “pressupostos subjetivos” e um conjunto de capacidades que são socialmente reconhecidas como próprias a um sujeito de direito. Neste sentido conclui que além da proteção das liberdades é necessário que o sistema jurídico assegure aos indivíduos os recursos e estruturas que lhe permitam acessar esse conjunto de saberes, o que evidencia uma luta social que resultou em grande medida na ampliação dos direitos individuais fundamentais. Para ele o reconhecimento está ligado, assim como em Mead, à ideia de autorrealização, que é sempre construído a partir de experiências intersubjetivas. Para preparar urna resposta a questão de como se constitui a experiência de desrespeito que subjaz a esses conflitos sociais, é necessária afinal uma curta explicação sobre a espécie de auto relação positiva possibilitada pelo reconhecimento jurídico. Parece natural começar abordando, com Mead, urna intensificação da faculdade de se referir a si mesmo como uma pessoa moralmente imputável, fenómeno psíquico colateral

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da adjudicação de direitos; assim como, no caso do amor, a criança adquire a confiança para manifestar espontaneamente suas carências mediante a experiência continua da dedicação materna, o sujeito adulto obtém a possibilidade de conceber sua ação como uma manifestação da própria autonomia, respeitada por todos os outros, mediante a experiência do reconhecimento jurídico. Que o auto-respeito é para a relação jurídica o que a autoconfianca era para a relação amorosa é o que já se sugere pela logicidade com que os direitos se deixam conceber como signos anonimizados de um respeito social, da mesma maneira que o amor pode ser concebido como a expressão afetiva de uma dedicação, ainda que mantida a distancia: enquanto este cria em todo ser humano o fundamento psíquico para poder confiar nos próprios impulsos carênciais, aqueles fazem surgir nele a consciência de poder se respeitar a si próprio, porque ele merece o respeito de todos os outros (HONNETH, 2003, p. 194). Por isso, Honneth demonstra que apesar da mudança de paradigma do Direito ao adotar princípios universalistas, ainda existe uma esfera relacionada à estima social que confere aos sujeitos “referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003). Para ele as mudanças sociais foram acompanhadas pela transformação da “honra” nas categorias de reputação e prestígio social, e sob seu prisma existe uma dimensão deste prestígio que o direito não dá conta de suprir apenas pelo princípio da universalidade, que se refere a auto realização que se constrói a partir de experiências mais subjetivas proporcionada pelo reconhecimento do outro. [...] a relação jurídica não pode recolher em si todas as dimensões da estima social, antes de tudo porque esta só pode evidentemente se aplicar, conforme sua função inteira, as propriedades e capacidades nas quais os membros da sociedade se distinguem uns dos outros: uma pessoa só pode se sentir “valiosa” quando se sabe reconhecida em realizações que ela justamente não partilha de maneira indistinta com todos os demais. (HONNETH, 2003, p.204). Neste sentido, o princípio do direito universal que permitiu criar o conceito de sujeito universal e de imputabilidade moral a todos os indivíduos, independente de status social, não garante as condições necessárias que possibilitam a construção de um sujeito de direito. Em sociedades compostas por diversos grupos sociais, cada grupo goza de graus de estima social diferenciados, que interferem diretamente na construção (ou não) do sentimento de auto realização dos sujeitos que para ele se estabelece a principalmente a partir do reconhecimento que possui dentro do seu contexto social. Nancy Fraser, intelectual que também se dedicou longamente à temática do reconhecimento, coloca a dimensão econômica juntamente com a dimensão cultural na centralidade deste debate. Para a autora a “luta por reconhecimento” foi o paradigma de conflito social que se

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consolidou no final do século XX, onde a questão identitária passou a ganhar um protagonismo maior que a questão de classe. A mudança na pauta de reivindicações é denominado por Fraser de “conflitos pós-socialista”. A autora propõe pensar a injustiça a partir de duas maneiras: a “injustiça econômica” e a “injustiça cultural ou simbólica”. A primeira se apresenta através da privação material, marginalização econômica e exploração, enquanto a segunda mostra-se no desrespeito, no ocultamento de determinadas culturas ou grupos sociais a despeito de outros e na dominação cultural (FRASER, 2006). Aqui surge a primeira e mais importante diferença entre Fraser e Honneth. Este advoga que todos os conflitos sociais têm como natureza primária a luta por reconhecimento. [...] Fraser, acredita que Honneth tenha subsumido as lutas por distribuição de renda ao reconhecimento. Diferentemente dele, ela irá propor uma perspectiva dualista de análise dos conflitos sociais com o objetivo de pensar um conceito de justiça social que agregue essas duas dimensões, possibilitando, assim, uma teorização da cultura no capitalismo contemporâneo. (MATTOS, 2004, p. 145). Para Fraser, não há como pensar o conflito social sem considerar estas duas esferas, que para ela são interligadas, se retroalimentam e reforçam as situações de desigualdade e injustiça social. Ainda assim, escolhe o caminho metodológico de tratar estes dois problemas separadamente, buscando mostrar sua inter relação, e apresentando as soluções específicas para as “demandas de reconhecimento”, voltadas para remediar as injustiças culturais, e as “demandas de redistribuição”, voltadas para as injustiças econômicas. Ela chama atenção para o fato de como, muitas vezes, as lutas travadas nessas duas esferas e os possíveis remédios para sanar as desigualdades existentes nesses campos podem ser contraditórias: enquanto as lutas por reconhecimento procuram destacar as diferenças de determinado grupo no intuito de valorar positivamente os aspectos que os distinguem, as lutas por redistribuição procuram apagar as diferenças na esfera econômica, com a finalidade de alcançar uma sociedade igualitária no que refere aos valores econômicos. Desta tensão ela localizou o que chamou de “dilema da redistribuição-reconhecimento”. De um lado, o movimento negro deve lutar contra a divisão do trabalho assalariado entre ocupações mal pagas, domésticas, corporais ocupadas pelas pessoas de cor e, as ocupações técnicas, administrativas e bem pagas ocupadas pelas pessoas brancas. Por outro lado, o movimento negro deve lutar contra o eurocentrismo e enfatizar a especificidade da cultura negra. (MATTOS, 2004, p.148). Importante destacar que as discordâncias entre Honneth e Fraser são relativas às questões conceituais da Teoria do Reconhecimento. Para o primeiro não há como falar em reconhecimento sem considerar as experiências intersubjetivas, que geraria o desenvolvimento de uma

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autoconfiança essencial para participação na vida social. “Honneth acredita que para afirmarmos que os conflitos contemporâneos são lutas por reconhecimento cultural é necessário, antes de tudo, averiguar quais são as formas morais relevantes de privação e sofrimento” (MATTOS, 2004). Enquanto para a segunda o “não-reconhecimento […] é analisado menos em relação às atitudes depreciatórias sofridas pelos indivíduos, mas mais pela análise de práticas discriminatórias institucionalizadas” (MATTOS, 2004). Fraser realiza uma análise mais materialista tanto sobre as formas como se operam as injustiças sociais, quanto na busca por formas de reversão dessa problemática. É importante nos localizarmos nesse debate, que a apesar de composto por argumentos discordantes, ambos serão utilizados para a análise das políticas culturais praticadas no Brasil baseadas no discurso da diversidade e da diferença, como instrumentos positivos na luta pelo reconhecimento. 3. POLÍTICA CULTURAL, DIVERSIDADE E RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA A política cultural instaurada no Brasil a partir de 2003 assume a cultura em seu sentido antropológico, segundo palavras do então ministro em seu discurso de posse (GIL, 2003). Admitir esse novo conceito significava abarcar a dimensão cotidiana da cultura. Neste sentido, a cultura está em todas as formas de relação humana que produzem alguma expressão simbólica, na vida cotidiana, nas relações dos sujeitos com os objetos, com outros sujeitos, com os locais. A proposta de novo paradigma colocou a diversidade cultural na centralidade do seu discurso, ao passo que assumiu a questão da diferença como elemento fundamental para compreensão da pluralidade cultural brasileira. Este movimento provoca um novo olhar sobre o campo cultural e consequentemente sobre a questão da identidade. Atentando para a importância das diferenças e da diversidade, Barbero observa: [...] algo de radicalmente diferente acontece quando o cultural assinala a percepção de dimensões inéditas do conflito social, a formação de novos sujeitos – regionais, religiosos, sexuais, geracionais – e formas de rebeldia e resistência. Reconceitualização da cultura que nos confronta com essa outra experiência cultural que é a popular em sua existência múltipla e ativa não apenas na memória do passado, mas também conflitiva e na criatividade atuais. (BARBERO, 2003, p. 297). Vale salientar que outros fatores contribuíram para a possibilidade de mudança de atitude no que diz respeito à política cultural brasileira. Primeiro, a insuficiência do modelo de gestão associado à política neoliberal que buscava desvincular a política cultural do Estado e aproximá-la

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do mercado (praticadas no Brasil na Era FHC)2; segundo as discussões acerca da diversidade cultural que estavam sendo articuladas internacionalmente , vide as ações da Unesco sobre o tema, motivadas principalmente pelas questões de circulação de bens culturais; e terceiro, é importante reconhecer a articulação e reinvindicação de movimentos sociais que provocavam a afirmação de suas diferenças identitárias, exigindo o seu reconhecimento, que pode ser notada na Constituição de 1988. Pode-se afirmar que no contexto brasileiro emergiram, principalmente no final do século XX, demandas pós-socialistas (para utilizar um conceito já apresentado), onde a questão identitária era protagonista das demandas sociais. O Minc parece ter compreendido tais demandas ao propor um novo modelo de pensamento e ação para a pasta, com uma abordagem que passou a reconhecer o debate sobre relações de poder dentro do campo da cultura, entendendo-o também como o lugar de tensão onde se operam desigualdades. Neste sentido, entre as diversas políticas implementadas, foi criado o Programa Cultura Viva em 2004, por meio da Portaria n. 156/2004, que sofreu alterações com o Decreto n. 6.226/2007 e, mais recentemente, tornou-se a Lei nº 13.018/2014, que institui a Política Nacional de Cultura Viva. Com texto inicial sucinto, o Programa deixa claro que se destina às minorias, designadas como “população de baixa renda; estudantes da rede básica de ensino; comunidades indígenas, rurais, quilombolas e gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais; agentes culturais, artistas, professores e militantes que desenvolvem ações no combate à exclusão social e cultural” (MINC, 2004). A política consiste em selecionar instituições que já trabalham com atividades culturais voltadas para estes públicos. As entidades selecionadas recebem incentivo do governo, correspondente a uma quantia de valor que deve ser aplicada em um plano de trabalho. O foco principal do Programa Cultura Viva estava na escolha de organizações da sociedade civil que já possuíssem histórico de atuação em suas localidades. Por meio de chamadas públicas, o governo federal escolhia quais organizações receberiam os recursos e poderiam executar as propostas delineadas nos planos de trabalho por elas apresentados.” (CALEBRE; LIMA, 2014, p. 2)

O contexto neoliberal deixou como legado a primeira lei de isenção fiscal para a cultura, a Lei Sarney, que foi reformulada no governo Collor, tornando-se a Lei Rouanet. O governo FHC, por sua vez, deu maior atenção ao papel articulador do Estado, no intuito de consolidar esse mecanismo como a política de fomento à produção cultural. O modelo aproximou o setor privado do campo cultural, que teve como consequencia a submissão deste pela dinâmica mercadológica embasada na lógica do marketing, Consolidando assim, um modelo de incentivo baseado no retorno comercial que não atingia todas as demandas do setor cultural, deixando de lado principalmente as expressões mais distantes das linguagens artísticas, que não conseguiram se institucionalizar nesse contexto neoliberal, que marginaliza a cultura produzida em locais sócio-economicamente desfavorecidos, que por conta da desigualdade e de outros aspectos, não se configuram como criadores de bens culturais vendáveis.

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Após dez anos de política e das diversas experiências acumuladas3, a criação da Lei modificou os termos da Portaria para abranger ainda mais o público contemplado, que muitas vezes não eram aqueles nominados no instrumento anterior. Deste modo a lei reformulou o alcance do seu público, deixando mais claro os seus objetivos, conforme observamos: Art. 2º São objetivos da Política Nacional de Cultura Viva: I - garantir o pleno exercício dos direitos culturais aos cidadãos brasileiros, dispondo-lhes os meios e insumos necessários para produzir, registrar, gerir e difundir iniciativas culturais; II - estimular o protagonismo social na elaboração e na gestão das políticas públicas da cultura; III - promover uma gestão pública compartilhada e participativa, amparada em mecanismos democráticos de diálogo com a sociedade civil; IV - consolidar os princípios da participação social nas políticas culturais; V - garantir o respeito à cultura como direito de cidadania e à diversidade cultural como expressão simbólica e como atividade econômica; VI - estimular iniciativas culturais já existentes, por meio de apoio e fomento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; VII - promover o acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural; VIII - potencializar iniciativas culturais, visando à construção de novos valores de cooperação e solidariedade, e ampliar instrumentos de educação com educação; IX - estimular a exploração, o uso e a apropriação dos códigos, linguagens artísticas e espaços públicos e privados disponibilizados para a ação cultural. Art. 3º A Política Nacional de Cultura Viva tem como beneficiária a sociedade e prioritariamente os povos, grupos, comunidades e populações em situação de vulnerabilidade social e com reduzido acesso aos meios de produção, registro, fruição e difusão cultural, que requeiram maior reconhecimento de seus direitos humanos, sociais e culturais ou no caso em que estiver caracterizada ameaça a sua identidade cultural (MINC, 2014). Realizo uma breve análise dos objetivos do Programa em três dimensões em que a política cultural que estou me referindo consolidou seu discurso: Econômica, Simbólica e Cidadã. A partir disso, procurarei demonstrar sua articulação na luta pelo reconhecimento No âmbito econômico, o Programa configura-se numa ação de pulverização de recursos financeiros disponíveis para cultura, de modo a distribuí-lo aos grupos que tradicionalmente não tinham acesso aos mecanismos de financiamento destinados à cultural e, portanto, estavam marginalizados dentro da cadeia da produção cultural. É um instrumento material com intenção de De 2005 até o ano de 2011 o programa fomentou juntamente com os municípios e estados parceiros 3.670 Pontos de Cultura, nos 26 estados da federação (informações do site do Ministério da Cultura).

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reconhecer a diversidade de agentes fazedores de cultura e o contexto de desigualdade existente entre eles, além de garantir minimamente que estes grupos possuam condição de produção e fruição de bens e expressões culturais. Um segundo aspecto a se considerar é que esta facilitação para acessar os recursos é uma maneira de fomentar a produção cultural e, portanto, a produção simbólica intencional desses grupos culturais, numa tentativa de fazer brotar ou potencializar a diversidade de criação e encarar as diferenças provenientes dos contextos da diversidade. Estabelecer “como beneficiária a sociedade e prioritariamente os povos, grupos, comunidades e populações em situação de vulnerabilidade social e com reduzido acesso aos meios de produção, registro, fruição e difusão cultural”, significa priorizar àqueles que foram historicamente esquecidos quanto a sua capacidade de trabalhar na reflexão dos seus próprios referenciais culturais (MINC, 2014). O Cultura Viva parece compreender essas mediações plurais e inclusivas, na medida em que promove a inclusão e a articulação entre os diversos segmentos étnicos e culturais, por meio de Teias, seminários, estímulo à formação de redes, e potencializa as diversas manifestações culturais locais nas comunidades (BARROS; BEZERRA, 2014, p. 126). Por fim, a terceira esfera que quero considerar, é a esfera cidadã ou a esfera do direito à cultura, princípio marcante nos objetivos do Programa e nas ações que compunham a nova configuração do Minc. O entendimento da cultura enquanto direito e a abrangência disso para a criação de uma cultura de participação política nos processos de tomada de decisões, a partir da criação de fóruns e conselhos e instâncias de participação, foram estimuladas no intuito de aproximar e considerar a sociedade civil na política pública. Autonomia, protagonismo, empoderamento, gestão em rede e gestão compartilhada são conceitos e práticas implementadas pelo Ponto de Cultura, que foram sendo apropriadas nos discursos e significados pelos agentes participantes do Programa. Os conceitos estão ligados à cidadania e à conquista de direitos, à emancipação de grupos e comunidades, à capacidade de gerar emprego e renda e à possibilidade de articulação e participação social. Somados às novas categorias, foi aplicado o conceito de gestão compartilhada, gestão em rede, ou ainda, gestão transformadora para os Pontos de Cultura (MINC, 2004; TURINO, 2009, apud BARROS; BEZERRA, 2014, p. 126). À luz de Fraser, é possível localizar nessa política, estratégias que buscam suprir tanto as demandas de reconhecimento como as demandas de redistribuição. No que tange ao mecanismo de incentivo financeiro, marcado pela pulverização dos recursos para diversos grupos, podemos caracterizar a política como um remédio voltado para a demanda de distribuição, visto que os agentes beneficiados sempre estiveram à margem da indústria e dos espaços onde circulam os recursos que propulsionam a produção cultural do país. De outro lado, observamos o reconhecimento das características identitárias e das especificidades simbólicas desses grupos. Isso 1610

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está presente no próprio caráter da política que visa proporcionar a possibilidade de produzir e expressar-se simbolicamente através da realização de ações culturais, como também pode ser notado quando o ministério lança mão de instrumentos que estimulam a iniciativa de grupos identitários, como os editais para Pontos de Cultura Indígena. Com isso, a política também pode ser caracterizada como um remédio para as demandas de reconhecimento, onde através da produção cultural, os grupos podem gerar uma auto afirmação de suas identidades e produzir agendas positivas sobre eles próprios. Em um primeiro olhar, considerando o Programa como específico da pasta da cultura e de alcance restrito a este campo, e levando em conta a estratégia de redistribuição de recursos financeiros, esta política poderia ser avaliada como “remédio afirmativo para injustiça”, voltado para “corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra”, não tendo, entretanto, a força dos “remédios de transformação” que, para a autora, agiriam “precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente” com uma mudança mais impactante nas estruturas sociais (FRASER, 2006). Honneth, por sua vez, compreende que as lutas contra injustiças não estão essencialmente ligadas às questões materiais e são, antes, lutas “pelo reconhecimento d[o] que expectativas intersubjetivas [que] não foram consideradas ou cumpridas” (MATTOS, 2004). Portanto, tomando-o como referência e considerando a cultura também como expressão de subjetividade humana, o Programa Cultura Viva pode representar uma política de reconhecimento de expressões culturais diversas, que vem possibilitando o convívio e a troca de ações e expressões simbólicas em contextos fragilizados que historicamente foram marginalizados, subjugados ou simplesmente ignorados. Também a ideia de direito cultural que é uma característica marcante dessa política, nos leva a pensar na forma do direito colocado por Honneth, considerando que pela primeira vez o Estado assume a proposição de que qualquer cidadão tem o direito de produzir e fruir de bens culturais, constituindo-se assim num direito universal que reverbera em reconhecimento dos indivíduos. Toda a dinâmica da luta pelo reconhecimento, para Honneth, parte da relação entre não-reconhecimento e posterior reconhecimento legal. Posto de outro modo: toda luta por reconhecimento dá-se por uma dialética do geral e do particular. Afinal, é sempre uma particularidade relativa, uma “diferença” que não gozava de proteção legal anteriormente que passa a pretender tal status. Esses conflitos, no entanto, são percebidos num sentido completamente pré-político. É nesse sentido que Honneth, contra Fraser, imagina uma experiência de “desrespeito” como estando na base de todo conflito social (como Taylor). (MATTOS, 2004, p. 160) Isto tudo me leva a avaliar o Programa Cultura Viva como uma iniciativa que vai além de uma ação afirmativa que procura amenizar desigualdades pontuais ligadas a redistribuição

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e reconhecimento. Tendo a avalia-la como uma ação de transformação, não direcionada para suprir carências materiais, mas porque o mecanismo que procura amenizar essa carência tem como principal objetivo a promoção dos referenciais simbólicos de grupos distintos, que num exercício contínuo, podem resultar em experiência positivas na intersubjetividade que proporcionam auto estima e auto afirmação dos sujeitos. 4. CONCLUSÃO O Programa Cultura Viva está entre as políticas do Minc que melhor traduziu o discurso desta gestão. Na prática, imensos equívocos foram cometidos (ao longo desses anos) na implementação e execução da política, que acarretaram em situações de grande desgaste gerados por problemas com conveniamento, prestações de contas, atraso na liberação de recursos, entre outras questões que aqui não puderam ser abordadas, mas que merecem atenção, pois sem o esteio prático adequado, a operacionalização fica muito aquém do discurso proposto. Ainda assim, é essencial reconhecer que o Programa possui em seu princípio relevantes reflexões acerca da contribuição que o campo da cultura pode proporcionar para as lutas por reconhecimento e, por conseguinte, em mudanças sociais. Também é inegável que a política conseguiu reverberar o seu discurso e torná-lo realidade na esfera cultural à qual se destinava, ainda que sem a eficácia dos seus instrumentos de gestão. O que se mostra interessante é que, se na dimensão da ação, inúmeros problemas de gestão como prestação de contas, repasse, acompanhamento etc, são citados de forma crítica e negativa, podemos afirmar que, mesmo com todos esses problemas, o reconhecimento e a adesão ao Programa sempre foram significativos. Essa adesão passa pela aderência subjetiva, simbólica, ideológica, identitária e discursiva dos Pontos de Cultura ao Programa Cultura Viva. Assim, podemos afirmar que, do ponto de vista discursivo e simbólico, o Cultura Viva foi vitorioso na medida em que consolidou uma dimensão conceitual, identitária e ideológica de articulação entre os sujeitos e a política cultural (BARROS; BEZERRA, 2014, p. 126). Seu trabalho no campo do reconhecimento e empoderamento de atores sociais antes esquecidos, deve ser considerado no tocante à construção da autorrelação dos indivíduos e sua relação com o grupo, que além de passarem a ser institucionalmente reconhecidos como agentes culturais são protagonistas respeitados do seu próprio fazer cultural, da sua própria materialização de expressões simbólicas que representam seu grupo, o que nos direciona ao pensamento de Honneth: [...] as realizações, para cujo valor social o indivíduo pode se ver reconhecido, são ainda tão pouco distintas das propriedades coletivas tipificadas de seu estamento que ele não pode sentir-se, como sujeito individuado, o destinatário da estima, mas somente o grupo em sua totalidade. 1612

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A auto-relacão prática a que uma experiência de reconhecimento desse gênero faz os indivíduos chegar é, por isso, um sentimento de orgulho do grupo ou de honra coletiva; o indivíduo se sabe aí como membro de um grupo social que está em condição de realizações comuns, cujo valor para a sociedade é reconhecido por todos os seus demais membros. Na relação interna de tais grupos, as formas de interação assumem nos casos normais o caráter de relações solidárias, porque todo membro se sabe estimado por todos os outros na mesma medida; pois por “solidariedade” pode se entender, numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de vida, já que eles se estimam entre si de maneira simétrica”. (HONNETH, 2003, p. 208-209). Por fim, o reconhecimento institucional desses sujeitos também funciona como um fôlego para o enfrentamento de modus operandi excludente que opera, como nos mostrou Honneth, não apenas nas bases de demandas por redistribuição, mas principalmente de reconhecimento de subjetividades. Esta possibilidade de se ver e serem vistos remete à potencialização da capacidade de diálogo desses indivíduos com a sociedade, possibilitando questionamentos e proposições de mudança social, conforme assinalado por Mead: Podemos reformar el orden de cosas; podemos insistir en hacer que las normas de la comunidad sean mejores normas. No estamos simplemente obligados por la comunidad. Estamos dedicados a una conversación en la que lo que decimos es escuchado por La comunidad, y en la cual la reacción de ésta está afectada por lo que tenemos que decir (MEAD, 2009, p. 196).4

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBERO, Jesús Martins. Dos Meios à Mediação. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. BARROS, José M.; BEZERRA, Jocastra B. O Cultura Viva e sua potência discursiva. Políticas Culturais em Revista. Salvador, v. 7, n. 2, 2014, p. 118-135. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2015. CALABRE, Lia; LIMA, Deborah R. Do Do-In Antropológico à Política de Base Comunitária – 10 Anos do Programa Cultura Viva: uma trajetória da relação entre Estado e Sociedade. Políticas Culturais em Revista. Salvador, v. 7, n. 2, 2014, p. 6-25. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2015.

4 Podemos reformar a ordem das coisas; podemos insistir em fazer que as normas da comunidade sejam normas melhores. Não somos simplesmente obrigados pela comunidade. Estamos dedicados a uma conversação na qual o que dizemos é escutado pela comunidade e onde a reação desta é afetada pelo que temos a dizer (MEAD, 2009, p. 196. Tradução minha).

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FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Tradução de Júlio Assis Simões. Cadernos de Campo. São Paulo, v. 15, n. 14-15, p. 231-239, mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2015. MEAD, George H. Spíritu, Persona y Sociedad: desde el punto de vista del conductismo social. Tradução: Florial Mazía. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 2009. GIL, Gilberto. Discurso de posse do Ministro Gilberto Gil. Disponível em: . Acesso em: 1 nov. 2014. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. (trad. Luiz Repa). São Paulo: Editora 34, 2003. MATTOS, Patrícia. O Reconhecimento, entre a justiça e a identidade. Revista Lua Nova. São Paulo, n. 63, 2004, p. 143-161. Disponível em: . Acesso em: 25 jul. 2015. MINC. Programa Cultura Viva Legislação. Portal da Cultura. 2004. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2014.

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AS POLITICAS CULTURAIS DENTRO DA AGENDA GOVERNAMENTAL DE BOGOTÁ: UMA REFLEXÃO DESDE O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS Mônica Cristina Moreno-Cubillos1 RESUMO: Analisa-se a entrada das políticas culturais dentro da agenda decisória de Bogotá desde 1970 até 2005, a partir dos postulados do modelo de Múltiplos Fluxos proposto por John W. Kingdon. Descrevem-se quatro momentos principais nos quais a convergência dos três fluxos (problemas, soluções e político) abriu a janela política para provocar as maiores mudanças: a criação do Instituto Distrital de Cultura y Turismo, a cultura cidadã como elemento central dentro do plano de governo 1995-1998 e a formulação dos dois documentos de políticas culturais (2001-2003 e 2004-2016). Refleti-se sobre a influência de participantes dentro do governo para ativar o fluxo político e algumas falências no sistema de participação. PALAVRAS-CHAVE: Modelo dos Múltiplos Fluxos, Políticas Culturais em Bogotá, mudanças nas políticas públicas.

1. INTRODUÇÃO As políticas públicas são um campo complexo e às vezes contraditório, razão pela qual alguns autores, para facilitar a compreensão e a análise, falam do processo circular que seguem as políticas identificando diferentes momentos de ação. Em geral, existe um consenso que demarca seis movimentos principais: a constituição de issues ou questões, a formação da agenda governamental, a formulação, a adoção, a implementação e a avaliação da política. Na realidade, estes movimentos podem acontecer simultaneamente e implicam a mobilização de múltiplos sujeitos que não só fazem parte do governo. O objetivo deste artigo é refletir sobre como as políticas culturais têm entrado na agenda governamental e decisória da cidade de Bogotá até a formulação da política cultural vigente, tomando como base o modelo dos Múltiplos Fluxos proposto por John Kingdon. Por conseguinte, primeiro se explicará brevemente este modelo e aquele que precedeu sua construção. Depois, apresentar-se-ão as principais atividades em relação ao tema cultural desenvolvidas Administradora de empresas – Universidade Nacional da Colômbia. Mestranda em Políticas Públicas – Universidade Federal do Maranhão. Bolsista do CNPq e membro do Núcleo África e o Sul Global. E-mail: monica.m. [email protected] 1

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em Bogotá desde a década de 1970 até a formulação do documento de Políticas Culturales Distritales 2004-2016. Com estes dois elementos, delimitar-se-ão os períodos de maior impacto do desenvolvimento da cultura como objeto de políticas na cidade. Finalmente, apontar-se-ão algumas conclusões. 2. UMA EXPLICAÇÃO PARA AS MUDANÇAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS: O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS DE JOHN KINGDON Existem diferentes modelos enunciados por diversas correntes e autores que tentam explicar as mudanças nas políticas públicas. Um destes é a proposta do professor John W. Kingdon exposta em seu livro Agenda, alternatives and public policies publicado em sua segunda edição em 1995. Neste, o autor procura responder duas questões principais: por que alguns problemas se tornam importantes para um governo? e, como uma ideia se insere no conjunto de preocupações dos formuladores de políticas, transformando-se em uma política pública? (CAPELLA, 1996, p. 25). Baseado no modelo de Garbage Can ou Lata de Lixo proposto em 1972 por Michael D. Cohen, James G. March e Johan P. Olsen; Kingdon desenvolve o modelo conhecido como Multiple Streams ou Múltiplos Fluxos. 2.1. O modelo Lata de Lixo O modelo da lata de lixo é uma proposta alternativa ao modelo racional convencional de tomada de decisões para diferentes tipos de organizações (como universidades) as quais são descritas como “anarquias organizadas” caracterizadas por: ter preferências problemáticas, ou seja, uma coleção de ideias “sem estrutura coerente”; trabalhar sobre tecnologias confusas baseadas em prova e erro, e onde os processos não são totalmente entendidos pelos membros da organização e; contar com uma participação fluida de participantes que variam em quantidade de tempo e esforço (COHEN et al., 1972, p. 1). Este modelo estatístico percebe que as organizações operam sob incerteza e com alto grau de ambiguidade. Para entender este processo, a oportunidade de escolha pode ser vista como uma lata de lixo que contem diversos problemas e as soluções são jogadas fora pelos participantes no momento em que estas são geradas. Em um modelo racional convencional de tomada de decisões, as oportunidades de escolha conduzem primeiro à geração de alternativas de decisão, a análise das consequências e sua avaliação em termos dos objetivos e finalmente a tomada da decisão; mas isto na realidade não sempre acontece. No modelo de lata de lixo, as decisões são resultado ou interpretação de diferentes fluxos independentes dentro da organização. Alguns destes são: os problemas (preocupações das pessoas dentro e fora da organização), as soluções (produzidas pelos membros),

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os participantes (que entram e saem constantemente) e as oportunidades de escolha (que são ocasiões quando a organização espera produzir um comportamento que leve a uma decisão). Em palavras dos autores do modelo: The garbage can process is one in which problems, solutions, and participants move from one choice opportunity to another in such a way that the nature of the choice, the time it takes, and the problems it solves all depend on a relatively complicated intermeshing of elements. These include the mix of choices available at any one time, the mix of problems that have access to the organization, the mix of solutions looking for problems, and the outside demands on the decision makers (COHEN et al., 1972, p. 16). 2.2. O modelo dos Múltiplos Fluxos Para explicar as mudanças nas políticas públicas, Kingdon se centra nos estágios pré-decisórios do processo das políticas públicas: o estabelecimento da agenda e a construção de alternativas para a formulação (CAPELLA, 1996, p. 25). Nestes dois movimentos, duas categorias podem ajudar a explicar o porquê ocorrem as mudanças nas agendas e a especificação das alternativas: os participantes que estão ativos e os processos pelos quais questões e alternativas entram em destaque (KINGDON, 1995, p. 15). Os participantes ativos podem estar dentro e fora do governo e todos são fontes para identificar e dar relevância as questões ou para formular e escolher as alternativas na agenda. No interior do governo, Kingdom identifica quatro participantes principais. Primeiro, o Presidente (o chefe máximo do nível de governo) que pode dominar ou inclusive determinar a agenda política, mas não pode controlar as alternativas que são consideradas seriamente, assim como também não determina o resultado final da implementação. Segundo, os nomeados políticos que inclui o conjunto de funcionários de departamentos e agências que são designados pelo Presidente. Um dos grandes problemas deste grupo é sua impermanência. Terceiro, os funcionários públicos ou burocratas que são apreciados por ter a experiência necessária, a dedicação aos princípios consagrados nos programas, assim como um interesse na expansão dos mesmos e a continuidade em seu cargo. Contudo, eles não têm tanto poder como os funcionários do executivo para influir na agenda. Finalmente, o Congresso que é uma autoridade legal que administra informação homogênea e está definida para um período fixo de tempo. Por outra parte, “participants without formal government positions include interest groups, researchers, academics, consultants, media, parties and other elections-related actors, and the mass public” (KINGDON, 1995, p. 45). O estabelecimento da agenda, que envolve o processo que faz com que questões entrem em destaque, implica a transferência de questões desde a agenda não-governamental ou

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informal a uma agenda governamental formal e logo a uma agenda decisória ou política. “A primeira contém a lista de assuntos que são, há anos, preocupação do país, sem contudo merecer atenção do governo; a segunda inclui os problemas que merecem atenção do governo; a última, a lista dos problemas a serem decididos” (VIANA, 1996, p. 7). Assim como no modelo da lata de lixo, a agenda decisória é afetada por fluxos que segundo Kingdon são basicamente três. Primeiro, o fluxo de problemas expõe que certas condições se tornam definidas como tal quando as pessoas acreditam que se deve fazer algo sobre elas. Este não é simplesmente as condições ou eventos externos próprios, mas requerem um elemento de percepção e interpretação para sua construção (KINGDON, 1995, p. 110). As condições passam a ser definidas como problemas através de comparações de valores e categorias, sendo identificados através de indicadores sistemáticos, eventos “dramáticos”, a retroalimentação de programas já existentes que sugerem que as coisas não vão bem. Segundo, o fluxo de soluções ou alternativas é criado por comunidades políticas constituídas por especialistas, dentro e fora do governo, de uma área de política dada. As comunidades políticas variam tremendamente em graus de fragmentação gerando dificuldades de comunicação, integração e estabilidade. Desta forma, para que exista um consenso sobre uma solução se precisa de sua construção por meio da difusão de ideias e da persuasão. Finalmente, as chances de um problema a subir na agenda da decisão aumentam dramaticamente se uma solução está ligada a ele (KINGDON, 1995, p. 143). Terceiro, o fluxo político flui de acordo com sua própria dinâmica e suas próprias regras, independentemente dos fluxos de problemas e soluções. Viana (1996, p. 29) resume os fatores que o compõem em três elementos: o clima ou humor nacional que é uma situação na qual diversas pessoas compartilham as mesmas questões durante um determinado período de tempo, possibilitando solo fértil para que ideias germinarem; as forças políticas organizadas exercidas principalmente por grupos de pressão e; as mudanças dentro do próprio governo sendo o início de um novo mandato o momento mais propício para as mudanças na agenda. Finalmente, “consensus building in the political arena, in contrast to consensus building among policy specialists, takes place through a bargaining process rather than by persuasion” (KINGDON, 1995, p. 163). Por conseguinte, as transformações na agenda para a tomada de decisões são o resultado da convergência dos três fluxos descritos, abrindo uma oportunidade de mudança ou “janela política” onde os defensores de propostas podem conduzir suas soluções ou a atenção para seus problemas específicos. Em outras palavras, a união se dá quando um problema é reconhecido, uma solução está disponível e existem as condições políticas para tornar a mudança possível (VIANA, 1996, p. 30).

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3. AS POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS EM BOGOTÁ O tema cultural em Bogotá toma força desde finais da década de 1970, momento no qual no âmbito internacional também começa a ter transcendência a cultura como um eixo prioritário dentro do modelo de desenvolvimento. Depois da Declaração sobre os Princípios de Cooperação Cultural Internacional em 1966 e a Primeira Conferência Intergovernamental sobre os Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros das Políticas Culturais em 1970, ambos liderados pela UNESCO; em janeiro de 1978, celebrou-se a Conferência Intergovernamental sobre as Políticas Culturais em América Latina e o Caribe em Bogotá dando como resultado a Declaração com o nome dessa cidade que, segundo os registros das atas da UNESCO da XX Conferência Geral, ressaltou: [...] el desarrollo cultural debería tener en cuenta un mejoramiento global de la vida cultural del hombre. Esto se lograría con políticas destinadas a integrar más activamente a la juventud, a los habitantes del campo y la ciudad, y a la mujer en todo quehacer educativo, científico y cultural, a fin de fortalecer la magna tarea de la preservación y el desarrollo de la identidad cultural. Así mismo, se deberían iniciar acciones tendientes a la elaboración y práctica de una política cultural que fomentara la libre confrontación de los diversos componentes contribuyendo a la pluralidad cultural de la nación (PECHA QUIMBAY, 2006, p. 30). Assim sendo, as políticas nacionais e distritais foram ajustadas e o Instituto Distrital de Cultura e Turismo - IDCT de Bogotá foi criado com ânimo de promover, programar, integrar, coordenar e financiar as atividades culturais e turísticas, da mesma forma que os cenários culturais da cidade que estavam dispersos em diferentes agências. Os principais esforços do IDCT até a década de 1990 estiveram encaminhados à sustentabilidade de si mesmo dentro da estrutura pública distrital com uma sólida organização interna que pertimisse a realização de suas funções, embora os limitantes do nível orçamentário. Isto “significó que la entidad ocupara un perfil relativamente bajo dentro del gobierno distrital y se limitara a la administración de los espacios y escenarios que se pusieron bajo su jurisdicción por disposiciones del Concejo de Bogotá” (PECHA QUIMBAY, 2006, p. 52). 3.1. O auge das políticas culturais em Bogotá A década de 1990 esteve fortemente marcada pela preocupação em torno ao tema cultural, questão que foi incentivada pelo programa de ação da UNESCO para o Decênio Mundial para o Desenvolvimento Cultural 1988-1997. Através desta iniciativa, os Estados Membros adotaram quatro objetivos principais (UNESCO, 1990, p. 8): levar em conta a dimensão cultural do desenvolvimento, afirmar e enriquecer as identidades culturais, ampliar a participação na vida cultural e, promover a cooperação cultural internacional. Além disso, é necessário mencio-

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nar a mudança na Constituição Política da Colômbia em 1991 que transformou o conceito de atividade cultural para poder assimilar as diferentes manifestações de todos os colombianos em igualdade de oportunidade. Assim, [...] de la simple divulgación de las Bellas Artes se transitaría hacia una búsqueda sistemática de apoyo a las formas de expresión y de creación ciudadanas, así mismo, de una noción conservacionista del patrimonio se pasaría a un escenario en el que la defensa del patrimonio debería ser responsabilidad de todos los ciudadanos. [...] También se promovería la investigación cultural –limitada en ese entonces a disciplinas e instituciones– de la totalidad de los procesos socioculturales del país en una perspectiva interdisciplinaria que correspondiera con las políticas gubernamentales sobre ciencia y tecnología (PECHA QUIMBAY, 2006, p. 65). Como consequência destes novos lineamentos, o governo nacional promulgou o Plano Nacional de Cultura 1992-1994 “Colômbia: o caminho da paz, o desenvolvimento e a cultura para o século XXI” que propôs o estabelecimento do Sistema Nacional de Cultura e Desenvolvimento Institucional composto de Conselhos nacional, regionais, departamentais e municipais constituídos como organismos assessores para a formulação de políticas culturais. Desta forma, o Conselho de Cultura de Bogotá coordenava as atividades do IDCT e determinava os critérios para conferir os recursos para a promoção da cultura e as artes o que significou uma dinâmica de concertação entre a entidade distrital e os grupos objeto das ações. Em 1995, iniciou-se com o desenvolvimento do Sistema Distrital de Cultura abrindo este espaço à participação de todos os habitantes da cidade. Igualmente, o governo do prefeito eleito para o período 1995-19982 teve como foco central e transversal para sua gestão o Programa de Cultura Cidadã construído sob a hipótese de um divórcio entre a lei, a moral e a cultura constatado através da “carencia de aprobación moral o cultural de las obligaciones legales y aprobación cultural y/o moral de acciones ilegales” (MOCKUS, 1999, p. 4). Por meio das ações e projetos de educação cidadã impulsados neste Programa, procurou-se principalmente uma mudança consciente no comportamento, hábitos e costumes das pessoas mediante a autorregulação interpessoal em situações cotidianas como interações entre estranhos, e em contextos como o transporte público, o espaço público, as instituições públicas e a vizinhança. O resultado bem-sucedido das diferentes estratégias implementadas foi demonstrado mediante a redução das infrações às sinais e normas de trânsito, dos homicídios comuns e mortes em acidentes de trânsito com presencia de álcool no sangue, dos mortos e feridos com pólvora; e a censura social de comportamentos indevidos ou agradecimento por comportamentos destacáveis ou positivos manifestados em material simbólico, desarme voluntário, criação de Semilleros de Convivencia, interrupção de relações clientelistas, maior participação em eventos cultu Antanas Mockus Šivickas.

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rais3 e campanhas de poupança de água que permitiram superar a emergência de racionamento (MOCKUS, 1999). Em 1997, o governo nacional promulgou a Lei Geral de Cultura que além de regulamentar alguns artigos da Constituição de 1991 e estabelecer normas sobre o patrimônio cultural, fomentos e estímulos à cultura; transformou Colcultura no Ministério de Cultura, “lo que significaba para la cultura una presencia definitiva en las decisiones del Estado” (BRAVO, 2008, p. 128). Esta Lei foi objeto de discussão em foros onde foram escutadas vozes de diferentes setores a favor e em contra. Terminado o Decênio Mundial para o Desenvolvimento Cultural e depois das conclusões da Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento, liderada pela UNESCO (em Estocolmo em 1998), o plano do governo do prefeito para o período 199820014 centrou a execução de políticas culturais [...] en cumplir con una función de demostración de la ocupación de espacios públicos con actividades culturales, buscando así lograr un mayor sentido de pertenencia, mejorando significativamente los niveles de interacción entre los ciudadanos de diferentes estratos, generando una concepción de orgullo de lo que significaba ser ciudadano de Bogotá, contribuyendo de esta manera a la construcción de ciudad (PECHA QUIMBAY, 2006, p. 86). Desta forma, embora durante a década não se evidência uma continuidade nas políticas distritais em cultura, aprecia-se a relevância deste fator dentro dos planos de governo para melhorar a convivência e a percepção da cidade. 3.2. A formalização da política cultura da cidade Com o início do século XXI e a mudança novamente de governo local, os espaços de concertação para a formulação das políticas culturais criados com o Sistema Distrital de Cultura foram resgatados e ampliados. O IDCT liderou o funcionamento deste através de normas técnicas, administrativas e regulamentárias que ajudaram ao Sistema a promover transformações na relação entre o Estado e a cidadania, dando participação nos assuntos públicos a artistas, organizações e entidades culturais de natureza privada, pública ou mista. O resultado deste exercício participativo foi o documento sobre políticas culturais denominado “Bogotá em Ação Cultural 2001-2004” o qual partiu de dois pressupostos básicos: o reconhecimento da diversidade da cidadania5 e a multiculturalidade. As linhas temáticas que definiram o alcance das políticas foram a organização do Como os eventos al parque: Rock al Parque, Jazz al Parque, Rap al Parque; Septimazo; Música en los Templos; entre outros. 4 Enrique Peñalosa Londoño. 5 Acentuada pelas novas dinâmicas urbanas em Bogotá tais como o recebimento de vítimas do deslocamento forçado do conflito armado interno do país e o crescimento da cidade. 3

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setor cultural da cidade, a formação e a capacitação para o desenvolvimento cultural, a proteção e salvaguarda do patrimônio cultural, o fomento à arte e à cultura, a promoção e a divulgação da cultura, a gestão da infraestrutura cultural, e a investigação; assim, as estratégias que permitiram a implementação e o logro dos objetivos propostos se concentraram na descentralização, na participação, na comunicação, no financiamento e no controle social. Dentro dos resultados da implementação desta política se encontram a desconcentração da programação cultural com uma maior participação dos cidadãos os eventos públicos, em especial dos habitantes dos estratos sócio-econômicos 1 e 2; a consolidação de festivais públicos de música, dança e teatro; a difusão de programas culturais através do canal de televisão público da cidade possibilitando maior visibilidade das atividades; o aumento dos ingressos próprios do IDCT por gestão de eventos em espaços como o Planetário, a Cinemateca, entre outros; os concursos artísticos e o apoio a organizações e projetos culturais dentro dos quais se destacam as comparsas nos bairros; as parcerias com agentes públicos e privados para a prestação de serviços turísticos; a realização de atividades culturais e pedagógicas nos museus e bibliotecas; os programas de formação em artes plásticas, artes musicais e artes dramáticas; entre outros. Como se aprecia, os esforços se enfocaram na cultura como espetáculo e arte. Com a culminação do processo de “Bogotá em Ação Cultural 2001-2004”, publicaram-se as “Políticas Culturais Distritais 2004-2016” as quais mudam o discurso da multiculturalidade pela interculturalidade e procuram que a cidade se configure como líder em processos democráticos e participativos. Neste documento muda a concepção da cultura já não como campo da manifestação senão como campo real de ação de construção política (CORTÉS GÓMEZ, 2007). Esta perspectiva deu possibilidades aos cidadãos de decidir sobre as práticas e expressões que são relevantes para sua identidade, as formas de manifestação e o que consideram que deve se proteger pelo valor histórico, simbólico ou artístico para a comunidade, assumindo um respeito pelas diferenças dos habitantes de Bogotá (LONDOÑO et al., 2009 apud FERRO PULIDO, 2013, p. 47). Para a formulação deste documento se criou a Comissão de Políticas Culturais e se organizou ao interior do IDCT o Comitê de Políticas Culturais, realizaram-se oficinas de políticas públicas para conselheiros locais e seminários sobre o assunto. Finalmente, a concertação foi aprovada pelo Conselho Distrital de Cultura (FERRO PULIDO, 2013, p. 41). Observa-se que este documento foi um exercício de planejamento a mais longo prazo que excede o período de quatro anos de governo distrital. Além, esta vez, a política foi organizada em quatro eixos -legislativo, organizacional, comunicacional e da informação, e dos processos culturais, artísticos e do patrimônio- incorporados em cinco dimensões -formação, investigação, criação, circulação e apropriação-. Desta forma, desde 2004, os diferentes planos de governo têm contido o elemento cultural, cada um com diferentes níveis de relevância e transcendência, sujeitas aos objetivos de cada mandato.

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4. A CULTURA DENTRO DA AGENDA DECISÓRIA: MUDANÇAS NAS POLÍTICAS CULTURAIS EM BOGOTÁ Pode-se dizer que o tema cultural e as políticas culturais em Bogotá estiveram na agenda não-governamental até 1970. Depois deste ano se mantiveram na agenda governamental, mas existem momentos específicos onde pularam à agenda decisória pela convergência dos três fluxos definidos por Kingdon, abrindo a janela política para permitir as maiores mudanças ou as definições mais específicas sobre o tema. Desta forma, são identificados quatro anos de entrada da cultura na agenda decisória: 1978, 1995, 2001 e 2004. A continuação, vai se analisar cada um destes períodos identificando os três fluxos e os participantes que intervieram. 4.1. 1978: A criação do IDCT O fluxo de problemas se evidencia através de um evento “dramático”, a Conferência Intergovernamental sobre as Políticas Culturais em América Latina e o Caribe e o resultado desta, a Declaração de Bogotá. A solução que deu resposta às recomendações assinaladas foi a criação de uma instituição dentro da estrutura pública distrital que pudesse liderar dentro da cidade os processos e as atividades relacionados com a comunicação, a educação, a ciência e a tecnologia, elementos vinculados à cultura e seu desenvolvimento (UNESCO, 1978). O fluxo político foi favorável para a tomada de decisão graças a mudanças no humor nacional geradas pela mesma Conferência que propiciou a vontade política para a criação do instituto com destinação especial de orçamento para seu funcionamento. Os participantes que intervieram para a abertura desta janela se encontram principalmente no governo. O Prefeito da cidade foi quem apresentou o Projeto de Acordo que manifestava a necessidade de criar o Instituto Distrital para o Turismo, a Cultura, o Esporte e o Lazer. Esta proposta foi bem recebida pelo Conselho de Bogotá que mediante o Acordo 02 do 14 de Fevereiro de 1978 criou o IDCT (PECHA QUIMBAY, 2006, p. 32). Fora do governo, os participantes, segundo a classificação de Kingdon, que tiveram um papel importante foram os consultores, mais exatamente os organismos multilaterais como a UNESCO, através das recomendações, resultado de reuniões especializadas sobre o tema. 4.2. 1995: A importância da Cultura Cidadã e sua posição central dentro do plano de governo Outro momento em que a cultura entrou na agenda decisória do governo foi no ano 1995. O fluxo de problemas foi alimentado pelos resultados dos indicadores de convivência e seguridade que mostravam que a cidade tinha graves problemas de violência na resolução de conflitos e um elevado nível de infrações às normas que desencadeava mortes violentas por acidentes de trânsito e dificuldades de interação com as autoridades públicas. O fluxo de soluções foi definido

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mediante o Plano de Governo “Formar Ciudad (1995-1998)” que posicionou o programa de Cultura Cidadã como o pilar e primeira prioridade do governo distrital. Finalmente, as mudanças dentro do próprio governo com o início de um novo mandato foi o fator que ativou o fluxo político. Os participantes ativos dentro do governo foram novamente os nomeados políticos e os funcionários públicos que participaram na formulação e harmonização do Plano de Governo e o novo Prefeito eleito quem guiou a formulação e aprovou o Plano mediante o Decreto 295 do 1º de Junho de 1995. Fora do governo, ressalta-se o papel que exerceu a mídia para a comunicação intensificada, visibilidade e ajuda ao impulso da aceitação das novas propostas pelo público em geral (MOCKUS, 1999). 4.3. 2001: O primeiro documento de Políticas Culturais Distritais para a cidade Com todos os avanços em matéria cultural percebidos durante a década de 1990, o fluxo de problemas seguiu se consolidando. Resultado de indicadores de convivência, segurança e participação em atividades culturais públicas; retroalimentação dos Planos de Governo desde 1995 que mostraram sucessos na ação cultural para melhorar a imagem, visão e sentido de pertença na cidade; e eventos “dramáticos” como a promulgação da Lei Geral de Cultura em 1997 e a Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento da UNESCO em 1998, conseguiram novos consensos sobre os impactos da cultura na cidade e a relevância de contar com um documento guia que incluísse diferentes setores da população assim como princípios claros para a ação do Estado. A solução foi o documento “Bogotá em Ação Cultural 2001-2004” o qual é resultado da concertação desenvolvida dentro do Sistema Distrital de Cultura. O fluxo político foi impulsado esta vez graças a atuação de forças políticas organizadas dentro do Conselho Distrital de Cultura e dos Conselhos Locais de Cultura (regulamentados pelo Sistema Distrital de Cultura, o qual foi reativado com o início do período de governo em 2001) que ampliaram os espaços de participação direta nas políticas culturais. Para este caso, os participantes ativos dentro dos Conselhos são os definidos no Decreto 781 do 10 de Setembro de 1998. Na Tabela 1 se apresenta a divisão dentro / fora do governo para cada um dos tipos de Conselhos. 4.4. 2004: O documento atual de Políticas Culturais Distritais Finalmente, a última mudança significativa nas políticas culturais da cidade ocorreu em 2004. O fluxo de problemas foi sustentado pela retroalimentação do documento anterior e as mudanças na abordagem da cultura, já não desde uma perspectiva multicultural, mas intercultural. O fluxo de soluções foi o documento atual de Políticas Culturais Distritais 2004-2016, resultado da concertação esta vez realizada dentro da Comissão de Políticas Culturais criada e o

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Comitê de Políticas Culturais organizado para tal fim. O fluxo político novamente é produto de forças políticas organizadas combinado com o início de um novo período de governo. A Tabela 2 mostra os participantes que fizeram parte da Comissão de Políticas Culturais dentro e fora do governo nas duas edições publicadas. Como o Comitê de Políticas Culturais foi uma instância dentro do IDCT, este esteve conformado por nomeados políticos e funcionários públicos desta entidade. Tabela 1: Participantes ativos nos Conselho Distrital de Cultura e Conselhos Distritais Locais Decreto 781 de 1998 Participantes dentro do Governo

Prefeito eleito.

Participantes fora do Governo Grupos de interesse: Associações de jornalistas da cidade, representante da produção e os bens e serviços, representante das indústrias culturais, representante da corporação de artesãos da cidade, representante das ONGs culturais. Pesquisadores: Representantes de cada Conselho de áreas artísticas (música, dança, artes cênicas, artes plásticas e literatura).

Conselho Distrital de Cultura

Nomeados políticos: Diretor do IDTC e representante do Ministério de Cultura.

Funcionários públicos: Representantes das Prefeituras Locais.

Nomeado político: Prefeito local. Conselhos Locais de Cultura

Funcionários públicos: representante da Comissão de Cultura da Junta Administradora Local e representante do IDTC.

Acadêmicos: Representante da educação superior que desenvolva programas de formação cultural. Movimentos sociais: Representante das comunidades indígenas organizadas e representante das comunidades negras da cidade, representante do Conselho Distrital de Juventude, representante das associações culturais de pessoas com deficiência e representante de um povo que habite na cidade. Consultores: Representante do Conselho para a Proteção do Patrimônio Urbano de Santa Fé de Bogotá, representante do setor cultural, representante das Juntas de Acción Comunal. Público em geral: Representante da comunidade educativa. Grupos de interesse: Representante do setor cultural da Associação Cultural, representante de artistas locais, representante de Redes de Ação Local, representante da mídia local, representante das Casas de Cultura e Centros Culturais da localidade. Movimentos sociais: Representantes de organizações de mulheres, pessoas idosas e jovens com presencia cultural reconhecida e representante das comunidades negras. Público em geral: Representante de Gestores Locais independentes.

Fonte: Elaboração própria baseado no Decreto 781 de 1998.

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5. CONCLUSÕES É evidente que o modelo de Múltiplos Fluxos proposto por Kingdon reúne os elementos de decisão definidos no modelo de Laxa de Lixo delimitado por Cohen, March e Olsen. As variáveis básicas levadas em conta no modelo da Lata de Lixo são similares às organizadas por Kingdon em categorias para explicar as oportunidades de mudança nas políticas públicas, visto que as políticas são um tipo de decisão especial que envolvem e impactam não só a organização que toma a decisão, mas também a todo o grupo de habitantes dentro de um território. O modelo de Múltiplos Fluxos utiliza duas categorias para explicar as mudanças: os participantes ativos e o processo que faz com que questões entrem em destaque que agrupa os fluxos de problemas, soluções e política cuja convergência produz a abertura de uma janela política que permite a transformação. Tabela 2: Participantes ativos na Comissão de Políticas Culturais Participantes dentro do Governo

Participantes fora do Governo Grupos de interesse: Representante do setor de produção, bens e serviços; representante das Casas de Cultura e Centros Culturais, representante das ONGs culturais.

Comissão de Políticas Culturais 2003

Funcionários públicos: Delegado do Prefeito, delegado do Diretor do IDCT

Pesquisadores: Representante do Conselho Distrital de Dança. Acadêmicos: Representante do setor de estabelecimentos de educação superior. Movimentos sociais: Representante do setor das organizações indígenas, representante das associações culturais de pessoas com deficiência. Público em geral: Representante da comunidade educativa.

Comissão de Políticas Culturais 2005

Nomeados políticos: Diretor do IDCT, Subdiretor de Fomento às Artes e às Expressões Culturais.

Pesquisadores: Representante do Conselho Distrital de Audiovisuais, representante do Conselho Distrital de Artes Plásticas, representante do Conselho Distrital de Música. Movimentos sociais: Representante das organizações camponesas.

Fonte: Elaboração própria baseado em INSTITUTO DISTRITAL DE CULTURA Y TURISMO, 2005.

Na análise do caso das políticas culturais em Bogotá se constatou como a convergência dos três fluxos abriu a janela política em diferentes oportunidades possibilitando a entrada da questão cultural na agenda decisória, de forma tal que gradualmente se obtiveram avanços até a consolidação de um documento de política com visão de longo prazo. Neste sentido, vale a pena fazer um exame mediante modelos incrementais ou de equilíbrio pontuado para determinar o grado de variação das mudanças, dadas algumas reflexões encontradas em relação às diferenças

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entre os dois documentos de políticas culturais distritais desde 2001 e o impacto da participação da comunidade. Duas considerações sobre o processo são ressaltadas. Primeiro, uma observação sobre a convergência dos fluxos se refere à importância da ativação do fluxo político sem o qual não se abriria a janela política necessária para a mudança. Como se comentou, para que este fluxo se acionasse, sempre foi preciso que participantes dentro do governo tivessem interesse nas transformações. Nos quatro momentos identificados em que a cultura entrou na agenda decisória foi determinante o papel do Prefeito distrital e/ou seus nomeados políticos, sendo estes quem, com sua influência dentro do sistema político, impulsaram e puseram em destaque o fluxo de problemas. Com isto não se pretende desconhecer ou menosprezar a atuação de grupos de interesse ou movimentos sociais, só se busca questionar se a entrada na cultura na agenda decisória de Bogotá não teria sido possível sem a vontade dos líderes do governo distrital em cada época. Segundo, o Sistema Distrital de Cultura e suas distintas instâncias são uma forma de organização que procura a participação dos cidadãos na tomada de decisões sobre o desenvolvimento cultural. Nestes se quer representar diversos setores da comunidade e os interesses e prioridades dos grupos que atuam. Contudo, o sistema tem falências visto que a participação dos conselheiros se concentra em um número mínimo de eleitores que resulta em baixa representatividade e na busca de interesses individuais (quase que por desconhecimento dos interesses do grupo que representa) (RUBIANO PINILLA, 2009). Igualmente, [...] cabría recordar que en definitiva “La alcaldía local es quien toma las decisiones sobre cuáles son los proyectos que se ejecutan con un presupuesto local. Es el alcalde quien suscribe los actos administrativos. Todas las demás instancias y autoridades sólo ejercen presión sobre él. Ni la JAL, ni el Consejo Local de Cultura, ni los Encuentros Ciudadanos toman decisiones relevantes” (Bromberg, 2003 apud RUBIANO PINILLA, 2009, p. 94).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCALDÍA DE BOGOTÁ, D.C. Decreto 781, de 10 de septiembre de 1998. Por el cual se establece el Sistema Distrital de Cultura y los Sistemas Locales de Cultura. Registro Distrital 1736, Bogotá, D.C., Sep 10 1998. BRAVO, Marta Elena. Políticas Culturales en Colombia. In: RUBIM, Antônio Albino Canelas & BAYARDO, Rubens. (Orgs.) Políticas Culturais na Ibero-América. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 119-158. CAPELLA, Ana Claudia N. Perspectivas teóricas sobre o processo de formulação de políticas. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 41, 1996. p. 25-52. COHEN, Michael D.; MARCH, James G.; OLSEN, Johan P. A Garbage Can Model of Organizational Choice. Administrative Science Quarterly, v. 17, n. 1, Mar 1 1972. p. 1-25.

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CORTÉS GÓMEZ, Juan Alberto. Políticas culturales en Bogotá: Un análisis introspectivo frente a los límites y desafíos de la interculturalidad. Tesis (Maestría en Estudios de la Cultura - Mención en Políticas Culturales) - Área de Estudios Sociales y Globales, Universidad Andina Simón Bolívar - Sede Ecuador, 2007. 87 p. FERRO PULIDO, Luna Juliana. Garantía de los derechos culturales a luz de las políticas distritales de cultura. Tesis (Maestría en Derecho. Énfasis en Derechos Humanos y Derechos Internacional Humanitario) - Facultad de Derecho, Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacional de Colombia - Sede Bogotá, 2013. 111 p. INSTITUTO DISTRITAL DE CULTURA Y TURISMO. Políticas Culturales Distritales 2004-2016. Segunda. ed. Bogotá, D.C.: Alcaldía Mayor de Bogotá, 2005. 107 p. KINGDON, John W. Agenda, alternatives and public policies. Second. ed. New York: HarperCollins, 1995. 254 p. MOCKUS, Antanas. Armonizar ley, moral y cultura: Cultura ciudadana, prioridad de gobierno con resultados en prevención y control de violencia en Bogotá, 1995-1997. Publications - Inter-American Development Bank, 1999. 32 p. PECHA QUIMBAY, Patricia. Historia Institucional del Instituto Distrital de Cultura y Turismo, 19782003. 1a. ed. Bogotá, D.C.: Alcaldía Mayor de Bogotá, 2006. 124p. RUBIANO PINILLA, Elkin. Entre la apertura discursiva y la restricción participativa: un estudio de caso sobre las políticas distritales de cultura. Revista Comunicación y Ciudadania, n. 1, 2009. p. 82-95. UNESCO. Conferencia Intergubernamental sobre las Políticas Culturales en América Latina y el Caribe. UNESCO, París, 1978. 116 p. UNESCO. Decenio Mundial para el Desarrollo Cultural 1988-1997: Programa de Acción. UNESCO, Francia, Feb 14 1990. 51 p. VIANA, Ana Luiza. Abordagens metodológicas em políticas públicas. Revista de Administração Pública - RAP, v. 30, n. 2, 1996. p. 5-43.

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POLÍTICAS CULTURALES EN LATINOAMÉRICA. ENTRE LOS LÍMITES DE LA DEMOCRATIZACIÓN Y EL ANHELO DE LA DEMOCRACIA CULTURAL, PENSANDO EN “POLÍTICAS DE BIENES COMUNES”. Mónica Lacarrieu1 Mariana Cerdeira2 RESUMO: Las políticas culturales en el siglo XXI atraviesan la constante tensión entre el ideario de cultura como trascendencia y la cultura en sentido antropológica. Esta tensión, llevada al campo de la institucionalidad cultural, pone en escena discursos y prácticas, que conviven muchas veces de modo contradictorio: políticas de democratización cultural guiadas por la idea de acceso que no siempre es apropiación, políticas de democracia cultural que alientan la creación y producción cultural desde las distintas territorialidades, pero que no necesariamente se llevan a cabo en pos del desarrollo cultural y de una mayor participación ciudadana. Nos interesa focalizar en aspectos problemáticos que se reproducen en el campo de lo cultural, a pesar de los nuevos conceptos asociados a la cultura, y en el papel disputado que juegan algunos agentes culturales y aquellos relacionados al ámbito de lo estatal. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturales-políticas de acceso-democratización culturaldemocracia cultural-inclusión-ciudadanía.

La idea fuerza de nuestra gestión es no restringir la noción de cultura a lo que se llama una “política de las bellas artes”, sino incluir en ella lo que uno podría denominar “el arte de vivir (…) Hay que reinstalar el impuesto a la herencia para financiar la cultura (KOLESNICOV, 2006, p.37) Este párrafo es parte del discurso pronunciado por el ex Secretario de Cultura de la Nación Argentina, José Nun en el marco del Primer Congreso Argentino de Cultura que fuera realizado en Mar del Plata en 2006. Dicho fragmento producido desde el campo de la institucionalidad estatal, nos interpela con un discurso superador de la cultura como “trascendencia”, en el sentido asociado a las bellas artes y el patrimonio, es decir de la “cultura universal” definida por su calidad artística o por el componente conservacionista, ambos parámetros definitorios de Dra. en Filosofía y Letras (Antropología Social-UBA), CONICET-UBA, [email protected] Lic. en Sociología (UBA). Diplomada en Desarrollo Local y Territorial (FLACSO). Ministerio de Cultura de la Nación. [email protected]

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lo que han sido las políticas culturales durante buena parte del siglo XX. También es una bienvenida a la “cultura antropológica” en tanto concepto que supone expansión y amplitud. Ese desplazamiento retórico de la cultura de las bellas artes y la ilustración hacia la cultura antropológica, está estrechamente asociado al nuevo rol que tomaron algunos organismos de cooperación internacional, como Unesco, los que colocaron en la “cuestión cultural una preocupación global legítima”, fortaleciendo una “esfera pública cultural global” (ARANTES, 2007) en cuyo seno, la cultura comenzó a pensarse como un recurso transversal a otras áreas de la vida social. Esta visión expansionista proviene del intento de abrir el concepto estrecho de la cultura, fuertemente asociado al campo de las políticas culturales, dentro del cual, siguiendo a Ramiro Noriega3, «Lo bello, lo artístico y lo estético ha mantenido un tipo de relación con el poder”, vinculado a una cultura estrictamente relacionada a determinados sectores sociales. El mismo experto, quien fuera Ministro de Cultura de Ecuador, señala que «El siglo XX tuvo a la cultura como un espacio parcelado. Hoy hay que fracturar esa parcela y pensar en que la cultura en general es de interés general». Perspectiva ampliada que es posible visualizar en los discursos inaugurales de otros Ministros latinoamericanos, brindados en los últimos años, como Gilberto Gil (nombrado en cultura en el inicio del gobierno de Lula, 2003-08) y Teresa Parodi (Ministra de Cultura de Argentina en el período 2014-2015 ). Yo soy la elección práctica y simbólica de un hombre del pueblo, de un negro mestizo…de un artista…sacar de la distancia el ministerio para meterse en el día a día de los brasileros….que sea realmente la casa de la cultura brasilera….Lo que entiendo por cultura va mucho mas allá del ámbito restrictivo de las concepciones académicas o de los ritos de una supuesta “clase artística e intelectual”. Cultura no es solo una especie de ignorancia que distingue a los estudiosos (...) Cultura mas allá del valor de uso, de lo técnico, cultura como usina de símbolos del pueblo (…) Desde esta perspectiva, las acciones del Ministerio de Cultura deberán ser entendidas como ejercicios de antropología aplicada. (GIL, G., Discurso inaugural, 2003. El resaltado es nuestro). Soy mujer, soy del interior, represento la diversidad musical de este país, porque no solo soy del litoral, sino que tengo una formación de folklorista….que la cultura llegue hasta el último rincón del país… hablé con la gente, los escuché. A veces se usa la palabra “interior” peyorativamente, pero para mi tiene un significado ser del interior profundo ¿por qué no desaparecieron los pueblos originarios? Porque supieron conservar su cultura, traspasarla, oralmente de unos a otros. Eso demuestra que la batalla cultural hay que pelearla, porque define un país….. (PARODI, T. Discurso inaugural, 2014. (el resaltado es nuestro). La experiencia en Ecuador. Entrevista a Ramiro Noriega en Cultura Pública y creativa. Ideas y Procesos, Maria Elena Troncoso (Comp.). Ministerio de Cultura de la Nación. Argentina. 2014.

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Tanto Gil como Parodi –ambos músicos-, parten de un lugar similar: su posición personal asumida en torno de la diferencia –es evidente que no solo la música los ubica en el cargo (de acuerdo a lo dicho por ellos mismos), sino el color, el género, e incluso el territorio y el pueblo de donde provienen-. El color y el género remiten a los debates que en la contemporaneidad atraviesan el campo de la cultura: la valorización de la diversidad, el multiculturalismo y/o la interculturalidad. La territorialidad y el pueblo se vuelven parámetros de “llegada a las poblaciones locales”, de una posible descentralización y democracia cultural. Si bien, ambos discursos tienen “aires de familia”, es en el primero en que se expresa con mayor claridad la relación de la cultura con el entramado simbólico que atraviesa la vida social en su conjunto y sobre todo, la intención de involucrar el concepto “antropológico” de la cultura en la institucionalidad. Los dos, aunque asociados al mundo de la música, ingresaron al campo de las políticas culturales, si bien repesándolo como cultura y política –la “batalla cultural” que menciona la Ministra de Argentina, es una metáfora de ese vínculo-. El sentido expansionista de la cultura, introducido por el ex Secretario de Cultura de nuestro país y mucho mas visible en el caso de Gilberto Gil, propone una superación del orden asociado a la administración cultural, con el intento de apropiación de procesos espontáneos, comportamientos y valores naturalizados de la vida cotidiana. Al mismo tiempo, supone un accionar institucional de la cultura desde el cual producir modelos subjetivos de la cultura, sumergiéndose en procesos de significación que circulan y disputan colectivamente en los entornos de la cotidianeidad. No obstante, tal como fuera señalado por Ticio Escobar (2005: 167) “El Estado no puede intervenir en las maneras de pensar, sentir, comer, vestir, etc., de los particulares. Las políticas culturales no pueden recaer sobre los mecanismos íntimos de la significación colectiva ni pueden envolver las zonas subjetivas de la producción cultural”. Es decir que la incorporación de la dimensión subjetiva-simbólica en el concepto “antropológico” de la cultura, produce y reproduce una brecha entre el campo discursivo y la praxis de lo cultural vinculada a la intervención que no compromete “el terreno de los microcircuitos en que cotidianamente se trabaja el sentido” (Op.cit.), aún cuando nuevos espacios de las instituciones culturales postulen programas y acciones de llegada a los territorios y de inserción en las poblaciones locales. Entre las nuevas exploraciones teóricas y los desplazamientos de éstas hacia la praxis institucional, diferentes y nuevos agentes han entrado en el campo de la cultura, poniendo en juego nuevas lógicas y dinámicas que, aparentemente, trascienden la inercia institucional vinculada a la administración y las políticas culturales convencionales. Por este camino, la cultura, que siempre fue un recurso, ahora se constituye como tal bajo nuevas modalidades, procurando ir más allá de su carga estatalista y nacional. Gilberto Gil, nuevamente en su discurso inaugural, logra sintetizarlo de este modo:

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No cabe al Estado hacer cultura, pero sí, crear las condiciones de acceso universal a los bienes simbólicos (…) sí proporcionar las condiciones necesarias para la creación y la producción de bienes culturales (…), sí promover el desarrollo cultural general de la sociedad. En verdad, el Estado nunca estuvo a la altura del hacer del pueblo, en las más variadas ramas del gran árbol de la creación simbólica brasilera (GIL, 2003, p.230 en Almeida et.al, 2010) Sin embargo, decir que estas nuevas concepciones ingresadas en el campo de las instituciones culturales, han terminado con la visión de la cultura de excelencia, es obviar los escenarios de coexistencia e incluso los contextos de nuevos desplazamientos y de retornos a las ideas convencionales. Basta con observar los cambios acontecidos recientemente en Argentina para dar cuenta de ello. Los conceptos vertidos por Darío Lopérfido (actual Ministro de Cultura del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires) hablan de términos como “sociedad culta”, “incultura”, “nivel cultural”: Cuando en los ‘60 hubo corrientes antropológicas que con un buen fin empezaron a ampliar el concepto de cultura. Decían “cultura no son solo las bellas artes sino también la cultura indígena, todo es cultura”. Si todo es cultura, nada es cultura. Desde ese concepto está mal la utilización del término cultura….esa idea de que todo es cultura surgió en los años 50. Se trató de ser inclusivo…Pero T.S. Eliot decía que si todo es cultura, cultura no es nada. Para mí tomar mate y tocar la Novena de Beethoven son cosas distintas4 . (LOPÉRFIDO, 2015) Ahora bien, este retorno a concepciones “anquilosadas” ¿supone mayor des-politización de la cultura? En los últimos años, la cultura visualizada como un recurso legítimo y ampliada en su perspectiva, ha supuesto también un vínculo más estrecho con lo político, más allá de las políticas culturales como campo específico. Pero, efectivamente ¿se trata de una nueva relación entre cultura y política? O como señala Susan Wright (1998: 1-2), ¿este nuevo concepto solo contribuye a una “politización de la cultura”, donde diferentes “tomadores de decisiones” focalizan en los usos de la cultura como herramienta de resolución de otros espacios de la política contemporánea? La respuesta al último interrogante, podríamos especular, que es relativamente afirmativa, del mismo modo en que supone, probablemente, una nueva relación entre la cultura y la política, sin por ello suponer que volver al concepto y campo de la cultura “culta”, nos lleva inevitablemente a la “ausencia de política”. La aparente falta de política en la visión de trascendencia, es un intento de barnizar de neutralidad el propio campo, asunto que puede vislumbrarse en los nuevos discursos y en la perspectiva de políticas culturales despojadas de carácter público. Así, si los artistas se autoconvocan –como en la actualidad- en el Parque Saavedra de la ciudad Entrevista realizada en Diario La Nación. 6 de Diciembre de 2015. http://www.lanacion.com.ar/1851882-los-tres-nuevos-ministros-de-cultura-quieren-dejar-una-marca-de-pluralidad. 4

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de Buenos Aires, para desarrollar la “Plaza de los Artistas” (actores, músicos, escritores) junto con algunos políticos, con el objetivo de denostar ciertas medidas del gobierno actual, la cultura como arte parece aproximarse en un nuevo vínculo con lo político y volverse un problema social de carácter público. Mientras que si los artistas son parte de planes, subsidios y financiamientos que provienen del estado, tienen mayor riesgo de reproducir ese sentido estético de la cultura que los alejaría del campo de lo político. En cualquier caso, deberíamos aceptar que los cambios en los conceptos y las perspectivas no son para siempre, que pueden convivir con “viejas” ideas, y que en cualquiera de los dos casos, la cultura es política –su forma de entenderla depende del contexto político local en el que toma cuerpo-. En el seno de estos asuntos, bien problemáticos, nos interesa analizar algunos ejes que resultan claves en el campo de las políticas culturales contemporáneas. Si bien, en esta breve introducción, damos cuenta de nuevos –y viejos- temas a través de una mirada en torno de algunos discursos vinculados a agentes de los estados; resultaría impensable reflexionar críticamente sobre todos ellos. De allí, que nos interesa focalizar en aspectos problemáticos que se reproducen en el campo de lo cultural, a pesar de los nuevos conceptos asociados a la cultura, y en el papel disputado que juegan algunos agentes culturales y aquellos relacionados al ámbito de lo estatal. 1. DE LAS “POLÍTICAS DE LOS OBJETOS” Y LAS “POLÍTICAS DE ACCESO” AL “ACCESO/ACCESIBILIDAD EN LAS POLÍTICAS CULTURALES” Y que sea de acceso libre y gratuito es algo importantísimo, porque se van a dar aquí hechos culturales extraordinarios, y que todo el mundo tenga acceso a ellos es una manera de democratizar la cultura. (PEDRO AZNAR,músico, en inauguración del Centro Cultural Néstor Kirchner, 21 de mayo de 2015.) El Centro Cultural Néstor Kirchner podría dejar de ser gratuito. Las cosas nunca son gratuitas. Todo el mundo paga por medio de sus impuestos. Es mejor cobrar menos impuestos y dejar que la gente haga lo que quiera con su dinero. En el largo plazo no es posible sostener un lugar de excelencia de manera gratuita, afirmó el nuevo Ministro de Cultura Porteño. Dichos de Darío Lopérfido para el sitio de noticias de la BBC, diciembre de 2015. Quienes hemos sido y aún somos partícipes de la institucionalidad cultural, poseemos un habitus de trabajo proveniente de un modelo de intervención gubernamental consolidado a lo largo de casi todo el siglo XX. Un modelo basado en lo que algunos autores llaman la “política de los objetos” (BRABIERI,N. 2014: 105), en el que la cultura es visualizada como sustantivo, como cosa inerte y estática, vinculada a la trascendencia. Esta política, aún existente en nuestras instituciones y equipamientos culturales, tiene su correlato en las “artes eruditas” –no solo vinculado a las áreas artísticas, sino también a la protección del patrimonio-. Es una política

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que se nutre de las primeras perspectivas antropológicas de la cultura, estrechamente asociadas a visiones evolucionistas, particularistas y funcionalistas , en torno de las cuales se produjeron prácticas de “objetivación cultural”, extracción de piezas y restos de sus lugares de origen y coleccionamiento, relacionados con los museos arqueológicos y etnológicos (cfr. Abreu, R. 2005: 39). En la institucionalidad del campo cultural se adoptó el formato reificado de esa visión. Retomando a Teixeira Coelho (2005: 45), es en el contexto de la inercia cultural en que se ha hegemonizado el discurso y la práctica institucional de la cultura: se trata de la cultura como “cosa”, asociada a la idea de la adquisición y conservación (nunca de “des-adquisición”) (Teixeira Coelho 2008: 18-19), a la visión esencialista de carácter estatalista y nacional. Durante casi todo el siglo XX, y particularmente desde que la cultura se institucionalizó y profesionalizó, ha sido construida y activada entre “políticas de objetos” (Barbieri 2014), en ausencia de sujetos y grupos sociales. Un modelo promotor de los grandes equipamientos culturales, de la monumentalización del patrimonio y como señala el mismo autor, de fabricación de lo “lo mejor para la mayoría” (Op.cit: 103). En términos generales, el campo de las políticas de la cultura se ha constituido en relación a ciertas convenciones y consensos: la idea de la cultura como esencia o como elevación, la visión eventista y cuantitativista de la cultura. En relación a los mismos cabe preguntarse: ¿Es posible desestructurar el sentido estático y esteticista del sistema cultural? ¿Es posible y viable transcender (sin desestimar) el sentido difusionista de la cultura? ¿Es factible superar el sentido “eventista” de la cultura? Si bien en la etapa de conformación de las naciones primó dicha política, aún en la actualidad, la administración, infraestructura y políticas ligadas a este campo reproducen ese sentido de inercia cultural (un Estado que continua siendo de y para las “élites” ), aunque atravesado por dilemas –no tan nuevos, sí persistentes- que no acaban de zanjarse: entre continuar con el sentido estético y artístico o neutralizarlo mediante intermediaciones entre la producción y reproducción institucional y las acciones relacionadas con la vida social y cotidiana que, de acuerdo a las reflexiones de Barbieri (2014), conducirían a un desplazamiento de la cultura a “lo cultural”. Pero en medio de ese dilema, aparentemente difícil de resolver, tampoco parece posible salirse de esos modelos objetivistas asociables al impacto, la medición, el entretenimiento, el ocio y lo artístico. Parece difícil trascender estas convenciones, cuando buena parte de las políticas estatales recurren a estos sentidos que el estado tiende a legitimar, pero no necesariamente en soledad, sino también con algunos sectores que conforman el campo de la cultura. Entre los años ´50-´60 en los países europeos, particularmente en Francia –modelo estrechamente vinculado a nuestra experiencia-, simultáneamente a un proceso de mayor institucionalización de las políticas culturales, comenzaron a imponerse las “políticas de acceso” a la cultura, con el objetivo de procurar una mayor democratización cultural. Esa visión primigenia del acceso a la cultura, no suponía dejar de lado la cultura legitimada, sino más bien difundir la “alta cultura”

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en tanto cultura universalizada. Es decir el acceso se traducía en un acercamiento de los públicos a las obras monumentales y de arte que se producían y se seleccionaban desde el poder central. Como señalara Barbieri (2015:25, n/traducción), un modelo de “promoción de oferta cultural considerada de mejor calidad….conciliar la promoción de la excelencia con la democratización”. Este modelo se supuso perimido, luego de comprobar que el estado continuaba reproduciendo formatos en base a “calidad artística” y sujetos especializados de la cultura y que los mismos eran llevados desde el centro hacia las periferias. ¿Qué clase de democratización cultural se estaría forjando, cuando se impostaban selecciones realizadas y ejecutadas desde los poderes centrales? No obstante, si miramos minuciosamente lo acontecido en Argentina, es posible especular con que esta visión ideal de hacer cultura se introdujo fuertemente en los ´80, reproduciéndose a través de la cultura “eventista” y difusionista de los ´90, encontrando un mayor auge en los últimos años, cuando no solo en nuestras políticas, sino incluso en la de otros países de América Latina, el acceso se volvió el horizonte desde el cual construir planes de cultura. Podemos aventurar que, en primera instancia, son dos las cuestiones que contribuyen a este retorno o puesta en valor del acceso a la cultura. La primera, quizás la de mayor relevancia, es la expansión del concepto de cultura (tal como comentamos en la introducción): la perspectiva asociada a la idea de “cultura para todos-la cultura está en todas partes”, vinculada a la visión planteada por Néstor García Canclini (2005), acerca de que hoy “todos tienen cultura”, en consecuencia, todos podrían desarrollarse a través de la cultura , asociado a ello, la emergencia de los términos creatividad y diversidad –estrechamente vinculado a determinados organismos de cooperación internacional, como Unesco-, en tanto sustituto de la categoría de cultura, aún vista como restrictiva. La segunda cuestión, vuelve sobre aspectos que atraviesan el campo de la cultura institucionalizada desde sus comienzos: la cultura como estrategia de capacitación para los sectores “incultos”, la cultura como ejercicio de consumo en sectores observados como “no productores de cultura”, la cultura como objeto de medición, relevamiento y proximidad. Por otro lado, aparece otro asunto, tal vez el que mayor presencia ha tenido y tiene aún en la elaboración y aplicación de políticas culturales. El acceso, en este sentido, se constituye entre la gratuidad, la masividad, el impacto cuantitativista, la apertura amplia de equipamientos culturales –los eventos como La noche de los museos es un ejemplo de ello-, la diversificación de infraestructura –como las Casas de la Historia y Cultura de Bicentenario y las Casas de la Cultura que se construyeron en asentamientos populares del país, son casos de instalación de equipamientos de proximidad, abiertos a todos, no obstante, con frecuencia sin contenidos, o con contenidos similares a los de centros culturales afines, o bien redefinidas en función de demandas locales-, la instauración de eventos, obras, muestras, festivales, etc. en contextos de proximidad, y las políticas focalizadas en sectores vulnerables, visualizados como “carentes de cultura” y con necesidad de capacitación –el ejemplo de las orquestas juveniles constituye un

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modelo aparentemente exitoso pero que como se pregunta Ferreño (2014: 110) “¿cómo afecta al chico pobre que integra la orquesta sinfónica del barrio marginal donde vive decodificar un mundo al cual probablemente nunca pertenecerá?” -. El acceso a la cultura continúa siendo una estrategia clave para la inclusión social. Planes y programas recientes incorporan este eje como crucial –el Plan de Cultura elaborado para la ciudad de Bogotá en 2010, colocaba en el acceso el objetivo primordial para superar la restricción/restrictividad asociada a diversos bienes culturales-. Garantizar acceso, supone garantizar accesibilidad para todos, promoviendo un deseo de igualación social a través de la cultura, basado en derechos a la cultura constituidos en torno del derecho a acceder otorgado por la institucionalidad del estado bajo sus parámetros, por ende, en general desigualitarios. De hecho, sorprende la complementariedad que Mestres establece entre la democratización cultural y la necesidad de que las políticas culturales busquen la excelencia, sobre todo cuando la democratización se piensa como objeto de inclusión. No obstante, ese vínculo que establece el autor, da cuenta del límite de la misma democratización fundada en modelos estatales: el elitismo y el etnocentrismo que interpelan acerca de qué es lo que se democratiza y quienes son parte de dicha democratización. Como bien señala Barbieri (2015: 28), es un tipo de respuesta a la cohesión social y a la proximidad, en tanto “políticas reparadoras” desde las cuales es posible regenerar un “discurso de función social de la actividad cultural”, sin embargo, centrado en las “externalidades de la cultura”. Existen, al menos, dos déficits de las políticas de acceso/accesibilidad. Por un lado, las diferencias potentes que pueden establecerse entre la idea de acceso y la de apropiación social. Acceder no significa necesariamente apropiarse, en tanto éste requiere de otras cuestiones: comprensión, participación, incorporarse al reto de “lo cultural” en tanto, agentes de disputa de sentidos. Por el otro, que el acceso/accesibilidad, como señala Barbieri (2016), no contribuye a la equidad social y cultural, sino mas bien introduce selecciones y jerarquizaciones que mas bien desiguala o promueve y fortalece desigualdades preexistentes. Ahora bien, si recuperamos los testimonios con los que iniciamos este tópico, dentro de los cuales uno pone el acento en un CCK accesible y gratuito y el otro, en la necesariedad de quitarle esa cualidad de gratuidad para llegar a un CCK de excelencia, nos enfrentamos a un dilema estéril y un conflicto sin solución. Está claro que el segundo, nos devuelve sobre la cultura de trascendencia que solo parece obtenerse por vía de la “elitización” construida en base a entrada selectiva, un asunto que parece caduco pero, como se observa en las nuevas discusiones en Argentina, no lo es. En ese sentido, no solo habría que preguntarse qué entendemos por acceso –si consideramos el caso del CCK, el acceso libre, para las autoridades de cultura, suponía no solo gratuidad, sino incluso realizar cambios en el edificio para que pudieran ingresar incluso los discapacitados, mientras para los arquitectos que lo preservaron, no debía modificarse nada, pues la

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idea de accesibilidad no entraba en juego-, sino por la igualdad-desigualdad. Queda claro que en la versión “paga” del acceso, la jerarquización toma protagonismo, no obstante, en la “gratuita” del acceso, si bien es posible la “entrada libre para todos”, la desigualdad se construye en base a asuntos de comprensión y apropiación. 2. DEL “ACCESO” A LA DEMOCRACIA CULTURAL: ENTRE LA PARTICIPACIÓN COMUNITARIA Y LAS POLÍTICAS DE BIENES COMUNES” Este es un proyecto de inclusión y un gesto redistributivo de acceso a la cultura….que el pueblo se tiene que apropiar para que no se privatice, para que se mantenga y para que siga creciendo. El Centro Cultural Kirchner es un gesto redistributivo de acceso a la cultura (Página web del Ministerio de Cultura de la Nación, noticia del día 21 de mayo de 2015.) Como hemos observado en el punto anterior, este equipamiento se ha constituido entre la cultura de la excelencia (ya que ha ofertado actividades y espectáculos de calidad artística) y las políticas de acceso, bajo la idea romántica de que su carácter libre, gratuito y masivo, favorecerían la inclusión y la redistribución social. No obstante, esta forma de entender el acceso no está disociado de la democratización cultural, a esta altura caduca. Aun en la actualidad, este tipo de infraestructura y programación convive con el modelo de la democracia cultural que, mucho tiempo atrás, promoviera el debate sobre la superación de la democratización cultural. La mirada puesta sobre la territorialización de la cultura, o bien sobre la puesta de la cultura en los territorios locales, bajo el parámetro del “hacer sociedad” desde la perspectiva del relativismo y de la descentralización; ha sido parte de la visión asociada a un tipo de políticas vinculadas a “la promoción de espacios de participación y expresión sociocultural” (Barbieri Op.cit: 104). Es evidente que una mirada ampliada sobre lo que fue el Ministerio de Cultura de la Nación hasta diciembre, permite observar un ámbito conformado por áreas que, aunque separadas, coexisten entre estos diferentes modelos: la “política de los objetos”, la política del acceso y la democratización cultural y las políticas de la democracia cultural –particularmente ancladas en el ámbito de las políticas territoriales, vinculadas a programas elaborados en relación con organizaciones sociales, con colectivos y colectividades diversos, con asociaciones vinculadas puntos de cultura, entre otros-. No obstante, cabe preguntarse si esta complementariedad favorece una mayor y amplia participación de los ciudadanos, particularmente un incremento de su capacidad en la toma de decisiones. En el relato construido alrededor del Centro Cultural Kirchner emerge el sentido de apropiación que se espera desarrollen los públicos, consumidores y espectadores a fin de convertirse en ciudadanos que hagan suyo el espacio y ámbito de la cultura. No obstante, acceso no implica necesariamente producción, apropiación y transformación, apenas ingreso, uso y consumo,

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e incluso una reproducción del estado como productor cultural (Barbieri Op.cit.). Del mismo modo, en que fortalecimiento de intervenciones locales mediante un mayor protagonismo dado a los gobiernos locales, e incluso a la conformación de entes y/o asociaciones paralelos a los gobiernos, generalmente constituidos por agentes culturales, antes asociados a las instancias gubernamentales, procuran ganar terreno en el plano de la dinámica cultural local, no obstante, generando procesos simultáneos entre la desconcentración y difusión de la cultura de calidad y las lógicas territoriales que han sido asociadas a una aparente democracia cultural. Aún en este contexto, en los últimos tiempos, se ha tendido a focalizar en la participación comunitaria, procurando producir relevamientos de demandas –más que de necesidades, de las que poco se habla en la cultura, y mas bien son creadas desde las instancias estatales-, otorgando subsidios y/o financiamientos a organizaciones, asociaciones, colectivos sociales desde los cuales concebir a la cultura como herramienta de transformación, inclusión y desarrollo, o bien enfatizando el papel de la diversidad en el visualizado como derecho a la cultura. Sobre los primeros ha habido muchos programas que mas que promover una activa participación, tendieron a estabilizar regiones y culturas a partir de los cuales elaborar ofertas y demandas, pero siempre desde los estados. En relación a los segundos, ha habido algunos planes de gran envergadura, como Puntos de Cultura, un programa tendiente a fortalecer proyectos socioculturales preexistentes. Aunque pueda mostrarse como puente entre estado y ciudadanía, no siempre quienes participan son grupos organizados o movimientos sociales que se espera desestabilicen las lógicas legítimas del campo cultural -tal como lo señala Ferreño (Op.cit. 111)-, sino que en muchas ocasiones se reproducen esquemas conocidos: el subsidio o financiamiento induce a la recreación de modelos propios de la institucionalidad (talleres, capacitaciones, actividades y eventos, festivales, etc.), si bien sobre la base de una relativa visibilización de aquellos que lo reciben. La autora, por ende se pregunta si ese tipo de programas “¿tornan visibles los grupos subalternos y los transforman en agentes de cambio o los reifican desde otras perspectivas?”, enfatizando en la despolitización, en la reproducción de la desigualdad ya existente, eludiendo el trabajo sobre el ejercicio del poder de estos colectivos (Ferreño Op.cit. 114), en consecuencia, con escasa potencia de participación social. Celio Turino, activo coordinador del Programa Puntos de Cultura en Brasil, lo concibió como un ámbito de generación de autonomía-protagonismo y empoderamiento social en relación a las comunidades locales. Sin embargo, Rubim (2014:189) ha observado que este tipo de nueva relación entre estado y sociedad, no ha contribuido en las transformaciones del mismo estado. Por el contrario a lo que Turino considera, este autor asume un “visible déficit de la ciudadanía cultural y de los derechos culturales” que, sin duda, exceden el derecho de acceder. En este sentido, la visión asociada a la democracia cultural –mayor descentralización/ federalismo, un aspecto potenciado en los discursos del gobierno actual de Argentina, aún a con-

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trapelo de la cultura de “elite”- no parece resolver la desestructuración inerte de los estados, ni el rol que deben tomar las comunidades a fin de fortalecerse, por ende de ser incluidos mas allá de relevamientos y censos en los que cada sujeto es cuantificado, del acceso a espacios culturales gratuitos, del otorgamiento de subsidios, de equipamientos e infraestructuras. Nicolás Barbieri asume una nueva alternativa que, de acuerdo a su perspectiva, permitiría superar las políticas institucionales de la cultura oscilantes entre la alta cultura, la democratización cultural y la democracia cultural. Según el autor, solo podría reformularse la idea de la cultura como sustantivo, enfatizando en lo cultural, en tanto ámbito de lo colectivo y desde el cual los grupos sociales y los sujetos puedan volverse agentes protagonistas de sus prácticas sociales. Esta perspectiva que Arjun Appadurai asoció a la concepción de la “diferencia situada”, podría complementarse con una nueva mirada de la política cultural, esta vez vinculada a lo común o como también Barbieri la llama, “política de los bienes comunes”. Se trata de políticas no relacionadas a objetos, ni espacios, sino a recursos, normas y maneras colectivas de organizarse y gestionar propios de las comunidades. Para algunos gestores, técnicos y/o expertos en cultura, este desplazamiento hacia lo común, implica colocan el énfasis en la diversidad e interculturalidad, por un lado, y en el reconocimiento de las comunidades en tanto agentes con potencialidad para gestionar la cultura mas allá de las instituciones. No obstante esta perspectiva no está exenta de ambigüedades y contradicciones. Como hemos observado, ciertos programas creados en las instituciones culturales, como por ejemplo el de Afrodescendientes del Ministerio de Cultura argentino, en el que su ex coordinador llega al entramado de la institucionalidad en razón de su pertenencia colectiva, se fundan en la idea de que incorporar un sujeto activista y líder de un colectivo, constituye una forma de gestionar “lo común” en base a recursos y normas de la comunidad, pero desde el estado. Es evidente que este mecanismo, es diferente del supuesto empoderamiento que se especula se produce cuando es el estado el que otorga subsidios a organizaciones sociales que convierten en Puntos de Cultura, es decir en “apéndices” de la institucionalidad cultural. Este, como señala Barbieri (2016), es una especie de acuerdo entre colectivos asociativos y la institucionalidad cultural, pero no comporta un “proyecto de gestión comunitaria”. Indudablemente estos colectivos, en ocasiones vinculados a asociaciones, centros culturales, casas de la cultura, etc., llevan adelante procesos de gestión comunitaria vinculados a esos ámbitos públicos, de acceso libre, con recursos comunes que, en la medida en que no se entreveran con la institucionalidad estatal, parecen generar mecanismos de auto-gestión compartida. No obstante, estos procesos omiten las dinámicas y lógicas de inclusión-exclusión, los acuerdos y/o disensos, las desigualdades y relaciones de poder, bajo el supuesto de que empoderar supone reconocer y visibilizar –por fuera del estado- comunidades homogéneas que comparten bienes, recursos y normas. No se trata de este formato, pero tampoco del acompañamiento que el estado puede hacer respecto de cier-

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tos colectivos, a los que ofrece financiamientos, equipamientos, etc., ni siquiera de situaciones intermedias como en el caso del Centro Cultura Plaza Defensa, ubicado en San Telmo, donde un grupo de afrodescendientes obtuvieron el lugar otorgado por el ministro de cultura de la ciudad, pero luego dejaron de ocupar un rol de centralidad para el mismo gobierno que los acompañó en esa primera instancia. Aunque dicho grupo ha continuado un proceso de gestión comunitaria por fuera del estado, no por ello han conseguido fortalecer su centralidad como agentes culturales, si bien sí han obtenido reconocimientos identitarios generados mas allá de dichos procesos de gestión cultural. 3. PALABRAS DE CIERRE Como señaló Alexandra Ockles (2014), construir “vocería política”, generando movimientos sociales y culturales, mas allá de la danza, la música, pero también mas allá del reconocimiento de la diversidad o de la promoción de la igualdad como ejercicio de valorización de aquella, podríamos pensarlo como un camino intermedio, o siguiendo a Marcus como un “entre-lugares” entre los cuales se profundice y potencie la repolitización de la institucionalidad y de los agentes culturales. Es evidente que no alcanza con la democracia cultural, o con la participación comunitaria, tampoco con la autogestión comunitaria, o con el empoderamiento de comunidades mediante la intermediación y acompañamiento del entramado institucional. Es, efectivamente, un camino mas sinuoso y complejo, que no acaba en el reforzamiento del acceso, ni en la configuración de una nueva “arquitectura de la pertenencia” (Appadurai y Stenou 2001). Probablemente se trate de repensar procesos colaborativos en los que los agentes comunitarios puedan acceder antes que a infraestructuras culturales, a instancias de toma de decisiones (Barbieri 2016). Cabe preguntarse hasta donde el estado puede convertirse en un agente de intermediación que acompañe en la gestión de relaciones de poder que contribuyan en una mayor inclusión, sin desconsiderar los acuerdos, los disensos, los conflictos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, ARNALDO ET AL. (Organizadores). Cultura pela palabra. Coletánea de artigos, entrevistas e discursos dos ministros da cultura 2003-2010. Rio de Janeiro. Versal. 2013. ARANTES, ANTONIO. “Diversity, heritage and cultural politics”. Theory Culture & Society: anualreview.V. 24, N 7-8. 2007. Londres. P. 290-296. ISSN 0263-2764. APPADURAI ARJUM AND KATERINA STENOU. “El pluralismo sostenible y el futuro de lapertenencia.” In Informe Mundial sobre la Cultura 2000-2001. Madrid: Ediciones Mundi-Prensa/ Ediciones UNESCO. 2001. http:// www.crim.unam.mx/cultura/informe/ informe%20mund2/INDICEinforme2.html.

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“DESMATERIALIZAÇÃO” E DÉFICIT DE ATENÇÃO NA CULTURA ATUAL Nina Reis Saroldi1 Andreia Ribeiro Ayres2 RESUMO: Este escrito trata do processo de digitalização da cultura e a consequente criação dos mercados de “Cauda longa” em diversas áreas da criação artística. Além do exame de fenômenos como o da gratuidade na internet, investigamos a relação entre o novo cenário e a subjetividade contemporânea, marcada pelo déficit de atenção generalizado. Concluímos que as políticas culturais devem considerar estratégias de formação de público que lidem com a tensão entre o excesso de oferta de cultura, propiciada pela tecnologia, e a dificuldade de concentração gerada por sem número de estímulos. PALAVRAS-CHAVE: déficit de atenção; grátis; digitalização.

1. INTRODUÇÃO Mesmo o cidadão mais resistente ao uso de novas tecnologias, menos aficcionado aos aparelhos eletrônicos que fazem a alegria das gerações mais jovens, percebe o processo avassalador de “desmaterialização” dos bens culturais. Um simples IPod pode armazenar muito mais músicas do que as estantes de um colecionador de LPs dos anos 80. Um Kindle ou qualquer outro aparelho análogo resolve de maneira eficaz o eterno problema da falta de espaço dos bibliófilos. O Netflix ou o NOW causaram em muita gente o impulso irresistível de doar, ou mesmo jogar fora, DVDs que se acumulavam pela sala e tornavam a faxina mais difícil. Todos estes fenômenos são de conhecimento geral, mas merecem um exame mais acurado. Será este processo de “desmaterialização” unívoco, prático e inexorável? Como ele é percebido e vivenciado pelas diferentes gerações? Você daria um Ebook de presente? O colecionador tem o mesmo prazer ao contemplar uma biblioteca digital e as lombadas empoeiradas dos livros nas estantes? Por que a produção de vinis, por exemplo, têm crescido ultimamente? Por que, no mundo digital, a maioria das pessoas – e, sobretudo, as mais jovens – consideram normal ter acesso gratuito aos bens culturais? Doutorado em Teoria Psicanalítica, Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), [email protected] 2 Doutorado em Engenharia de Produção, Professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), [email protected] 1

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De todas as questões que suscitaram este pequeno escrito há uma, no entanto, que pretendemos investigar mais detidamente: O que ocorre com a atenção disponível de cada um de nós quando o fluxo de informação não pára de crescer? De início devemos adverti-los de que a ideia é, antes, provocar o senso crítico em relação ao novo cenário da produção cultural do que defender posições que se pretendam fechadas e definitivas. 2. A DIGITALIZAÇÃO DE TUDO É conhecido o impacto das novas tecnologias nos processos de produção, distribuição e consumo de bens culturais. Chris Anderson e Henry Jenkins são referências centrais neste debate e, no que tange às novas formas de recepção que pretendemos comentar, o filósofo Christoph Türcke, sobretudo nas obras Sociedade Excitada e Hyperaktiv!. Segundo Chris Anderson (2006, p. 87), a Internet criou uma nova economia da abundância, um ambiente que se afasta do mundo de “tijolo e argamassa” para o aprofundamento no universo feito de bits. Este cenário – que graças ao livro homônimo ficou conhecido como A Cauda Longa –, inverte a situação de oferta limitada de produtos para muitos consumidores em oferta virtualmente ilimitada de produtos para alguns poucos. Nas palavras do autor, “cada vez mais o mercado de massa se converte em massa de nichos” (2006, p. 6). O digital tornou possível um incrível barateamento da produção cultural por conta da facilidade de acesso a câmeras, computadores, softwares e mesmo celulares que permitem a amadores a realização de bens culturais com aparência – e às vezes qualidade artística – profissional. Além disso, houve uma ampliação significativa dos canais de distribuição de conteúdo cultural, outrora selecionado por empresas como editoras e gravadoras, e fadado a vir ao conhecimento do público somente por meio da grande mídia: rádios, jornais e TV. Serviços como Youtube e novos modelos de negócio como o da gigante Amazon tornam, virtualmente, todos os produtos disponíveis ao alcance de um “click”. Tanto os vídeos de gatos quanto as palestras caríssimas da conferência TED (Tecnologia, Entretenimento, Design) podem ser assistidos de graça no primeiro e livros autopublicados, em outros tempos vistos como suspeitos, tornam-se sucesso de vendas na Amazon, desbancando muitas vezes os autores de editoras estabelecidas. O terceiro elemento, enumerado por Anderson como componente das forças da Cauda Longa (2006, p. 55) são os dispositivos de filtragem do excesso de informação disponível, tais como o Google e recomendações de blogs, bem como listas de best-sellers. Este último elemento tem impacto, diretamente, nos critérios de seleção e de legitimação dos bens culturais. Anteriormente, para chegar ao público, um romance precisava dar a sorte – caso o autor não fosse conhecido, ou indicado por alguém conhecido do editor – de sobreviver à “slush pile”, montanha de originais enviados todos os dias às editoras na esperança de serem lidos e publicados. Até atrair a atenção sobrecarregada de uma assistente editorial, nem J. K. Rowling

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escapou das tristes e padronizadas cartas de rejeição dos editores. No caso das bandas, ou a fita demo caía nas mãos certas ou o caçador de talentos da gravadora se entusiasmava com o show ou elas ficariam ensaiando na garagem de um de seus membros para sempre. Hoje em dia, os profissionais que selecionam escritos para publicação, músicas para gravação e programas de TV para serem produzidos, precisam estar atentos ao que Anderson denomina “pós-filtros” (2006, p. 120): blogs, listas de músicas disponibilizadas sem pretensão por amadores, número de visualizações e comentários no Youtube, resenhas e recomendações de livros e filmes feitas por “pessoas comuns”, ou seja, sem diplomas ou credencias que as habilitem a indicar o bem cultural em questão para alguém. Não é à toa que se fala tanto em “morte da crítica”, ao menos no sentido da crítica especializada que ocupava lugar nos jornais e revistas do mundo pré-internet. Neste sentido, é impossível negar que a rede é democrática, mas também perversa. A Internet é um lugar sem “portaria”, onde todos podem falar e, o que se torna complicado quando a disputa por atenção aumenta, (quase) todos querem ser ouvidos. Recentemente, no que ficou conhecido como a “polêmica do Enem”, o verbete sobre Simone de Beauvoir na Wikipedia teve que ser protegido (ou seja, só pode ser editado por editores certificados pelo site) no Brasil porque cidadãos nativos se deram ao direito de publicar todo tipo de insultos e mentiras, editando e reeditando a página mais de trinta vezes. Não é preciso dizer que as “informações” – dentre elas, a de que a autora estaria envolvida com pedofilia – tinham muito mais a ver com o incômodo causado pelo suposto conteúdo “ideológico e tendencioso” da prova (a violência contra a mulher!) do que com qualquer conhecimento legítimo acerca da vida e da obra da filósofa francesa. Esse vexame para o nosso país revela, de maneira nua e crua, como um empreendimento bem-sucedido em utilizar a sabedoria coletiva pode ser prejudicado pela ignorância e má intenção de uns poucos, tudo isso devido à liberdade de expressão pela qual tantos, inclusive a própria Simone de Beauvoir, lutaram. As grandes gravadoras perderam, definitivamente, o monopólio comercial da produção musical desde o advento dos CDs regraváveis. O golpe de misericórdia foi dado com a possibilidade de compartilhamento de arquivos na rede (ANDERSON, 2006, p. 30-31), processo que afetou não somente os executivos da indústria fonográfica, mas também os compositores, elo mais fraco da corrente complexa de recepção dos direitos autorais. Recentemente, serviços de streaming como o Spotify resolvem, ao menos parcialmente, as questões levantadas pelo digital no campo da música, oferecendo à maioria dos usuários acesso gratuito – com anúncios, modelo semelhante ao do rádio – e, a uns poucos pagantes, o que Anderson denomina de serviço “freemium” (2009, p. 26-27, 257- 258), ou seja, uma versão Premium do produto ou serviço básico. Na análise que faz do fenômeno do “grátis”, Anderson observa que por trás desta denominação existe, na verdade, uma série de sentidos e modelos de negócio diferentes entre si. Em boa parte deles como, por exemplo, em brindes e remessas gratuitas, o custo das “gentilezas” já

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foi devidamente incorporado ao preço do produto. Em outros, como no caso de jornais gratuitos, alguém está pagando pelo leitor, no caso, os anunciantes (2009, p. 18-20). Em princípio, os serviços “freemium” não seriam muito diferentes da velha amostra grátis, que visava divulgar um determinado produto e atrair maior demanda do que a pequena amostra oferecida. No entanto, Anderson observa que no mundo digital a relação entre os que desfrutam da amostra e os que demandam o produto pago é invertida: apenas 5% dos usuários sustentam todos os outros, os que se contentam com a “amostra” (2009, p. 27). Todo cliente do Spotify é bombardeado com promoções e incentivos para aderir ao serviço pago desde o primeiro momento em que se inscreve como usuário. Mesmo assim, a se crer em Anderson, a maioria resiste ao bombardeio impassível. A razão para explicar a sobrevivência do modelo é que o custo de atender aos clientes gratuitamente, no mundo dos bits, é quase nulo em comparação com o que ocorre no mundo de “tijolo e argamassa”. Uma loja física de discos jamais sobreviveria distribuindo boa parte de seu acervo sem cobrança. Como destaca Anderson (2009), quase tudo que é oferecido no mundo digital tende a seguir o padrão descrito acima. Teoricamente, o serviço “freemium” seria suficiente não só para sustentar o negócio, mas também, no caso específico de sites de música, filmes e livros, pagar os direitos autorais dos criadores. O último ponto, no entanto, é alvo de controvérsias que, por sua extensão, requereriam um artigo dedicado exclusivamente ao assunto. 3. A CULTURA DESATENTA Em seu pequeno libelo Hyperaktiv!, o filósofo Christoph Türcke (2012) se dedica a investigar o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), doença que nomeia a dificuldade crônica de concentração, sobretudo entre crianças e jovens, e suscita, dentre outras medidas, a prescrição intensiva do medicamento Ritalina para contornar o problema (e acabar com o desespero de pais e professores mundo afora). Na contramão deste processo de medicalização da infância, o filósofo defende a tese de que as crianças são, na verdade, apenas as vítimas mais flagrantes e vulneráveis de um problema muito maior, e que nos envolve a todos: a cultura do déficit de atenção. Para combater o mal, Türcke propõe a introdução de rituais na educação infantil, chegando a propor uma espécie de disciplina dedicada ao assunto e que comporia de maneira orgânica o currículo escolar. O caminho que o leva a defender esta proposta é uma retomada histórica da importância tanto dos rituais quanto da repetição para o desenvolvimento humano. Para o autor, o quadro que enfrentamos hoje é totalmente novo: a experiência da perda da capacidade de atenção (TÜRCKE, 2012, p. 9). Vivemos, segundo expressão criada por ele, em um estado de “distração concentrada” (2012, p.69. tradução nossa) que não pode deixar de causar efeitos em nossas faculdades de pensamento e imaginação.

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Trocando em miúdos, Türcke (2012) considera que foi graças à capacidade de repetição que o Homo Sapiens conseguiu desenvolver seu aparelho psíquico. Capaz de administrar um sem número de excitações e impulsos, de transformá-los em imagens e formas, esse aparelho, de alguma maneira, diminuiu o poder ameaçador dos estímulos externos sobre o sujeito. Os rituais primitivos são, essencialmente, maneiras de minimizar e, no limite, dominar o contato traumático do homem com a brutalidade da natureza. Ao compartilharem coletivamente a atenção sobre um objeto ou um fenômeno, os homens conseguiram desenvolver seu modo particular de exercer esta faculdade, auxiliando-se mutuamente a manter esta atenção por certo tempo (2012, p. 56). Daí a importância, para o homem, de “segurar” as sensações, de demorar-se sobre elas. Somente a partir daí é possível transformar os estímulos brutos em imagens. No ambiente em que vivemos, marcado pelos milhares e minúsculos choques audiovisuais que recebemos o tempo todo, o TDAH não se destaca exatamente como uma doença em um ambiente saudável e “atento”. Bem ao contrário, ele é uma exacerbação de toda uma cultura desatenta. A cultura digital inverteu um processo que se perde nas brumas da história: excitação traumática – construção de imagens – rituais e repetições que servem ao controle da excitação, à busca do sossego (TÜRCKE, 2012, p.72). Padecemos do que Türcke nomeia “compulsão à emissão” (2010, p. 65), uma forma peculiar de compulsão criada pelo ambiente tecnológico. Não só recebemos choques o tempo todo, fotos, mensagens, emoticons, como precisamos emiti-los de volta. É preciso “postar” toda sorte de informações, comentar, fotografar e exibir sua própria existência; sem dar um passo atrás e perguntar-se pelo porque, como ocorre, aliás, em toda compulsão. Não há experiência que não possa ser invadida, interrompida por mensagens no whatsApp, pouco importa se se trata de um trabalho de parto ou de um funeral. Vivenciamos, segundo o autor, uma inversão da lógica da repetição (2012, p. 72): não se trata mais de garantir o controle sobre os estímulos, controle este que, em última instância, conduz à capacidade de refletir, de pensar, de ligar uma imagem mental à outra. Mas sim de interromper este processo sem pausa, de excitar-se sem limites. Afinal, a rede funciona 24h, e desligar-se dela exige, cada vez mais, um esforço enorme de nadar contra a corrente. A cultura do déficit de atenção diagnosticada por Türcke parece, de alguma forma, servir de adequado pano-de-fundo para o que Jenkins define como narrativa transmidiática: Uma história transmidiática se desenrola através de múltiplos suportes midiáticos, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões. Cada acesso à franquia deve ser autônomo, para

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que não seja necessário ver o filme para gostar do game, e vice-versa. (...) Oferecer novos níveis de revelação e experiência renova a franquia e sustenta a fidelidade do consumidor. A lógica econômica de uma indústria de entretenimento integrada horizontalmente – isto é, uma indústria onde uma única empresa pode ter raízes em vários diferentes setores midiáticos – dita o fluxo de conteúdos pelas mídias. (2008, p. 135) É importante lembrar que no clássico ensaio sobre a indústria cultural, Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) já apontavam a relação, acima descrita por Jenkins, entre o conteúdo que circula na indústria e as necessidades econômicas das empresas que a compõem. Nos anos quarenta do séc. XX, as revistas, o rádio e o cinema compunham o sistema e introduziam novas fórmulas de sucesso em filmes, canções e programas. Hoje, é a necessidade de sustentar um pool das mais variadas empresas, combinada ao comportamento do público diante da fragmentação e multiplicação de informações, que impulsiona as narrativas transmidiáticas e todos os seus produtos colaterais. Outra questão interessante reside na receptividade das novidades digitais pelas diferentes gerações. Jenkins observa que para os mais velhos a narrativa transmidiática – segundo ele, representada de maneira exemplar na franquia Matrix – é cansativa e até mesmo desinteressante (2008, p. 132-133). Para quem tem mais de quarenta anos, em geral, cada filme ou livro deve conter, em si mesmo, uma história com começo, meio e fim, e não se dispersar em sequências intermináveis (os filmes Harry Potter, Velozes e Furiosos 6, por exemplo), jogos e séries de TV. Não é à toa que as crianças, tanto do “antigo” mundo analógico quanto nativas digitais, são entusiasmadas consumidoras de franquias. Jenkins cogita, inclusive, que a forma mais bem acabada de narrativa transmidiática esteja precisamente em uma franquia infantil como Pokémon (2008, p. 177). Ao contrário de seus pais, as crianças dispõem de dois insumos necessários para a fruição dos produtos: tempo e fantasia. Para adultos, o mergulho em um universo narrativo exige uma otimização de seu escasso tempo e o apoio de comunidades que justifiquem a importância de se dedicar a uma série de TV, por exemplo. O sucesso destas últimas, aliás, talvez tenha a ver justamente com a possibilidade que nos dão de entrar e sair da narrativa quando quisermos, sem nos prender tanto quanto uma novela tradicional. Ademais, as séries talvez tragam ao universo fragmentado da pós-modernidade um determinado senso de pertencimento e identidade, outrora provido pela família e pelas religiões. Dito de outro modo, na falta de resposta satisfatória à pergunta “quem sou eu?”, ser um fã de House ou Game of Thrones talvez já indique algo sobre nós mesmos. 4. CONCLUSÃO Toda configuração da cultura ganha de um lado e perde de outro, como já nos advertiram antropólogos, historiadores e o velho Freud. Sem dúvida, o que sobra na balança de nossa

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época é informação, compreendida aqui no sentido estrito de dados brutos, passíveis de serem processados. Anderson chama a atenção para os motivos que impelem à digitalização de tudo: Tudo o que os bits tocam também é tocado por suas propriedades econômicas únicas – mais barato, melhor, mais rápido. Transforme um alarme contra ladrões em uma tecnologia digital e ele passa a ser apenas mais um ponto sensor e de comunicações na Internet, com abundante armazenamento, largura de banda e processamento acrescentados praticamente de graça. (2009, p. 94) Mais adiante, Anderson cita o cientista social Herbert Simon, vindo ao encontro, por outros caminhos, da tese de Türcke: “O que a informação consome é bastante óbvio: ela consome a atenção de seus destinatários. Dessa forma, a abundância de informação gera carência de atenção” (ANDERSON, 2009, p. 183). É por isso que cobrar por conteúdo, quando a atenção se torna cada vez mais escassa, não é uma boa ideia e o fenômeno do grátis toma conta da rede, segundo Anderson, de modo inexorável. A tela dos celulares transformou-se em verdadeiro “presídio de segurança máxima” da atenção da maioria, obrigando as autoridades competentes a proibir seu uso, por exemplo, ao dirigir ou durante a operação de máquinas perigosas. Seu uso em sala de aula, apesar de todos os apelos dos professores, mereceria um capítulo só seu. “Multitarefa” é um dos adjetivos mágicos de nosso tempo. Seu significado profundo repousa no credo fundamental da cultura tecnológica, obcecada por produtividade, pelo encanto de fazer mais com menos, sempre mais. Quanto maior o número de coisas que se pode fazer ao mesmo tempo, mais versátil se é mais tempo se poupa (TÜRCKE, 2012, p. 54)! No entanto, como observa Türcke, não é possível conciliar quaisquer tarefas: lavar louça e ouvir notícias no rádio é possível, na medida em que a concentração fica focada no que se escuta e o ato de lavar louça já está automatizado pelo hábito. Fazer yoga e lavar louça já não são conciliáveis (2012, p 54-55). É claro que é possível manter a atenção focada em um ponto e ter alguma noção do entorno, como fazemos em nossa experiência cotidiana, por exemplo, ao esperar um ônibus olhando na direção em que ele vem e, ao mesmo tempo, ter noção das pessoas em volta e do movimento dos carros. “Multitarefa” não designa a capacidade real de concentrar-se igualmente em várias tarefas simultâneas. Quem participa de uma reunião e checa Emails deixa de dar atenção, alternadamente, a uma ou outra coisa. O máximo que o termo “multitarefa” alcança é isso: a possibilidade de alternar rapidamente a atenção de um objeto a outro (2012, p. 56). Acidentes e mal-entendidos de toda ordem, para não falar do precário desempenho escolar, devem-se, a nosso ver, à captura do olhar pelas telas que nos rodeiam e pela facilidade em encontrar “dados” sobre todos os assuntos. Impossível não lembrar, a propósito, da frase de Adorno e Horkheimer no prefácio à Dialética do Esclarecimento: “A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (1985, p. 15).

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O desafio da produção cultural contemporânea, portanto, é o de capturar a atenção do público, fator este que, segundo Anderson, explica em boa parte o fenômeno do grátis na rede. Um exemplo disso é o paradoxo da “pirataria lucrativa”, no qual bandas como a brasileira Calypso deixam vazar CDs e DVDs para cativar a atenção do público para o seu próprio show (ANDERSON, 2009, p.209- 210). Neste trabalho tentamos unir dois diagnósticos diversos sobre a cultura contemporânea: um que parte da filosofia, da história e do vasto campo da psicologia social (incluindo a psiquiatria e a psicanálise) e outro que faz uma análise centrada na história e na economia recentes, utilizando estudos de caso de empresas ou mídias específicas, a saber, o de Türcke e o de Anderson. Julgamos que, com o auxílio de dois teóricos de procedências e perfis tão diferentes seja possível, no entanto, lançar luz sobre uma série de fenômenos constatáveis na atualidade, seja no campo da produção cultural propriamente dita quanto na análise de sua fruição pelo público. Como vimos anteriormente, Türcke propõe no currículo escolar uma disciplina que promova a realização de rituais para, em última instância, aumentar a capacidade de atenção das crianças. Sob outro ponto de vista, o da análise das mídias e dos novos modelos de negócio na internet, Anderson observa que, de fato, a falta de atenção é o que gera a disputa ferrenha por espaço e a necessidade de oferecer produtos gratuitos. No que tange à formulação de políticas culturais públicas, consideramos fundamentais as contribuições destes dois autores para a formulação de ações e eventos que consigam obter êxito neste terreno pantanoso do excesso de oferta de conteúdos culturais, facilitado pela tecnologia, e a dificuldade do público de manter a atenção sobre o que quer que seja por algum tempo. Além das observações de Türcke sobre a questão da atenção, as considerações de Jenkins sobre a narrativa transmidiática também podem ser úteis para formulação de estratégias de formação de público, por exemplo, em programas educativos em museus, educação musical nas escolas, estímulo à leitura, dentre outras iniciativas.

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PARA SUAVIZAR A CIDADE HOSTIL: ARTE E POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO URBANO1 Pablo Gobira2 Adeilson William da Silva3 Karla Danitza de Almeida4 RESUMO: Este trabalho busca refletir sobre a relação entre a cidade e as políticas públicas urbanas compreendendo estas como hostis. Com base na reflexão sobre as vanguardas históricas do século XX, discutem-se as ações livres destas na cidade. O artigo também expõe como se constrói a apropriação dessas ações “livres” e “artísticas/estéticas” pelo Poder Público desde o momento das vanguardas históricas nas cidades. Desse modo, este trabalho pretende desvelar a base estética comum a toda política pública voltada para a cidade, não limitando essa base apenas às políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas; política cultural; cidade; urbanismo; arte e vanguardas.

1. INTRODUÇÃO É possível observar nos últimos anos uma tentativa do Poder Público, juntamente à iniciativa privada, de criar uma cidade mais amigável e acolhedora para os munícipes e visitantes. Na verdade isso é o que acontece mediante a demanda das pessoas que vivem nas cidades em um movimento que acontece desde a Revolução Industrial. Exemplarmente, cita-se o incentivo e a promoção de diversas iniciativas, tais como: a ocupação de espaços públicos com atividades artísticas e culturais, manifestações populares e outras que, antes, eram tidas como marginais. Recentemente, no caso brasileiro em específico, essas ações entraram no circuito e agenda cultural das cidades brasileiras e em alguns casos passaram a serem financiadas por políticas públicas tais como as leis de incentivo à cultura. Este artigo é um dos resultados de projeto apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão da UEMG à qual agradecemos. Professor doutor da Escola Guignard (UEMG). Coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Poéticas Fronteiriças (CNPq – www.labfront.tk). Pesquisador e gestor de serviços da Rede Brasileira de Serviços de Promoção Digital (Rede Cariniana) do IBICT/MCTI. E-mail: [email protected] 3 Graduando na Licenciatura em Artes Plásticas da Escola Guignard/UEMG. - E-mail: [email protected] 4 Graduada em Processos Gerenciais com ênfase em Gestão das Organizações do Terceiro Setor pela Faculdade de Políticas Públicas/UEMG. Membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Poéticas Fronteiriças (CNPq – www. labfront.tk) - E-mail: [email protected] 1 2

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Neste artigo, enfocamos a faceta artística (ou “estética”, entendida como manifestação do sensível para o ser humano) das manifestações que inspiram novas políticas públicas. Torna-se importante relembrar que essa cadeia de ações irônicas e provocantes teve sua origem – no contexto contemporâneo – nas práticas vanguardistas do início do século XX, portanto vêm sendo realizadas programaticamente por um século. Antes delas podemos ainda considerar as ações de artistas do século XIX na Europa, tais como: Charles Baudelaire, Alfred Jarry ou Oscar Wilde que, cada um a seu modo, escandalizaram as cidades e seu ambiente público. Nas próximas páginas apresentaremos a relação entre a cidade e as políticas públicas urbanas. Mostraremos a atuação livre das vanguardas no ambiente da cidade. Exporemos como se constrói a apropriação dessas ações “livres” e “artísticas/estéticas” pelo Poder Público desde o momento das vanguardas históricas. Será visto, principalmente, como todas as suas forças estão voltadas para a construção de um imaginário baseado nas demandas dos cidadãos buscando modificar a histórica ação hostil (QUINN, 2014; MILLS, 2015) contrária à manifestação político-social na cidade. Desse modo, este trabalho pretende desvelar a base estética comum a toda política pública voltada para a cidade, não limitando essa base apenas às políticas culturais. 2. A CIDADE: URBANISMO E INDÚSTRIA Hoje reconhecemos que o entendimento da “cidade moderna” é resultado da soma de vários desdobramentos econômicos, sociais e culturais decorrentes das revoluções do século XVIII e XIX. Para o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, a cidade é um objeto espacial que ocupa uma situação e um espaço físico, onde convivem e coexistem uma grande variedade de costumes, ideias, crenças e visão de mundo, dividindo o mesmo espaço físico “assim, define-se com uma política comercial de projeção da sociedade sobre um local.” (LEFEBVRE, 2001, p. 56) Para entender a análise do autor, é necessário compreender a separação entre o que é cidade e o que é urbano. Para Lefebvre o urbano é a simultaneidade, “a reunião, é uma forma social que se reafirma” (LEFEBVRE, 1986, p. 156), então o urbano se trata de um fenômeno mundial, um conceito imposto e, por necessidade, uma articulação de teoria e prática. O processo de urbanização – em suma, o estudo, planejamento e implementação de características em uma localidade ou região – que consolida os traços urbanos das cidades, se deu pelo estímulo do nascimento da indústria e pela necessidade de mais pessoas irem para as cidades deixando o campo. Pode-se dizer que o desenvolvimento da cidade industrializada e o capitalismo moderno são processos entrelaçados desde a sua gênese. Com a industrialização, veio a negação da centralidade na cidade, o que a faz perder seu conteúdo político e sua potência social. Com a perda dessa centralidade obtêm-se uma fragmentação da malha urbana fazendo-a crescer por uma vasta região nas periferias.

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Desse modo, surge uma “não cidade”, que nega a cidade político-social. Caso compreendamos que a cidade era usada pela população, essa “não cidade” se sobrepôs ao valor de uso e assim também substituiu a “obra” pelo “produto”. Essa transformação modificou as relações, interações e costumes, levando a “cidade moderna” a uma significação meramente quantitativa e comercial, ou seja, são esvaziadas de seu sentido original, que funcionaliza o cotidiano e o torna vazio de ações espontâneas e autônomas. Um exemplo muito conhecido da mudança são as festas populares, carnavais etc., que eram ricos em significados em seus contextos e acabaram se transformando em mercadoria numa constante “repetição de signos destinados ao consumo” (ARAUJO, 2012. p. 135). Desse modo, a cidade acaba se tornando uma grande empresa ou espelho das grandes indústrias que são permitidas em seus centros ou periferias. A “cidade contemporânea urbana” subjuga seu habitante e o controla sob critérios ditos democráticos, e o indivíduo não tem ali nenhuma dimensão política, o que o deixa confinado no espaço domesticado “urbano”. Ainda que alguns atos públicos transgridam e façam pressões por mudanças, estes parecem não cumprir realmente os seus objetivos. Com pouco tempo passam a serem reconhecidos e legitimados pelo Estado por exporem muitas vezes as fragilidades e defeitos desse modus operandi. Assim, essas ações são capturadas e passam a não fazerem mais nenhum efeito a não ser o de aprimorar a máquina pública urbana. Isso é realizado, em parte, através das políticas públicas voltadas para a cidade. 3. POLÍTICAS PÚBLICAS E A CIDADE 3.1 As políticas públicas A noção de política pública tem sido desenhada desde os anos 1930. Harold Laswell (em 1930), embasado em temas como comunicação e política, e David Easton, nos anos 1960, deram base à leitura de política pública como um sistema: a soma entre formulação, resultados e o ambiente (SOUZA, 2006). No Brasil o início da compreensão das políticas públicas se dá a partir da promulgação da Constituição Federal de 1934, momento em que o Brasil experimenta o acesso aos “direitos de segunda geração, ou seja, o direito ao trabalho, à saúde, ao lazer, à educação e à moradia” (BRADBURY, 2006, p.1, grifo do autor). Porém, somente a partir de 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, que os termos para as políticas públicas são mais bem observados. A “República Federativa do Brasil se organiza como Estado Social e Estado Democrático de Direito e garante a participação popular no processo político” (BRADBURY, 2006) permitindo, dessa forma, que as escolhas dos governos e a participação popular estejam no mesmo lócus, ainda que tenhamos interesses de grupos específicos ou demandas partidárias fazendo uso de seus poderes.

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No recorte específico trabalhado neste artigo – políticas públicas para as cidades – trazemos a “desordem” proposta por Jane Jacobs, escritora e ativista política, que em Morte e vida de grandes cidades trata de questões essenciais aos processos de urbanização. A partir da autora, é possível pensar as políticas públicas para as cidades agindo no tratamento do ir e vir da sociedade, da mobilidade urbana, da acessibilidade, de seu uso cultural, da ocupação do solo, das regulações, das políticas para o desenvolvimento sustentável. Jacobs (2011, p. 52) nos trouxe a reflexão sobre uma desordem natural dos espaços. Os códigos e políticas irão na contramão dessa “desordem” e proporão a ordem e os disciplinamentos, mas sem ignorar que a desordem exista em algum grau. Como exemplo, no artigo 1º do Código de Posturas do Município de Belo Horizonte, Lei nº 8.616, de 14 de julho de 2003, teremos: “Este Código contém as posturas destinadas a promover a harmonia e o equilíbrio no espaço urbano por meio do disciplinamento dos comportamentos, das condutas e dos procedimentos dos cidadãos no Município de Belo Horizonte” (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2003, grifo nosso). Ao longo de toda a lei veremos disciplinamentos e ordenamentos que irão contrapor o uso amplo da cidade e o desenvolvimento econômico, sugerindo um impacto entre política econômica e política social, situação histórica nos processos de industrialização e urbanização brasileiros. Há uma constância, portanto, das políticas públicas como mecanismos de ignição às políticas econômicas. O encontro entre conceitos criados por acadêmicos norte-americanos e a práxis do Estado dão conta da ideia geral de política pública e está presente naquilo que Celina Souza diz: “campo de conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar governo em ação e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)”. (SOUZA, 2006, p. 7) Isso nos leva a tomar como base conceitual para este trabalho o entendimento de política pública como: um conjunto de decisões, baseadas em demandas inicialmente traçadas a partir das escolhas do governo, sujeitas às pressões de seus pares, das instituições políticas e econômicas, da sociedade civil, e têm por finalidade atuar nas relações da coletividade. 3.2 Políticas públicas e a cidade É difícil negar que exista uma força em busca de mudanças na cidade. Para António Pinto Ribeiro (2011, p. 288), especificamente sobre a questão cultural, procuram-se “instrumentos de gestão da cidade a partir da conciliação entre o planeado (sic) e o criado pelo cidadão. Instrumentos que potenciem (sic) a criação de narrativas míticas em torno da cidade.” Esse pensamento transforma de fato a cidade em lugar para ser gerido tal como uma indústria resumindo o seu uso a um uso disciplinado por regimentos específicos.

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A criação dessas leis é papel do Estado que é “o poder organizado, estruturado para impor à comunidade em que está implantado normas que atualmente chamamos jurídicas, mas que, em fases antigas da humanidade, foram de outro tipo.” (ANDRADA, 2012, p. 166) O Estado cria os Estatutos das Cidades, os Planos diretores, as Leis de ocupação e uso do solo, uma série de mecanismos reguladores que irão definir as políticas de desenvolvimento urbano. Confirmando as questões postas neste artigo podemos usar como balizador a Lei nº 7.165, de 27 de agosto de 1996, que institui o Plano Diretor de Belo Horizonte (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 1996). Em suas conceituações e objetivos temos no artigo 4º as orientações sobre o “ordenamento da ocupação e do uso do solo”, e na proposição de um comparativo entre os parágrafos primeiro e quinto, que dizem respectivamente sobre “a utilização racional da infra-estrutura urbana” e “a justa distribuição dos custos e dos benefícios decorrentes dos investimentos públicos”. Levamos a nossa discussão, agora, para os decretos que, em um primeiro momento, cerceiam o uso dos espaços e os lucros obtidos em propostas de privatização do espaço público. O Decreto nº 13.798/2009, durante a gestão do prefeito Márcio Lacerda, trazia o seguinte texto: O Prefeito de Belo Horizonte, no exercício de suas atribuições legais, em conformidade com o disposto no art. 31 da Lei Orgânica Municipal, considerando a dificuldade em limitar o número de pessoas e garantir a segurança pública decorrente da concentração e, ainda, a depredação do patrimônio público verificada em decorrência dos últimos eventos realizados na Praça da Estação, em Belo Horizonte, DECRETA: Art. 1º - Fica proibida a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, nesta Capital. Art. 2º - Este Decreto entra em vigor no dia 1º de janeiro de 2010. (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2009) Após uma campanha de vários meses contra o prefeito da cidade e o decreto acima em um movimento chamado “Praia da Estação” há uma mudança: publicou-se outro decreto (Decreto nº 13.863/2010) estabelecendo uma Comissão Especial para regular o uso da Praça da Estação. (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2010) O Poder Público, como ente que conduz as políticas públicas na cidade, demonstra certa plasticidade. Pode moldar a cidade sempre a partir de sua gestão, de modo que incorpore – como aponta Ribeiro – o “imaginário” do cidadão. Para o autor, “o objectivo (sic) fundamental e primeiro de uma gestão cultural é contribuir para que a cidade produza fantasias, mais precisamente, constitua ela própria um imaginário (...)” (RIBEIRO, 2011, p. 288). Daquilo que é o problema proposto neste artigo, pergunta-se: quando as políticas públicas minimizam a hostilidade do Poder Público elas estariam tornando o espaço público des-

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tinado ao uso privado? Lembramos que no artigo 8º do plano já citado teremos: “as políticas públicas setoriais a serem implementadas devem ser orientadas para a realização dos objetivos estratégicos de desenvolvimento urbano estabelecidos nesta Lei”. Veremos que a conveniência do uso das manifestações que surgem espontaneamente transformando as demandas em novas políticas públicas a serem implementadas não é de fato uma conquista do cidadão em prol da cidade, mas um caminho que o distancia de sua própria realidade, de fato constituindo um imaginário específico. Quando pensamos com David Harvey (2014, p. 156), vemos na urbanização um processo de estreitamento das relações entre a coisa pública e a coisa privada. Para o teórico, “a urbanização nada mais é do que a incessante produção de um comum urbano (ou sua forma espectral de espaços e bens públicos) e sua eterna apropriação e destruição por interesses privados”. Conforme o autor, estamos reféns desse processo perpétuo gerado no advento da industrialização que não se restringe, portanto, às fábricas, mas influenciou a cidade profundamente fazendo-a um canteiro de obras (físicas ou imaginárias) em transformação perpétua. 4. AS VANGUARDAS E A CIDADE 4.1 As cidades das primeiras vanguardas No início do século XX surgiram em toda a Europa correntes artísticas (e antiartísticas) que sentiam a necessidade de ruptura com o passado. Dentre esses grupos destacamos dois que ficariam mais conhecidos por sua radicalidade e estão relacionados com o processo de crescimento das cidades durante a primeira grande guerra e após ela: Dadá e Surrealismo (GOBIRA, 2012). Dadá carregava desde o seu início a proposta de desmistificar a racionalização e valores ligados ao convencionalismo e a tradição. Os seus fundadores (sic) recusam o termo “dadaísmo” já que o sufixo “ismo” aponta para um movimento organizado e além daquela ação contestatória praticada. Como uma contraparte do Dadá, o Surrealismo surge na França na década de 1920. O seu primeiro manifesto é assinado por André Breton e cofundadores: Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel, Delteil, Desnos, Éluard, Gérard, Limbour, Malkine, Morise, Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault e Vitrac. (TELES, 1987) As experiências das vanguardas foram repetidas no decorrer dos anos. Um exemplo é o ato de andar, vivenciar e explorar a cidade enquanto experimentação – chamadas também de “errância urbanas” (JACQUES, 2005). Essas experimentações surgem a partir do século XIX praticadas por agentes e pensadores de diversas áreas (desde artistas, arquitetos, poetas e sociólogos). Um bom exemplo são as explorações realizadas nas experiências de “flanar”, de Charles Baudelaire em Paris (COSTA, 2012).

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Mais especificamente, essas errâncias caracterizam as experiências adotadas no meio urbano pelas duas vanguardas citadas, sobretudo: o Surrealismo e suas experiências de “deambulações”; ou as excursões dadaístas por lugares banais como a expedição a igreja abandonada Saint Julien Le Pauvre, em 1921, conhecida como 1ère visite (1ª visita). Por motivos diferentes dos atuais essas vanguardas realizavam suas explorações e entendiam o espaço da cidade como político e importante elemento (e palco) para suas discussões. Essas experiências atravessam uma geração inteira e alcança as cidades contemporâneas de uma maneira aparentemente distante daqueles motivos “artísticos/estéticos” praticados pelos vanguardistas. Esquecer essa dimensão estética das ações atuais em prol da mudança da cidade através da criação de novas políticas públicas (sejam elas de teor cultural ou não) é um erro que não pode ser cometido. 4.2 Henry Lefebvre e as vanguardas do segundo pós-guerra Henri Lefebvre analisa de forma crítica a influência do sistema econômico capitalista no espaço urbano, e sua crítica se estende ao urbanismo positivista moderno. O autor entende que os grandes problemas da sociedade não podem ser reduzidos ao espaço e nem a projetos arquitetônicos. Mais do que isto, o autor repudia o caráter alienante de se tentar resolver grandes problemas urbanos simplesmente com ações meramente administrativas, científicas e técnicas por estas estarem intrinsecamente ligadas à alienação dos cidadãos. Na década de 1950, Lefebvre teve contato com um grupo de jovens que fundaram a Internacional Situacionista. Nessa altura ele já é um intelectual conhecido pela esquerda francesa e muito disto por suas análises e crítica do cotidiano. A Internacional Situacionista (IS) inicia suas atividades em 1957, a partir da fusão de três grupos que também continham em suas bases projetos de construção de uma nova sociedade. Baseando-se na crítica da vida cotidiana (GOBIRA, 2012, p. 27; p. 234), a partir da criação de situações e com novas propostas para a utilização do espaço das cidades, esses três grupos eram: a Internacional Letrista; o Movimento por uma Bauhaus Imaginista; e a Associação Psicogeográfica de Londres (HOME, 1999). A vida cotidiana, a cidade e o urbano são temas de interesse tanto para Lefebvre, quanto para os situacionistas, mas para a IS a vida cotidiana é definida como a medida de tudo, da realização ou da não realização das relações humanas e da revolução. Nesse movimento, Guy Debord observava que mesmo o tempo livre dos trabalhadores era utilizado como reforço dessa alienação (DEBORD, 1997) e que a revolução do cotidiano da cidade somente é possível através da consideração do lugar urbano para além de sua configuração formal, mas nas situações do seu uso. Os situacionistas, tal como os vanguardistas da primeira metade do século XX, utilizaram técnicas e realizaram vários experimentos relacionados à cidade, fazendo mediações entre

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o urbano e o psíquico. Dentre as noções trabalhadas por eles estão os conceitos de: psicogeografia, urbanismo unitário e deriva. Com essas teorias práticas buscavam criar situações, algo descrito pelo grupo como: “momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambivalência unitária e de um jogo de acontecimentos” (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2003, p. 65). Construir situações foi o grande objetivo da IS, onde buscavam desconstruir a alienação da vida urbana. 5. A OCUPAÇÃO DAS CIDADES 5.1 A cidade e os coletivos artísticos Pensando em uma cadeia de eventos, as formas atuais de se organizar os coletivos (por afinidade de temas, objetivos ou por amizade) remetem aos acontecimentos históricos da década de 1990. Com as manifestações ocorridas nessa década sob os chamados da Ação Global dos Povos (AGP) para os Dias de Ação Global Anticapitalista, surge uma nova ideia de militância política coletiva. Essas manifestações se utilizavam de recursos cada vez mais bem-humorados, criativos, irônicos e coloridos (algumas vezes até teatrais), sem que perdessem sua carga crítica. A organização coordenada e não hierarquizada das manifestações relembravam as experiências vanguardistas, o maio de 1968 francês, e ao mesmo tempo traziam elementos do movimento político anticapitalista (anti-Estado/hierarquias e anti-Mercado/economia), uma junção da crítica aos elementos estéticos e aos político-econômicos aprendidos com a Internacional Situacionista (GOBIRA, 2012, p. 40). Com o tempo, a organização e as associações dos coletivos se torna mais complexa do que a simples união de artistas. Expande-se o envolvimento nessas atividades tornando-as mais acessíveis e democráticas (flashmobs, bicicletadas, ocupações e intervenções urbanas etc.) contando com a participação de várias pessoas de diversas áreas e de forma efêmera. O coletivismo se transforma em um novo plano de atuação do jovem artista/ativista, principalmente das classes médias urbanas (CABRAL, 2007). Formulava-se (na prática) um novo conceito de manifestação política. Ao alcançar a mídia mundial em protestos contra atores econômicos e políticos globais (Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, G8 etc.) as manifestações se tornavam cada vez mais populares através da internet e das mídias de ativistas. No início do século XXI, com quase uma década da difusão dos coletivos de artistas/ativistas, há um reconhecimento histórico oficial daquelas atividades “subversivas” do século XX. Nesse momento surge uma nova aparência que permite sua transformação em um interessante produto cultural, sendo aceito e divulgado amplamente pelo mercado de arte e pelas agendas culturais e políticas públicas, como as leis de incentivo cultural, as exposições de artes e espetá-

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culos. Reaparecem com nova força as ocupações culturais, as intervenções urbanas e toda uma variedade de atividades e produtos no campo da cultura. As capitais brasileiras contemporâneas vêm vivenciando esse fenômeno de modo específico devido às características políticas das cidades onde se encontram. Em todo o mundo há a formação de coletivos artísticos que realizam intervenção urbana. Um coletivo é formado na união de dois ou mais indivíduos em torno de um tema (político ou não). Esse tema é delimitado por questões de interesse de todos os membros ou de interesses individuais a partir da concepção dos seus integrantes. Cada vez mais os coletivos estão sendo vistos pelo Poder Público como uma possibilidade de transformação (inovação) da cidade. Eles podem ser incorporados a ela como expressões artísticas e culturais diversas daquelas que já são conhecidas. Possibilitam a criação de novos produtos (artísticos e culturais) e recriam a paisagem cinza da cidade trazendo novas cores e movimentos variados a serem permitidos em momentos e locais específicos. 5.2 A cidade ocupada? Com as propostas que surgem estimuladas pelo Poder Público, reconhecidas como “bem-estaristas”, mas que não pensam primeiramente na população e suas reais necessidades, vemos outros valores sobreporem-se ao valor de uso das cidades. As medidas hostis causam, em determinados momentos, alguma contraposição, levando grande comoção principalmente da classe artística que com grandes manifestações inventivas e eventos ironizam essas medidas com um teor crítico e sarcástico. Essas medidas acabam, principalmente por sua repetição, se tornando objetos de rotina da cidade e sendo incorporadas às medidas hostis às quais antes se contrapunham. Na cidade temos o que podemos chamar de medidas sutis de hostilidade, tal como vemos no aparecimento massivo dos parklets (ou “varandas urbanas”). Eles vêm sendo instalados nas grandes cidades como promessas de constituir espaços de lazer. Porém, coíbem os seus usuários de realizarem manifestações diferentes das possíveis e pretendidas pelos parceiros que os criam (muitas vezes um estabelecimento comercial e a prefeitura). O que vemos é a determinação, em parceria público-privada, de quem deve frequentar e o que pode ser realizado nesse espaço da cidade. Medidas que aparentemente buscam o bem-estar, onde se prioriza a cidade para poucos, ou agindo diretamente em manifestações populares que acontecem no espaço urbano são constantes nas políticas públicas (por meio de estatutos, códigos de posturas e decretos). Cita-se aqui como exemplo a Lei nº 16.049/2015 do Estado de São Paulo que proíbe “pancadões” (aglomeração de pessoas com o intuito de ouvir som a altos volumes e dançar “Funk carioca”), em todo o estado, autorizando então que a polícia possa coibir quem desrespeitar a lei (G1 SÃO PAULO, 2015). Ou a tentativa de proibição (em meados de 2012) da distribuição do “sopão” aos

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moradores de rua na cidade de São Paulo (UOL, 2012), apresentada com o objetivo de “coibir a distribuição insalubre dos alimentos”, durante o governo de Gilberto Kassab e proposta pelo secretário municipal de Segurança Urbana, Edsom Ortega. No caso de Belo Horizonte, várias manifestações com caráter festivo vêm acontecendo nos últimos anos. Uma medida do Prefeito Márcio Lacerda iniciou uma polêmica. Ela surgiu através do Decreto nº 13.798/2009 que proibiu “a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação” (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2009). Esse decreto causou grande mobilização principalmente da classe artística e política da cidade onde mobilizações, inicialmente em redes sociais, deram origem ao evento “Praia da Estação”, já mencionado acima, onde vários manifestantes ocuparam a Praça munidos de trajes de praia, boias e alimentação. Nas ocasiões em que ocorreram, fizeram atos de transgressão questionando a medida que não permitiria a ocupação desse espaço histórico da cidade e alegava o risco de depredação e a segurança pública. Também temos o carnaval de rua de Belo Horizonte que vêm crescendo ano a ano, com blocos caricatos que em muitas vezes trazem em seus nomes questões como feminismo, legalização do uso da maconha e outras diversas temáticas que, de maneira extrovertida, leva diversos foliões a se locomoverem aos mais amplos cantos da região metropolitana. Com a frequência que esses eventos vêm acontecendo e a sua ampla aceitação e divulgação pelos meios de imprensa e assimilação do público em geral como eventos culturais é necessário pensar se eles realmente vêm ocupando a cidade? Ou se de algum modo estes vêm perdendo sua legitimidade enquanto propostas contestatórias e se tornando eventos meramente artísticos e de entretenimento perdendo sua força motriz (GOBIRA, 2010, s/p). Cada vez mais essas manifestações vêm pertencendo às agendas públicas e sua legalização vem sendo praticada, tal como o carnaval que tem mais e mais blocos cadastrados a cada ano como exigência da prefeitura, que antes os ignoravam. Temos também a Praia da Estação que já é descrita por alguns jornais como tradicional ponto de encontro da cidade. Por sua diversidade de ações de reivindicação ou sendo ignorados esses eventos tomaram grandes proporções e se tornaram eventos culturais e artísticos, fazendo com que haja interesse do Poder Público nessa forma de “ocupar”. Desse modo, é possível buscar uma valorização econômica e simbólica da cidade, tal como o Festival Cidade Viva – apoiado pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte – que acontece uma vez por mês sobre o viaduto Santa Tereza, importante cartão postal da cidade (GUIA BH, 2016). Essas apropriações do Poder Público ganham cada vez mais força, pois observam os espaços de manifestações artísticas e culturais marginais com a possibilidade de serem ocupados e comercializados, voltando-se a um público-alvo. Este agora interage e participa desse modo de “ocupação” dos espaços – individualmente ou com suas famílias. O Poder Público gere o espaço

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dedicando-o a algumas empresas cadastradas, limitando inclusive o consumo de alimentação, regulando a circulação de bicicletas, dentre outras medidas. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS OU SUAVIZANDO A CIDADE HOSTIL Neste trabalho compreendemos, através dos códigos de postura, estatutos e planos diretores das cidades, que as “políticas públicas são mecanismos de ignição às políticas econômicas”. Vimos que as políticas públicas têm sua atenção voltada para movimentos e grupos que se valem de ações estéticas e artísticas. Assim, estamos reconhecendo uma tática de sutilizar a hostilidade com base na proximidade com uma prática estética. Desse modo, as políticas públicas voltadas para a cidade se aproximam das políticas artísticas ou culturais, e o fazem quando há conveniência nessa especificidade também por um desejo de ordenamento das ações do Poder Público. Todas as políticas públicas são de cultura – seja a de mobilidade urbana, ou as políticas para organização da cidade em geral (através de planos, estatutos ou mesmo decretos) – quando as consideramos um instrumento de legislação sobre um povo e relacionado as suas características enquanto tal em determinado território. Também vimos neste artigo que há um movimento em prol da “suavização da hostilidade” através da transformação de ocupações de espaços públicos. Há apoio a essas ações por meio do incentivo à arte e à cultura. No website da Prefeitura de São Paulo temos acesso às informações do Programa Vocacional no qual o seu primeiro princípio é a “Ação cultural: ações continuadas para abrir frentes de diálogo para permitir a ocupação cultural de outros espaços da cidade”, e a sua primeira ação artístico-pedagógica é “Ocupação/criação de espaço: práticas criadas para promover a reflexão e apropriação dos espaços públicos da cidade, ocupando-os de maneira artística e coletiva” (PREFEITURA DE SÃO PAULO, s/d). Devemos nos lembrar de que existiu uma geração que inspira os coletivos artísticos de hoje: a que lutou contra o urbanismo/urbanização e a favor da cidade. O esquecimento dessa relação é conveniente, pois se para aqueles das vanguardas não havia financiamento para suas ações, hoje há financiamentos possíveis para ações de indivíduos e grupos em objetivos específicos e limitados nessa ocupação. Aquela ferocidade de uma luta contra a urbanização deu lugar a uma ferocidade na luta entre aqueles que se expressam pelas “parcerias público-privadas” ou pelos financiamentos artísticos e culturais. Tudo isso ocorre a ponto de tornar indiferente a cultura/arte e a cultura em geral, ambos garantindo financiamentos públicos e privados de maneira quase equivalente. Assume-se, por fim, que a perspectiva “artística” da arquitetura desenvolvida desde a Escola Staatliches-Bauhaus (1919-1933), de Walter Gropius, alcançou plenamente o meio urbano. A cidade tem sua construção urbana perpassada por uma tendência. Essa tendência tem

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forte apelo estético e escolhe esses elementos estéticos da cultura como forma de se mover e se estabilizar enquanto tal. As manifestações culturais e artísticas são bem vindas sob alguns preceitos e determinadas posturas. As coisas têm o seu lugar e esse lugar é plástico, pode ser cada vez mais estendido conforme se alcança a geração de novos produtos culturais: ali era proibido fazer qualquer tipo de manifestação, mas agora pode sob autorização prévia; não é possível fechar a rua para a passagem de um bloco, agora é caso tenha cadastro e havendo esse cadastro o Poder Público cede a força policial para proteção dos participantes e permite a comercialização de produtos sem pagamento de taxas ou permissões. Estabelece-se um urbanismo de sentidos calcado nas ações artísticas e culturais presentes na cidade: tal como compreende Lefebvre quando acredita que o urbano é uma articulação entre teoria e prática; tal como as vanguardas acreditaram em sua ação no século XX. Concluímos, portanto, sem inocência, que todas as medidas transformadas em políticas públicas da cidade são hostis a uma suposta liberdade do cidadão (ou ao menos a um grupo destes) nas ruas. Essas medidas, quando a demanda do cidadão é atendida, podem vir a suavizar a hostilidade que em essência não deixa de existir. Desde o advento das cidades pós-industriais e de seu urbanismo não é possível a vermos além da hostilidade que encontra amparo nas necessidades de desenvolvimento urbano. Nas cidades em que muitos se mobilizam para ocorrerem mudanças em seu modo de vida é possível se valer da plasticidade. As políticas públicas citadinas transformam, então, esse estado de ser a partir de um imaginário (RIBEIRO, 2011, p. 288) moldável sob a influência do desenvolvimento necessário para a continuidade da cidade pós-industrial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADA, Bonifácio José Tamm de. Estado. In: CASTRO, Carmem Lúcia Freitas de; GONTIJO, Cynthia Rúbia Braga; AMABILE, Antônio Eduardo de Noronha (Orgs.). Dicionário de políticas públicas. Barbacena: EdUEMG, 2012. p. 166-168. ARAUJO, James Amorim. Sobre a Cidade e o Urbano em Henri Lefebvre. GEOUSP- Espaço e Tempo, n° 31, São Paulo, 2012. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993. CABRAL, Ana Julia Cury de Brito. O contra-espetáculo da era neoliberal: estratégias artísticas e midiáticas da resistência jovem no Brasil. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. COSTA, Anderson da. Paris surrealista: errância, revelação e mito. Revista Estação Literária, Londrina, vol. 10A, p. 19-34, dez. 2012.

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DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GOBIRA, Pablo. A “Praia da Estação” e o risco da cultura. O Cometa Itabirano, Belo Horizonte, p. 1 - 2, 01 mar. 2010. GOBIRA, Pablo. Guy Debord, jogo e estratégia: uma teoria crítica da vida. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. GUIA BH (Belo Horizonte). Festival Cidade Viva fecha o viaduto Santa Tereza uma vez por mês para oferecer atividades culturais como shows, música, cultura, gastronomia, lazer e diversão. 2016. Disponível em: . Acesso em: G1 SÃO PAULO. Veículo estacionado não poderá ter equipamento de som em alto volume. Quem descumprir a regra fica sujeito a multa de R$ 1 mil. São Paulo, 11 dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. HOME, Stewart. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do século XX. São Paulo: Conrad, 1999. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução Carlos S. Mendes Rosa; revisão da tradução Maria Estela Helder Cavalheiro; revisão técnica Cheila Aparecida Gomes Bailão. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2011. JACQUES, Paola Bernestein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. JACQUES, Paola Berenstein. Errâncias Urbanas - a arte de andar pelas cidades. ARQTEXTO, Rio Grande do Sul, n.7, p. 16-25, 1º semestre de 2005. Disponível em: Acesso em: LA BRADBURY, Leonardo Cacau Santos. Estados liberal, social e democrático de direito. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1252, 5 dez. 2006. Disponível em: Acesso em: INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Teoria dos momentos e construção das situações (1960). In: JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. LEFEBVRE, Henri. Le retour de la dialectique: 12 mots clef pour le monde moderne. Paris: Messidor/ Éditions Sociales, 1986. MILLS, Chris. How “defensive architecture” is ruining our cities. Gizmodo, 21 fev. 2015. Disponível em: Acesso em:

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FUNK! PAUTA PARA POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA? Pâmella Passos1 Sandro Henrique Rosa2 RESUMO: Este artigo propõe reflexão acerca da relação Estado/Favela sob o prisma das produções culturais nos territórios com experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Sob conceito de tutela militarizada, discutiremos sobre as Resoluções 013/2007 e 134/2014, analisando as múltiplas características das intervenções do Estado aplicadas às práticas culturais de favela. É também nosso objetivo dar visibilidade aos impasses enfrentados pelos agentes do funk em suas produções cotidianas, dispondo de entrevistas, a nós concedidas, por produtores culturais de favela, representante da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro (SESEG/RJ) e reconhecidos agentes do movimento funk. PALAVRAS-CHAVE: cultura, funk, políticas públicas, produção cultural, tutela.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente artigo surge após identificar nas formas de intervenções públicas na Cultura importante lócus investigativo para compreender o relacionamento do Estado para com as práticas culturais de favela e os seus realizadores. Em sua maioria, os casos aqui expostos contarão com a representação do Estado nos territórios de favela sendo dadas por meio de agentes de Segurança Pública. Assim, conduziremos nossa reflexão dando enfoque às Resoluções 013/2007 e 135/2014 e suas implicações no campo cultural das favelas cariocas. De maneira geral, trata-se de resoluções que, segundo discurso oficial, garantem a atuação dos aparelhos de segurança pública para a manutenção e preservação da ordem na realização

Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ- Campus Rio de Janeiro), Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF),Pós doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional e pesquisadora do Observatório da Indústria Cultural (Oicult) e do Grupo de Pesquisas em Tecnologia, Educação e Cultura (GPTEC). E-mail: [email protected] 2 Bolsista da pesquisa “Cultura pacificada? Uma análise dos impactos culturais da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’S)” cadastrada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ- Campus Rio de Janeiro). Email:[email protected]. 1

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de eventos culturais, sociais, esportivos, religiosos e quaisquer outros que promovam concentrações de pessoas, no Rio de Janeiro.3 Além da análise comparativa das resoluções, apresentaremos entrevistas com agentes do movimento funk, produtores culturais de favela e representante da SESEG/RJ para com isto problematizar a relação entre o Estado e os produtores do funk carioca. 2. FUNK SOB A SUPREMACIA DA POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA Em artigo sobre a reivindicação do movimento funk pelo direito à cultura, Adriana Facina faz referência à usual frase de um dos fundadores da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk): Como resume MC Leonardo em uma frase que ele sempre repete em suas palestras e falas públicas, “o funk sempre foi visto pelo Estado como assunto da Secretaria de Segurança e não como tema das Secretaria de Cultura ou Educação” (FACINA, 2014). A fala de MC Leonardo diz muito a respeito das perseguições sofridas pelo funk, que tem relação com o histórico de atravessamentos da Segurança Pública no campo das práticas culturais. Tais intervenções do poder público são apontadas como constantes, como é possível notar no relato de um produtor cultural do Complexo do Alemão: Eu tive um problema, que eu tava fazendo um evento pequeno, pra criança, [...] ele veio muito grosseiramente: “Abaixa essa porra senão vou quebrar tudo...” Aí nós abaixamos, nós obedecemos, sabe? E não contente, ele ficou lá dentro e depois voltou e: “Eu já mandei abaixar, eu mandei desligar...”. Mandando eu desligar: “Desliga essa porra, senão eu vou quebrar...”4 O personagem “ele” presente na fala do produtor faz referência a um policial do Comando local da UPP no território onde promove suas atividades. O autoritarismo militar é apresentado não só na produção de um evento, mas também nas práticas cotidianas de sociabilidade. Olha o problema: a galera tá quieta, assistindo o jogo. Eles pediram pra abaixar o som. Parece que a galera abaixou muito pouco, e aí, o cara não satisfeito por essa desobediência jogou gás de pimenta lá, dentro do bar. E aí ficou aquele caos. Mais de 12 moradores presos.5 Nesse aspecto há uma diferenciação entre as duas resoluções: a 013 se pronuncia sobre a realização de eventos artísticos, sociais e desportivos no estado do Rio de Janeiro, já a 014 considera além desses, eventos do tipo religioso e de quaisquer outro que promova concentração de pessoas. Disponíveis respectivamente em https://www. legisweb.com.br/legislacao/?id=265890 e Resolução SESEG nº 013, de 23 de janeiro de 2007. Disponível em https://drive.google.com/folderview?id=0B6Seh343QE8bRVVWMUlvcjdSWkk&usp=sharing. 4 Produtor cultural do Complexo do Alemão em entrevista concedida à pesquisa “Cultura Pacificada? Impactos Culturais da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora” desenvolvida pelos autores deste artigo. A entrevista foi realizada em 20 de fevereiro de 2015. 5 Produtor cultural no Complexo do Alemão em entrevista concedida à pesquisa em 20 de fevereiro de 2015. 3

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João Pacheco de Oliveira (2014) ao apresentar suas reflexões acerca da tutela militar, compara os modelos governamentais atualmente destinados aos moradores das favelas cariocas com o implementado historicamente em relação aos indígenas. No texto Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios, o autor discute o conceito de pacificação aplicado sob ambos, aprofundando as raízes deste termo na história do Brasil. A partir de seu artigo, podemos compreender a tutela no contexto urbano sendo dada por meio da pacificação. Criando unidades específicas para atuar em favelas, o Estado declara que os moradores pertencentes a esse território são diferentes dos moradores do asfalto. Se por um lado, o poder público ocupa as favelas apresentando uma mão estendida para intervenções assistencialistas, o outro braço estará armado para a repressão e censura (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014). Atentando ao cenário cultural nos morros e favelas cariocas, podemos identificar os órgãos de segurança e seus representantes, intervindo sobre as atividades culturais com poder para permitir ou proibir que elas aconteçam. Seja um churrasco dentro de casa, ao som de funk ou pagode, um batizado, ou até um baile funk que atrai grande parte da comunidade, o Comando Local da UPP teria poder definitivo para suas respectivas autorizações. Embora essa não deva ser uma atribuição da pasta de Segurança Pública. De acordo com site oficial da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro (SEC/ RJ), são funções da pasta de Cultura “Incentivar a criação artística em todas as suas formas de expressão [...], adotar medidas que visem ao levantamento e à preservação, na esfera estadual, do património imaterial, histórico, artístico e arquitetônico [...] e estabelecer critérios e diretrizes para a gestão dos recursos destinados aos fundos diretamente vinculados à Secretaria”6. Sendo assim, compreendemos que intervir no desenvolvimento, supervisão, incentivo para a cultura não deva ser função destinada aos agentes de segurança. Como Pacheco de Oliveira define, o modelo de gestão tutelar se constitui pela “atribuição a um grupo do poder de falar e agir no lugar de outro, instituindo entre ambos uma relação complexa de expectativas e trocas assimétricas” (PACHECO DE OLVEIRA, 2014). O que, a nossos ver, se assemelha ao regime de pacificação aplicado no Rio de Janeiro e de tão constante a presença do discurso militarizado nos múltiplos aspectos da vida em favela, as relações de poder acabam por naturalizadas. Com a experiência das UPPs, são notados ainda outros casos de atravessamentos da SESEG/RJ no campo cultural. Vejamos a seguir.

As atribuições da SEC/RJ estão disponíveis em seu Site Oficial http://www.cultura.rj.gov.br

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3. AS RESOLUÇÕES 013 E 014 Em 2012, a APAFunk encabeçava uma campanha pelo fim da Resolução 013, considerada instrumento para cerceamento dos eventos culturais ocorridos nas favelas do Rio de Janeiro. Junto a advogados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e muitos outros militantes do movimento funk, a Associação lançou a “Campanha contra a Resolução Zero Treze” realizando Rodas de Funk para resistência artística e promoção de debates sobre a inconstitucionalidade da 013. Símbolo da campanha da APAFunk contra a Resolução 013.7

Fonte: Fotografia de Maria Buzanovsky

Os inúmeros casos de autoritarismo e perseguição às festividades em favela, sobretudo aos bailes funk, nos motiva a analisar aqui a já revogada Resolução e sua sucessora, a de número 134, as suas aplicações e implicações no fazer cultural dentro das favelas com experiência das UPPs. A Resolução Nº 013, da Secretaria de Estado de Segurança, foi publicada em 23 de janeiro de 2007, já a Resolução Conjunta Nº 135, da Secretaria de Estado de Defesa Civil (SEDEC/ RJ) e Secretaria de Estado de Segurança, foi assinada em 20 de fevereiro de 2014. Para avaliação de ambas, chamaremos a Resolução 134 de “Resolução 014”, como ficou popularmente conhecida entre os agentes do movimento funk, devido sua similaridade com a anterior. Em suas considerações iniciais, a 013, já revogada, declara existir uma “necessidade de uniformizar a atuação conjunta dos órgãos da administração pública estadual na manutenção e Disponibilizada pela fotógrafa.

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preservação da ordem pública” para realização de eventos artísticos, sociais e desportivos. Segundo a resolução, faz-se necessário também que os órgãos públicos sejam avisados previamente sobre essas realizações para que possam “coibir ações contrárias à segurança, à tranquilidade e à paz públicas”8 (RIO DE JANEIRO, 2007). Para autorização de um evento, a 014 também reconhece a “necessidade de padronização dos procedimentos”, determinando a importância “dos órgãos públicos serem informados, previamente, sobre a realização de eventos em locais que demandem: ações de prevenção contra incêndio e pânico, atendimento pré-hospitalar, policiamento ostensivo e polícia judiciária”9 (RIO DE JANEIRO, 2014). O procedimento para um realizador obter dos devidos órgãos públicos a autorização para seu evento é composto pela entrega de uma série de documentos e formulários publicados anexos à Resolução. Enquanto na Resolução 013, era preciso encaminhar o requerimento para realização do evento à Polícia Militar e Polícia Civil, a Resolução 014 exige que a autorização seja solicitada também ao Corpo de Bombeiros, além da Polícia Militar e Polícia Civil, como vemos no quadro abaixo10.

Resolução nº 013 da SESEG do Rio de Janeiro, em 23 de Janeiro de 2007. Resolução Conjunta nº 135 das SESEG e SEDEC do Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 2014. 10 O quadro apresentado foi desenvolvido pelos autores do artigo a partir de análise comparativa entre as duas resoluções. 8 9

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Resolução 013/2007 (Conhecida como Zero Treze)

17 a 20 de maio de 2016 Resolução 135/2014 (Conhecida como Zero Quatorze)

1. São consideradas autoridades competentes para autorizar a realização de eventos artísticos, sociais e desportivos: a) O Comandante da OPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – PMERJ, da Secretaria de Estado de Segurança – SESEG, responsável pelo policiamento da área onde se realizará o evento; b) E o Delegado-Titular da Unidade de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro – PCERJ, da Secretaria de Estado de Segurança – SESEG, da circunscrição policial onde será realizará o evento.

1. São considerados agentes públicos competentes para autorizar a realização de eventos culturais, sociais, desportivos, religiosos e quaisquer outros que promovam concentrações de pessoas: a) O Comandante da Organização Policial Militar (OPM), da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ, da área onde se realizará o evento; b) O Delegado Titular da Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária - UPAJ, da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - PCERJ, em cuja circunscrição se realizará o evento; c) O Diretor de Diversões Públicas do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro - CBMERJ; d) O Comandante da Organização de Bombeiros Militar da área onde se realizará o evento.

2. Considerando a natureza e o tipo do evento a ser realizado, poderão as autoridades indicadas nesta Resolução exigirem, motivadamente, outros requisitos que visem à prevenção da incolumidade das pessoas e do patrimônio e a repressão às atividades criminosas

2. Para concessão da autorização solicitada deve ser levado em conta o tipo de local, a natureza do evento, a classificação etária, o público estimado, cujo quantitativo classifica o evento em pequeno, médio e grande porte, a duração e horário, além do cumprimento de requisitos estabelecidos por cada órgão autorizador.

3. A autorização para que o evento ocorra poderá ser revogada ou suspensa a qualquer tempo, desde que devidamente fundamentada pela autoridade que a concedeu.

3. A autorização para que o evento ocorra poderá ser revogada ou suspensa a qualquer tempo, desde que devidamente fundamentada pelo agente público que a concedeu.

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Com a 014, a necessidade do controle policial fica mais explicita quando se trata dos eventos de médio e grande porte, determinando que o realizador deve delimitar áreas para a permanência de agentes de segurança para policiamento ostensivo. De igual modo, devem ser tomadas providências para impedir a atuação de guardadores de carro não autorizados, bem como a ação de vândalos. É preciso também planejar estratégias para a mobilidade de policias, caso seja necessário, e solicitar serviços como iluminação ou poda de árvores para melhorar a vigilância policial na região do evento. No livro Política Cultural com as Periferias, o artigo escrito pelo pesquisador Luiz Fernando Moncau e o advogado Guilherme Pimentel aborda a relação do funk carioca e nossa legislação, dando enfoque a resolução 013: A resolução 013 não distingue eventos por tamanho e, dessa forma, eventos de menor porte acabam abarcados pela Resolução, ficando sujeitos à obediência deste extenso rol de exigências. Trata-se, evidentemente, de medida desproporcional e, portanto, inadequada aos fins que pretende atingir. (MONCAU e PIMENTEL, 2013, p. 61) Ignorando as variações dos portes de eventos, a 013 ainda declarava em seu 2º artigo que: “Parágrafo único - Considerando a natureza e o tipo do evento a ser realizado, poderão as autoridades indicadas nesta Resolução exigirem, motivadamente, outros requisitos que visem à prevenção da incolumidade das pessoas e do patrimônio e a repressão às atividades criminosas. De igual modo, poderão as autoridades indicadas nesta Resolução, suprirem, motivadamente, determinados requisitos considerando o grau mínimo de risco à segurança pública e a natureza do evento artístico, social e/ou desportivo de pequena ou média monta em homenagem ao princípio da proporcionalidade.” (RIO DE JANEIRO, 2007, p. 2). São dispositivos como este que formam brechas para não entendimento pleno da resolução por parte dos realizadores dos eventos, e criam liberdade para os agentes de segurança agirem com critérios não previstos. Moncau e Pimentel alertam que esse funcionamento propicia o aumento de corrupção na administração pública, concluindo que “a lógica da relação entre Estado e Produtores Culturais, que deveria ser de orientação e acompanhamento, passa a ser de informalidade e repressão” (MONCAU e PIMENTEL, 2013). Tal repressão recai sobre os produtores que não tem meios para cumprir todas as exigências do Estado, pois, suas atrações atendem a um público que não tem dinheiro para pagar ingressos de custo elevado. Sendo assim, sem amplo orçamento, como é o caso das práticas culturais cotidianas de favela, tais eventos não se configuram como grandes produções. Há ainda, em ambas as resoluções, a afirmação de que a liberação para o evento pode ser revogada em qualquer momento por qualquer um dos órgãos competentes, impossibilitando a realização, caso seja identificado risco à segurança pública, seja esse risco antecessor ou consequente do evento em questão. 1671

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O espaço para revogação certamente faz se necessário para quando for real o risco à segurança do público e população ao redor. Entretanto, ele é também facilitador do abuso de poder dos agentes de segurança que utilizam-se desta brecha para negociar a liberação dos eventos. Sobre tal autoritarismo, em entrevista a nós concedida, DJ Byano, realizador do Baile da Chatuba, no Complexo da Penha, comentou: Isso aí deles chegarem e proibirem os eventos culturais dá a entender que é um tipo de castigo, né? Eles botam a comunidade de castigo por um bom tempo, pra depois avaliar se vai poder ter ou não. A gente ficou de castigo aqui um bom tempo. Só levando não, não, não, não, não.11 A nosso ver, a arbitrariedade policial revela a perseguição do Estado às práticas culturais de origem popular, sobretudo o funk. Adotando como forma de castigo a proibição de eventos, as UPPs atuam para além da segurança ditando as regras para outros campos da vida na favela. Sob a luz de João Pacheco de Oliveira, percebemos as práticas do Estado como dirigidas Por princípios contraditórios que envolvem sempre aspectos de proteção e de repressão, acionados alternativamente ou de forma combinada segundo os diferentes contextos e os distintos interlocutores. (PACHECO DE OLVIEIRA, 2014, p. 130). Notamos então que o mesmo Estado que decretou a lei Funk é cultura, em 2009, e elaborou programas de incentivo às suas linguagens artísticas, como os Editais para Criação Artística no Funk em 2011 e 2013, também age com repressão por meio de censura e proibições. O caráter incentivador aqui se contrapõe aos atos de repressão que engessam o desenvolvimento da produção cultural no território. Recorrendo ao discurso oficial de preservação da segurança e a justificativa de manutenção da ordem pública, quando favorável, as práticas de pacificação seguem militarizando o território, interferindo na política de incentivo e a transformando em uma prática naturalizada de tutela do Estado sobre a cultura de favela. 4. BEM NA FITA COM A POLÍCIA Em seu texto Unidade de Porrada em Preto12, Adriana Facina reflete sobre os impactos causados pela instalação das UPPs. Traduzindo o significado das Unidades de Polícia Pacificadora na realidade cultural de uma favela, a antropóloga diz: No mundo real, UPP significa não ter mais o baile funk, diversão barata, acessível e atividade expressiva da juventude favelada. UPP quer dizer também que você precisa “estar bem na fita” com a autoridade policial que comanda a unidade para poder realizar eventos culturais, sejam eles públicos ou privados. (FACINA, 2013, p. 1) DJ Byano em entrevista concedida à Pesquisa em 07 de março de 2015. O texto é orelha do livro Até o Último Homem: Visões cariocas da administração armada da vida social.

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Rodrigo Felha, produtor cultural da Cidade de Deus, é o realizador do Baile do Coroado, que é considerado pela Secretaria de Estado de Cultura um modelo de baile a ser seguido pelos demais. Esse molde foi apresentado sem levar em conta as particularidades de cada um, como seus locais de realização, horário, programação, ou seja, características que formam a identidade cultural de um baile funk. (FACINA e PASSOS, 2015). A categorização da SEC/RJ do Baile do Coroado como baile modelo, Felha atribui à boa organização que evento tem e ao bom diálogo estabelecido com o Estado, constantemente representado na favela pelos agentes de segurança: Então, é você ter um baile funk que dez minutos antes de acabar, tem dez, quinze seguranças fazendo a proteção da UPP. Aí, os caras [policiais]: Que baile é esse? Caralho. É... O baile antes de acabar manda quinze seguranças.13 [Grifo nosso] A nosso ver, quando pensar a proteção de uma Base da Unidade de Polícia Pacificadora passa a ser parte da produção de um evento é porque a tutela militarizada do Estado está tão naturalizada, que aparenta ser necessário aceitá-la para dar continuidade à vida cultural da comunidade. Configura-se assim uma inversão de papéis nessa irregular relação: Agente de Segurança Pública/Produtor Cultural. Sendo o segundo obrigado a pensar, além das demandas comuns à execução de uma atividade cultural, também as logísticas de proteção à base de segurança da UPP. Estar bem na fita com a polícia significaria então viver em constante negociação com o Estado armado. E, no lugar das formas de incentivo para desenvolvimento de ações culturais, lidar com a supremacia da política de Segurança Pública. Integrante da banca de seleção do Edital para Bailes e Criação Artística no Funk14, o produtor cultural Mateus Aragão em entrevista à pesquisa que desenvolvemos refletiu sobre a relação Estado e Produtores culturais de favela: O que o Estado tem de fazer é ser sócio dos empreendimentos desses indivíduos, cara. Assim como ele é sócio de todos empreendimentos industriais e comerciais, né. O Estado é praticamente sócio de tudo [...] Qual o pecado do Estado ser sócio do indivíduo, né? Ser sócio do Byano na realização de um baile funk que vai gerar toda uma economia naquela comunidade?15 [grifo nosso] Registros de nosso diário de campo ainda complementam a avaliação do produtor cultural sobre a assimetria dessa relação. Rodrigo Felha em entrevista à nossa pesquisa em 25 de março de 2015. O Edital para Bailes e Criação Artística no Funk foi lançado em 2013 pela SEC/RJ, por meio da Coordenadoria de Cultura, Cidadania e Juventude. Declarava ter objetivo de contemplar cerca de 36 propostas nas seguintes categorias: Produção de Baile Funk e Produção Artística no Funk (produção musical, circulação artística, audiovisual, memória e comunicação). 15 Mateus Aragão, produtor cultural e um dos criadores do Rio Parada Funk e Eu Amo Baile Funk, em entrevista à pesquisa em 06 de maio de 2015. 13 14

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Após desligar o gravador, ainda conversamos um pouco e ele foi mais explícito dizendo que para o Governo foi muita vantagem esse edital [...] Eis que ele me responde: Nesse jogo o governo tá ganhando, mas o funk ao menos entrou em campo, antes sequer estava jogando”.16 Embora os eventos realizados através do Edital para Bailes e Criação Artística no Funk, possam representar a entrada do funk nesse jogo, deve ser continuamente repensada a política pública de incentivo aplicada à cultura de favela para que ela seja de desenvolvimento e não instrumento de repressão por parte do Estado. Ou ainda, para que não sejam jogos, cujas partidas já possuem resultados previamente estabelecidos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nossa reflexão, consideramos que o potencial cultural das favelas deveria encontrar no Estado um setor parceiro para desenvolvimento de suas realizações. No lugar disso, percebemos diversas intervenções públicas que impedem tais práticas como forma de moldar, punir e/ ou criminalizar as produções culturais desses territórios. Com a predominância da falta de sensibilidade no olhar do poder público diante às múltiplas atividades culturais em diferentes condições de produção, são ignoradas necessidades técnicas e o potencial econômico local que tais atividades poderiam atingir. Pensamos ainda em que medida os órgãos de segurança buscam propagar as orientações para que os eventos estejam dentro das normas previstas. A título de exemplo, poderiam ser realizadas oficinas e confeccionadas cartilhas para informar os procedimentos necessários para liberação de um evento cultural. De igual a submissão de eventos a serem liberados poderiam ser feitas através de formulários online com tutoriais de linguagem acessível. Nosso intuito é desnaturalizar as práticas militarizadas. Acreditamos ser necessário problematizar a supremacia da segurança frente à Cultura para que o debate sobre o planejamento de Políticas Públicas de Cultura para as produções de favela não seja submetido a uma gestão tutelada. Tal debate deve ser construído com diálogo aberto com representantes da sociedade civil e dos segmentos que integram esse cenário cultural tão resistente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FACINA, Adriana. Unidade de Porrada em Preto, In: Até o Último Homem. Visões cariocas da administração armada da vida social. BRITO, Felipe; ROCHA DE OLVEIRA, Pedro. (orgs.) Boitempo Editorial. Rio de Janeiro. 2013. Citação encontrada na orelha do livro.

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Registro de Diário de Campo de Pâmella Passos em 06 de maio de 2015.

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_______. Cultura como crime, cultura como direito: a luta contra a resolução 013 no Rio de Janeiro. Rio Grande do Norte. Apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia em 03/08 – 06/08/2014. PACHECO DE OLIVEIRA, João. Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios. Mana vol.20 no.1 Rio de Janeiro Abril. 2014. PASSOS, Pâmella; FACINA, Adriana. Baile Modelo!: Reflexões sobre práticas funkeiras em contexto de pacificação. In: Seminário Internacional Políticas Culturais, VI, 2015. Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Anais do VI Seminário Internacional de Políticas Culturais (orgs. CALABRE; Lia, SIQUEIRA, Mauricio; ZIMBRÃO, Adélia; REBELLO LIMA, Deborah). Fundação Casa de Rui Barbosa, 2015. MONCAU, Luiz Fernando; PIMENTEL, Guilherme. O funk carioca e a lei – problemas e recomendações, In: Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline; MELLO, Marisa S. (orgs.) IFRJ. Rio de Janeiro. 2013. RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Segurança. Ato do secretário. Resolução SESEG nº 013 de 23 de Janeiro de 2007. RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Segurança. Resolução Conjunta SESEG/SEDEC Nº 135 DE 20/02/2014. RIO ON WATCH. Resolução 013: Festejar ou não festejar, em favelas controladas pela UPP http:// rioonwatch.org.br/?p=5388 Site Oficial da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro. http://www.cultura.rj.gov.br

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ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DA CULTURA E AS POLÍTICAS CULTURAIS Patricia Amorim de Paula1 RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar o processo de transferência da gestão de políticas culturais para a iniciativa privada. A constituição do modelo de política pública baseado na perspectiva da Organização Social da Cultura é relevante para o entendimento desse fenômeno que se consolida nacionalmente no âmbito da cultura e possibilita a constituição de projetos em arte-educação que privilegiam o ensino de música. Trata-se de um dos resultados da dissertação de mestrado intitulada: “Organizações Sociais da Cultura e formação em música na cidade de São Paulo: um estudo sobre o Projeto Guri”. PALAVRAS-CHAVE: Organizações Sociais da Cultura, Trabalho Artístico, Projeto Guri, Formação, Música.

O objetivo deste artigo é analisar alguns aspectos da concepção de política cultural adotada pelo estado de São Paulo nos últimos 20 anos. Pretendo trazer dados analíticos para a questão proposta no resumo: qual é a intenção de transferir a gestão de políticas culturais para a iniciativa privada? Nisto consiste o esforço teórico desta discussão. O modelo de política cultural que vem se estruturando em âmbito estadual e nacional se constitui de Fundações, Organizações Sociais da Cultura (OSC) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Desde 1998, com a promulgação da Lei Federal nº 9.637 (BRASIL, 1998) que as regula, as ações culturais no âmbito público têm sido submetidas a processos de reestruturação, o que consiste na sua transferência da esfera estatal para a esfera privada de interesse público. Sendo assim, instituições privadas propõem um projeto de gestão para coordenar projetos, escolas e teatros públicos, o que implica na extinção das entidades originais, e das relações sociais de trabalho e formação outrora constituídas em âmbito público e estatal. Essa reestruturação emerge no processo político de Reforma Administrativa do Aparelho de Estado em 1995, elaborado pelo Ministro da Administração Pública e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira (1997) e, posteriormente, conduzido pela Ministra Cláudia Costin Mestre em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na área de concentração Ciências Sociais na Educação. Tem interesse pelos seguintes temas: educação, sociologia da educação, sociologia da cultura, sociologia do trabalho artístico e formação de músicos. CV Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq. br/7016792232288942. Correio eletrônico: [email protected]

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(1998-1999), responsável pela implementação do projeto das Organizações Sociais como gestoras e executoras de serviços públicos sociais, como saúde, educação e cultura. O intuito principal de tal reforma foi tornar o país economicamente competitivo na era global. Para tanto, adotou-se o modelo administrativo público gerencial, sob um Estado SocialLiberal2, baseado em conceitos atuais de administração e eficiência e voltado para o controle dos resultados e para a descentralização (BRESSER PEREIRA, 1997). Historicamente a tradição filantrópica privada compõe parte da oferta de serviços sociais em nosso país, como entidades privadas de utilidade pública (filantrópicas, associações comunitárias, santas casas de misericórdia, entre outras), atendendo demandas essenciais com vantagens econômicas para isso (isenção de impostos). Contudo, a reconfiguração dessas formas tradicionais como Organizações Sociais no Estado contemporâneo representam uma “inovação institucional”, no que se refere ao seu marco legal e modo de parceria com o Estado, conforme analisa Modesto (1997), assessor do ex-ministro Bresser Pereira e professor de Direito na UFBA. Cabe frisar que, anteriormente a esse modo de inserção das artes no mercado, a esfera cultural e artística passou a compor a lógica mercantil, no contexto brasileiro, desde o seu estabelecimento com a terceira revolução tecnológica capitalista, a partir dos anos 1960. Esse processo se intensificou com o advento e a consolidação da indústria cultural, entre os anos 1970 e 1980, rendendo empregos e contratos de trabalho aos artistas, inclusive com o próprio Estado, apesar do contexto de repressão desse momento histórico3 (RIDENTI, 2000). Apesar de essa visão mercantilizada de cultura ser a que persiste em nossa atualidade e, inclusive, orienta as políticas culturais, temos, do mesmo modo, uma compreensão mais ampla acerca da cultura que convive e disputa espaço, traçando perspectivas possíveis de política cultural. Estamos falando numa compreensão de cultura como trabalho intelectual e criativo do homem, ou seja, a sua capacidade de se comunicar com homens e mulheres de seu tempo por meio da música, da arquitetura, da pintura, da literatura, da filosofia, das ciências físicas – enfim, de todos os saberes socialmente construídos, assim como aqueles não sistematizados (das instituições, das maneiras, dos costumes e das memórias familiares); trata-se de uma capacidade que pode, quiçá, atravessar períodos, por ser uma atividade humana relacional que não Bresser-Pereira (1997, p. 10) atribui a esta expressão a seguinte definição: “social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação de seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional”. 3 Compreendemos que a discussão acerca da mercantilização da arte se faz presente desde a construção do conceito de cultura entre os séculos XVIII e XIX. Contudo, o debate proposto neste artigo é contemporâneo, por isso adotamos como marco histórico o período mencionado acima na abordagem do tema em contexto nacional. Para maior aprofundamento neste tema, indicamos a discussão apresentada por Raymond Williams no livro Cultura acerca das formas de patronato nas artes. 2

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se encerra no produto; ao contrário, ela se baseia na produção de riquezas em torno de valores de uso. Chegamos a essa possível compreensão de cultura por meio da expansão interpretativa dos constructos base e superestrutura na teoria marxista, bem como do diálogo com a produção intelectual de Raymond Williams (2007; 2011) e sua compreensão acerca da cultura como todo um modo de vida, um processo social geral, o qual se constrói com base na experiência, desde a mais imediata até o contato com a experiência alheia. Outros intelectuais brasileiros pensaram a política cultural desse ponto de vista: em âmbito nacional, o economista Celso Furtado, e, no município de São Paulo, a filósofa Marilena Chaui. Vejamos, a seguir, suas respectivas concepções de cultura. Primeiramente, Furtado (2012), em seu discurso de posse ao cargo no Ministério da Cultura (1986), apresenta sua noção de cultura, associando-a à ideia de trabalho no mundo das artes como meio e fim, pois ele, o trabalho, não é encarado simplesmente como meio, como fator de produção cuja produtividade se desenvolve e amplia na medida em que avançam a acumulação e a técnica; nas artes, o trabalho é um fim em si mesmo, no qual se torna difícil estabelecer padrões de produtividade e mensuração de valor4. Neste excerto, especificamente, ele confere maior destaque à dimensão valor de uso, aspecto que nos interessa, mas que em nossa sociedade não podemos separar da dimensão valor de troca, para fins de compreensão. Cultura, para mim, é a dimensão qualitativa de tudo que cria o homem. E o que tem sentido profundo para o homem é sempre qualitativo. [...] O homem, com seu gênio criativo, dá significação às coisas, e são essas coisas impregnadas de significação que constituem a nossa cultura. Em seu esforço para enriquecer a própria vida e a sociedade em que está inserido, o homem cria cultura. Não esqueçamos que o homem é um ser em formação e que é por seu próprio esforço que ele avança nesse caminho. É natural, portanto, que o homem sempre se sinta desafiado, confrontado ao mistério de si mesmo. As obras superiores de seu espí Não entraremos na discussão acerca da materialidade do trabalho imaterial. Ressaltamos somente a partir da análise elaborada por Marx (2013) que encontramos no trabalho musical, tal como nas outras formas de trabalho subordinadas à lógica de produção de mercadorias e acumulação de capital, uma dupla dimensão: o trabalho concreto como fruto da necessidade humana de transformação da natureza, elemento crucial de sua existência e constituição social e o trabalho abstrato subvertido pelo modo capitalista de produção cuja finalidade primordial consiste na produção de mais-valia. Partindo dessa premissa, mesmo o trabalho imaterial ou mercadoria simbólica, estaria submetido à lógica da forma mercadoria e sua realização. Porém, considerando o produto imaterial abstrato – no caso da música, o som – , sabemos que este não se mede por padrões, devido à dificuldade do cálculo do tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, o que torna sua avaliação pelo capital um tanto problemática, tal como sua apropriação privada. Apesar disso, a sujeição da atividade artística à ordem do capital se dá pela conversão de sua improdutividade em produtividade e pela exploração da capacidade de trabalho socialmente necessário (COLI, 2006). O artista não tem o domínio total das condições objetivas e materiais da realização de seu trabalho. As conseqüências da consolidação de um mercado de trabalho não tradicional neste campo culminam: no crescimento do número de artistas à procura de trabalho, baixo índice de trabalho formal, ameaças baseadas na efemeridade dos empregos, crescente concorrência e exigência de maior qualificação profissional (SEGNINI, 2012). Para maior aprofundamento das questões relativas ao trabalho imaterial (imensurabilidade, irredutibilidade, improdutivo e imaterial) vide o artigo de CERQUEIRA, Amanda (2015).

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rito são respostas a esse desafio, mergulhos nesse mistério. Mas, meus amigos, a cultura também está impregnada em todos os momentos de nossa vida. Eu diria mesmo que a dimensão cultural do nosso cotidiano é o mais significativo no que respeita a uma política cultural. [...] E é dessa visão global da vida que temos de partir para pensar em política cultural. Sendo um esforço permanente para enriquecer a vida do homem, o processo cultural tem que abranger esta em sua globalidade. (FURTADO, 2012, p.51-2) Do mesmo modo que vemos pontos de contato desta compreensão de cultura com a elaborada por Williams (2008; 2011), encontramos, com efeito, a mesma aproximação em Marilena Chaui, baseada em Marxismo e literatura (WILLIAMS, 1979). Principalmente porque ela ressalta o processo de distinção provocado pela divisão social das classes (cultura dominante X cultura popular) e seus efeitos deletérios (por um lado, a cultura como expressão e conseqüência da sociedade de classes; por outro lado, a ligeira aparência de uma diferença qualitativa). Reiteramos a análise dessa autora de que é preciso romper com este prisma, estruturando uma crítica cultural materialista capaz de construir uma política cultural apoiada no modo de inserção da cultura na sociedade de classes, na república e na democracia (CHAUI, 2006). Em decorrência de seu sentido latino e do novo sentido que recebe no final do século XVII, cultura passa a ter duas significações. Numa delas, refere-se ao processo interior dos indivíduos educados intelectual e artisticamente; é o campo das “humanidades”, apanágio do “homem culto” em contraposição ao “inculto” – esse contraponto, diz Hanna Arendt, exprime e alimenta o filistinismo burguês5. Na outra, marcada pela relação com a história, torna-se o conjunto internamente articulado dos modos de vida de uma sociedade determinada e é concebida como o campo das formas simbólicas (trabalho, linguagem, religião, ciências e artes), produzidas pelo trabalho do Espírito (em Hegel) ou como resultado das determinações materiais econômicas sobre as relações sociais (em Marx). (CHAUI, 2006, p. 12-3) Entre os anos 1970 e 1980, os teatros subvencionados e as escolas mantidas pelo Estado representavam instituições que possibilitavam o mais elevado grau de direitos vinculados ao trabalho – quando comparado ao contexto mais amplo do heterogêneo mundo da cultura6. Porém, nem todos os trabalhadores artistas gozavam de um contrato formal de trabalho, ou de algum vínculo empregatício; pelo contrário, recebiam somente o pagamento por ordem de serviço O termo filistinismo burguês, na análise de Hannah Arendt (2001) e na interpretação de Marilena Chaui (2006, p.13), expressa os efeitos da divisão social das classes sobre a relação com a cultura, promovendo uma distinção entre “culto” e “inculto”, “cultura erudita” e “cultura popular”, “cultura e arte populares”, vinculados à tradição nacional, tornam-se folclore; e arte erudita ou de elite torna-se belas artes e é apreciada por um público seleto. 6 Acerca disso, nos referimos ao trabalho do sociólogo francês Robert Castel (2009), quando analisa a segmentação do mercado de trabalho, ou seja, distinção e conseqüente desarticulação da classe trabalhadora, entre núcleos protegidos pela legislação social e trabalhadores que perdem os seus direitos, desfiliados. 5

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(MARÃO, 2011; SEGNINI, 2012). Por outro lado, essas instituições possibilitam o exercício da arte publicamente instituída, tendo como patrono o público (WILLIAMS, 2008). Dando maior ênfase às atividades musicais realizadas nesses espaços, cito as seguintes instituições e suas respectivas datas de criação: Orquestra Sinfônica Brasileira, 1940; Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, 1950; Conservatório de Tatuí, 1951; Orquestra Sinfônica Estadual – atual OSESP, 1954; Banda Sinfônica do Estado de São Paulo – juntamente com a Universidade Livre de Música (ULM), 1989; Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, 1989; Escola de Música do Estado de São Paulo - Tom Jobim, antiga ULM, 1989; Orquestra Experimental de Repertório, 1990; Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo, 1968; Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo, 1939; Escolas Municipais de Arte (Dança e Música, respectivamente, 1940; 1969); Projeto Guri, 1995. Conforme a análise de Juliana Coli, cantora e pesquisadora do MusiMid/SP7, no início da década de 1980, os “chamados servidores artísticos” do balé da Cidade de São Paulo e da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, que eram efetivos perderam a sua estabilidade e, conseqüentemente, seus direitos trabalhistas. Em 1988, esse grupo de trabalhadores efetivos foi eliminado, com a justificativa de que os quadros de funcionários poderiam vir a ser repostos (COLI, 2003, p. 224-5). As mudanças no mundo do trabalho, da criação desses postos até a atualidade, foram substanciais e sistemáticas, especialmente se pensarmos no processo de publicização que, a partir da década de 1990, extinguiu as entidades estatais e públicas, substituindo-as por fundações públicas de direito privado. Nesse sentido, as formas autônomas, precárias, substitutas, intermitentes e subcontratadas de trabalho, como o não trabalho e o desemprego, que sempre fizeram parte do trabalho artístico brasileiro, intensificaram-se ainda mais no atual contexto. Nas pesquisas desenvolvidas pela socióloga do trabalho, Liliana Segnini (2009; 2012; 2014), ela destaca que no Brasil, em música e dança, os índices sobre o mercado de trabalho formal, com registro em carteira, são inexpressivos. Por outro lado, as múltiplas formas de trabalho precário necessárias à manutenção da sobrevivência desses artistas provocaram o crescimento do número de ocupados em Artes e Espetáculos no Brasil. Esta constatação é reiterada pelo fortalecimento desse campo econômico e pelo crescimento do número de artistas e produtores de espetáculo entre os trabalhadores ocupados no Brasil, bem acima dos índices que informam o mercado de trabalho. Por exemplo: entre 1992 e 2006, a população ocupada cresceu 16%, enquanto o grupo de profissionais dos “Espetáculos e das Artes” (SEGNINI, 2008) registrou crescimento de 67% (SEGNINI, 2009a). Este dado é confirmado, quando considerado o período mais recente 2003/2011, no qual a população ocupada volta a Centro de Estudos em Música e Mídia.

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apresentar crescimento de 17%, enquanto os inscritos no grupo referido registram crescimento maior de 22%. (SEGNINI, 2014, p. 51) A lógica empresarial é a que impera no modelo das OSC, com os princípios de eficiência, eficácia, contenção dos gastos e produtividade. Quando uma OSC assume a gestão de um equipamento cultural, juridicamente a entidade original é extinta e, em decorrência disso, ocorre a mudança no enquadramento funcional para o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Sabemos que esses elementos causam impacto sobre a qualidade do serviço social ofertado, sobretudo pela forma como recaem sobre os trabalhadores. Sobre esse aspecto, a seguinte declaração da ex-secretária da cultura do estado de São Paulo (2003-2005), Cláudia Costin, responsável pela adoção do modelo de OSC, expressa tais impactos nas relações de trabalho: É quase impossível operar a cultura diretamente. Não dá para contratar um bailarino por concurso público, prevendo que ele vá se aposentar aos 70 anos como funcionário. A OS estabelece um contrato de gestão, que impõe à associação que vai gerir o equipamento um grupo de metas que explicitam como deve funcionar. É muito mais fácil e isso despolitiza a condução daquele órgão. [...] A grande vantagem é a flexibilidade e o controle social. (COSTIN, 2004, página ilegível) Em levantamento realizado acerca desse tema, passaram por esse processo, em especial no estado de São Paulo, que se tornou o laboratório de aplicação dessa política8, as seguintes instituições responsáveis pela formação musical de crianças e jovens: Associação de Amigos do Conservatório de Tatuí - 2006, Associação de Amigos do Projeto Guri - 2004 (polos no interior de São Paulo), Santa Marcelina – Organização Social da Cultura - 2007 (Projeto Guri - polos da grande São Paulo, Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim) e Escola Municipal de Música de São Paulo - 2011 (Fundação Theatro Municipal - Organização Social da Cultura Instituto Brasileiro de Gestão Cultural). Dentre essas, somente o Conservatório de Tatuí, a Escola de Música Tom Jobim e a Escola Municipal de Música de São Paulo oferecem ensino técnico ou que viabilize a profissionalização por meio de preparação para o ingresso no ensino superior. Por outro lado, o modelo das OSCs, particularmente no estado de São Paulo, tem sido a referência em direitos trabalhistas no campo da formação em música. Nos programas de formação referidos acima, a experiência de enquadramento funcional estatutário não existiu; em seu lugar estavam os contratos por tempo determinado e o pagamento por ordem de serviços – relação mediada pela Cooperativa de Músicos do Estado de São Paulo, responsável pelo repasse dos No mesmo momento histórico no qual se aplicava a Reforma em âmbito federal, o estado de São Paulo foi um dos primeiros a implementar as mudanças sob este princípio. Podemos citar algumas delas: a privatização do Banco do Estado de São Paulo (Banespa); a concessão de estradas estaduais; e a entrega de parte da oferta do Sistema Único de Saúde (SUS) para hospitais privados. É importante lembrar que, a partir de 1998, por meio da Lei Complementar Estadual nº 846, as instituições sem fins lucrativos que atuam na área cultural passaram a ser qualificadas como Organizações Sociais da Cultura.

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pagamentos. Por isso, alguns professores de música veem na OSC uma perspectiva de trabalho formal com o vínculo celetista e alguns direitos a este relacionado. Com respeito a outros equipamentos culturais voltados à atividade musical que foram qualificados como Fundações, OSC e OSCIPs, temos: Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Fundação Osesp - 2005); Fundação Theatro Municipal de São Paulo9 (Organização Social da Cultura Instituto Brasileiro de Gestão Cultural – 2013); Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Jazz Sinfônica e Orquestra Sinfônica do Theatro São Pedro (Organização Social de Cultura Instituto Pensarte – 2011), Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Instituto Cultural Filarmônica – 2005), Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Fundação Cultural Pablo Komlós – 2004). Há também outros equipamentos culturais geridos sob esse modelo: o Museu da Imagem e do Som (Associação do Paço das Artes Francisco Matarazzo Sobrinho - Organização Social de Cultura - 2007), o Museu da Língua Portuguesa (Organização Social de Cultura IDBrasil Cultura Educação e Esporte – 2012) e a Pinacoteca do Estado (Associação Pinacoteca Arte e Cultura Organização Social de Cultura – 2005). Há três forças sociais protagonistas nesse processo que podemos definir com base no trabalho da pesquisadora taiwanesa Chin Tao Wu (2006): 1-) a sociedade política, representante do Estado, como parte do poder político; 2-) uma parcela da sociedade civil de origem burguesa responsável pela gestão dos equipamentos públicos (OSC), constitui o poder simbólico; e 3-) as empresas e as grandes corporações que financiam as ações culturais públicas por meio do mecanismo de renúncia fiscal e/ou patrocínio, representantes do poder corporativo. Acontecimentos políticos, sociais e econômicos, em âmbito internacional e nacional, produziram essa cadeia atual de relações. Após anos de consolidação da privatização da cultura e conseqüente substituição do governo pelo mercado como instituição econômica e social, durante os governos de Ronald Reagan (presidente dos EUA de 1981-1989) e Margaret Thatcher (primeira-ministra britânica de 1979-1990), sua influência mundial gerou um receituário a ser seguido pelos países em desenvolvimento, nomeado Consenso de Washington (1989), do qual o Brasil foi signatário. Para além disso, as relações com a economia de mercado se intensificaram sob o poder político dos democratas nos EUA e dos novos trabalhistas na Inglaterra, governos sucessores de Reagan e Thatcher, mostrando que a centro-esquerda esteve afinada com o movimento progressista do capital (WU, 2006). Com um corpo artístico formado pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, Coro Lírico Municipal de São Paulo, Balé da Cidade de São Paulo, Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, Coral Paulistano Mário de Andrade, Orquestra Experimental de Repertório, Escola Municipal de Música de São Paulo e pela Escola de Dança de São Paulo.

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As mudanças propostas por Reagan e Thatcher para as instituições National Endowment for the Arts (EUA) e Arts Council (RU), basearam-se numa sujeição passiva, usando as estruturas originais dessas instituições para promover suas políticas. Diferentemente das administrações de Reagan e Thatcher, no caso brasileiro optou-se pela reestruturação drástica dos equipamentos públicos de artes com base no modelo descrito acima. No Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1990, foi estabelecida a política de privatização, que redefiniu o papel do Estado brasileiro. Tal política consiste na redução do gasto público e na expansão do setor privado, conforme estabeleceram Reagan, Thatcher e seus respectivos sucessores (WU, 2006). A reforma adaptativa e o paradigma gerencial das Organizações Sociais contribuíram somente para a desvalorização do Estado aos olhos dos cidadãos (NOGUEIRA, 2005, p.40). Por outro lado, precisamente porque teatros, museus e escolas de artes com financiamento público fazem parte do Estado, ainda que de forma mediada por uma OSC ou Fundação, é que as empresas admitem interesse em compor essa parceria, o que lhes rende a legitimidade e o poder simbólico associado a essas instituições públicas. Já ao poder político convém estabelecer alianças com o poder corporativo, mesmo que o etos empresarial e os interesses de ambos se confundam em detrimento da instituição em si e do próprio Estado, pois o que está em jogo é a manutenção do poder e do sistema hegemônico (WU, 2006). Atualmente, na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo (SEC), há 38 iniciativas adeptas do mecanismo de sociedades civis sem fins lucrativos, sem a privatização do patrimônio em si10. Para situar o leitor, podemos exemplificar com o caso da Pinacoteca do Estado (2005). A Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC) concentra uma estrutura gerencial característica desse formato apresentado anteriormente, composta por conselhos, sendo o de Administração responsável pelas decisões da instituição e plano de metas similar ao das empresas. Há indícios de que o Conselho de Administração associou-se ao mercado, deixando de corresponder às expectativas de manutenção da história do museu, seu acervo e legado artístico, conforme reflete Ana Maria Belluzzo em entrevista à Carta Capital (MARGARIDO, 2014, p. 63): “Numa época em que a produção cultural tornou-se commodity, como evitar que estratégias mercadológicas passem a definir o que será a história da arte?”. Formação Cultural: Conservatório de Tatuí, EMESP Tom Jobim, Fábricas de Cultura, Oficinas Culturais, Projeto Guri e SP Escola de Teatro; Corpos Artísticos: Banda Sinfônica, Jazz Sinfônica, OSESP, Orquestra do Theatro São Pedro, São Paulo Companhia de Dança; Museus: Casa Guilherme de Almeida, Casa das Rosas, Catavento, Estação Pinacoteca, Memorial da Resistência, Museu Afro Brasil, Museu Casa de Portinari (Brodowski), Museu Felícia Leirner (Campos do Jordão), Museu da Casa Brasileira, Museu da Imagem e do Som (MIS), Museu da Imigração, Museu da Língua Portuguesa, Museu de Arte Sacra, Museu do Café (Santos), Museu do Futebol, Museu Índia Vanuíre (Tupã), Paço das Artes, Pinacoteca do Estado, Museu de História de São Paulo; Festivais: Festival de Campos do Jordão; Teatros, Auditórios e Salas de Concerto: Auditório Claudio Santoro, Teatro Maestro Francisco Paulo Russo, Teatro Procópio Ferreira, Teatro Sérgio Cardoso, Sala São Paulo, Theatro São Pedro; Programas em Rede: Pontos de Cultura. 10

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O conselho é freqüentemente composto por administradores, advogados e empresários colecionadores de arte, com forte inclinação para o segmento contemporâneo. Nesse sentido, interesses privados acabam se cruzando com interesses públicos. O presidente do conselho, José Olympio Pereira, por exemplo, é um amante de obras contemporâneas e possui um acervo que ultrapassa 1,2 mil peças. Coincidentemente, ele está na nova coalizão para reerguer o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no alto escalão do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e da Bienal (MARGARIDO, 2014). Outros exemplos significativos de bilionários, que se afastam de seus negócios e passam a dedicar-se ao mundo das artes e da educação, possuem destaque nas publicações americanas da revista Forbes. Ligadas ao setor financeiro, temos a família Villela: Maria de Lourdes Egydio Villela ou Milú, que preside o Itaú Cultural e acumula função com a presidência do MAM-SP, e Ana Lucia de Mattos Barretto Villela, que preside o Instituto Alana, no Jardim Pantanal, região leste de São Paulo, onde desenvolve projetos educacionais e iniciativas contra o consumo infantil (BERNARDES, 2015, p. 25). Recentemente, o ranking dos bilionários brasileiros publicado pela revista Forbes Brasil (2015) destaca como primeiro da lista: Jorge Paulo Lemann, cuja fortuna, calculada em 83 bilhões de reais, foi acumulada no ramo de cervejaria com a empresa AmBev, que em 2008 tornou-se a maior cervejaria do mundo ao associar-se à Budweiser. Além disso, possui outros investimentos em negócios altamente rentáveis. No ramo da educação, fundou em 2002, a Fundação Lemann, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é melhorar a educação pública do país, com base nos princípios de empreendedorismo e de high education influenciados pela cultura norte-americana. A pesquisa realizada por Chin Tao Wu (2006) informa que os colecionadores-curadores de arte contemporânea se encontram em vantagem com relação aos demais colecionadores, pois possuem o privilegio da informação. E, quanto mais obras compram de um determinado artista, maior será o valor ou o prestígio de sua coleção após a exposição no museu. Essa relação confere um ganho econômico ao investidor, em detrimento do caráter/interesse público do museu, o que é possível constatar na declaração de um desses empresários, citada pela pesquisadora: “Não temos culpa que depois da aquisição do museu ou exposição o artista eleva o preço de sua obra em 30% - é quase impossível ser curador e não haver conflito de interesses” (WU, 2006, p. 116). A prerrogativa do Estado Social-Liberal expressaria o processo de publicização mencionado anteriormente; sob essa construção, a sociedade civil seria convocada a elaborar e a promover ações culturais, com ou sem financiamento estatal, compondo, desse modo, uma espécie de associação democrática mais próxima do público do que o próprio Estado, porém associada ao poder estatal. Esta análise assemelha-se à elaborada pela socióloga Evelina Dagnino (2005), na qual se identifica uma “confluência perversa” entre dois projetos societários que emergem da

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crise do sistema autoritário e repressivo anterior: o projeto neoliberal e o projeto democratizante e participativo. Dessa crise ocorre um deslocamento de sentido e construção discursiva sobre a sociedade civil, a cidadania e a participação e, de fato, ambos os projetos requerem uma sociedade civil propositiva e ativa, mas em sentidos opostos. Nesse movimento, conforme já observamos na descrição e na análise do Projeto Guri, identificamos uma crise discursiva, conforme nomeou Dagnino (2005, p. 48). E nas armadilhas da homogeneidade desse vocabulário comum, acinzentam-se as diferenças, esfacelam-se as nuances e diluem-se os antagonismos sociais, aspectos que continuaremos desvendando no transcorrer da análise empírica. Nessa acepção, percebemos certa apropriação do conceito de sociedade civil de Gramsci (1980) e conseqüente deturpação deste. Afinal, há diferenças significativas entre a sociedade civil convocada pela Reforma do Estado e seu conceito clássico. Para Marx & Engels (1984), a sociedade civil expressa todo o intercâmbio material dos indivíduos de acordo com o presente desenvolvimento das forças produtivas; Gramsci (1980) admite a mesma compreensão, mas reforça a dimensão superestrutural em relação dialética com essa base material. O equívoco consiste em associar a teoria gramsciana, por meio da qual se compreendem as formações sociais ocidentais como resultantes históricas das transformações econômicas e da dinâmica relação entre as duas esferas societárias que compõem o Estado: a sociedade civil e a sociedade política, com a práxis do chamado terceiro setor11, visto como sociedade civil. Não podemos sustentar essa incoerência; afinal, dada a relação de dependência do financiamento e da agenda de países avançados ou organismos internacionais, bem como a dependência de recursos estatais e empresariais, o terceiro setor (ONG, OSC, Fundação e OSCIP) não deve ser comparado à sociedade civil em geral, que se constitui de modo heterogêneo com diferentes orientações políticas e projetos sociais distintos, cujas ações podem ou não ser organizadas nos movimentos sociais (DAGNINO, 2005). Nesse caso, parece mais adequado nomeá-las como sociedade civil burguesa, conforme definiram Marx e Engels (1984). Dessa forma se constitui o poder híbrido – público (Estado) e privado (sociedade civil burguesa). Para o primeiro, há redução de gastos, resultados quantitativos baseados no principio da competição relativa à maior qualidade e eficiência das prestações, prestígio social diante do cidadão-cliente e manutenção do poder político. Para o segundo, há a possibilidade de operar como instituições ideologicamente eficientes, cujo status, a autoridade e o prestígio foram cedidos pelos espaços públicos por eles administrados, o que reforça o seu poder simbólico (DUNCAN, 1995). Neste contexto se inscreve o poder corporativo. Com o advento dessa legislação, o poder corporativo é convocado a compor a relação de poder híbrido - público (Estado) e privado (terceiro setor), o que inaugura uma nova configura Neste trabalho, compreendemos o terceiro setor ou sociedade civil como um setor social situado entre o Estado e o Mercado (DAGNINO, 2005, p. 59).

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ção das políticas culturais em âmbito nacional. Primeiramente, observamos uma transformação das instituições estatais, que outrora foram criadas para ser um contraponto à lógica comercial do mundo das artes e, no presente momento, são revestidas pela ideia de tornar seus espaços atrativos ao mercado da arte (Wu, 2006). Basta verificar como funcionam as grandes salas de concerto, como a Sala São Paulo e o Theatro Municipal de São Paulo, captando recursos por meio do aluguel desses espaços para apresentação de outros grupos musicais e eventos privados da alta sociedade paulistana, tal como da oferta de concertos da orquestra oficial em eventos privados de grande prestígio. Além disso, os conceitos de patrocínio são remodelados para o exercício de propaganda e marketing e de compromisso com as artes, no intuito de reunir e envolver os empresários com a causa artística. E, de certo modo, o poder simbólico das instituições estatais é mobilizado para legitimar o poder corporativo. Participar de conselhos de museus é essencialmente uma ‘roupagem obrigatória’ na vida social da elite. [...] Tal como a associação a um clube fechado, cuja exclusividade é parte do quebra-cabeça das redes de relações, amizades e conhecimentos da alta classe. Mas museus, afinal, são clubes fechados; operam e funcionam na esfera pública e detêm uma autoridade e um respeito públicos significativos. Para qualquer pessoa que tenha status de curador, essa posição oferece um meio institucional de exibir poder considerável na sociedade; é uma avenida importante em uma democracia capitalista. (WU, 2006, p. 110) A rede de relações formada por executivos de empresas, em sua maioria advogados, banqueiros, contadores ou outros especialistas em finanças, que por meio da arte se encontram e estabelecem parcerias nos negócios, também estabelece laços consangüíneos, matrimoniais, de amizade e de sociedade. Esse encontro torna-se um elemento desejável para a acumulação de capital das corporações financiadoras de arte e, como conseqüência disso, o seu poder econômico transforma-se em poder cultural12. A propriedade e o controle dos meios de produção cultural tornam-se um setor dentro da propriedade e do controle mais amplos de uma área produtiva e financeira, no caso, as grandes corporações (WILLIAMS, 2008). No mesmo sentido, a análise de Williams (2008) reitera que as relações de produto e mercado tornaram-se predominantes na atualidade. Afinal, as empresas industriais e comerciais consolidaram um patronato de segundo tipo, análogo ao das cortes e das famílias nobres (forma anterior de mecenato). Neste caso, há uma apropriação das obras para uso próprio, e de forma Este termo foi adotado por George Yúdice (2006, p. 45) para expressar a extensão do biopoder na era da globalização. No contexto em que o utilizamos, ele explicita uma das razões fundamentais pelas quais a política cultural se tornou o mote para repensar acordos coletivos, pois o termo reúne o que na modernidade fazia parte do desejo de emancipação, por um lado, e que se converte atualmente em processo de regulação, por outro. Nisso consiste a expressão mais evidente da conveniência da cultura, tese que o autor defende no trabalho citado. 12

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mais atualizada, como um meio de investimento ou propaganda institucional. No final do século XX, ressalta o autor, muitas outras instituições culturais passam a ser dependentes do rendimento ou do patrocínio dessa instituição específica do mercado – a propaganda. Acerca das redes sociais e corporativas que esses grupos criam entre si e a concentração de poder que circula entre elas, Chin Tao Wu (2006) sintetiza, a partir de sua pesquisa, três aspectos que podemos mencionar, a fim de verificar sua ocorrência em nosso estudo de caso: 1- a relação entre poder corporativo e poder político por meio do financiamento de campanha eleitoral; 2- a promoção de empresários a cargos formais na administração das instituições culturais, o que manifesta não somente o controle governamental sobre a instituição, mas também a valorização da “cultura empresarial” e seu papel ideológico, tal como podemos verificar nas Fundações e Associações de Amigos da Arte, especialmente, entre os membros dos conselhos13; e 3- a combinação entre poder aquisitivo e poder econômico, que oferece acesso privilegiado a certos indivíduos à administração de conselhos, instituições de caridade, hospitais e escolas, o que amplia seu grau de influência na sociedade (já pudemos verificar que, a partir dos anos 2000, várias empresas patrocinadoras do Projeto Guri constituíram Organizações Sociais próprias). Pela expressão que o Projeto Guri assume como programa de educação musical mais longevo e de grande extensão no estado de São Paulo, nós o privilegiamos como campo empírico, na tentativa de compreender como se manifesta a lógica do modelo de política pública baseado na perspectiva da Organização Social da Cultura na constituição do Projeto Guri, criado em 1995 e vigente. Atualmente, duas Organizações Sociais administram esse projeto: a Associação de Amigos do Projeto Guri - AAPG (polos do interior, litoral e capital) e a Santa Marcelina Cultura – GSM (polos da Grande São Paulo e capital). Foi possível constatar as relações entre poder simbólico (Organizações Sociais da Cultura) e poder corporativo (empresas patrocinadoras) por meio da ideologia veiculada na parceria de ambos para o desenvolvimento do Projeto Guri14. É observado um discurso de defesa de um capitalismo sustentável, que viabilize o desenvolvimento do país e o aumento dos lucros das empresas, sem comprometer o equilíbrio do meio ambiente, com ênfase na responsabilidade social, na sustentabilidade e no consumo consciente. Do mesmo modo, as ações do Projeto Guri – AAPG – privilegiam a conscientização ambiental (parceria com o Instituto de Pesquisas Na Fundação Osesp, destacamos os seguintes nomes do Conselho de Orientação associados à cultura empresarial: Horácio Lafer Piva, economista e administrador de empresas brasileiro, é um dos acionistas da Irmãos Klabin & Cia e Celso Lafer, jurista e membro efetivo do conselho administrativo da Klabin Papel e Celulose; Pedro Moreira Salles, economista e presidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco Holding; José Ermírio de Moraes Neto, administrador de empresas do Grupo Votorantim, “um negócio familiar”. 14 A listagem completa com todas as empresas patrocinadoras do Projeto Guri encontra-se em: PAULA, Patricia A. Organizações Sociais da Cultura e formação em música na cidade de São Paulo: um estudo sobre o Projeto Guri. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016. (no prelo) 13

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Ecológicas - IPÊ), projetos especiais como Orquestra Verde e Guri Consciente15. Já as ações do Projeto Guri – Santa Marcelina – privilegiam a perspectiva do protagonismo juvenil por meio do projeto especial Protagonismo Infanto-Juvenil (parceria com as empresas Bank of America, Grupo Camargo Côrrea, Redecard, ISA-CTEEP e AstraZeneca), neste é perceptível o reforço da lógica do mérito e um estímulo à inserção dos jovens no mercado de trabalho por meio da venda de sua força de trabalho O que resulta dessa parceria é o conjunto de valores a serem interiorizados pelos participantes: conformação dos indivíduos ao seu grupo de origem, seu protagonismo social como sinal de sua resiliência, noção de equipe, tolerância e cooperação. Podemos verificar todos esses aspectos na orientação mais recente do mercado de trabalho, proveniente da racionalidade capitalista pós-reestruturação produtiva, em que são mobilizadas as competências atitudinais, como a polivalência, o empreendedorismo, a flexibilidade, a criatividade e a liderança. Considero que esse balanço sobre a transferência da gestão de políticas culturais para a iniciativa privada permitiu compreender de que modo a relação entre arte e cultura foi apropriada pelo capital como ferramenta política para minimizar tensões sociais ou estimular o crescimento econômico por meio dos projetos de desenvolvimento cultural (YÚDICE, 2006).

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Disponível em: http://www.projetoguri.org.br/projetos-especiais/orquestra-verde/. Para maiores informações, ver também: http://www.projetoguri.org.br/guriconsciente/. Acesso em: 25 mar. 2015. 15

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COLI, Juliana Marília. “Vissi d’arte” por amor a uma profissão: um estudo sobre as relações de trabalho e a atividade do cantor no teatro lírico. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. ______. A precarização do trabalho imaterial: o caso do cantor do espetáculo lírico. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, p.297-320. DAGNINO, Evelina. Políticas culturais, democracia e o projeto neoliberal. Revista Rio de Janeiro, n. 15, jan./abr. 2005. Disponível em: . Acesso em: 09 dez. 2015. DUNCAN, Carol. Civilizing rituals: inside public art museums. London: Routledge,1995. FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rosa Freire d’Aguiar Furtado (Org.). Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. MARÃO, Dilma Fabri. Relações de trabalho em música: o contraponto da harmonia. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011. MARGARIDO, Orlando. Uma década de organizações sociais em SP. Carta Capital, 27 out. 2014, p. 62-64. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I – O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Moraes, 1984. MODESTO, P. E. G. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista do Serviço Público, ano 48, n. 2, maioago. 1997. NOGUEIRA, Marco A. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. São Paulo: Cortez, 2005. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. SEGNINI, Liliana R. P. Vivências heterogêneas do trabalho precário: homens e mulheres, profissionais da música e da dança, Paris e São Paulo. In: GUIMARÃES, Nadya Araújo; HIRATA, Helena; SUGITA, Kurumi (Org.). Trabalho flexível, empregos precários? São Paulo: Edusp, 2009. p. 169-202. ______. Música, dança e artes visuais: aspectos do trabalho artístico em discussão. Revista Observatório Itaú Cultural – Itaú Cultural, São Paulo, n. 13 set. 2012. ______. O trabalho do músico entre o Estado e o mercado. Políticas Culturais em Revista – UFBA, Salvador, v. 7, n. 2. 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2015. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ______. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.

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A CONSTRUÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SP: ALGUMAS REFLEXÕES Patricia Oliveira1 RESUMO: O estudo tem como objetivo analisar algumas questões sobressalentes no processo de construção do primeiro plano municipal de cultura de São Paulo. Dessa forma, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, de documentos oficiais e uma entrevista presencial para a compreensão da atual etapa de elaboração do diagnóstico e reflexão sobre o seu processo. A utilização de metodologias quantitativas e qualitativas de forma complementar e a valorização da visão abrangente do conceito de cultura são aspectos que devem ser considerados no processo de formulação de uma política cultural. PALAVRAS-CHAVE: Sistema Nacional de Cultura, Plano Municipal de Cultura de São Paulo, III Conferência Municipal de Cultura, Elaboração do diagnóstico.

1. INTRODUÇÃO Os planos municipais de cultura são fundamentais para a formulação de um planejamento adequado de políticas públicas. Como produto das dinâmicas próprias de cada lugar e do nível de participação gerado, essa importante perspectiva motiva o trabalho realizado neste artigo. A proximidade com o público alvo permite maior entendimento dos problemas e questões cruciais da política e, consequentemente, traduz-se em ganhos na capacidade de modificação da realidade e proposição de ações. Além disso, possibilita a participação direta dos agentes envolvidos no processo deliberativo e decisório sobre aquilo que afetará suas próprias vidas. O estudo busca analisar algumas questões sobressalentes no processo de construção do Plano Municipal de Cultura de São Paulo. A expectativa é, que no ano de 2015, a Prefeitura conclua a formulação do plano e assim, o presente trabalho tem como finalidade refletir sobre alguns aspectos desta primeira etapa, que ainda está em curso. Parte-se da hipótese de que a limitação de tempo, recursos financeiros e humanos, e as condições políticas vigentes foram fatores de definição do método, objetivo e intenção da análise do cenário da cidade pela secretaria municipal de cultura. Graduada em Gestão de Políticas Públicas pela EACH/ USP e especialista em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos pela ECA/USP. Trabalha atualmente no Museu da Imagem e do Som de SP – MIS como Gestora de Projetos Culturais. Contato: [email protected] .

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A partir do processo de elaboração do diagnóstico, foi possível fazer alguns apontamentos a respeito do método adotado para análise de problemas complexos, um questionamento sobre a lógica de organicidade do Sistema Municipal de Cultura (SMC) e uma reflexão sobre a concretização dos direitos culturais em perspectiva ampliada. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, utilizando autores importantes como suporte metodológico para reflexão e análise, a saber: Lia Calabre, Francisco Humberto, Paulo de Martino Jannuzzi, Cláudia Leitão, Antonio Albino Canelas Rubim, Enrique Saravia, Guilherme Varella entre outros. Para compreensão da construção do Plano Municipal de Cultura de São Paulo realizou-se uma entrevista presencial com Bianca dos Santos, uma das consultoras técnicas contratadas pela secretaria para elaboração do diagnóstico com intuito de reunir informações sobre esta etapa e entender sumariamente sua execução. 2. PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO PAULO Os planos municipais de cultura são fundamentais para a formulação de um planejamento adequado de políticas públicas, produto das dinâmicas próprias de cada lugar e do nível de participação gerado, tendo a cultura como matéria central. Em suas disposições possuem alguns elementos estruturantes, tais como: [...] o programa – princípios, objetivos, políticas e diretrizes; a ação-coordenação – metas e sistema de monitoramento e revisão; e processo – já que toda a elaboração do Plano se dá de forma aberta, democrática, colaborativa e participativa (VARELLA, 2015, p. 108). A construção de planos de cultura, basicamente, parte do entendimento da situação e cenários atuais e definição dos rumos e pretensões que almejam atingir por meio de ações. Órgãos Executores serão os condutores que exercerão a função de planejar, propor, implementar ações e programas com a contribuição do conselho de cultura e das propostas das conferências (CALABRE, 2011, p.8). E a partir daí, seguirão as diretrizes estabelecidas pelo plano, pensando sempre na realidade no curto e longo prazo. Antes das etapas de formulação e implementação dos planos, é necessário buscar subsídios para a sua elaboração. Conforme recomendação do Ministério da Cultura (2012, p. 45), se necessário, e caso houver recursos, pode-se recorrer e contratar especialistas em pesquisas quantitativas e qualitativas. Reunidos os subsídios, [...] a equipe do órgão de cultura responsável pelo plano deve sistematizar todo esse material num documento com o diagnóstico do desenvolvimento da cultura no município, concluindo a primeira fase do Plano (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012, p. 45). Paralelamente a isso, a discussão sobre o conteúdo dos planos de cultura deve contar com a participação da sociedade, entendendo os destinatários da política como agentes de sua

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construção. Um desses canais, no caso, no âmbito dos municípios, foco investigativo dessa pesquisa, são as conferências municipais de cultura. Elas possibilitam, através da pactuação e debate democrático, o alcance daquilo que gostariam de ver implementado pelo poder público. O Plano Municipal de Cultura, dessa maneira, deve ser o espelho do que foi trazido como prioritário pela Conferência. Um espelho onde todos os atores culturais que dela participaram devem, no decurso do tempo, se ver refletidos (SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, 2014, p. 87). O Plano Municipal de Cultura deve ser fruto de amplo e perene diálogo com atores políticos dos diversos matizes, estruturado a partir de uma visão sistêmica e integrada (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012). Quando elaborado sob tais princípios, poderá promover uma reformulação no âmbito das políticas públicas, contribuir para os enfrentamentos no mundo contemporâneo e, de fato, propor uma transformação social. O conhecimento das demandas da cidade direciona o trabalho da secretaria de cultura como um mapa de navegação. E a partir deste mapa, é preciso reunir um conjunto extenso de informações para sistematizar todo esse material em um documento sério de análise do setor cultural do município de São Paulo. As linhas e diretrizes partirão deste documento e para a concretização de uma política cultural mais ampla, é necessário que toda a cidade e sua diversidade sejam consideradas. A seguir, o próximo tópico discorre sobre a elaboração do diagnóstico, baseado na entrevista com uma das consultoras contratadas pela secretaria municipal de cultura, Bianca dos Santos. 2.1 Elaboração do diagnóstico O processo de formulação de políticas públicas se dá através de um ciclo de etapas sucessivas. Neste modelo, a primeira etapa refere-se à definição da agenda política (agenda setting), momento de reconhecimento de uma questão social como uma demanda ou problema público que necessita de atuação governamental. Após essa etapa, segue-se para o processo de formulação da política pública que se refere às atividades de construção de possíveis soluções, encaminhamentos e programas para lidar com as questões e problemas detectados (JANNUZZI, 2011, p. 259). É interessante notar que o processo de diagnóstico antecede a etapa de formulação e sua boa consecução é vital para um planejamento consistente. O diagnóstico da realidade refere-se à análise de cenário, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, e busca refletir sobre vários aspectos da localidade e suas principais variáveis atuantes, forças preponderantes, demandas latentes, entendendo-as de forma conectada. É um trabalho de pesquisa, de levantamento de informações e de entendimento reflexivo sobre a interação e relação entre elas. A fase de “elaboração de diagnóstico”, nomenclatura adotada pela secretaria municipal de cultura, pressupõe outro sentido, o de levantamento e sistematização de dados e informações. 1693

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Neste estudo será utilizado o entendimento da secretaria ao se referir ao termo “elaboração de diagnóstico” para facilitação das análises e reflexões posteriores. Através da apresentação e seleção de currículos pela secretaria municipal de cultura de São Paulo, houve a contratação de serviço técnico especializado para consecução dos objetivos pactuados entre as partes envolvidas no processo de levantamento de dados e informações específicas do segmento cultural da cidade de São Paulo. Duas consultoras foram contratadas para este propósito por um período de três meses (SANTOS, 2015). Em entrevista com uma das consultoras, Santos (2015) conta com mais detalhes sobre sua experiência na realização do levantamento de dados e informações culturais do município de São Paulo. Um dos principais questionamentos levados para a entrevista e contemplados também neste trabalho foi entender os objetivos deste processo de “elaboração de diagnóstico”. Bianca (2015) afirma que, pactuado conjuntamente com a secretaria municipal de cultura, o objetivo geral da “elaboração do diagnóstico” foi levantar e organizar um conjunto de informações previamente definidas. De acordo com as regras do Edital n° 001/2015, que selecionou apoio para elaboração do Plano Municipal de Cultura, foram definidos os seguintes objetos: OBJETO I 1. Equipamentos e espaços públicos de cultura na cidade de São Paulo (tipologia dos equipamentos, condições de segurança, acessibilidade, necessidade de reformas e planejamento); 2. Mapeamento e georreferenciamento de espaços culturais, agentes, eventos e projetos, com base na plataforma SP Cultura; 3. Indicadores sócio-econômicos, demográficos e territoriais acerca da cidade de São Paulo, em relação aos equipamentos e principais programas da Secretaria Municipal de Cultura; 4. Inventário de bens patrimoniais e acervos existentes; OBJETO II 1. Programas e ações desenvolvidos pela Secretaria Municipal de Cultura, incluindo as áreas de patrimônio, formação, programação e fomentos culturais. 2. Orçamento e financiamento público na área da cultura, a partir dos mecanismos de investimento direto, fomentos, fundos e incentivo fiscal; 3. Mecanismos de participação na área da cultura, incluindo histórico das Conferências Municipais de Cultura, Conselho Municipal de Cultura, diálogos sociais, fóruns de cultura, entre outros; 4. Marcos legais existentes na área da cultura (leis de incentivo, leis de fomento, fundos, entre outros). Dessa forma, uma das primeiras intenções foi compreender a clara preferência pelo levantamento quantitativo em total detrimento do qualitativo. A entrevistada reflete sobre essa questão expondo a dificuldade em realizar pesquisas mais aprofundadas sobre a dinâmica cultural da cidade de São Paulo, devido à sua grande dimensão geográfica e rica diversidade cultural,

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fator que dificulta o levantamento dessas informações. Somando-se a essas dificuldades, estão à ausência suficiente de tempo, recursos financeiros e humanos para realizar uma pesquisa desta dimensão (SANTOS, 2015). Santos (2015) conta que a reunião dessas informações nunca havia sido realizada anteriormente, fator que não apenas dificultou o processo de análise do cenário cultural, mas traduziu-se em uma aposta da secretaria municipal de cultura e consultoria especializada: a sistematização de dados e informações culturais. A reunião e organização dessas informações é muito positiva para algumas áreas, como a de pesquisa e gestão que sempre necessitam de insumos para análises, reflexões e tomada de decisões. São apostas que trazem grandes ganhos em longo prazo e possivelmente, ao realizar o processo de diagnóstico do segundo Plano Municipal de São Paulo, facilitará a análise do cenário cultural da cidade em termos quantitativos, poupando tempo e recursos, e podendo, dessa forma, estabelecer novos focos e olhares para a cidade. Quatro eixos principais orientaram a elaboração do diagnóstico e ajudaram a organizar os dados levantados: Institucionalidade da Cultura e Participação Social; Produção, Difusão, Formação e Acesso; Patrimônio Histórico Cultural; e Territorialização (SANTOS, 2015). O primeiro eixo refere-se à Institucionalidade da Cultura e Participação Social. Em linhas gerais, contemplou alguns tópicos, a saber: a estrutura da secretaria municipal de cultura; o orçamento municipal de cultura; todos os conselhos; o fundo municipal de cultura; entre outros. No que se refere à participação social, o levantamento abordou principalmente as conferências municipais de cultura e seus respectivos históricos (SANTOS, 2015). O segundo eixo reúne informações sobre Produção, Difusão, Formação e Acesso. Esta categoria é uma das maiores e o seu levantamento contemplou: programação cultural; ações de formação vocacional; espaços de formação cultural; fomento a linguagens e cidadania cultural (SANTOS, 2015). O terceiro eixo trata sobre dados e informações referentes ao Patrimônio Histórico e Cultural da cidade, dos diferentes acervos, equipamentos e ações de difusão de patrimônio (SANTOS, 2015). Por fim, o quarto eixo levanta informações sobre a Territorialização. A entrevistada pontua esse eixo como a parte mais rica do diagnóstico, pois é neste momento que as políticas, programas, equipamentos e ações são entendidos e associados com as diversas localidades. Um exemplo mencionado pela entrevistada são os casos dos fomentos, onde o levantamento de informações sobre a distribuição dos fomentos pela cidade permitiu perceber as lógicas de seleção desses programas e prever a necessidade de futuros estudos que aprofundem a questão da equidade e melhor distribuição de recursos pela cidade (SANTOS, 2015).

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Em relação à metodologia adotada, Bianca (2015) afirma que procurou realizar o trabalho estabelecendo um diálogo entre esses quatro eixos e criar “possíveis sinergias”. Para entender como essas sinergias foram estabelecidas na prática, a consultora exemplifica: Eu sempre procurei ter o olhar sobre o território, procurei sempre perguntar quais eram os mecanismos de participação da sociedade civil, para a gente sair da lógica de que a participação seja somente conferência e conselho (SANTOS, 2015). Embora entendida como fase de “elaboração de diagnóstico”, o trabalhou consistiu, conforme já exposto, no levantamento e sistematização de dados e informações quantitativas e posterior elaboração de um documento final que foi entregue à secretaria municipal. A entrevistada conta que foi elaborado um anexo sugerindo alguns próximos passos. Dentre eles, a primeira recomendação sugere que os resultados sejam apresentados a todas as áreas da secretaria municipal de cultura para uma leitura das informações de forma contextualizada (SANTOS, 2015). A segunda recomendação refere-se à necessidade de outras pesquisas para entendimento dessas informações situacionais. A partir deste levantamento, devem-se buscar maiores subsídios para auxílio no entendimento de algumas temáticas e seus pontos de interação e conexão. Segundo a entrevistada, a secretaria tem consciência dessa necessidade e possivelmente irá aprofundar esses estudos (SANTOS, 2015). Santos (2015) reconhece que esta etapa, de “elaboração de diagnóstico”, seguiu a “lógica do possível”. Reconhece que poderia ser mais aprofundada e que possui limitações, mas que em função dos prazos e recursos humanos, foi-se necessário “entregar e fazer a coisa acontecer” (SANTOS, 2015). Por se tratar de trata de “um documento vivo”, será preciso retomar, aprofundar e corrigir este primeiro trabalho, devendo ele ser consolidado e apresentado para a sociedade (SANTOS, 2015), etapa subsequente de mobilização e capacitação de gestores e agentes culturais e sistematização das diretrizes para o Plano Municipal de Cultura de São Paulo. A partir desta primeira fase, são definidas as diretrizes e prioridades, os objetivos gerais e específicos, as estratégias, metas e ações. Neste estágio, devido a possível existência de visões conflitantes, típicas do segmento cultural, é importante abrir canais de discussão para contemplar o maior número possível de pontos de vista (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012, p. 45). Com o apoio de uma instituição sem fins lucrativos, serão abertos canais de discussão para estas definições, aqui chamado de: projeto de elaboração do Plano Municipal de Cultura. Segundo o Edital de Seleção para Elaboração do Plano Municipal de Cultura da cidade de São Paulo (2015), o projeto de elaboração do Plano Municipal de Cultura será realizado através de seminário de lançamento e oficinas presenciais para mobilização e capacitação técnica. O público alvo

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contaria com a participação de gestores públicos de cultura, instituições, movimentos e coletivos culturais e artísticos, produtores, artistas, agentes culturais e cidadãos em geral, e interessados. O objetivo do projeto, segundo seu respectivo Edital (2015), é colaborar com a secretaria para elaboração do plano municipal de cultura, mediante a mobilização e capacitação de gestores e agentes culturais e sistematização das diretrizes, estratégias e metas a serem estabelecidas. O trabalho será realizado dentro de um período de seis meses. Atualmente, esta etapa está em andamento e por conta disso, o presente artigo não pretendeu explorar a fundo a sua execução e possíveis desdobramentos. Ainda assim, é possível notar duas preocupações centrais da secretaria municipal de cultura: a necessidade de poupar recursos e tempo e, ao mesmo tempo, a valorização da construção participativa do plano municipal de cultura de São Paulo. Guardadas as relevantes informações dos capítulos anteriores, o que mais importa para este trabalho é a aproximação, alinhamento e cruzamento de elementos anteriormente discorridos através de um olhar amplo do ponto de vista conceitual, teórico e prático. Dividido em dois tópicos principais, a quarta seção propõe uma possível leitura destes cruzamentos. No tópico 4.1, far-se-á uma reflexão a respeito da necessidade de conhecer o espaço e as diversas sinergias que interagem entre si através de metodologias que vão além da dimensão quantitativa. As políticas culturais possuem características de cidadania, onde todos são detentores de direitos culturais. No tópico 4.2, a elaboração do diagnóstico será analisada segundo a lógica de organicidade do SNC e do funcionamento sistêmico de seus componentes. Pode-se perceber que os objetivos desta etapa eram reduzidos desde o início. Naturalmente, trata-se de uma perspectiva e com isso investigações mais aprofundadas são necessárias e relevantes para preenchimento de algumas lacunas que aparecerão no processo de análise. 3. OS MÉTODOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS PARA INVESTIGAÇÃO PARA INVESTIGAÇÃO DE PROBLEMAS COMPLEXOS O processo denominado “elaboração do diagnóstico” do vasto campo cultural da cidade de São Paulo traduziu-se em um levantamento quantitativo de um conjunto de informações e dados previamente definidos e sua sistematização, conforme anteriormente mencionado. Jannuzzi (2011, p. 267) aponta que é necessário planejar uma análise consistente para cada etapa do “ciclo de vida” da política pública ou programa: definição da agenda, diagnóstico da realidade, formulação, implementação e avaliação. E para isto, deve-se resistir à tentação de «colocar a carroça antes dos bois», encomendando-se pesquisas de avaliação de forma precoce e desarticulada (JANNUZZI, 2011, p. 267).

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Avaliações precoces e desarticuladas podem gerar diagnósticos precipitados e não subsidiar o processo decisório em função de suas limitações informacionais, ou seja, gasta-se tempo e recursos financeiros em levantamentos inconclusivos. Em consonância com a afirmação da consultora entrevistada, a área cultural “tradicionalmente não produz informações boas e [...], sobretudo, não pode somente se basear em informações numéricas” (SANTOS, 2015). A utilização de variadas metodologias permite análises mais abrangentes, fundamentais para abordagem de problemas complexos, os quais o segmento cultural se inclui. Tanto métodos quantitativos quanto qualitativos possuem vantagens e limitações. Jannuzzi (2011, p. 268) explica que os métodos quantitativos, organizados sob égide do modelo hipotético-dedutivo, compreendem técnicas bastante estruturadas - destinadas à investigação de problemas específicos - voltadas ao dimensionamento de quantidade ou da intensidade de relações entre variáveis, supondo distanciamento do pesquisador em relação ao objeto de investigado (JANNUZZI, 2011, p. 268, grifo nosso). Já os métodos qualitativos, baseados no princípio da produção do conhecimento pela lógica indutiva, do particular para o geral, como a observação, as entrevistas e os grupos de discussão, compreendem técnicas pouco ou semiestruturadas, para investigar exploratoriamente problemas complexos, pressupondo proximidade do pesquisador ao objeto avaliado” (JANNUZZI, 2011, p. 268, grifo nosso). O município de São Paulo possui problemas socioculturais históricos de alta complexidade. O extenso entorno de bairros periféricos, onde encontra-se a maior parte da população paulistana e a maior carência de equipamentos e políticas culturais, é um problema complexo e não específico e o seu tratamento deve estar em consonância a isso. É claro que, como defende Santos (2015), não se pode “[...] fechar os olhos para o básico, [...] tem que saber sim falar em números, não ter receio de falar quanto é feito e como é feito” (SANTOS, 2015). O mais adequado é que os estudos avaliativos possuam um “ecletismo metodológico” (JANNUZZI, 2011, p. 270), utilizando tanto métodos quantitativos quanto qualitativos (JANNUZZI, 2011, p. 272). Essas duas metodologias não são mutuamente excludentes, elas devem caminhar na mesma trajetória e de forma complementar, estabelecendo diálogo e criando conexões compatíveis. Não há um método modelo com pretensa legitimidade para toda e qualquer pesquisa de avaliação, o que é bastante positivo. Ainda assim, indícios apontam claramente a necessidade de um diagnóstico mais consistente e elaborado, sob pena de tomada de decisões equivocadas.

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A secretaria municipal de cultura adotou, neste primeiro momento, uma metodologia exclusivamente quantitativa. Após definição dos objetos a serem levantados, utilizou-se técnicas voltadas ao dimensionamento quantitativo, típicos de investigações de problemas específicos. 3.1 O que a cidade perde com isso? A elaboração do diagnóstico da cidade São Paulo possui limitações (SANTOS, 2015). Por se tratar de um levantamento de dados e informações realizado por duas pessoas e no período de três meses, ele deverá ser alimentado e complementado para permitir um olhar mais amplo sobre o cenário cultural de São Paulo. Cientistas, técnicos e políticos, já no final do século XX, começaram a integrar as dimensões humanas, ambientais e culturais nas discussões sobre desenvolvimento aos se depararem com o fracasso de vários projetos de transformação territorial. Há “uma tendência de redirecionamento do “trajeto antropológico”” (LEITÃO, 2009, p. 28) e é preciso reforçar este posicionamento para não incorrer em erros passados. A cultura se produz através da interação social dos indivíduos, dos modos de pensar e sentir, da construção de valores e identidades, de suas diferenças de rotina e de criações (BOTELHO, 2001, p. 74). Nesta linha, portanto, em sumária definição, “a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando” (BOTELHO, 2001, p. 74). Para atuar nesta dimensão, denominada “antropológica”, há necessidade de mudanças mais profundas, que interferem nos estilos de vida das pessoas, nos hábitos e costumes, na organização dos diversos espaços, nas relações de sociabilidade e vizinhança, no uso do tempo livre etc (BOTELHO, 2001, p. 74). Atuar neste conjunto de universos requer conhecer seus espaços e diversas variáveis que interagem entre si como origens regionais, aspectos econômicos, sociais, esportivos, profissionais, étnicos, de gênero, raciais, etário entre outros. Sendo assim, para o conhecimento e correlação dessas variáveis, é preciso a utilização de metodologias que vão além das análises quantitativas. Embora não seja tarefa fácil, este objetivo não pode ser abandonado. A cultura na perspectiva sociológica, que trata das expressões artísticas, possui um universo institucionalizado e consequentemente é sempre campo privilegiado das políticas culturais (BOTELHO, 2001, p. 75). Porém, é preciso lembrar das características de cidadania impressas nas políticas culturais, onde todos são detentores de direitos culturais. Levando em consideração que esses direitos culturais, em sua perspectiva ampliada e cidadã, estão sistematizados nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, o não atendimento do Estado por meio de planos de cultura não é uma opção. Assim sendo, é dever do Estado garantir todos os insumos necessários para a construção de planos de cultura consistentes focados para a concretização desses direitos.

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Qualquer atuação em extensas áreas geográficas, como o da cidade de São Paulo, requer planejamento estratégico consistente, envolvimento das comunidades e entendimento profundo das distintas realidades. Levantamentos quantitativos, se tratados isoladamente, dificilmente conseguem fazer as necessárias análises para a formulação de um plano de cultura. A secretaria municipal de cultura de São Paulo precisará enriquecer essa pesquisa para as próximas etapas e assim fará, conforme afirma Santos (2015). Os esforços nesse sentido são muito importantes, pois a má realização ou não realização de um diagnóstico bem elaborado pode incorrer em políticas públicas que não concretizem os direitos culturais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo procurou fazer algumas reflexões práticas sobre alguns pontos sobressalentes sobre a formulação do Plano Municipal de Cultura de São Paulo e nessa assertiva, foi possível construir uma leitura sobre este processo e fazer alguns apontamentos como: a importância da utilização de metodologias quantitativas e qualitativas de forma complementar; a necessidade de planejamento em todas as etapas das políticas públicas; a importância da observância à lógica de organicidade dos sistemas de cultura; e a valorização da visão abrangente do conceito de cultura. Contudo, parte-se da constatação que: o processo de política pública não possui uma racionalidade manifesta. Não é uma ordenação tranquila na qual cada ator social conhece e desempenha o papel esperado (SARAVIA, 2006, p. 29). Não existe um modelo pronto e ideal de como formular uma política cultural. Muitas outras variáveis atuam em conjunto neste processo e devem ser levadas em consideração, ainda que não tenha sido objetivo investigativo deste trabalho analisá-las a fundo, tais como: a baixa cultura de participação e organização dos agentes culturais; baixa profissionalização da cultura; a ausência de dados e informações sistematizadas da área cultural; a limitação de recursos financeiros e humanos; a criação tardia do SNC e consequentemente seus subsistemas; a ausência de outras experiências de planos plurianuais no município, entre outros. Todos esses fatores e muitos outros colaboram para que qualquer gestão tenha dificuldades de atuação. Saravia (2006, p. 29) aponta que a perplexidade perante a turbulência e a aparente não governabilidade das políticas públicas [...] não afetam apenas o cidadão. Os atores administrativos, políticos e seus analistas constatam igualmente a extrema complexidade das políticas públicas e as aparentes debilidades do Estado para cumpri-las (SARAVIA, 2006, p. 29).

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Fatores limitantes como tempo, recursos financeiros e humanos e condições políticas vigentes condicionam e condicionaram todo o processo decisório referente à definição dos objetivos do diagnóstico e a metodologia adotada para a construção do plano municipal de cultura. Ainda assim, é importante reforçar que se trata de um período importante para a história do município de São Paulo: o seu primeiro plano de estado da cultura. E isso apenas foi possível porque discussões no campo da política cultural ganharam uma dimensão relevante na esfera pública, de modo que acabou entrando na agenda municipal. Chama-se atenção para o contexto em que se insere a formulação do plano, que teve início no governo Fernando Haddad e na gestão da secretaria municipal de cultura Juca Ferreira e Nabil Bonduki. Essa gestão demonstrou preocupação nítida com a necessidade de criação de políticas culturais e de incentivo à participação social na tomada de decisões. A realização do plano é urgente para a cidade de São Paulo e a decisão sobre a sua construção, independentemente de questões técnicas e conceituais sobre este processo, é um ganho para toda população. Historicamente, as políticas públicas sofrem com a descontinuidade devido a mudanças de gestão e de lógicas partidárias e o Plano Municipal de Cultura de São Paulo ganhará perenidade na forma de lei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOTELHO, Isaura. Dimensões da Cultura e Políticas Públicas. In: SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, n. 2, 2001, São Paulo. CALABRE, Lia. A cultura no âmbito federal: leis, programas e municipalização. Fundação Casa Rui Barbosa, 2011. JANNUZZI, Paulo de Martino. Avaliação de programas sociais no Brasil: repensando práticas e metodologias das pesquisas avaliativas. In: PLANEJAMENTO E POLÍTICS PÚBLICAS – PPP, n.36, 2011. LEITÃO, Cláudia. Cultura e Municipalização. Salvador: Secretaria de Cultura, Fundação Pedro Calmon, 2009. MINISTÉRIO DA CULTURA. Guia de Orientações para os Municípios Sistema Nacional de Cultura: Perguntas e Respostas. Brasília. Ministério da Cultura, 2012. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições. In: REVISTA GALÁXIA, n. 13, 2007, São Paulo. SANTOS, Bianca Caroline dos. Entrevista concedida pela consultora contratada para elaboração do diagnóstico do município de São Paulo. São Paulo. SARAVIA, Enrique. Introdução à teoria da política pública. In: SARAVIA, Enrique; FERRAREZZI (orgs). Políticas Públicas. Brasília: ENAP, 2006.

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SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURAL DE SÃO PAULO. Edital de Chamamento n° 001/2015 - Elaboração do Diagnóstico para o Plano Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo, 2015. _______. Edital de Seleção para Elaboração do Plano Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo, 2015. VARELLA, Guilherme. Plano Nacional de Cultura – Direitos e Políticas Culturais no Brasil. Editora Azougue Editorial, 2015.

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NECESSIDADE DE POLÍTICAS INSTITUCIONAIS PARA A APLICAÇÃO DE INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Patricia Pereira Peralta1 RESUMO: As indicações geográficas são sinais distintivos do comércio que vêm sendo cada vez mais requeridos como instrumentos de proteção e valorização de produções culturais locais, compreendidas como artesanato. Com o fito de apresentar essa realidade e apontar a ausência e a necessidade de políticas que deem conta dessas produções culturais locais interessadas na proteção de suas indicações geográficas, este artigo apresenta, de forma exemplificativa, três casos de reconhecimento de indicações geográficas para produções artesanais: as panelas de Goiabeiras, as rendas de Divina Pastora e o artesanato do Jalapão. Ao final, pretende-se apontar, como dito, a falta de políticas orquestradas em torno da concessão e gestão de indicações geográficas para as produções artesanais, bem como a necessidade do desenvolvimento das mesmas. PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas, indicações geográficas, artesanato.

1. INTRODUÇÃO As indicações geográficas (IG), como indicado pela expressão ora apresentada, é constituída por um nome geográfico que se torna famoso por conta de algum modo de fazer ou produto provindos da área geográfica. Para autores como Olavo (2005), as indicações geográficas podem ser compreendidas como sinais distintivos do comércio a serem postos no mercado. Quando apostas a produtos, as mesmas indicam que esses provêm de determinada área geográfica, sendo esta, muitas vezes, a responsável por características presentes no produto, devido a padrões ambientais. Internacionalmente, as indicações geográficas são conhecidas há mais de um século. Sua proteção dá-se por meio da aplicação dos direitos de propriedade intelectual. Na França, por exemplo, as denominações de origem (DO) são um tipo de indicação geográfica de grande relevância para a sociedade francesa. Exatamente por isso, nesse país, essa figura é utilizada como elemento estratégico de políticas de valorização da qualidade de produtos, de fixação do homem à terra e como instrumento de valorização do patrimônio cultural (Sylvander, 2005). Servidora pública do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI); docente da Academia de Propriedade Intelectual e Inovação do INPI; docente colaboradora do Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Contato: [email protected]; [email protected].

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Este artigo tentará apresentar a temática referente às indicações geográficas, amparando-se em literatura, para, em seguida, discutir o quanto esse instrumento – protegido por direitos de propriedade intelectual – poderia estar sendo utilizado na promoção de políticas culturais locais voltadas ao artesanato, também compreendido, em alguns casos, como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Para tanto, a primeira parte deste artigo fará breve incursão ao campo das políticas públicas, voltando-se para as possibilidades de políticas culturais voltadas para o reconhecimento de indicações geográficas de produções culturais. Far-se-á necessário, também, abordar a indicação geográfica, apresentando as definições legais e aquelas encontradas na literatura. Por fim, tomar-se-ão, a título de exemplo, alguns casos de produções culturais que vêm se utilizando da proteção por indicações geográficas como forma de possível proteção e agregação de valor junto ao mercado de sua produção cultural. Esses são os casos da renda de Divina Pastora, das panelas de Goiabeiras e do artesanato de capim dourado do Jalapão. Todos os casos apontados fazem parte daquilo um dia denominado folclore e culturas populares2 e, atualmente, reconhecido ou em vias de reconhecimento como patrimônio cultural imaterial brasileiro3. Este título, por si só, já destaca e agrega valor. Entretanto, para além da busca pelo reconhecimento como patrimônio cultural imaterial, os produtores locais, sejam das rendas, sejam das panelas de barro, ou mesmo aqueles do artesanato do Jalapão, têm vislumbrado novas formas de inserirem sua produção no “mercado de bens simbólicos”4, agregando valor por meio do uso de sinais distintivos do comércio de cunho coletivo, como o são as indicações geográficas, conforme se poderá ver ao longo deste artigo. 2. POLÍTICAS PÚBLICAS DA ÁREA DA CULTURA Por políticas públicas e para os fins do artigo aqui proposto, toma-se a definição de Di Giovanni (2009) que aponta ser o conceito por ele utilizado indo além da “Idéia de que uma política pública é simplesmente uma intervenção do Estado numa situação social considerada problemática”. Desta forma, o autor entende política pública: “[...] como uma forma contemporânea de exercício do poder nas sociedades democráticas, resultante de uma complexa interação entre o Estado e a sociedade, entendida aqui num sentido amplo, que inclui as relações sociais travadas também no campo da economia.” (DI GIOVANNI, 2009, p.5). Para uma avaliação da evolução do campo dos estudos de folclore e cultura popular, sugere-se o trabalho de ORTIZ (1985). A expressão “culturas populares” é utilizada por CANCLINI (1983 e 2000) em detrimento da expressão cultura popular, tendo em vista o disposto por este autor sobre a pluralidade de culturas populares. 3 Tanto as Panelas de Barro de Goiabeiras como a renda Irlandesa de Divina Pastora já são reconhecidas como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Tal reconhecimento é de competência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). 4 Expressão retirada da obra de BOURDIEU (2007). 2

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Interessante ter em mente a crítica de Melo e Silva (2000, p.3), quando tais autores afirmam que: “[...] o contexto institucional e organizacional brasileiro caracteriza-se por especificidades importantes – dentre as quais se destaca sua complexidade e forte diferenciação funcional, e principalmente os problemas de coordenação e cooperação intergovernamentais”. Segundo esses autores (2000), “O desenho estratégico nas políticas deve incluir a identificação dos atores que dão sustentação à política e mecanismos de concertação e negociação entre tais atores” (MELO e SILVA, 2000, p. 13), sendo as policy cicle, “melhor representado por redes complexas de formuladores e implementadores, stakeholders5 e beneficiários que dão sustentação à política” (MELO e SILVA, 2000, p.13). No campo ora apresentado, o dos patrimônios culturais imateriais, tem-se como tomadores de decisão: o governo, por meio do seu órgão patrimonial – o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – e aqueles representantes do patrimônio imaterial que, no caso deste artigo, são as rendeiras, as paneleiras e os demais artesãos da área do Jalapão, além de outras agências governamentais que apoiam e fomentam a atividade artesanal no Brasil. Podem ser incluídos, ainda, como beneficiários, a sociedade em geral, pois se trata de patrimônio brasileiro, bem como pequenos nichos de populações locais indiretamente ligadas ao patrimônio imaterial. As políticas culturais presentes no campo do patrimônio cultural imaterial no Brasil são, ainda, recentes, mas já possuem alguma relevância em termos de estudo6. Por políticas culturais, Barbalho (2013) assim se posiciona: “Uma política cultural é um conjunto mais ou menos coerente de princípios (conceitos e diretrizes), objetivos (onde se quer chegar), estratégias (como alcançar os objetivos projetados), os meios necessários e as ações a serem realizadas (os programas e projetos concretos). Importante frisar que deve haver uma lógica entre as partes do conjunto – é esta lógica que dá sentido a uma política cultural.” (BARBALHO, 2013, p.8). Botelho (2001), por seu turno, aponta que para a eficácia de uma política cultural na área da cultura há a necessidade “(...) de uma articulação das pessoas diretamente interessadas, unindo, pelos laços de solidariedade, demandas dispersas em torno de objetivos comuns (...)”. Para a citada autora: “As políticas culturais, isoladamente, não conseguem atingir o plano do cotidiano. Para que se consiga intervir objetivamente nessa dimensão, são necessários dois tipos de investimento. O primeiro é de responsabilidade dos próprios interessados e poderia ser chamado de estratégia do ponto de vista da demanda. Isto significa organização e atuação efetivas da sociedade, Segundo os próprios autores, Stakeholders são os “grupos envolvidos pelas políticas e nelas interessados.” (MELO e SILVA, 2000, p. 13). 6 Para uma incursão no desenvolvimento das políticas patrimoniais do Brasil, sugere-se a leitura de Fonseca (2009), Sant’Anna (2009) e Gonçalves (2002). 5

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em que o exercício real da cidadania exija e impulsione a presença dos poderes públicos como resposta a questões concretas e que não são de ordem exclusiva da área cultural. Somente através dessa militância poder-se-á “dar nome” no sentido mesmo de dar existência organizada a necessidades e desejos advindos do próprio cotidiano dos indivíduos, balizando a presença dos poderes públicos.” (BOTELHO, 2001, p.75). Cabe ainda destacar na fala de Botelho que uma política cultural, para ter eficácia e cumprir com aquilo estipulado pelos tomadores de decisão, deve saber delimitar com clareza o universo de sua atuação. Ou seja, não deve almejar resolver questões que são responsabilidades de outros setores do governo, como poderá ser avaliado a partir dos casos abordados. Ainda para o autor, uma boa política cultural deverá participar: “(...) de um consórcio de instâncias diversificadas de poder, precisando, portanto, ter estratégias específicas para a sua atuação (...). Junto aos demais setores da máquina governamental, a área da cultura deve funcionar, principalmente, como articuladora de programas conjuntos, já que este objetivo tem de ser um compromisso global de governo. Isso significa dizer que, enquanto tal, a cultura, em sentido lato, exige a articulação política efetiva de todas as áreas da administração, uma vez que alcançar o plano do cotidiano requer o comprometimento e a atuação de todas elas de forma orquestrada (...).” (BOTELHO, 2001, p. 75). A partir do disposto nas falas dos autores acima citados, pode-se concluir que um dos requisitos para a eficácia de uma política pública é a orquestração dos agentes envolvidos. Como se poderá ver adiante, essa orquestração é o grande desafio a ser enfrentado diante das propostas de valorização da produção artesanal, considerada patrimônio imaterial, a partir do reconhecimento das indicações geográficas. Feita essa pequena revisão de conceitos na área das políticas públicas, passa-se ao tratamento das indicações geográficas, instrumento acionado para a proteção e valorização do patrimônio cultural das panelas de Goiabeiras e das rendas de Divina Pastora, bem como para o artesanato do Jalapão. 3 INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS As indicações geográficas, com já disposto, são consideradas sinais distintivos do comércio (OLAVO, 2005), sendo protegidas por meio de direitos de propriedade intelectual. Estes direitos englobam, também, as marcas, as patentes, os desenhos industriais, os direitos autorais, entre outros. No caso das indicações geográficas, as mesmas existem há tempos, sendo encontradas nos mais diversos textos referências a produtos provenientes de determinadas áreas geográficas, as quais agregavam valor aos mesmos. Sua ocorrência é muito anterior a sua regulamentação por meio dos direitos de propriedade intelectual.

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“Desde os tempos mais recuados que se usa o nome do lugar de produção para designar produtos com a finalidade de os distinguir de outros da mesma natureza; a utilização de um nome geográfico concede, geralmente, ao produto uma imagem de originalidade e de qualidade que os produtores e os consumidores sempre quiseram preservar. A utilização de um nome geográfico para a individualização de um produto da região com esse nome, pode assumir diversas formas: indicação de proveniência (ou indicação de origem); indicação geográfica; denominação de origem e denominação tradicional. Verificamos, assim, que a origem geográfica de um produto pode conduzir a diferentes sinais distintivos.” (ALMEIDA, 1999, p.31)7. Apesar de sua longínqua participação na história humana, apenas no século XVIII, em 1756, criou-se uma primeira forma de regulamentação, por parte da nação portuguesa, sobre a proteção de uma indicação geográfica, mais precisamente, do vinho do Porto, conforme Bruch (2011). Foi durante os séculos seguintes, XIX e XX, que as indicações geográficas passaram a ser consideradas como figuras importantes para gozarem de proteção legal pelo valor que as mesmas veiculavam. “As denominações de origem e as indicações geográficas têm adquirido uma vantagem económica crescente e desempenham uma função relevante no tráfico comercial” (ALMEIDA, 2008). A França – um dos países nos quais se dá relevante importância às indicações geográficas – tornou-se o país que mais desenvolveu e aplicou legislações relativas à proteção das denominações de origem, uma das espécies de indicação geográfica. No caso do Brasil, as indicações geográficas e denominações de origem estrangeiras foram utilizadas no tráfico comercial sem maiores cuidados por agentes locais durante quase todo o século XX, por falta de uma cultura de proteção em relação às mesmas. Indicações geográficas estrangeiras como Parma, Champagne, Cognac eram apostas sem a mínima parcimônia sobre produtos nacionais. Esses usos abusivos vêm diminuindo, diante da globalização do comércio e da pressão por mecanismos da proteção às IG de maior eficácia, inclusive a inserção dos mesmos na legislação brasileira. O aumento da proteção às IG possibilitou o crescente interesse na proteção e uso de indicações geográficas tipicamente brasileiras na tentativa de valorização da produção local. Como Os usos e os costumes da Grécia Antiga e de Roma espelhados no quotidiano da vida destes povos evidenciam uma multiplicidade e heterogeneidade de nomes geográficos colocados em produtos. Na Grécia Antiga eram famosas as estatuetas da cidade de Tânagra, o bronze da cidade de Corinto, o mármore da região da Frígia, os mantos de Pelena, a excelência do mel do monte Himeto, os cavalos da região da Tessália, a púrpura da ilha de Cítera, os perfumes, os panos finos ou o pergaminho da cidade de Pérgamo, as lãs e tecidos da cidade de Mileto, os vinhos das ilhas de Tasos, de Quios, de Lesbos, de Naxos, de Lêucade, os da região da Calcídica e da Trácia e os da cidade da Maroneia. Em Roma eram célebres os vinhos de Falerno, de Alba, do monte Mássico e de Sorrento, as ostras de Brindisi, os vasos de Bizâncio, o açafrão do monte Córico, o azeite de Venafro e o mármore de Carrara. A Bíblia é pródiga na citação de nomes geográficos na identificação de produtos: os cedros do Líbano, o ouro de Parvaim, os cavalos provenientes do Egipto e de Qué, o vinho de Helbon e a lã de Sacar. (ALMEIDA, 2008)

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exemplo desse fato, tem-se os casos dos vinhos do Vale dos Vinhedos, das cachaças de Paraty e Salinas, dos doces de Pelotas, dos queijos do Serro e da Canastra, entre outros. Almeida (2008) entende serem as denominações de origem e as indicações geográficas instrumentos a serviço das empresas. Ainda para o citado autor, as mesmas podem ser consideradas: “meios de identificação dos produtos no mercado. Num mercado intercomunicativo, caracterizado por uma acérrima concorrência entre os produtos, por uma maior consciencialização dos consumidores para o factor qualidade, a denominação de origem e a indicação geográfica podem desenvolver um importante papel enquanto afiançadores de um monopólio (permitem um exclusivo), podem ser elementos-chave de uma estratégia comercial visando a conquista de um lugar competitivo marcado pela tipicidade de um produto.” (ALMEIDA, 2008, p.6) O autor ainda aponta serem as indicações geográficas indicadores, para os consumidores, de que os produtos sobre os quais as mesmas são apostas apresentam qualidades, características determinadas e mesmo certas garantias (ALMEIDA, 2008). Tamanha a importância assumida por tais sinais distintivos, que os mesmos passaram a significar barreiras de entrada para certos produtos em mercados nos quais as indicações geográficas são protegidas. Além disso, as mesmas podem também possibilitar a entrada de produtos com origem geográfica reconhecida em mercados competitivos que as valorizem a partir de uma estratégia competitiva de diferenciação. No caso do Brasil, a indicação geográfica se torna uma realidade com a lei 9279/1996, a denominada Lei da Propriedade Industrial (LPI). Nesta a indicação geográfica é disposta como um gênero das espécies indicação de procedência (IP) e denominação de origem (DO). Por indicação de procedência, a citada lei considera: o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço. (BRASIL, 1996) Como denominação de origem, a mesma lei estipula ser: o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos. (BRASIL, 1996) Do disposto, depreende-se que da indicação de procedência para a denominação de origem há a necessidade de um grau a mais em relação aos requisitos substanciais a constarem do produto. Enquanto no caso da IP basta apenas o reconhecimento da reputação, para a DO há a necessidade de comprovação de que os produtos advindos da área demarcada, referente à indicação geográfica, apresentem características resultantes do meio geográfico do qual é extraído e produzido o bem.

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Internacionalmente, há maior clareza acerca da figura da denominação de origem. A definição de DO presente na legislação brasileira contempla o Acordo de Lisboa, não assinado pelo país, mas que serve de diretiva internacional para a proteção das denominações de origem. Além do Acordo de Lisboa, encontra-se no Acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou ADPIC, a delimitação da figura da indicação geográfica. Esse mesmo Acordo é silente em relação à DO. Na França, como apontado por Sylvander (2005) e citado na introdução, a proteção dos nomes geográficos, como política de estado, teve momentos claros e estratégicos relacionados ao uso dessa proteção. Num primeiro momento utilizou-se a proteção e uso dos nomes geográficos com o fito de melhorar a qualidade dos produtos postos no mercado, isso no final do século XIX. Mas tais sinais também foram utilizados em políticas de fixação do homem à terra, evitando-se o êxodo rural, como ocorreu durante o século XX. Atualmente, utiliza-se as indicações geográficas como instrumento de valorização e proteção do patrimônio local. Se no começo as indicações geográficas tornaram-se muito comuns em produtos vinícolas, sendo logo estendidas para outros produtos alimentícios, como os queijos, as indicações geográficas hoje são cada vez mais utilizadas em diversos tidos de produtos visando a, exatamente, proteger e diferenciar o conjunto do patrimônio local. Marie-Vivien (2010), em sua tese de doutorado, destaca como as indicações geográficas indianas são utilizadas pelo governo desse país, a partir de políticas estratégicas de proteção, como forma de proteção ao conhecimento ancestral e tradicional do povo indiano. Desta forma, artesanatos e demais produtos típicos da cultura indiana passaram a ser distinguidos e diferenciados pelas indicações geográficas pelas quais os mesmos já eram conhecidos. Trata-se, claramente, de uma política de governo que faz uso de sinais distintivos do comércio para viabilizar a proteção de seu patrimônio local. Enquanto isso, no caso brasileiro, apesar de a inserção da indicação geográfica em legislação própria ter ocorrido em 1996, poucas são as políticas voltadas para o conhecimento desse instrumento de diferenciação. Mesmo diante de uma realidade ainda incipiente em termos de políticas públicas voltadas para o uso e o reconhecimento de indicações geográficas, alguns exemplos vêm servindo de diretrizes para as tentativas de apropriação por agentes locais desses sinais distintivos. Podem ser citados, entre outros, os casos a serem aqui discutidos: as panelas de Goiabeiras e as rendas irlandesas de Divina Pastora, além do caso do artesanato do capim dourado do Jalapão, como vistos a seguir.

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4. GOIABEIRAS, DIVINA PASTORA E JALAPÃO – INDICAÇÕES GEOGRÁFICAS NO CAMPO DA CULTURA As panelas de Goiabeiras, as rendas de Divina Pastora e o artesanato diversificado de objetos do Jalapão possuem algumas coisas em comum. Todos podem ser classificados como produções artesanais e todos passaram a ser conhecidos a partir de designações geográficas. No caso de Goiabeiras e Divina Pastora, as mesmas ainda são compreendidas como patrimônio cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Enquanto produções artesanais, os três exemplos citados podem ser enquadrados em algumas categorias desenvolvidas por pesquisadores da área da cultura como o são: o folclore, a cultura popular e, hodiernamente, o patrimônio cultural imaterial. Categorias datadas e que mantêm certas especificidades relacionadas com o campo dos estudos da cultura. São categorias nossas, como disposto por Chartier (1995), quase sempre ignoradas pelos artesãos. Conforme o autor citado: “A cultura popular é uma categoria erudita. (...) Ela pretende somente relembrar que os debates em torno da própria definição de cultura popular foram (e são) travados a propósito de um conceito que quer delimitar, caracterizar e nomear as práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencentes à ‘cultura popular’. Produzido como uma categoria erudita destinada a circunscrever e descrever produções e condutas situadas fora da cultura erudita, o conceito de cultura popular tem traduzido, nas suas múltiplas e contraditórias acepções, as relações mantidas pelos intelectuais ocidentais (e, entre eles, os scholars) com uma alteridade cultural ainda mais difícil de ser pensada que a dos mundos ‘exóticos’”. (CHARTIER, 1995, p.179) Enquanto produção de atores provindos das camadas populares, estes agentes, como apontado por Chartier acima (1995), internalizam as categorias desenvolvidas por intelectuais sem maiores reflexões. Muitas vezes, apropriam-se das mesmas, tentando gerar formas de inserção e manutenção do seu saber fazer na dinâmica da sociedade de mercado. Em busca do reconhecimento para a sua produção, tais agentes tomam para si termos como cultura popular e patrimônio imaterial, mesmo sem digeri-los plenamente, na tentativa de reivindicar políticas culturais de fomento baseadas nas categorias dos intelectuais que os estudam. Assim, parece que vem ocorrendo com a indicação geográfica. Instrumento muito recente na cultura brasileira de propriedade intelectual, a mesma parece ainda não ser reconhecida pela população em geral. Ao realizar pesquisa sobre a indicação de procedência de Paraty, reconhecida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, Barbosa (2012) constatou que mesmo dentre o público especializado significativo era o desconhecimento relacionado à IP “Paraty” para cachaças provindas dessa região.

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Se tal figura é desconhecida pela sociedade que participa das relações mercadológicas mais corriqueiras, como, então, possibilitar que a mesma seja apropriada pelos artesãos dos casos acima citados? Entretanto, destaca-se, aqui, que os três casos apresentados já possuem indicação de procedência reconhecida pelo INPI, como pode ser conferido no sítio desse Instituto (www.inpi.gov.br)8. Cada processo de reconhecimento dessas IP pôde contar com parceiros mais institucionalizados que possibilitaram a construção do processo de reconhecimento do registro da indicação geográfica junto ao INPI. Em alguns casos, como Divina Pastora e Paneleiras, a atuação e o fomento proveio do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas)9, entre outros agentes públicos como o próprio IPHAN e INPI; e, em outros casos, como o do Jalapão, a própria secretaria de cultura local iniciou o processo junto a um grupo de artesãos, tendo ao fundo as presenças dos anteriormente citados Institutos. Importante destacar a necessidade de um agente externo aos produtores locais, agente, este, possuidor de uma cultural diferenciada, mais próxima das dinâmicas contemporâneas do mercado e que, portanto, reconhece, com mais clareza, as possíveis potencialidades de um instrumento como uma indicação geográfica. A demanda pela IG nasce muito mais das instituições externas aos agentes produtores do que por meio do interesse dos próprios. Esses correm ainda o risco de se apropriar de forma inconsistente e sem maiores reflexões dessas novas categorias, como muitas vezes ocorre com a própria noção de cultura popular. Com isso, acabam alijados dos processos de reconhecimento da indicação geográfica, bem como irão apresentar dificuldades em relação à gestão desse tipo de sinal distintivo do comércio e, a partir do reconhecimento do mesmo, dos processos de produção e distribuição que o uso do sinal imporá. Como apontado por Paz, “O artesão (...) não é fiel a uma idéia, nem mesmo a uma imagem, mas a uma disciplina prática: seu trabalho. Sua oficina é um microcosmo social governado por suas próprias leis especiais. Seu dia de trabalho não é ditado rigidamente por um relógio de ponto, mas por um ritmo que tem mais a ver com o corpo e sua sensibilidade do que com as necessidades abstratas de produção.” (PAZ, 1995) Esta realidade apontada por Paz (1995), muito pertinente à produção artesanal, pode não se encaixar na dinâmica de um sinal distintivo do comércio, como é o caso da IG. Esta foi pen file:///C:/Documents%20and%20Settings/ppereira/Meus%20documentos/Downloads/LISTACOMASINDICAESDEPROCEDNCIACONCEDIDAS24112015.pdf 9 “A busca pelo reconhecimento do município teve início em 2008 por meio de uma solicitação da Associação para o Desenvolvimento da Renda Irlandesa de Divina Pastora (Asderen) ao Sebrae em Sergipe. A partir daí, foram desenvolvidas uma série de atividades, que incluíram a sensibilização das artesãs e gestores públicos municipais e estaduais, mudanças no estatuto da associação, resgate histórico da técnica e a criação de um caderno de normas da renda irlandesa com informações sobre o processo de confecção das peças”. http://sebrae-sp.jusbrasil.com.br/ noticias/100439902/renda-de-divina-pastora-ganha-indicacao-geografica 8

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sada e gerida a partir da dinâmica de produções vinícolas e agroalimentares voltadas para o mercado consumidor de massa a partir de uma estratégia de diferenciação de produtos específicos e não tão pasteurizados. Sua inserção no universo do artesanato e no modo de produção pertinente a esse universo demanda políticas consistentes, principalmente na área da cultura, que envolvam diversas instituições capazes de auxiliar os artesãos na apropriação desse novo instrumento. Belas10, em comunicação pessoal, relatou o caso de uma artesã de cuias que, demandada por uma empresária a fazer cuias com um formato por essa pré-definido, simplesmente respondeu: a gente faz, mas, quanto ao formato, a senhora vai ter que falar com a cuieira, ou seja, a planta. Esse breve comentário aponta como a dinâmica da produção artesanal é particular e deve ser pensada com cuidado e precisão quando a mesma tem que dar conta de novas categorias, distintas do seu universo de produção. Sobre o comentário da artesã e conforme Lima: “o objeto artesanal é definido por uma dupla condição: primeiro, o fato de que seu processo de produção é em essência manual. São as mãos que executam basicamente todo o trabalho. Segundo: a liberdade do artesão para definir o ritmo da produção, a matéria-prima e a tecnologia que irá empregar, a forma que pretende dar ao objeto, produto de sua criação, de seu saber, de sua cultura” (LIMA, 2005). O artesanato não é um produto de massa, homogêneo e pasteurizado. Seu ritmo de produção é diferente; as formas resultantes possuem peculiaridades por mais que se tratem de um mesmo objeto entre outras especificidades. Falar de padronização é simplesmente ferir toda a lógica de produção e desenvolvimento do artesanato. Em todos os casos de reconhecimento como indicação de procedência, está-se diante de estruturações processuais que permitirão a constituição de um conjunto de documentos probatórios a serem analisados pelo INPI. Mas é importante colocar no ambiente dos tomadores de decisão do campo da cultura a necessidade do acompanhamento dessas realidades locais no pós-reconhecimento da indicação geográfica. O simples reconhecimento, sem políticas de amparo posteriores pode resultar na inocuidade da IG. 5. CONCLUSÃO Os casos ora apresentados serviram apenas de pano de fundo para reflexões envolvendo o reconhecimento de indicações geográficas para objetos artesanais, realidades pertencentes a culturas variadas e com dinâmicas próprias. A percepção da falta de políticas orquestradas para o acompanhamento do processo de requerimento da IG e para o pós-concessão foi a temática central aqui discutida. Há instituições envolvidas, mas não uma orquestração. Em função da Carla Belas é doutora, professora, pesquisadora e consultora do IPHAN tendo acompanhado vários processes de registro como patrimônio imaterial. 10

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importância dada à indicação geográfica no mercado internacional, destaca-se a necessidade de se pensar estrategicamente essa figura como forma de organização e valorização do patrimônio cultural. Exatamente por se estar tratando de cultura, o mais coerente seria o desenvolvimento de políticas culturais que congregassem atores de outras áreas, mas a partir de um objetivo comum de valorizar e fomentar atividades culturais tradicionais pertencentes à cultura brasileira. Infelizmente, ainda, não se pode falar que tal situação venha sendo desenhada apesar da existência de algumas tentativas. Não há, até o momento, por exemplo, um acordo de cooperação entre o IPHAN e o INPI formalizado. O primeiro, ao cuidar do reconhecimento como patrimônio cultural imaterial das realidades enquadradas como culturas populares, possui metodologia e um modus operandi próprio para lidar com essas realidades. Esse modus operandi, bem como as metodologias baseadas na etnografia utilizada pelo IPHAN, deveria ser discutido e assimilado por outras instituições que fornecem fomento para o artesão, como ocorre com o SEBRAE, bem como internalizado pelo próprio INPI, responsável pelo reconhecimento da indicação geográfica. Entretanto, as informações de conhecimento desta autora11 apontam para a inexistência, formalizada, de tal diálogo interinstitucional. Há tentativas de aproximação dos dois campos, a partir de estratégias de disseminação no âmbito das pós-graduações dos citados Institutos (INPI e IPHAN), bem como processos de capacitação para outras instituições. Entretanto, ainda há muito a caminhar em conjunto de forma a poder-se falar em políticas de amparo no campo da cultura e da gestão desses novos instrumentos que possibilitem a real apropriação pelos produtores locais de instrumentos que agreguem valor a suas produções.

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SYLVANDER, B. et.al. Les dispositifs français et européens de protection de la qualité et de l’origine dans le contexte de l’OMC: justifications générales et contextes nationaux. In.: Territoires et enjeux du développement regional. Programme transversal de l’INRA «Pour et Sur le Développement Régional» PSDR Symposium international à Lyon du 9 au 11 mars 2005.

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REDE CEUS DE CINECLUBES: CINEMA E ESTADO DEMOCRÁTICO Paula Priscila Braga1 RESUMO: Em 2015, a UFABC (Universidade Federal do ABC) em parceria com o MinC (Ministério da Cultura) implantou o projeto Rede CEUS de Cineclubes, que formará uma rede de cineclubes no país a partir de um núcleo inicial de nove cineclubes instalados nos equipamentos dos CEUs (Centros de Arte e Esportes Unificados) de cidades das 5 regiões do Brasil. Este artigo discute a importância do cinema como veículo de expansão cultural e de construção de pensamento crítico, elemento fundamental para o funcionamento do estado democrático, descreve o processo de formação dos jovens cineclubistas, e relata os primeiros resultados obtidos nas sessões cineclubistas organizadas desde agosto/2015 em nove cidades do Acre, Pará, Goiás, Rio Grande do Norte, Ceará, Sergipe, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina. PALAVRAS-CHAVE: Cineclube, Cultura, Rede, CEU, MinC

Apresentamos neste artigo o caso da implantação de uma rede de cineclubes, interconectada por uma plataforma web2, e que usa, no estágio atual, a infraestrutura física dos CEUs - Centros de Arte e Esportes Unificados em nove cidades das 5 regiões do Brasil. Os CEUs são equipamentos instalados pelo governo federal em parceria com os municípios em 357 cidades do Brasil. No momento de escrita deste artigo havia 71 CEUs já instalados, com investimento de R$ 767.390.000,00 do governo federal e contrapartida de R$ 70.695.000,00 dos municípios.3 Os esforços para manutenção e reforço do estado democrático no Brasil exigem um tipo de empoderamento do povo em geral pouco discutido nas políticas públicas: o poder do pensamento crítico, da avaliação autônoma e reflexiva das questões político-sociais do país. Nenhuma política pública que vise o aprimoramento da democracia será efetiva em uma população manipulada por meios de comunicação e alienada das produções artísticas que tratem de questões locais. Transformações relevantes como o combate da desigualdade social ou de gênero ocorrem quando emergem a partir de uma ética fundada no livre pensar. Políticas públicas voltadas para Docente na Universidade Federal do ABC (UFABC), com pós-doutorado em Teoria da Arte pela UNICAMP e doutorado em Filosofia pela Universidade de S. Paulo. email: [email protected] 2 http://redeceucineclubes.info/. Acessado em 10/01/2015. 3 http://ceus.cultura.gov.br/index.php/acompanhamento-das-obras. Acessado em 19/10/2015. 1

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a educação ou para a assistência social precisam andar juntas com políticas culturais que construam uma estrutura de pensamento crítico não fornecida -- e muitas vezes destruída -- pelos meios de comunicação de massa. Várias ações do Ministério da Cultura almejam o empoderamento reflexivo da população a partir da produção e discussão de peças audiovisuais e outras manifestações artísticas. O Programa Cultura Viva, que articulou o modelo de Pontos de Cultura, implementados a partir de 2003 (LIMA; SANTINI, 2007), baseia-se na concessão de apoio financeiro a desenvolvedores culturais já estabelecidos e que trabalham à margem da indústria cultural hegemônica4. Os Pontos de Cultura baseiam-se no conceito da riqueza das redes (BENKLER, 2006) e das organizações de estrutura de poder horizontal que no início dos anos 2000 despontava como modelo utópico de reestruturação da sociedade (CASTELLS, 2001). Em 2012, ao mesmo tempo em que as estruturas verticalizadas de poder reagiram e as promessas da Primavera Árabe e do Occupy recuavam, o modelo capilarizado dos Pontos de Cultura passou a coexistir no Brasil com um modelo de construção de grandes equipamentos, os CEUs (Centros de Arte e Esportes Integrados). Para garantir a mínima fusão entre os dois modelos, ou seja, que fosse possível que esses equipamentos entregues pelo governo federal aos municípios pudessem acolher grupos auto-geridos de discussão e empoderados com a possibilidade da reflexão crítica, o MinC contactou em 2014 universidades federais para o estabelecimento de atividades na área do Cinema, Música e Cultura Digital nos CEUs. A UFABC venceu o edital para a área de cinema5, e em 2015 deu início a visitas a nove CEUs já inaugurados que concordaram em montar um cineclube nos municípios de Abaetetuba (PA), Rio Branco (AC), Formosa (GO), Ceará-Mirim (RN), Barbalha (CE), Nossa Senhora do Socorro (SE), Mauá (SP), Maricá (RJ) e São Bento doSul (SC). Este artigo discute as possibilidades políticas de um projeto que visa fomentar a reflexão crítica sobre o país a partir de filmes seguidos de debates, salientando o empoderamento das comunidades em definir suas próprias programações de exibição de filmes e a relação dos cineclubes com lideranças comunitárias e da sociedade civil. Defenderemos o modelo misto de equipamento cultural, que se estabelece em rede mas que possui uma representação física em um espaço comunitário dos municípios. Apresentaremos também a história e o andamento atual do projeto de implantação da Rede CEU de Cineclubes através da parceria entre a UFABC e o MinC.

O Plano Nacional de Cultura - PNC (Lei 12.343/2010) estabelece em seu Plano de Metas o fomento de 15 mil Pontos de Cultura até 2020. Para atingir a meta seria necessário fomentar 1.750 novos Pontos de Cultura por ano até 2020, com um investimento anual de aproximadamente 113 milhões/ano, considerando o valor de 60 mil/ano para cada Ponto de Cultura. cf. http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1 Acessado em 01/11/2015 5 A área de Música está a cargo da UFG e a de Cultura Digital está sendo desenvolvida pela UFPE. 4

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1. CINEMA E PENSAMENTO CRÍTICO Quando Walter Benjamin escreveu “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, em 1936, a fotografia e o cinema apresentavam-se como novidades tecnológicas capazes de promover a estetização da política ou a politização da arte. As massas poderiam ser manipuladas pelo cinema (estetização da política), ou acharem nele um veículo de libertação e reivindicação de seus direitos (politização da arte) (BENJAMIN, 2013). É possível identificar no texto de Benjamin três eixos de atuação política da arte na era da reprodutibilidade técnica inaugurada pelo advento da fotografia e principalmente do cinema. Em cada eixo, o cinema aparece como instrumento de emancipação ou de repressão, dependendo de como for usado. O primeiro é o eixo da acessibilidade: a obra passa a estar disponível a um grande número de pessoas pois é reprodutível, ou seja, há inúmeras cópias de uma fotografia ou de um filme. Se isso propicia uma democratização do acesso à imagem, facilita também o controle das ideias que serão inculcadas nas massas. Benjamin estava testemunhando as propagandas nazistas sendo exibidas em cinemas da Alemanha nos anos 1930, mas ainda reconhecia o potencial incitador de ideias revolucionárias e anti-fascistas do cinema. O segundo ponto de atuação política da arte na era das técnicas de reprodutibilidade seria a inclusão do espectador, se não ainda como autor, ao menos como ator. Qualquer um poderia atuar em um filme, desempenhando por exemplo o papel de si mesmo em uma tomada que exigisse uma massa de pessoas. As técnicas de edição consertariam qualquer imprecisão de atuação. Mas no cinema Ocidental, a indústria cinematográfica desde os primórdios do cinema insistia em afastar o espectador da possibilidade de identificar-se com os personagens retratados. O potencial do cinema em representar o espectador foi minimizado pelo culto às celebridades cinematográficas e por roteiros que uniformizam a riqueza da experiência de vida, impondo autoritariamente modelos de vida aos espectadores (estetização da política). Finalmente, o terceiro eixo de atuação política do cinema estaria na face política do sensível, entendida como o potencial que o cinema tem de fazer o mundo ser percebido pelo espectador de outra forma. Benjamin menciona o alargamento de percepção que a imagem cinematográfica proporciona, seja pelo enquadramento inusitado, seja pela câmera lenta, ou por exibir imagens de lugares distantes e desconhecidos. Percebemos de outra forma o mundo depois de o termos visto pelos olhos da câmera (e não será assim com toda obra de arte relevante? Não é a obra mais valiosa sempre uma câmera a ampliar algum detalhe do mundo?). A câmera, diz Benjamin, propiciou ao homem representar o mundo de outra maneira; ela “nos abre pela primeira vez a experiência do inconsciente visual”, assim como a psicanálise “facultava a análise de realidades, até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas.” (BENJAMIN, 2013, p. 85-87). Com recursos como o zoom ou enquadramentos inesperados, a

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câmera poderia fazer-nos ver partes do mundo que antes ficavam despercebidas. Em contrapartida, é desnecessário enfatizar o quanto a câmera também atuou a partir dos anos 1950 como ditadora das formas de percepção do mundo, como impositora de padrões de aparência e comportamento nas massas, estreitando, ao invés de alargar, a percepção de mundo. Nos três grandes eixos que listamos acima Benjamin apresenta os benefícios da reprodutibilidade da obra de arte e indica uma contrapartida menos nobre da acessibilidade, da dissolução da fronteira entre autor/ator e público e da modificação da experiência de apreensão do sensível. A dialética implícita na discussão de Benjamin é resumida pela diferença entre politizar a estética ou estetizar a política, entre o espectador que penetra na obra ou a obra que, travestida de diversão, penetra nas massas. Politizar a estética é reconhecer o poder da arte em ampliar a percepção do mundo, em conferir voz aos passivos observadores. Estetizar a política é manipular as massas com o apelo da imagem, injetando-lhe, na seringa da boa forma, um anestésico que lhe barra a ação, que diverte e assim distrai, que conforma em um padrão e em um estado das coisas. O século XXI trouxe uma nova tecnologia que Walter Benjamin não conheceu e que pode fortalecer o lado emancipador do cinema: as redes de comunicação. Se desde os anos 1960 filósofos como Guy Debord já criticavam o modelo centralizado do espetáculo, onde um ponto emite o conteúdo que os outros pontos da rede recebem (DEBORD, 1997), sem discussão entre eles, a era das redes nos trouxe um antídoto importante contra a manipulação das massas: a rede distribuída. A Rede CEUS de Cineclubes é assim uma experiência de emancipação e autogestão cultural que une cinema e comunicação. Na teoria das redes de comunicação há três modelos de redes: a rede centralizada, a rede descentralizada e a rede distribuída. Quanto mais centralizada, mais a rede define o que os espectadores vão receber como conteúdo. Quanto mais distribuída, mais os espectadores decidem o que vão assistir. A figura 1 ilustra três tipos de arquitetura de rede. Figura 1: Redes centralizada, descentralizada e distribuída

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Na rede centralizada, a informação sai sempre de um centro, e os outros pontos só recebem a informação. É o que acontece, por exemplo, na rede de transmissão de programas de televisão. Há um centro, que é a emissora de TV, que envia informação para as televisões nas casas dos espectadores. Na rede descentralizada há vários centros, e eles conversam entre si. Cada centro envia informação para alguns espectadores. As conversas entre os centros podem causar mudanças nessas informações. Por fim, há a rede distribuída, que realmente não tem centro. É como se cada casa da comunidade pudesse ser um centro, e enviar programação para todas as outras casas, via Internet, por exemplo, difundindo um filme caseiro, feito com a câmera de um aparelho celular. A rede CEUS de Cineclubes é uma rede descentralizada porque possui muitos cineclubes que são centros de envio de informação para os espectadores. E os cineclubes estão conectados, e assim conversam entre si, trocam filmes e ideias. De fato, o formato de uma sessão cineclubista -- projeção de filme seguida de discussão -- facilita a reflexão crítica. Quando vários cineclubes se reúnem em rede e trocam informações, relatos, títulos de filmes e experiências de participação do público, o poder de emancipação do espectador através do cinema aumenta e neutraliza eventuais tentativas de centralização da escolha sobre o que assistir. Ainda que o modelo atual da Rede CEUS de Cineclubes seja um modelo descentralizado mas não distribuído, a participação da comunidade de cada cineclube na escolha dos títulos a serem exibidos e principalmente a participação na discussão que se segue ao filme aumenta o número de pontos emissores de informação na rede: cada participante do debate que sucede o filme tem poder de enunciação e suas ideias são devolvidas para a rede em registros que ficam na plataforma web da Rede CEUS de Cineclubes. 2. AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CULTURA E A ARQUITETURA DE REDE DISTRIBUÍDA Uma das políticas de cultura mais distribuídas e mais conhecidas já implementadas no Brasil foi o Projeto dos Pontos de Cultura no governo Lula/Gil. O próprio título do projeto, com a ideia de pontos espalhados, reproduz a base de um desenho de rede distribuída. O projeto foi lançado em sincronia com o crescimento da cultura das redes no país, e em um momento de extremo otimismo em relação a possibilidades de renovação das políticas culturais, simbolizado pela figura do ministro compositor Tropicalista. A ideia de uma rede de pontos de cultura apresentou-se como modelo inovador e de potencial superação do descaso com políticas culturais no país. Para Albino Rubim, as políticas voltadas à cultura no Brasil foram historicamente caracterizadas por ausência do estado no âmbito cultural, autoritarismo quando políticas públicas foram implantadas e instabilidade em suas trajetórias (RUBIM, 2007).

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Nos últimos anos a ausência do estado na expansão da cultura no país é explícita nas leis de incentivo fiscal, que delegam para o setor privado a decisão sobre quais ações culturais devem receber fomento: “nesta perversa modalidade de ausência, o Estado só está presente como fonte de financiamento. A política de cultura, naquilo que implica em deliberações, escolhas e prioridades, é propriedade das empresas e suas gerências de marketing”. Rubim aponta para períodos da história brasileira em que governos ditatoriais implementaram políticas públicas de cultura, como na era Vargas/ Capanema ou durante a ditadura militar, e ressalta que a atual modalidade de “ausência do Estado” favorece formas contemporâneas de autoritarismo já que a opção de entregar a decisão sobre fomento cultural à iniciativa privada incentiva uma concepção restrita de cultura, “que engloba apenas as expressõs mais reconhecidas pela elite, expressa com extrema fidelidade a visão autoritária e excludente da intervenção do estado nacional no campo cultural”. A falta de continuidade nas políticas públicas gera a terceira característica marcante de nossas políticas culturais, a instabilidade: O governo Vargas cria instituições, mas destrói experiências políticas e culturais relevantes como a vivida por Mário de Andrade no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo (1935-1938). A ditadura militar fecha em 1964 o ISEB; os Centro Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes e o Movimento de Cultura Popular, onde aparece Paulo Freire. O afã neoliberal de Collor desmonta, como um bárbaro, quase todas as instituições culturais do país. Isto apenas para citar alguns momentos dramáticos. (RUBIM, 2007) Como escapar do padrão de ausência, autoritarismo e instabilidade? Como impedir que mudanças no governo afetem ações em andamento nas comunidades? Como instituir projetos que transcendam a figura do governante e tornem-se políticas de estado duradouras? O envolvimento da sociedade civil e a adaptação das políticas culturais à arquitetura de redes distribuídas que marca a era da comunicação digital apresentou-se como possibilidade na administração do MinC desde 2004. A ideia de descentralizar as ações culturais, distribuir recursos para grupos auto-organizados com uma agenda diversificada e deixar a rede se auto governar foi a aposta do Plano Nacional de Cultura, que dentre outras ações para minimizar as distorções causadas pelas leis de incentivo fiscal, propõe o Programa Cultura Viva, que a partir de 2005 passou a financiar os Pontos de Cultura. Entre 2004 e 2014 foram implementados 4.500 Pontos de Cultura em cerca de mil municípios de todo o país6, fomentando ações num amplo espectro de modalidades de culturas: populares; afro-brasileiras; indígenas; de gênero; de orientação sexuais; das periferias; da mídia áudio-visual; das redes informáticas etc. http://pnc.culturadigital.br/metas/15-mil-pontos-de-cultura-em-funcionamento-compartilhados-entre-o-governo-federal-as-unidades-da-federacao-ufs-e-os-municipios-integrantes-do-sistema-nacional-de-cultura-snc/ e http://www.cultura.gov.br/cultura-viva1 Acessados em 23/03/2016.

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Especificamente voltado para o cinema, e seguindo o modelo de ações descentralizada, o Programa Cine Mais Cultura foi lançado pelo MinC em 2009, com abertura de editais para equipar espaços de exibição de filmes com “equipamento de projeção digital, obras brasileiras, em DVD, do catálogo da Programadora Brasil e oficina de capacitação cineclubista. Cada espaço recebe um kit contendo telão (4m X 3m), aparelho de DVD, projetor, mesa de som de quatro canais, caixas de som, amplificador, microfones sem fio e centenas de filmes brasileiros (curtas, médias e longas metragens, além de documentários e animações) selecionados pela Programadora Brasil, para exibições semanais.”7 A Rede CEUs de Cineclubes continua a atuar nas comunidades de forma descentralizada e através do cinema, porém inicia seu funcionamento em equipamentos construídos pelo governo federal em parceria com municípios, como parte da segunda etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2), iniciada em março de 2010. Por utilizar um local físico construído pelo governo, as Praças dos Esportes e da Cultura (PEC), também chamados de Centro de Esportes e Lazer Unificados (CEUs), a Rede CEUS de cineclubes tem a particularidade de dividir o espaço dos CEUs com outras ações de caráter social e cultural, como “programas e ações culturais, práticas esportivas e de lazer, formação e qualificação para o mercado de trabalho, serviços sócio-assistenciais, políticas de prevenção violência e inclusão digital, de modo a promover a cidadania em territórios de alta vulnerabilidade social das cidades brasileiras.”8 É parte importante do Programa CEUs manter uma interface com outras ações do MinC, como o Programa Cultura Viva, tanto que o estatuto de gestão dos CEUs deve ter um representante da sociedade civil ligado a um Ponto de Cultura do município, de forma que a produção cultural de local tenha presença forte no CEU. 3. REDE CEU DE CINECLUBES: IMPLANTAÇÃO E PRIMEIROS RESULTADOS Em maio de 2015 a equipe de desenvolvimento da Rede CEUs de Cineclube iniciou visitas às 9 cidades das 5 regiões do Brasil que fazem parte do projeto piloto. Organizada pela Pró-reitoria de Cultura e Extensão (PROEC) da Universidade Federal do ABC , a equipe foi formada por dois técnicos-administrativos da PROEC (um deles coordenador do projeto), um docente da UFABC, três cineclubistas e 3 estagiários.9 Em cada viagem, 2 ou 3 membros da equipe visitaram o CEU para conhecer as instalações, o entorno sócio-cultural, entrevistaram http://www.cultura.gov.br/cine-mais-cultura. Acessado em 19/03/2016. http://www.cultura.gov.br/praca-dos-esportes-e-da-cultura-pac-2-. Acessado em 19/03/2016. 9 O orçamento geral do projeto foi R$499.074,40 incluindo bolsas de R$555,00 por 10 meses, para dois cineneclubistas por CEU; viagens da equipe a 9 cidades do país, viagem de 30 jovens cineclubistas e gestores de CEUS a S. Bernardo do Campo por 5 dias para a oficina de capacitação, contratação da plataforma web, e bolsas por 10 meses para três especialistas em cineclubismo, e para a equipe da UFABC, cujos valores variaram de R$ 600,00 a R$1800,00. 7 8

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gestores do CEU e funcionários da prefeitura, e conheceram a programação de oficinas, aulas, atendimento social e opções de lazer oferecidas nas instalações. Além de verificar se havia equipamentos adequados para a condução de sessões cineclubistas em cada CEU e conhecer gestores e secretários de cultura da cidade, uma função importante da equipe foi assegurar às comunidades que as características de auto-gestão e autonomia na escolha da programação cultural do CEU não seriam afetados pela adesão à Rede CEUS de Cineclubes. É interessante notar que oito das nove cidades visitadas não possuem nenhum cinema comercial, e uma delas (Rio Branco) já tem uma atividade cineclubista bem estabelecida por grupos independentes e que podem ser parceiros da Rede CEUs de Cineclubes. Em todas as cidades, o CEU já possui uma programação bastante ativa com oficinas de dança, capoeira, atividades para a terceira idade e biblioteca, geridas por membros da comunidade e em geral reforçando aspectos culturais da região, como as festas tradicionais, os preparativos de festivais populares e desfiles. A programação do cineclube dos CEUs é uma oportunidade de envolver a comunidade em discussões que, a partir do calendário de festas, amplia a reflexão crítica sobre o país. Assim, o mês do artesanato em uma cidade pode dar margem a um ciclo de cinema com filmes que discutam direitos trabalhistas; a festa do boi-bumbá pode ser mote para uma programação em torno do par festa-tragédia, abordada em filmes como “Orfeu da Conceição” ou “Ó Pai Ó”. Conhecendo os gestores dos CEUs e alguns aspectos socioculturais das comunidades, o grupo de formadores da UFABC elaborou uma apostila sobre como montar e gerir um cineclube, planejou uma oficina de 5 dias para 30 participantes (20 jovens que serão responsáveis pelo cineclube e gestores dos CEUs) e desenvolveu a especificação de uma plataforma web para constituir a Rede CEUS de Cineclubes. Como esperado, as viagens revelaram perfis socioculturais muito distintos dentre as cidades, e modelos de gestão não homogêneos, dependentes do perfil dos gestores dos CEUS, que vão de lideranças comunitárias ligadas a associações religiosas a lideranças políticas. Dada a heterogeneidade da formação escolar do público leitor, a apostila desenvolvida pela equipe do projeto tem uma linguagem simples e sucinta, com dicas práticas de montagem de um cineclube, orientações sobre como fazer uma curadoria selecionando a programação a partir do interesse da comunidade, bem como referências sobre a importância do modelo em rede para fortalecer o coletivo de cineclubes no Brasil.10 Em julho de 2015, 20 jovens com idades entre 18 e 25 anos, que receberam a bolsa do MinC para gerirem por 10 meses o Cineclube dos 9 CEUs, participaram da oficina presencial da Rede CEUS de Cineclubes com duração de 40 horas, acompanhados de gestores experientes dos respectivos CEUs. Durante os 5 dias de oficina os tópicos da apostila foram expandidos em A apostila está disponível em http://redeceucineclubes.info/ na aba “Monte seu cineclube”. Acessado em 19/03/2016. 10

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vivências sobre a importância da rede de comunicação entre os cineclubes e discussões sobre o papel político de um cineclube como propiciador de participação ativa e enunciação de críticas e reflexões. O grupo visitou a Cinemateca Brasileira, assistiu um filme no cinema de rua Caixa Belas-Artes, de S. Paulo e participou de uma sessão cineclubistas no CEU Lajedo. Nas oficinas práticas, os participantes foram incentivados a desenvolver um programa para a primeira sessão que montariam ao retornar a suas cidades, a partir do acervo inicial de filmes que todos os CEUs da Rede receberam, com 102 filmes nacionais da Programadora Brasil. A proposta da Rede CEUs de Cineclubes é que este acervo inicial seja aos poucos expandido com contatos feitos pelos gestores dos cineclubes entre si e com diretores de filmes. Os jovens cineclubistas dos CEUs que integram a rede recebem uma bolsa do MinC e em contrapartida comprometem-se a cumprir os seguintes requisitos mínimos: organizar sessões de projeção de filme quinzenais, com ao menos1 debate mensal, sendo que 75% da programação mensal deve ser preenchido com filmes nacionais. As sessões cineclubistas devem ser registradas em fotografias ou filmagem, e tanto este registro quanto relatórios da sessão com dados do filme, do número de espectadores, e descrição do debate, devem ser disponibilizados na rede. O grande desafio deste projeto é fortalecer a rede, tanto para construir arestas fortes entre os 9 pontos atuais da rede piloto, como para que outros CEUs implantem cineclubes e se beneficiem do poder da rede de expansão do acervo fornecido pela Programadora Brasil. Uma rede tem condições de contactar diretores de filmes ou festivais de cinema com muito mais desenvoltura do que um ponto isolado. Idealmente, este rede pode conectar cineclubes que estejam funcionando independentemente dos CEUs também. Nos 10 meses iniciais do projeto muito foi feito, mas a plataforma web que concretiza a rede ainda está em fase de aprimoramento. Foi contratada uma empresa terceirizada para o desenvolvimento da plataforma a partir da especificação técnica desenvolvida pela equipe, mas a ergonomia da plataforma não está adequada às necessidades dos jovens cineclubistas e nem sólida o suficiente para fomentar a força da rede. Dos 9 cineclubes do projeto piloto, 5 estão ativos na plataforma, registrando suas sessões, que já exibiram 16 filmes para 352 espectadores. Sem dúvida há um ganho não quantificável de expansão na forma de compreender o mundo a partir do cinema já para este pequeno público. Os próximos passos do projeto são o acompanhamento e orientação dos quatro cineclubes que estão com dificuldade de uso da plataforma e revisão do design e ergonomia da plataforma. O Projeto Rede CEUS de Cineclubes é um caso importante de estudo do modelo misto de política cultural, que conta de um lado com a rede descentralizada e de outro com uma estrutura física, o CEU, que é um marco material de um ponto da rede e referência na paisagem urbana de cada município. Esta mescla entre a arquitetura física e a virtual revelou-se já nas primeiras etapas do projeto como uma característica democrática já que alguns cineclubes passaram mais facilmente do que outros para suas representações virtuais na rede. Alguns CEUS estão com o

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cineclube ativo e cumprindo os requisitos de exibição de filmes e de discussão na sessão cineclubista porém não chegam a registrá-las na plataforma, prestando contas individualmente para os administradores do projeto da equipe da UFABC. Como a rede precisa funcionar sem esta intermediação da equipe de implantação, desenvolver um desenho de plataforma que seja simples e eficiente para incentivar a participação na rede virtual é um desafio dos próximos meses. Na fase atual, a equipe de implantação está refinando a plataforma web e procurando estratégias para incentivar a comunicação inter-CEUS, autônoma e sem a interferência de um administrador. Ao longo dos próximos meses esperamos coletar dados sobre o tipo de programação escolhida por cada cineclube e observar como a distribuição de informação sobre programação e debates motiva a rede a criar curadorias de valor para além do entretenimento. Um próximo artigo sobre a Rede CEUs de Cineclubes irá analisar as programações dos 9 cineclubes durante o primeiro ano do projeto e identificar linhas de curadoria priorizadas pelas comunidades. Assim, contrapondo-se ao histórico de ausência do estado, autoritarismo e instabilidade nas políticas para cultura no país, espera-se que a Rede CEUs de Cineclubes se consolide como uma política cultural espalhada, abrangente, inclusiva e refratária a instabilidades políticas pois apoia-se em uma estrutura virtual porém firme e indissolúvel: o poder das redes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 2013. 128 p. BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: how social production transforms markets and freedom. New Haven and London: Yale University Press, 2006. 515 p. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 575 p. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 238 p. LIMA, Clóvis; SANTINI, Rose Marie.”Código aberto e produção colaborativa nos pontos de cultura.” Contemporanea, vol. 5, nº 1 e 2. Dez. 2007. p. 5-6. Políticas Culturais no Brasil. Rubim, Antonio Albino Canelas (org.). Salvador: EDUFBA, 2007. 179 p. RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Políticas Culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos”. III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2007, Salvador-Bahia-Brasil. Anais do III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2007. Disponível em http:// www.cult.ufba.br/biblioteca_enecult_2007.html. Acessado em 23/03/2016.

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POLÍTICAS CULTURAIS EM TEMPOS DIFÍCEIS: A BUSCA DE UMA ALTERNATIVA SOB A HEGEMONIA DOS PENSAMENTOS NEO-LIBERAL E PÓS-MODERNO. Paulo Ricardo Berton1 RESUMO: Este artigo pretende problematizar os diferentes setores de uma Gestão Cultural, mas sem perder a sua contextualização como parte de uma Política Cultural de escopo mais amplo, buscando para cada um deles alternativas aos pensamentos hegemônicos neoliberal e pós-moderno, que no mundo de hoje estabelecem os paradigmas estéticos, cada qual a partir de uma ótica perversa ao seu modo, dificultando assim a construção de uma Política Cultural representativa, acessível e humanizada. PALAVRAS-CHAVE: Política Cultural, Gestão Cultural, Neoliberalismo, Pós-modernismo.

1. INTRODUÇÃO Para fazer frente a todas as dificuldades com as quais um gestor cultural no contexto histórico em que nos encontramos hoje se depara na sua atividade diária, desde as internas, representadas pelas limitações de sua equipe de trabalho, até as externas, presentes no descaso do poder público, do desinteresse do setor privado e da mediocrização cada vez maior do gosto do público, faz-se mister que este profissional com um quê de quixotesco assenhore-se de uma gama de conhecimentos que lhe possibilitem um mínimo de sucesso em suas iniciativas. Ele precisa além de perceber este isolamento, conseguir compreender as causas históricas que o levaram a ocupar esta posição por vezes ingrata. Apesar de cada lugar geográfico possuir características específicas, que aumentam ou diminuem o acirramento deste quadro, poupando um dos quatro grupos supracitados ou, numa hipótese pior ainda, acrescentando mais algum, este quadro pode ser percebido a nível mundial. Em meio ao fenômeno chamado de globalização, que para Appadurai: ...intensifica a possibilidade dessa volátil transformação, de modo que a naturalidade que todas as identidades grupais procuram e assumem está Professor Adjunto III do Curso de Artes Cênicas, Departamento de Artes e Libras, UFSC, [email protected] 1

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perenemente ameaçada pela afinidade abstrata das próprias categorias de maioria e minoria (APPADURAI, 2009, p.66), uma forte tendência de homogeneização dos costumes acaba decretando uma tabula rasa de consequências perniciosas para qualquer gestor da área da cultura. Em outras palavras, as dificuldades encontradas nos diferentes lugares serão bastante semelhantes. (Basta participar de encontros e congressos na área em outros países, para se verificar esta máxima.) O que está se querendo dizer é que percebemos no mundo contemporâneo um encurralamento desta área do conhecimento entre duas visões igualmente radicais na sua negligência com a promoção de uma cultura que por um lado efetivamente represente comunidades e grupos sociais, e por outro, permita o acesso da população aos aparelhos e ações culturais. Num extremo, temos a cultura que visa o lucro, as megaproduções de ingressos com valor inacessível, a indústria cultural de massa que emburrece, massifica e embrutece o taste coletivo. Do outro, um resquício do estereótipo mais nefasto do artista, herdando a irreverência irresponsável das vanguardas do início do século XX, juntamente com o conceito gauthieriano apolítico da l’art pour l’art e a imagem pucciniana do artista boêmio e à parte de um mercado de trabalho. Tanto a versão neoliberal quanto a versão pós-moderna, que juntas irão representar a forma como a cultura é vista no sistema econômico capitalista tardio2 são duas faces da mesma moeda: um cenário desértico para o florescimento de um conceito de cultura embasado em valores humanistas, de acesso universal e respeitando as particularidades dos lugares e de suas formas de pensar e de se expressar. Este artigo pretende resgatar a importância de uma gestão cultural fundamentalmente crítica em relação a estes dois pensamentos hegemônicos no contexto histórico em que estamos inseridos hoje. Refletir sobre as mazelas desta atividade, a maior parte delas sendo causadas exatamente pela incapacidade de se perceber a consequência destas formas de pensar, que acabam sendo incorporadas de forma subliminar nos agentes culturais, tal qual as mensagens que apenas o cérebro capta na tela, mas o olho não registra, é o que justifica este esforço teórico. Este trabalho pretende então analisar alguns tópicos fundamentais para a constituição e compreensão do que vem a ser uma política cultural a fim de problematizar e resgatar temas à luz da crítica em relação ao pensamento neoliberal e ao pensamento pós-moderno. 2. GESTÃO DA CULTURA Em relação à gestão da cultura, é possível observar dois paradigmas gerais que identificam tanto o pensamento hegemônico da indústria cultural como o da autoproclamada alternativa aos status quo: o pós-modernismo. No primeiro caso – e isto se dá em todas as esferas de poder, De acordo com o pensamento de Fredric Jameson em “O Pós-modernismo ou a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”. 2

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tanto político quanto econômico – o que se prioriza são os eventos efêmeros ao invés de qualquer programa de mais longo prazo. O círculo vicioso que se constrói a partir da construção do gosto da sociedade de massa é o que justifica a preferência por este tipo de atividade cultural na gestão neoliberal, afinal, realiza-se aquilo que o público aprecia. Esta hipócrita argumentação na verdade serve de um véu com ares de populismo para proteger o primeiro intento qual seja o do lucro. Conforme Graeff: “Em uma economia de mercado, o artista está sujeito, para o bem ou para o mal, aos riscos da demanda por parte dos vários compradores em potencial, diretos ou indiretos” (GRAEFF, 2013, p.140). Assim, determinadas estéticas cinematográficas, gêneros musicais e correntes literárias acabam sendo privilegiados em detrimento de outras de menor apelo popular. No teatro, a comédia stand-up de apelo fácil e o musical importado; na dança, o balé clássico ou a dança com um pé no folclórico; e assim por diante. Ao lado desta prática de priorização de eventos, encontramos um pensamento que pretende abolir quaisquer fronteiras, num país em que os territórios das artes mal e mal foram estabelecidos, propagando a ideia de que para se criar um objeto artístico não se necessita qualquer educação, o que acaba nivelando por baixo a produção e, por consequência, o gosto. Na esteira desta inversão de papéis entre a arte e o artista, Graeff nos aponta que: Dessa forma, qualquer análise crítica da arte é rejeitada, o artista importando mais do que a arte, o indivíduo, mais do que a comunidade artística. Esse discurso é seguido pelo postulado segundo o qual todo mundo é artista, e quanto menos o artista cria, mais ele é grande, tal como Warhol” (GRAEFF, 2013, p.93) Bastando citar uma obra de arte anterior com um toque de deboche, numa execrável apologia simplista ao que Duchamp de forma inovadora e magistral fazia com um quadro de da Vinci ou com um simples mictório, a arte pós-moderna se resume a uma sucessão de pastiches com um resultado kitsch, mas que consegue se estabelecer como a voz da rebeldia. Isto se traduz numa gestão cultural que abole o talento e o mérito, que tenta equilibrar as oportunidades de produção cultural onde elas não existem, como nos casos clássicos de editais nos quais as artes mais destacadas são obrigadas a abrir mão de recursos para que outras com nenhuma relevância sejam incentivadas, trazendo o descaso para com as primeiras e um resultado espúrio para com as segundas. Para Coulangeon: Percebemos, (...), os limites de uma crítica do arbitrário universalista das políticas de democratização. Essa prática tem como pretexto o relativismo cultural – dar a cada um os meios de obter o que ele aspira -, acomodando-se, no fundo, à aporia das concepções habilitadoras da justiça” (COULANGEON, 2011, p.42). O gestor cultural deve estar consciente destes dois polos ideológicos e buscar uma alternativa que seja sobretudo crítica. Isto exige um trabalho de autorreflexão, já que estes padrões se encontram por vezes interiorizados de tal forma que o gestor não se dá conta do que está por trás 1728

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de sua ação. A construção de um programa cultural deve se permitir ciclos de desconstrução e de reconstrução, afinal, a cultura é algo vivo, e muda consideravelmente, ainda mais num mundo veloz como o contemporâneo. Para se combater esta falsa dicotomia entre neoliberais e pós-modernos, que nos remete à guerra fria em que aparentemente as duas potências se digladiavam, mas que na verdade estavam bastante satisfeitas com a divisão geográfica do planeta, a busca pela qualidade artística e pela legitimidade não são nada fáceis. Encontrar aquilo que ainda não segue os ditames do lucro ou que prioriza o identitário ou o social em detrimento do estético (isto não é uma defesa do princípio do l’art pour l’art, mas da necessidade de se valorizar o estético quando se fala de cultura) está na pauta de um gestor cultural disposto a realizar um trabalho que se liberte destas imposições ideológicas e que fuja do óbvio. Compreender, por exemplo, que a cidade é o espaço primeiro – e talvez, único – para a realização de sua gestão, ou então, de que o valor estético deve ser a razão da arte, e que esta pode também acolher outros propósitos, mas que no momento em que estes se sobrepuserem estaremos tratando de propaganda e não de kunst. Que a cultura é um conceito amplo e que acolhe diferentes manifestações, desde as eruditas até as tradicionais, e que toda vez em que um estilo único esteja sendo reverenciado, o gestor cultural deve mostrar que existem outros que não conseguem o mesmo grau de divulgação, mas que nem por isso podem ser considerados inferiores. Que a cultura deve contribuir para o lazer também, mas que paralelamente ela deve enriquecer a bagagem de conhecimento daquele que a usufrui. E que este usufruto seja o mais universal possível. Em suma, o gestor precisa perceber que a cultura hegemônica representa a voz daqueles que a mantiveram, ou seja, não se trata de uma ciência exata, mas de um conhecimento que não comprova nada, apenas servindo de voz para os que dominam. 3. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CULTURA Quando se chega na questão de se institucionalizar a cultura ou não, o pensamento neoliberal e o pensamento pós-moderno coincidem num ponto: a repulsa à ideia de cultura como uma obrigação do estado. O primeiro, por entender que a cultura, assim como vários outros direitos básicos do ser humano, deve responder às leis do mercado. O segundo, por entender o estado como algo regulador, não em termos financeiros, mas principalmente em termos de restringir alguns grupos sociais historicamente marginalizados. O neoliberalismo entende que o estado deve ser mínimo, isto quando não apregoa a radicalidade maior ainda de seu desaparecimento. Em países nos quais imperava o welfare-state no pós-guerra, em tempos de crise econômica, como o de hoje, o primeiro setor que passa a ter seus recursos cortados é a cultura. Em países que nunca priorizaram a cultura dentro de seus orçamentos a questão é mais grave ainda porque não existe nem a preocupação de cortes, já que o setor em termos financeiros e orçamentários praticamente inexiste. Para este pensamento,

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institucionalizar significa atrelar, fazer concessões, responsabilizar o estado a agir em uma área que para eles é quase ou totalmente supérflua. A cultura precisa saber se sustentar num mundo em que o econômico é que dá as cartas. Para o pensamento pós-moderno, o que interessa é valorizar as identidades, ou seja, dar voz aos oprimidos. O que eles trazem de bagagem cultural, ou seja, o aspecto estético de suas manifestações fica em segunda instância, não havendo uma diferenciação entre o conteúdo político, o social e o artístico. A instituição lhes parece algo arcaico, tradicional e autoritário. Os arautos culturais do capitalismo tardio preferem algo mais anárquico, caótico e desestruturado, ou para se usar termos teoricamente mais requintados, rizomático, para manter a aura de marginais da cultura de plantão. Mesmo no poder, é importante passar a ideia de que estão combatendo o próprio poder, numa situação que por vezes beira o paradoxal. No entanto, essa ojeriza generalizada impede uma ação fundamental no âmbito da cultura (e de outras áreas também): a de que a cultura seja institucionalizada para que ela se transforme em ação de estado e não de governo. Recusar a institucionalização, seja por razões econômicas (os neoliberais) ou sociais (os pós-modernos), significa permitir que a organização das manifestações culturais e das realizações artísticas – que precisam sim contar com aporte financeiro e visibilidade da mídia – continuem sendo privilegiadas ao sabor dos governos que ocupam o poder. Estabelecer programas a partir da consulta à classe artística e aos que estiverem interessados em discutir o tema qualifica a discussão além de criar mecanismos consensuais de apoio a uma atividade que desde o advento do capitalismo sofre para sobreviver, já que não encontra um substituto para os antigos mecenas: a igreja e a aristocracia. Pensar institucionalização como uma incondicional guinada ao autoritarismo é uma redução radical que só serve aos propósitos daqueles que têm um interesse na não-institucionalização da cultura. Achar que regular o setor soa como uma apologia ao stalinismo soviético ou ao fascismo italiano esconde as bem-sucedidas experiências do Federal Theatre nos Estados Unidos dos anos trinta3 ou então da estrutura estatal do teatro na Alemanha ou de André Malraux na França cuja visão “quase religiosa” de acordo com Jack Lang: “...terminaria, trinta anos depois, em um ‘ministério’ dotado de 16.000 agentes, e com dez milhões de verba: tanto quanto o das relações exteriores e dez vezes o do meio ambiente.” (LANG, 2012, p.111). Enquanto tivermos um pensamento que prefere atrelar a cultura ao mercado ou às causas sociais, sem muita preocupação com o valor estético, continuaremos desperdiçando as potencialidades advindas da organização sensata deste setor.

3 Cuja trajetória recebe muito bem-cuidado tratamento por Hallie Flanagan em Arena: The History of The Federal Theatre.

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4. AVALIAÇÃO DA CULTURA Ao contrário do item anterior, aqui os dois pensamentos hegemônicos entram em atrito. Para os neoliberais, as avaliações via de regra servem para ou demonstrar o bom-andamento do governo que ocupam, o que necessariamente passa por uma manipulação de números, ou então, para justificar a falta de necessidade de apoio à cultura, mostrando números pífios, que empurrando a culpa ou para os produtores culturais ou para o público desinteressado só vem a corroborar com a sua ideologia. Seus assim intitulados opositores, os pós-modernos, acreditam que qualquer avaliação só vai estar tratando de abstrações, uma vez que a cultura é um bem intangível e impossível de ser mensurado. Que a cultura é difícil de ser mensurada por se tratar do gosto, um elemento subjetivo, isto todos sabemos, mas no momento em que se tem claro que este gosto muitas vezes é influenciado por uma indústria cultural que homogeneíza com propósitos econômicos, se torna mais fácil fazer esta avaliação. A avaliação não precisa passar necessariamente apenas por números, mesmo sendo estes também importantes. A quantidade de público, o número de grupos artísticos de um determinado setor, o aporte financeiro recebido, todos estes itens são quantitativos e nos permitem elaborar um quadro de uma determinada situação cultural. No entanto, os elementos qualitativos também têm a sua importância, fazendo cair por terra a crítica dos pós-modernistas a qualquer instrumento de avaliação, uma vez que para eles o critério da qualidade não pode ser mensurado, pois o que importaria seria apenas permitir que todos se manifestassem independente de mérito. Pedagogia ao invés de estética. A necessidade da avaliação se dá no momento em que recursos são transferidos para uma determinada área. A cultura precisa se adequar a parâmetros de gestão, caso contrário não irá ganhar a seriedade que merece. Manter uma postura crítica não significa fechar os olhos à sociedade no seu entorno. Em tempos de crise, onde o recurso econômico é escasso, é que esta percepção precisa estar mais aguçada. E apenas um gestor que não coadune com os ideais do lucro puro ou com os da integração social acima do valor estético conseguirá desenvolver ações concretas na área da cultura. Além de ter que prestar contas, também o impacto de suas ações precisa ser avaliado. Aqui entramos novamente na seara do não-quantitativo, uma vez que aquilo que os pensamentos hegemônicos consideram como os fins primeiros, em termos de impacto podem ser levados em consideração, mas sempre como fins secundários. Entender o caráter pedagógico, social e econômico da atividade cultural como uma consequência possível auxilia no entendimento do impacto. Este impacto muitas vezes também não é imediato, e entender isto auxilia nos momentos de frustração da gestão. Gerações são contadas a cada vinte e cinco anos, o que dá uma certa dimensão da abrangência temporal das ações culturais.

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5. DIREITOS CULTURAIS De acordo com o professor Patrice Meyer-Bisch, os direitos culturais se dividem entre aqueles baseados nas necessidades, ou seja, que suprem as faltas, e aqueles baseados nos direitos, ou seja, nos valores humanistas legados pela civilização ocidental desde a virada paradigmática do teocentrismo ao antropocentrismo na Renascença passando pelos melhores pensadores do iluminismo francês através da tríade liberté-egalité-fraternité. Quanto aos primeiros, a postura neoliberal dirá que a cultura é algo que se tem ou que não se tem. Não existe o reconhecimento de que todo ser humano participa de um determinado contexto histórico-geográfico e que por esta razão estará inserido dentro de uma determinada cultura, reiterando seu pensamento dominante4 ou se posicionando contra ele. A partir disto – e naturalmente do que para esta postura ideológica que criticamos aqui se constitui como cultura – os sujeitos que não dominam um dado conhecimento precisam ser ensinados. Assim, Anchieta catequizou os índios acreditando que eles estavam defasados em termos de cultura, da mesma forma que todos os povos denominados de ‘bárbaros’ pelos impérios ao longo da história. Aqui, então, temos o primeiro sentido de direito cultural, na concepção de Meyer-Bisch. A sua segunda acepção encontra a resistência dos pós-modernos, que preferem, como dizem os estado-unidenses, throw the baby out with the bath water5, ao invés de preservar as várias conquistas de inúmeros pensadores que apostaram na capacidade humana de tentar compreender os fenômenos do universo. Para eles, o pensamento (pejorativamente taxado de) cartesiano é a causa dos males da humanidade, e toda a injustiça e desigualdade se dá em razão do apelo racionalista da escola filosófica da qual ele faz parte. Isto gera uma impertinência na aceitação de preceitos que quando não utilizados de forma hipócrita para acobertar segundas intenções, merecem o apoio de qualquer um que esteja trabalhando com cultura. Tanto a ideia de ausência de cultura quanto a demonização irrestrita de uma dada forma de pensar afetam o parágrafo 4.6 da declaração de Friburgo. Este documento diz que: “(...), constitui uma violação dos direitos culturais a obrigação feita a uma pessoa ou a uma comunidade de se assimilar ao grupo dominante” (BIDAULT e MEYER-BISCH, 2014, p.69). E quando estamos lidando com formas sutis de assimilação, não baseadas na força bruta de regimes militares autoritários, mas de sujeições econômicas e intelectuais, a dificuldade de se criar uma resistência também, de certa forma, aumenta. A ideia de um direito repousa sempre numa premissa de equilíbrio, de homeostase de um sistema, para que haja oportunidades para ambos os lados envolvidos numa questão. O arete dos gregos, que significa uma condição de excelência, representada pelo equilíbrio na proporção, Aqui usamos o termo de Raymond Williams, pensador dos estudos culturais, que classifica as ideias de um determinado contexto histórico entre dominantes, residuais e emergentes. 5 “Esvaziar a água da banheira junto com o bebê” (tradução minha). 4

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seja na arquitetura ou na escultura, apenas para mencionar duas das aplicações mais conhecidas deste princípio, atravessou séculos e se mantém até hoje como um objetivo a ser alcançado. Este equilíbrio pode ser estático – como na arquitetura – mas também dinâmico, como algo a ser perseguido e conquistado num estado permanente de processo, tal qual descreveu Hegel no conceito filosófico de dialética. O pós-moderno, entretanto, abomina a ideia de equilíbrio, preferindo no seu lugar os excessos e exageros que irão salvaguardar a sua imagem marginal. Os extremos da arte pós-moderna vão desde um número tão grande de signos que se torna impossível uma decodificação do objeto até uma ausência completa de qualquer pretensão semiológica, demonstrando uma filiação fenomenológica absoluta. Sem conseguir estabelecer uma conexão entre o emissor e o receptor, a comunicação inexiste e a ideia de direito se torna supérflua, já que o que se cria é um vácuo, um nada. Outro grande perigo em relação a esta segunda acepção dos direitos culturais conforme o professor Meyer-Bisch está no uso indiscriminado de alguns termos, que por esta razão, passam a se tornar suspeitos e seu sentido primeiro, esvaziado. Assim, democracia, pluralidade, transparência passam a se tornar no mundo político contemporâneo, sinais claros de retórica vazia, contribuindo ainda mais para o prejuízo de termos que em tempos passados significavam reais tentativas de equilíbrio social. Para fazer frente a este estado de coisas, o gestor cultural que não se identifica com nenhum dos pensamentos hegemônicos deve estar atento em primeiro lugar à diversidade cultural do seu contexto. Esta certamente abriga identidades que não encontram espaço para a manifestação de sua cultura. Através de três iniciativas fundamentais, o gestor consegue propor uma alternativa que de forma real respeite os direitos culturais. Em primeiro lugar, a importância em conservar aspectos culturais. A preservação é importante quando se observa uma homogeneização cada vez maior causada pela indústria cultural por um lado e pelo pensamento relativista dominante por outro: um age nas classes sociais com menor capacidade crítica e o segundo, nas classes mais letradas, que se orgulham em pertencer a este seleto rol de ‘iluminados’. Depois de se preocupar em não permitir o apagamento de obras, idiomas e manifestações imateriais de toda a monta, surge a necessidade de se divulgar este repertório cultural através de formas de mídia alternativas, já que a mídia dominante certamente não vai estar interessada nele. E por fim, não menos importante é a área da criação. A sociedade é dinâmica e as mudanças se refletem de forma direta na produção artística. Muitas vezes, os processos de apagamento se dão de forma natural e a preservação pode representar um obstáculo ao avanço do novo, no entanto, há exceções justificáveis. Sobre esta questão diz Machado que: Considerando que a cultura popular deve ser protegida por e para o grupo cuja identidade expressa, e reconhecendo que as tradições evoluem e se transformam, (...) aos Estados cabe, prioritariamente, apoiar a pes-

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quisa e documentação destas manifestações. Mas, temendo que a cultura popular venha a perder vigor sob a hegemonia da indústria cultural, recomenda-se aos estados que incentivem a salvaguarda destas tradições, não só dentro das comunidades das quais procedem, mas também fora delas” (MACHADO, 2011, p.107). Cabe ao gestor montar a estrutura para que a roda gire e intervir o mínimo possível para ela girar. Sua função sim é a de proteger as manifestações culturais de um esmigalhamento seja por parte do capital ou por parte da tabula rasa do pensamento pós-moderno. E só. 6. O FUTURO DAS POLÍTICAS CULTURAIS Pensar o futuro de uma política cultural envolve vários aspectos. Cada um deles recebe um tratamento diferenciado por parte de cada um dos pensamentos hegemônicos que este trabalho critica. A própria ideia de contemporâneo, por exemplo. Enquanto que este conceito não suscita nenhuma histeria por parte dos neoliberais, os relativistas pós-modernos fazem questão de cotejar este termo com a ideia de bom. O que é representativo na arte e na cultura é o que é contemporâneo, numa clara tentativa de hierarquização, na qual o que é produzido por eles ocupa o topo. No entanto, eles se apropriam de uma expressão temporal para transformá-la numa denominação estilística, abolindo qualquer cronologia possível nas artes. Desta forma, para eles, estamos num eterno presente, o passado não importa e o futuro inexiste, o que garante a supremacia de conceitos como o fragmentado, o intercultural e o hiperbólico. Outra questão importante está em qual público a ser considerado numa gestão cultural. Os neoliberais entendem que um grande investimento deve ser feito nos jovens, pois são eles os grandes consumidores de cultura e por terem uma massa crítica menor, mais passíveis de serem engolfados pela indústria cultural. Já os pós-modernos apostam nos jovens por uma razão semelhante, pois vários elementos da arte que segue esta corrente estética estão em sintonia com um público menos exigente intelectual e qualitativamente, dentro da ideia de que qualquer um pode ser um artista. Na área do teatro, como guisa de ilustração, o livro-guru da última geração argumenta que o pós-dramático6 se estabelece exatamente porque existe um público jovem ávido pelos elementos defendidos por esta corrente teatral, quais sejam, a falta de sentido, a densidade de signos e a por vezes interação física e sensorial que vá além da tradicional apreensão audiovisual da arte. Massificados pela indústria cultural, encarcerados entre programas de televisão alienantes e uma internet que os prende no exigente universo dos guêimes e das redes sociais, os jovens de hoje não conseguem alçar voos teóricos e reflexivos mais altos, tornando-se assim um público ideal para os propósitos dos dois pensamentos neste trabalho denominados de hegemônicos.

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Termo cunhado pelo professor Lehmann no seu livro homônimo.

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Outro ponto sensível para se determinar o futuro das políticas culturais se encontra na interface entre a tecnologia e a arte. A grande cilada está em se tornar prisioneiro de uma ferramenta que por vezes mais atrapalha do que ajuda. São poucos os que compreendem e fazem bom uso dela, mas muitos que dependem dela como se fosse um vício diário, um dos piores possíveis. A inovação tecnológica historicamente contribuiu para o aprimoramento da arte, permitindo, por exemplo, uma distribuição em maior escala de produtos culturais, bem como do acesso a estes por um maior número de pessoas. No entanto, vale lembrar Walter Benjamin e o seu artigo sobre a aura da obra de arte. Se por um lado temos uma democratização destas obras, por outro, ela passa a se tornar algo banalizado, descaracterizado, até culminar no pastiche pós-moderno conforme o conceito de Jameson. Para além da política, precisamos também refletir sobre a educação. Se não há uma educação dos jovens, como eles irão criar o hábito de apreciar a arte e de considerar a cultura como um valor fundamental do ser humano? Conforme Goldstein: “a educação (...) é a grande responsável pela transmissão dos repertórios culturais de uma geração à outra, e é fundamental no desenvolvimento de competências e sensibilidades que permitem a fruição artística” (GOLDSTEIN, 2013/2014, p.79). Aqui, tanto os neoliberais quanto os pós-modernos execram a educação. Os primeiros por uma questão econômica: a cultura não dá o retorno financeiro que outras atividades dão, e quem não resiste ao mercado deve ser engolido por ele. Os segundos porque acreditam que arte não pode ser ensinada. A capacidade de criação artística é eminentemente empírica, e apenas os mestres populares e os artistas autodidatas merecem receber esta denominação. A realidade atual mostra que estes dois paradigmas são dominantes, vide a estrutura periclitante dos cursos de arte nas universidades brasileiras, o descaso com o ensino de artes nas escolas fundamentais, o orçamento ridículo do Ministério da Cultura em comparação a outras pastas do governo e o avanço na defesa da arte empírica em detrimento da arte institucionalizada e acadêmica. Pensar o futuro envolve sempre uma dose de incerteza, no entanto, um planejamento se faz necessário em qualquer atividade administrativa com recursos de ordem pública bem como em empresas privadas que visam primariamente o lucro. O gestor cultural cônscio das dificuldades que enfrenta precisa rever o estado da educação artística, do público a ser atingido, da alienação dos jovens, do (mau) uso da tecnologia e da apropriação indébita de determinados conceitos a fim de se justificar uma hegemonia teórica. Uma tarefa nada fácil, mas necessária em tempos de marasmo crítico generalizado. 7. CONCLUSÃO Passando a limpo os cinco temas brevemente apresentados à luz dos dois paradigmas ideológicos dominantes de nossa época – o neoliberal e o pós-moderno – podemos concluir an-

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tes de mais nada que a missão de um gestor cultural de fácil nada possui. Apenas implementar ações na área da cultura sem um trabalho paralelo de conscientização das práticas subliminares a que muitos de nós aderimos de nada adianta. Estar atento o tempo todo para vislumbrar os motivos que se escondem por trás das coisas é um pré-requisito importante para uma gestão que se veja como uma alternativa ao status quo. Um status quo com uma cabeça de Janus, que olha para o lado que quiser de forma confortável, passando a falsa impressão de que são dois, mas que no fundo é um só. De um lado, o primado neoliberal do mercado, que, de forma impiedosa e conclusiva, para Graeff: (...) iria consagrar definitivamente a noção de artista e separá-la da de artesão. A consequência paradoxal disso será “libertar” os artistas, ao mesmo tempo que os fragiliza. Sujeitando-os a um regime econômico que só reconhecia como essencial a utilidade dos bens ofertados, eles iriam ser condenados a viver, no melhor dos casos, à margem desse sistema e, no pior, serem eliminados” (GRAEFF, 2013, p.68). Do outro, a defesa do a-histórico, do apolítico, da ausência do significado através de uma estética da opulência visual e sonora. Um, obrigando a cultura a se adequar às regras do capital, uma difícil equação para bens cujo valor é difícil de ser atribuído. Outro, privilegiando a cultura do empírico, da defesa das identidades oprimidas, do caótico e do eterno instante presente. Duas formas ideológicas dominantes, que não admitem qualquer outro sistema, econômico ou estético e que juntas, primam pela imersão do público de cultura num redemoinho de excitação efêmera e acrítica. O consumo e a sensorialidade imediata de mãos dadas. Apesar do quadro adverso, saber que a história é cíclica anima e leva o gestor cultural que não se identifica com nenhum destes paradigmas a buscar alternativas onde elas existem. Exemplos abundam, o que mostra que, sim, há uma luz no fim do túnel.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPADURAI, Arjun. O Medo ao Pequeno Número: Ensaio sobre a Geografia da Raiva. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2009. 128 p. Afirmar os Direitos Culturais: Comentário à Declaração de Friburgo. BIDAULT, Mylène, MEYERBISCH, Patrice (orgs.). São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2014. 168 p. COULANGEON, Philippe. “As Políticas Culturais diante dos Critérios de Justiça: Reflexões a partir do Caso Francês”. Revista Observatório Itaú Cultural: OIC – n.12(mai/ago 2011). São Paulo: Itaú Cultural, 2011. p. 35-48. FLANAGAN, Hallie. Arena: The History of the Federal Theatre. New York: Benjamin Bloom, 1940. 475 p.

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GOLDSTEIN, Ilana. “Arte, Cultura e Formação”. Revista Observatório Itaú Cultural: OIC – n.15(dez.2013/maio 2014). São Paulo: Itaú Cultural, 2013.p. 77-86. GRAEFF, Xavier. Arte e Mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013. 366 p. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996. 431 p. LANG, Jack. “O Signo do Sucesso”. Cultura e Estado: A Política Cultural na França, 1955-2005. GENTIL, Geneviève, POIRRIER, Philippe (orgs.). São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2012. p. 108115. LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac-Naify, 2007. 437 p. MACHADO, Bernardo Novais da Mata. “Os Direitos Culturais na Constituição Brasileira: uma Análise Conceitual e Política”. Políticas Culturais: Teoria e Práxis. CALABRE, L. (org). São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. p. 104-117.

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ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PARA JOGOS DIGITAIS NO BRASIL Pedro Santoro Zambon1 Juliano Maurício de Carvalho2 RESUMO: Apesar de em sua origem terem sido abordados apenas como software, os jogos digitais foram se consolidando enquanto produto cultural e criativo, ganhando status de audiovisual interativo. Após trilharam um longo caminho no setor tecnológico, as políticas públicas para games começaram a encontrar seu espaço dentro do Ministério da Cultura em 2004, quando a nova abordagem de gestão cultural iniciada pelo ministro Gilberto Gil reformula a formulação de políticas. Com uma descrição histórica e com base em relatos e documentos, este artigo tem como objetivo abordar esta evolução, elaborando um panorama e trajetória de como estas políticas se estabeleceram e consolidaram até seu estágio atual. PALAVRAS-CHAVE: Jogos Digitais; Políticas Culturais; Lei Rouanet; Cultura Digital, Ancine

Recebidos inicialmente como software, as políticas para games trilharam um longo caminho no setor tecnológico, arcando, ainda, com os efeitos de décadas de reserva de mercado imposta durante o período ditatorial. Se enquanto software não haviam iniciativas, enquanto produto cultural, o espaço também era pequeno. Este cenário se modificou apenas após 2003, quando a nova abordagem de gestão cultural iniciada pelo ministro Gilberto Gil, à frente do Ministério da Cultura do governo Lula, reformula a abordagem de políticas culturais e passa a privilegiar, nesse processo, o surgimento de políticas culturais para setores audiovisuais emergentes como é o caso dos jogos digitais. Este artigo tem como objetivo abordar este histórico, elaborando um panorama e trajetória de como estas políticas se estabeleceram e consolidaram até seu estágio atual. Nos anos 80 e 90, no que cerne a produção de jogos digitais brasileiros, em um mercado tomado pelos produtos importados, as poucas formas encontradas de desenvolvimento envolviam principalmente a criação de jogos para celular, para internet, advergames e de treinamento Mestre em Comunicação, doutorando em Comunicação na Unesp. Email: [email protected] Doutor em Comunicação, professor dos cursos de graduação em Jornalismo e da pós-graduação em Mídia e Tecnologia e Comunicação da Unesp. Email: [email protected]

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corporativo. Sobrevivendo com produções para fins publicitários ou educativos, eram raros os produtos de conteúdo original. Com a concorrência direta do produto internacional de altíssima qualidade no setor de consoles e PCs, esses nichos foram umas das poucas opções que sobraram para o brasileiro dentro de seu próprio mercado, sendo que em alguns destes nichos já existia a concorrência externa, como no caso dos jogos para celular, em que alguns jogos eram importados pelas operadoras. (KERR DE OLIVEIRA, 2012, p. 131). Este cenário começa a se modificar a partir dos anos 2000, quando “inúmeras iniciativas foram tomadas em áreas correlatas de jogos (feiras, cursos, simpósios, etc). Um mercado para atuação no Brasil surgiu, ainda que de forma pequena. As empresas também conseguiram realizar as primeiras investidas internacionais” (ABRAGAMES, 2004, p.6). É nesse contexto que, em Abril de 2004, que surge a primeira associação organizada do setor no Brasil, com a fundação da ABRAGAMES - Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos, uma associação nacional com objetivo de promover a indústria brasileira de desenvolvimento de jogos digitais. Até então, a presença dos jogos digitais como objeto de políticas públicas era inexistente, e as articulações escassas. (...) não havia quem lutasse com força suficiente para que estas [leis] beneficiassem o setor, além do fato de normalmente os negócios envolvendo jogos eletrônicos serem criados e geridos por programadores de computador” com foco muito mais na solução de problemas técnicos do que na articulação política (KERR DE OLIVEIRA, 2012, p.131). As políticas culturais pós redemocratização – com o surgimento do Ministério da Cultura – demoraram a se consolidar. Entre os anos de 1985 e 1994, que compreendem o governo Sarney (1985-1989), Collor (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994) foram dez trocas de ministros, em meio a um tumultuado experimento neoliberal do governo Collor, que praticamente desmontou a área de cultura no plano federal. (RUBIM, 2010) As dificuldades na implementação de uma política cultural consolidada iam além da instabilidade institucional do Ministério da Cultura. A primeira lei brasileira de incentivos fiscais para fomento da cultura, a lei Sarney de 1986, introduzia uma ruptura radical nos modos anteriormente vigentes de financiamento. “Em vez, de financiamento direto, agora o próprio Estado propunha que os recursos fossem buscados pretensamente no mercado, só que o dinheiro em boa medida era público, decorrente do mecanismo de renúncia fiscal. ” (RUBIM; BARBALHO, 2007, p.31). Com a gestão FHC, vem a consagração deste modelo neoliberal de fomento e constituição de políticas públicas em que a iniciativa privada tem poder decisório quase completo para definir o que vai ou não receber recursos públicos incentivados, utilizando-se, para tanto das leis de incentivo por meio de renúncia fiscal.

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(Na) gestão do Ministro Francisco Weffort, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, (...) a Lei Rouanet se tornou um importante instrumento de marketing cultural das empresas patrocinadoras. (...). Em síntese isso significa que o capital investido pela empresa, que gera um retorno de marketing, é todo constituído por dinheiro público, aquele que seria pago de impostos. O resultado final é o da aplicação de recursos que eram públicos a partir de uma lógica do investidor do setor privado. Esta passou a ser a política cultural do Ministério na gestão Weffort. (CALABRE, 2007, p.8) Enquanto a Lei Rouanet foi o grande instrumento de política cultural do Governo FHC, o objetivo do governo do PT era fortalecer a relação entre o Estado e a sociedade, assumindo um papel mais atuante na condução das políticas culturais, tendo em vista que seus antecessores fomentaram uma vasta série de iniciativas de cultura, sem, contudo, manter com o Estado a gestão política de tal processo. O programa da área de cultura da campanha de Lula, “A imaginação a serviço do Brasil”, apontava para esse modelo, propondo as ações culturais sob uma perspectiva antropológica, ampliando as políticas culturais para além dos setores tradicionais das artes e das letras, em uma proposta que inclui “os modos de vida, os direitos humanos, os costumes e as crenças; a interdependência das políticas nos campos da cultura, da educação, das ciências e da comunicação; e a necessidade de levar em consideração a dimensão cultural do desenvolvimento” (COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE, 2002, p.12). O embrião desta visão petista para as políticas culturais se deu na gestão de Marilena Chauí, secretária municipal de São Paulo da Luiza Erundina (1989-1992). Chauí refutou as três concepções da política cultural brasileira à época – a estatal, a populista e a neoliberal, e instituiu o conceito que ficaria, então, conhecido como Cidadania Cultural, que direcionava a Cultura como um direito do cidadão: (...) com uma definição de cultura alargada de elaboração coletiva pelo prisma democrático com direitos iguais para todos os cidadãos, sem privilégios ou exclusões; com definição dos sujeitos sociais como sujeitos históricos, articulando o trabalho cultural e o trabalho da memória social, combatendo em particular a memória social una, indivisa, linear, e como afirmação das contradições, das lutas e dos conflitos que constituem a história de uma sociedade; garantindo com esta linha de ação proposta o direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos significados culturais; direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural; direito de usufruir dos bens da cultura com condições de acesso e uso; direito à informação sobre os serviços culturais; direito à formação artística e cultural gratuita; direito a espaços para reflexão, debate e críticas, direito à informação e à comunicação (CHAUÍ, 1990, p.4). Gilberto Gil, indicado por Lula como Ministro da Cultura, não só deu continuidade aos princípios formulados por Marilena Chauí, como também os expandiu para abrangência na-

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cional. Foi constituída uma agenda pública para a Cultura, preocupada em revelar as múltiplas manifestações culturais brasileiras, articulada com a sociedade civil organizada, beneficiando sobretudo as cadeias culturais marginalizadas, na qual se inclui o setor de jogos digitais. Essa visão ampla de Cultura é explicitada no discurso de posse de Gil: Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Desta perspectiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como exercícios de antropologia aplicada. O Ministério deve ser como uma luz que revela, no passado e no presente, as coisas e os signos que fizeram e fazem, do Brasil, o Brasil. Assim, o selo da cultura, o foco da cultura, será colocado em todos os aspectos que a revelem e [a] expressem, para que possamos tecer o fio que os une. (GIL, 2003) O Ministério da Cultura - MinC passa a nortear suas políticas por uma “cultura em três dimensões”, identificadas na Dimensão Simbólica, traduzida nos valores, crenças e práticas que caracterizam a expressão humana; a Dimensão Cidadã, que parte do princípio dos direitos culturais como parte dos direitos humanos e, portanto, considerados como base na concepção das políticas culturais; e a Dimensão Econômica, entendendo cultura como elemento estratégico e dinâmico na economia dos países, geradora de trabalho e riqueza em um ambiente que valoriza a informação, a criatividade e o conhecimento. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2009) A partir daí a reestruturação do MinC se fez necessária, e foram criados secretarias e programas que atendessem as mais diversas áreas da nova visão cultural estabelecida, visando a construção de políticas públicas alinhadas com uma gestão mais ativa e presente do ministério. Para sistematizar essas políticas, surgiram novas secretarias como a das Políticas Culturais, da Identidade e Diversidade Cultural, da Articulação Institucional, a de Fomento à Cultura e a de Programas e Projetos Culturais. A gestão buscou essa sistematização, a nível federativo, a partir da descentralização por meio do apoio a grupos culturais e instituições de cultura. A gestão de Gil atuou na construção desse Ministério da Cultura ativo, para superar oito anos de gestão da política de Estado mínimo aplicada pelo ministro Weffort nos governos de Fernando Henrique Cardoso. A estratégia de Gil foi passar seu primeiro ano de gestão presente em uma série de consultas públicas e eventos com a participação de vários segmentos da área artística e de produção cultural, que pautaram a elaboração da reformulação na estrutura do MinC. Buscando estabelecer as estratégias da atuação da nova gestão cultural, o objetivo dos encontros estava em identificar as demandas dos grupos de interesse e setores organizados dos diversos segmentos culturais,

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além de identificar as distorções acarretadas pela forma de aplicação das leis de fomento, desenhando sua reformulação e reafirmando sua importância para o setor cultural. Gil, ao participar de fóruns nacionais e internacionais relacionados às tecnologias digitais e às redes, acabaria incluindo a Cultura Digital como pauta de discussão no MinC. O Ministério da Cultura teve, então, duas frentes de trabalho: Uma, pautada pela agenda do ministro, que buscou trazer o digital para o campo da cultura e da política, e outra, que trabalhou a tradução desse conceito em uma política pública, movimento que convergiu, um ano e meio depois da posse, na chamada Ação Cultura Digital, a implantação de estúdios digitais de produção audiovisual nos Pontos de Cultura do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva. (COSTA, 2011, p.178) O Cultura Viva, criado em 6 de junho de 2004 pela Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural focava, por meio dos editais dos Pontos de Cultura, em privilegiar o investimento público direto nos projetos da sociedade civil, facilitando e promovendo o acesso à cultura (em sua produção e distribuição), sem restringir a que tipo de segmento, expressão cultural, condição social, etnia ou colocação geográfica no território nacional, caracterizando o programa como o maior e mais importante fomentador da diversidade de expressões da cultura nacional, que figura enquanto instrumento de inclusão social, de desenvolvimento comunitário e manutenção da cidadania, com base no conceito de não depositar mais seus alicerces sobre a base do mercado, mas sim sobre as questões sociais. Ponto de Cultura é um conceito de política pública. São organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria, um pacto, com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não pode ser para as pessoas, e sim das pessoas; um organizador da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. Como um elo na articulação em rede, o Ponto de Cultura não é um equipamento cultural do governo, nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pessoas e grupos. Ponto de Cultura é cultura em processo, desenvolvida com autonomia e protagonismo social. (TURINO, 2010, p.64) O Ministério da Cultura, ao construir uma proposta da política cultural com viés simbólico e social, para além da dimensão econômica, abre caminho para a formulação de políticas públicas de cadeias produtivas até então desamparadas pelas ações governamentais. Com uma visão mais pluralista de cultura, entendida como atuante nos vários setores que transcendem as artes tradicionais, e incluindo o intenso debate da cultura digital em seu escopo, se privilegia o surgimento de iniciativas dentro do MinC que incorporam o recurso digital.

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Além de investir no Cultura Viva como programa para capilarizar o acesso à cultura, surgiam em paralelo editais de fomento à produção de conteúdo. Estes editais surgiram principalmente das demandas discutidas juntamente com a sociedade civil, sendo lançado o JogosBR voltado especificamente para o setor de jogos digitais. Já existia o desejo dentro do ministério na criação de uma linha de fomento para a área “O ministério tinha desejo, mas não sabia como. A recém fundada ABRAGAMES disse como” (VASCONCELOS in ZAMBON, 2015). Foi em consultoria com a recém-criada associação de desenvolvedores de games, que surgiu o edital. Pela primeira vez na história da política cultural brasileira, os jogos eletrônicos foram reconhecidos e receberam fomento enquanto cultura. O edital propôs-se a financiar os projetos vencedores com a condição de que as equipes de desenvolvedores apresentassem, como resultado, uma versão executável do jogo, parcialmente concluído, mas que permitisse aos usuários uma experiência de interação com certos elementos propostos no projeto15. As inscrições para a primeira fase do concurso iniciaram em 21 de agosto de 2004, encerrando em 23 de outubro do mesmo ano. Evidentemente, o primeiro JogosBR não foi nem de longe o que nós queríamos que fosse, por que o que a gente desenha o governo não implementa igual, é diferente. Mas a gente ajudou a desenhar aquele negócio e foi pra rua. Querendo ou não era um marco, era um edital inteiro pra jogo. (VASCONCELOS in ZAMBON, 2015) Os selecionados para a segunda etapa foram divulgados pelo ministro Gilberto Gil no dia 19 de novembro, na abertura da primeira edição da EGS – Eletronic Game Show. Esse evento foi marcado como a primeira manifestação pública de um membro do governo em apoio ao setor: “os games foram vistos com desconfiança pela sociedade e isso também aconteceu com outras mídias em seu surgimento. Hoje isso mudou e o Ministério da Cultura leva em consideração todas as formas de audiovisual e isso inclui os games” (GIL, 2004). Na ocasião Gil ainda declarou: Estou aqui, em primeiro lugar, para selar a aproximação entre o Ministério da Cultura e o Universo dos jogos eletrônicos. Venho dizendo que é preciso reconhecer o mundo dos jogos, dos games, como um universo cultural. Jogos eletrônicos reúnem um pouco de cinema, um pouco de literatura, um pouco de ação e reflexão. Mas nenhuma dessas artes explica o que é o jogo. Somos um povo que gosta e sabe jogar. Um povo que incorporou e aprimorou jogos vindos de fora, como o futebol. (...). Podemos jogar os jogos dos outros, transformá-los em outra coisa, e também inventar os nossos próprios jogos. O Brasil inventou seus próprios jogos, como o jogo de capoeira. O jogo e a brincadeira fazem parte do nosso dia a dia. Não seria diferente com os jogos eletrônicos” (GIL, 2004) O discurso do ministro também envolveu a inclusão dos jogos eletrônicos no projeto da criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) uma das principais bandeiras de Gil desde que assumiu o cargo. Após transferir a Ancine do Ministério do De-

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senvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) para o MinC, a pretensão era ampliar a agência para regular o audiovisual como um todo, e não somente o cinema, prevendo apoio à distribuição, exibição e infraestrutura, para além da produção. A Ancinav que pretendemos criar é uma instituição democrática, equipada para lidar com os estrangulamentos de ordem econômica. A regulação não será cultural, artística, mas atuará nos gargalos comerciais que inibem o desenvolvimento. Sabemos o quanto esses gargalos tem sido nocivos para o pleno desenvolvimento de nossa televisão, de nosso cinema, das empresas de jogos. Nesta era de convergência tecnológica e negocial, o sucesso do cinema depende da televisão. O sucesso dos jogos deve pegar carona no sucesso do cinema (GIL, 2004) A ABRAGAMES, que naquele mesmo evento passaria a ter uma representação oficial no Comitê Assessor da Secretaria do Audiovisual, apoiava a criação da nova agência: “a Ancinav tem vocação para se tornar a agência promotora de políticas públicas necessárias ao projeto de reestruturar o mercado, hoje desequilibrado, e alavancar o país como potência emergente na produção de jogos” (ABRAGAMES, 2004). O projeto da nova agência destaca promover a língua e a cultura nacional, a universalização do acesso às obras, combater o abuso de poder econômico, vedação ao monopólio e oligopólio dos meios de comunicação social, estimular a diversificação da produção e a competição no mercado, fortalecer a produção independente e regional. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2004). Para a concretização desses objetivos a regulação sobre a televisão não poderia ficar de fora, já que representa caso de monopólio e poder econômico excessivo, além de ser ideal para estimular a produção independente e regional e garantir o acesso universal as obras nacionais, devido ao seu grande número de espectadores. (FERNANDES, 2012, p.6). O Artigo 90 do projeto propõe, então, a reserva de espaço para a programação nacional independente e regional, quando as emissoras de televisão aberta deveriam dedicar 20% de sua programação a esse tipo de produção. Já o Artigo 92 definia o percentual para canais por assinatura de acordo com seu volume de programação. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2004) A proposta seguia o intuito do ministério de Gil em adotar uma postura mais intervencionista que buscasse diversificar a produção cultural, visando fortalecer o mercado de produção interno. Como destacado por Fernandes (2012), a proposta de criação da Ancinav foi mal recebida pelas corporações de mídia, sobretudo em oposição à regulação e taxação sobre a televisão. Lideradas pelas Organizações Globo, a mídia impressa e televisiva divulgou conteúdos e propagandas que afirmavam para os espectadores a intenção do governo em controlar o que eles assistiam, gerando uma indisposição da população com a proposta. Acusada de autoritária e controladora da liberdade de expressão, a proposta não teve forças para se concretizar.

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Com seus ataques veiculados pela mídia, a emissora foi responsável por gerar um clima de indisposição em relação à proposta, devido ao grande público que atinge e influência. Acusando a proposta de autoritária e não medindo palavras ao relacioná-la com a censura, as Organizações Globo contribuíram para a não efetivação do anteprojeto da Ancinav. Além de criar um ambiente hostil, a empresa conta com grande poder político e por meio do lobby no Congresso Nacional conseguiu pressionar por um resultado a favor de seus interesses, como já havia feitos em outros casos. Assim, é possível apontar a ação da Rede Globo como um dos motivos que fez com que o governo optasse por engavetar o anteprojeto que pretendia transformar a Ancine em Ancinav, e os serviços de radiodifusão continuassem sem atualização da regulação (FERNANDES, 2013, p.39) Com a Ancine mantendo seu escopo somente para o cinema, outras cadeias produtivas do audiovisual como o setor de jogos digitais acabaram perdendo possibilidade de consolidar um espaço na agência reguladora. Em sucessão, Juca Ferreira, secretário-executivo de Gilberto Gil no ministério, assume a pasta em 2008, tomando para si o papel de liderar as mudanças que vinham sendo realizadas. Em sua gestão, dois anos após a última edição do edital JogosBR, é retomada a política de fomento direcionada ao setor de jogos digitais por meio do edital BRGames de 2008. Embasado no edital anterior, neste foram promovidas algumas mudanças significativas, sobretudo no valor do repasse: editais anteriores previam valores de 30 mil reais, para pessoas físicas, e 70 mil reais, para pessoas jurídicas, enquanto o novo edital oferecia, respectivamente, 70 mil para pessoas físicas e 112 mil para pessoas jurídicas. O maior desafio do novo ministro foi colocar em prática uma reformulação do Programa Nacional de Cultura (PRONAC), símbolo da visão não-intervencionista de mecanismos fiscais da gestão anterior. Em seu discurso de posse, Gil ressalta que um Estado ativo não se omite ao fomento cultural, “Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e aos caprichos do deus-mercado. ” (GIL, 2003). Foram necessários três anos de debate antes do primeiro passo, realizado com o decreto nº 5.761 de 27 de abril de 2006. A gestão de Juca apresentou o novo projeto, em substituição ao PRONAC: o ProCultura (PL 6722/2010). A partir daí fica evidente a evolução dos dispositivos de fomento a cultura no Brasil, sendo o Procultura o cerne do projeto está no fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, como mecanismo para desconcentrar os recursos investidos através da renúncia fiscal. No ano em que foi apresentado, o ministério divulgou18 que 78% do volume de dinheiro aprovado pelo MinC para captação se destinavam à Região Sudeste, sendo que apenas São

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Paulo ficou com 39% do total. Com a análise do total dos agentes captadores, foi observado que muitas regiões brasileiras não captavam nenhum financiamento para projetos culturais pela Lei Rouanet. Além disso, 50% do dinheiro alavancado via Lei Rouanet beneficia apenas 3% dos que apresentam projetos. Os programas de fomento criados na gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC sinalizam um possível fortalecimento na relação entre Estado e sociedade, especialmente no que se refere à parcela produtora de conteúdo. Programas como Cultura Viva, Pontos de Cultura, Programadora Brasil, DocTV, Cultura e Cidadania ou Teia (re)configuraram o papel do ministério, pois objetivavam ampliar o acesso para a realidade de cada região produtora de cultura no Brasil, colaborando para qualificar o debate e fomentar uma nova compreensão do fenômeno cultural. No entanto, tais iniciativas não chegaram a configurar-se como política de Estado, permanecendo sujeitas ao vai e vem das políticas macroeconômicas ou às idiossincrasias dos governos de plantão, o que dificulta uma mudança radical e efetiva em direção a uma política cultural entendida como política de desenvolvimento a longo prazo. (BOLAÑO; MOTA; MOURA, 2012, p.28) As gestões de Gil e Juca, portanto, foram marcadas por uma ampla reformulação da atuação do ministério, com a superação ideológica de uma administração pouco intervencionista dos governos anteriores, para uma política de atuação extensiva e de ampla consulta à sociedade civil. O setor de jogos digitais se beneficiou dessa nova filosofia, passando a ser visto como objeto de políticas culturais com dois editais de fomento criados especificamente para ele. O papel do MinC para o setor não se resumiu aos editais, como evidencia Alfredo Manevy, Secretário-Executivo durante a gestão Gil / Juca. A partir de certo momento percebemos que o edital [JogosBR] era na verdade uma ação simbólica, era preciso na verdade mexer, e em alguma medida provocar, as instituições que são fundamentais num financiamento do desenvolvimento no Brasil. [...] Por ser um ministério pequeno, mas com uma capacidade grande de compreensão desse território, nós preferimos atuar, além de nossas ações como os editais, trazer instituições estratégicas do Brasil para entender o seu papel nesse processo. Nosso diálogo com BNDES, Ministério da Ciência e Tecnologia, com FINEP, uma série de outras agências, pra que elas participem. (MANEVY in SB Games, 2009) É possível dizer que foi esse papel articulador iniciado e fomentado durante as gestões de Gil e Juca no Ministério da Cultura, que realmente constituiu a construção de uma agenda para o setor. Na mudança de governo entre Lula e Dilma, em 2010, Juca Ferreira é substituído por Ana de Hollanda. A nova gestão do ministério foi acusada de não dar continuidade às políticas dos antecessores, sobretudo com as questões relacionadas à Cultura Digital. Uma das primeiras 1746

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ações de Hollanda, ao assumir a pasta, em janeiro, simbolizou uma ruptura com o setor: foi removida a licença Creative Commons do site do ministério. O ato foi entendido pelos partidários da cultura livre como um rompimento da linha adotada por Gilberto Gil e Juca Ferreira nos oito anos de governo Lula. A ministra também recuaria em relação à flexibilização da LDA (Lei de Direitos Autorais - Lei 9610/1998). A democratização da cultura não pode passar por cima do direito autoral. São conquistas quase trabalhistas. Ter sua profissão reconhecida como um trabalho que lhe dá direito sobre sua obra é uma reivindicação muito forte da área cultural e criativa. Há a possibilidade de as pessoas abrirem mão de seus direitos e colocar o conteúdo na internet. Mas os autores, escritores e mesmo cientistas têm de ter resguardados seus direitos, que, no último caso, demandam anos de pesquisa. (HOLLANDA in ISTOÉ DINHEIRO, 2011)3 Sua posição, como ministra, fica mais clara quando, em março, substitui o até então responsável pela LDA, Marcos Souza, por Marcia Regina Barbosa, que integrou o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) entre 1982 a 1990, e era considerada ideologicamente alinhada com modelos mais tradicionais de atribuição de propriedade intelectual. Barbosa expõe o novo posicionamento em entrevista para o Estado de São Paulo20: “A ministra (Ana de Hollanda) já veio com algumas demandas, havia uma reclamação de que o anteprojeto não estaria tratando convenientemente a questão dos usos na internet”. A situação se agrava quando a ministra é acusada de defender o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) responsável pela distribuição de direitos autorais das músicas no Brasil, e que estava sendo investigado em uma CPI por gestão fraudulenta e cartelização. Referências intelectuais para a reformulação cultural promovida por Gil e Juca Ferreira, como Marilena Chauí e Gabriel Cohn, assinam uma carta em março, pedindo para que a presidente Dilma Rousseff indicasse um ministro “à altura do cargo” e afirmando que “O despreparo [de Ana de Hollanda] para a prática do diálogo e do embate crítico por parte dos atuais responsáveis pelo MinC é dolorosamente evidente”4 Esse cenário de rupturas, entretanto, não se refletiu negativamente para o setor. Naquele ano seria articulada a realização da primeira reunião intersetorial convocada dentro do governo para discutir os jogos digitais. O 1º Workshop para Criação de Projetos para o Desenvolvimento de uma Indústria de jogos digitais no Brasil, realizado nos dias 28 e 29 de julho de 201122 envolveu oito ministérios, juntamente com representantes do setor. Nesse evento seriam consolidadas as propostas e discussões que guiaram a formulação de políticas nos anos seguintes. “Não há como distribuir cultura sem o direito autoral” – ISTOÉ DINHEIRO. Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/entrevistas/20110225/nao-como-distribuir-cultura-sem-direito-autoral/147965.shtml 4 ‘Despreparo é dolorosamente evidente’, dizem intelectuais sobre gestão do MinC. 18/03/2012 Cultura: O Estado de São Paulo. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,despreparo-e-dolorosamente-evidente-dizem-intelectuais-sobre-gestao-do-minc,850226 3

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No final de 2011, em dezembro, os jogos digitais foram incluídos oficialmente na Lei Rouanet com a Portaria Nº 166 do ministério da Cultura. Em janeiro, durante o 1º Fórum Nacional do Comércio de Games do Brasil, o coordenador geral de inovação da Secretaria do Audiovisual, Thiago Cremasco, declarou que o edital BRGames teria uma nova edição em 2012. Cremasco daria mais detalhes sobre o edital em março de 2012, durante o evento GameWorld, afirmando que o edital do programa deveria ficar pronto no final de maio, com um total R$ 2 milhões a serem entregues aos vencedores. (LEKTRONIC, 2012; ARENA IG, 2012). Em 1º de julho de 2012, por meio do Decreto 7743, Ana de Hollanda cria a Secretaria da Economia Criativa (SEC), com a missão de conduzir a formulação, a implementação e o monitoramento de políticas públicas para o desenvolvimento local e regional de empreendimentos criativos brasileiros. Nesta secretaria que se volta a articulação pela temática dos jogos eletrônicos. O destaque é a reunião ocorrida em 27 de agosto para discutir a formulação do Plano Brasil Criativo. Ao todo estavam presentes 3 ministros (Cultura, Planejamento e Ciência e Tecnologia), 6 secretários executivos e membros da presidência. Moacyr Alves ainda descreve outras parcerias com a SEC: Eu fui chamado pela secretaria da economia criativa que a Cláudia Leitão era presidente. Ela também era uma entusiasta, me chamou para as reuniões, inclusive tanto ela quanto a Ana Paula [Santana, secretária do Audiovisual] me pediram projetos. Eu fiz oito projetos. Quatro deles sobre redução da carga tributária, dois deles pra área de ajuda para o desenvolvimento de jogos indie, inclusive teve uma reunião que a gente tentou fazer o GameHub – que era uma incubadora de jogos financiada pelo governo. Eu tive o orçamento de R$ 1.500.000,00 aprovados pelo governo. Desses oito projetos, seis foram aprovados e mandamos lá (ALVES JR in ZAMBON, 2015) O edital BRGames, prometido para maio, não teria sido lançado naquela altura. Pela leitura de Fred Vasconcelos, que era presidente da ABRAGAMES, o pensamento foi que “a gente [do Ministério da Cultura] não sabe mais se games vai ficar aqui ou não [Secretaria do Audiovisual], se vai para a alçada de outra pessoa, se vamos criar uma agência fomentadora disso. Enquanto não temos certeza, segura [o lançamento do edital]” (VASCONCELOS in ZAMBON, 2015). Em setembro, Ana de Hollanda entra em desavenças com a presidente Dilma Rousseff a respeito de questões orçamentárias do Ministério, tornando insustentável a já delicada situação de sua gestão. Hollanda deixa a pasta para dar lugar a Marta Suplicy em setembro de 2012. A relação de Marta com o setor de games foi conturbada. Dos projetos articulados dentro do Ministério pela ACIGAMES “Tudo virou pó. A partir do momento que a Marta entrou no meio da gestão” (ALVES JR in ZAMBON 2015). O representante da ABRAGAMES naquele ano também entendeu como negativa a mudança: “Aí começou o problema de fato. [A política de games] voltou para o Ministério da

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Cultura, e começou uma sequência de secretários e ministros que não colaboravam com essa indústria, que não viam valor nessa indústria” (VASCONCELOS in ZAMBON, 2015). Juliano Alves, diretor da ABRAGAMES naquela gestão, comenta que “O processo do governo funciona muito assim. A cabeça mudou e para tudo, esperando a cabeça entrar de novo. Se a cabeça muda o Norte, as políticas mudam junto” (ALVES in ZAMBON, 2015). O evento mais icônico desta relação se estabeleceu em 19 de fevereiro de 2013, na Assembleia Legislativa de São Paulo, em uma audiência pública sobre a adoção do programa Vale-Cultura. Ao explicar o programa, que concede 50 reais em forma de um vale para uso em atividades culturais, Marta é questionada o que as pessoas que trabalham com jogos digitais devem esperar da iniciativa: No caso dos jogos digitais, o assunto ainda não foi aprofundado o suficiente, mas eu acho que eu seria contra. Eu não acho que jogos digitais sejam cultura […] Mas a portaria é flexível. Na hora em que vocês conseguirem apresentar alguma coisa que seja considerada arte ou cultura, eu acho que pode ser revisto. No momento o que eu vejo é outro tipo de jogo. Encaminhem para o ministério as sugestões que vocês estão fazendo. Eu tenho certeza que talvez vocês consigam fazer alguma coisa cultural. Mas, por enquanto, o que nós temos acesso, não credencia o jogo como cultura. O que tem hoje na praça, que a gente conhece (eu posso também não conhecer tanto!) não é cultura; é entretenimento, pode desenvolver raciocínio, pode deixar a criança quieta, pode trazer lazer para o adulto, mas cultura não é! Boa vontade não existe, então, vocês vão ter que apresentar alguma coisa muito boa (SUPLICY in TOKIO, 2013) O setor criticou muito a posição da ministra que, nesta ocasião, teria deslegitimado a luta por políticas públicas em seu principal campo de articulação, o Ministério da Cultura. A ACIGAMES publicou uma carta aberta em que divulgava sua posição, afirmando que: (...) se games não são considerados cultura por nossa própria ministra, é uma afirmação de grave preconceito e um desrespeito a todos os trabalhos acadêmicos e científicos na área. Games são a nova expressão digital do mundo e nos países desenvolvidos isso é deixado bem claro. (ACIGAMES, 2013). Já a ABRAGAMES afirmaria que “preocupa em perdermos a continuidade de um processo que pode representar a expansão de um setor fundamental da economia criativa do país e que tem enorme capacidade de retratar e povoar o imaginário cultural nacional” (ABRAGAMES, 2013). Moacyr Alves destacou que Marta sublinhou especificamente um pedido para que todos os projetos de games fossem fechados. (ZAMBON, 2015). Já Ale Machado, presidente da ABRAGAMES desde 2013, teve outra leitura: Foi uma declaração infeliz. A gente precisa ser justo com a Marta, ela retornou nessa declaração, acabou apoiando a gente. Foi num momento

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específico do Vale Cultura, uma pergunta feita em um momento acalorado sobre quais produtos poderiam ser consumidos com o Vale Cultura. Eu respondi formalmente para o Ministério da Cultura, inclusive citando o Ministro Gil, que tinha feito a primeira declaração de que jogo é cultura sim, numa das falas mais felizes dele, pelo menos para a nossa área. Mas sendo justo com o que foi o ministério da Marta, ela retomou isso. É que isso acabou ganhando espaço mais do que deveria. Então acho que a gente não pode ficar olhando para isso, ela fez muita coisa por nós e a gente retomou isso com facilidade. De certa forma, foi essa declaração que nos aproximou deles quando a gente mandou aquela carta educada, explicando que ali havia um equívoco. Foi exatamente na troca de gestão e ela não tava a par do que havia caminhado em relação aos games dentro do Ministério da Cultura. Aquele ministério já havia promovido uma série de benefícios para o setor que a gente não pode esquecer. (MACHADO in ZAMBON, 2015) Essa reconciliação com o setor, citada por Machado, veio apenas um ano depois das declarações, durante a Campus Party em janeiro de 2014. No evento de abertura, Marta afirma que “Games São Cultura” e anuncia a abertura de um edital que contempla, dentre diversas categorias, a criação de jogos digitais. O programa selecionou 52 empreendedores culturais para rodadas de negócios entre 10 países do Mercosul, na Argentina, com o objetivo de exportar a cultura brasileira e estimular a criação de redes entre os países do Mercosul. No mesmo evento, ela concede uma entrevista a respeito desse novo posicionamento: “hoje você tem a percepção que cultura passa por games e que games têm que ser ajudados no sentido de o jovem ter condição de fazer seus games” (CAMPUS PARTY, 2014). Apesar da mudança no discurso, até o fim de sua gestão não surgiu nenhuma política específica para jogos digitais, como uma nova edição do edital BRGames – prometido desde 2012 – ou a inclusão dos jogos como item financiável pelo Vale Cultura. O que se conclui deste panorama estabelecido é que possível dizer, portanto, que existem políticas culturais para jogos digitais no Brasil, e que sua temática é abordada por alguns dos programas governamentais existentes, mas não é possível, contudo, creditar que existe uma Política Pública para jogos digitais, ou seja, um marco regulatório intersetorial de propostas que dialoguem. O embrião dessa articulação existe, mas de maneira incipiente, e sem resultados efetivos e em ação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAGAMES. Plano Diretor da Promoção da Indústria de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos no Brasil. [S.l: s.n.], 2004.

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ACIGAMES. Videogames e perspectivas de mercado nacional. [S.l.]: ACI Games, 2013 ARENA IG. O trabalho de um Conselheiro Titular de Jogos Eletrônicos. Disponível em: http://arena. ig.com.br/o-trabalho-de-um-conselheiro-titular-de-jogos-eletronicos/n1597737687998.html BOLAÑO, C.; MOTA, J.; MOURA, F. Leis de incentivo à cultura via renúncia fiscal no Brasil. In: CALABRE, L. Políticas culturais: pesquisa e formação. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. BRASIL. PL 6722/2010 Disponível em: . CALABRE, L. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: ENECULT, 2007, [S.l: s.n.], 2007. p. 1–18. CHAUÍ, M. Cultura e democracia - o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1990. v. 5. ed. COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE. A imaginação a serviço do Brasil: programa de políticas públicas de cultura. São Paulo: 2002. Disponível em: . COSTA, E. Jangada Digital. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011. COSTA, T. O mercado de games no Brasil existe? ACI Games Magazine, v. 1, n. 2, 2012. FERNANDES, M. R. Ancinav: uma proposta de política cultural para o audiovisual. In: III SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS, 2012, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: [s.n.], 2012. FERNANDES, M. R. Organizações Globo versus Ancinav: relato de uma disputa. Aurora: revista de arte, mídia e política, v. 6, n. 18, p. p. 27–41, 2013. GIL, Gilberto, Discurso de posse, Ministério da Cultura, Brasília, 2003. Disponível em: http://www. cultura.gov.br/discursos/-/asset_publisher/DmSRak0YtQfY/content/discurso-do-ministro-gilberto-gilna-solenidade-de-transmissao-do-cargo-35324/10883 GIL, Gilberto, Discurso na EGS 2004, São Paulo, 2004. Disponível em: http://web.archive.org/ web/20060214085730/http://www.cultura.gov.br/noticias/discursos/index.php?p=877&more=1 . ISTOÉ Dinheiro. Não há como distribuir cultura sem o direito autoral. ISTOÉ Dinheiro. Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/entrevistas/20110225/nao-como-distribuir-cultura-sem-direito-autoral/147965.shtml RUBIM, A. A. C. Políticas culturais no Brasil: itinerários e atualidade. In: BOLAÑO, C. R.; GOLIN, C.; BRITTOS, V. C. (Org.). Economia da arte e da cultura. São Paulo, São Leopoldo, São Cristovão, Porto Alegre: Itaú Cultural, Cepos/Unisinos, PPGCOM/UFRS, OBSCOM/UFS, 2010. p. 51–71. RUBIM; BARBALHO, A. (Org.). Políticas Culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. SB games IV 2009 in: PucRio Digital. 09/10/2015. TOKIO, K. Para Ministra, Game Não é Cultura. Sim, Ele É. Geek. 2013 Disponível em: http://www. geek.com.br/posts/20620-para-ministra-game-nao-e-cultura-sim-ele-e

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TURINO, C. Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima. 2. ed. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010. ZAMBON, P. Entrando na partida: a formulação de políticas de comunicação e cultura para jogos digitais no Brasil entre 2003 e 2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru, 2015.

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O PROCESSO DE DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS NO BRASIL PÓS-1988: AS ARQUITETURAS DO SISTEMA NACIONAL DE CULTURA E DO ICMS CULTURAL Rafael Luiz de Aquino1 RESUMO: Os estudos empreendidos no campo das relações intergovernamentais e da organização federativa do Brasil, que foram reestabelecidos a partir dos processos de democratização e de promulgação da Constituição Federal de 1988, são fundamentais para compreender as dinâmicas de descentralização das políticas públicas, desenvolvidas em regime de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios. É neste sentido que o presente trabalho busca evidenciar como estas reformas têm influenciado o campo das políticas culturais. Para subsidiar as reflexões, são tomados como objetos de análise os aspectos estruturais do Sistema Nacional de Cultura e as diretrizes do Programa ICMS Patrimônio Cultural2. PALAVRAS-CHAVE: Descentralização, Federalismo, Políticas Culturais, Sistema Nacional de Cultura, ICMS Cultural.

1. A RECUPERAÇÃO DAS BASES FEDERATIVAS E DAS RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS DO ESTADO BRASILEIRO A Federação é um formato de organização política e territorial de uma comunidade, dividida em subníveis de governo, que são dotados de atribuições e de poderes próprios no âmbito de suas competências regionais. Este formato de organização se estrutura na ratificação de um instrumento jurídico, a Constituição, que possui a finalidade de organizar o Estado soberano, como resultante dos vetores que favorecem a evolução política de uma nação democrática, define a repartição de competências entre as unidades subnacionais, descentraliza as decisões e organiza o pacto federativo. O reconhecimento da constituição como instrumento Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na linha de pesquisa: Políticas Públicas, Poder Local e Participação. Docente do curso de formação para Agentes Culturais do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural. Email: [email protected] 2 O presente artigo é um produto preliminar da dissertação de mestrado: A política de cultura nos municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte: Entre os governos Federal e Estadual. Este projeto se encontra em desenvolvimento sob a orientação do professor Carlos Aurélio Pimenta de Faria e conta com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 1

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estruturante do processo democrático tem suas raízes na formulação das diretrizes do Estado Liberal, influenciado pelos fundamentos do estado civil postulados por John Locke (16321704), que consistem em leis e instituições que permitem garantir a salvaguarda dos direitos naturais (vida, liberdade e bens). No Brasil as bases do federalismo surgiram com a Proclamação da República (1889), quando a descentralização do poder foi realizada a partir da divisão de atribuições políticas e administrativas entre os estados membros. No entanto, os regimes do Estado Novo (1937-1945) e da Ditadura Militar (1964-1985) marcaram períodos de intenso autoritarismo e centralização política no Brasil. O desenho institucional do país passou por diferentes mudanças ao longo das transições políticas, que conduziram ao fim destes regimes autoritários. A ratificação da Constituição, promulgada em 05 de outubro de 1988, reestabeleceu as bases do Estado federativo brasileiro com a retomada das eleições diretas para todos os níveis de governo, promoveu a descentralização fiscal e reconheceu a autoridade política e institucional dos níveis de governos estadual e municipal (ARRETCHE, 2000, pag. 46). O processo de descentralização política e fiscal, pós-88, tem redefinido os graus de atribuições e de competências entre os níveis de governo, na gestão das políticas e na oferta de serviços públicos considerados relevantes, a exemplo das áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e segurança pública. Para Soares (2013) “a nova constituição do país representou avanços na definição de diretrizes para uma nação democrática, federativa e com maior justiça social”. No entanto, as ações de reorganização do Estado brasileiro tornaram complexas as relações intergovernamentais, na medida em que os governos estaduais e municipais reafirmam a condição de entes federados providos de autonomia em relação ao governo central (ARRETCHE, 2000; ABRÚCIO; FRANZESE, 2007). Este grau de autonomia permite que cada administração determine seu próprio formato para provisão das políticas públicas, podendo empreendê-las em regime de cooperação com outros entes ou de forma independente com a implementação de sistema próprio. O crescimento das demandas sociais pela provisão de serviços públicos tornou necessário estabelecer o escopo de coordenação das políticas públicas no Brasil, para garantir a cooperação e o comprimento das atribuições de cada ente federado, conforme rege a Constituição. O maior desafio na coordenação de políticas públicas, no atual desenho federativo brasileiro, tem conexão direta com a capacidade de influenciar nas decisões dos governos subnacionais. Os estados e municípios não possuem obrigação de aderir aos projetos de descentralização ou de transferência de atribuições desenvolvidos pelo governo federal, esta conjuntura autônoma também se estende na arena de negociações entre estados e municípios. Segundo Arretche (2000), as transferências de atribuições ou a gestão das políticas públicas empreendidas em regime de cooperação, são realizadas “com base em uma barganha fede-

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rativa”, porque os governos locais avaliam os custos e os benefícios envolvidos no processo de adesão. As políticas de cultura, educação, assistência social e habitação, por exemplo, possuem especificidades que influenciam na existência de formatos diferenciados de atribuições e de estratégias de indução. As adesões aos sistemas configuram-se como alternativas políticas e econômicas que muitas vezes interessam aos governos locais, uma vez que a gestão cooperada pode ao mesmo tempo, reduzir os custos da prestação dos serviços e garantir sua oferta à população. O formato sistêmico desenvolvido para viabilizar a gestão em regime de colaboração, possibilita a efetiva integração administrativa entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios. [...] o governo subnacional pode acomodar suas novas atribuições no contexto do aparato institucional que possui e da capacidade que já tem instalada. Nesse tipo de situação, o custo colocado ao ente subnacional é consideravelmente menor, e, portanto, a adesão se torna vantajosa (DINIZ FILHO; DUTRA, 2014, pag.6). A institucionalização dos canais de participação da sociedade civil, organizados por meio das instâncias de controle, deliberação e consulta pública legitimados em forma de conselhos, conferências, e fóruns intersetoriais são elementos essenciais na configuração das políticas de descentralização. No contexto da redemocratização do país ganharam força as reivindicações da população em torno da ampliação do diálogo e do controle social nas fases de formulação, execução, monitoramento e avaliação de programas e políticas, assim como no aprimoramento da gestão pública (TATAGIBA, 2010, pag.28). A coordenação de políticas públicas descentralizadas, desenvolvidas por iniciativas da União, apresenta avanços significativos principalmente nas áreas da saúde, educação básica e assistência social, uma vez que o desenho institucional destas políticas, com referência no princípio da universalização, prescrito na Constituição de 1988, transformou as unidades subnacionais em suas principais implementadoras (ABRUCIO & FRANZESE, 2007; SOUZA, 2013). A oferta dos serviços de saúde pública no Brasil é operacionalizada por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecido por um formato administrativo nacional, que influenciou a estruturação dos demais sistemas implementados no país. O Sistema Nacional de Cultura e o ICMS Cultural, do estado de Minas Gerais, são políticas dotadas de estrutura semelhante ao SUS, cujo formato operacional consiste na existência de um órgão gestor específico para administrar a política, instituição de conselho, fundo de financiamento para viabilizar as transferências de recursos e contrapartidas locais, comissões intergestores tripartites e bipartites, formadas por representantes ministeriais, das secretarias estaduais e municipais.

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2. AS INICIATIVAS DE DESCENTRALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS CULTURAIS PÓS 1988: BRASIL E MINAS GERAIS A visão sistêmica de organização das políticas culturais no Brasil é ainda recente, mesmo com a existência de um histórico de iniciativas que reconhece a cultura como objeto de políticas públicas. O período de redemocratização do país contribuiu, para que nas décadas seguintes, se intensificassem as reflexões e debates, entre Estado e sociedade civil, acerca da necessidade de superar as fragilidades dos entes federados no planejamento público da gestão cultural. Estes momentos são notáveis, devido à necessidade de discutir estratégias para superar uma trajetória marcada por intensos períodos de instabilidade institucional, falta de investimentos e de indicadores que permitissem diagnosticar as especificidades e demandas do setor cultural. A criação do Ministério da Cultura (MINC) aconteceu em 1985, época em que aconteceram múltiplas transformações institucionais no país, em função da redemocratização e dos contextos políticos, econômicos e socioculturais, incitados pela globalização. O MINC sinalizou expectativas de avanços para a organização do setor cultural do país, mas o que houve, na prática, em suas primeiras décadas de existência, foi um histórico de profunda instabilidade e de pouca representação perante os demais órgãos federais. Entre os anos de 1985 e 1994, foram nomeados dez diferentes gestores para chefiar as políticas culturais no governo federal, resultando na média de um ministro por ano (CUNHA, 2007; RUBIM, 2008; CALABRE, 2009). Contudo, a autonomia institucional obtida com a criação do MINC para organizar as políticas culturais não foi sustentada por uma estrutura organizacional dotada de capacidade política, administrativa e nem orçamentária, suficientes para garantir a manutenção de um conjunto mínimo de atribuições ministeriais. O MINC contava com espaço físico insuficiente para acomodar sua infraestrutura, não havia formado um quadro de funcionários qualificados para tratar as peculiaridades da gestão e nem havia articulação política para reivindicar uma dotação orçamentária ao menos compatível com suas demandas (BOTELHO, 2000; CALABRE, 2009). No caso de Minas Gerais, em 1963, foi instituída a Secretaria de Estado do Trabalho e Cultura Popular, primeiro órgão incumbido de executar a gestão publica de cultura do estado. Em 1967, a gestão cultural foi vinculada à Secretaria de Educação e, com as reformas administrativas de 1969, foi criada a Coordenadoria Estadual de Cultura. A Lei n.8.502, de 19 de fevereiro de 1983, dispõe sobre a criação da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais (SEC). Em três décadas de existência da SEC, foram nomeados 19 secretários de estado, deste total apenas Eliane Parreiras completou quatro anos de gestão e outros dois ficaram por três anos, registrando os maiores períodos de permanência de um gestor à frente da secretaria (CUNHA, 2008; BARROS; JUNIOR, 2013). A SEC, ainda recém-criada, realizou em abril de 1984, na cidade histórica de Ouro Preto, o I Encontro Nacional de Política Cultural, realizado paralelamente ao encontro do Fórum

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Nacional de Secretários de Cultura. Este encontro trouxe à tona reflexões sobre problemas conceituais referentes à relação entre Estado e sociedade civil, preservação do patrimônio cultural e fontes alternativas públicas e privadas para o financiamento da cultura (CUNHA, 2008, pag.5455). Ainda hoje o Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura funciona como importante canal de proposição e articulação na construção das políticas culturais nos âmbitos nacional e regional. A partir da recuperação das bases federativas, a democracia brasileira está a exigir, para sua consolidação, a ampliação dos direitos culturais e da cidadania cultural (MOISES, 2001; RUBIM, 2007). O papel do Estado na formulação e implementação de políticas públicas deve possuir plena sintonia com o exercício da participação de diferentes atores envolvidos no processo decisório e no controle social, estes elementos são pressupostos fundamentais derivados do desenvolvimento da democracia. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) desempenha um importante papel na agenda política internacional, promovendo a mobilização dos Estados-membros e da sociedade civil em torno de objetivos comuns, relativos à defesa, promoção da diversidade cultural e o pleno exercício dos direitos culturais. A ação da UNESCO contribuiu para combater a tendência de homogeneização cultural, em decorrência do processo de globalização, além de reconhecer a cultura como parte fundamental do desenvolvimento humano. Neste contexto que os direitos à identidade e à diversidade cultural, no Brasil, estão garantidos e normatizados na Constituição Federal de 1988. No entanto, foi a partir de 2003 que a organização sistêmica das políticas culturais passou a figurar como pauta relevante no Governo Federal. O Ministério da Cultura adotou novas significações para o papel da cultura no campo das políticas públicas, priorizou o diálogo com diferentes órgãos de governo, promoveu a abertura dos canais de participação social, que inauguram a inserção da sociedade civil na agenda ministerial, através da reformulação do Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), circulação em todo território nacional com a realização de seminários, consultas públicas, encontros setoriais, apoio às conferências de cultura dos estados e municípios, que resultaram na realização da Primeira Conferência Nacional de Cultura (CALABRE, 2011, pag.2-3). No campo constitucional tramitaram marcos regulatórios que contribuíram significativamente com os esforços de consolidar o Sistema Nacional de Cultura (SNC) no território nacional: • A reforma tributária (emenda constitucional nº 42), realizada em 2003, autorizou os Estados e o Distrito Federal a aplicar recursos de seu próprio orçamento a fundos de financiamento de programas e projetos culturais; • A PEC nº 416 de 2005, obteve aprovação no Congresso Nacional em 2012, e, através da Emenda Constitucional nº 71, cumpriu com o objetivo de incluir o Sistema Nacional de Cultura no artigo 216-A da Constituição Federal;

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A Emenda Constitucional nº 48 de 2005, acrescentou o Plano Nacional de Cultura (PNC) no parágrafo 3º do artigo 215 da Constituição Federal; • Em 2010 foi sancionada a Lei n° 12.343, que institui o Plano Nacional de Cultura e estabelece o Sistema Nacional de Cultura como seu principal articulador federativo, cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), torna o Fundo Nacional de Cultura o principal mecanismo de fomento às políticas culturais do país, entre outras providências. O Sistema Nacional de Cultura (SNC) foi elaborado por meio de um conjunto de ações empreendidas pelo Ministério da Cultura, em parceria com órgãos de governo da União e dos demais entes federados, com a participação de diversos atores da sociedade civil e de consultores (BRASIL, 2011, pag.14). As premissas do SNC são de institucionalizar a gestão das políticas culturais em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, com a participação da sociedade civil nas instâncias de consulta, controle e deliberação. A abertura das discussões em torno do SNC aconteceu em 2003, mas as ações de implementação iniciaram a partir de 2005, quando ocorreram paralelamente, o envio da Proposta de Emenda à Constituição referente ao SNC (PEC nº 416/2005) e a realização da Primeira Conferência Nacional de Cultura, onde o desenho de seus objetivos, diretrizes e normas foram amplamente debatidos com a sociedade civil, e, os municípios que participaram dessa conferência, assinaram o protocolo de intenções, afirmando o compromisso de cooperar com a implementação do sistema. A estruturação do SNC teve influência de outros sistemas de políticas públicas, principalmente das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), da experiência do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e da Política Nacional de Educação. Cabe ao SNC conferir o caráter de política pública permanente, que de forma sistêmica permitirá, com maior incidência, o alcance aos setores mais amplos da sociedade, “de forma a dar um formato político e administrativo mais estável e resistente às alternâncias de poder” (BRASIL, 2011, pag.26). O objetivo central do SNC é garantir o fortalecimento institucional da administração pública responsável pela gestão das políticas culturais no território nacional, prevendo futuras ações de repasse de verbas entre os níveis de governo, através dos fundos de cultura.  O SNC institui um processo de gestão democrática e permanente, pactuado entre as unidades federativas e a sociedade civil. A União, os Estados e os municípios devem constituir uma estrutura própria que compreende o órgão gestor de cultura, as instâncias de participação por meio dos conselhos de políticas culturais e das conferências, os planos de cultura que estruturam programas e ações de longo prazo garantindo a valorização e a preservação da diversidade cultural, no sistema de informações e indicadores culturais e o sistema de financiamento à cultura.

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As políticas de cultura do estado de Minas Gerais possuem pontos de convergência com as dinâmicas do Sistema Nacional de Cultura, proposto pelo governo federal3. Os diálogos entre o MINC e a SEC, em torno do SNC, foram marcados por acentuadas divergências, em função das possíveis incompatibilidades em relação ao sistema de preservação do patrimônio cultural implementado no Estado. A falta de consenso fez com que Minas Gerais tenha sido o último estado da federação a formalizar sua adesão ao Sistema Nacional de Cultura. No entanto, trata-se do estado que possui um sistema de municipalização das políticas de proteção do patrimônio cultural referência no país, que é potencializado com base nos critérios de distribuição dos recursos recolhidos do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A Constituição Federal de 1988 estabelece que 75% do ICMS pertencem ao estado arrecadador e os outros 25% devem ser repassados aos municípios, de acordo com legislação específica, regulamentada por cada estado da federação. A lei estadual 12.040, criada em 1995, conhecida como Lei Robin Hood, reorganizou a distribuição da receita de arrecadação do ICMS pertencente aos municípios mineiros. Neste período a Lei Robin Hood possuía dois objetivos centrais, que seriam induzir os governos locais a assumir a gestão de diversas políticas por meio de incentivos financeiros e promover a distribuição mais justa destes recursos entre estes 853 municípios do estado. Os critérios de distribuição dos recursos do ICMS aos municípios, dispostos na Lei 12.040, consideravam a população, área geográfica, a receita própria de cada município, produção de alimentos e os investimentos em saúde, educação, preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural. A legislação de distribuição do ICMS no Estado de Minas Gerais passou por novas alterações em 2000 e 2009, respectivamente por meio das leis nº 13.803 e nº 18.030. Estas mudanças visaram acertar desvios apresentados pelas leis anteriores, que impediam uma plena descentralização dos recursos arrecadados pelo imposto estadual, conforme era a intenção inicial (FARIA; JUNIOR, 2014, pag.49). Os vinte anos de instituição do critério “patrimônio cultural” demonstram que o governo de Minas pactua com as políticas de descentralização fomentadas no plano nacional, ao introduzir na agenda dos municípios a responsabilidade com a preservação do patrimônio cultural. A gestão do ICMS Cultural é executada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Minas Gerais (IEPHA/MG), que, junto ao Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (CONEP), publicam a Deliberação Normativa sobre as diretrizes relativas ao Critério Patrimônio Cultural, onde os municípios interessados têm acesso aos prazos e demais informações pertinentes ao processo.

As análises de Barros e Júnior (2013) apresentam, com mais detalhes, indicadores que justificam as formas que o Governo de Minas e a União estabelecem entre si uma relação de indução em torno do SNC.

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A participação dos municípios é condicionada à implementação dos sistemas municipais de proteção do patrimônio cultural, que consiste na criação e comprovação do funcionamento regular do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural, do uso de procedimentos de tombamento e da realização de ações de educação patrimonial. Os sistemas municipais de patrimônio cultural, implementados no Estado de Minas Gerais, devem ser dotados de infraestrutura suficiente para cumprir com a execução dos planos de trabalho, que anualmente são avaliados pelo IEPHA com base em uma tabela de pontuação, que considera a comprovação do funcionamento regular dos mecanismos constitutivos do sistema e os tombamentos de bens culturais. A pontuação dos municípios é revertida integralmente em recursos financeiros, referente ao percentual de 1% do montante que deve ser distribuído para os municípios, conforme os dispositivos da lei estadual do ICMS. 3. AS LIMITAÇÕES DOS MUNICÍPIOS NO ÂMBITO DO SNC E DO ICMS CULTURAL O pacto federativo do Brasil, restaurado a partir da Constituição de 1988, torna os municípios entidades constituintes da federação, dotados de autonomia política e administrativa, fato que comparado a outros países, faz destas relações peculiaridades do Estado brasileiro (ARRETCHE, 2000; ABRÚCIO; FRANZESE, 2007; CUNHA FILHO, 2010; RABAT, 2002). De acordo com Soares (2013) “o federalismo deve ser compreendido como movimento e não como algo Estanque”. A organização política do Brasil produz um histórico de avanços e retrocessos referente à centralização de atribuições e concentração de recursos retidos na União. Na observação de Brasílio Sallum (1996) o poder ora se concentra autoritariamente no governo central, ora se dispersa democraticamente, ancorando-se nas unidades constituintes. Na década de 80, o aumento das transferências das receitas tributárias da União para os fundos de participação dos estados e municípios (FPE e FMP) contribuiu com a recuperação da democracia e dos ideais federativos, em benefício do poder local. Contudo, o propósito de fortalecer as unidades subnacionais reduziu a capacidade de arrecadação da União, que reagiu a esta situação, em meados dos anos 90, promovendo o aumento da carga tributária, para recompor suas finanças e viabilizar o investimento nas políticas sociais. O aumento dos repasses direcionados aos fundos de participação desencadeou a criação em massa de novos municípios, alterando significativamente os algoritmos da divisão dos recursos e inserindo na agenda governamental a necessidade de ampliar os mecanismos de controle do gasto público. Ao longo da década de 90 foi elaborado, pela União, um conjunto de reformas institucionais de natureza política e econômica centralizadoras, na contramão do processo iniciado nos anos 80, que reduziram o espaço de atuação de Estados e a capacidade de articulação dos municípios em potencializar a execução das políticas sociais (MARIANO, 2012, pag.99).

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Este arranjo proporcionou profundas alterações no formato das relações intergovernamentais, devido à forte centralização orçamentária dos recursos federais e pelo aumento da capacidade de arrecadação tributária da União, que lhe rendeu a atual concentração de prerrogativas, em detrimento da participação equitativa dos Estados e municípios na distribuição dos recursos. “As prefeituras deixaram de ser protagonistas de inovações administrativas, como ocorreu no final da década de 80 e parte dos anos de 90” (RICCI, 2013, pag. 46). E, de acordo com Rocha (2011), esta situação se agrava ainda mais, uma vez que, no Brasil os orçamentos dos governos estaduais e municipais são rígidos devido à vinculação legal de suas receitas aos gastos com a seguridade social. Os municípios brasileiros são hoje detentores de autonomia política, administrativa e fiscal, mas, na prática, padecem com a escassez de recursos em função da política tributária nacional, com o controle e rigor orçamentário imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)4, que integram o pacote de medidas promovidas pela reforma do Estado, realizada na década de 90. Em meio às condições descritas nos parágrafos iniciais desta sessão, que o Ministério da Cultura tem trabalhado, desde 2003, com o objetivo de induzir os municípios a pactuarem com as diretrizes propostas pelo SNC. As descontinuidades ocorridas no decorrer do processo, o longo prazo de tramitação dos marcos legais e as indefinições quanto à previsão dos repasses fundo a fundo, formam o conjunto de incertezas dos executivos municipais em estruturar seus sistemas de cultura. Apesar de previsto na Emenda Constitucional nº 71, ainda não existe uma lei que regulamenta o funcionamento do SNC. No que refere ao financiamento, as ações realizadas até momento não avançaram em função de efetivar as promessas de repasse fundo a fundo. Entre os anos de 2014 e 2015, ocorreram ações pontuais de transferência voluntária, por meio de editais, publicados para avaliação e seleção de projetos, restrito aos estados e municípios que completaram o processo de adesão ao SNC. Nas transferências voluntárias, mira-se um espelho que, naturalmente, oferece a imagem invertida: o ente detentor dos recursos atua atendendo a reivindicações pontuais, fazendo para cada demanda um pacto específico (convênio); o beneficiário, além da responsabilidade perante suas próprias autoridades, deve prestar contas às daquele com o qual pactua. A síntese é a de que, neste modelo, não há continuidade da cooperação e é ínfimo respeito à autonomia (CUNHA FILHO, 2010, pag.108). Na política do ICMS Cultural do estado de Minas Gerais os municípios são induzidos a implementarem um sistema local de proteção do patrimônio cultural. O desafio das municipali A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece limites de endividamento dos entes da federação e regras de comprometimento das suas receitas, objetivando evitar que sejam efetuadas despesas maiores que os valores das respectivas receitas.

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dades está no cumprimento das metas estabelecidas pelo IEPHA, órgão estadual responsável pela gestão e avaliação dos critérios de repasse de recursos do programa. No trabalho de sistematização e análise do banco de dados da Fundação João Pinheiro5, realizado em 2014, por Biondini, Starling e Carsalade, tocante à adesão, foi identificado um alto grau de ruptura e de descontinuidades nos períodos das eleições municipais, pois em diversos casos, os gestores dos sistemas locais de patrimônio não são mantidos nos cargos após os reordenamentos administrativos, realizados em função das sucessões eleitorais. Entre os anos de 1996 e 2012, foram aprovadas três resoluções e sete deliberações normativas, referente ao critério Patrimônio Cultural, cada alteração realizada ao longo deste período aumentou o rigor dos relatórios e laudos técnicos que os municípios devem elaborar para fins de comprovação dos tombamentos e demais ações de proteção do patrimônio cultural, e, estes procedimentos são obrigatórios para a transferência dos recursos (BIONDINI, CARSALADE, STARLING, 2014; AZEVEDO, BORSANI, LIRA, 2014). A maioria dos municípios mineiros são desprovidos de estrutura administrativa dotada de recursos humanos com capacitação suficiente para desenvolver a gestão deste complexo sistema local de proteção do patrimônio cultural, proposto pelo IEPHA e CONEP. Para Rangel (2008), além da formação profissional é necessário que os técnicos tenham acesso à especialização, e, sobretudo, vivência neste campo de atuação. Em função das limitações orçamentárias e administrativas dos municípios é válido considerar a hipótese de que o principal atrativo da organização sistêmica das políticas culturais, proposta pelos níveis mais abrangentes de governo, corresponde às transferências fundo a fundo. Segundo o ex- Secretário de Articulação Institucional do MINC Bernardo Mata Machado (2014) “o que consolida o sistema na verdade é o repasse de recursos, repasse de recursos da União para os estados, dos estados para o município, ou da União para os Municípios”. Na perspectiva do SNC esta modalidade de repasse ainda está em discussão, no entanto, para os municípios mineiros que conseguem atender às diretrizes do ICMS Cultural, os repasses fundo a fundo são uma realidade. No quadro comparativo é possível verificar a acentuada diferença entre o nível de adesão dos 853 municípios mineiros frente às políticas do SNC e ICMS Cultural.

A Fundação João Pinheiro é a instituição responsável pela coordenação da Lei de Distribuição do ICMS em Minas Gerais.

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Período de Implementação

Adesão dos municípios até 2015

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SNC

ICMS Cultural

Inicio a partir de 2005, estabelecido na constituição em 2012, porém ainda não foi regulamentado.

Tornou-se lei em 1995, porém passou por diversas readequações normativas.

278

658

(dados de 01/12/2015)

(dados de 11/11/2015)

Percentual de adesões

32,6%

77,14%

Repasses fundo a fundo

Não regulamentado

Em funcionamento

Fontes: Ministério da Cultura e Fundação João Pinheiro

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A recuperação das bases federativas do Estado brasileiro contribuiu para a organização da governança democrática como também de coordenação no campo das políticas públicas, executadas em regime de cooperação entre a União e as unidades subnacionais. Neste sentido, que a institucionalização do SNC e do ICMS Cultural são importantes vetores no desenvolvimento das políticas culturais, que por meio da descentralização de atribuições, tendem a potencializar a valorização e a preservação da diversidade cultural. Para garantir a afetividade das políticas do SNC e do ICMS Cultural se faz necessário assegurar o caráter permanente de cooperação entre os entes que formalizam a adesão aos programas, uma vez que as trocas de governo desestabilizam ou interrompem os processos. Enquanto o SNC é marcado por retrocessos e descontinuidades na tramitação de seus marcos regulatórios, as diretrizes do ICMS Cultural se tornam cada vez mais rigorosas, a ponto de inviabilizar a participação de vários municípios. O Sistema Nacional de Cultura, de abrangência federal e o ICMS Patrimônio Cultural, do estado de Minas Gerais, necessitam ser adequados à realidade das administrações locais. É preciso consolidar a efetividade dos sistemas de cultura, como mecanismos descentralizados e também participativos. Para tanto, é imprescindível que as práticas de indução sejam redesenhadas, ao ponto de contribuírem para a redução das incompatibilidades existentes entre o grau de exigências impostos por estes sistemas e a realidade política, administrativa e econômica dos municípios.

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EM PERSPECTIVA COMPARADA: Os casos da saúde e habitação. 38º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, 2014. DURAND, José Carlos. Cultura como objeto de política pública. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n. 2, p. 66-72, 2001. LIRA, Rodrigo Anido; AZEVEDO, Nilo Lima; CARDOZO, Hugo Alberto Borsani. O sucesso do ICMS cultural revisado: determinantes e obstáculos da política de municipalização para a proteção do patrimônio cultural do estado de Minas Gerais. Vértices, v. 16, n. 1, p. 127-149, 2014. MACHADO, Bernardo Mata. Bernardo Machado fala sobre o Sistema Nacional de Cultura em entrevista. Ministério da Cultura, Brasília, 14 jul.2014. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/ noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/bernardo-machado-fala-sobre-o-sistemanacional-de-cultura-em-entrevista/10883. Acesso em: 05/10/2015. MACHADO, Bernardo Novais da Mata. Os direitos culturais na Constituição brasileira: uma análise conceitual e política. In: Lia Calabre (org.). Políticas culturais: teoria e práxis. São Paulo: Itaú Cultural, 2011, pp. 104-117. MARIANO, Jefferson. Tendências de centralização política e econômica no Brasil. Perspectiva Econômica, v. 8, n. 2, p. 98-107, 2012. MOISÉS, José Álvaro. Estrutura institucional do setor cultural no Brasil. In: MOISÉS, José Álvaro e outros. Cultura e democracia. Volume I. Rio de Janeiro, Edições Fundão Nacional de Cultura, 2001, pp.13-55. RABAT, Márcio Nuno. A Federação: centralização e descentralização do poder político no Brasil. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2002. RICCI, Rudá; ARLEY, Patrick. Nas Ruas: A outra política que emergiu em junho de 2013. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2014. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim e BARBALHO, Alexandre. Políticas Culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007, p.11-36. SALLUM JR, Brasilio. Federação, autoritarismo e democratização. Tempo social, v. 8, n. 2, p. 27-52, 1996. SOARES, Márcia Miranda. Desafios do Federalismo Brasileiro. Em Debate, v.5, n.5, p.23-29, 2013.

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AÇÃO CULTURAL TRANSFORMA A CIDADE QUE AS PESSOAS VÊEM Ramon Luiz Zago de Oliveira1 RESUMO: Este trabalho apresenta a discussão sobre a potência da ação cultural na ressignificação dos territórios e das práticas cotidianas a partir da experiência no Ponto de Cultura Jeca Tatu, em Suzano, que realiza cineclube em espaços públicos e discute com os cidadãos os sentidos políticos do personagem Jeca Tatu na obra de Mazzaropi para a realidade local. O texto traz o acumulo conceitual sobre ruralidades e desigualdades e conclui que a ação cultural atinge as pessoas com muita potencia, uma vez que as relações são mais afetivas e lúdicas. Os conteúdos são transmitidos de modo mais dinâmico e gera impactos profundos capazes de alterar o cotidiano e os significados nas pessoas. Destacamos três eixos de mudanças: o território, a relação com o trabalho e o processo eleitoral. PALAVRAS-CHAVE: Ação cultural, Sentidos políticos, Mudanças sociais.

1. INTRODUÇÃO Este texto discute a potencia das ações culturais para ressignificação dos territórios e correção de injustiças históricas. Este apresenta a discussão a partir da experiência no Ponto de Cultura Jeca Tatu, em Suzano, que realiza cineclube em espaços públicos e discute com os cidadãos os sentidos políticos do personagem Jeca Tatu na obra de Mazzaropi para a realidade local. O Ponto de Cultura é uma das ações do Programa Cultura Viva, que reconhece iniciativas culturais transferindo-lhe recursos para implementação da Política de Cultura. O Centro de Estudos e Pesquisas de Políticas Sociais e Qualidade de Vida - CEPPS, fundado em 1998, tem um histórico de militância frente às questões socioambientais do desenvolvimento humano na metrópole paulista, foi reconhecido em 2009 pela Secretaria de Estado da Cultura como Ponto de Cultura. Sua dinâmica de funcionamento originária levava em conta o auto-interesse dos integrantes nos debates e iniciativas de ativismos política frente aos desafios da sociedade em expansão econômica às custas da ampliação das desigualdades e da exploração predatória descuidada dos recursos ambientais cada vez menos abundantes. A assinatura do convênio do CEPPS com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e com o Ministério da Cultura, regido pelo contrato Consultor da Conceito Soluções Criativas Maria Bonita Produção Cultural. Mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo. [email protected].

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nº0497/2009 - processo nº1928/2009, que viabilizou o Ponto de Cultura Jeca Tatu enquanto projeto (com recursos, objetivos e resultados), ampliou o escopo de atuação da entidade incorporando a linguagem do cineclube como forma de ocupação do espaço público e promoção de debates pedagogicamente orientados. O projeto tem como objetivos promover espaços de diálogo sobre as expressões culturais relacionadas às questões socioambientais contribuindo para circulação de bens culturais ligados ao personagem Jeca Tatu e para promoção da diversidade cultural. As três linhas de ação do projeto são: Cine Clube, palestras e debates; Produção e registro; e Pesquisa, participação e gestão cultural. Elas foram pensadas como um espiral que se orientam a prática para dentro e para fora das comunidades locais, promovendo processos de comunicação e de apropriação do cotidiano dos espaços públicos. Este artigo é resultado de uma pesquisa que registrou as minhas reflexões coletivas frente à produção de sentidos no âmbito do projeto Ponto de Cultura Jeca Tatu, cuja autoria é compartilhada com todos os participantes do projeto. Tais reflexões são pertinentes à memória e à consciência política presente ao longo da trajetória do personagem nas artes, bem como, presente nas entrevistas e nos registros produzidos pelo projeto. A pesquisa vai investigar a constituição do sujeito e do espaço político nas obras que têm o Jeca Tatu como protagonista, bem como, nos registros produzidos pelo Ponto de Cultura Jeca Tatu. A pesquisa está preocupada com a representação do universo rural no processo de modernização da sociedade brasileira, mas seu foco está centrado nos processos políticos que mediam o intercâmbio de símbolos e de referências da cultura caipira. A pergunta de que o projeto investigará é: Quais sentidos políticos o Jeca Tatu assumiu? Quais efeitos estes sentidos políticos promovem na Ponto de Cultura Jeca Tatu e na ressignificação dos territórios e das práticas? 2. A RELAÇÃO COM O PROGRAMA CULTURA VIVA O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio da Portaria nº 156, de 06 de julho de 2004 e Portaria n° 82, de 18 de maio de 2005 do Ministério da Cultura. O Programa envolve os diversos atores em um sistema federativo de políticas públicas, que conta com a participação de entidades sociais, municípios, estados e união. Imprimiu um novo paradigma para a política cultural no Brasil, que tem sido implementado em outros países, sobre tudo da América Latina. Os recursos distribuídos pelo programa atingiram comunidades de produtores culturais promovendo dinamismo econômico em trono do fazer cultural. A economia da cultura é um elemento essencial da política cultural como mecanismo de redução das desigualdades existentes entre pobres e ricos e entre regiões. A economia da cultura também inclui o câmbio de símbolos

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e de referências. O patamar de reconhecimento e empoderamento que o Programa proporcionou às comunidades intensificar a importância de seu fazer cultural e reforçar identidades locais. Um novo movimento cultural vai se formando. Ele pretende tornar realidade o desejo constitucional de garantir a cultura em direito fundamental do homem. Seja pela repressão, pela falta de recursos, pela falta de reconhecimento, muitas foram às dificuldades históricas enfrentadas pela arte popular, a arte que ficou restrita a guetos, ainda assim ela se coloca como alternativa para reparar desigualdades históricas. O Programa repercute na possibilidade de um projeto de poder, constituído na legitimidade popular, de inclusão e garantia de direito no cenário da indústria cultural. A luta pela reparação das desigualdades no cenário da indústria cultural tem efeito amplo na organização do cotidiano, onde se produzem símbolos e referências, espaço ocupado pela poderosa indústria do entretenimento. O Ponto de Cultura Jeca Tatu surge como possibilidade de fazer cultural somente diante desta concepção ampliada de Cultura, que incorpora não apenas produtos culturais. O Centro de Estudos e Pesquisas em Políticas Sociais e Qualidade de Vida – CEPPS tem como origem grupos de estudos de acompanhamento de Políticas Públicas e ativismo socioambiental. O fazer cultural promovido pela entidade tem a ver com um processo de formação mais amplo: de educação política. A integração com várias linguagens são possíveis uma vez em contato com uma rede de fazedores, como é o caso do Programa Cultura Viva. Jeca Tatu é um dos personagens criados por Monteiro Lobato na crônica “Velha praga”, publicada no jornal Estado de São Paulo em 1914, que ao lado de Manoel Peroba e Chico Marimbondo protagonizam a ruína do café enquanto epicentro da economia nacional, e com o fim do ciclo econômico a ruína da construção simbólica. O personagem surge como a representação do atraso e da indolência responsável por fazer do Brasil um país arcaico. Em seus cem anos de existência o personagem, que dá nome à uma rua do bairro Vila Urupês em Suzano, protagonizou um processo intenso de mudanças sociais e serviu de inspiração para ação cultural no território. O Jeca está presente no imaginário popular a respeito do universo caipira, que surge como representação de um rural em vias de enfraquecimento frente ao processo de urbanização da vida e globalização das referências socioculturais. O percurso do Jeca interage com o processo de êxodo rural e acelerado crescimento desordenado das metrópoles brasileiras. O personagem revela uma representação das contradições presentes na constituição da nação brasileira. Ele surge como um personagem que está à margem das convenções sociais e ao mesmo tempo portador de um sistema cultural particular e suficiente. Está margeando os processos mercantis e ao mesmo tempo imerso em um sistema econômico-cultural autônomo baseado na cooperação, na solidariedade e na adaptabilidade, como descreveu Antônio Candido

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(1973). Não participa dos centros de decisão política e ao mesmo tempo é parte essencial dos mecanismos eleitorais de reprodução do poder do coronel, como diria Vitor Nunes Leal (1976). 3. SOBRE O MÉTODO A definição metodológica nesta perspectiva dialoga com a preocupação a cerca da cientificidade do trabalho acadêmico, mas nem por isso pretende retomar as tradições empiricistas golpeadas contundentemente por Popper e Feyrabend (Oliva, 1990). A epistemologia crítica destes autores, sobretudo de Feyrabend, que radicaliza seu posicionamento no sentido de um “pessimismo epistemológico” (OLIVA, 1990, 133), nos estimula à discordância e ao reconhecimento das subjetividades inerentes ao trabalho de pesquisa. O posicionamento de Feyrabend frente ao regime totalitário que a ciência assume se combinada ao exercício do poder estatal é muito apropriado para as presentes reflexões sobre a ciência que está sendo realizada por esta pesquisa, bem como, inspiram as análises do objeto de estudo. Sendo esta uma investigação sobre os discursos na trajetória do personagem, tais apontamentos em relação aos sentidos políticos do saber científicos servem ao trabalho também como instrumento analítico, para além de estabelecer parâmetro para diálogo entre saberes ou geram posicionamentos frentes às escolas do pensamento. A ciência aproxima-se do mito muito mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor. (FEYRABEND, 1978, 447) Para Morin, “a ciência é um assunto demasiado sério para ser entregue unicamente nas mãos dos cientistas” (MORIN, 1990, 103). Reinserir encantamento no mundo é um esforço inspirado da contribuição de Weber (2007) sobre o desenvolvimento da ciência e da política baseada na vocação e nas suas estruturas de produção e reprodução de cada uma dos dois campos. O autor cunhou o termo “desencantamento do mundo” ao observar que a ciência moderna é uma estrutura burocrática que reproduz um determinados sentidos sobre o mundo, àqueles que aceitam seus pressupostos racionalizantes e pragmáticos acabam substituindo valores supremos da vida pública que encontram abrigo “na transcendência da vida mística ou fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados” (WEBER, 2007, 51). Reencantar o mundo é privilegiar as múltiplas formas de saberes e empoderar o indivíduo no processo de construção de referências e de sentidos. Como analisa Oliva (1990), ainda que a violação das regras favoreça a produção de novidades cognitivas, a criticidade em relação às regras estabelecidas não implica necessariamente em anarquismo epistemológico, uma vez que a transgressão e a novidade assumem sua diferença frente aquela norma, logo, a reconhecem. O pluralismo metodológico se apresenta como

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principal caminho para acompanhar a demanda por pluralismo cognitivo e cultural necessários a atuação política no intercâmbio de sentidos. 4. ONDE ESTÁ O JECA? Os pioneiros responsáveis pela expansão das fronteiras paulistas se distribuíram pelo amplo território montanhoso do interior e foram desqualificados e insultados pela primeira e mais conhecida versão do Jeca dada por Monteiro Lobato (1914). As terras devastadas pelo caboclo foram apropriadas pelas elites governantes. Quando o Jeca Tatu surge, ele serve a este processo de reapropriação do território do interior. Os posseiros caipiras foram ridicularizados e passaram pelo “envergonhamento de sua fala, de suas roupas, de seus alimentos, de sua bebida predileta, de sua medicina rústica, de suas manifestações lúdicas, de suas crenças e práticas mágico-religiosas, de suas músicas e danças, de seu comportamento social” (PEREIRA e QUEIROZ, 2005, 12). Aqueles homens e mulheres viram-se diante pressão de migrar para as cidades em busca de uma “boia salva-vidas”. “Aos caipiras, acuados e pressionados pelo avanço das fazendas, a demanda crescente da cidade poderia oferecer uma alternativa” (SEVCENKO, 2003, 39). O eldorado avistado por aqueles “agentes desgarrados e itinerantes” foi a cidade de São Paulo. Deixou o interior de São Paulo um contingente enorme de “desenganados das falácias do ‘ouro verde’, da ‘sociedade livre’, da ‘economia competitiva’, pela realidade restrita da monocultura extensiva”. A capital se insinuava promissora com suas ocupações na indústria e nos serviços, mas ocultava armadilhas que aprisionam seus moradores em um caos doentio. “Postos a competir com os párias negros, recém-egressos da escravidão, e os ‘caipiras’, mestiços refugiados na gleba precária do sei ‘sítio’ apossado, sem direitos de qualquer espécie” (SEVCENKO, 2003, 39). Se associarmos o Jeca Tatu à figura idílica de um caipira de cócoras com um chapéu, homem pobre que trabalha e vive da terra, fatalmente não se encontrará nada além de uma folclorização saudosa, desde meados da década de sessenta. “Afinal, onde está o Jeca Tatu na atualidade?” O caipira real, como foi descrito por Candido no isolamento da auto-suficiência vicinal e livre para migrar para novos territórios ainda desocupados, provavelmente não existe mais, no entanto, está imortalizado no imaginário cultural. O personagem que antes serviu para ridicularizar o caipira passa a ser comemorado e revitalizado por meio de memórias nostálgicas e distorcidas da “vida na roça” durante as festas juninas, inclusive nas escolas de elite, onde famílias tradicionais da política e dos negócios agrícolas matriculam seus filhos. “Tal sobrevivência se dá via mecanismo em que se misturam o ridículo e o idealizado” (PEREIRA e QUEIROZ, 2005, 12). O personagem, assim como os vários outros elementos que remetem ao universo da cultura caipira, transportam as pessoas a um lugar. Esse processo de interação entre identidade e território se dá em função das “redes de sociabilidade” (ALVES & FROEHLICH, 2007, 68)

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locais, que dão suporte a sistemas de significação responsáveis pela interação com ambientes sociais mais amplos e pela coesão grupal. A apropriação e o uso dos territórios lhes atribui uma dinâmica de mudanças constantes. Os diferentes estratos sociais interferem na definição das fronteiras dos territórios e seus usos de acordo com seu potencial econômico e político. Tais interferências são essenciais para garantir o atendimento aos interesses dos grupos identitários ali presentes, bem como manter vivas suas referências e seus sistemas de significados. Entender os territórios como atores sociais significa ampliar a noção de unidade física, espaço ou região. Os conhecimentos e práticas estão associados às redes de sociabilidade dos agentes locais em dado contexto ambiental, social, político e econômico. As estruturas de poder, os costumes tradicionais, entre outros elementos conferem identidade a um dado território. O Jeca é o representante de um território que não se modernizou completamente durante a fusão entre campo e cidade, que preserva traços de uma matriz cultural pré-colonial, ao mesmo tempo, que incorpora os elementos das culturas com as quais interage. Elementos simbólicos oriundos dos modos de sociabilidade do Brasil rural, arcaico, extrapolam as fronteiras do campo. Outros elementos trazidos com a urbanização ocupam o cotidiano de territórios que estão à margem dos centros urbanos. Um vasto território suburbano e um enorme espectro de hibridações são as possibilidades de encontrarmos as pistas para encontrá-lo. Ele é mais um “candidato à urbanização” (SACHS, 2009, 286), em um país que seguiu o mimetismo em detrimento de sua própria trajetória cultural, social e econômica. Para Inacy Sachs (2009), os países considerados do terceiro mundo ou subdesenvolvidos estão capturados pelo imaginário modernizante a partir do modelo europeu, sem se dar conta das enormes diferenças históricas que definem suas consequências: permanecem colonizados no modo de pensar as alternativas de desenvolvimento. 4.1. Formação do brasil rural O principal trabalho sobre a formação política da democracia no espaço rural no Brasil foi realizado por Vitor Nunes Leal (1975). O coronelismo é identificado pelo autor como sendo um sistema nacional de relações políticas que envolvia os setores da economia agrária, principal fonte de divisas para o país e setor que ocupou os cargos públicos no sistema federativo da República Velha (1889-1930). O autor identifica o coronelismo como o reduto de sobrevivência do poder privado, resultado de processos sociais e culturais de um regime político e econômico baseado no extrativismo predatório escravocrata da colonização portuguesa. O cenário relatado pelo autor está ancorado nas grandes desigualdades, identificadas no Senso Rural de 1940 a grande concentração de terra: 73% da área rural pertencem a 8% do total de propriedades. Em termos populacionais

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apenas 2,67% eram proprietários, tendo em vista que naquele momento a principal atividade econômica era a agricultura, o poder econômico concentrado nas mãos destes pouquíssimos proprietários é muito grande. Assim se configurava a dependência dos 97% de pessoas da população em relação aos meios materiais. No contexto desta enorme concentração de riquezas e meios materiais de produção, os processos políticos/eleitorais ficavam completamente comprometidos. As campanhas eram caras, pois incluíam a remuneração de burocracias eleitorais, concessão de benefícios individuais aos eleitores, transporte, refeição, estadia nos dias de votação, documentação, etc. Somente os grande proprietários de terras poderiam vislumbrar empreender carreiras políticas bem sucedidas. O coronelismo era um sistema de reciprocidades que envolvia os trabalhadores, os proprietários, os homens públicos do executivo e do legislativo local e a situação dominante da esfera estadual cada qual com sua contribuição e seu benefício. De fato, os primeiros eram os menos privilegiados por tal sistema, de quem eram explorados a capacidade de trabalho e os votos. Os coronéis nem sempre eram detentores de grandes riquezas. O mais importante era manterem-se alinhados com a situação dominante e controlarem uma quantidade grande de votos para obterem vantagens pessoais e poder sobre cargos públicos. O sistema está baseado na estrutura social e econômica escravocrata, que mantém a pobreza e a ignorância do trabalhador. Sua condição de fragilidade frente ao mercado internacional de matérias-primas e gêneros alimentícios, aos quais estão submissos, obriga os proprietários de terras e a situação governista estadual a manterem intactas as estruturas mesquinhas de poder para ter de quem obter vantagens pessoais. No sistema de reciprocidades coronelista o amesquinhamento do processo eleitoral gera um resultado social perverso que mantém uma maioria de excluídos e uma política desprovida de ideais ou projetos autênticos para o país. 4.2. O Espaço Rural Hoje Hoje não é possível dizer que o coronelismo da forma como foi descrito por LEAL (1975) é realidade no Brasil. “O coronelismo, além disso, é datado historicamente”. Na verdade é possível traçar paralelos que ilustram posicionamentos e apontam caminhos para o desenvolvimento da nação brasileira, mas as conjunturas social, econômica e política estão significativamente diferentes. (CARVALHO, 1997, 2) “O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do coronel”. A desigualdade ainda é um fator estruturante muito forte na sociedade, mas as formas de ascensão estão mais difundidas. A população já se encontra em uma realidade urbana com um nível de informação superior. A economia brasileira está diversificada, dependente um pouco menos da agropecuária. A Constituição Federal de 1988 surge como marco legal para o forta-

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lecimento dos municípios nos sistemas de políticas públicas, à difusão de serviços públicos e à garantia de direitos aos cidadãos. Os municípios hoje gozam de ampla autonomia administrativa, jurídica e econômica para entrega de serviços públicos. (CARVALHO, 1997, 4) O que ainda existe no Brasil são desdobramentos deste sistema político, o coronelista, em atitudes e condutas políticas que ali estiveram presentes. José Murilo de Carvalho identifica o mandonismos como um destes tipos de permanência. Surgido desde o início da colonização, a figura do mandão é aquela que centraliza o controle de recursos estratégicos que aprisionam em seu poder a tutela de pessoas subordinadas a ele no campo econômico e político. “O mandonismo não é um sistema, é uma característica da política tradicional” (CARVALHO, 1997, 5). Com o desenvolvimento das cidades surge a prática política do clientelismo, cuja relação não se dá mais por intermédio o coronel. O governante busca apoio por meio de benefícios particularizados diretamente com seu eleitorado. Estabelece-se “um tipo de relação entre atores políticos que envolve concessão de benefícios públicos, na forma de empregos, benefícios fiscais, isenções, em troca de apoio político, sobretudo na forma de voto” (CARVALHO, 1997, 6). Com o advento da sociedade de massa, os mecanismos de clientelismo passam a ser utilizados para compor o apoio popular, configurando o que o autor chama de populismo. As quatro formas de conduta política (coronelismo, mandonismo, clientelismo e populismo) são danosas à democracia, pois são práticas que colocam o debate político dos rumos da coletividade em segundo plano, fazendo sobressair à força do dinheiro e do controle dos recursos estratégicos da sociedade. Nos quatro casos o poder público fica capturado por interesses privados. O enfrentamento a estes movimentos políticos está a cargo da garantia de direitos, em oposição à concessão de privilégios e de favores particulares. O atual sistema eleitoral prevê o financiamento de campanhas de origem privada, o que aumenta a força de interesses privados nas arenas políticas. Assim as corporações de gêneros alimentícios, as construtoras e os bancos conseguem emplacar suas demandas pela sua força econômica sem que os mecanismos de controle social tenham parâmetros de enfrentamento. O perfil apresentado por Leal (1975) sobre a estrutura agrária profundamente desigual do Brasil se mantém. Em 2006, os estabelecimentos de menos de 10 ha representam 47,0% do total de estabelecimentos, que correspondem a 2% do total de terras, enquanto os estabelecimentos com mais de 1000 ha correspondem a 0,91% do número total de estabelecimentos agropecuários e 44% do total de terras. (IBGE, 2006, 110) Ao mesmo tempo, nas cidades os bolsões de pobreza se concentram problemas e exclusão sociopolítica, é onde se barganham votos em troca de benefícios particulares. No censo 2010, o IBGE encontrou um quadro em que 2.162.368 pessoas da região metropolitana de São Paulo residem em aglomerados subnormais (categoria utilizada a partir de 1980 para abarcar a diversidade de assentamentos irregulares), ou 11% do total da população. É a maior população

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em situação de aglomerado subnormal no país. Nestas condições de ocupação humana a infraestrutura básica de abastecimento de água, cobertura de esgoto e coleta de lixo é oferecida de forma precária. A condição de vulnerabilidade é muito grande, em função da condição de insegurança fundiária, bem como, em relação a exposição a violência. Por se tratar de áreas de ocupação improvisada, o dimensionamento de serviços públicos como transporte, educação e saúde não ocorre de forma adequada e exclui um contingente enorme de pessoas. No campo ou nas cidades as desigualdades continuam ampliando o abismo entre pobres e ricos, favorecendo práticas políticas funestas que privatizam o Estado. 5. INCONOMIA: A FORMAÇÃO DO MODELO ECONOMICO DA AUTOSSUFICIÊNCIA O trabalho de Antonio Candido é muito significativo para o estudo da cultura caipira, definido por este autor como sendo o território que abrange a área de “influência histórica paulista” (CANDIDO, 1977, 22). O autor realiza sua investigação a partir dos meios de vida do caipira. Para compreender a cultura caipira na sua origem o autor dedica-se a: “buscar, nos documentos e viajantes do século XVIII e início do século XIX, referências e indícios sobre a vida do homem da roça; interrogar longamente, pelos anos afora, velhos caipiras de lugares isolados, a fim de alcançar por meio deles como era o “tempo dos antigos”. Combinando ambos, foi possível em muitos casos obter coincidências que asseguram a validade da reconstituição” (CANDIDO, 1977, 18). O autor identifica e analisa os vínculos sociais, as representações, os sistemas simbólicos, as tensão psíquica que emergem no cotidiano de obtenção e de preparação dos alimentos. Candido identifica que a cultura caipira se forma a partir o estabelecimento de um equilíbrio na equação entre necessidades e satisfação. Este equilíbrio é obtido por meio de dois ajustamentos: “1) o encontro de soluções que permitam explorar o meio fisco para obter recursos de subsistência; 2) o estabelecimento de uma organização social compatível com elas” (CANDIDO, 1977, 25). Tais ajustamentos encontram equilíbrio, desta forma, em um mínimo vital, referente à hábitos de alimentação e de abrigo, e em um mínimo social, referente à organização para obtenção e garantia de regularidade. Os elementos essenciais da economia caipira serão descritos como forma de entender detalhadamente os mínimos vital e social. A maioria silenciosa, que se encontrara no meio rural, conseguia “no máximo assegurar a sobrevivência, mas não o desenvolvimento” (SACHS, 2009, 335). É exatamente a condição de miséria que garante ao Jeca liberdade. Sua posse precária da terra lhe colocava em uma condição de itinerância permanente, influenciava a rusticidade dos hábitos de alimentação, de comunicação, de tecnologia, de produção e de lazer, foi reconhecido por Candido como miséria libertadora.

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Uma economia doméstica que garantia a desnecessidade do trabalho era obtida pelo equilíbrio vital e social. Inconomia não é desenvolvimento, mas é o suficiente para fazer o caipira feliz. 5.1. Preguiça como comportamento político A estranha loucura que guia as preferências e as atitudes de um contingente cada vez maior de pessoas que buscam seu espaço individualizado na sociedade industrial. Assim identifica Paul Lafargue, em 1880, como sendo o vício doentio e mortal pelo trabalho. A moral do homem industrial é guiada pelo prazer do acúmulo e do desperdício. Escravizados pela paixão ao trabalho, o homem industrial se torna voluntariamente mercadoria descartável. Aritmética monetária que calcula a importância das coisas no universo do consumo não reconhece o valor da indústria doméstica, da desnecessidade do trabalho, das relações vicinais, da adaptação aos recursos locais, do equilíbrio biossocial, da rusticidade e da simplicidade identificados por Candido como elementos da cultura caipira típica. O comportamento social que surgiu a partir das condições existentes no momento da formação da cultura caipira foi negativamente valorizado pela cultura exótica. Segundo Betânia Gonçalves Figueiredo, o ócio passa a cumprir a requisitos de produtividade e a preguiça recebe uma carga pejorativa. Alguém que não compactue com a nova forma produtivista de calcular o tempo e a importância da vida é condenado por vadiagem. A pouca importância dada ao trabalho pelo caboclo foi identificada por Candido (1977) como “desnecessidade do trabalho”. Este comportamento foi retratado no Jeca como preguiça. A precariedade fundiária e financeira na qual se estruturou a cultura caipira oferecia sempre ao caboclo a opção de migrar. A miséria a que o caipira estava submetido lhe permitia a liberdade de quem está à margem do sistema de produção econômica internacional. Por força desta condição de miséria as relações de vizinhança eram vitais para manutenção do mínimo necessário a vida e a sociabilidade. 6. MITO DO CAIPIRA SEM LUGAR Jeca Tatu é um dos personagens criados por Monteiro Lobato na crônica “Velha praga”, publicada no jornal Estado de São Paulo em 12/11/1914, ao lado de Manoel Peroba e Chico Marimbondo. Mais tarde, 23/12/1914, o personagem ganharia destaque e densidade no conto Urupês, publicado no mesmo jornal, a “velha praga” ainda infesta interior de São Paulo de cócoras, indolente, tocando fogo no mato, vendendo o voto. A obra de Lobato inspira Amácio Mazzaropi não somente nas referências mais evidentes do nome do personagem e dos conteúdos. Os temas iniciados por Lobato permanecem: o sistema político, as desigualdades, a condição de vida no campo, os cenários, a religiosidade e a preguiça. A preocupação com a formação da indústria cultural nacional também é uma constante. A

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identidade taubatiana lhes tornavam compadres até na precariedade do reconhecimento de sua obra. Para ambos caipiras, Monteiro e Mazzaropi, o sucesso que obtinham com o público consumidor de suas obras eram desproporcionais em relação ao precário reconhecimento conferido pelos circuitos artísticos contemporâneos a suas obras. Da mesma forma que Lobato era deslegitimado enquanto vanguarda no meio artístico e intelectual frente ao grupo modernista, o movimento chamado de Cinema Novo fazia com Mazzaropi. Ainda que Lobato e Mazzaropi tivessem suas obras amplamente acessada pelo público, nos circuitos elitizados da arte e da academia eles eram excluídos por ausência de doutrina e erudição. Em 1959 Mazzaropi produz Jeca Tatu, fita lançada nos cinemas somente em 1960, onde ele explicita as referências a Lobato nos crédito iniciais da película. O personagem vivencia o processo de concentração de propriedades rurais ocorrido no interior de São Paulo, que está fortemente vinculado ao processo de imigração de mão de obra assalariada europeia. Ele se vê vitimado pela necessidade de entregar suas terras no estabelecimento comercial onde adquire alimentos, uma vez que ele estava sempre com preguiça, não conseguia garantir no trabalho da terra o sustento da família. Após ter sido coagido pelo dono do estabelecimento comercial, que estava a serviço de seu vizinho italiano, a entregar suas terras, Jeca vai a São Paulo encontrar do candidato a deputado. O estranhamento do caipira frente às coisas da cidade grande é motivo de anedotas e gera um forte sentimento de identificação com o público. O “disputado”, como diz Jeca, faz dele cabo eleitoral. Com a expressiva votação garantida por ele, Jeca, se torna coronel proprietário de terras e gentes. Na sequência de encerramento do longa-metragem Jeca canta as mudanças de sua vida: para sobreviver no campo ele se torna proprietário de terras e agora desfruta dos privilégios de um coronel para viver sua preguiça. Sorridente ele deixa de ser Jeca, agora até sua galinha anda bem vestida. A preguiça, que no início do filme o colocara em situação vulnerável, converteu as adversidades em vantagens e privilégios. Mazzaropi entendeu, como poucos no cinema, o significado da oposição silenciosa, a resistência cultural que o povo brasileiro sabe fazer como nenhum outro povo, que foi tradicionalmente confundida pelos detentores dos meios de produção como indolência, vagabundagem ou malandragem. (BARSALINI, 2002, 97) Enquanto a população do Brasil tornava-se predominantemente urbana, devido ao enorme processo de êxodo rural, Mazzaropi levava multidões aos cinemas para assistir ao drama cômico da vida rural. O enredo, os cenários, os figurinos, a linguagem, as trilhas sonoras, tudo remetia ao seu passado rural e dava sobrevida às referências que iam sendo passadas às novas gerações nascidas no meio urbano. O cineasta opera um processo de urbanização do caipira, ou de caipirização do operário. Ele faz um esforço muito interessante de sincretismo cultural, que extrai a essência do caipira e o funde aos novos processos sociais e econômicos de seu tempo.

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Duas características podem ser identificadas como sendo o extrato do caipira diante do novo contexto histórico: o comportamento indolente, desinteressado, preguiçoso; e a sociabilidade entre pares, solidariedade. Barsalini (2002) destaca que o trabalhador que chegava à cidade resistiu ao trabalho disciplinado, ainda que em condições precárias, por meio dos empregos temporários, abertura do próprio negócio, privilegiando o emprego em pequenas fábricas onde a proximidade interpessoal tornava o ambiente mais humanizado, beirando o paternalismo. Este trabalhador também buscava reunir-se em comunidades mais ou menos homogêneas culturalmente, onde podia retornar às origens, empregar sua tecnologia adaptativa e compartilhar o auxílio mutuo. O Jeca é protagonista de lutas épicas entre mandatários que se apossaram do controle do país (que fizeram do espaço público a extensão do espaço privado) e homens e mulheres simples que vivem suas vidas no conforto da solidariedade comunitária (que fizeram do espaço privado um canal de fruição de uso bens públicos). O Jeca é um personagem que é, se sempre foi, retirado do seu lugar, não apenas do ponto de vista territorial, mas também seu lugar de poder, de sociabilidade e de condição de subsistência. O Jeca entra e sai da modernidade, por meio das obras artísticas, levando consigo o universo simbólico e a referência idílica ao universo rural, ligada ao modo de vida simples integrado à natureza e sustentado pelo meio social. O personagem é ícone do processo de urbanização e de globalização. Os artistas que o animaram mantiveram constante sua vocação para crítica socioambiental e engajamento político. 7. CONCLUSÃO O Ponto de Cultura Jeca Tatu apropriou-se da discussão promovida no meio acadêmico sobre ruralidade e pelas obra de Mazzaropi para fazer junto com os cidadãos susanenses que atende uma transformação significativa nos sentidos e usos da cidade. Destaco três eixos de mudanças: o território, a relação com o trabalho e o processo eleitoral. A Rua Jeca Tatu era somente um nome de rua para os moradores do Vila Urupês, que a partir da ação cultural do Ponto de Cultura passaram e compreender o legado que este nome traz. O território urbano em constante mudança, com perda de cobertura verde e crescimento desordenado, passa a ser um ponto de debate em que as pessoas percebem seu afastamento do meio natural. Trabalho e renda também passa a ser reinterpretada por meio das referencias trazidas pelo Jeca Tatu. As comunidades locais começam a se organizar para diminuir a dependência e cooperar para promoção de serviços essenciais. O processo eleitoral, sempre visto como um momento de opressão desinteressante, passa a receber um novo elemento de busca de alternativas aos velhos hábitos de troca de privilégios por votos. Discutir os mecanismos de perpetuação do coronelismo promoveu uma nova orientação para as pessoas no momento de entregar seu voto.

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A ação cultural atinge as pessoas com muita potencia, uma vez que as relações são mais afetivas e lúdicas. Os conteúdos são transmitidos de modo mais dinâmico e gera impactos profundos capazes de alterar o cotidiano e os significados nas pessoas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, H. F. I. & FROEHLICH, J. M. (2007). Novas identidades, novos territórios – mobilizando os recursos culturais para o desenvolvimento territorial. Revista Extensão Rural, DEAER/CPGExR – CCR – UFSM, 14 (4), 65-90. BARSALINI, Glauco. Mazzaropi: o Jeca do Brasil. Campinas. Átomo, 2002. CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 2001. CARVALHO, J. M. (1997). Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. [em linha]. Dados. Acedido Junho, 12, 2011, em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm=iso. FEYRABEND, Paul. Contra o Método. Trad: MOTA, Octanny S., HEGENBERG, Leonidas. Rio de Janeiro: Franscico Alves, 1978. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2006) Censo Agropecuário. [em linha] IBGE. Acedido Junho, 12, 2011, em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/2006/agropecuario.pdf LAFARGUE, P. (2003). Direito a preguiça. Tradução de Otto Lamy de Correa. São Paulo: Claridade. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1976. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Trad. Maria Gabriela de Bragança, Maria da Graça Pinhão -- Mem Martins : Publicações Europa-América, 1990. OLIVA, Alberto. Epistemologia: a cientificidade em questão. Campinas: Papirus, 1990. QUEIROZ, R. S.; PEREIRA, João Baptista Borges . Por onde anda o Jeca Tatu? . São Paulo: Revista USP, v. 64, p. 6-13, 2004. SACHS, Ignacy. A terceira margem: em busca do ecodesenvolvimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SEVCENKO, N. (1992). Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras. VEIGA, José Eli. (1948) Desenvolvimento sutentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. VEIGA, José Eli. Cidades Imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Autores Associados, 2002. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Trad: HEGENBERG, Leonidas e MOTA, Octani Silveira. São Paulo: Cultrix, 2007. 1778

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QUEM GOVERNA? TRAJETÓRIA DAS POLITICAS CULTURAIS E SEUS PROCESSOS DECISÓRIOS NO FINANCIAMENTO DA CULTURA Raquel Moreira1 RESUMO: A partir de pesquisa em andamento sobre financiamento da Cultura no Brasil, cujo objeto de análise é o PROCULTURA - PL 6722/2010, atual PLC nº 93/2014, o presente artigo é uma discussão preliminar sobre os processos decisórios nas políticas culturais para alocação de recursos e suas variáveis: atores, instituições, visões e perspectivas. Aqui, traçamos um breve percurso no biênio 2008-2010, período onde o tema torna-se mais intenso no debate público, e fazemos digressões até o momento atual, enfatizando os momentos-chave de decisão: a “formação da agenda” e a “formulação de políticas”. Daí, seguimos problematizando os contornos da proposta do PROCULTURA onde dialogamos com alguns autores que refletem sobre o processo de tessitura de políticas públicas. Se há alguma certeza neste horizonte é que as arenas e o debate estão postos e em pleno vigor, cuja duração ainda não se pode prever e isto só reforça o quão é complexa a “tomada de decisão” no jogo político, levando-nos a indagar se a postura do Estado é reproduzir velhos modelos ou efetivar políticas mais universalistas e participativas. PALAVRAS-CHAVE: Procultura; processos decisórios; financiamento; políticas públicas.

1. CONSIDERAÇOES INICIAIS O processo decisório é um elemento essencial no ambiente das organizações e busca dar resposta a um problema, em que para gerar os melhores resultados, alternativas são apresentadas com vistas a soluções a demandas identificadas. No entanto este processo se dá desafiando inúmeras variáveis e ambiente de incertezas especialmente quando lida com temas de interesse público e opta-se por um processo de participação ativa, como é o caso da discussão de um novo paradigma de financiamento da Cultura no Brasil, uma vez que, desde 2008 o Projeto de Lei PL 6722/2010 A – o PROCULTURA, hoje no Senado como PLC nº 93 de 2014, vem passando por inúmeros debates na sociedade civil, no Congresso Nacional e Ministério da Cultura. Junto com outros instrumentos legais que visam o fomento à Cultura e que também aguardam decisão Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da PPGCP-UFF e Bolsista-pesquisadora na Fundação Casa de Rui Barbosa. Docente na Graduação em Produção Cultural UFF/Rio das Ostras. E-mail: [email protected].

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em seu processo de tessitura - a PEC 150/20032 – agora PEC 421/2014 e a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura – SNC - neste artigo cotejamos com estes documentos para compor nossa reflexão. Assim, questões como quem decide? O que decide? E quais os impactos desta decisão? vêm à tona e suscita reflexão sobre como são formadas as arenas de decisão e coalizões e quais os interesses em jogo: fatores que permeiam este processo e podem sinalizar as perspectivas e desafios desta nova política de financiamento da Cultura, num momento em que a concentração da riqueza e a desigualdade cada vez mais ganham corpo nas pautas governamentais em diversos campos da política pública. O título deste artigo se justifica a partir de duas obras de Robert Dahl “Who Governs? Democracy and Power in an American City” (1961) que discute sobre quem influencia e dirige a política e “Sobre a Democracia” (1974), acerca da democracia e da desigualdade: sendo a igualdade de condições no acesso à riqueza e a participação política suas principais premissas. Assim, se olharmos ao campo das políticas culturais, estas ideias poderiam nos levar a perguntar: quem decide e como decidem os fluxos de recursos para as políticas culturais? Quem são os atores (protagonistas ou não) e suas visões? Buscando elucidar algumas destas questões a pesquisa que está em andamento, examina a participação dos atores e as apropriações e significados dados por eles no processo decisório de alocação de recursos para a Cultura. Nela, nosso esforço enfatiza o modo pelo qual atores tomam decisão, levando-se em conta também o papel das instituições sobre suas ações. Para este artigo fazemos uma discussão preliminar e apresentamos algumas digressões acerca do cenário da tomada de decisão em politicas publicas de Cultura, com especificidade para o período de 2008-10, e os contornos destes momentos, dialogando com autores de políticas públicas e identificando alguns dos atores do período. 2. PERCURSOS PARA UMA DECISÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS Tomando como recurso de análise o modelo do Ciclo das Políticas Públicas3 - que pode nos auxiliar na compreensão da formação das políticas públicas de cultura – ao analisar o processo de desenho das políticas de financiamento público da Cultura ora em curso, notam-se momentos chaves onde interesses diversos e entraves são postos em jogo. Ora, ao considerarmos a PEC 150/2003 – A Proposta de Emenda à Constituição que estabelece um piso mínimo de 2% do orçamento federal; 1,5% do orçamento estadual e 1% do orçamento municipal para a Cultura.Os percentuais seão oriundos da arrecadação de impostos de cada ente federado. 3 Modelo, segundo o qual as políticas públicas são vistas como um “processo” feito em etapas a partir de um conjunto de atividades para atender as demandas e interesse da sociedade, o que envolve decisões e ações tomadas. As etapas são: Preparação da decisão (enfrentamento do problema/questão); Formação da Agenda (agenda setting – seleção das prioridades); formulação das políticas (Apresentação de Soluções ou Alternativas); Tomada de decisão (escolha das ações-acomodação das prioridades e interesses: aprovação de leis, decretos, regulação); implementação (execução do planejamento: uso dos recursos tais como: estrutura, financeiro, liderança, atores e agencias) monitoramento e avaliação. 2

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premissa de que uma política pública tem uma trajetória em que variáveis perpassam este ciclo nas quais se destacam os grupos de interesse e as coalizões de apoio ou oposição, nesta pesquisa enfatizamos a análise do momento chave de formação da agenda, formulação e tomada de decisão desta política pública. Assim, buscamos tencionar as práticas e visões dos atores envolvidos, visões estas que podem ou não estar contidas nestes três momentos-chave. É olhar o PROCULTURA sob a lente de suas possibilidades, vislumbrando quais perspectivas futuras poderá ter o financiamento da Cultura no país. Kingdon (1995) argumenta que a partir da “combinação” de fatores pode-se empreender e viabilizar uma determinada policy4 e tornar viável sua ascensão no Ciclo de Políticas Pública. Os fatores segundo o autor são: (1) fluxo político e a formação de uma agenda pública (2) ideias, associada à força de uma (3) liderança política, (4) um problema - elementos estes que combinados criam condições para o “jogo” de disputas e também de consensos. Ora, observando a trajetória das políticas culturais e em especifico do financiamento público da Cultura no Brasil, o que nos parece, seguindo as pistas de Kingdon, é que a combinação de algumas variáveis no processo da constituição das políticas públicas foram possivelmente elementos decisivos para que mudanças fossem introduzidas e aos poucos influenciassem na proposição do PROCULTURA, e antes disso, o redesenho de algumas práticas de alocação de recursos a partir de 2003 dentro do MINC - Ministério da Cultura, embora com algumas críticas, a exemplo dos editais que seriam considerados uma “política de balcão”. Assim apontaríamos quatro variáveis que consideraríamos determinantes: o contexto político institucional a partir de 2003 (política); o conceito de Cultura ampliado e associado à diversidade e ao desenvolvimento (Ideias); novas lideranças na figura de Lula, Gil e Juca/modelo participativo (liderança); e as pressões e demandas por alterações na Lei Rouanet (problemas). Ao mesmo tempo, o contraponto disto é o surgimento de diversos grupos de interesse e a formação de coalizões que trazem novos atores em cena (SADER, 1988) e novos elementos ao debate, tencionando ainda mais o assunto e a trajetória desta policy. Vale destacar que o PROCULTURA passa hoje exatamente pelo momento do Ciclo das Políticas Públicas da “tomada de decisão”, ou seja, momento em que uma demanda ou problema, após passar a ser alvo das prioridades do Governo, recebe esforços para a busca de soluções de implementação. Lembrando que a partir de 2008-09 o PROCULTURA, antes chamado de PROFIC, passou por um período de debate no âmbito do movimento cultural juntamente com o MINC, em 19 capitais do país e em seguida teve apreciação pela Casa Civil que o analisou visando envio ao Congresso Nacional para análise. Após uma consulta pública realizada em 2009, o documento torna-se um Projeto de Lei PL 6722/2010-A e à época vai à apreciação na Câmara Federal que analisa sua propriedade e contornos. Antes disso, diversas iniciativas de teor seme Termo usado do Inglês: policy (singular); policies (plural) = políticas públicas.

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lhante visando à descentralização da distribuição de recurso para Cultura foram apresentadas dentro da Câmara Federal como o PL. 1139/2007, seguido de outras proposições cuja maioria as propostas foram contemplas no substitutivo do atual PL 6722/2010-A do deputado Pedro Eugênio. Recentemente o PL foi para o Senado (agora com nome de Projeto de Lei da Câmara – PLC 93/2014) e se aprovado irá para presidência da República para sanção. Do contrário, retorna a Câmara para novas discussões. Note-se que neste ínterim - 2007/2010 - as rotinas de análise de projetos pela Lei Rouanet/PRONAC – Programa Nacional de Incentivo a Cultura pela CNIC – Comissão Nacional de Incentivo a Cultura, que avalia os projetos para receberem benefícios da Lei Rouanet/PRONAC, ocorrem normalmente como sempre. No entanto, nestas rotinas, situações recorrentes causaram polêmica e alvo de críticas tanto do Ministério da Cultura – MINC, quanto do setor artístico sobre projetos que poderíamos considerar “menos aderentes” (grifo meu) ao interesse público, muito embora esteja entre os preceitos de atuação da CNIC a imparcialidade e a avaliação isenta de julgamento estético e subjetivo. Foi o caso do Circo du Solei (2006) e o Rock in Rio – (2011) e agora o caso do projeto de livro autobiográfico da cantora Claudia Leite e que culminou na recente decisão do TCU – Tribunal de Contas da União (de 04/02/2015). A proibição ao Ministério da Cultura aprovar pela Lei Rouanet, projetos com fins lucrativos e autossustentáveis e que segundo o Tribunal, “não vislumbra interesse público para justificar a renúncia fiscal de um projeto com alto potencial lucrativo”, argumento que o Ministro Juca Ferreira complementa concordando: “a Lei Rouanet transgride o princípio do interesse público” 5. No entanto o assunto está em debate já que a Lei permite projetos como os acima citados e isto é o cerne que norteia o debate em torno da mudança da Lei Rouanet. Deste ocorrido surgem outras indagações sobre os fins dos recursos da renúncia fiscal: teriam eles natureza pública ou não? Esta questão nos parece um bom exercício de análise para perceber que lados opostos se posicionam aqueles que querem as mudanças no modelo de financiamento e os que preferem manter o atual formato. De tal forma, que argumentos que definem a renúncia fiscal como recursos “não públicos” estão parte dos discursos dos defensores da manutenção do modelo em vigor de financiamento da Cultura. Além disso, há uma polarização entre aqueles que defendem a universalização do acesso, e por isso a reforma da Lei Rouanet/ PRONAC e aqueles que, temendo a fuga dos investimentos das empresas (protagonistas do atual modelo de financiamento da Cultura), defendem manter o que está posto: onde a concentração e baixo alcance do interesse público predominam, ampliando desigualdades e deixando cada vez mais longe a desejada democratização do acesso a Cultura. ÉBOLI, Evandro. “TCU decide que Lei Rouanet não pode ser aplicada em projetos lucrativos”. O Globo. 04/02/2016 13:39 / Atualizado 04/02/2016 18:34. Acesso em 07/02/2016. Disponível em: http://oglobo.globo.com/ cultura/tcu-decide-que-lei-rouanet-nao-pode-ser-aplicada-em-projetos-lucrativos-18608155

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A decisão do TCU embora aceita pelo MINC, pois legitima os esforços do Ministério, nos parece que ao mesmo tempo também o expõe já que o uso do FNC tem sido questionado sobre sua forma de utilização: segundo críticos, estaria fugindo de sua finalidade original já parte dos recursos custeiam projetos e programas do próprio Ministério e suas vinculadas (MIGUEZ, 2015). A crítica é que “o FNC foi idealizado como um mecanismo de apoio a projetos culturais da sociedade, por meio de editais de seleção pública, mas isso nem sempre acontece” (IBDEM, 2015, p. 5). Para o Presidente da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR) Eduardo Barata que faz duras críticas ao Ministério “[...] o Fundo Nacional de Cultura é um cheque em branco na mão do Ministro e de difícil transparência. Por que não aproveitarmos o momento para dar visibilidade ao destino desta verba? [...]”. E prossegue: [...] a Rouanet continua intacta, com distorções que podem e devem ser corrigidas, porém, para isso não é necessário acabar com uma lei blindada pelas oscilações administrativas e financeiras de governos. A “decisão é política” e pediu mais transparente ao MINC [...]6. Ora, este debate está longe de se concluir e questionamos se não seria o caso de necessitar maior clareza e distinção da noção de bem público7 e sua finalidade, bem como o entendimento da Cultura como direito a ser garantido pelo Estado (art. 215 da CF88). As questões levantadas por estes atores são pertinentes e vale observá-las com atenção, no entanto, entendemos que no debate deve-se reindicar maior aprofundamento sobre “coisa pública” e seus fins. Por esta perspectiva, se considerarmos que a renúncia fiscal traz a conotação de uma atuação do Estado - ainda que indireta, já que abre mão de arrecadar visando um benefício público - então os recursos disponíveis via renúncia (hoje, cerca de 1 bilhão de reais de renúncia, contra trezentos milhões de reais de orçamento do Fundo Nacional de Cultura) devem, ao menos em tese, servir para a finalidade pública. 3. O FINANCIAMENTO DA CULTURA E SEUS CONTORNOS Já é notório que o modelo em vigor de financiamento da Cultura, a Lei Rouanet/ PRONAC vem sofrendo um desgaste político e institucional nos últimos 25 anos, pois na prática não atende aos objetivos das políticas culturais no contexto atual e o diagnóstico é desolador. Numa perspectiva contemporânea de financiamento da Cultura no Brasil, a ênfase nos preceitos democratizantes e na diversidade cultural deveria ser a tônica para a tomada de decisão sobre o acesso aos recursos, baseado na equidade e no pluralismo das iniciativas culturais, independente de seu porte, origem ou proposta estética, operando numa visão para além dos editais e incentivos 6 Idem a nota de rodapé 5. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/produtores-reagem-declaracao-de-juca-ferreira-sobre-rouanet-18611151. Acesso em 07/02/2016. 7 Para Azambuja Darcy (2008, p. 145) [...] “bem público é conjunto de meios que uma sociedade politicamente organizada possui com a finalidade de oferecer aos indivíduos e constitui-se do patrimônio comum e reservatório da comunidade tendo em vista a satisfação dos seus membros. Ex: segurança, ambiente de paz, trabalho” [...], etc.

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fiscais, instrumentos fortemente utilizados no país e onde inúmeras distorções são identificadas. Mas esta não é a realidade! O que se verifica é uma demanda crescente por equidade nas formas de alocação dos recursos dado que a concentração destes recursos ainda é um problema grave reforçando uma lógica que está longe de ser equilibrada nos termos atuais. A Lei Rouanet/ PRONAC é composta por três mecanismos de apoio: O FICART que não esta em vigor; o Fundo Nacional de Cultura (FNC), recursos destinados exclusivamente à execução de programas, projetos ou ações culturais que têm afinidade com as políticas culturais previstas no Plano Nacional de Cultura; e o Incentivo Fiscal (Mecenato), recursos oriundos do mercado e atualmente a maior fatia é colocada em projetos de interesse das empresas patrocinadoras em troca de vantagens de publicidade, retorno de imagem, etc. Este último é o mecanismo mais utilizado e o crescimento dos recursos do incentivo fiscal possui trajetória ascendente, inversamente proporcional ao do FNC, que manteve seu montante mais estável chegando “em 2013 a ser o incentivo fiscal 14,6 vezes maior que o recurso movimentado pelo Fundo Nacional de Cultura” (MIGUEZ, 2015, p. 3). Pela LOA - Lei Orçamentária Anual, para 2013 o FNC teve cerca de R$ 370 milhões e o montante para o incentivo fiscal numa ordem de R$ 1,7 bilhão. Argumenta-se que a lógica baseada nos incentivos fiscais é limitada e cria dependências, e o governo deveria utilizar outras formas de repasse de recursos, como as transferências automáticas fundo a fundo a exemplo do que ocorre no SUAS – Sistema Único de Assistência Social e no SUS – Sistema Único de Saúde, exemplos que diferem do atual modus operandi do MINC onde os recursos são transferidos via convênios por editais e que segundo Miguez, são meios frágeis. O contrário são as transferências automáticas que trazem regularidade no repasse dos recursos e execução dos planos e programas de Cultura dos entes federados, o que pode ser resolvido com a aprovação do SNC – Sistema Nacional de Cultura. Vale destacar que ainda assim a distribuição com finalidade pública dos recursos podem não garantir a equidade almejada, haja vista que a exemplo do SUS também tem seus problemas de apropriação privada de recursos públicos8 e no caso da Cultura carece de rever este formato. O que percebemos neste contexto é que além dos incentivos fiscais, o financiamento da Cultura pode se valer de outras formas e fontes de recursos que comporia uma espécie de “constelação” de mecanismos e que sairia da lógica depende de incentivos fiscais, que deixariam de ser os protagonistas, mantendo sua finalidade. No próprio PL 6722/2010-A, o PROCULTURA são propostas diversas alternativas de formas de financiamento por meio de empréstimos sub-sidiados ou de investimentos via fundos e que seriam viabilizados por bancos em parceria com STEVANIM Luiz Felipe “O que está por trás da renúncia fiscal”. Revista RADIS [online] nº 150, março 2015. Rio de Janeiro. FIOCRUZ. 2015. Disponível em : http://plataformapoliticasocial.com.br/o-que-esta-por-tras-de-renuncia-e-desoneracao-fiscal/. Acesso em 07/02/2016. 8

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poder público, além do estímulo a novas formas de mobilização de recursos como o crowndfunding e o endowment9. No PROCULTURA, nos Art. 18 e 19, propõe-se que para além de fortalecimento do FNC com recursos da renúncia fiscal, parte deste dinheiro deverá ir obrigatoriamente para os estados e municípios. No Capítulo III do PL 6722/2010 do PROCULTURA, define-se que do FNC no mínimo 10% deverá ir para cada região do país, Estado e o Distrito Federal que receberão no mínimo o mesmo percentual de sua população em relação à população brasileira, limitado a 2%. Já no Art. 19, ainda reforça-se que pelo menos 30% de recursos do FNC deverá ser destinado por meio de transferência direta, a fundos públicos de Municípios, Estados e do Distrito Federal o que só reitera o estímulo aos entes federados em implementar seus órgãos constitutivos do SNC – Sistema Nacional de Cultura: O Fundo de Cultura; O Plano de Cultura; o Órgão Colegiado etc., oficialmente instituídos para gestão. Muito embora este tema esteja atrelado à aprovação do PROCULTURA e, por conseguinte atrelado à renúncia fiscal, o Art. 19 do PL 6722/2010-A é uma estímulo à composição de mais um elemento da constelação de fontes de recursos: o Sistema Nacional de Cultura - SNC. Outro elemento desta “constelação” é a PEC 150/2003, assunto que perdura no Congresso Nacional a mais de 12 anos e hoje, renomeada de PEC 421/2014. A PEC propõe que sejam previstos no orçamento dos entes federados recursos para a Cultura em: 2% da receita resultante de impostos, 1,5% das receitas de impostos estaduais e do Distrito Federal e 1% das receitas dos impostos municipais. Ou seja, com a aprovação da PEC 421/2014, que garante orçamento; a regulamentação do SNC e o PROCULTURA - ambos ampliam as fontes de repasse fundo a fundo, o cenário parece-nos mais otimista. Embora seja sabido que no Brasil há leis que “pegam e que não pegam” a pressão pela efetivação destes instrumentos é a chave para que o financiamento da Cultura deixe de ser mais uma “agenda governamental”, para ser uma “agenda de decisão”. Assim podemos vislumbrar uma perspectiva de mais empoderamento e menos dependência das decisões do mercado que o incentivo fiscal traz, mantendo este como uma parte entre as fontes que se complementariam de forma sistêmica. Desta forma, nos indagamos: seria o caso manter a lógica atual mesmo num formato “renovado” (PROCULTURA, substituindo de PRONAC/ Lei Rouanet) onde os incentivos fiscais são instrumentos protagonistas reproduzidos de uma economia conservadora? Ou empoderar outras fontes de recursos de caráter duradouro, mais universalista e participativo? O que podemos dizer deste processo é que elementos e variáveis estariam demarcados alguns pontos nevrálgicos Endowment: espécie de fundo de reserva feito a partir de recursos doados: são fundos de doações dedutíveis para os doadores, são frequentemente utilizados por organizações sem fins lucrativos, universidades, hospitais e igrejas. Crowdfunding: Obtenção de capital para iniciativas de interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa.

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que faz do PROCULTURA mais um projeto de lei que segue lentamente no legislativo buscando um lugar na agenda de decisão das políticas prioritárias do Estado. A proposta do PROCULTURA, em sua atual versão, se destaca por propor entre outros aspectos por (1) maior detalhamento dos critérios e pontuações para avaliação dos projetos culturais apresentados e destinação de faixas de deduções fiscais; (2) revisão das competências da CNIC; (3) a diversificação de fontes de recurso (Art. 31); (4) a revisão do teto da renúncia fiscal com fortalecimento do FNC; e a (5) territorialização e desconcentração da aplicação dos recursos (Art. 29), este último a nosso ver, um ponto inovador que propõe destino dos recursos para regiões com especificidades socioculturais, faltando pormenorizar como serão desenhados os critérios para este fim sem ferir o principio da equidade ou discriminar as regiões. Ao mesmo tempo, o PROCULTURA possui pontos nevrálgicos e por vezes polêmicos ainda não resolvidos nos debates nem no processo de apreciação do PL 6722/2010. É o caso do item sobre o fortalecimento do FNC que lançaria mão de parte da renúncia fiscal, e que tem reforçado a divisão de opinião já que reduzir de 100% para 80% o teto de renúncia permitida a empresas que investem em projetos, possivelmente “não solucione a concentração de recursos e ainda pode “pulverizar os recursos”10. Outro ponto delicado e que não foi alterado no PL é a não inserção de empresas de lucro presumido, pois o PL prevê apenas as empresas de lucro real. Acredita-se que contemplar aquelas poderia se alcançar as produções de pequeno porte em qualquer região do país contribuindo para a descentralização e estimulando participação do empresariado local das cidades onde não há grandes empresas. Isto possivelmente contribuiria para a desconcentração dos recursos e ao próprio desenvolvimento cultural das regiões em suas especificidades. Ademais, as críticas que recaem hoje sobre o PL 6722/201-A são recorrentes quanto ao aspecto pouco democrático em alguns pontos do Projeto de Lei. Tendo na historia dos pais uma relação tutelada do Estado, ou mais recentemente, com a ditadura militar, isto recai numa forte resistência dos grupos organizados do setor, quanto a certas incursões do Estado na Cultura. É o caso do pedido do Senador Álvaro Dias que pede suprimir os artigos 29 e 30 do PLC nº 93 de 2014 (nome atual do PROCULTURA no Senado), justificando que a proposta de manejo de recursos oriundos dos Incentivos fiscais em projetos culturais para implementar os “territórios prioritários” (Art. 29, do PL 6722/2010-A), pode implicar em “tratamento discriminatório entre regiões e pulverizar as fontes de recursos alocadas que beneficiam indistintamente a todas as regiões” 11. O Senador ainda apresenta outras duas emendas que destaco aqui uma delas onde Cristina Tardáguila. “Especialistas recebem com apreensão proposta de Juca Ferreira sobre Lei Rouanet”. O Globo. 07/02/2016. 6:00. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/especialistas-recebem-com-apreensao-proposta-de-juca-ferreira-sobre-lei-rouanet-15268567. Acesso em 07/02/2016. 11 BRASIL. Senado Federal. Projeto De Lei Da Câmara nº 93, de 2014, que Institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura) [...]. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/118946. Acesso em: 07/02/2016. OBS: Visualizar em “emendas”. 10

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propõe supressão do art. 18 do PLC nº 93, de 2014, que trata de distribuir os recursos do FNC considerando as diversidades regionais e os indicadores sociais, econômicos, demográficos e culturais. Segundo o Senador, “criar quotas fixas de investimento regional só dará ensejo a ineficiências, senão a distorções [...]”. [...] Afirma-se incontroverso que quaisquer medidas que venham impor uma limitação no mercado, ou segregar relações de mercado por critérios que induzem distinções ou discriminações artificiosas entre os atores que dele participam, afetam diretamente o princípio constitucional de livre iniciativa. [...] o mais lógico fosse concluir que as disparidades regionais, refletem, antes de qualquer coisa, questões estruturais do País [...]. Ainda sobre a utilização do FNC é o que trata o depoimento dos senadores Antônio Anastasia (PSDB-MG) em sessão de audiência pública no Senado Federal12, de 28/4/15, na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. O Senador propôs uma “solução provisória” onde já começasse de dentro e casa: as Estatais poderiam fazer os patrocínios por meio da Lei Rouanet “em valor proporcional à população de cada um dos estados e acrescenta. Nem precisa de lei para isso, basta um ato interno, com participação do ministério”. Segundo o atual Secretário de Fomento a Cultura no MINC, Carlos Paiva, em entrevista concedida para nossa pesquisa13, hoje o Ministério tem se dedicado a aprimorar a versão atual do PL e já vê algumas questões para aperfeiçoar o texto do Projeto de Lei. Para ele o PROCULTURA tem muito que contribuir com a mudança de paradigma do atual modelo de financiamento, mas admite: “na tentativa de acolher as inúmeras demandas e sugestões enviadas de diversas origens (artistas, produtores, entidades, empresas, etc.), o texto final traz aspectos que devem ser revistos, pois corre o risco de ser uma colcha de retalho” e por isso, necessita de uma leitura mais cuidadosa na sua forma, sobre itens que não se aplicam ou não seriam passíveis de operacionalização. Depois da releitura a ser feita pelo MINC, o texto deve ser avaliado em complemento ao que já se encontra no Senado. Além disso, há um esforço de melhorar a operação do que hoje é o funcionamento da Lei Rouanet: desde 2005 e mais recentemente com a consulta pública realizada em novembro de 2015, de ajuste à Instrução Normativa NI nº 1 - que estabelece procedimentos para apresentação, recebimento, análise, aprovação, execução, acompanhamento e prestação de contas de propostas culturais, relativos ao mecanismo de incentivos fiscais do Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac. Enfim, frente a estas questões, ainda que se defenda a equidade nas formas de distribuição de recursos para a Cultura, onde a lógica é de mercado, o que nos parece é que desde 2008, alguns pontos do PL 6722/2010-A, como mexer na renúncia fiscal, é ainda delicado e principal ponto polêmico. Isto se agrava quando as críticas sobre o uso do FNC vêm à tona. Não por Audiência pública de 28 de abril de 2015, na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. Entrevista realizada em 02/02/2016, via Skype. VER: www.cultura.gov.br/agenda-sefic1

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acaso, o período de 2008-10 os debates se aqueceram e este tema voltou à cena destacando-se como um item caro aos artistas e realizadores na viabilidade dos projetos culturais: Um ponto nevrálgico no processo decisório. Por esta razão, o Ministério precisará demonstrar coerências em suas práticas e observá-las dentro da sua própria estrutura sobre, por exemplo, maior transparência nos editais e chamadas públicas e o aprimoramento das proposições sobre critérios para distribuição regional dos recursos do FNC, já que se aprovado na proposta do PROCULTURA, ele seria o principal beneficiado da alteração do teto da renúncia fiscal e sua utilização terá que ser ainda mais criteriosa. Com isto o Ministério precisará também fazer o “dever de casa” eliminando as contradições entre discursos e práticas nas operações de alocação de recursos e assim demonstrar que fortalecer o FNC é um caminho viável na universalização da política pública de Cultura e sua governança pode e deve ser mais transparente. Esta atitude do Estado, na figura do MINC é vital para o êxito da própria instituição bem como para a aprovação do PROCULTURA. É interessante notar que neste processo todo, a questão da confiança e transparência são panos de fundo deste debate. De um lado MINC na defesa por melhor distribuição dos recursos, embora envolto a possíveis incongruências que precisam de ajustes. De outro lado os críticos e grupos de interesse que até visualizam a necessidade de mudanças, mas não vêm somente no PROCULTURA uma solução aos desafios do financiamento da Cultura, pois os critérios para a operação transparente desta nova proposta de financiamento da Cultura, nos parece ainda demandar mais maturação e diálogo. Se há alguma certeza é que neste cenário as arenas o debate estão postos e em pleno vigor, cuja duração ainda não se pode prever e isto só reforça nossas reflexões do quão duro e intenso é o processo decisório no jogo político e as facetas e possibilidades podem surgir em cada momento onde ideias e visões perpassam continuamente o jogo. Assim nos indagamos sobre o papel do Estado e se sua postura seria manter políticas que reproduzem velhos modelos de base liberal ou politicas mais universalistas e participativas. 4. O PROCULTURA SOB A ÓTICA DA ANÁLISE EM POLÍTICAS PÚBLICAS Para nossas indagações fazemos algumas aproximações dialogando com autores que podem nos auxiliar a olhar o processo das políticas públicas como um conjunto de fatores, mas também como um processo orgânico - onde pessoas, instituições, crenças e interesses estão em jogo - e assim compreender um pouco do processo de decisão nas políticas culturais. Ana Luiza Viana (1986) aponta sobre o trajeto da formação da agenda de uma política e cita Kingdon (1984) sobre como pode ser a agenda e de que modo alguns assuntos tornam-se ou não prioridades e alvo de atenção do governo de acordo com os interesses diversos: [...] A agenda pode ser sistêmica ou não governamental, governamental e de decisão. A primeira diz respeito à lista de assuntos que são, há anos,

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preocupação do país, sem merecerem atenção do governo, a segunda inclui os problemas que merecem atenção do governo e a última a lista dos problemas a serem decididos [...] [...] a primeira indagação a ser feita é por que alguns problemas e assuntos são colocados na agenda e outros não; por que certas alternativas são escolhidas e outras não [...]. (VIANA, 1994, p.7 apud Kingdon, 1985). Importante notar que na história da análise das políticas públicas que emergem nos anos 60, especialmente nos EUA, a ênfase estava na análise das estruturas do governo e nas instituições. É muito recentemente que se percebe um deslocamento para um enfoque comportamental (HAM e HILL, 1984, p. 4) da análise das políticas públicas, o que nos sinaliza que não há como observar os fenômenos por que passam as políticas públicas sem considerar os elementos constituintes destas estruturas e instituições, ou seja: os atores e suas visões e práticas. Desta perspectiva, ao analisarmos os processos decisórios, vislumbramos compreender a trajetória de uma política e o porquê de alguns temas não serem contemplados na formação da agenda e prioridade do governo. A resposta pode não ser tão rápida, mas poderia ser simplista se usarmos argumentos como, por exemplo: “falta vontade política” ou “as políticas culturais não são prioridade no Brasil”, etc. É possível que estas respostas ilustrem, mas não explicam o problema quando lidamos com diversos interesses que por vezes somente “vontade” não é o melhor recurso. Há um emaranhado de variáveis que compõem este contexto e devem ser prospectadas, sendo esta pesquisa um esforço neste sentido. Ora, o PROCULTURA nasce do debate sobre as demandas do movimento cultural, mas também da percepção das distorções na PRONAC/ Lei Rouanet. O Fórum Cultura Para Todos, a partir de 2003, foi um destes espaços de discussão durante as caravanas do Ministério da Cultura em varais cidades do Brasil, quando debateu prioridades da Cultura e que em 2008 culmina na primeira versão do PROFIC, que logo é chamado de PROCULTURA. Nesse intervalo, iniciativas dentro do Ministério são realizadas buscando minimizar os efeitos distorcidos do PRONAC/ Lei Rouanet na sua operação. Seguindo os apontamentos de Viana, do ano de 2003 a 2008 o tema do financiamento da Cultura era ainda um “agenda sistêmica” ou “não governamental” e somente em 2008 torna-se “governamental” onde esforços são envidados para o desenho do PROCULTURA. Em 2010 finalmente o PROCULTURA é formulado e posto em apreciação formal pela Casa Civil e depois Congresso Nacional. Hoje o PROCULTURA está no momento delicado e de maturação para migrar para uma “agenda de decisão” e já se passaram seis anos. Aqui vale destacar as ideias trazidas por Peter BACHRACH E MORTON S. BARATZO (1962) do artigo “As duas faces do poder”, sobre o poder da “não agenda”, também chamado de “nondecision-making” ou o poder do veto. Numa crítica14 Citação vem do texto traduzido por Gustavo Biscaia de Lacerda e revisão de Renato Monseff Perissinotto, do artigo original publicado sob o título de “Two Faces of Power”, na American Political Science Review (Washington (D. C.), v. 56, n. 4, p. 947-952, Dec.1962).

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de duas tradições de pesquisa, a sociológica, da corrente elitista (Mills, 1956) que postula a existência do poder nas comunidades; e a tradição politológica, da corrente pluralista (DAHL, 1958) que questiona a existência de elites dirigentes em comunidades e instituições, Bachrach e Baratzo discutem acerca da “face invisível do poder”, onde indivíduos e grupos podem tomar decisões e/ ou vetar temas de acordo com interesses em questão, impedindo que certas temáticas ou agendas sejam apreciadas. Isto ocorre dentro destas “arenas”, daí não necessariamente quem tem o poder “visível” (políticos, mídia, partidos, grupos de pressão, ou nomeado formalmente) seja o que decide a agenda, mas sim, outros atores de influência “invisível” (ex: acadêmicos, a burocracia, grupos lobistas, etc.) capazes de propor alternativas à agenda. Para os autores, [...] Essa outra face consiste na capacidade que indivíduos ou grupos têm de controlar ou manipular os valores sociais e políticos (isto é, de “mobilizar vieses”), impedindo que temas potencialmente perigosos para seus interesses e perspectivas sejam objeto de discussão e deliberação pública [...] (BACHRACH e BARATZ, 1969, p. 01). Importante ressaltar que esta crítica pode possivelmente vir a explicar ou pelo menos clarear nossas reflexões ao caso do Brasil na discussão de temas como a questão da terra, da reforma agrária, ou mesmo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outros assuntos que têm dificuldade ou nunca entram em pauta, por serem considerados delicados ou “perigosos” usando as palavras dos autores. No debate em torno do PROCULTURA – PL 6722/2010-A, não parece ser muito diferente e atualmente o PL passa por uma nova discussão, haja vista as últimas declarações do novo Ministro Juca Ferreira, empossado em abril de 2015 e cuja iniciativa do que é hoje o Projeto de lei, ocorreu em seu primeiro mandato como titular do MINC (2008-10). Aqui, poderíamos enumerar dezenas de situações em que agendas de certas políticas não conseguem entrar em pauta ou ainda buscam um espaço para se afirmarem. No caso das políticas culturais, diversos foram os momentos em que debates sobre itens mais polêmicos ou lobby sobre assuntos de interesses diversos foram feitos visando retardar ou simplesmente não se discutir. Mas na pesquisa ainda não alcançamos este nível de detalhes que pretendemos em breve. O que importa é perceber que são situações de disputas que desenham o jogo político. Já B. Guy Peters (2003) outro autor que analisa políticas públicas com destaque ao papel de influência das instituições sobre as formas de condução e tomada de decisão dos indivíduos que nelas atuam, destaca que as instituições têm sua influência no processo decisório de uma política e se revelam como um dos elementos determinantes. Para Boaventura (2003), diferente da “poliarquia”15 que possui canais de participação tradicionais (militares, políticos, empresários), na “democracia participativa” outros canais são envolvidos além destes tradicionais e que podem ser efetivos contribuintes para a formulação das políticas públicas. Exemplos destes ca Conceito trazido por Robert Dahl, sobre formas de governar em revezamento de grupos de poder, na obra: “Who governs?” 1934. 15

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nais seriam grupos da sociedade civil organizada, os grupos feministas, indígenas, os Sem-terra, entre outros. A afirmação de Boaventura corrobora com nossa reflexão de que o processo de apreciação e debate do PROCULTURA novos e diferentes atores passam a compor a discussão em torno do tema. Desta perspectiva, nas políticas culturais vemos hoje um crescente movimento de grupos de diversos segmentos da Cultura, além de gestores culturais em geral, onde novos atores entram em cena buscando participar e influenciar as decisões do processo de construção de políticas por meio de programas e de projetos de ação cultural, bem como através da organização de grupos de pressão para aprovação mecanismos de desenvolvimento cultural. Exemplo disso são: (1) os partidos políticos como o PT E PC DO B, que juntamente com artistas e gestores culturais realizaram discussão de política de cultural e enviaram propostas à Assembleia Nacional Constituinte de 1988; (2) grupos e entidades sociais de caráter cultural como os Pontos de Cultura; e (3) com o crescimento de participação desde 2003 e mais recentemente, nas conferencias de cultura e na consulta pública sobre a Lei Rouanet, realizada em 2009, onde mais de duas mil propostas foram enviadas. Neste sentido, vemos outra forma de ver elementos que compõem o roll de variáveis do processo de desenho de uma política pública: as instituições, além dos grupos de interesse, exercem influência nesse processo, o que dá um caráter ainda mais complexo e não linear na construção de uma policy, além do papel das ideias, as relações de poder, a integração entre as fases do processo decisório, a burocracia, novos atores, etc. Entretanto, vale aqui um ponto de atenção: o papel do Estado e sua dimensão mais participativa seria uma tendência inevitável considerando os novos cenários e atores inseridos? Se sim, seria um “Estado em transformação e sob novos moldes compondo o conjunto das instituições do processo de construção de políticas públicas” (SORENSEN, 2006, pp. 204)? Ou seria um Estado com os mesmos vícios de uma instituição aquém das demandas da sociedade onde uma proposta de financiamento da Cultura ainda possui traços de um modelo econômico conservador e menos universalista? Em que medida este novo modelo proposto pode influenciar para a expansão da cidadania cultural? E de que modo o PROCULTURA traduz este cenário? 5. CONSIDERAÇÕES EM ANDAMENTO Em abril de 2015, após a posse do Ministro Juca Ferreira, o pesquisador Manoel Marcondes Neto (2015) comentou sobre “um Juca Ferreira pregando para ser ouvido no deserto do Congresso”: Não temos pessoas identificadas com a cultura no Senado. Com os problemas de corrupção que foram revelados, ninguém vai ligar para o setor neste ano. Para ter êxito, Juca precisa se articular politicamente e

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buscar um cruzado, alguém que tope lutar pela cultura em seu nome. E, enquanto isso não acontece, ele não pode demonizar a lei que segura a cultura nacional desde 1991. Esta fala possivelmente pode ilustrar nossas reflexões sobre o processo de construção das políticas culturais no caso do financiamento, isto por que quando Marcondes diz que não há pessoas identificadas com a Cultura dentro no Senado, pode sinalizar que o campo por mais que já tenha avançado no processo de institucionalização e ressignificação, e também de ter ultrapassado a fase de formação de agenda dentro do ciclo de políticas públicas, há muito a ser feito e os desafios são ainda maiores no campo das ideias e visões, variáveis que já apontamos neste artigo: sobre o quanto impactam diretamente o processo de decisão das políticas culturais e de que modelo de Estado estamos falando quando se trata de promover o bem estar da população? Entender as nuances e avanços de uma policy é um trabalho de análise que pode trazer interessantes indicadores sobre o quanto mudou e de que maneira isto reflete na prática dos atores envolvidos para a construção de uma política pública. Analisando até o momento pela lente dos autores aqui debatidos, atores e instituições bem como aquelas variáveis ao processo de construção de uma política pública são determinantes para a decisão de uma policy e que no caso das políticas culturais não seria diferente carecendo ainda de um longo percurso de maturação e adesão de segmentos da sociedade, para então seguir sua trajetória no ciclo para a tomada de decisão.

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O AEROCLUBE DO BRASIL E O MUSEU AEROESPACIAL: PERSONAGENS IMPORTANTES NA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA CULTURAL DE AVIAÇÃO CIVIL NO PAÍS Rejane de Souza Fontes1 Claudia Musa Fay2 RESUMO: A Segunda Guerra Mundial propiciou o surgimento de organismos de cooperação multilateral como a ONU que buscavam promover a paz a partir do diálogo entre as culturas. Data também deste período o desenvolvimento da indústria aeronáutica mundial e a expansão da aviação no Brasil, estimulada pela Campanha Nacional de Aviação (CNA), lançada pelo Ministério da Aeronáutica na década de 40, em cuja organização o Aeroclube do Brasil teve um papel fundamental. Este trabalho apresenta, a partir de um estudo de caso longitudinal, a atuação do Aeroclube do Brasil não somente na história da aviação brasileira, mas na construção de uma política cultural de aviação no país que, ao lado do Museu Aeroespacial, tem muito a revelar sobre a cultura da aviação civil no Brasil e o papel da aviação nos desígnios da política nacional. PALAVRAS-CHAVE: cultura aeronáutica, política cultural, Estado Novo, Campanha Nacional de Aviação

Os organismos supranacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Organização de Aviação Civil Internacional (ICAO) surgiram no cenário mundial ao final da Segunda Guerra Mundial, quando a preocupação com a paz entre os povos fez emergir um sistema de cooperação multilateral entre as nações. A criação da ONU, em 1945, é o principal marco da estruturação de uma instituição com foco nas relações internacionais, a fim de promover o diálogo entre diferentes povos e culturas e o propósito de diminuir as desigualdades de caráter econômico e social no planeta. A Segunda Guerra Mundial também apontou ao mundo a necessidade de se regulamentar o espaço aéreo internacional. Os conflitos bélicos aéreos deram novos contornos aos limites Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Pedagoga Especialista em Regulação da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC. E-mail: [email protected] 2 Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em História e da Faculdade de Ciências Aeronáuticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: [email protected] 1

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da guerra e impulsionaram a indústria bélica e aeronáutica, revelando a necessidade de se estabelecer acordos internacionais que garantissem a soberania do espaço aéreo de cada nação. Com o objetivo de tornar o transporte aéreo de passageiros e cargas mais seguro, eficiente e regular, foi assinada a 7 de dezembro de 1944, a Convenção sobre Aviação Civil Internacional, conhecida como Convenção de Chicago. Nascia, então, a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI/ICAO) que determinaria padrões e recomendações para se alcançar um desenvolvimento seguro, eficiente e ordenado da aviação internacional, criando uma política de cultura aeronáutica no mundo. O Brasil assinou a Convenção de Chicago em 29 de maio 1945, na cidade de Washington, firmando sua adesão ao documento que estabelece as regras do direito aeronáutico internacional. Contudo, sua promulgação deu-se somente em 27 de agosto de 1946, com o Decreto Nº 21.713, tornando-o um Estado signatário até os nossos dias. Inicialmente desenvolvida em aeroclubes, que hoje totalizam 123 centros de instrução em todo o país (ANAC, 2016), a formação de pilotos reunia um grupo de pessoas apaixonadas pela aviação que se tornavam sócias de um clube e ali recebiam instrução, pilotavam aeronaves, trocavam ideias e informações, socializavam suas famílias, enfim, constituíam uma comunidade, fomentando a cultura aeronáutica. Estas instituições não possuíam fins lucrativos. Seu papel voltava-se exclusivamente para o fomento da aviação no país e contava com incentivos governamentais, como doação de aeronaves de instrução pela União, isenção de taxas e pagamento de combustíveis pelo então Departamento de Aviação Civil (DAC), vinculado ao Ministério da Aeronáutica. O presente trabalho procura analisar o papel da primeira escola de formação de pilotos no Brasil – o Aeroclube do Brasil – e do Museu Aeroespacial na construção de uma política de cultura aeronáutica no país. 1. O AEROCLUBE DO BRASIL O Aeroclube do Brasil foi fundado em 14 de outubro de 1911 sob o nome “Aero Club Brasileiro” e é considerado o berço da aviação brasileira3. Foi o primeiro a ser fundado no Brasil e um dos primeiros no mundo. Sua história remonta ao início do século XX, com a Assembleia de Constituição realizada nas dependências do jornal “A Noite”, disponibilizadas por seu diretor Irineu Marinho. Na ata de fundação, constam os nomes de civis, militares, políticos, professores e empresários. Porém, o mais notável é o fato de que sua primeira diretoria teve como presidente de honra o sócio fundador Alberto Santos Dumont.

As informações de cunho histórico têm como fonte principal o trabalho intitulado Resumo Histórico do Aeroclube do Brasil de autoria do sócio benemérito José Bonifácio, economista e piloto de recreio e desporto, desde 1947. Disponível em . Acesso em 01 jul. 2015.

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O Aero Club nasceu no atual aeródromo militar de Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, onde atualmente se localiza a Base Aérea dos Afonsos e o Museu Aeroespacial (MUSAL), e aonde antigamente funcionava uma fazenda pertencente à família dos Afonsos. Segundo a Revista Careta, a escola, que começou a funcionar em fevereiro de 1913, contava com onze aviões e trinta e cinco alunos, entre eles, oficiais do Exército, da Marinha e civis. Notícias sobre aviação e a possibilidade de uma escola de voo a ser instalada no Rio de Janeiro começaram a circular nos jornais e revistas da época, tais como as Revistas “Careta” e “O Cruzeiro” e o jornal “A Noite”, fonte de nossas consultas. Em 1916, uma matéria publicada na Aerophilo, Revista do Aero Club Brasileiro, já apontava a falta de incentivo do governo no desenvolvimento de uma política de aviação no Brasil: [O] Governo do Brasil (...) já (...) deveria ter [se] inclinado a fazer algo em favor do Aero Club Brasileiro, para que em tempo de paz e durante a guerra imprevista, o nosso paiz pudesse contar com uma das maiores esquadrilhas do mundo para fiscalizar as suas costas e as nossas fronteiras, já sob o ponto de vista econômico, na paz, tanto em função militar na guerra (AEROPHILO, 1916, s/p, apud. FERREIRA, 2012). Em 1918 foi efetivada a filiação do Aero Club junto à FAI (Fédération Aéronautique Internationale), cujo processo de filiação fora iniciado em 1913 pelo Tenente Kirk e interrompido durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A filiação à FAI tinha como objetivo expedir as licenças (brevês como eram chamados) aos pilotos brasileiros. Como representante da FAI, o Aero Club passou a exercer basicamente a função oficial de examinar os pilotos formados no Brasil, concedendo-lhes as respectivas licenças. Em 1919, o Ministro General Caetano de Faria informava ao Presidente do Aero Club que o Exército iria precisar das instalações do Campo dos Afonsos para instalar sua própria Escola de Aviação Militar. Sem base para desenvolver o treinamento de voo no Rio de Janeiro, o Aero Club agora sob a Presidência do Deputado Maurício de Lacerda, dedicou-se a promover, estimular e a colaborar na criação de escolas de aviação em todo o Brasil, credenciando delegados em vários Estados da federação. Uma forte crise financeira, à época, inviabilizou a manutenção do Aero Club Brasileiro, que entregou sua direção a uma Comissão composta pelos senhores Paulo Vianna, Cezar Grillo e Antônio Guedes Muniz. Em 16 de março de 1932, foi realizada uma Assembleia Geral Extraordinária, homologando os poderes para o Triunvirato. Nessa mesma Assembleia foi aprovada a proposta do então Major Guedes Muniz que alterou o nome da entidade para Aeroclube do Brasil como hoje é conhecido. Os terrenos localizados em Manguinhos foram escolhidos pela comissão para o preparo do novo campo de aviação do Aeroclube. A ocupação do terreno se deu por consentimento tácito das autoridades federais e municipais da época. Contudo, não há registro de documento forma-

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lizando tal cessão. Para a construção do Aeroclube, o instituto Oswaldo Cruz permitiu que fosse desbastada uma pequena área em seus terrenos A falta de pilotos no período da guerra e pós-guerra quando havia muitos pilotos estrangeiros no Brasil, levou o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) a realizar a Campanha Nacional de Aviação (CNA), em 1941, idealizada pelo jornalista Assis Chateaubriand, proprietário da cadeia de jornais Diários Associados, e pelo Ministro da Aeronáutica Joaquim Pedro Salgado Filho. A CNA incentivava doações da sociedade civil para compra de aviões e material aeronáutico para os aeroclubes, a fim de desenvolver uma política cultural de aviação. A CNA foi uma ação inédita no Brasil, onde até hoje inexiste uma tradição de recursos privados no financiamento cultural, uma vez que não há uma política voltada para atrair o investidor como pessoa física. Botelho (2001) chama a atenção de que nos Estados Unidos este é o maior financiador da cultura no país, ultrapassando, inclusive, o montante dos investimentos advindos dos poderes públicos e das organizações privadas. Segundo ela, Este é um público-alvo fundamental, principalmente quando se trata de projetos de visibilidade mais restrita – aqueles que provavelmente não interessarão a grandes empresas, mas que podem ser extremamente relevantes para grupos ou comunidades específicas (BOTELHO, 2001, p. 79) O envolvimento dos agentes abrangidos por tais políticas torna-se um caminho viável para a construção de políticas culturais de longo prazo. O indivíduo deve ser escolhido por aquilo com o que se identifica e pelo que está disposto a lutar (BOTELHO, 2001; CALABRE, 2007). Esta foi a estratégia política utilizada pelo governo de Getúlio Vargas para financiar a aviação e criar uma cultura aeronáutica no Brasil com a CNA. Também conhecida como Campanha para Dar Asas a Juventude Brasileira ou Dêem Asas ao Brasil, a CNA contribuiu de forma determinante para que o número de aeroclubes passasse de menos de quarenta, na década de 30, para cerca de quatrocentas destas instituições espalhadas por todo o país. Deve-se destacar, no entanto, que este estímulo para a consolidação de uma “mentalidade aeronáutica” junto à juventude brasileira não era gratuita. Havia uma preocupação real com a guerra e, portanto, era preciso criar um exército aeronáutico de reserva, convocando os jovens da sociedade a se engajarem em campanhas em prol da aviação e que pudessem se incorporar à aviação militar, se necessário. A fim de facilitar a formação desta reserva aeronáutica, o governo responsabilizou-se pelo pagamento de horas de voo nos aeroclubes e escolas de voo. É importante ressaltar que a política do governo Vargas esteve intensamente voltada para o projeto de integração nacional promovida pela aviação comercial. “Nessa época, foram criados subsídios por quilômetro voado e concedidas isenções de impostos para a aquisição de material aeronáutico pelas empresas aéreas” (FAY, 2002, p. 130). Além disso, a evolução tecno-

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lógica da indústria aeronáutica tornava a aviação um setor estratégico para a defesa nacional e o processo de industrialização do país, especialmente pela ausência de infraestrutura de transporte, comunicação e energia à época. Foi também durante o governo Vargas que foram implementadas as primeiras políticas públicas voltadas para a cultura no Brasil. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, para a guarda do patrimônio histórico brasileiro representa um marco na história de política cultural do país (CALABRE, 2005 e 2007; RUBIM, 2007; JULIÃO, 2009). A década de 40 foi emblemática para o desenvolvimento da aviação no Brasil e no mundo, grande parte impulsionada pela necessidade do poderio bélico militar impelido pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No Brasil, a CNA visava à doação de aviões, dinheiro e materiais que servissem para a compra ou construção de aviões, ampliação de hangares ou construção de campos de pouso para fomentar a criação dos chamados aeroclubes, consolidando a aviação civil no país. Segundo Ferreira (2012, p. 78) “aquele projeto era bastante audacioso, pois tencionava angariar recursos privados para fomentar a aviação nacional, doando aviões de pequeno e médio porte para aeroclubes espalhados pelo Brasil afora”. Durante a CNA que se encerrou no início da década de 1950, foram doados mais de mil aviões em todo o Brasil, além de alguns doados a aeroclubes de outros países da América do Sul. O Brasil teve um acréscimo de mais de três mil pilotos civis e militares formados pelos aeroclubes. Os números da Campanha impressionam. De acordo com Morais (1994, p.475, apud. FERREIRA, 2012), em 1944, foram doadas cerca de 600 aeronaves e, em 1946, a CNA alcançou a marca de 800 aviões doados. Se por um lado, a CNA incentivou a formação de pilotos no Brasil e o fortalecimento dos aeroclubes, também gerou um momento propício para o desenvolvimento da indústria aeronáutica no país, possibilitando a compra pelo governo de aviões leves para treinamento primário fabricados pela Companhia Nacional de Navegação Aérea (CNNA) e pela Companhia Aeronáutica Paulista, incentivando a indústria nacional. Contudo, com o fim da guerra, a indústria norte-americana, que vivera um processo de acelerado crescimento e dispunha de grandes quantidades de aviões e materiais aeronáuticos, começou a doar ou vender suas aeronaves a preços simbólicos, o que impediu o crescimento da indústria brasileira nascente, levando o Brasil a retomar as importações de aviões civis, de maior porte, e se tornar dependente da importação de insumos dos Estados Unidos (MARQUES, 1948; FAY, 2002; FORJAZ, 2005; RIBEIRO, 2008; SALES, 2012; GODOY e CALAZA, 2013). Em relação à abertura da política cultural através de um intercâmbio cultural internacional, Calabre (2007, p. 15) afirma que “há a necessidade da realização de intercâmbios diversos, em condições equilibradas e não a submissão ao tipo de relação que vem sendo imposta pelo

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crescente processo de globalização”. Considerando que a aviação no mundo de hoje é globalizada, desde a concepção do projeto aeronáutico de uma aeronave até sua divulgação em grandes feiras internacionais, é natural e desejável que esta política esteja aberta à cultura aeronáutica internacional e ao mesmo tempo liberta de processo de submissão às potências da área de aviação. É interessante observar que embora tivesse sido impulsionada por recursos privados, a CNA não era totalmente controlada por particulares. O Estado controlava todas as atividades dos aeroclubes através de sua “base mãe”: o Aeroclube do Brasil. Seu papel era controlar a entrega de aviões, repassar verbas e insumos e formar pilotos para compor os quadros de instrutores dos demais aeroclubes. Além disso, a fim de obter crédito junto ao governo, todos os aeroclubes deveriam filiar-se ao Aeroclube do Brasil, que por sua vez era filiado à FAI, responsável por homologar as licenças e serviços concedidos pelo Aeroclube. A importância do Aeroclube do Brasil para o Estado à época pode ser vista, inclusive, por meio do Decreto nº 10.314, de 22 de agosto de 1942, divulgado no Boletim do Ministério da Aeronáutica, segundo o qual: “Art. 1º: fica estabelecido que o exercício, em comissão do cargo de Presidente do Aeroclube do Brasil por oficial da Força Aérea Brasileira [FAB], é do interesse da Aeronáutica” (FERREIRA, 2012, p. 78-89). Historicamente o aeroclube tem sido a instituição responsável por fornecer cursos, treinar pilotos, formar mecânicos e instrutores de voo, bem como fornecer espaço para se criar uma cultura aeronáutica. Deve-se lembrar que a formação de pilotos na década de 40 também tinha como objetivo o monitoramento de sobrevoos de aviões inimigos no território brasileiro, pois se vivia a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, após o fim da CNA os aeroclubes entraram em decadência. Em pouco tempo muitas instituições fecharam suas portas e não mais conseguiram se restabelecer. Em 1967, em meio à busca de novo campo de aviação, pois o Aeroclube fora obrigado a deixar as instalações do aeródromo de Manguinhos, interditado sob a alegação de interferência com o tráfego aéreo do Aeroporto Internacional do Galeão e do Aeroporto Santos Dumont, evitou-se que o Aeroclube do Brasil fosse transformado em “Aeroclube da Guanabara” por força do Decreto-Lei nº 205, de 27 de fevereiro de 1967, segundo o qual “Art. 5º Os aeroclubes terão o nome das respectivas cidades em que estiverem localizadas as suas sedes” (BRASIL, 1967). Cujo texto, mais tarde sofreu alterações mediante a aprovação no Congresso Nacional da Lei nº 5.404, de março de 1968, que criou os parágrafos 1º e 2º para reconhecer o pioneirismo histórico do Aeroclube do Brasil:
 § 1º Executam-se dessa determinação o Aeroclube do Brasil, os aeroclubes das capitais de Estados, que terão o nome dêstes, bem como os que forem organizados com o objetivo de servir a grupos de cidades ou municípios ou com denominação notória que caracterize a região servida. (Renumerado com nova redação pela Lei nº 5.404, de 1968)

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§ 2º O Aeroclube do Brasil, fundado em 14 de outubro de 1911 e primeira entidade da aviação brasileira com existência legal, por seu primeirismo e pela implantação da mentalidade aeronáutica a que deu curso, é considerado integrante das tradições nacionais na área aeronáutica. (Incluído pela Lei nº 5.404, de 1968) (BRASIL, 1967). O surgimento dos aeroclubes sempre esteve vinculado ao fomento da aviação no país, com ofertas de cursos e o estímulo à formação de uma cultura aeronáutica. O desenvolvimento de currículos padronizados para a formação de pilotos é algo muito recente na história da aviação brasileira. O tardio desenvolvimento dos Manuais de Curso de formação de pilotos pelo DAC, datados da década de 90, e sua falta de atualização periódica contribuíram para que cada escola/aeroclube se distanciasse do padrão exigido pela autoridade aeronáutica e redesenhasse sua própria grade curricular, implementando uma cultura aeronáutica própria e inaugurando uma nova despadronização dos cursos de formação de pilotos no Brasil. Além disso, a existência de poucos exemplares dos primeiros manuais de curso de pilotagem produzidos no Brasil que estão sob a guarda de importantes aeroclubes do país, demonstra a ausência de uma política de proteção ao patrimônio público cultural, cujos documentos deveriam constar igualmente dos acervos da Agência Nacional de Aviação Civil, de museus e bibliotecas públicas, de fácil acesso à sociedade4. Calabre (2005, p. 19) chama a atenção para a descontinuidade das políticas públicas culturais no Brasil e afirma que “esse processo de eterno recomeçar, de experiências que poucos rastros deixaram, de ausência de registros, de pouca sistematicidade nas ações, gerou alguns efeitos perversos, com grandes desperdícios de recursos financeiros e humanos”. Nossa herança de política cultural remonta, assim, ao modelo francês do século XVIII, quando o conceito de patrimônio histórico surge com a Revolução Francesa e coloca sob a responsabilidade do Estado o dever de proteger e difundir o patrimônio histórico nacional. É dentro deste pensamento que os museus históricos e arquivos nacionais contribuem para a formação da identidade de uma nação, pois “servem de repositório dos bens culturais representativos da identidade nacional” (LIMA, ORTELLATO e SOUZA, 2013, p. 6). 2. O MUSEU AEROESPACIAL Deve-se ressaltar aqui o papel dos museus no fomento a uma política cultural de aviação, pois estes guardam não apenas a cultura material e imaterial produzida num determinado período da História, mas são também guardiões de informações importantes do cotidiano da

A este respeito alguns autores historicizam de forma crítica os diferentes períodos da política cultural no Brasil, apontando seus avanços e retrocessos em meio a um jogo de instabilidade política e de ações e (in)decisões dos governos brasileiros. (CALABRE, 2005; RUBIM, 2007; MORAES, 2011).

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humanidade, devendo atuar em três campos principais: investigação, preservação e comunicação (CARLAN, 2008). O Museu Aeroespacial (MUSAL) localizado no Campo dos Afonsos representa um marco no resgate histórico desta cultura e é visitado por cerca de sessenta mil pessoas anualmente, de classes sociais e faixa etária diferenciadas. É o maior e mais importante museu aeronáutico do Brasil em função do acervo que possui e da necessidade de preservação e divulgação do material aeronáutico e documentos históricos para as futuras gerações. Além da guarda do acervo bibliográfico com cerca de cinco mil títulos especializados, o Museu Aeroespacial desenvolve pesquisas a fim de estimular as atividades referentes à memória e à cultura aeronáutica brasileira. Além disso, nos fins de semana e feriados, o museu disponibiliza um espaço em sua área externa para eventos comemorativos, exibição de aeronaves de acrobacia aérea e prática de aeromodelismo, como forma de desenvolver uma política de estímulo à cultura aeronáutica. A ideia do museu surgiu em 1943, pelo então Ministro da Aeronáutica Joaquim Pedro Salgado Filho. Contudo, por falta de local disponível, somente pode ser inaugurado em 18 de outubro de 1976, nas instalações que pertenceram à primeira escola de aviação civil localizada no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, onde funciona até hoje. Em visita às instalações do Museu Aeroespacial, é possível conhecer detalhes da história da aviação brasileira, especialmente de sua participação na Segunda Guerra Mundial. Porém, percebe-se uma lacuna de informações relacionadas à formação de pilotos no Brasil, especialmente no tocante ao Aeroclube do Brasil e à primeira escola de aviação brasileira. Pode-se observar duas ou três passagens que mencionam a sua existência, mas com poucos detalhes em relação a sua história. Isso evidencia a necessidade de mais pesquisas e a divulgação de achados que enriqueçam a cultura aeronáutica brasileira. As salas de exposição do prédio abrigam as principais coleções históricas de pioneiros da aviação e o salão principal reúne as aeronaves mais antigas do museu. As aeronaves doadas são restauradas por uma equipe de especialistas que trabalham na oficina do próprio museu. O arquivo histórico contém documentos escritos e impressos, fotografias, “slides” e documentários em vídeo. Entre as exposições em exibição estão: as primeiras aeronaves utilizadas pela Esquadrilha da Fumaça; Salão das Armas; A trajetória da mulher militar na FAB; Bartolomeu de Gusmão 300 anos; o mobiliário do gabinete do Ministro da Aeronáutica Salgado Filho, em 1941; serviço de busca e salvamento no Brasil; Santos Dumont; a FAB na guerra; primórdios da aviação brasileira; a indústria aeronáutica brasileira com destaque para a EMBRAER; a atuação do Departamento de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro; a conquista do espaço através do lançamento de satélites e foguetes; Salão de Motores e Salão de Simuladores.

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Outro museu que merece destaque é o Museu TAM, localizado em São Carlos, em São Paulo. Considerado o maior museu de aviação do mundo mantido por uma companhia aérea privada, o Museu TAM foi criado com o objetivo de preservar a memória da aviação e do seu fundador, o comandante Rolim5. São mais de 90 aeronaves, além de simuladores, túnel multimídia, Espaço TAM Kids, Espaço propulsão, Torre de Controle, Espaço Moda e Túnel do Tempo que conta a história da TAM. A iniciativa da TAM demonstra uma preocupação em relação à política cultural no país, que não investe em seus centros de formação cultural. Para Nascimento Jr. (2009), os museus, além de educativos, são importantes agentes de mudança social e de desenvolvimento nacional e regional, responsáveis pela difusão de valores democráticos como instrumento a serviço da cidadania inclusiva e da emancipação social. Organismos internacionais como a Unesco recomendam que pelo menos 1% da riqueza nacional seja aplicado em políticas culturais. No Brasil, o alcance deste índice fica vulnerável à situação econômica do país, cujos recursos destinados a investimentos nas esferas educacional e cultural, áreas estratégicas no desenvolvimento de uma nação6, são os primeiros a sofrer reduções orçamentárias em momentos de crise econômica, como a que vivemos atualmente. O princípio de indissociabilidade entre cultura e desenvolvimento marca a atual política cultural da Unesco que amplia a fronteira conceitual de cultura ao compreendê-la mais do que um caminho para o desenvolvimento, o seu fim último a ser buscado pelas nações: o papel da cultura também deve ser considerado como um fim desejável em si mesmo, que é o de conferir sentido à nossa existência (...) Cultura, pois, não significa apenas um elemento do progresso material: ela é a finalidade última do ‘desenvolvimento’ definido como florescimento da existência humana em seu conjunto em todas as formas (CUÉLLAR, 1997, p.32-33, apud. VIEIRA, 2004, p. 8). Vieira (2004, p. 9) sustenta que o novo arco cultural engloba agora a dimensão do humano, inaugurando assim um “desenvolvimento humano, cultural e ambientalmente sustentável”, além da esfera econômica, como elementos intrinsicamente relacionados necessários ao bem-estar humano e social. Rolim Adolfo Amaro (1942-2001), de origem humilde, largou a escola aos quinze anos para ajudar nas despesas de casa. Obteve seu brevet em 1958, quando iniciou suas atividades profissionais pilotando para empresas de táxi aéreo no interior de São Paulo. Entre elas, trabalhou na Táxi Aéreo Marília S.A, a TAM, da qual se tornou acionista minoritário (33% das ações) em 1968. Com competência e trabalho, em 1975, adequiriu metade das ações da TAM, assumindo a direção da empresa. Modernizou a frota e fez a empresa crescer, inaugurando a aviação comercial a jato e mais tarde fazendo rotas internacionais. Criou um novo estilo de voar, focado no bem estar do passageiro. Criou também o Museu Asas de Um Sonho, hoje Museu TAM, para preservar a memória e a história da aviação. Em 2000, a TAM era a maior empresa de transporte aéreo nacional. Morreu em 2001, num acidente de helicóptero, próximo ao município de Pedro Juan Caballero, no Paraguai, quando passava o fim de semana em sua fazenda em Ponta Porã, na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai. 6 Para um debate mais aprofundado sobre o tema cultura-desenvolvimento ver Vieira (2004). 5

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O resgate da história da aviação no Brasil abre horizontes para a disseminação da cultura aeronáutica que contribui tanto para o fortalecimento de uma identidade nacional quanto para a democratização da diversidade cultural. Neste sentido, a ação de uma política cultural comprometida tanto com a democratização da cultura quanto com a democracia cultural7, deve servir de guia às ações do governo na esfera cultural, especialmente “em um tempo de constantes inovações tecnológicas que facilitam a disponibilização e a democratização das informações (...)” (CALABRE, 2005, p. 19). Sob este aspecto, fortalecer pesquisas no âmbito cultural e aquelas relacionadas à cultura da aviação civil em nosso país também deve ser objeto da agenda de políticas culturais do governo. Retomando as palavras de Carlan (2008, p. 82), podemos afirmar que “infelizmente, no Brasil, a pesquisa e investigação ficam estacionadas em um segundo plano. As exposições sem investigação tornam-se uma mera transmissão”, onde não há construção de conhecimentos a ser deixada como legado às gerações futuras. Como vimos, a década de 40 revelou-se a era de ouro para os aeroclubes e o fomento à aviação brasileira, graças à Campanha Nacional de Aviação. Com visível apoio do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945), vários aeroclubes foram criados e a formação de pilotos superou as expectativas. Neste período, o Aeroclube do Brasil foi de importância singular para o desenvolvimento da aviação nacional e para a disseminação da cultura aeronáutica que buscava junto à sociedade civil a manutenção dos aeroclubes e a valorização da aviação em benefício do país. Considerando a política cultural como um conjunto de medidas de apoio institucional desenvolvido pela administração pública ou instituições civis públicas ou privadas para a proteção e (re)produção de bens materiais ou simbólicos de um grupo social, pode-se afirmar que a CNA foi a maior e mais importante iniciativa política cultural que aconteceu na história da aviação brasileira. Especialmente, num país que até hoje “não tem tradição histórica de participação ativa da sociedade no investimento social e cultural” (BOTELHO, 2001, p. 79). Embora findada na década de 50, a CNA deixou sua herança histórica ao Aeroclube do Brasil. Em sua história, o Aeroclube do Brasil foi obrigado a mudar de endereço por três vezes passando pelo Campo dos Afonsos, Aeródromo de Manguinhos até chegar ao Aeroporto de Os primeiros debates relacionados a políticas culturais aconteceram ainda na década de 70 e foram promovidos pela Unesco, delimitando uma distinção teórica entre dois tipos de políticas: as políticas de democratização da cultura e as políticas de democracia cultural. A ideia de democratização da cultura buscava ampliar o acesso das camadas populares à cultura erudita, mais elitizada e disponível a um seleto círculo social. Já o conceito de democracia cultural buscava, dentro de uma concepção “socioantropológica” de cultura, valorizar e fortalecer as manifestações culturais populares, criando grupos e públicos diferenciados de produtores e consumidores de subculturas particulares (BOTELHO, 2001; LIMA, ORTELLATO e SOUZA, 2013). Uma discussão mais recente do conceito de cultura procura diluir as fronteiras entre alta cultura versus cultura de massa, num alargamento dos públicos diferenciados em ambas culturas, admitindo-se uma coexistência plural das manifestações culturais (CARVALHO, 2009).

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Jacarepaguá, onde funciona atualmente, sofreu duas intervenções e hoje sobrevive em situação incerta aguardando o desfecho de uma ação judicial movida pela INFRAERO em 2008 que reivindica o terreno onde se encontra localizado em Jacarepaguá. Com efeito, a cultura aeronáutica brasileira deve muito do seu legado ao pioneirismo dos idealizadores e pilotos do Aeroclube do Brasil, cuja história não pode ser apagada da mentalidade aeronáutica e nem do solo brasileiro. A ausência de investigações sobre a atuação do Aeroclube do Brasil na história da aviação e as poucas informações guardadas nos acervos museológicos revela que este ainda é um tema pouco explorado na historiografia brasileira, especialmente no que concerne o seu tangenciamento com o viés político-cultural de uma época. Outras pesquisas se fazem necessárias capazes de apontar novas possibilidades de compreensão daquele período e das circunstâncias políticas que possibilitaram o surgimento e o desenvolvimento da cultura aeronáutica no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil. Disponível em: . Acesso em 16 jan. 2016. BONIFÁCIO, J. Resumo Histórico do Aeroclube do Brasil. Disponível em . Acesso em 01/07/2015. (documento não publicado). BOTELHO, I. Dimensões da cultura e políticas públicas. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 15, n. 2, p. 73-83, abr/jun de 2001. BRASIL. Decreto-Lei Nº 205, de 27 de fevereiro de 1967. Dispõe sôbre a organização, funcionamento e extinção de aeroclubes, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 27 fev. 1967. Disponível em: . Acesso em: 06 jul. 2015. CALABRE, L. Política cultural no Brasil: um histórico. In: CALABRE, Lia (org.). Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005, p. 9-21. ______. Políticas culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2007, Salvador. Anais eletrônicos … Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBa, 23 a 25 de maio de 2007. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2016. CARETA. Raízes da Aviação Militar Brasileira. Edição 2.521. Ano XLIX. Out. de 1956. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2015. CARLAN, C.U. Os Museus e o Patrimônio Histórico: uma relação complexa. História, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 75-88, 2008.

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LEI SARNEY EM NÚMEROS: PRIMEIRAS ANÁLISES Renata Duarte1 Lia Calabre2 RESUMO: O presente artigo traz os primeiros resultados da pesquisa acerca dos incentivos fiscais realizados por meio da Lei 7.505/86, popularmente conhecida como Lei Sarney, entre os anos de 1986 e 1989. Através dos números e gráficos arrolados, as autoras procedem a uma breve análise sobre essa experiência de política cultural inauguradora de um modelo longevo de financiamento e ainda pouco estudada. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Lei Sarney, Ministério da Cultura, Incentivos Fiscais, História da Administração Pública.

Pouco se produziu de conhecimento sobre a memória da primeira lei de incentivos fiscais destinados à cultura criada no Brasil – replicada depois nos níveis estadual e municipal e internacionalmente3. Resumida geralmente em apenas uma ou duas frases, a faceta mais evocada da Lei Sarney (Lei 7.505/86) é a da sonegação fiscal, decorrente da ausência de fiscalização. Apesar de a lei ter sido criada há apenas trinta anos, esse esquecimento resulta, sobretudo, da escassez de registros históricos que forneçam informações sobre o desenrolar da experiência. O conturbado contexto do período da redemocratização, acrescido da chegada ao poder do presidente Fernando Collor de Melo – que, através da MP nº151, dissolveu ou extinguiu diversos órgãos da administração pública, entre os quais o Ministério da Cultura e todas as suas instituições vinculadas4- acarretou uma significativa ausência de fontes primárias que possibi MBA em Gestão Cultural com Ênfase em Economia Criativa pela Fundação Getúlio Vargas e Bacharel em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 Doutora em história – UFF. Pesquisadora do setor de Políticas Culturais da FCRB sua atual Presidente. 3 A lei francesa N° 87-571, que dispõe sobre o mecenato via incentivos fiscais, data de 23 de julho de 1987 e guarda importantes semelhanças com a Lei Sarney no que diz respeito ao seu funcionamento. Devido às estreitas relações entre os gestores culturais de ambos os países, expressa desde o momento da primeira reunião do Fórum dos Secretários de Cultura – movimento que lançou as bases para a criação do MinC no Brasil – quando o embaixador francês Robert Richard ‘estimulava a criação de um Ministério da Cultura como na França’ (Botelho 2001, 245), podemos considerar uma troca de saberes entre a experiência brasileira e francesa. Disponível em: https://www.legifrance. gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000874956&dateTexte=vig. Acesso em 12/02/2016. 4 A MP nº151 extinguiu o Ministério da Cultura e dissolveu as seguintes instituições culturais: Fundação Nacional de Artes - FUNARTE; Fundação Nacional de Artes Cênicas - FUNDACEN; Fundação do Cinema Brasileiro FCB; Fundação Cultural Palmares - FCP; Fundação Nacional Pró-Memória - PRÓ-MEMÓRIA; Fundação Nacional Pró-Leitura - PRÓ-LEITURA; e também a Distribuidora de Filmes S.A. – EMBRAFILME. 1

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litassem estudos aprofundados. Em sua grande maioria, os arquivos dessas instituições foram pessimamente condicionados, quando não descartados ou dispersados. Dentre os poucos documentos remanescentes estão aqueles encontrados no Fundo do Conselho Federal de Cultura5, órgão que, por possuir a prerrogativa de fiscalizar a aplicação da Lei Sarney6, dispunha de parte dos registros sobre sua execução. Foi com base nas fontes históricas obtidas nesse Fundo que o presente estudo foi desenvolvido, a fim de lançar luz sobre essa rica experiência que teve lugar no Brasil entre os anos de 1986 e 1989. Abaixo, o leitor encontrará as conclusões iniciais obtidas a partir da análise dos dados disponíveis. Infelizmente, não há registros dos incentivos da categoria investimentos realizados no ano de 1989, o que se apresenta como um limite à pesquisa. 1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA SITUAÇÃO ECONÔMICA NA NOVA REPÚBLICA A economia brasileira no período que se convencionou chamar de Nova República (1985-1990) foi marcada por uma profunda instabilidade, permeada pelo constante fantasma da inflação. Foram ao todo, três trocas de moeda – Cruzado (1986), Cruzado Novo (1989) e Cruzeiro (1990) – e seis planos de estabilização7 econômica, com duração média de menos de um ano e todos frustrados em seus objetivos de conter o processo inflacionário.   As origens de tal instabilidade deitam suas raízes ainda no período autoritário, sobretudo em decorrência das medidas adotadas após o II Plano Nacional de Desenvolvimento (19751979), durante o governo do presidente Ernesto Geisel. O ambicioso II PND estabelecia como meta uma renda per capita de mil dólares em 1979, equivalendo ao dobro da renda média nos primeiros anos da década anterior. Já para 1977, o plano previa um Produto Interno Bruto superior a 100 bilhões de dólares, conferindo ao Brasil a oitava posição no ranking das economias mundiais (Brasil, II PND, p. 4). Em seu âmbito estavam previstos dois planos para o desenvolvimento científico e tecnológico, além do primeiro plano nacional de pós-graduação. Entre as fragilidades econômicas apontadas, constava a da grande quantidade de petróleo importado pelo país – mais de dois terços do combustível consumido – correspondendo esse produto a 48% da energia utilizada (Brasil, II PND, p. 4). O Fundo do CFC encontra-se atualmente em fase de tratamento, provisoriamente alocado no 10º andar do Palácio Gustavo Capanema. 6 As disputas políticas que levaram o órgão colegiado a possuir prerrogativas de fiscalização da Lei Sarney já foram abordadas pelas autoras em outro artigo – “A Fiscalização da Lei Sarney” – e fogem aos limites do presente escrito. 7 Plano Cruzado (Fevereiro 1986), Plano Cruzado II (Novembro 1986), Plano Bresser (Junho 1987), Plano Verão I (Janeiro 1989), Plano Verão II (Maio 1989) e o Plano Collor (Março 1990). 5

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Pautando-se na avaliação de que a crise e os constantes sobressaltos vividos pela economia mundial eram passageiros e de que as condições de financiamento eram favoráveis – com taxas de juros ex-ante reduzidas e longo prazo para a amortização – o II PND propunha uma “fuga para frente”, assumindo os riscos de aumentar provisoriamente os déficits comerciais e a dívida externa para consolidar uma base industrial nacional avançada, permitindo ao país superar o subdesenvolvimento. Desta forma, ao invés de aplicar um ajuste econômico recessivo, conforme as orientações econômicas ortodoxas, o plano propunha uma transformação estrutural financiada em larga medida pelo capital estrangeiro (JR. e KUGELMAS 1991, p. 149). O resultado de tamanho influxo de capital foi uma alta taxa de crescimento do PIB brasileiro, a despeito da estagnação da maioria dos países da OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico). Em suma, as metas de longo prazo sobrepõem-se às medidas para conservar a estabilidade econômica (CARNEIRO, 1989, p.306). Com isso, as taxas de crescimento do PIB, embora menores que as vigentes nos anos do milagre econômico (1968-1973), foram ainda elevadas, ao custo de aumentar-se demasiadamente a dependência do país em relação ao mercado internacional de capitais. Enquanto o preço do barril de petróleo se manteve estável e as taxas de juros relativamente baixas, o país logrou preservar sua capacidade de pagamentos, absorvendo novos capitais que permitiam a rolagem da dívida. No entanto, após o segundo choque da crise do petróleo em 1979 e do episódio conhecido como Setembro Negro – quando, em setembro de 1982, o governo mexicano decretou moratória da dívida externa, acarretando uma grande desconfiança dos investidores internacionais para com os países emergentes – a situação se agravou. A interrupção dos fluxos externos de capital, a redução de capacidade extrativa [impostos] e a ampliação do endividamento público externo e interno reduziram radicalmente a capacidade do Estado desencadear qualquer nova onda de inversões que canalizasse investimentos privados para tal ou qual setor. A poupança líquida do setor público cai vertiginosamente de 4,67% do PIB em 1975 para 2,24% em 1980, tornando-se negativa em 1985. Os investimentos públicos, que correspondiam em 1975 a 4,1% do PIB, caíram para 2,3% em 1985, pequena taxa ainda assim mantida graças a um déficit de 3,08% em relação ao PIB. (JR. e KUGELMAS 1991, p. 151) Foi em meio a esse contexto de crise econômica, alta dos juros e grande dificuldade para rolar a dívida externa que se deu a transição política brasileira. O principal efeito percebido pela população foi a alta do processo inflacionário, que atingiu o patamar da hiperinflação em 19898 com taxas de 1.972% a.a.. Na tentativa de controlá-la, Disponível em Global-rates: http://www.pt.global-rates.com/estatisticas-economicas/inflacao/1989.aspx. Acesso em: 12/02/2016. 8

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os sucessivos ministros da Fazenda9 se valeram de inúmeras medidas de choque, como o congelamento e indexação de preços, salários e taxas de câmbio, que apenas surtiam um efeito temporário antes de uma nova disparada inflacionária. Tudo isso se acrescia do conturbado período político vivido, marcado pela Assembleia Nacional Constituinte (1988) e posteriormente pela primeira eleição direta para Presidente da República (1989) após 29 anos. 2. REGRAS PARA INCENTIVAR ATRAVÉS DA LEI SARNEY É nesse contexto recessivo que o país fez sua transição do regime ditatorial para o regime democrático. A lei de anistia e a revogação do Ato Institucional nº 5, o pais foi às ruas reivindicar eleições diretas para Presidente da República. O governo conseguiu barrar a Lei Dane de oliveira e as eleições foram indiretas, vencendo o pleito Tancredo Neves que, no entanto, adoeceu e veio a falecer. Assumiu a Presidência da República José Sarney. Uma das reformas planejadas por Tancredo era a da criação do Ministério da Cultura. O novo presidente cumpriu o prometido anteriormente, mas sem um planejamento cuidadoso, o novo ministério nasceu com graves problemas, em especial orçamentários. Em seu primeiro ano de existência passaram dois Ministros pela pasta – José Aparecido de Oliveira e Aloisio Pimenta. Em fevereiro de 1986, assume o Minc o Ministro Celso Furtado – que se manteve por dois anos e cinco meses na pasta. É em meio a esse cenário que se dá a criação da primeira lei de incentivo à cultura no país. A Lei Sarney – sancionada em 2 de julho de 198610 e regulamentada em 3 de outubro do mesmo ano11 - facultava às pessoas físicas e jurídicas o abatimento no imposto de renda devido ao governo federal dos aportes realizados em favor de pessoas jurídicas de natureza cultural, devidamente cadastradas junto ao Ministério da Cultura, segundo os percentuais: I. 100% do valor em doações – Realizadas em benefício de uma entidade cultural no qual o incentivador não obtinha nenhum proveito. II. 80% do valor em patrocínios – Realizados em benefício de uma entidade cultural no qual o incentivador podia usufruir da publicidade e da propaganda, porém sem nenhum proveito pecuniário ou patrimonial. III. 50% do valor em investimentos – Realizados em benefício de uma entidade cultural no qual o incentivador dispunha de proveito pecuniário ou patrimonial. O limite máximo a ser respeitado era de 10% do valor do IR para pessoas físicas e 2% para pessoas jurídicas. Francisco Oswaldo Neves Dornelles (15 de março de 1985 até 26 de agosto de 1985), Dilson Domingos Funaro (26 de agosto de 1985 até 29 de abril de 1987), Luiz Carlos Bresser Gonçalves Pereira (29 de abril de 1987 até 21 de dezembro de 1987) e Maílson Ferreira da Nóbrega (13 de maio de 1987 até 15 de março de 1990). 10 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7505.htm. Acesso em 12/02/2016. 11 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985-1987/D93335.htm. Acesso em 12/02/2016. 9

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Caso o montante ultrapassasse esse teto percentual, era permitido ao incentivador efetuar o abatimento da quantia restante nos anos seguintes, dentro do limite de até cinco exercícios fiscais. Já a entidade beneficiada deveria aplicar as quantias aportadas até, no máximo, o exercício fiscal posterior ao seu recebimento. O Ministério da Cultura, a pedido da entidade cultural, podia prorrogar esse prazo. Se mesmo assim, por justa causa, a entidade não pudesse dar ao montante a destinação cultural devida, era-lhe facultada a regularização de sua situação através da incorporação dos valores incentivados ao Fundo de Promoção Cultural. O FPC era controlado pelo MinC e destinava-se ao incentivo das atividades culturais que não despertavam interesse privado, seja pelo tipo de ação desenvolvida ou decorrente de sua localidade. Podiam ser abatidos do lucro líquido das empresas e da receita bruta das pessoas físicas as despesas operacionais12 necessárias para a concretização da doação. Também era permitido o abatimento como despesa operacional dos valores destinados à conservação, preservação e restaurações de bens tombados pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de propriedade dos incentivadores – condicionada à aprovação prévia do projeto e à fiscalização de sua execução pelo SPAHN. As pessoas jurídicas que não tivessem usufruído dos incentivos fiscais podiam realizar uma doação de até 5% do imposto de renda para o Fundo de Promoção Cultural. Os investimentos eram destinados às pessoas jurídicas de natureza cultural com fins lucrativos, sediadas no Brasil e que estivessem sob controle, direto ou indireto, de pessoas naturais residentes no país. Nesta categoria, podiam se cadastrar no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CPC): as editoras que publicassem pelo menos 30% de títulos de autores nacionais; as livrarias que distribuíssem livros e outros produtos culturais; as produtoras audiovisuais, fonográficas e cênicas e as fábricas de instrumentos musicais e de insumos para fotografia, artes plásticas e cinema. O investimento se dava através da aquisição de títulos patrimoniais; da aquisição de ações nominativas preferenciais sem direito a voto; da aquisição de quotas de capital social e da aquisição de quotas de participante. Todos os títulos obtidos eram inalienáveis e impenhoráveis pelo prazo de cinco anos após sua aquisição. Era vetado o aporte de incentivos a pessoas ligadas ao contribuinte – cônjuge, dependentes e parentes até o 3° grau, assim como sócios, acionistas e diretores de pessoas jurídicas ligadas a ele. Também era proibida qualquer forma de corretagem entre o incentivador e a A saber: A remuneração a perito que venha, por iniciativa prévia do doador, avaliar os bens doados; os tributos incidentes sobre a doação; as despesas relativas à embalagem, ao transporte, seguro transporte e instalação do bem doado; as despesas cartorárias, relativas ao registro, traslados e certidões, das operações de doação; as despesas com a elaboração do projeto a ser apresentado para captação de recursos. Regulamentação da Lei Sarney -- Decreto 93.335/86 – Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985-1987/D93335.htm. Acesso em: 12/02/2016. 12

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entidade cultural, salvo a feitura de projeto e a captação realizada por profissionais ou entidade legalmente habilitadas13. 3. FISCALIZAÇÃO Quando concebeu o funcionamento da Lei Sarney, o então Ministro da Cultura Celso Furtado utilizou como base o modelo de abatimentos fiscais no IR decorrente de doações realizadas em favor de entidades filantrópicas. Seguindo esse formato, até hoje utilizado na França14, a fiscalização da Lei Sarney se voltava para a entidade cultural em si e não para um projeto específico, como se consagrou posteriormente com a Lei Rouanet. Em troca do montante aportado, creditado diretamente na conta da entidade cultural, o incentivador ganhava um recibo para anexar à declaração do IR. Desta forma, a lógica por detrás da Lei Sarney favorecia a continuidade e o fortalecimento das instituições culturais que podiam emitir os certificados de doação sem a necessidade de elaborar, aprovar e captar a cada novo projeto cultural. Apenas os incentivos superiores a Cz$ 212.000,00 (duzentos e doze mil cruzados) necessitavam ser previamente comunicados ao Ministério da Cultura e da Fazenda, cabendo ao MinC fiscalizar a execução do projeto. Para se cadastrar no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CPC), a entidade cultural deveria apresentar, além de alguns documentos de cunho administrativo, tais como o estatuto e os alvarás de funcionamento, uma declaração da administração local – prefeitura ou estado – que atestasse o desenvolvimento de suas atividades culturais. No entanto, devido às disputas políticas entre o Conselho Federal de Cultura e o Ministério da Cultura em torno de quais aspectos deveriam ser avaliados para a aprovação para captação

Inicialmente qualquer forma de corretagem era proibida, inclusive o serviço do “captador de incentivos”. No entanto, no momento da Regulamentação da lei, dado quatro meses após sua outorga, foi inserido uma parágrafo que relativiza essa intermediação. 14 Mecenato na França - Para receber os incentivos fiscais, a entidade beneficiária francesa deve ser uma “entidade de interesse geral” e a obra realizada também deve ser de interesse geral. Para ser considerada “entidade de interesse geral” a instituição deve ser sem fins lucrativos e a atividade desenvolvida não pode beneficiar uma quantidade restrita de pessoas. Pessoas físicas não podem receber incentivos diretamente das empresas, apenas por meio de uma entidade de interesse geral. Assim como na Lei Sarney, são as próprias entidades que, no momento de receber as doações, apreciam se preenchem ou não as condições para o mecenato dedutivo, sendo o sistema meramente declaratório. Apenas em caso de auditoria fiscal é que será verificado se o certificado foi emitido justificadamente. Caso uma entidade emita um certificado indevidamente, é aplicada uma multa equivalente a no mínimo 25% da doação. Em contrapartida, o contribuinte de boa fé não sofre sanções, podendo realizar a dedução no IR. Já o parrainage ou patrocínio possui caráter eminentemente comercial e nele ocorre a associação pública do nome da empresa à manifestação patrocinada. Não dá direito a nenhuma isenção fiscal, apenas ao abatimento do valor despendido como despesa operacional na renda total do patrocinador, para efeitos de cálculo do IR. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000874956&dateTexte=vig. Acesso em: 12/02/2016. 13

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dos projetos via Lei Sarney, esta permaneceu sem uma real fiscalização até sua revogação em 1990, pelo presidente Fernando Collor de Melo15. 4. LEI SARNEY EM NÚMEROS E GRÁFICOS A despeito dos problemas com a fiscalização, o cenário desvelado pelos números e gráficos arrolados abaixo demonstram a profunda importância que o mecanismo de renúncia fiscal teve para o mantenimento das atividades culturais no país durante os conturbados anos de crise econômica. Ao total, partido de julho de 1986, quando a Lei entra em atividade e sem somar os valores dos investimentos aportados em 1989 – cujas fontes não permitem um levantamento apurado – a Lei Sarney remeteu para as atividades culturais um montante de US$ 250.207.776,17, enquanto as receitas ministeriais, destinadas em larga medida à manutenção de suas estruturas – pagamento de funcionários, repasse de verbas às instituições vinculadas, etc. – foram na casa dos US$ 61.885.950.914,7216.

Ao compararmos ano a ano os orçamentos do Ministério da Cultura17 com os aportes realizados por meio da Lei Sarney, podemos perceber que nos anos de 1987 e 1989 o montante Ver: Duarte, R., Calabre L. “A fiscalização da Lei Sarney”, Anais do IV Seminário Internacional de Políticas Culturais, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2015, p 1300 – 1315. 16 Calculados de acordo com média anual do câmbio do dólar entre os anos de 1986 e 1989, obtida em: http://www. aasp.org.br/bonline/Tabs2098.htm. Acesso em: 07/02/2016. 17 Os orçamentos anuais do Ministério da Cultura dispostos no gráfico representam os valores totais investidos, somando-se o orçamento previsto na Lei Orçamentária Anual a todos os créditos suplementares abertos via decreto presidencial a cada ano. A saber: 1986 – Decretos 92.945/86; 92.982/86; 93.157/86; 93.362/86; 93.461/86; 93.675/86; 93.766/86; 1987 – Decretos 94.475/87; 94.524/87; 94.672/87; 94.890/87; 95.132/87; 95.152/87; 95.200/87; 95.289/87; 1988 – Decretos 96.025/88; 96.199/88; 96.329/88; 96.981/88; 97.021/88; 97.022/88; 97.136/88; 97.191/88; 97.272/88; 97.302/88; 97.358/88; 1989 – Decretos 97.971/89; 97.988/89; 98.000/89; 98.267/89; 98.268/89; 98.306/89; 98.512/89; 98.544/89; 98.577/89; 98.638/89. 15

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revertido por meio de incentivo fiscal superou o orçamento ministerial, o que denota a significativa importância que o mecanismo teve nesses períodos, uma vez que suas inversões não dependiam do também conturbado cenário político da Nova República.

Outro dado importante que pode ser visualizado nos gráficos é a tendência ao aumento dos incentivos realizados na modalidade patrocínio, o que nos permite supor um desenvolvimento do que nomeamos atualmente “marketing cultural” – ações de empresas que se valem de atividades culturais para promoção e valorização de suas marcas.

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No entanto, quando analisamos a distribuição regional dos aportes, deparamo-nos com as mesmas distorções encontradas atualmente com a Lei Rouanet, onde a grande maioria do montante incentivado, sobretudo na modalidade patrocínio e investimento, destina-se ao sudeste do país, precisamente ao eixo Rio-São Paulo – sendo o ano de 1988 especialmente demonstrativo dessa tendência, quando 80% dos incentivos foram aportados na modalidade patrocínio e destes, 60% destinaram-se a entidades situadas no estado de São Paulo.

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5. CONCLUSÕES Apesar de apresentar, de forma resumida, apenas as primeiras investigações realizadas após o tratamento dos dados obtidos no acervo, o presente estudo já auxilia a desvelar alguns relevantes aspectos dessa experiência pioneira de incentivo às atividades culturais. Mesmo com todos os problemas enfrentados durante a sua execução, principalmente no tocante à fiscalização

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das ações realizadas, a Lei Sarney revelou-se um importante mecanismo de incentivo ao campo, garantindo o influxo de recursos mesmo em tempos de profunda crise econômica e política. Nesse contexto, é deveras expressivo notar que nos anos de 1987 e 1989 os aportes realizados por meio da lei de incentivo fiscal superaram o conjunto das receitas ministeriais, apresentando-se como a principal via de incentivo à cultura nacional. Ademais, a concentração dos recursos na região sudeste, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, nos evidencia o mesmo cenário de distorções que presenciamos atualmente com a Lei Rouanet, assim como a importância que teve o Fundo de Promoção Cultural. Desse modo, as autoras pretendem, com o avanço da pesquisa acerca da Lei Sarney, contribuir com os estudos das políticas culturais desenvolvidas no Brasil, auxiliando na produção de indicadores econômicos, tão escassos como valiosos para a análise desse complexo cenário.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS OBRAS CITADAS: Botelho, Isaura. Romance de Formação: Funarte e política cultural (1976-1990). Rio de Janeiro: Edições Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. Carneiro Dionísio, “Crise e esperança, 1974-1980” in Marcelo de Paiva Abreu (org.), A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1989. Duarte, Renata, Calabre Lia, “A fiscalização da Lei Sarney”, Anais do IV Seminário Internacional de Políticas Culturais, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, 2015, p 1295 – 1310. Jr., Brasilio Sallum, Kugelmas Eduardo. “O Leviathan declinante: a crise brasileira dos anos 80.” Revista de Estudos Avançados 5 (1991): 145 - 159.

FONTES CONSULTADAS: Fundo do Conselho Federal de Cultura – alocado no Palácio Gustavo Capanema 10º andar sala 1015 – IPHAN. Brasil, II Plano Nacional de Desenvolvimento - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/1970-1979/anexo/ANL6151-74.PDF. Furtado, (Org.) Rosa D’Aguia, Arquivos Celso Furtado: Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, Rio de Janeiro, 2012. Série histórica da cotação do dólar - Site da Associação dos Advogados de São Paulo http://www.aasp. org.br/bonline/Tabs2098.htm Acesso em: 07/02/2016. Série histórica da inflação - Site Global Rates http://www.pt.global-rates.com/ Acesso em: 07/02/2016.

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LEGISLAÇÃO: Loi n° 87-571 – Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000 000874956&dateTexte=vig Lei 7.505/86 – Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7505.htm Decreto 93.335/86 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985-1987/ D93335.htm Decreto 9.3872/86 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d93872.htm Decreto 9.945/86 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-929 45-18-julho-1986-442945-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 92.982/86 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-92982 -23-julho-1986-443033-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 93.157/86 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-9315722-agosto-1986-443508-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 93.362/86 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-933 62-8-outubro-1986-443470-norma-pe.html Decreto 93.461/86 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-934 61-24-outubro-1986-443986-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 93.675/86 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-93 675-10-dezembro-1986-444289-norma-pe.html Decreto 93.766/86 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto93766-17-dezembro-1986-443988-norma-pe.html Decreto 94.475/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-94 475-17-junho-1987-444136-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 94.524/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-94 524-24-junho-1987-391921-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 94.672/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-94 672-23-julho-1987-445774-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 94.890/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-94 890-17-setembro-1987-444884-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 95.132/87 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-95 132-4-novembro-1987-445670-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 95.152/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-95 152-6-novembro-1987-445704-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 95.200/87 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-95 200-12-novembro-1987-445527-publicacaooriginal-1-pe.html

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Decreto 95.289/87 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-95 289-24-novembro-1987-446006-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 96.025/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-96025-9maio-1988-446761-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 96.199/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-96 199-22-junho-1988-446753-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 96.329/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-96 329-13-julho-1988-446972-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 96.981/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-9698114-outubro-1988-448180-norma-pe.html Decreto 97.021/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-97021 -25-outubro-1988-447627-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 97.022/88 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1988/decreto-97022 -25-outubro-1988-447634-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 97.136/88 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1988/decreto-97136 -23-novembro-1988-447525-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 97.191/88 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1988/decreto-97191 -7-dezembro-1988-447810-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 97.272/88 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D97272.htm Decreto 97.302/88 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D97302.htm Decreto 97.358/88 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D97358.htm Decreto 97.971/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-97971 -17-julho-1989-448777-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 97.988/89 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1989/decreto-97988 -25-julho-1989-448867-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 98.000/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98000 -26-julho-1989-325281-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 98.267/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-9826710-outubro-1989-448529-norma-pe.html Decreto 98.268/89 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98268-10outubro-1989-448532-norma-pe.html Decreto 98.306/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-9830618-outubro-1989-448614-norma-pe.html Decreto 98.394/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98394 -13-novembro-1989-448617-publicacaooriginal-1-pe.html

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Decreto 98.512/89 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98512 -13-dezembro-1989-448712-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 98.544/89 - Disponível em: http://www.camara.gov.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98544 -14-dezembro-1989-325334-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 98.577/89 - Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1989/decreto-98577 -18-dezembro-1989-325443-publicacaooriginal-1-pe.html Decreto 98.638/89 - Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D98638.htm

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POLÍTICAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA: UMA ABORDAGEM CONCEITUAL

Renata Rocha1

RESUMO: A partir da segunda metade do séc. XX, as políticas culturais têm adquirido relevância na agenda internacional, tornando-se alvo de investigações em distintas áreas. Poucos estudos sobre a temática, porém, priorizam a reflexão teórica e conceitual. Diante desta constatação, propõe-se debater, no âmbito latino-americana, as origens do campo teórico das políticas culturais, enfocando suas principais abordagens conceituais: a formalista e a crítica. Pressupõe-se que revisão das contribuições neste sentido mostra-se como um importante passo em busca de uma delimitação operacional e, ao mesmo tempo, crítica das políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, teoria, conceito, América Latina.

1. POLÍTICAS CULTURAIS: CONFUSÃO TERMINOLÓGICA E FRAGMENTAÇÃO DISCURSIVA Quais são os aspectos constitutivos do campo teórico que se debruça sobre as políticas culturais? Em que pese a expansão das reflexões acadêmicas e das incursões e iniciativas de organismos públicos e privados neste setor desde a segunda metade do século XX, ainda hoje são poucas as abordagens que se dedicam a constituir e delimitar os conceitos, objetos de estudo e métodos de pesquisa que consigam dar conta desta complexa temática. No Brasil, assim como na América Latina, as investigações sobre as políticas culturais se caracterizam pela dispersão disciplinar e pela proeminência de análises empíricas de experimentos em períodos, temáticas e espaços específicos (RUBIM, 2007). A esse respeito, a teórica colombiana Ana Maria Ochoa Gautier (2003) ressalta que a presença de “...confusão terminológica, de fragmentação discursiva, de dispersão escritural e de sentidos, não é apenas um produto das diferentes práticas às quais a noção de política cultural remete, mas parte constitutiva do campo na atualidade” (p. 65-66, tradução nossa) Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Cultura e Sociedade pela UFBA. Vice-coordenadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), também da UFBA. Email: [email protected].

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Diante do caráter multi/interdisciplinar do campo, as reflexões que privilegiam aspectos teóricos e conceituais devem considerar a impossibilidade de cobrir todos os clássicos, períodos e séculos, bem como todas as teorias utilizadas pelos principais autores. Como alternativa metodológica, a pesquisadora holandesa Mieke Bal (2009), ao se dedicar à análise e crítica cultural, propõe a ênfase nos conceitos. Não se trata de abandonar o rigor, mas de se mitigar a divisão disciplinar, considerando os termos utilizados a partir do seu caráter intersubjetivo, visto que “estar de acordo não quer dizer estar de acordo com o conteúdo, mas estar de acordo com as normas básicas do jogo: ao se utilizar um conceito, o uso se dará de uma certa maneira para que a divergência em relação ao conteúdo tenha sentido” (p. 23, tradução nossa). Os contextos, os marcos e as concepções teóricas que sustentam e envolvem as noções também devem ser considerados, pois tornam possível a problematização e identificação de seus pressupostos e consequências teóricas. Com base nesses pressupostos, propomos a realização de breve um recorrido sobre algumas das principais reflexões que se dedicaram a elaborar uma definição rigorosa de políticas culturais no âmbito da América Latina. Embora a análise dos processos históricos da praxis das políticas culturais não seja o foco deste texto, reiteramos que os estudos realizados acerca desta temática possuem como objeto privilegiado formulações e práticas políticas realizadas em espaços e contextos específicos. Por este motivo, são influenciados, sobremaneira, pela conjuntura histórica, política e social do território onde se desenvolvem. 2. MOVIMENTOS PRECURSORES DA INSTITUIÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS No já clássico no artigo Políticas culturales y crisis de desarrollo: un balance latino-americano, o antropólogo Néstor Garcia Canclini (1987) propõe uma caracterização dos estudos e pesquisas sobre as políticas culturais. O autor distingue cinco movimentos nas últimas décadas do século passado que representam avanços nessa área de estudos. São eles: a) o deslocamento das descrições burocráticas para a conceituação crítica; b) das cronologias e discursos à pesquisa empírica; c) das políticas governamentais aos movimentos sociais; d) das investigações nacionais à pesquisa internacional; e) da documentação sobre o passado à análise crítica e o planejamento. Os movimentos apontados contribuem de maneira efetiva para uma compreensão global da evolução dos estudos sobre as políticas culturais ao apontar discussões, ainda hoje necessárias, e seus principais pontos de partida, aos quais nos dedicaremos a seguir. Em que pese a inegável afinidade e interpenetração entre as esferas da cultura e da política ao longo da história da humanidade, diversos autores convergem em situar o surgimento das políticas culturais no séc. XX, a partir da assunção de novas modalidades de relações entre política e cultura. Xan Bouzada Fernandez (2007), Raymond Willians (2011) e Albino Rubim

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(2012) caracterizam como momentos emblemáticos do processo de nascimento das políticas culturais: o surgimento das missões pedagógicas e centros de cultura da República Espanhola nos anos 1930, a criação do Conselho das Artes da Inglaterra na década de 1940 e a instituição do Ministério dos Assuntos Culturais da França em 1959. Embora os modelos de intervenção sejam distintos entre si, “o que importa destacar é que os Estados, com diversas modalidades e concepções, assumiram a responsabilidade de orientar com políticas culturais suas intervenções no território nacional e nas ações internacionais, dotando-se de estruturas administrativas, normativas e financeiras específicas (BAYARDO GARCÍA, 2008, p. 18, tradução nossa) Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigmas: nestas experiências, em lugar da instrumentalização da cultura pela política, esta última torna-se meio para desenvolver a cultura. A constituição de um campo de estudos dedicado a uma análise das relações entre cultura e política, sob a égide da terminologia política cultural, remonta, portanto, a esse novo paradigma. Outro marco deste processo é a promulgação em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), quando a cultura é referida como um direito. Reconhecer a cultura como necessidade social e individual – de participar da vida cultural da comunidade, gozar das artes, disfrutar dos benefícios do progresso científico, bem como da proteção jurídica à criação – constitui um relevante passo para superar a ideia de que a dimensão cultural seria supérflua (LOGIÓDICE, BAYARDO; 2012, 2008). Também merece destaque uma iniciativa engendrada pela Organização das Nações Unidas Para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco): a coleção Studies and documents on cultural policies. O primeiro documento da série, Cultural policy a preliminary study, publicado em 1969, resulta de uma mesa-redonda sobre políticas culturais realizada em Mônaco, em 1967. A noção de política cultural adotada subsidia a compreensão, não apenas do modo como os textos subsequentes da coleção abordam o tema, mas o programa adotado pela Unesco em sua 15ª Conferência Geral (Paris, 1968), que culmina com a Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais – Mondiacult (Cidade do México, 1982). Segundo o documento, ...entende-se por “política cultural” um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas e orçamentárias e procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural do Estado. Obviamente, não pode haver uma política cultural adequada para todos os países; cada Estado-Membro determina sua política cultural de acordo com os próprios valores culturais, metas e escolhas. (UNESCO, 1969, p. 4, tradução nossa) São enumerados, ainda, dois aspectos-chave para a implantação de políticas culturais pelos países-membros: (a) que “política cultural” deve ser compreendida como a totalidade consciente e deliberada das práticas, ações ou ausência de ações em uma sociedade, visando a atender certas necessidades culturais por meio da

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utilização otimizada de todos os recursos físicos e humanos disponíveis para aquela sociedade em um dado momento; (b) que determinados critérios deverão ser definidos para o desenvolvimento cultural, e que a cultura deve ser associada ao cumprimento do desenvolvimento individual, económico e social (UNESCO, 1969, p. 10, tradução e grifo nossos) O conceito acentua a relação entre as políticas culturais e a questão nacional, na qual reside sua legitimidade. Mais do que produto de reflexão do organismo, tal opção reflete o contexto das políticas culturais do período, nas quais a participação de agentes diversificados e a abrangência multiesférica ainda se mostravam bastante incipientes. Cabe pontuar, ainda, que a “ausência” de política é considerada uma forma deliberada de silenciamento estatal frente às questões culturais, cujas principais consequências costumam ser a manutenção do status quo e beneficiamento do mercado. Diante da inadequação da ação privada, estas políticas devem ser integradas ao planejamento do Estado, cuja intervenção, ainda que essencial, não deve interferir na liberdade de criação, nem contribuir para a passividade do público (UNESCO, 1969). Mesmo evidenciando a autodeterminação dos Estado-Membros na definição de políticas, com base nos seus valores culturais, metas e escolhas, a Unesco apresenta uma série de prescrições quanto à avaliação e planejamento e indicativos acerca da criação artística, agentes e canais de difusão para o setor cultural. Rubim (2012) assevera que o período no qual se plasma o modelo inicial de políticas culturais se caracteriza por uma evidente vocação: centralizadora, estatista e ilustrada, com um nítido viés de atenção para os aspectos estéticos e artísticos2. Após a divulgação deste primeiro título, com vistas a subsidiar a Conferência Inter-Governamental sobre os Aspectos Institucionais, Administrativos e Financeiros das Políticas Culturais (Veneza, 1970), a Unesco deu continuidade à coleção. Ao longo dos anos 1970 e 1980, foram publicados cerca de setenta textos sobre as políticas culturais de Estados-membros de todo o mundo enfatizando o modo como são planejadas e implantadas as políticas culturais3. O extenso conjunto, segundo García-Canclini (1987), limita-se a descrever e enumerar, formal e burocraticamente, as instituições estatais e atividades realizadas no campo cultural em nível nacional. Apesar das críticas em relação ao formato adotado, apontadas pelo autor, e mesmo ao conceito de política cultural elaborado, cabe pontuar que embora o organismo não inaugure as políticas culturais, os estudos de políticas culturais e tampouco a definição de políticas culturais Os participantes da mesa-redonda decidiram, por unanimidade, não se dedicar à complexa definição de cultura, num momento em que sua concepção mais restrita – explicitada no seu Ato Constitutivo “como o acúmulo de saber, refletida nas produções artísticas e intelectuais” (PITOMBO, 2007, p. 120) – se direcionava à ideia, hoje prevalecente na instituição, de cultura “como um conjunto de diferentes modos de pensar, ser e sentir – ou seja, um dispositivo capaz de forjar uma identidade própria ao tempo em que constitui diferenças” (Idem, Ibidem). 3 Dentre os países latino-americanos, foram publicados diagnósticos sobre a Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Guatemala, Guiana, Honduras, Panamá, Peru e Venezuela, conforme levantamento na base de dados da Unesco. Ver em: http://www.unesco.org/new/en/unesco/resources/publications/unesdoc-database/ 2

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no mundo ocidental, é inegável sua relevância para o agendamento e promoção em nível planetário das reflexões sobre processos que se iniciam em países centrais, em contextos específicos4, e que vão ter importante incidência no cenário político e cultural, em especial, na América Latina, na década de 19805. 3. DOS INFORMES BUROCRÁTICOS, CRONOLOGIAS E DISCURSOS À REFLEXÃO CRÍTICA E SISTEMÁTICA Como visto, as intervenções iniciais de políticas culturais nacionais, com destaque para a experiência francesa, amplificadas no âmbito internacional pela promoção de diagnósticos e encontros, desprendem uma primeira emergência do tema na cena pública mundial, com significativas repercussões teóricas, entre os anos 1970 e 1980 (RUBIM, 2012). García Canclini (1987) pontua, ainda, outros marcos para sua manifestação na América Latina, não apenas na esfera acadêmica, mas política. Na região, os estudos sobre a modernização, então concebida como uma aproximação aos modelos industriais dos países centrais, compreendiam a cultura, em especial a de caráter tradicional, como obstáculo para o desenvolvimento. Contudo, a crise do modelo de desenvolvimento economicista – incapaz de solucionar as desigualdades sociais, a explosão demográfica e a depredação ambiental – trouxe interrogantes sobre as bases culturais da produção e do poder. Por sua vez, a ampliação do conceito de cultura contribuiu para sua inserção no campo político, ao situar sua importância nos modos de socialização, formação das concepções políticas e estilos adotados nos distintos modelos de desenvolvimento. Nesse contexto, se destaca a criação do Grupo de Trabalho sobre Políticas Culturais no Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Composto por proeminentes intelectuais como José Joaquín Brunner, Néstor García Canclini, Oscar Landi, Ségio Miceli, entre outros, o grupo realizou uma pesquisa comparativa sobre as relações entre política cultural e consumo em diversos países da América Latina. Já em 1982, foram realizados dois eventos que, segundo García Canclini (1987), transcendem as descrições burocráticas para examinar as bases conceituais da ação cultural. Ambos resultaram em livros, com a participação de pesquisadores e gestores culturais: Culturas populares y políticas culturais, organizado no mesmo ano por Guillermo Bonfil Batalla, e Estado e Cultura no Brasil, coordenado por Sérgio Micelli e publicado em 1984. As reflexões se dedicam a aspectos até então pouco contemplados: a pesquisa empírica, a análise crítica, o planejamento e os movimentos sociais. Apesar do caráter inaugura Não nos parece coincidência que, no final dos anos 60, o modelo francês de políticas culturais seja colocado em cheque, por sua visão elitista e não democrática, e que novas alternativas sejam reivindicadas (RUBIM, 2012). 5 Albino Rubim (2012) pontua como importantes iniciativas do organismo a realização da Conferência Inter-Governamental sobre Políticas Culturais (Veneza, 1970), as conferências regionais da Europa (Helsinski - 1972), África (Acra, 1975) e América Latina e Caribe (Bogotá, 1978), cujo ponto culminante é a Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais, a Mondiacult, realizada em 1982, na Cidade do México. 4

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dor e sistemático, divergimos de García Canclini quando as define como obras de conceituação crítica, visto que elas não se dedicam ao exercício conceitual. Maria Júlia Logiódice (2012) enfatiza como provável feito mais significativo do período, pelo amplo alcance e impacto, a publicação do livro, já citado, Políticas Culturales en America Latina, em 1987. A obra abarca reflexões sistemáticas sobre as políticas culturais (bem como sobre cultura política) nos Estados Unidos (Jean Franco), Brasil (Miceli) e Argentina (Landi); um estudo sobre as políticas para os povos indígenas (Guillermo Bonfil Batalla); e duas análises sobre as políticas culturais enquanto campo teórico e institucional (Brunner e García Canclini). Os textos de Brunner e García Canclini, aos quais nos ateremos, apresentam noções bastante distintas de políticas culturais. É emblemático o fato de que eles encerrem as duas principais abordagens conceituais identificadas na literatura latino-americana, que permanecem em debate até os dias de hoje. Para além de um embate entre correntes teóricas, estão em disputa perspectivas distintas de cultura. De um lado, são enfatizados os aspectos processuais e relacionais e as questões concernentes ao poder e seus efeitos nas lutas simbólicas pela construção da hegemonia6 e interpretação dos significados. De outro, a cultura é enfocada por um viés formalista, que privilegia os circuitos organizados do campo e seus aspectos estéticos. 4. CULTURA, POLÍTICA E PODER: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DAS POLÍTICAS CULTURAIS Influenciados pelo vasto campo temático dos Estudos Culturais dos Estados Unidos da América, os estudos da cultura na América Latina empreendidos por autores como García Canclini, Carlos Altamirano e Oscar Landi, adotam novas perspectivas para suas investigações. O que vemos começar a obter destaque são as práticas culturais imersas em mundos de vida diferentes – religiosos, estéticos, de consumo etc. – e atravessadas por dimensões que remetem a situações e cenários econômicos, políticos e, sociais, cujo estudo mobiliza saberes e métodos de muitas disciplinas e linguagens expositivas muito diferentes também (MARTIN-BARBERO, 2010, p. 139, tradução da autora). Apesar da dispersão e diversidade, são aspectos constitutivos desta corrente teórica: a politicidade da cultura com base na noção de hegemonia; a ascensão de numerosos “objetos menores” a objetos de investigação científica ou cultural e a transdisciplinaridade como ponto de partida ou meta a ser perseguida (GRIMSON, CAGGIANO, 2010). Não é um acaso que o paradigmático conceito de políticas culturais de García Canclini as invoque como:

A concepção abrange as relações variáveis de poder em uma determinada sociedade e a forma concreta como elas são vividas. A hegemonia seria, portanto, a capacidade de um setor ou grupo de setores de uma classe social de gerar consenso favorável sobre seus interesses e fazê-los equivaler como interesses gerais. (GRAMSCI, 1978).

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[...] o conjunto de intervenções realizadas pelo Estado, as instituições civis e os grupos comunitários organizados, a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social7 (GARCIA CANCLINI, 1987, p. 26, tradução nossa). Essa noção permanece sendo amplamente utilizada pelos estudiosos de políticas culturais, devido a seu caráter abrangente e capacidade crítica, logrando ressaltar, de forma bastante sintética, aspectos como: a existência de múltiplos agentes como promotores de políticas; a reafirmação da cultura como necessidade; e o reconhecimento da dimensão simbólica do desenvolvimento e do papel da cultura na orientação deste desenvolvimento. A dimensão mais geral do campo simbólico é enfatizada, ultrapassando o âmbito da organização e mediação cultural, ainda que não o exclua. No entanto, cabe indicar e debater algumas lacunas identificadas, a fim de superá-las. Inicialmente, a compreensão da política cultural como formadora de consenso, seja ele hegemônico ou contra hegemônico nos parece relevante, ao tomar como ponto de partida a cultura como os “modos específicos como os atores se enfrentam, se aliam ou negociam”. (GRIMSON; SEMÁN, 2005, s/p, tradução nossa). Supera-se, desta forma, uma suposta neutralidade, inscrevendo a cultura e as políticas culturais nos conflitos e lutas que marcam a sociedade. Esta opção, porém, implica o risco de ampliar em demasiado o conceito, de modo que a cultura deixe de ser finalidade, para tornar-se mero instrumento da política cultural. Além disso, a ideia de política como “conjunto de intervenções” carece de um maior detalhamento com o intuito de estabelecer sua sistematicidade, continuidade, abrangência e centralidade, explicitando as diferenciações entre uma mera ação/intervenção e uma política cultural. A perspectiva de políticas culturais apresentada por Teixeira Coelho, em seu Dicionário Crítico de Políticas Culturais (1997), nos parece um desenvolvimento dessa acepção, inclusive em busca de superar algumas questões já elencadas. Vejamos: Constituindo [...] uma ciência da organização das estruturas culturais, a política cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, a distribuição e o uso da cultura,

Em 2005, García Canclini acrescenta à definiçãoque “esta maneira de caracterizar o âmbito das políticas culturais necessita ser ampliada tendo em conta o caráter transnacional dos processos simbólicos e materiais na atualidade” (p. 65). Visto que os fluxos comunicacionais e a construção das identidades simbólicas, ultrapassam as fronteiras dos espaços nacionais, faz-se necessário problematizar a restrição do conceito à realidade nacional. 7

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a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável. (COELHO, 1997, p. 293) O autor detalha, ainda, que as intervenções podem adotar a forma de normas jurídicas, procedimentos tipificados ou ações culturais diretas, e lista como objetivos da política cultural “promover a produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável” (Id., Ibid.). Destaca-se, positivamente, o caráter instrumental e burocrático das políticas, no entanto, a opção pela enumeração incorra no risco de omitir objetivos outros das intervenções. O confronto entre as noções de García Canclini e de Teixeira Coelho, por sua vez, evidencia a supressão, nesta última, do objetivo de “obter consenso para um tipo de ordem ou de transformação social” (GARCIA CANCLINI, op. cit.). Sob o argumento de que tal perspectiva pressupõe uma ideia elitista de difusão cultural de “levar a cultura ao povo”, Coelho assevera que a noção de política cultural “apresenta-se com frequência sob uma forma altamente ideologizada” (1997, p. 293) e “em ampla medida devedor de uma visão conspiratória da realidade social e política” (Idem, p. 293). Contudo, como visto, esta interpretação não condiz com a percepção de García Canclini, nem com a teoria que o embasa. Acerca da definição de Coelho, Alexandre Barbalho (2005) questiona a atribuição, pelo autor, às políticas culturais do termo ciência. A atuação neste âmbito não pode ser considerada um “estudo” e tampouco se constitui como científica: ela pode (e deve) ser objeto de estudos e reflexões a partir das áreas já existentes (história, antropologia, sociologia, dentre outras) ou sob um enfoque multidisciplinar, mais adequado a este tipo de estudo. 5. POLÍTICAS CULTURAIS E SUA CONCEPÇÃO FORMALISTA Ainda fruto da conjuntura existente nos anos 1980, toma relevo a abordagem de políticas culturais sob o viés formalista. Ainda que pouco referida entre os autores latino-americanos dedicados ao tema, ela é frequentemente reivindicada, até os dias de hoje, entre os diversos agentes do campo cultural. A recusa em considerar a disputa por valores, no contexto de políticas culturais democráticas, tem como argumento a necessidade de garantir o pluralismo e o equilíbrio entre os agentes frente a perspectivas de controle excludentes, autoritárias ou monopólicas. Uma importante referência nesta direção, conforme já mencionado, é o artigo Políticas culturales y democracia: hacia una teoría de las oportunidades (1987). Nele, o pesquisador chileno José Joaquín Brunner, inspirado nas premissas do pluralismo político, elabora um mapa analítico das oportunidades existentes para atuação das políticas culturais, explicitando as possíveis formas de interferência cultural em um ambiente democrático. […] as políticas culturais democráticas são – em um sentido mais geral – políticas formais. Buscam ajustes institucionais mais do que aplicar

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conteúdos cognitivos à sociedade. Buscam criar estruturas de oportunidades (mercados, sistemas de seleção, pluralidade de ofertas, variedade) e, ao mesmo tempo, impedir (mediante compensações, procedimentos, formas de controle, medidas de competição, abertura de bloqueios, etc.) que essas estruturas de oportunidades sejam objetos de social closure, de isolamento ideológico ou de qualquer forma de manipulação monopólica. (1987, p. 198, tradução nossa e grifos do autor) Tais ajustes institucionais deveriam intervir apenas nos níveis organizacionais do campo cultural, os circuitos culturais8. Restaria assegurada, então, uma estrutura institucional que garantiria formalmente aos indivíduos a oportunidade de aderir ao modelo ou de expressar os próprios valores culturais. Laura Maccioni (2002), destaca que o conceito de políticas culturais de Brunner se assenta na definição, também formal, de democracia, compreendida como: […] um sistema onde há múltiplos atores que perseguem políticas estratégicas dentro de um marco competitivo, produzindo resultados epifenomênicos e efeitos perversos, o qual se traduz, para cada participante, no fato em que ninguém pode obter garantias de que seus interesses triunfarão por completo, nem pode estar certo de que suas posições serão continuamente preservadas (BRUNNER,1987, p. 196, tradução nossa) O permanente conflito do processo político resulta na indeterminação, em certa medida, dos seus resultados. Caberia, portanto à política cultural, em lugar de promover a hegemonia, criar um marco constitucional de possibilidades para que os agentes possam materializar e expressar seus interesses e assegurar a existência e expansão da diversidade dos circuitos culturais. É sob tal perspectiva que Brunner compreende as políticas culturais, enquanto [...] tentativas de intervenção deliberada, com os meios apropriados, na esfera de constituição pública, macrossocial e institucional da cultura, a fim de obter os efeitos desejados. São, geralmente, formas de intervenção que tendem a operar no nível organizacional da cultura: preparação e carreira dos agentes, distribuição e organização dos meios, a renovação dos meios, formas institucionais de produção e circulação de bens simbólicos, etc. (BRUNNER, 1988, p. 268, tradução nossa). Tal intervenção se restringe, portanto, à dimensão da cultura que diz respeito à esfera especializada de produção simbólica. Já a dimensão cultural “que abarca a totalidade das interações sociais mediante as quais os indivíduos (e as sociedades) fazem sentido cotidianamente de seus pequenos mundos e do mundo (grande) em geral” (Id., Ibid., tradução nossa) escaparia a qualquer intervenção política direta. A interferência neste âmbito, segundo o autor, requereria A matriz básica destes circuitos, segundo Brunner (1988) é a combinação típica de agentes (produtores profissionais, empresas privadas, agências públicas e associações voluntárias); instâncias institucionais de organização (administração pública, mercado e comunidade); meios de produção (sobre os quais incidem a base tecnológica, propriedade de meios e organização de agentes e meios); canais de comunicação (relativos ao condicionamento tecnológico e o acesso de agentes e públicos); e públicos.

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bem mais do que políticas culturais9. Contudo, a dimensão cotidiana da cultura, se constitutiva da vida social, também conforma e influencia o circuito cultural. Logo após sua publicação, o “formalismo” de Brunner é contestado por Beatriz Sarlo em um artigo publicado na revista argentina Punto de Vista. Segundo a autora, diante da grande desigualdade social e cultural dos países latino-americanos, mais do que preservar o equilíbrio, a política cultural – em especial desenvolvida pelo Estado – deveria interferir neste campo profundamente desequilibrado. Limitar as políticas a funcionar como garantias de igualdade formal dos agentes que intervenham, supõe uma abstração ou grau zero de desigualdade cultural e material. No processo cultural, os sujeitos não são efetivamente iguais, nem em suas oportunidades de acesso aos bens simbólicos, nem em suas possibilidades de escolher, inclusive dentro do conjunto de bens que estão efetivamente a seu alcance (SARLO, 1988, p. 9, tradução nossa) Sarlo sustenta, portanto, que não há políticas culturais “neutras”. Embora a garantia de existência de um mercado livre de circulação dos bens simbólicos seja condição formal indispensável, tal medida não garante o equilíbrio das desigualdades reais de acesso a esses bens. A democratização do acesso, diante da necessária limitação de recursos culturais prévios, implica, portanto, intervir não apenas nas formas institucionais, mas proceder a opção por valores expressos tanto nas formas como nos conteúdos das mensagens. A definição formal de políticas culturais abre uma série de problemas, ao mesmo tempo que garante que eles são sejam resolvidos mediante imposições ideológicas. O pior, em uma política cultural, não é sua relação com valores, mas sim que estes não sejam objeto de discussão permanente, incluindo os valores inscritos no marco mais amplo definido por Brunner (SARLO,1988, p. 9, tradução nossa). Às questões pontuadas, podem ser somadas outras, também relevantes. Em primeiro lugar, o tema dos valores, conteúdos e formas, não pode ser abordado apenas com base na desigualdade cultural e material nas sociedades latino-americanas. A discussão não se invalida em sociedades mais igualitárias, se considerarmos que, ao ampliar, ou “antropologizar” a noção de cultura, os valores – agora explicitados em conceitos como o delineado pela Unesco10 em 1982 – tornam-se aspecto constitutivo do próprio campo cultural. Se os valores sociais fazem parte da cultura, torna-se inexequível a ideia de uma política cultural que não os considere. O paradigmático texto de Isaura Botelho (2001) Dimensões da cultura e políticas públicas toma como base as reflexões de Brunner, para demarcar duas dimensões – a antropológica e a sociológica – da cultura para a análise e formulação de estratégias de políticas públicas na área da cultura. 10 A cultura é, naquele momento, considerada como [...] o conjunto dos aspectos distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Ela engloba ademais das artes e as letras, os modos de vida, os direitos fundamentais ao ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. (UNESCO, 1982, p. 43, tradução nossa) 9

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Ademais, resulta contraditório reivindicar que o estado democrático não intervenha nos conteúdos e formas das políticas culturais, visto que tal interdição não é sugerida a outros atores (inclusive o mercado e as empresas privadas). Ademais, trata-se de um reducionismo a ponderação da incapacidade do estado democrático de produzir valores que não sejam impositivos e autoritários, em especial, ao considerar seus corpos estáveis, comocentros de pesquisas, instituições culturais, universidades, emissoras públicas de comunicação etc. 6. NOÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE POLÍTICAS CULTURAIS Em meio à crise socioeconômica das sociedades latino-americanas na década de 1980, agravadas pela adoção intensa dos programas de retração de gastos e inibição das iniciativas estatais no marco Consenso de Washigton, García Canclini (1987) já apontava como um paradoxo o fato de que, justamente quando se compreende melhor “o papel que a cultura pode cumprir na democratização da sociedade estamos nas piores condições para desenvolvê-la, redistribuí-la fomentar a expressão e o avanço dos setores populares” (p. 26, tradução nossa). De fato, na década seguinte, o modelo neoliberal torna-se hegemônico, determinando, segundo Rubim (2012), o colapso da primeira emergência das políticas culturais, diante da prevalência do mercado sobre a política como modalidade de organização da sociedade e da cultura. Também influenciam esse processo a disjunção entre as políticas culturais e a questão nacional e o declínio das iniciativas da Unesco, devido a diminuição de seus recursos após a saída de países como os Estados Unidos da América11 e o Reino Unido, ainda nos anos 1980. Apesar das limitações, a Unesco não permanece paralisada e sua atuação catalizadora no agendamento público de debates e reflexões engendram a “segunda e contemporânea emergência das políticas culturais” (RUBIM, 2012, p. 22). Segundo García Bayardo (2008), [n]o marco da Terceira Década Mundial para o Desenvolvimento Cultural 1988-1997, a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento produziu o informe Nossa Diversidade Criadora (1996). A este seguiria a Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo, 1998). No entanto, os novos passos decisivos seriam dados pela Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (Paris, 2001) e pela Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais (Paris, 2005) (p. 25, tradução nossa) Na América Latina, tais ações exercem um relevante papel ao estimularem a construção de novas agendas políticas, somadas aos esforços de alguns países em elaborar legislações culturais e implementar planos de cultura (CALABRE, 2013), certamente influenciados pelas

Apenas este país, segundo García Bayardo (2007) respondia por 65% das verbas publicitárias do organismo.

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eleições de governantes de esquerda12 e seu empenho em estabelecer modelos sócio-econômico-políticos alternativos às políticas neoliberais das últimas décadas (ELIAS, 2006). Conforme veremos, as noções contemporâneas de políticas culturais mais difundidas na região adotam como base13 a corrente teórica de estudos latino-americanos, acima aludida, sobre a cultura que privilegia as dimensões de disputas e tecnologias de poder, estratégias políticas e práticas de atores sociais, em detrimento da abordagem formalista. Escobar, Alvarez e Dagnino (2000), por exemplo, concebem as lutas democráticas como processos de redefinição tanto do sistema político como das práticas econômicas, sociais e culturais que poderiam gerar um novo ordenamento da sociedade como conjunto. Assim, a pluralidade de agentes inseridos neste campo promove um deslocamento na perspectiva de cultura que, agora mobilizada com fins políticos e sociais, transcende a esfera do simbólico referido como expressões artísticas. As políticas culturais são, então, interpretadas como: [...] o processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros. Essa definição supõe que significados e práticas - em particular aqueles teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes e assim por diante, todos concebidos em relação a uma determinada ordem cultural dominante - podem ser a fonte de processos que devem ser aceitos como políticos. [...] Isto é, quando apresentam concepções alternativas de mulher, natureza, raça, economia, democracia ou cidadania, que desestabilizam os significados culturais dominantes, os movimentos põem em ação uma política cultural. (p. 24-25) Coincidimos com os autores acerca da relevância da dimensão política da cultura na instituição de significados e práticas, e que estes, por sua vez, desestabilizem a ordem cultural dominante. Esta ênfase, que se constrói em âmbito marginal, atenta para os movimentos sociais e o modo como o cultural, nestes movimentos, abarca não apenas as demandas identitárias, mas a mobilização contínua dos atores populares contra projetos dominantes de desenvolvimento, construção de uma nação e repressão. Apesar da relevância do debate, a adoção desta noção como política cultural14, incorre em uma potencial armadilha: a perda de sua operacionalidade A exemplo da eleição de Hugo Chávez (Venezuela) em 1999, Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) e Evo Morales (Bolívia) em 2002, Néstor Kirchner (Argentina), em 2003 e Tabaré Vazquez (Uruguai), em 2005. 13 Mesmo no caso em que algumas perspectivas relevantes dessa corrente de pensamento sejam refutadas, conforme visto no conceito elaborado por Teixeira Coelho (1997). 14 Resta evidenciado aqui o difícil jogo de traduções que obscurecem os matizes semânticos das palavras. No português, a expressão políticas culturais é invocada como uma prática política concreta de desenho e implementação de programas e projetos especificamente relacionados com a mobilização do simbólico enquanto expressão estética, e não como o campo simbólico em geral. Seria o que chamaríamos, em inglês, de cultural policies (OCHOA GAUTIER, 2003). Escobar, Alvarez e Dagnino, porém, traduzem, deliberadamente, a noção cultural politcs como políticas culturais. Em consonância com Ochoa Gautier (2003) entendemos que sua aplicação, ao longo do texto, refere-se, com maior propriedade ao político do cultural. 12

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em função de sua abrangência. Ou seja, em lugar de intervenções deliberadas com base em objetivos específicos, a noção assumiria um papel de metapolítica (MACCIONI, 2002) Após uma breve reflexão sobre as diversas concepções de políticas culturais em voga na América Latina (GARCÍA CANCLINI, COELHO, ESCOBAR et al; 1987, 1997, 2000), a pesquisadora colombiana Ana Maria Ochoa Gautier propõe atualizá-la como: [...] a mobilização da cultura levada a cabo por diferentes tipos de agentes – o Estado, os movimentos sociais, as indústrias culturais, instituições como museus ou organizações turísticas, associações de artistas e outros – com a finalidade de transformação estética, organizacional, política, econômica e/ou social. (OCHOA GAUTIER, 2003, p. 20, tradução nossa) A opção por delimitar as políticas culturais como “mobilização da cultura” representa um recuo ao paradigma prévio da própria acepção, visto que o cultural não serio o objetivo das políticas, mas o meio ou instrumento para se alcançar finalidades especificas, a exemplo da “transformação estética, organizacional, política, econômica e/ou social”. A dimensão cultural, por sua vez, é enfatizada apenas no primeiro deles. Ao priorizar, portanto, a construção da hegemonia – ressaltando o político do cultural – Ochoa Gaultier se alinha a Escobar, Alvarez e Dagnino (2000), situando a política cultural novamente como metapolítica. E, embora se refira, ao longo da obra como um todo, à política cultural como prática política concreta no campo do simbólico – dedicando-se à análise do Ministério da Cultura da Colômbia – o conceito em análise mantém a já aludida e, a nosso ver, prejudicial, abrangência. Já Toby Miller e George Yúdice, estabelecem como objetivo maior do livro Políticas Culturales (2004), a reflexão acerca sobre como “são constituídos os saberes e práticas culturais que determinam a formação e o governo dos sujeitos” (MILLER; YÚDICE, 2004, p. 13, tradução nossa). No entanto, apesar de se comprometerem enfaticamente com os aportes dos estudos culturais, a noção de políticas culturais desenvolvida reforça sobremaneira seu caráter administrativo e burocrático. Vejamos: A política cultural se refere aos suportes institucionais que canalizam tanto a criatividade estética como os estilos coletivos de vida: é uma ponte entre os dois registros. A política cultural se encarna em guias sistemáticas e regulatórias para a ação adotadas pelas instituições a fim de alcançar suas metas. Em suma, é mais burocrática que criativa ou orgânica: as instituições solicitam, instruem, distribuem, financiam, descrevem e rechaçam os atores e atividades que estão sob o signo do artista ou da obra de arte através da implementação de políticas (MILLER; YÚDICE, 2004, p. 11, tradução nossa). A política cultural é tomada como instância que articula a cultura como modo de vida, mas que também organiza a criatividade estética. É paradoxal, porém, que se reivindique a transformação da ordem social, concebendo as políticas como esfera transformadora, e não fun-

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cionalista, e, por outro lado, suas ações sejam reduzidas a “guias sistemáticas e regulatórias para a ação” e seus objetivos ao cumprimento de metas institucionais. Em comparação às perspectivas de filiação teórica semelhante, são desconsiderados os valores explicitados nos objetivos das políticas, como as necessidades culturais da população, o desenvolvimento simbólico (ou das representações simbólicas), a transformação estética, organizacional, política, econômica e/ou social (GARCIA CANCLINI, COELHO, OCHOA GAUTIER; 1987, 1997, 2003). Nesse sentido, a noção possui maior afinidade com o proposto por Brunner (1988). O conceito traduz, ainda, um grande preconceito contra as políticas culturais ao determinar que estas não são criativas. Em desacordo com os autores, entendemos que a criatividade não é algo apenas inerente às artes, ainda que nelas tenha um espaço singular. A criatividade é uma relevante dimensão a ser considerada nas políticas culturais. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização deste breve recorrido leva a algumas considerações em relação às contribuições dos conceitos analisados para o campo teórico das políticas culturais. Em primeiro lugar, cabe destacar que, nas definições analisadas, a opção dos autores por enfatizar aspectos específicos diz respeito à história intelectual, influências teóricas e modos de inserção específicos na temática. Assim, conforme salienta Ana María Ochoa (2003) surgem novas barreiras no campo das políticas culturais: em lugar dos obstáculos disciplinares, as perspectivas a serem abordadas passam a condicionar o desenvolvimento teórico dos estudos. Optamos por nos filiar a uma abordagem crítica das políticas culturais, admitindo sua não neutralidade. Em consonância com Evelina Dagnino (2005), partimos de que a hipótese central sobre “a noção de projetos políticos é que eles não se reduzem a estratégias de atuação política no sentido estrito, mas expressam e veiculam e produzem significados que integram matrizes culturais mais amplas” (p. 49). Não existem, portanto, estratégias políticas meramente “formais” e tampouco “neutras”. A presunção de sua existência já implica, em si, um posicionamento cultural, político e social pré-estabelecidos. Cabem às políticas culturais não apenas oferecer serviços especializados, mas assumir-se enquanto instrumento de transformação social, promoção da diversidade e da cidadania. No entanto, a partir do momento em que as políticas culturais são demarcadas quando a cultura deixa de ser instrumento para tornar-se finalidade da política, coincidimos com Brunner (1988), ao ponderar que elas se delimitam a um âmbito específico: os circuitos culturais. Por outro lado, a análise ou ação neste circuito deve considerar as dinâmicas de mobilização que estabelecem relações e exploram o simbólico como mediador do político e do social, ultrapassando a acepção meramente estética. A dimensão antropológica deve, portanto, ser inserida no circuito organi-

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zado da cultura. Com esta ressalva, acreditamos superar a armadilha de conceber as políticas culturais como metapolíticas, sem adotar uma visão formalista da intervenção cultural. Por fim, com base nas reflexões suscitadas pelos conceitos, consideramos como aspectos constitutivos das políticas culturais: a mobilização do simbólico por meio do circuito organizado da cultura; a pluralidade de atores e campos de enunciação a partir dos quais se desenha, discute e implementa as políticas; a existência de intervenções conjuntas, intencionais, sistemáticas e qualificadas; a compreensão da cultura como direito e a promoção de articulações entre cultura e desenvolvimento, contemplando, não apenas aquela como dimensão constitutiva deste, mas a necessidade de iniciativas que incidam no desenvolvimento do campo simbólico de forma mais ampla.

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O FETICHE DAS MERCADORIAS E A PUBLICIDADE INFANTIL Ricardo Przemyslaw Pessoa1 RESUMO: Este artigo se propõe estudar alguns elementos determinantes da cultura do hiperconsumo e como a publicidade vem sendo utilizada para aumentar o fascínio das mercadorias e para usar as crianças como promotores de vendas dentro das casas das famílias. Estuda a formação de valores e a influência da televisão nesse processo. Estuda o arcabouço legal e infralegal, e propõe medidas, dentro de uma política cultural que dê mais atenção à formação de valores pelas crianças e adolescentes, através da introdução nos currículos escolares da educação para a mídia e para a cidadania. PALAVRAS-CHAVE: hiperconsumo, fetiche das mercadorias, publicidade abusiva, políticas de regulação, educação para a cidadania.

1. INTRODUÇÃO Não seria exagero dizer que o ser humano muda a cada geração. Não só a mente, a maneira de pensar, a moda. A mudança é tão maior e mais profunda, que só agora, neste começo do século 21, com o uso contínuo dos polegares para digitar celulares, o imaginário popular considera crível, talvez até ‘natural’ que o ser humano ‘evolua’ seu polegar e no tamanho do cérebro. Bem antes das transformações modernas, a rotina do ser humano já foi bastante modificada por muitas inovações, mas nenhuma tão crucial quanto a invenção do relógio. Para saber das horas, no espaço-tempo anterior, as pessoas dependiam dos hábitos locais, de um funcionário que as anunciasse (gritasse para a comunidade) de hora em hora ou dos sinos da igreja. O relógio libertou-as disso. E o relógio de pulso, mais ainda: as pessoas passaram a trazer no braço as ferramentas da sua liberdade em relação ao espaço que as referenciava. E como costuma acontecer na tragicomédia humana, essa liberdade tornou-se sua escravidão; e os valores morais ligados ao tempo foram se implantando nos seus sentimentos, disciplinando a sociedade por meio de schedules e outras programações de comportamento. Mestre em Psicologia Social pelo ISOP/FGV Pós-graduado em Políticas Culturais pela UnB Analista da Agência Nacional do Cinema – ANCINE [email protected]

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Jesus Martin-Barbero (1997) ressalta que: “A escola e a família parecem ser as duas instituições mais afetadas pelas transformações ocorridas na maneira de circular o saber, que constituem uma das mais profundas mutações que a sociedade contemporânea sofre.” É interessante essa ênfase ser crucialmente marcada por um grande pensador e militante da luta cultural, porque a discussão sobre quem deve arcar com a educação das crianças – se é a família ou a escola, ou as duas – não é mais uma discussão teórica, acadêmica. Não, ela afeta diretamente milhões de jovens com a identidade em formação, alvos de agenciamentos de toda sorte, que disputam sua atenção e filiação. Mas o que nos parece mais relevante na síntese de Martin-Barbero é que ela não se propõe a culpar nem os pais nem a escola, mas, ao contrário, lança-lhes um olhar compreensivo, para evidenciar que eles também passam por crises e mudanças tão profundas, que eles mesmos não sabem o que fazer. Mais do que nunca é urgente uma coordenação de forças que enriqueçam e mobilizem os irregulares dipolos família-escola e governo-iniciativa privada com as novas forças que a modernidade e a sociedade civil estão sendo capaz de articular através das redes sociais para oferecer uma alternativa além do niilismo destruidor que está contaminando uma juventude sem muitas opções. 2. A PUBLICIDADE INFANTIL DEVE SER REGULADA? A resposta a esta pergunta se torna mais complexa quando consideramos que as crianças modernas cada vez mais participam da vida adulta e pedem, na verdade impõem, sua participação. Então, de um lado temos uma colossal e ‘desigual’ pressão persuasiva da publicidade sobre o plástico psiquismo infantil, que nos move à sua proteção; e de outro temos uma população de crianças ávidas para participar de um mundo cuja complexidade e intencionalidade não é nada transparente aos seus ingênuos olhos. Mas é assim, forçando os limites que as crianças aprendem a ver. Cabe à sociedade informar, educar, preparar ou mitigar o rombo que o Real violenta? Todas as propostas são verdadeiras e necessárias. Estamos lidando com seres vulneráveis e suscetíveis às influências mais ou menos controláveis em virtude tanto da autoridade de quem os disciplina quanto do acaso da sua exposição à realidade mediada pela cultura. E aqui temos um grande problema quando a realidade se apresenta por meio de algum meio, seja ele a mediação paterna, ou a mídia; seja ele a palavra ou a imagem ou uma relação afetiva; sua representação mais que se imprime na criança, ela se amalgama, se funde a ponto de formar o universo de representações, a massa de significantes e significados da criança. Ou seja, a criança nasce e cresce mediada, e seu psiquismo é plasmado pelos meios. A própria modernidade só pode ser entendida se colocarmos a centralidade da mídia como uma de suas características. Essa é uma afirmação difícil de ser contestada. Para Giddens (1992; apud Sampaio, 2009),

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a natureza e o formato da modernidade só podem ser compreendidos em sua interconexão com as instituições de comunicação. Elas são consideradas como instâncias “formativas” das sociedades modernas, ao promoverem um aumento significativo da “mediação da experiência”, instituindo a experiência mediada como condição específica do viver contemporâneo. Essa nova modalidade da experiência é caracterizada pelo “efeito colagem” nas narrativas, marcadas pela justaposição de histórias e itens, articulados em um novo tipo de ordenamento livre da “prisão do lugar”, e pela interferência de efeitos distantes da consciência cotidiana, que modifica substancialmente a relação entre o próximo e o distante. [...] Uma das implicações desse processo, como acentua Meyerowitz (1985), é a diminuição do significado da experiência física para as pessoas e os acontecimentos. (grifo nosso) A centralidade da mídia nas sociedades contemporâneas pode ser compreendida, ainda, em razão da sua “atuação nos processos de construção social da realidade”, como postulam Luhmann (1995) e Schmidt (1996): a mídia tem papel decisivo em praticamente todas as dimensões da vida humana (política, religião, entretenimento etc.). O que nós sabemos sobre a nossa sociedade e sobre o mundo no qual vivemos, sabemos através dos meios de comunicação. [...] Nesta linha de raciocínio, associada a uma perspectiva construtivista, Schmidt (1996) argumenta que a mídia não publiciza reproduções, no sentido de cópias fidedignas da realidade. Em razão da sua própria natureza sistêmica, ela sempre apresenta uma observação de segunda ordem que deixa invisíveis indícios que poderiam conduzir à percepção da sua materialidade (seleção da informação, enquadramento de câmera, uso de lentes, sequências temáticas, entre outros). Isso ocorre especialmente em televisão, à medida que o componente audiovisual oferece a sensação de proximidade, tornando praticamente imperceptível a mediação. Como ressalta Spangenberg (1995), a tendência de tornar a própria mediação invisível tem como efeito a equiparação dos aspectos da “visibilidade” e da “clareza” com o de ‘realidade”, fato associado, sobretudo, à autoridade que a fotografia e a imagem ainda guardam junto ao público. Segundo Schmidt (1996), uma das principais implicações deste processo relativo ao uso social da televisão como meio de informação é que a TV se transformou numa espécie de corporificação do princípio da realidade nas sociedades contemporâneas, oferecendo a impressão de que ela nos apresenta “uma janela para o mundo”, uma imagem sem mediações, a vida como ela é. Segundo dados do IBOPE (apud Moura, 2010), o Brasil é o lugar onde as crianças mais assistem TV no mundo. Elas ficam expostas a quatro horas e 54 minutos (dados de 2008) por dia à televisão, o que resulta num impressionante número de 40.000 anúncios por ano! E elas gostam tanto dos conteúdos – propaganda ou não – que 98% das crianças dizem que seu brinquedo mais importante é a televisão, segundo pesquisa da Unilever. Decorre que quanto mais elas assistem à televisão, mais brinquedos e alimentos pedem para os seus pais. Ainda segundo Moura (2010), 1840

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a televisão aumenta a influência da criança sobre as compras da família (o percentual de influência das crianças saltou de 42% para 52%) sendo que na década atual houve um expressivo aumento no poder de compra das crianças latino-americanas. Realizada em junho de 2007 pela TNS, empresa inglesa de pesquisas que há quatro anos monitora o comportamento de compra de crianças e adolescentes em cinco países (Brasil, Argentina, Chile, Guatemala e México), a investigação revelou que crianças menores não controlam diretamente as compras da família, mas influenciam bastante: crianças de três a seis anos não têm noção de caro/barato, são altamente impulsivas e usam o dinheiro para comprar guloseimas e jogos; já as de sete a nove anos, sabem o que é caro/barato, planejam, calculam, negociam e usam o dinheiro para comprar roupas de grife e produtos eletrônicos, percebem o impacto das marcas e também conhecem e se interessam por categorias destinadas aos segmentos adultos. Então, se antes estávamos às voltas com a discussão sobre a necessidade ou não da regulação da publicidade infantil considerando a manipulação cognitiva, agora estamos lidando com manipulações emocionais, que são muito mais profundas e duradouras. Mais ainda, estamos nos referindo a sistemas e programações neuronais que produzem comportamentos impulsivos, como as decisões de compra; e, o que nos parece mais grave porque produzem comportamentos compulsivos, que já se estabelecem nas sociedades de consumo como vícios. Estamos falando de compulsões que ‘programam’ a vida de milhões de pessoas cujas identidades eram estabelecidas pelo que faziam (uma sociedade de produtores), e agora têm suas identidades definidas pelo que consomem, compram e usam (uma sociedade de consumidores). Vamos percebendo que estão em jogo aspectos cada vez mais fundamentais, como a banalização da violência; donde mais preocupantes. A Constituição define uma atenção prioritária para a infância e adolescência. Mas como a cultura brasileira dá um tratamento peculiar às suas profusas leis – são mais de 181.700 leis em vigor –, não podemos afirmar que essa abundância reflita um apreço maior à Lei. Ao contrário, verifica-se uma certa leniência da cidadania no Brasil: umas leis “pegam”; outras, não. Para compreender isso melhor, podemos nos apoiar na sociologia ou na psicologia social, porém nenhuma delas ajuda muito a explicar, em profundidade, esse traço quase infantil da nossa primitiva cidadania. Vamos nos valer de uma sutileza que foi aprofundada pela psicanálise, quando Freud se apercebeu da ambiguidade do conceito do mecanismo de defesa da negação (Verneinung) que designava tanto uma negação mais radical do tipo “não pensei nisso”, quanto de uma reação em que o analisando acolhe uma interpretação mas não lhe confere a menor importância. Ou seja, ele aceita, concorda etc., mas não permite que o conteúdo ganhe a importância que tem: fica tudo lampedusianamente2 na mesma, o que dá voz à máxima e à prática social cínica Giuseppe Tomaso di Lampedusa, autor de “O Leopardo”, onde o autor explicita a função das manobras conservadoras da aristocracia italiana. 2

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segundo a qual “muitas coisas devem mudar para que tudo continue igual”. Vamos explicitar a nomenclatura e chamar de denegação esta última forma defensiva na qual não se nega propriamente a lei, mas faz-se uma espécie de pacto (perverso) em que ‘fica combinado’ que um determinado aspecto legal virá a ser regulamentado ‘algum dia’ e que podemos muito bem ir vivendo enquanto a tal lei ‘não pega’. Se por um lado a denegação é exercício comum de certas práticas corporativas, ela não contamina todas as instâncias. Muitos se mobilizam para fazer valer o Espírito da Lei e patrocinam importantes iniciativas institucionais, tanto no nível das leis, como é caso do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto no nível de entidades públicas, como o CONANDA – Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, quanto no âmbito das entidades privadas, como o CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, e no outro polo, o Instituto Alana. É interessante analisar a efetividade das ações dessas entidades para a discussão “se deve ou não ser regulada a publicidade infantil”, e em que medida, já que temos que levar em consideração o direito de informação da criança e do adolescente nesta apreciação de malefícios e benefícios das comunicações sobre a formação dos jovens. Comecemos por uma averiguação do estado atual da legislação realmente vigente e da legislação aparente ou virtualmente vigente. Estendendo nossa pesquisa ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), concordamos com Moura (2010) quando sustenta a ilicitude da publicidade infantil: A ILICITUDE DO MARKETING INFANTIL Já inicio esta monografia com uma constatação: “a publicidade dirigida à criança é ilegal e o Código de Autorregulamentação Publicitária tem um ponto em comum a muitos artigos que diz: ‘A publicidade submetida a este anexo (Anexo A, cláusula 2 B) não pode querer chamar a atenção dos menores de idade’. Mas, o que pergunto é: Por quê, tendo em vista que a criança também é consumidora? A resposta é clara, consta no Conar (Código Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e diz: “A publicidade dirigida ao público infantil é ilegal, deve ter limites, porque, ao contrário do adulto, a criança não possui discernimento para compreendê-la. Para a criança é mais difícil, até mesmo, reconhecer a mensagem publicitária como prática comercial que é, ainda que não clandestina, mas, *subliminar e disfarçada.” *Propaganda que trabalha com a manipulação do inconsciente das pessoas. Possui baixo nível de percepção por parte do espectador, entram na nossa mente “de contrabando”. A psicologia (subliminar) seria (já que não há comprovação experimental), então, por assim dizer, uma propaganda que produz efeitos na atividade psíquica. 1842

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No Brasil, pela interpretação sistemática da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Defesa do Consumidor, pode-se dizer que toda e qualquer publicidade dirigida ao público infantil já é proibida pelo ordenamento jurídico pátrio, na medida em que colide com as leis. (grifo nosso) 3. A TV E A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE E DE VALORES NA CRIANÇA A criança, ao nascer, é apresentada a um mundo de estímulos muito maior do que pode processar. Durante seu crescimento começa o complexo processo de construir o pensamento, a consciência, a compreensão, o significado do meio que a cerca. Não é um processo passivo em que são “colocados” na criança significados e significantes. Ao contrário, a maneira como cada criança monta sua rede de significantes e significados, tanto verbais como simbólicos, é única e absolutamente pessoal – e a maneira como a criança se constrói como um ser biológico e lógico constitui, na prática, sua identidade. Para a sedimentação das experiências formadoras, são igualmente importantes os aspectos cognitivos e os emocionais; ambos afetam bastante o desenvolvimento da criança. Vamos nos restringir a considerar a função dos valores que vão determinar a dinâmica do sujeito na sociedade de consumo. Vamos nos deter, a princípio, nos aspectos relativos à economia política, o valor de uso e o valor de troca, observando que estes são elementos primordiais da teoria do valor (valor-trabalho), e ponto de partida de inúmeras reflexões que acabam influenciando a formação dos valores morais, por sua vez resultados dos conflitos entre a razão e as emoções dos indivíduos. O valor de uso de um bem não decorre da estrutura molecular deste bem; o seu valor de uso depende do serviço que ele presta, da utilidade que o bem oferece ao usuário. “Mas, como medir a grandeza do seu valor?”, pergunta Marx (1867). E responde: “Por meio da quantidade de “substância formadora de valor”, isto é, da quantidade de trabalho nele contida.” [...] “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho é, assim, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana. [...] As mercadorias vêm ao mundo na forma de valores de uso ou corpos de mercadorias, como o ferro, linho, trigo etc. Essa é sua forma natural originária. Porém, elas só são mercadorias porque são algo duplo: objetos úteis e, ao mesmo tempo, suportes de valor.[...] Como valores, as mercadorias não são mais que geleias de trabalho humano; por isso, nossa análise as reduz à abstração do valor, mas não lhes confere qualquer forma de valor distinta de suas formas naturais.[...] A força humana de trabalho em estado fluido, ou trabalho humano, cria valor, mas não é, ela própria, valor. Ela se torna valor em estado cristalizado, em forma objetiva. Para expressar o valor do linho como geleia de trabalho humano, ela tem que ser expressa

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como uma “objetividade” materialmente [dinglich] distinta do próprio linho e simultaneamente comum ao linho e a outras mercadorias. Assim, a tarefa está resolvida.[...] A forma de valor simples de uma mercadoria está contida em sua relação de valor com uma mercadoria de outro tipo ou na relação de troca com esta última. [...] Em outras palavras: o valor de uma mercadoria é expresso de modo independentemente por sua representação como “valor de troca”. [...] Partimos do valor de troca ou da relação de troca das mercadorias para seguir as pegadas do valor que nelas se esconde.[...] Qualquer um sabe, mesmo que não saiba nada além disso, que as mercadorias possuem uma forma de valor em comum que contrasta do modo mais evidente com as variadas formas naturais que apresentam seus valores de uso: a forma-dinheiro. [...] O valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo, uma relação que se altera constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor de troca parece algo acidental e puramente relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria (valeur intrinsèque); portanto, uma contradição in adjecto [contradição nos próprios termos] já que o valor muda a cada mudança da força produtiva.” A mesma transformação se passa com as ideias, com a consciência, que vai mudando de foco e mesmo de orientação em função das demandas que vá recebendo da atividade mental. Afinal, qual a função dos valores se não for a de orientar, guiar, preceder a ação? Este é o ponto que nos interessa indagar aqui: se os valores não funcionam como guias da ação, esta ação é uma ação alienada da consciência. 4. DO BEM-OBJETO AO BEM-SIGNO Como uma feliz aproximação ao ‘espírito da coisa’, tomaremos a abordagem de Baudrillard (2007) como expressão do moderno Império do Objeto, de uma realidade construída, de hiperconsumo, de uma “hiper-realidade” desta avançada etapa do desenvolvimento industrial capitalista caracterizada pelo consumo massivo de bens e produtos, gerados por um sistema produtivo que precisa dessa quantidade massiva para crescer, se multiplicar e, ao fim, dominar o mundo e a maneira de nele viver. Ter que ser massivo e em expansão, como necessita ser o sistema industrial instalado, nos coloca perante ao problema da abundância – o que implica muito, em termos de custo ecológico e da eterna adição aos objetos, que se tornam nossos senhores, “estamos totalmente rodeado por objetos, não de homens”, totalmente dependentes de máquinas e objetos. Numa vertigem, não mais do objeto, mas da mercantilização da experiência: Bauman (2004) irá chamar a atenção para o que ele define como sendo o traço mais marcante da contemporânea sociedade de consumo: o “fetichismo da subjetividade”. Tomando de empréstimo a ideia de fetichismo desenvolvida por Marx,

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Bauman (2004) as irá reapropriar no contexto contemporâneo tentando demonstrar que, agora, sujeito e objeto não estão mais sobrepostos um em relação ao outro, mas, antes, estão diluídos um no outro, determinando o fim da dialética sujeito-objeto, em favor de uma fusão do sujeito no objeto. Tal movimento se deve, essencialmente, ao fato de que na corrida para o prestígio e a diferenciação se tornou praticamente obrigatório aos indivíduos se apropriarem de signos e símbolos que os tornem cada vez mais competitivos, aceitáveis, ‘vendáveis’ numa espécie de ‘mercado social’, transformando-os, de fato, em mercadorias a serem adquiridas ou rechaçadas neste universo de demandas. [...] “na sociedade de consumidores ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir [...] a transformação dos consumidores em mercadorias.” (grifo nosso) Este indivíduo-objeto é a coisificação, a reificação, a materialização do sujeito, no pior sentido, de totalmente alienado de si, um autômato, uma geleia humana, para reciclar a brutal metáfora marxista. Isso, até agora, pelo lado do valor de uso. Porque, no caso do valor de troca, a situação vai-se tornando cada vez aviltante, à medida que a obsolescência programada sobredeprecia, ou seja, deprecia muito rapidamente o valor de troca de um produto ainda em bom estado de uso. Mas, para o consumidor com ‘necessidade’ de novidade, parece que toda a ênfase na razão é em vão; o consumo virou pulsão. Compulsão, na verdade, que é o que deveria estar centralizando todos os nossos foros de saúde e de assistência social, enquanto preocupação de Estado com a saúde mental de cidadãos que descartam brinquedos bons sem pensar na alternativa de uma feira de troca de brinquedos, atividade estimulada em países mais desenvolvidos e mais preocupados com a formação de valores em seus pequenos cidadãos. 5. O FETICHE DAS MERCADORIAS A escolha desta tirada trágica e espirituosa de Marx para intitular este trabalho foi proposital: queríamos chamar a atenção, com vigor, para este ponto. Como todo filósofo, ele levava as palavras muito a sério. No início do seu “O Capital”, ele nos traz um estudo sobre “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo” (Marx, 1867), em que faz uma consideração importante sobre a transformação, o valor e a mística que se infiltra, se imiscui, “encarna” no objeto quando ele vira mercadoria: “Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível”.

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O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. [...] Trata-se de uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com a sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos que nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (Marx, 1867) Até aqui vimos o quanto o caráter fetichista que impregna a mercadoria é exponenciado pela publicidade, mantendo o escopo na publicidade infantil ou direcionada a crianças. Mas, a rigor, é um falso problema, que já nos coloca à frente da séria questão de uma restrição fictícia, já que a publicidade é pública e onipresente. Ou seja, toda a publicidade é direcionável a crianças, e a maioria do seu conteúdo, em horários entre as 6 e as 22 horas, o é. Ela acaba sendo direcionada, se houver qualquer criança assistindo, porque a publicidade é um dos ‘programas favoritos’ das crianças por conterem todos os elementos, serem coloridos e animados, atraentes às crianças, em suma. E escapa do controle da vida cotidiana porque está nela inserida como ‘natural’, casual. O que observamos aqui é que a publicidade, ela em si, se torna um produto essencial deste sistema: a mercadoria primordial e curinga para a disseminação e venda dos produtos aos insaciáveis consumidores, inclusive da publicidade, abundante como já vimos ao contar aos milhares a carga a que as crianças são submetidas. Além da quantidade e da repetição, a qualidade das peças publicitárias é encantadora e irresistível. Ou seja, em meio a tantas tentações, não há como escapar, sem muito afinco e clareza, da tarefa de educar crianças para identificar essas armadilhas, tarefa tão difícil e tão eivada pelas nossas próprias adições e contradições. É justamente aí que a sociedade pode resistir ao consumismo: com uma educação para a mídia.

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Mas, para compreender melhor como funciona, vamos nos aproximar mais emocionalmente do nosso objeto de estudo. Nada melhor que um exemplo para ver como as emoções podem ser manipuladas com irresistível doçura, extraído de Graziela Vianna (2008): Os Cobertores Parahyba”3, década de 1950, criaram um jingle que viria a se tornar uma das canções de ninar mais conhecidas das crianças daquela época. Quando os versos musicados “Já é hora de dormir, não espere a mamãe mandar ...” soavam no rádio, as crianças já sabiam que era o fim da brincadeira e hora de ir para a cama. Mais tarde, na década de 1980, não tínhamos dúvidas de que o Danoninho 4 valia por um bifinho, que Coca-Cola5 refrescava muito, muito mais e que do primeiro Valisère 6 a gente não esquece. Não esquecemos mesmo: tal slogan7 já foi apropriado pela sociedade e reapropriado pelos próprios publicitários de diversas formas. O primeiro carro, o primeiro beijo, a primeira casa são argumentações utilizadas em várias peças que nos lembram a alegria da menina-moça com seu primeiro sutiã. Na década de 1990, os doces mamíferos da Parmalat invadiram os lares brasileiros pela televisão, pelo leite ou pelos bichinhos de pelúcia. Crianças vestidas com as fantasias dos filhotes semelhantes àquelas das crianças do comercial de TV passaram a ser comuns nos álbuns de família. (grifo nosso.) Na hora do lanche, graças à publicidade, sabíamos de cor a constituição do sanduíche do McDonald’s: dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles e um pão de gergelim. [...] Ou a parceria “perfeita” entre o guaraná Antarctica e a pipoca criando um hábito alimentar romântico. [...] A função de fetiche das mercadorias atinge seu clímax de efeito quando a publicidade passa a gerar linguagem e comportamentos. A função de fetiche é tão mais forte quanto mais investida de desejo for a aquisição (de um bem ou de um comportamento). Nessa maciça criação imagens, o sujeito fica preso ao seu imaginário desejante, de onde só sai para consumir. No Brasil, apesar da eterna leniência, há uma certa resistência da população, muito menor que a francesa, é verdade, capaz de se organizar melhor, mesmo sem reagir com mais vigor e rigor segundo o estilo europeu em que a população espontaneamente sai às ruas para tomá-las. Mas o importante é que estabelece um contraponto ao jeito brasileiro: a maioria a esperar que o governo faça “alguma coisa”. Esta resistência representada por uma quantidade expressiva de entidades públicas civis, centros de pesquisa e de estudos universitários, todos muito ativos, como pudemos perceber Campanha: Já é hora de dormir. Produto: Cobertores Parahyba. Agência: Interamericana. Ano inicial de veiculação: 1959 4 Campanha: Bife. Produto: Danoninho. Agência ALMAP. Ano inicial de veiculação 1959 5 Campanha: Coca-Cola é isso aí. Produto: Coca-Cola. Agência: McCann/Ericsson 6 Campanha: Primeiro Valisère. Produto: Soutiens Valisère. Agência: WBrasil. Ano de veiculação: 1987 7 Campanha: Mamíferos. Produto: Parmalat. Agência: DM9.Ano de veiculação: 1996 3

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pela produção acadêmica de alta qualidade, que nos municiou de muito material de estudo para esta pesquisa. 6. AS FUNÇÕES DA PUBLICIDADE NO CAPITALISMO MODERNO: PADRONIZAÇÃO, CUSTOMIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO As visões mais agudas em relação à industrialização sempre passaram pela crítica à massificação e à padronização, tanto do modo de produção quanto dos modos de consumir. O filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, deu forma e expressão a essa civilização com seus homens-símbolo da alienação padronizada e repetitiva. A massa de consumidores é tão ávida por consumir, que, mesmo informada da duvidosa qualidade das suas marcas de prestígio, mesmo assim, confia na qualidade dos produtos e, o que é mais alarmante, confia na publicidade mesmo sabendo do artificialismo, do caráter fictício e exageradamente benevolente da propaganda para vender seus produtos. A indústria conseguiu superar sua imagem de setor padronizador para a de um setor “customizador”, em que o produto é modelado e fabricado especialmente “para você”. Isto aumenta a atração do produto, ao mesmo tempo que aumenta a confiança e a carga afetiva em produto feito “para mim”, com tudo o que isso implica em termos de fidelização emocional e, como decorrência, da confiança projetada sobre o produto. O capitalismo industrial moderno soube evoluir da massificação para uma customização, bastante detalhada a ponto de permitir estratégias de marketing que configurem o produto ou o serviço quase sob medida. Em teoria! Na prática as relações com os consumidores são bastante insatisfatórias. Mas, apesar disso, “os brasileiros encabeçam um ranking das nacionalidades que mais acreditam em publicidade, entre 47 países pesquisados: dois em cada três brasileiros (67%) disseram confiar em propagandas.” (Vianna, 2008). Essa pesquisa foi feita (pela Nielsen, recentemente) com adultos. Imaginemos o resultado se feita com crianças! Então, se por mais avisados que estejam os consumidores, mesmo assim eles consomem, a explicação para esse paradoxo só pode ser uma: a eficácia do fetiche das mercadorias. Esse feitiço é diabólico, no sentido de que promove a competição, a violência e o aumento das desigualdades do nosso capitalismo primitivo. 7. CONSUMISMO, MATERIALISMO E A ESCALADA DA VIOLÊNCIA A matéria, os bens, ou mesmo uma música podem tomar os espaços internos vazios dos indivíduos, o que decorre da crença de que o sujeito não deve ficar vazio nunca, como se não tivesse pulmões, que precisam se esvaziar completamente para que o ar novo penetre. Esta matéria de que falamos aqui, enquanto matéria concreta, facilita consensos; mas quando aspectos não materiais, como os valores, começam a ficar materializados, por exemplo quando uma narrativa

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associa consumo a felicidade, que é a tônica das mensagens publicitárias, é fácil imaginar uma criança entre o descrente (escaldado pelas frustrações que o consumo não compensa) e a posição de quem está “louco para acreditar”, que é semelhante ao conflito de uma criança já maior, já desconfiada de que aquela maravilha toda é uma miragem de consumo, que não vai se realizar, ou não vai trazer a felicidade prometida. Segundo Inês Vitorino Sampaio: A dimensão comunicativa da publicidade, marcada pela lógica do consumo de produtos, extrapola esse domínio. A disseminação de um sistema materialista de valores no qual um produto e sua aquisição são a base para a definição de identidades tem sido uma das graves implicações da publicidade e do marketing infantil. (Linn, s/d: Sampaio, 2004). Esse fenômeno ocorre de tal modo que a lógica mercantil invade os mais diversos territórios da vida humana, definindo modelos corporais e comportamentais. As imagens projetadas pela publicidade têm um duplo caráter. Por um lado, constituem “indicadores sociais” (Schmidt, 1996) do modo como a sociedade compreende e se relaciona com a infância. Isso significa que a publicidade não cria a seu bel-prazer, mas ela resgata tendências no cenário social, selecionando e conferindo visibilidade às imagens segundo sua intencionalidade específica.[...] Por outro lado, ao publicizar tais imagens, ela a torna “modelos” para milhões de crianças, em termos físicos e psicossociais. (SAMPAIO, 2004) Segundo Bonder (2015), materialismo é o comportamento recorrente e abusivo das coisas, do outro como objeto, da objetivação sem subjetividade, e do ceticismo na relação com a vida. Essa conduta se alastra em compulsão e termina se manifestando num vício. [...] O prazer e o consumo se fazem passar pelos únicos valores virtuosos do viver. Essa embriaguez em relação à realidade é chamada de materialismo. O estilo e os valores da vida moderna nos levam a crer que o prazer e o consumo estão associados à felicidade e ao objetivo maior da vida. [...] A reabilitação do materialismo não trata da renúncia aos prazeres ou ao consumo, mas do resgate da autonomia para gerir esses aspectos da vida em sua condição real, ou seja, como instrumentos e não como objetivos. Muitos países estão mais adiantados que o nosso na discussão e na ação sobre os efeitos da televisão, como o Canadá, a Suécia, a Noruega, a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, a Argentina. Vamos tomar como referência o Canadá, onde o CRTC – Canadian Radio-television and Telecommunications Commission –, uma autoridade pública independente encarregada de regular e supervisionar a radiodifusão, se volta para proteger a criança de programações que não lhe sejam apropriadas, com especial atenção à violência. Nesses países, foi realizada uma profusão de pesquisas para averiguar a correlação entre a violência veiculada na televisão e a violência efetiva na sociedade, e os resultados de correlação são tão assustadores que motivou uma atenção especial das autoridades para o tema.

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8. CONCLUSÃO O Projeto de Lei 5.921/01, que trata da publicidade infantil, é de 2001! E não consegue caminhar. Alguns avanços pontuais são feitos, como as novas recomendações de publicidade, que envolve crianças e adolescentes: a partir do dia 1/3/2013 estão proibidas ações de merchandising dirigidas ao público infantil, iniciativa oriunda dos próprios anunciantes, reconhecendo a necessidade de ampliar a proteção a públicos vulneráveis. Como a publicidade é muito rentável, há um substancial investimento na manutenção de uma regulação que não derrube os esquemas manipuladores e garantam maior eficácia à propaganda. Vamos a um exemplo. Expedientes, como usar atores mirins nas narrativas da publicidade, foram proscritos pela Resolução nº 163 do CONANDA e são um dos elementos que mais chamam a atenção da audiência infantil da publicidade. Embora proibida, é uma das técnicas mais usadas na propaganda. Como um exemplo interessante da hipossuficiência do CONAR para regular a publicidade, vejamos a brandura com que o artigo único do artigo 29 propõe tratar o merchandising e os aspectos contíguos no Código, entre os ocultos, ‘subliminares’ ou disfarçados. Artigo 29 Este código não se ocupa da chamada “propaganda subliminar”, por não se tratar de técnica comprovada, jamais detectada de forma jurídica inconteste. São condenadas, no entanto, quaisquer tentativas destinadas a produzir efeitos “subliminares” em publicidade ou propaganda. Parágrafo único Este Código encoraja os Veículos de Comunicação a adotarem medidas ao seu alcance destinadas a facilitar a apreensão da natureza publicitária da ação de merchsandising.” Quanto ao que há de subliminar, nada temos condições de afirmar. Mas quanto à influência de um produto colocado numa cena, de forma a que se subentenda ser o mais natural, familiar e casual possível, temos o que dizer. O simples fato de ter sido posto lá, na cena familiar, um produto com a intenção de ser notado e ‘disfarçado’ ao mesmo tempo, não é “encorajar os veículos de comunicação a tomarem medidas ao seu alcance destinadas a facilitar a apreensão da natureza publicitária da ação de merchandising”. Por tudo o que vimos, não podemos atribuir isenção ao Conar (o código), porque, antes de tudo transparece a sua motivação original de se antecipar às violências culturais da ditadura militar (1964-1985), prestes a estabelecer a censura prévia da publicidade. Mesmo que o Código expresse um avanço de valor na regulação da publicidade, ele, exatamente pela sua polarização corporativa e ideológica, não dispõe da necessária isenção para agenciar interesses muitas vezes antagônicos. Caberia, com certeza, pela autoridade conferida pela experiência, contar com o CONAR, mas não mantendo o direito exclusivo e autoatribuído de regular a atividade publicitária.

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Assim como diagnosticamos o mal do materialismo, do consumismo e da violência como doenças sociais, pudemos levantar a hipótese de um antídoto também social, mas pouco usado no Brasil, que é a educação sobre a mídia e para a cidadania, como uma estratégia para aumentar o nível de consciência da população através das crianças. Assim como elas podem ser usadas como agentes de vendas, elas podem ser usadas como vetores transmissores de educação. A pureza e a ingenuidade das crianças foram vistas pelo seu viés negativo e poroso. Falta agora estimular o lado positivo da atuação das crianças, a pureza e a força dos seus valores e das suas crenças, quando nós as deixamos se expressar, e se formos capazes de ouvir. Cremos que uma educação para a mídia e para a cidadania ajudariam, e muito, a resolver isso. O ativismo das crianças foi determinante para a eficácia das campanhas citadas acima. Poucas coisas são tão fortes para educar pais que o exemplo das crianças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001. BAUDRILLARD, Jean. Função-signo e lógica de classe. Em: A economia política dos signos. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996. BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2007. BONDER, Nilton. Materialistas Anônimos. Rio de Janeiro: Midrash, 2014. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1997. MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo Ed., 2013. MOURA, Daniel Iunes. A criança na mira da propaganda. Disponível em http://webartigos.com/ artigos/a-criança-na-mira-da-propaganda/46297/. Acesso em 07/07/2014. REBOUÇAS, Edgard. Os desafios para a regulamentação da publicidade brasileira destinada a crianças e adolescentes: soluções canadenses e reticências à brasileira. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo,v.31, n.2, p. 75-97, jul./dez. 2008. SAMPAIO, Inês. Publicidade e infância: uma relação perigosa. Em Infância e Consumo: estudos no campo da comunicação; coordenado por Veet Vivarta. Brasília, DF: ANDI; 2008. VIANNA, Graziela Mello. Publicidade infantil: uma análise dos contextos de recepção na França e no Brasil. Mediação, Belo Horizonte, nº 7, 2º semestre de 2008.

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O PLANO MUSEOLÓGICO E O PROGRAMA DE ARQUITETURA NO CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS Ricardo Sampaio Pintado1 Cláuber Gonçalves dos Santos2 RESUMO: este texto trata do programa arquitetônico-urbanístico incluído no plano museológico. Compara as definições dadas na legislação da política nacional de museus com a expressão programa de necessidades, própria do campo teórico da arquitetura. As duas expressões remetem ao conjunto de espaços dos museus, mas enquanto a primeira se refere à descrição dos espaços existentes, a segunda descreve o que se pretende obter a partir de um projeto. Por fim, argumenta que é necessário fazer esta distinção na elaboração do plano museológico, considerando que este documento é indispensável para obtenção de recursos financeiros e materiais para sustentação dos museus. PALAVRAS-CHAVE: estatuto de museus, programa arquitetônico-urbanístico, programa de necessidades.

1. INTRODUÇÃO O incentivo a criação e manutenção de museus estão no centro da política cultural dos atuais governos. Desde 2003, um conjunto de ações coordenadas com legislação específica, tem reforçado a importância dos museus como instrumento estratégico para cumprir os dispositivos constitucionais dos artigos 215 e 216 que estabelecem direitos culturais da cidadania. Decorridos mais de uma década após a promulgação da Constituição, em 2003 implantou-se no país uma política de museus, explicitamente compreendida como política pública de cultura (Política Nacional de Museus). De acordo com Tolentino (2007), o texto constitucional quando trata de cultura reflete grande preocupação com a preservação e a promoção do Arquiteto e Urbanista, professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, docente dos cursos de Arquitetura e Urbanismo, e Museologia. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas – ICH/UFPEL. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas – ICH/UFPEL. E-mail: clauber.rs@ gmail.com. 1

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patrimônio cultural brasileiro, definido no artigo 216. Nesse aspecto, os museus têm o papel relevante de desempenhar a preservação e a difusão do patrimônio cultural da nação. Assim, a democratização do acesso à cultura se traduz na ampliação do acesso aos museus, multiplicados em processos museológicos para acolher as variadas “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (Constituição Federal, Art. 215). A amplitude e diversidade de sujeitos e fatos culturais presentes na constituição parecem sugerir o seu equivalente nas formas de instituir os processos museológicos, entre os quais são mencionados com mais frequência os museus étnicos, locais e regionais, os museus comunitários, e os ecomuseus, entre outras formas3 (Decreto nº 5.264/2004, Art. 3º, III). Este ensaio aborda um aspecto da legislação sobre museus, o plano museológico e, especificamente, discute o programa de arquitetura. No conjunto de normas legais que instituíram a política de cultura na primeira década dos anos 2000, e instruções normativa posteriores, o plano museológico se apresenta como uma exigência indispensável para a sustentabilidade econômica das instituições, na medida em que de sua correta elaboração como instrumento de gestão, depende o acesso às fontes de financiamento público pela via das leis de incentivo à cultura. 2. POLÍTICA CULTURAL E LEGISLAÇÃO DE MUSEUS Em 2003 foi lançada a Política Nacional de Museus, como instrumento de efetivação dos direitos culturais definidos na Constituição Federal. O objetivo da política era valorizar, preservar e promover a fruição do patrimônio cultural brasileiro por meio da revitalização das instituições museológicas existentes, e “pelo fomento para criação de novos processos de produção e institucionalização de memórias constitutivas da diversidade social, étnica e cultural do país” (OLLAIK e MEDEIROS, 2012, p. 2). Esta política dava continuidade ao Programa Museu, Memória e Cidadania. Instituído no governo Fernando Henrique, este programa já privilegiava as instituições museológicas como instrumento de política cultural4. No entanto, estava voltado apenas para os museus federais e, efetivamente, somente aos museus vinculados ao Ministério da Cultura (TOLENTINO, 2007, p. 80). Considerando que estas instituições estão concentradas em apenas algumas cidades do sudeste e nordeste, na prática não se democratizou ao acesso aos bens culturais, do modo como está disposto na Constituição Federal. O aparato legal da política de museus parece contrariar esta pluralidade e possibilidade de formas alternativas e privilegiar as formas mais consolidadas de instituir museus. Particularmente, no que se refere à implantação de museus municipais, estas exigências podem se constituir em obstáculo que impedem a criação de museus. 4 Os antecedentes deste programa estão localizados no modelo dos sistemas estaduais de museus criados a partir da experiência pioneira do estado de São Paulo, instituído em 1983, e do Sistema Nacional de Museus, ligado ao Sphan/Pró-Memória de 1986 (FRAGA, 2004). 3

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As críticas direcionadas ao modelo vigente conduziram a instauração de um processo de revisão daquela política na mudança do governo Fernando Henrique para o governo Lula. A partir de 2003, instaurou-se por iniciativa do Ministério da Cultura, a revisão da política cultural no nível federal, convergindo na implantação da Política Nacional de Museus. Esta política, ao contrário da anterior, passou a ter, efetivamente, abrangência nacional para todos os museus existentes e incentivar a criação de novas instituições. A partir de 2004, um conjunto de leis articuladas entre si implantam uma política cultural que tem como ponto central o incentivo a criação de museus, a saber: Decreto nº 5.264/2004, institui o Sistema Brasileiro de Museus como uma rede de parceiros institucionais do patrimônio cultural brasileiro; Lei nº 11.328/2006 institui o ano de 2006 como o Ano Nacional dos Museus; Portaria Normativa nº 1/2006, que trata da elaboração do plano museológico dos museus do Iphan; Portaria Normativa nº 1/2007, que trata do relacionamento entre as instituições vinculadas ao Iphan e suas Associações de Amigos; Lei nº 11.904/2009 que institui o Estatuto de Museus, e Lei nº 11.906/2009 que cria o Instituto Brasileiro de Museus – Ibram5. Culminando o processo iniciado em 2003, o Ministério da Cultura, através do Ibram, lançou o Plano Nacional Setorial de Museus – PNSM, para o período 2010-2020, incentivando a criação de novos museus, sobretudo, nas localidades onde ainda não existam museus. Reforçando a política de museus, o Decreto nº 8.124/2013 regulamentou dispositivos das leis que cria o Estatuto dos Museus e o Ibram, e a Portaria nº 205/2014, referendou o Plano Nacional Setorial de Museus. Estes dois documentos reafirmam a posição do governo Dilma em favor da política que foi instituída no governo anterior. 3. PLANO MUSEOLÓGICO A primeira referência está na Portaria Normativa nº 1/2006, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, cuja definição apresentada no Art. 1º, afirma que o ao plano museológico é ferramenta básica de planejamento estratégico, de sentido global e integrador, indispensável para a identificação da missão da instituição museal e para a definição, o ordenamento e a priorização dos objetivos e das ações de cada uma de suas áreas de funcionamento. Na condição de portaria, as exigências ali contidas tinham sua aplicação limitada aos museus vinculados administrativamente ao Instituto do Patrimônio. Para as demais instituições museológicas, as diretrizes da portaria serviam como uma orientação de caráter geral, mas sem a obrigatoriedade de seu cumprimento. Estes dados foram extraídos do levantamento da legislação sobre política cultural, elaborado como fonte de dados do estudo sobre políticas públicas para cultura. O levantamento abrange o período 1972-2014, a partir do documento Legislação Sobre Patrimônio Cultural, editado pela Câmara dos Deputados (2013), que compila a legislação editada a partir de 1937, com o Decreto-Lei que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, e vai até 2010, com a edição da lei que institui o Plano Nacional de Cultura. Recorrendo a outras fontes o levantamento foi completado com a legislação editada até 2014 (Lei nº 13.018/2014 – Política Nacional de Cultura Viva).

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Posteriormente, o plano museológico foi detalhado com a edição da Lei 11.904/2009, que instituiu o Estatuto de Museus (artigos 44, 45, 46 e 47)6, e do Decreto nº 8.124/2013 que regulamentou os dispositivos desta lei (art. 23). Nestes documentos são definidas a função e os aspectos que devem ser contemplados no plano, bem como a competência de sua elaboração. A existência do plano e sua implementação é um dever dos museus, contemplando, entre outros, os seguintes itens: I – o diagnóstico participativo da instituição, podendo ser realizado com o concurso de colaboradores externos; II – a identificação dos espaços, bem como dos conjuntos patrimoniais sob a guarda dos museus; III – a identificação dos públicos a quem se destina o trabalho dos museus; IV – detalhamento dos programas (Lei 11.904/2009, Art. 46). Merece destaque também o § 2º do mesmo art. 46 quando afirma que o Plano Museológico será elaborado, preferencialmente, de forma participativa, envolvendo o conjunto dos funcionários dos museus, além de especialistas, parceiros sociais, usuários e consultores externos, levadas em conta suas especificidades. Em verdade, a elaboração do plano deve se dar obrigatoriamente de forma participativa em razão das novas diretrizes traçadas na Constituição Federal em seu art. 216-A, X por força da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012, a qual estabelece como princípio basilar do Sistema Nacional de Cultura a obrigatoriedade de democratização dos processos decisórios com participação e controle social. Assim, as políticas públicas museológicas devem ser elaboradas com a participação direta dos interessados, não se admitindo mais a elaboração de planos apenas por especialistas ou através de meras consultas aos envolvidos. Dentre estas formas a publicação de editais, a realização de reuniões abertas e a oitiva da comunidade (em seu sentido amplo) através de Audiências Públicas e por meio dos conselhos de política cultural tornam-se os canais participativos adequados para a efetivação da cidadania cultural. Em síntese, o plano museológico é um instrumento de planejamento e de gestão, no qual é apresentada a definição institucional e são listados os programas e projetos que orientam as ações dos museus. A definição institucional descreve as facetas, funções e equipes e identifica as potencialidades e lacunas do museu, especifica sua missão, visão, marcos temático, cronológico e geográfico, delimita seu público e ações. Estes elementos servem de referência a partir do qual são estabelecidas “prioridades para a elaboração dos programas e projetos com vistas a estabelecer a responsabilidade do museu sobre o seu acervo e seu entorno sociocultural” (IBRAM, 2013). A existência do plano museológico é condição indispensável para que as instituições possam captar recursos externos oriundos dos programas de incentivo do Ministério da Cultura, ou provenientes dos dispositivos do Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac (Lei A Lei nº 11.906/2009 criou o Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, autarquia vinculada ao Ministério da Cultura. Com a criação do Ibram os museus vinculados ao Departamento de Museus e Centros Culturais – Demu/Iphan passaram para a gestão do novo instituto. Assim, o que antes se aplicava como uma diretriz administrativa interna (portaria) se universalizou para todos os museus integrados no Sistema Brasileiro de Museus.

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nº 8.313/1991)7. Sandy e Costa (2015), tratando dos instrumentos de financiamento e do plano museológico, ressaltam que as instituições museológicas podem ser mantidas com os recursos definidos na legislação, desde que cumpram com o que determina os artigos 44 e 45 do Estatuto dos Museus. Portanto, o plano museológico é um instrumento de gestão técnica e administrativa, e também de captação de recursos para a sustentação econômica e financeira dos museus. 4. PROGRAMA ARQUITETÔNICO-URBANÍSTICO Os programas são parte constitutiva do plano museológico. Definem atuações específicas para que as funções dos museus sejam cumpridas, relacionando necessidades e metas para a gestão da instituição. O Estatuto dos Museus menciona o programa institucional; de gestão de pessoas; de gestão de acervos; de exposições; educativo e cultural; de pesquisa; de segurança; de financiamento e fomento; de comunicação; como partes constitutivas do plano museológico (Lei nº 11.904/2009, Art. 46, IV). Cada programa relacionado acima remete a conteúdos bem específicos de distintas áreas de conhecimento. Alguns são próprios do campo da museologia, como os de gestão de acervos e de exposições, mas a maioria requer a colaboração de profissionais de outras áreas e a participação da comunidade na sua elaboração. A legislação destaca o caráter interdisciplinar dos programas e a necessidade da colaboração de especialistas e consultores externos (Lei nº 11.904/2009, Art. 46, IV), no entanto, cabe ao museólogo a articulação dos saberes especializado na elaboração e na aplicação dos programas do plano museológico. Entre os programas mencionados na legislação, o arquitetônico-urbanístico aproxima os campos da museologia e da arquitetura. De acordo com a regulamentação do Estatuto dos Museus, este programa abrange: a identificação, a conservação e a adequação dos espaços livres e construídos, das áreas em torno da instituição, com a descrição dos espaços e instalações adequadas ao cumprimento de suas funções, e ao bem-estar dos usuários, servidores, empregados, prestadores de serviços e demais colaboradores do museu, envolvendo, ainda, a identificação dos aspectos de conforto ambiental, circulação, identidade visual, possibilidades de expansão, acessibilidade física e linguagem expográfica voltadas às pessoas com deficiência (Decreto nº 8.124/2013, Art. 23, letra g). Para atender os requisitos do programa arquitetônico-urbanístico os museus devem ser dotados de espaços com características próprias. No documento Subsídios para a criação de museus municipais, editado pelo Ibram, por exemplo, são descritos os espaços físicos de base dos O art. 59, do Decreto nº 8.124/2013, determina que os órgãos e as entidades do poder executivo federal no seu relacionamento com os museus, notadamente quanto ao repasse de recursos, incentivos fiscais e demais formas de financiamento, verifiquem o cumprimento dos dispositivos da legislação, entre os quais se inclui a exigência do plano museológico.

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museus. Recomenda que na criação de museus municipais seja elaborado o plano de ocupação dos espaços, prevendo no mínimo, espaços de recepção, salas de exposição permanente e temporária, reserva técnica, sala de administração, espaços para ações educativas, sala para procedimentos técnicos com o acervo, espaços de apoio e segurança, espaços de serviços, biblioteca e arquivo (CHAGAS e NASCIMENTO JÚNIOR, 2009, p. 20). 5. PROGRAMA DE NECESSIDADES No âmbito da prática da arquitetura, denomina-se programa de necessidades ao documento escrito que descreve as características espaciais internas dos edifícios, sua divisão em compartimentos, os usos a que se destinam estes compartimentos, o mobiliário e equipamento que serão instalados, a geometria básica e as dimensões mínimas, para que o edifício atenda adequadamente a uma determinada finalidade de uso (ALBERNAZ e LIMA, 1998). Os usos dos edifícios são definidos socialmente de acordo com a função que desempenham, e identificados por um nome que remete a diferentes categorias de atividades ou necessidades sociais. Os programas de necessidades modificam-se com o passar do tempo acompanhando as transformações que implicam na ampliação das necessidades humanas que são atendidas nas instituições sociais e nos seus suportes físicos. É importante destacar, no entanto, que são as transformações sociais que incidem na organização dos edifícios, cabendo à arquitetura acompanhar estas transformações e responder com soluções de organização do espaço. As especificações do programa de necessidades devem ser observadas no processo de elaboração do projeto de edifícios e suas especificações devem ser atendidas no projeto. Trata-se, portanto, da descrição de um conjunto de condições que devem ser atendidas, quer se trate do projeto de novos edifícios ou da adaptação de edifícios existentes. É neste aspecto que o programa de necessidades se diferencia da descrição dos espaços e compartimentos de edifícios existentes. Os programas de necessidades podem ser elaborados nas instituições que contratam o projeto de arquitetura, ou ser elaborado pela equipe de projetistas já contratados. A situação mais comum é aquela na qual os contratantes dispõem de um documento com especificações básicas dos usos e espaços do edifício que depois será desenvolvido e complementado conjuntamente com o arquiteto contratado. No caso do projeto de museus, esta descrição pode estar contida no programa arquitetônico-urbanístico como diagnóstico de uma situação existente que se pretenda modificar, ou como especificações de projeto. As expressões programa arquitetônico e programa de necessidades são equivalentes, tratando do conjunto de características pré-definidas para um edifício e que devem ser consideradas no projeto, na construção e na gestão dos espaços de edifícios existentes. Em todos os casos, se trata de diagnosticar, prever e dimensionar os espaços necessários para o adequado desempenho de atividades que ocorrem no interior de edifícios e espaços abertos contíguos.

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6. PLANEJAMENTO DE MUSEUS Na criação de um museu, o plano museológico deve ser elaborado conjuntamente com a organização dos acervos para que a instituição seja incluída nos sistemas de museus. O programa arquitetônico-urbanístico faz parte deste documento de fundação. No entanto, o caráter do programa de necessidades difere quando se trata da implantação do museu em edifício existente ou quando se definem os espaços para a construção de um novo edifício. Em qualquer instituição existente, é possível descrever os seus espaços com respectivos usos, mobiliários e equipamentos. Esta descrição é empírica e sensorial, e pode, sem grandes dificuldades, ser elaborada por qualquer pessoa da equipe do museu. Trata-se de compreender como o suporte físico existente pode ser adaptado aos usos museográficos. O programa arquitetônico-urbanístico, neste caso, mais do que um problema de arquitetura é, essencialmente, um problema de museografia. Outra situação se apresenta quando da elaboração do plano museológico de uma instituição para a qual se pretende construir um novo edifício para abrigar suas instalações. Aqui, o programa arquitetônico-urbanístico descreverá um conjunto de espaços inexistentes, com as características ambientais desejáveis. Essencialmente, se trata de especificar condições que deverão ser observadas no projeto e na construção. A elaboração do programa de necessidades parte da definição das atividades e usos que se desenvolverão para a definição de espaços e compartimentos nas quais ocorrerão estas atividades. Para a consecução desta tarefa é necessário conhecimento crítico sobre o funcionamento e gestão das instituições. Na bibliografia especializada são apresentados esquemas das partes dos museus, geralmente organizando os espaços em dois grandes grupos polarizados pelos espaços de exposição e no outro polo pelos espaços de reserva técnica (Fig. 1). Entre estes dois polos organizam-se os demais espaços para atender as necessidades dos públicos internos e externos do museu.

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Figura 1: Esquema topológico dos espaços dos museus.

Fonte: Como Criar Museu – Orientações (IBRAM, 2013).

Na bibliografia especializada para planejamento e projeto de edifícios, como por exemplo, no Manual do Arquiteto: planejamento, dimensionamento e projeto, organizado por David Littlefield (2011), são apresentados dados gerais de organização e dimensionamento dos espaços para um museu genérico, sem especificação da natureza da instituição em função do acervo. A referência de fundo é a de museus de arte, sem especificações para outros tipos de museus. 7. DOIS EXEMPLOS DE PLANO MUSEOLÓGICO No plano museológico do Museu H. P. Índia Vanuíre, localizado na cidade de Brodowski, interior de São Paulo, o item 8, denominado Características Gerais Recomendáveis para o Edifício e a Infraestrutura, descreve as características desejáveis para os materiais a serem aplicados no museu, nas paredes e pisos. Apresenta recomendações gerais para o controle da luz natural e das instalações elétricas que poderiam ser aplicadas em qualquer museu. Descreve também de maneira genérica os espaços necessários para o funcionamento de um museu. Apenas com a leitura do documento não é possível saber se o museu está instalado em um prédio adaptado, ou em uma construção nova, seu estado de conservação, se os espaços são suficientes e adequados para o acervo e os usos que a população faz das instalações. As recomendações gerais não ficam claras se são metas a serem atingidas. O plano do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, apresenta um item denominado Programa Arquitetônico, acompanhado de desenhos com as plantas dos pavimentos indi-

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cando os usos dos espaços. Depois desta descrição, que bem pode servir como roteiro ou mapa de visitação, é relatado o processo de recuperação dos edifícios. No entanto, apesar do maior detalhamento na descrição do existente, como no caso anterior, também não apresenta um diagnóstico e uma projeção de manejo dos espaços. Nestes dois casos, tomados como exemplos para ilustração, percebe-se que não há clareza sobre o conteúdo do programa arquitetônico-urbanístico. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS A elaboração do plano museológico e, por extensão, de todos os seus programas e projetos é da competência dos museólogos. É isto o que se depreende da Lei nº 7.287/1984, que regulamenta a profissão de museólogo quando, no artigo 3º, trata das atribuições profissionais, entre as quais se inclui “planejar, organizar, administrar, dirigir e supervisionar os museus”, e “executar todas as atividades concernentes ao funcionamento dos museus”. Evidentemente, que dada à complexidade da tarefa, o gestor dos museus deverá contar com a colaboração de especialistas das diversas áreas de conhecimento que informam os diversos programas incluídos no plano museológico. Mesmo assim, a tarefa de coordenação e articulação das diversas partes cabe aos profissionais de museu. No que se refere ao planejamento da gestão dos espaços físicos do museu, expresso no programa arquitetônico-urbanístico, é fundamental distinguir entre levantamento e diagnóstico dos espaços existentes e planejamento de intervenções. Embora a legislação não seja muito clara neste ponto, o sentido implícito de programa de gestão, sugere que o conteúdo específico deste programa se aproxime do que se compreende como programa de necessidades no âmbito das práticas de projeto de arquitetura. Ao gestor cabe a tarefa de levantar recursos para a manutenção das instituições, nos termos do Estatuto dos Museus, que exige a elaboração do plano museológico como condição para pleitear recursos públicos. Atendendo esta condição, o plano museológico para constituir-se, efetivamente, em instrumento de planejamento e gestão, deve detalhar seus programas de modo operativo. No que se refere ao programa arquitetônico-urbanístico, faz-se necessário planejar a ocupação e gestão dos espaços em sintonia com as demandas de uso decorrentes da natureza do museu e do seu acervo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERNAZ, Maria Paula; LIMA, Cecília Modesto. Dicionário ilustrado de arquitetura. São Paulo: ProEditores, 1998. BRASIL – MINISTÉRIO DA CULTURA. Política Nacional de Museus. Brasília: MinC; 2003.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS. Legislação sobre patrimônio cultural. 2 ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013. (Série legislação; n. 92) CHAGAS, Mário de Souza; NASCIMENTO JUNIOR, José do (orgs.). Subsídios para a criação de museus municipais. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura / Instituto Brasileiro de Museus e Centros Culturais / Departamento de Processos Museais; 2009. FRAGA, Thais Gomes. Sistema Estadual de Museus do Rio Grande do Sul: a incessante construção de uma política museológica. In: Musas, Revista Brasileira de Museus e Museologia, v. 1, n. 1 (2004), p. 107-120, Rio de Janeiro: IPHAN / Departamento de Museus e Centros Culturais, 2004. INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS – IBRAM. Como criar museu – orientações. Brasília: IBRAM/ DEPMUS/CPMUS, 2013. Disponível em: http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2013/03/Como CriarMuseu_Orientacoes.pdf. Acessado em: 28/09/2015. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Portaria Normativa nº 1, de 5 de julho de 2006. Dispõe sobre a elaboração do Plano Museológico dos museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e dá outras providências. LITTLEFIELD, David. Manual do Arquiteto: planejamento, dimensionamento e projeto. 3 ed. Porto Alegre: Bookman; 2011. MOREIRA, Daniel de Carvalho; KOWALTOWSKI, Doris Catherine Cornelie Knatz. Discussão sobre a importância do programa de necessidades no processo de projeto em arquitetura. In: Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 31-45, abr./jun. 2009. OLLAIK, Leila Giandoni; MEDEIROS, Janann Joslin. A implementação da Política Nacional de Museus e a democratização de acesso: um estudo comparativo de três instrumentos governamentais. In: XXXVI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração. Anais... (2012: Rio de Janeiro). Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, 2012. SANDY, Danielly Dias; COSTA, Heloisa Helena. Políticas públicas para museus: gestão e sustentabilidade. In: VI Seminário Internacional de Políticas Públicas. Anais... (2015: Rio de Janeiro). Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2015 (p. 459-466). TOLENTINO, Átila Bezerra. Políticas públicas para museus: o suporte legal no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista CPC, São Paulo, n. 4, p. 72-86, maio/out. 2007.

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POLÍTICA NACIONAL DAS ARTES: LIMITES E POSSIBILIDADES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS ARTES. Rodrigo Cazes Costa1 RESUMO: Este artigo tem por objetivo examinar as possibilidades e limites das políticas públicas para as artes por meio do estudo da implantação da Política Nacional das Artes pela Funarte, no decorrer do ano de 2015. A perspectiva teórica da cultura como recurso (YÚDICE, 2006) verifica que as políticas culturais na atualidade estão voltadas, principalmente, para sanar problemas socioeconômicos. Seria esse também o destino das políticas públicas para as artes? E a estética, onde fica? Por meio de um panorama das políticas públicas para a cultura, principalmente no Brasil, da questão da estética para as artes e do exame de entrevistas com o presidente da Funarte, Francisco Bosco e de textos presentes no site da PNA, o artigo busca fornecer algumas pistas que possam ajudar a elucidar os limites e possibilidades de uma política púbica para as artes. PALAVRAS-CHAVE: políticas culturais, economia da cultura, cultura como recurso, Política Nacional das Artes.

1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E AS ARTES Palavras como produção cultural, gestão cultural e políticas culturais tornaram-se parte integrante do vocabulário de discussão sobre a cultura e as artes no Brasil, com vigor que até hoje é crescente a partir dos anos 1990. (MENDONÇA, 2012). A genealogia das políticas culturais no Brasil já foi mapeada e problematizada por vários autores (BARBALHO, 2007, CALABRE, 2009, RUBIN, 2007) e traz como questões centrais a ausência do Estado em vários momentos da história, a falta de democracia na tomada de decisões em torno das políticas culturais formuladas e executadas, a visão da cultura como sinônimo de belas-artes e a permanente falta de recursos financeiros destinados à cultura. Esse processo histórico reprimiu várias demandas na área da cultura e das artes que explodiram durante o processo de redemocratização do país. A gestão Gil-Juca (2003-2010) à frente do MinC representou, dentro das possibilidades históricas e políticas do país à época, uma síntese dessas demandas, tendo como destaque o programa Cultura Viva, hoje transformado em lei.2 Professor Doutor do curso de Produção Cultural da UFF: [email protected] Lei 13.018/2014

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Um aspecto desse período em relação ao campo das políticas culturais é a sua abrangência para além do campo das belas-artes. Conforme disse Gilberto Gil em seu discurso de posse no MinC em 2003: O Ministério não pode, portanto, ser apenas uma caixa de repasse de verbas para uma clientela preferencial. Tenho, então, de fazer a ressalva: não cabe ao Estado fazer cultura, a não ser num sentido muito específico e inevitável. No sentido de que formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura. No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura desse mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. (GIL, 2003 in: http://www.cultura.gov.br/discursos/-/asset_publisher/DmSRak0YtQfY/ content/discurso-do-ministro-gilberto-gil-na-solenidade-de-transmissao-do-cargo-35324/10883). Assim, as políticas culturais passam a possuir um papel que vai além do simples fomento às belas-artes e à proteção ao patrimônio cultural, principalmente o material, e buscam integrar um conjunto de políticas públicas que pretendem ser indutoras de cidadania e desenvolvimento. O que as políticas culturais desse período buscaram fazer pode ser sintetizado naquilo a que Gil chamou em seu discurso de “do-in” antropológico, ou seja, massagear com a cultura os pontos vitais da nação para que eles despertem. No discurso de posse de Gilberto Gil no MinC, não há, entretanto, menção à arte em momento algum, somente à cultura. O que já nos coloca diante da principal questão que este artigo busca enfrentar: é possível, efetivamente, haver políticas públicas para as artes? Além da questão central deste artigo, a possibilidade de existir uma política pública para as artes e as suas possibilidades e limitações, as políticas públicas para a cultura e as artes são espécies das políticas públicas, que, em outros setores como saúde, educação e assistência social encontram-se mais consolidadas.3 As políticas públicas são um campo de estudos relativamente recente, tendo como fundadores (SOUZA, 2006) os trabalhos de Laswell nos anos 1930, Simon, nos anos 1950, Easton, nos anos 1960 e Lindblom, nos anos 1950 e 1970. Cada um desses teóricos desenvolveu conceitos mais ou menos importantes para a área4, sempre preocupados Na área da saúde há o SUS, desde 1988, como grande política pública nacional para a área. Na área de assistência social há o SUAS, desde 2003. Na área da educação há planos nacionais desde 1962. O Plano e o Sistema Nacional de Cultura só surgem em 2010. 4 Para mais detalhes sobre as contribuições de cada um desses teóricos, consultar o artigo “Políticas públicas-uma revisão da literatura”, de Celina Souza. 3

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em como se dão os processos de formulação e tomada de decisão dos governos, assim como a importância dos agentes envolvidos nesses processos e a sua maior ou menor racionalidade na tomada de decisões. No campo da ação governamental, a origem também é recente. A introdução de políticas públicas como ferramenta das decisões do governo é produto da Guerra Fria e da valorização da tecnocracia como forma de enfrentar suas consequências. (SOUZA, 2006). Ou seja, somente a partir do final da Segunda Guerra Mundial, isso nos EUA, o governo passa a pensar as políticas públicas de maneira mais sistêmica e racional. Não que elas não existissem antes5, mas, em um mundo cada vez mais complexo do ponto de vista político e tecnológico, as decisões dos governos passam a necessitar de cada vez maior amparo científico para a sua formulação e implementação. Mas o que seriam exatamente as políticas públicas? Não existe uma única, nem melhor, definição sobre o que seja política pública: Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn (1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer” (...) A definição mais conhecida continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz”. (SOUZA, 2006, p.24). Pensando a respeito da última definição de políticas públicas, é bastante complicado, quando se pensa em arte, do ponto de vista da estética, mensurar ganhos e perdas. Podemos pensar em facilitar o acesso aos meios de produção artística, ampliar os canais de distribuição dos produtos artísticos produzidos, fazer com que as pessoas tenham mais recursos financeiros para comprar ou ter algum tipo de acesso à produção artística, mas nenhuma dessas medidas garante que, efetivamente, haverá um ganho estético a partir das orientações tradicionalmente aplicadas a área de políticas públicas e que venham a ser aplicadas a uma política para as artes. 2. CULTURA VERSUS ARTE O conceito de arte6 é, assim como o conceito de cultura7, bastante complicado de se precisar. Há várias definições que atravessam diferentes períodos da história e cujas diferenças são O New Deal é um exemplo de conjunto de políticas públicas nos EUA, anterior à Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a experiência de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, nos anos 1930, é o primeiro exemplo de um pensamento de políticas públicas para a cultura no país. 6 Alguns dos conceitos mais significativos de arte ao longo da história do ocidente podem ser encontrados em Platão (2014), Aristóteles (1998), Kant (1989), Nietzsche (1999) e Benjamin (2012). 7 Eagleton (2005), Williams (2011), Boas (2009), Canclini (1998). 5

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bastante acentuadas entre ocidente e oriente. Neste artigo buscamos o diálogo com um conceito de arte, cultura e políticas culturais que problematiza a formulação e execução de políticas públicas para as artes: A arte tem sido vista e tem visto a si mesma como um exercício de violação das regras desde o último quarto do século 19 e quis ser isso pelo menos desde a Renascença. Não há motivo para recusar-lhe essa representação. Não basta, porém, reconhecer que a arte se tornou um exercício de violação das regras da arte: há normas de outro campo que ela viola. A ideia tradicional — e, pode- se dizer hoje, uma ideia mais politicamente correta do que outra coisa— de que arte também é cultura, sendo de bom senso, antes confunde o quadro do que esclarece as coisas. (COELHO, 2008, p. 117). Se a arte não pertence ao campo da cultura, como pensar em políticas públicas para as artes que estejam integradas ao conjunto das políticas culturais públicas? Teixeira Coelho, no mesmo texto supracitado, também encaminha as suas ideias a respeito das possibilidades de uma política para as artes: Nesse quadro, um programa de apoio à produção ou distribuição da cultura ou um programa de transmissão da cultura — em suma, uma política cultural — para uma obra de cultura será forçosamente de natureza, como se diz, sociocultural, isto é, atenderá tanto (por vezes) à especificidade do cultural em jogo quanto do coletivo, da comunidade, da sociedade envolvida: não raro, atenderá mais ao coletivo do que ao propriamente cultural (...) Correspondentemente, um programa para uma obra de arte, para a arte, visará especifica e primordialmente as questões próprias do artístico, do estético e do sujeito individual, da pessoa, da personalidade que a organiza e nela se projeta e daquela que à obra se expõe, como observador. (COELHO, 2008, p.123). O trecho supracitado começa por separar, de maneira clara, o que é cultura e o que é arte, sendo que a cultura terá uma política própria para ela e a arte, outra política. No entanto, como os conceitos de cultura e arte são imprecisos e altamente mutáveis, às vezes em curtos períodos de tempo, no plano concreto da formulação e aplicação de políticas públicas seria bastante difícil efetuar essa separação. Corre-se o risco de cair na tentação autoritária de dizer que algo é ou não arte e os problemas e riscos que isso causa já são bem conhecidos.8 Do ponto de vista teórico, no entanto, as provocações de Teixeira Coelho são bastante pertinentes e trazem esse choque entre o coletivo e o individual, entre a ética e a estética, que atravessam os diálogos e conflitos entre cultura e arte e fazem com que pensar em políticas públicas para as artes seja algo bastante desafiador. Na República Velha os sambistas eram perseguidos no Rio de Janeiro e o samba marginalizado. Nos anos 1930, com o governo Vargas, o samba passou ao status de música símbolo da identidade brasileira.

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O terreno das políticas públicas para as artes é muito mais pantanoso que o das políticas culturais públicas, principalmente a partir do momento em que essas políticas abriram-se para um conceito antropológico de cultura, cujo ideal está presente no discurso de posse de Gilberto Gil no MinC. As políticas públicas para as artes possuem questões que se relacionam, naturalmente, com as políticas culturais públicas, como a da democratização do acesso e da produção. Mas existe possibilidade de as políticas para as artes avançarem além de meros dados quantitativos? E de escaparem da principal força que orienta as políticas culturais na atualidade, a nosso ver: a de considerar a cultura como um recurso (YÚDICE, 2006). A partir do momento em que as artes, no ocidente, se retiram da esfera da influência e do patrocínio da religião e da aristocracia, onde habitavam até o final do século XVII, meados do século XVIII e ganham a autonomia da estética, passam a ser parte de um repertório cada vez mais distante do cidadão médio. De modo geral, com a crescente especialização da modernidade, esse cidadão médio não está familiarizado com os cada vez mais variados e específicos códigos utilizados pelas diferentes linguagens artísticas. Isso faz com que a arte em suas variadas linguagens e objetos se torne, em muitos casos, privilégio de uma pequena parcela da população que possui tempo livre, interesse e recursos financeiros que viabilizem o acesso à produção artística existente, seu repertório crítico e, também, à possibilidade de praticá-la, em alguma (s) de suas diferentes linguagens. Num país como o Brasil, profundamente desigual, tal questão é ainda mais premente, já que a parcela da população que consegue ter acesso à cultura e as artes é bastante reduzida. Existe, por outro lado, toda uma cultura popular e uma cultura urbana de massas que é mais acessível à população em geral, o que torna a questão da política para as artes ainda mais complexa, caso ela tenha como foco uma avaliação meramente estética do que será, ou não, objeto de apoio por parte das políticas públicas para as artes. Como exemplo dessa relação complexa entre cultura e arte, políticas culturais e políticas para as artes, vejamos o exemplo de Jean-Luc-Godard. É bastante difícil negar a importância para as artes (e também para a cultura...) de Jean-Luc-Godard, um dos artistas mais decisivos dos séculos XX e XXI. Não se pode negar, entretanto, que seus filmes não são exatamente o que se pode chamar de populares, necessitando, para a sua fruição, de uma determinada carga de informações a respeito da linguagem cinematográfica e de todo o repertório de citações culturais e artísticas que os atravessam. Pode-se até vir a assisti-los sem possuir essas referências e apreciá-los por determinados elementos como a interpretação dos atores, o uso da trilha sonora, a fotografia, um determinado enquadramento, a montagem, etc. mas, até que se atinjam as camadas mais profundas dessa apreciação, é necessário tempo e interesse dos quais nem todos dispõem, o que faz dos filmes de Godard objeto de culto junto a um contingente restrito de espectadores. Portanto, mesmo que assim não deseje o artista, a arte moderna e contemporânea, muitas vezes,

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possui um caráter elitista inegável, falando para poucos, sendo produzida por poucos, mesmo quando é esteticamente muito potente, como nos parecem ser os filmes de Jean-Luc-Godard. Desse modo, chega-se a um aparente paradoxo em torno da questão das políticas culturais e das políticas para as artes. Se as primeiras parecem voltadas cada vez mais para objetivos palpáveis, quantificáveis, dos quais se possam prestar contas (basta ler a Instrução Normativa 1/2013 do MinC, que regulamenta a Lei Rouanet, que poderemos facilmente chegar a essa constatação) como fazer políticas para as artes se as artes, falando aqui do que possa ser considerado como esteticamente potente, operam num terreno que é ainda menos palpável, quantificável e do qual se possa prestar contas que a cultura? Ou melhor, pode-se fazer isso tudo em termos de política para as artes, mas isso não seria exatamente do domínio do campo das artes e da estética e sim da produção cultural, da gestão cultural, do projeto cultural, ferramenta por excelência desse momento das políticas culturais que se utilizam da cultura enquanto recurso (YÚDICE, 2006). 3. POLÍTICA NACIONAL DAS ARTES E A FUNARTE Quando se pensa em políticas públicas para as artes no Brasil, pensa-se logo em cinema e audiovisual. O Brasil possui uma tradição em formulação de políticas públicas9 para o fomento do cinema nacional. Essa tradição se deve ao alto custo de produção que o cinema sempre apresentou, além da complexidade de sua distribuição e exibição, pelo custo de se construir uma sala de cinema, fazer várias cópias em película de um filme, além da competição, no mercado interno e externo, com produções de países mais ricos que o Brasil. Mesmo que os modos de produção e distribuição e digitais tenham modificado de maneira substantiva esses custos, o cinema/audiovisual ainda é uma linguagem privilegiada quando se fala de políticas públicas para as artes no país. O cinema, inclusive, possui uma agência federal exclusiva para o seu fomento e regulação de mercado, a Ancine. Em termos de potência estética, no entanto, quais são os resultados dessa história de políticas públicas para o cinema nacional? De suas históricas relações com o Estado e o mercado? O debate nesse terreno é complexo, indo muito além dos mecanismos de retorno social, prestação de contas e sustentabilidade econômicas possíveis para a mensuração das políticas culturais. Ao mesmo tempo em não há como separar totalmente as questões estéticas da produção cinematográfica das relações com o mercado e o Estado (SIMIS, PELLEGRINI, 1998) e isso vale para todas as linguagens artísticas, não há como garantir que políticas públicas para as artes gerem um resultado artístico esteticamente potente. Uma política nacional para as artes pode fazer com haja mais possibilidades da diversidade estética presente nas diferentes linguagens artísticas ser produzida, circular, ser acessada pelo público, etc. desde que se tenha a noção de que a Um resumo dessas políticas pode ser encontrado nos livros Artes e manhas da Embrafilme, de Tunico Amâncio e Cinema brasileiro a partir da retomada- aspectos econômicos e políticos, de Marcelo Ikeda.

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diversidade estética de cada objeto artístico e a sua potência (ou não) não podem ser medidas pelos mecanismos comumente utilizados para a mensuração da eficácia das políticas culturais.10 Não faremos aqui uma retrospectiva histórica da atuação da Funarte no campo das políticas culturais no Brasil. Tal estudo já foi feito (BOTELHO, 2001) e aqui nos parece mais importante situá-la no momento atual das políticas culturais brasileiras no nível federal e a sua articulação com as políticas estaduais e municipais. O eixo central para essa articulação é, desde 2015, a Política Nacional das Artes. No ano de 2015, que marcou o início do segundo mandato da presidente da República Dilma Roussef, Juca Ferreira foi reconduzido ao cargo de Ministro da Cultura. Dentre os órgãos subordinados ao MinC está a Funarte e, para a sua presidência, foi escolhido o intelectual Francisco Bosco, filho do famoso compositor e cantor de música popular João Bosco, artista de grande relevância em sua área de atuação nos últimos quarenta anos. Francisco Bosco relatou as suas ideias a respeito do papel da Funarte em entrevista concedida aos repórteres Luiz Franco e Marco Aurélio Canônico, no jornal Folha de São Paulo, em março de 2015: Uma diretriz vai ser tentar fazer com que a instituição entre na discussão cultural, não só no Rio11, mas também numa esfera maior. (...) A sala Sidney Muller (no Rio) não é um espaço relevante na vida musical da cidade. 12 Há um déficit de formulação na casa, de imaginação na criação de políticas públicas. (BOSCO, 2015 in: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ ilustrada/213003-filosofo-francisco-bosco-promete-criatividade-para-resgatar-funarte.shtml). Neste trecho da entrevista, nota-se que há uma preocupação com um dos equipamentos culturais administrados pela Funarte (que administra em torno de vinte equipamentos culturais pelo Brasil).13 que não vem sendo utilizado, na avaliação de Francisco Bosco, de maneira adequada. Quem acompanhou de perto a programação da Sala Funarte Sidney Muller em 2015 viu que ela foi revitalizada, voltando a fazer parte da vida artística e cultural da cidade. A programação musical era, entretanto, voltada para um público de nicho, apostando em artistas (Arto Lindsay e Luís Filipe de Lima, que abriram a série de apresentações em julho, deram o tom de boa parte da programação em termos de padrão estético) que não são exatamente conhecidos das massas. Nesse sentido, a aposta das Funarte foi voltar-se, na formulação da programação da As leis de incentivo à cultura e os editais de apoio à cultura quase sempre lançam mão de instrumentos de avaliação objetivos para definir o apoio ou não a um projeto artístico-cultural. Mas esses instrumentos nada dizem sobre o potencial estético dos objetos que serão produzidos a partir desses projetos. 11 A sede da Funarte fica localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, no clássico prédio de arquitetura modernista (Lúcio Costa e outros) situado na Rua da Imprensa número 16, construído sob a encomenda de Gustavo Capanema quando de sua passagem à frente do Ministério da Educação e Saúde nos anos 1930. 12 Durante todo o ano de 2015 a sala Funarte Sidney Muller foi ocupada, na programação “Contemporâneos”, por uma série de coletivos ligados à música (Quintavant, Chama, Norte Comum, etc.) que se encarregaram de programar atrações ligadas à cena alternativa da música brasileira contemporânea. 13 http://oglobo.globo.com/cultura/francisco-bosco-na-crise-nao-ha-justica-18286627 10

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Sala Sidney Muller em 2015, para aquele aspecto da arte que desafia o público a reconhecer seus códigos, tornando-a, muitas vezes, obscura para a grande parcela do público pouco habituada a lidar com eles. Não deixa de haver, nesse caso, algum paradoxo entre a ideia de democratização do acesso, preconizada por muitas diretrizes de políticas culturais e para as artes e a dificuldade, ao menos inicial, de apreciação, que as propostas estéticas de muitos dos músicos que tocaram na Sala Funarte Sidney Muller em 2015 apresentam. Evidentemente, parece que essa democratização não estaria necessariamente apenas na oferta de atrações artísticas (BOTELHO, OLIVEIRA, 2010) e sim, também, em outras ações que possam ser incentivadas por políticas para as artes, como oficinas, cursos, palestras, etc. principalmente nas escolas da rede pública de ensino. Mas, se no que tange ao aspecto curatorial, boa parte das atrações musicais escolhidas para se apresentar no projeto Contemporâneos da Sala Funarte Sidney Muller pertencem a circuitos da produção musical mais ou menos alternativos ao mainstream, os preços14 cobrados pelos ingressos fizeram com que, de outra maneira, a exigência de contrapartidas facilmente verificáveis necessárias às políticas culturais para se legitimarem nos dias de hoje fosse atendida. Se não basta a democratização do acesso para que sejam resolvidas as questões relativas à maior familiaridade do público com as diversas linguagens artísticas, é um caminho possível para as políticas paras as artes, desde que não haja aí maiores julgamentos relativos a questões estéticas. A música mais erudita e a mais popular precisam ser disponibilizadas e, em espaços públicos, os ingressos devem ser, o máximo possível, acessíveis ao público em geral. Outro aspecto importante a ser ressaltado na entrevista de Francisco Bosco é um desejo de colocar a Funarte como ator importante no debate artístico-cultural no Brasil: Tentar fazer com que a instituição entre na discussão cultural numa esfera maior. Não basta continuar tocando editais e prêmios, você tem que agir. Foi aqui que surgiu o ciclo [de debates] que hoje se chama “Mutações”, do Adauto Novaes, que teve impacto cultural. Há um déficit de formulação, de imaginação na criação de políticas públicas. (BOSCO in: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/03/1606358-filosofo-francisco-bosco-promete-criatividade-para-resgatar-funarte.shtml) Esse papel, nos dias de hoje, é, no que diz respeito a questões teóricas, exercido pelas universidades, tanto no que diz respeito ao estudo dos aspectos estéticos das linguagens artísticas abarcadas pela Funarte (música, artes visuais, teatro, circo, literatura e dança) quanto nas discussões teóricas sobre formulação (principalmente) e execução de políticas públicas para a cultura e as artes. Reivindicar para a Funarte um papel no debate teórico sobre as artes e a cultura é um gesto relevante, até porque o debate teórico é sempre relevante. Mas a prioridade da Funarte deve ser a execução de políticas públicas para as artes, dentro das possibilidades de alcance Os ingressos para o projeto Contemporâneos na Sala Funarte Sidney Muller em 2015 custavam R$20,00 (inteira).

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dessas políticas. É a sua função substantiva, onde deve concentrar aos máximos seus recursos materiais e humanos. A política nacional das artes tem por objetivo principal “a implementação de políticas públicas atualizadas, fundamentadas e duradouras para as artes, então divididas nas seguintes linguagens: artes visuais, circo, dança, literatura, música e teatro”. (“A política nacional das artes” in: http://culturadigital.br/pna/sobre-2/). O cinema e o audiovisual não estarão incluídos na política nacional das artes coordenada pela Funarte, por já possuírem um órgão federal para a sua regulação e fomento. Espera-se, no entanto, que sejam articuladas políticas transversais que possam integrar o cinema e o audiovisual às demais linguagens artísticas abarcadas pela Política Nacional das Artes. Não faz sentido uma política para as artes que não seja marcada pela transversalidade, buscando articular as diversas linguagens artísticas, ao invés de fazê-las competir umas com as outras na busca pelos minguados recursos existentes. Como, para cada uma das linguagens artísticas abarcadas pela Política Nacional das Artes, já havia um histórico de formulação de políticas públicas por meio de planos setoriais, resolveu-se por contratar, com recursos financeiros que também provêm da UNESCO15, um articulador16 para cada uma das linguagens abarcadas pela Política Nacional das Artes. Esses articuladores deverão sistematizar as informações oriundas dos planos setoriais, além de fazer a ponte entre os órgãos públicos formuladores e executores da Política Nacional das Artes, principalmente a Funarte, os artistas e a sociedade. A partir dos encontros dos articuladores com os agentes de cada segmento artístico, em agenda disponível no site da Política Nacional das Artes17, serão consolidadas propostas para serem levadas às caravanas das artes que percorrerão o Brasil no ano de 2016. A partir do conjunto dessas experiências deverá tomar corpo a Política Nacional das Artes. Em entrevista concedida à repórter Joyce Athiê, do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, no mês de dezembro de 2015, Francisco Bosco efetua um balanço da Política Nacional das Artes, além de abordar outros assuntos ligados à Funarte e às políticas culturais: A crítica que se faz sobre a Funarte é sobre sua incapacidade de atuar em escala nacional(...)O que pode garantir isso é a Funarte passar a se perceber e atuar a partir de uma lógica de sistema federativo, sendo menos executora e mais articuladora entre Estados e municípios. (BOSCO in: http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/reestrutura%C3%A7%C3%A3o-em-vista-1.1200754). Este trecho da entrevista aponta para a necessidade de não haver uma excessiva centralização na formulação e execução de políticas públicas para as artes. Esse é um problema que Para uma análise do papel da Unesco na formulação e execução de políticas culturais nos últimos anos ver “Unesco, cultura e políticas culturais”, de Luiz Fernando da Silva. 16 Sobre os articuladores da PNA: http://culturadigital.br/pna/articuladores-da-politica-nacional-das-artes/ 17 http://culturadigital.br/pna/encontrossetoriais/ 15

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parece ser bastante comum às políticas culturais públicas no Brasil: uma centralização na esfera federal, em termos de formulação (principalmente) e até mesmo de execução que não integra suficientemente os entes federativos (estados e municípios) que estão situados mais próximos àqueles que, efetivamente, se aproveitam (ou não) das políticas culturais. Isso se dá tanto pelo fato de nosso federalismo concentrar18 excessivamente recursos financeiros na União, em detrimento dos estados e municípios, quanto pelo fato de que, muitas vezes, não há gestores culturais capacitados nos estados e, principalmente, nos municípios. Em outro trecho da entrevista Bosco fala sobre o objeto da Política Nacional das Artes: “Se a PNA é um conjunto de formulação e propostas – e tentativa de implementação – que pretende fortalecer as cadeias produtivas e criativas das artes, é preciso que haja uma instituição à altura desse engrandecimento”. (BOSCO in: http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/ magazine/reestrutura%C3%A7%C3%A3o-em-vista-1.1200754). A referência que aqui chama atenção é para a utilização das palavras produtivas e criativas. Tais jargões são bastante encontrados nas discussões a respeito da economia criativa19 e explicitam uma vontade de aproximar da Política Nacional das Artes em relação a um discurso mais voltado para fatores de desenvolvimento econômico-social do que, propriamente, para fatores estéticos, o que pode aproximá-la da tendência das políticas culturais nos dias de hoje de se utilizar da cultura (e das artes) enquanto recurso (YÚDICE, 2006). Em relação à metodologia da Política Nacional das Artes, Francisco Bosco explica na entrevista: A gente dividiu o processo em dois eixos, o transversal e o setorial. O setorial é dividido pelos articuladores (...) E o segundo eixo é transversal, que ficou a cargo do comitê executivo da PNA, onde se discute a reestruturação da Funarte a partir da lógica de sistema federativo. E outro ponto de atuação que estamos atrasados e que temos que aprofundar são os marcos legais das artes, como as questões trabalhistas, fiscais, tributárias, projetos de lei fundamentais para alguns setores. (BOSCO in: http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/reestrutura%C3%A7%C3%A3o-em-vista-1.1200754). Mais uma vez, além das questões administrativas da Funarte e sua relação com os estados e municípios, o que se verifica neste trecho da entrevista é a ênfase em aspectos que perpassam a perspectiva econômica da produção artística e não a sua perspectiva estética. Em 2013 a União possuía aproximadamente 68% dos tributos arrecadados no país, cabendo aos estados aproximadamente 25% e aos municípios a aproximadamente 5%. Fonte: Receita Federal in: http://idg.receita.fazenda. gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2013.pdf 19 O termo Economia criativa pode ser entendido como um conjunto de políticas públicas que se originaram nos anos 1990, com o processo de desindustrialização dos países da Europa e América do Norte, e que buscam na cultura e atividades afins (design, moda, arquitetura, gastronomia, etc.) alternativas para a geração de renda e emprego. 18

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Pelas declarações de Francisco Bosco na entrevista supracitada, nos parece que a Política Nacional das Artes irá, então, concentrar-se no prisma econômico da produção artística, visando desenvolvimento econômico-social por meio da arte. Os aspectos estéticos, ao que parece, encontram-se fora das possibilidades de alcance direto de uma política para as artes. 4. ÚLTIMAS PALAVRAS, POR ENQUANTO Com a continuidade da implantação da Política Nacional das Artes ao longo dos próximos anos, poderá se verificar, em cada uma das linguagens artísticas abarcadas por ela, se os objetivos que vêm sendo traçados pelos articuladores junto aos atores da sociedade civil ligados às várias linguagens artísticas foram alcançados. Em 2016 os resultados dos encontros dos articuladores com os atores de cada linguagem artística presente na Política Nacional das Artes será sistematizado pela Funarte, e, então, se poderá ter uma visão mais clara do que, efetivamente, será proposto pela Política Nacional das Artes. No entanto, ao que nos parece, a construção de uma política pública para as artes esbarrará em uma questão central: as limitações impostas pela questão da estética. Em uma época na qual não existe (DURAND 2013), nem na academia e nem na sociedade, o consenso em torno do que é uma arte potente esteticamente, que mereça apoio das políticas públicas, em detrimento a outras com menor potência estética, resta um caminho possível às políticas paras as artes: o aspecto econômico-social, o discurso do desenvolvimento. Possibilitando a ampliação da produção artística, do acesso às artes e de seu estudo, pode ser que as chances de surgirem de obras potentes esteticamente aumentem, ainda mais em um país imensamente desigual como o Brasil, o que justifica a importância da Política Nacional das Artes que vem sendo implementada pela Funarte. No entanto, não deixa de ser frustrante verificar que, justamente no que a arte tem de mais poderoso, a sua força estética, sua “força estranha” 20as políticas públicas possuem grandes limitações para atuar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A política nacional das artes. http://culturadigital.br/pna/ (Visualizado em 03/02/2016). ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentários de Eudoro de Souza. Brasília: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998. Referimo-nos à canção Força Estranha, de Caetano Veloso, em que o compositor alude às forças da natureza que dão estímulo e força ao artista e sua arte: “Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha”. 20

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A COMISSÃO NACIONAL DE INCENTIVO À CULTURA ENTRE OS GOVERNOS LULA E DILMA Rodrigo Correia do Amaral1

RESUMO: este trabalho analisa o comportamento da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC no período entre 2010 e 2011. A finalidade desta observação é lançar luz sobre os processos micro sociais atuantes no interior do Mecenato e a sua dinâmica transformadora, que o debate corrente acerca da reforma da Lei Rouanet não consegue apreender. As análises das atas desse colegiado permitiram compreender que a partir de 2010 o Estado promoveu reformas no sentido de exercer maior coordenação sobre os trabalhos da Comissão, ao passo que os conselheiros representantes de organizações externas ao Estado procuram assegurar a legitimidade da CNIC como espaço de definição sobre quais projetos serão aptos a oferecerem incentivos fiscais para seus potenciais patrocinadores privados. PALAVRAS-CHAVE: Política cultural, instituições da cultura, sociologia da cultura

A Lei Rouanet (8.313/ 91) possui vinte e cinco anos de existência, e nas duas primeiras décadas seus resultados seguiram uma trajetória ascendente ininterrupta, tanto na quantidade de projetos apresentados, autorizados e bem-sucedidos na captação de recursos, como no volume de recursos movimentados por meio de renúncia fiscal (SIMIS & AMARAL, 2012). Uma vez que a maioria das produções que se utilizam desses recursos está localizada na região Sudeste, para um conjunto de atores – tendo à frente o próprio Ministro da Cultura – esses resultados revelam um modelo altamente concentrador de fomento à cultura, e por isso merecedor de uma reforma profunda que distribua os recursos de forma mais equânime entre os estados da Federação, e estabeleça às empresas patrocinadoras uma participação maior com recursos próprios. Para outros – sobretudo, os produtores culturais que se consagraram dentro do modelo vigente – esses resultados atestam o sucesso da Lei em fomentar uma cadeia produtiva que emergiu e se adensou ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que o Mecenato tem seguido um modelo de fomento historicamente adotado pelo Estado para outros setores econômicos. O volume de recursos destinado a essa economia da cultura por meio de renúncia fiscal, de R$ 16,9 bilhões Aluno de doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ USP. E-mail: [email protected]

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entre 1993 e 20152 seria, como argumentado pelos defensores do modelo, na verdade bastante inferior ao que tem sido destinado para o setor produtivo3. Com isso, fica subjacente um embate polarizado entre mudar ou conservar a Lei Rouanet, dando a impressão de essa tratar-se de um instrumento imutável. Ainda que as regularidades do Mecenato quando vistas em uma perspectiva mais ampla possam alimentar tal impressão, ajustar o foco sobre os processos micro sociais, com a observação das dinâmicas criadas pelos atores envolvidos nesse campo, pode contribuir para uma compreensão mais aprofundada do quanto o Mecenato, ao durar no tempo, possui uma estrutura que continua a mudar. Para isto, este trabalho pretende analisar a forma como se encontra constituído um dos principais espaços de decisão sobre o fomento às artes e à cultura no Brasil, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, criada pela Lei 8.313/ 91, e analisar como os dirigentes do Estado na área da cultura, representados pelo Ministério da Cultura, e os representantes de segmentos culturais que fazem parte dessa Comissão interagem na dinâmica interna desse colegiado. A descrição dos processos de interação tem por objetivo, além de apresentar a forma como se encontra estruturado o campo da ação do Estado na cultura, investigar as dinâmicas de dominação e de cooperação engendradas entre os seus membros. Como plano de fundo teórico são observados os postulados metodológicos de Pierre Bourdieu e Howard Becker para a realização de estudos compreensivos a respeito do universo da cultura e das artes. Em princípio antagônicas, são abordagens que propõem tanto o estudo das disputas travadas entre os indivíduos no interior de uma determinada estrutura social para a conquista e preservação de domínios (no caso de Bourdieu), como, em contraposição, a observação e identificação das redes de cooperação que são formadas no processo de interação entre os indivíduos que estruturam um determinado universo artístico (no caso de Becker). O aproveitamento de ambas as contribuições se deve à avaliação de que tanto as disputas como as cooperações coexistem no interior das estruturas sociais, e que devem ser igualmente observadas para uma compreensão da dinâmica vivida pelas instituições ao longo do tempo. A CNIC, que será objeto da análise, é o colegiado responsável pela deliberação dos projetos culturais que pleiteiam a autorização do Estado para captarem recursos junto a empresas e pessoas patrocinadoras, oferecendo a essas abatimentos sobre o imposto de renda devido. Este tipo de apoio, conhecido como Mecenato, representa a principal forma pela qual o Estado brasileiro tem apoiado iniciativas culturais, e tem recebido na última década fortes críticas e esforços reformadores por parte dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, foi precisamente neste período que esse mecanismo alcançou o seu desempenho mais expressivo. Disponível em http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php#. Acessado em 15/02/2016. Somente em 2014, o custo com subsídios de financiamento do BNDES alcançou R$ 21,3 bilhões. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1666394-emprestimos-subsidiados-do-bndes-custam-r-184-bilhoes-a-uniao.shtml Acessado em 15/02/2016.

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Este trabalho apresenta a seguir as características constitutivas da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, desde a sua criação, seguida de considerações sobre as preferências dos atores políticos que se encontram responsáveis pela ação do Estado na área da cultura. A partir desses posicionamentos, será observada a dinâmica dessa Comissão nos anos de 2010 e 2011, quando são iniciados importantes movimentos reformadores. A dinâmica da Comissão observa tanto o comportamento dos representantes do Estado, que instituem mudanças no sentido de passar a exercer maior domínio sobre ela, e o comportamento dos representantes dos segmentos culturais, que atuam no sentido de preservar a legitimidade da CNIC como espaço de consagração dos produtores culturais brasileiros e de consequente distribuição de recursos aos mesmos. O desenvolvimento dessas etapas é entremeado por análises comparativas da realidade encontrada com os conceitos formulados nas obras As Regras da Arte (1996), de Bourdieu, e Mundos da Arte (2010), de Becker, de forma a se identificar tanto os arranjos de dominação, como as redes de cooperação que se formam no interior da estrutura analisada. 1. A COMISSÃO NACIONAL DE INCENTIVO À CULTURA Desde 1992, o colegiado responsável por autorizar os produtores culturais a captarem recursos para as suas produções junto a patrocinadores, fazendo uso de incentivos fiscais, é a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC, instituída pela Lei 8.313/ 91 como responsável pela gestão das três modalidades de apoio que constituem o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC, a saber: o Mecenato, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART). A CNIC também possui como atribuições formais: aprovar o programa de trabalho do FNC (Art. 34, item “I”), definir a extensão dos segmentos culturais (Art. 34, item “IV”) e autorizar que estados e municípios também desenvolvam esse tipo de seleção de projetos, desde que possuam legislação local de fomento à cultura (Art. 39). A composição da CNIC é mista, combinando representantes do próprio Ministério da Cultura, dos seus órgãos subordinados e representantes externos ao Estado, indicados por associações, e selecionados pelo Ministro de Estado4. A sua presidência é exercida pelo ministro da Cultura, e o mandato dos seus membros é de dois anos, sendo possível a recondução por igual período. Após a criação dessa estrutura, outras regras formais, entre leis, medidas provisórias, decretos e instruções normativas, acrescentaram modificações ao modelo original, tanto da CNIC, como do próprio Mecenato. A análise dessas regras complementares permitiu a identificação de três finalidades às quais se subordinam: a) regras que ampliam recursos e o percentual dedutível por parte das empresas investidoras no Mecenato; b) regras que ampliam a quantidade de expressões Na estrutura original da CNIC, o setor empresarial indicava um representante, enquanto entidades associativas de setores culturais e artísticos, de âmbito nacional, indicavam seis representantes. O Regimento Interno da Comissão aprovado pela Resolução nº 1, de 7 de maio de 2010 manteve inalterada essa quantidade.

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culturais beneficiadas pelo Mecenato; e c) regras que regulamentam o funcionamento do Mecenato e a sua gestão. No primeiro grupo se enquadra a Lei nº 9.874/ 99, que elevou para 100% o percentual de dedução do valor investido por empresas e pessoas em determinados tipos de projetos culturais. No segundo grupo se enquadram novamente a Lei nº 9.874/ 99, a Medida Provisória nº 2.2281/ 01, e as leis nº 11.646/ 08 e nº 12.590/ 11, que ampliam a quantidade de segmentos culturais aptos a apresentarem projetos culturais. No terceiro grupo se enquadram o Decreto nº 5.761/ 06, que ampliou o conjunto de finalidades às quais se prestam a Lei Rouanet, definiu expressamente a CNIC como um colegiado de assessoria ao MinC, fortaleceu o papel do Ministro como presidente da Comissão, permitindo ao mesmo aprovar ad referendum do colegiado as medidas de seu interesse; a Portaria n° 83/ 11, que regula a forma como devem ser produzidos os pareceres dos projetos culturais apresentados à CNIC; as Portarias nº 116/ 11 e 5/ 12, que regulam a quantidade de segmentos culturais aptos a se fazerem representados na CNIC; e a Instrução Normativa nº 01/ 2013, que estabelece definições para os termos intrínsecos ao Mecenato, normatiza o processo de apresentação, recebimento e análise das propostas culturais, , a execução dos projetos aprovados, e a prestação de contas dos recursos captados por meio de patrocínios. Essas regulamentações complementares do Mecenato e da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura introduzem modificações institucionais, mas o fazem de maneira gradual. Considerando o trauma do vácuo institucional experimentado pelos agentes culturais em 1991, quando o governo Collor extinguiu o MinC e a maioria dos seus órgãos vinculados, criando no lugar uma Secretaria da Cultura vinculada à Presidência, as modificações abruptas na estrutura de fomento à cultura foram substituídas, a partir de então, por um adensamento institucional cumulativo, tornando o custo de mudanças bruscas cada vez mais elevado. Evidencia neste sentido é o efeito praticamente nulo que a transformação, em 2006, da CNIC em órgão de assessoria ao Ministério produziu no sentido de estimular que decisões tomadas pelos conselheiros fossem revertidas pelo ministro ou ministra de Estado. Nas raras ocasiões em que isso se deu, os titulares do MinC enfrentaram fortes questionamentos na opinião pública5. Desta forma, se há um jogo, uma disputa pelo poder entre os dirigentes do Estado e os agentes culturais da sociedade pelo controle do principal mecanismo de fomento à cultura, ela é travada sob uma lógica gradualista, na qual não se consegue ter claro em princípio qual parte exerce uma dominação preponderante sobre a outra, sendo mesmo possível que ambas estabeleçam dominações recíprocas em subdomínios distintos (WEBER, 2004).

Podem ser tomados como exemplos a decisão de Juca Ferreira de reverter decisão contrária da CNIC em relação aos PRONACs 07 10744 e 09 1350, e de Marta Suplicy em relação aos PRONACs 13 3631, 13 4889 e 13 6590. Tais medidas renderam a ambos fortes críticas nos meios de comunicação e junto aos produtores culturais.

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O Mecenato encontra-se hoje estruturado sob uma cadeia decisória complexa. Seu início se dá pela análise documental das propostas submetidas, realizada pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura. Ao admitir o projeto, essa o encaminha a um dos órgãos vinculados ao MinC para análise inicial, considerada a expressão cultural correspondente. Para a realização desta avaliação, essas organizações contam com pareceristas externos selecionados a partir da especialização que já comprovaram possuir em processos públicos de contratação. Em cada uma dessas etapas, o produtor cultural proponente pode ser contatado para a prestação de esclarecimentos. Em seguida à emissão do parecer técnico, o projeto cultural será apreciado por um(a) Conselheiro(a) da CNIC, que poderá acompanhar ou divergir do parecer proferido. No caso de acompanhamento, sua decisão é monocrática e a proposta encontrar-se-á apta para a captação de recursos por meio de incentivos fiscais. Caso contrário, seu voto divergente deve ser apresentado na Reunião Plenária da CNIC realizada mensalmente. A etapa seguinte de acompanhamento retorna à Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura. Este trabalho ajusta o seu foco sobre as decisões produzidas pelas reuniões plenárias da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura nos anos de 2010 e 2011. Dentro da cadeia de decisões apresentada, a Reunião Plenária constitui o momento de encontro e interação entre os conselheiros representantes das diferentes linguagens artísticas e segmentos culturais representados na Comissão, e de interação entre esses conselheiros e os representantes do Estado. Interação essa que ocorre de forma institucionalizada, ou seja, em que todos estão investidos de seus papéis. A partir desta disposição, preferências são enunciadas de parte a parte, tensões tornam-se perceptíveis, e decisões são tomadas. Foram analisadas as informações contidas nas atas das 12 reuniões ordinárias realizadas no ano de 2011, compreendendo os pareceres dos conselheiros sobre as propostas submetidas por produtores culturais, os debates entre pares, comunicados da presidência da Mesa, e os resultados das votações. 2. AS PREFERÊNCIAS DO ESTADO A RESPEITO DO MECENATO Para refletirmos sobre os sentidos políticos possíveis do processo de racionalização e modernização engendrado pelo Ministério da Cultura no final do segundo mandato do governo Lula, em 2010, é preciso esclarecer que o MinC, em si mesmo, não é uma unidade de análise válida, mas sim os seus dirigentes. A nomeação dos dirigentes do Estado para a área da cultura no período posterior à redemocratização tem revelado maior relação entre esses e as propostas político-partidárias debatidas nas campanhas eleitorais. Para Caio Gonçalves Dias, essa relação é possível de ser debatida na reflexão sobre o que a gestão de Gilberto Gil significou, em termos discursivos e na criação subsequente das estruturas de diálogo junto à sociedade, como uma tradução para a área da cultura da inclusão social perseguida pelo conjunto do governo Lula. Neste caso, a afirmação do direito à cultura de expressões culturais até então não contempladas por

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ações do Ministério da Cultura seria uma evidência dessa relação. (DIAS, 2010) A nomeação da ministra Ana de Hollanda no primeiro governo Dilma não teve a mesma repercussão da relação entre Lula e Gil, mas a estratégia parece ter sido semelhante. Por sua vez, a nomeação de Juca Ferreira em 30 de dezembro de 2014 como Ministro da Cultura para o segundo mandato de Dilma Rousseff tem clara relação com a atuação deste na coordenação da campanha presidencial para os assuntos da cultura, e da legitimidade que adquiriu nesta posição. Para se compreender o cenário em que a CNIC será analisada cabe, portanto, observar as preferências dos dirigentes do MinC em relação ao Mecenato à época, com destaque para os posicionamentos de Juca Ferreira. Secretário-executivo da pasta na gestão de Gilberto Gil entre 2003 e 2008, nomeado por Lula Ministro da Cultura entre 2008 e 2010, e nomeado novamente Ministro da Cultura por Dilma Rousseff ao final do seu primeiro mandato, é avaliado por agentes culturais, intelectuais e cronistas como o operador de fato do Ministério da Cultura, desde o primeiro governo Lula. Esse entendimento tem lhe direcionado os créditos pela criação de iniciativas que representaram inovações na forma como o Estado brasileiro passou a compreender a cultura, e pelo reavivamento e fortalecimento dos repasses diretos de recursos do Tesouro. Em relação ao Mecenato, Gilberto Gil já havia se posicionado de forma crítica em relação ao que considerava distorções do modelo de incentivos fiscais, marcadas pela ausência de contrapartidas por parte das empresas patrocinadoras que usufruíam da dedução integral do valor aportado nos projetos culturais, e por uma concentração nos estados da Federação com maior poder econômico. A partir desse raciocínio, o Ministro Juca Ferreira adotou, desde 2008, um discurso de confrontação aberta do modelo de incentivos fiscais. Como expressão dessas preferências, o então Ministro da Cultura encaminhou ao Congresso Nacional em 2010 o Projeto de Lei n° 6722, que substitui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) criado pela Lei nº 8.313/ 91, pelo Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (PROCULTURA). Com texto substitutivo aprovado no final de 2014, o PL 6722/ 10 seguiu para tramitação no Senado Federal. Em entrevista concedida por Juca Ferreira à Folha de São Paulo em 20 de outubro de 2014, período em que esteve Secretário da Cultura da cidade de São Paulo e coordenava a campanha de Dilma Rousseff na área da cultura, ao ser perguntado se a Lei Rouanet deveria ser reformulada, Juca Ferreira reafirmou que: Sem dúvida precisa de reformulação. A Lei Rouanet produz distorções e resulta em uma hipocrisia contábil [...] Já há um projeto em tramitação na Câmara, o ProCultura, que prevê novas faixas de isenção e a presidenta Dilma é totalmente favorável à revisão do sistema de financiamento à cultura no país [...] Como a segunda parte de sua pergunta parece-me querer obter minha posição pessoal, eu lhe ofereço: sou a favor das parcerias público-privadas mas sou contra os 100% de renúncia fiscal, e todos conhecem a minha posição [...] (Disponível em http:// primaveracomdilma.cc/veja-a-integra-da-entrevista-de-juca-ferreira-para-a-folha/. Acessado em 19 de janeiro de 2015). 1880

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Esta apresentação da figura de Juca Ferreira e de suas preferências a respeito do Mecenato tem por finalidade caracterizar um dos elementos centrais do cenário no qual será observada a atuação da CNIC: o desejo do Estado em reformar o Mecenato, trazendo-o para sua esfera mais estreita de influência que o leva a introduzir modificações graduais na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura. Por outro lado, o que se verá também é o quanto essas modificações, de forma paradoxal, parecem estar contribuindo para o fortalecimento institucional do próprio Mecenato e para o reforço da sua autonomia, a partir das tensões que se estabelecem entre os dirigentes do Estado e os representantes não-estatais, e dos arranjos de cooperação que surgem dessas interações. 3. PLENÁRIAS As reuniões plenárias são encontros mensais entre os membros da CNIC que se reúnem a partir da convocação emitida pela Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, área do Ministério da Cultura responsável pela interação com a Comissão. O seu Secretário preside os trabalhos dessas reuniões, desempenhando o papel que pertence ao Ministro da Cultura, que formalmente a preside. As reuniões são realizadas em Brasília e, a partir de 2011, de forma itinerante em diferentes estados da Federação, nas secretarias estaduais de cultura e órgãos correlatos que se oferecem para sediá-las. Cada encontro tem a duração de dois dias, sendo que no primeiro os conselheiros se reúnem em seus grupos técnicos. Após este encontro, os conselheiros levam à Reunião Plenária os casos sobre os quais possuem posição divergente em relação ao parecerista externo que emitiu a sua posição por meio de uma das organizações vinculadas ao MinC, ou os casos em que, concordando com o parecer inicial, desejam apresentar o projeto aos demais colegas como exemplares a serem observados. A disposição física da Reunião Plenária é, na maioria das vezes, na forma de um “U”. No centro da Mesa se situam o Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura e a secretária que lavrará a ata. Dos lados direito e esquerdo ficam o coordenador da área de admissibilidade dos projetos culturais apoiados pela Lei Rouanet, o Consultor Jurídico do Ministério da Cultura, e a pessoa responsável pela representação regional do MinC no estado que sedia a reunião itinerante. Nas duas laterais que se estendem, paralelas, sentam-se lado a lado os conselheiros e conselheiras, titulares ou suplentes, representantes dos segmentos culturais, e representantes das organizações culturais vinculadas ao MinC que possuem assento na CNIC6. Esses últimos, apePossui assento um representante de cada um dos segmentos representados por indicações de entidades associativas: Artes Cênicas, Audiovisual, Música, Artes Visuais (incluída arte digital e eletrônica), Patrimônio Cultural, Humanidades, Artes Integradas, e empresariado nacional. Possuem assento as organizações vinculadas ao MinC: Agência Nacional de Cinema – ANCINE, Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Fundação Cultural Palmares – FCP, Fundação Biblioteca Nacional – FBN, e Fundação Casa de Rui Barbosa – FCRB. Possui assento o presidente da entidade nacional que congrega os Secretários de Cultura das unidades federadas.

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sar de serem membros da CNIC, não relatam projetos culturais. Todos os conselheiros dispõem de computadores para a apreciação dos projetos culturais e registro de voto eletrônico, e no outro extremo da mesa, à vista de todos, há um telão no qual são projetados os projetos em análise. 3.1. A coordenação exercida pelo Estado As atas dão registro que a apresentação da pauta, a realização de comentários sobre eventos externos à CNIC, sobre posicionamentos do Ministério da Cultura, e a distribuição da palavra entre os conselheiros é realizada pela figura do presidente da Mesa. Em diferentes oportunidades, Henilton Parente de Menezes, Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura no período analisado, também usa da palavra para propor encaminhamentos “[...] sugeriu que se pegassem os quatro projetos que estariam com a conselheira Mirna, o que estava com o conselheiro Januário e que fossem localizados os outros projetos da mesma empresa e que se fizesse diligência ao proponente” (174ª Reunião Plenária), e anuncia decisões que tomou em relação ao colegiado “... uma novidade que iria acontecer nas reuniões da CNIC [...] a ideia seria trazer uma pessoa para falar de um tema que tenha a ver com o Ministério. Informou que essas falas seriam de meia hora, antes do início da Plenária, e a temática seria sobre assuntos interessantes à CNIC. Informou já ter sido feito um calendário dessas palestras [...]” (175ª Reunião Plenária). A desenvoltura e envolvimento direto de Henilton Menezes nos trabalhos da Comissão desde o início do ano de 2010 contradiz qualquer expectativa de uma coordenação puramente arbitral, distante dos assuntos apreciados pelos conselheiros. Este protagonismo do Presidente da Mesa na coordenação da CNIC acabou consagrado como um perfil dessa função pela Resolução 1 que aprovou o Regimento Interno da CNIC, em maio de 2010 (Art. 5º). Nesta posição, Menezes conduziu ao longo de 2010 diversos outros processos de reforma interna da CNIC. Além de estimular a aproximação entre a Comissão e demais áreas do próprio Ministério, com a criação de espaços para falas institucionais das demais secretarias, Menezes também instituiu a elaboração de súmulas que passaram a servir como uma espécie de jurisprudência para a análise de projetos e casos recorrentes (182ª Reunião Plenária), instituiu a realização de reuniões itinerantes da CNIC por outros estados, alternadas com reuniões realizadas em Brasília, a partir de 2011 (decisão apenas informada na 183ª Reunião Plenária, realizada em 10 de dezembro de 2010), avançou na informatização dos processos de admissão e análise dos projetos culturais, e na elaboração da Instrução Normativa 01, aprovada em 2013, que passou a definir uma nomenclatura para os todos os termos relativos ao Mecenato, e a regular toda a cadeia decisória a ser percorrida pelos. A partir das preferências do Estado na área da cultura identificadas e discutidas anteriormente, é possível inferir que a atuação do Presidente da Mesa registrada nas atas, e o perfil consagrado pelo Regimento Interno da CNIC, correspondam a um movimento de maior apropriação

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dessa Comissão por parte dos dirigentes do Estado na área da cultura. De forma complementar, é possível refletir sobre o quanto essas modificações estariam alinhadas às modificações pretendidas no próprio modelo do Mecenato por meio do PL 6722/ 10, que entrou em tramitação na Câmara dos Deputados no mesmo período. Para o debate que este trabalho pretende realizar, essas movimentações da gestão de Juca Ferreira à frente do Ministério da Cultura correspondem, em larga medida, à compreensão que se faz na literatura a respeito do papel exercido pelo Estado. Mesmo para Becker, que propõe uma abordagem metodológica fundamentada na identificação de redes de cooperação entre os atores sociais, para a compreensão do que ele denomina como “mundos da arte”, o Estado sempre será assimétrico na sua interação com os produtores culturais, em razão dos inúmeros mecanismos de controle que possui sobre a distribuição de recursos e sobre a própria regulação da expressão dos quais pode dispor para alcançar os seus próprios interesses (p. 163). Por outro lado, o que decorreu dessas medidas reformadoras foi um arranjo de forte cooperação técnica entre o MinC e a CNIC, conduzido por Henilton Menezes. Como se verá em relação aos conselheiros, não apenas deixou de ocorrer qualquer oposição aberta por parte dos representantes indicados por entidades associativas, como surgiram ao longo do ano de 2010, e, sobretudo, em 2011, manifestações congratulatórias em relação às medidas de modernização tomadas, pela avaliação que esses fizeram sobre o fortalecimento da própria Comissão que elas engendraram. 3.2. Os conselheiros e o campo cultural As modificações na estrutura da CNIC realizadas no período analisado não deixaram de criar situações, como se encontram registradas nas atas, nas quais é possível apreender o desconforto por parte dos conselheiros quanto à participação no desenho dessas mudanças. Amilson Teixeira de Godoy informou que “enviou várias observações [a respeito do modelo de Regimento Interno] e que isto havia sido exibido na penúltima reunião do ano, mas não havia sido discutido”. O conselheiro questiona diretamente “se isso estaria valendo, se aqueles assuntos da penúltima reunião serão levantados e se as sugestões que forneceu serão válidas”. O Presidente da Mesa afirmou que desconhecia as sugestões do conselheiro, mas reiterou a disposição de conhecê-la e levá-la em consideração. Excetuada essa situação (174ª Reunião Plenária), as atas não possuem registro de uma participação sistemática dos conselheiros na estruturação da própria CNIC. Apesar de, em alguns casos, como em relação à Instrução Normativa 1, os conselheiros legitimarem as medidas tomadas pelo Presidente da Mesa, como o fez Eduardo Saron, Titular de Artes Integradas, assinalando que esta regulamentação conferiria “maior transparência à governança do Sistema CNIC, PRONAC, Salicweb e Lei Rouanet” (181ª Reunião Plenária), na maioria das vezes o que há é um comportamento reticente por parte desses atores. Ao ser criado

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um grupo de trabalho, conhecido como Grupo dos 7, para se analisar as modificações propostas pelo PL 6722/ 10, esse grupo apresenta posições vagas, parecendo deixar claro que, se possui preferências divergentes às do Estado, não as vocalizaria no âmbito da Reunião Plenária da CNIC. Questionados os representantes pelo Presidente da Mesa se aprovavam o relatório produzido por esse Grupo de Trabalho por unanimidade, não há uma manifestação complementar dos conselheiros, ao que segue uma manifestação de Eduardo Saron solicitando que “ficasse registrado que a CNIC havia sido chamada para dar sugestões à relatoria do ProCultura e que teria respondido a esse chamamento” (191ª Reunião Plenária). A observação do comportamento dos representes indicados por entidades associativas revela a preocupação desses direcionada, principalmente, à análise dos projetos culturais que pleiteiam o apoio do Mecenato para captarem recursos. A forma como essa preocupação se traduz nos posicionamentos desses conselheiros e conselheiras vai ao encontro de dois importantes pressupostos identificados por Bourdieu no processo de emergência do campo literário: 1) a defesa da arte pura em contraposição às manifestações culturais orientadas para o mercado, ou que tragam no seu bojo uma perspectiva de lucratividade, bem como em contraposição às propostas de “arte social”; e 2) a defesa da impossibilidade de projetos culturais pertencentes a uma determinada linguagem artística serem avaliados por outros atores, que não os próprios pares (BOURDIEU, op. cit.). O primeiro pressuposto de afirmação do campo cultural por meio da defesa de uma arte pura, ou da “arte pela arte” pode ser percebido no tratamento dado pelos conselheiros da CNIC à parte orçamentária dos projetos, e, por outro lado, às críticas que fazem a projetos que procuram se justificar em suas missões sociais. No aspecto orçamentário, em se tratando da Lei Rouanet, e das críticas reiteradas que a mesma recebe em razão de os projetos culturais patrocinados serem supostamente aqueles mais afeitos ao retorno de imagem das empresas, era de se esperar que não houvesse por parte dos conselheiros determinadas preocupações como, por exemplo, o gasto dos projetos com divulgação, e o limite com pagamento de cachês artísticos. Contudo, a realização de consultas e cortes nos orçamentos é uma das decisões mais frequentes no âmbito das reuniões plenárias observadas, seguidas de manifestações por parte dos conselheiros quanto à necessidade de se estabelecer patamares menos exorbitantes de gastos com “atividades meio”, em detrimento da “atividade fim” que seria a realização da produção cultural propriamente dita (175ª, 176ª, 186ª). Em relação à lucratividade dos projetos culturais, os conselheiros assumem posição crítica, chegando ao julgamento pela “não-necessidade” de um projeto fortemente amparado pelo mercado usufruir de incentivos fiscais. O caso mais emblemático discutido em Reunião Plenária foi um pleito apresentado pela dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano (PRONAC 110797). Mesmo podendo indeferir de forma monocrática, uma vez que já havia promovido cortes de R$ 5 milhões na proposta, o Con-

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selheiro Ivan Ferraro argumentou que era uma oportunidade de se refletir sobre esse tipo de caso. O Presidente da Mesa estimulou que se prosseguisse com a discussão. Todavia, outros conselheiros ponderaram que artistas igualmente conhecidos, como o ator Pedro Cardoso, aprovavam seus projetos, mas reservando o pagamento de seu cachê artístico aos resultados da bilheteria, e direcionando os recursos captados por meio do Mecenato para o custeio da sua equipe de produção. O Conselheiro Titular do Patrimônio deixou clara a sua posição de que cabe ao MinC “em especial no campo da música, revelar, tirar do ostracismo, tantos artistas que estão no anonimato e sem acesso à Lei. Ressaltou estar na hora do MinC colocar a sua posição, mesmo que esta fira a opinião do mercado”. O projeto foi indeferido por 12 votos e uma abstenção. Ato contínuo, Ivan Ferraro colocou à apreciação o projeto do novo álbum do cantor, compositor e instrumentista, Siba, que havia sofrido cortes iniciais. O conselheiro votou pela aprovação, com a reintegração dos valores previamente subtraídos, no que foi acompanhado pelo restante da Plenária. Ainda na mesma reunião, projeto da cantora sertaneja Sula Miranda também foi aprovado por unanimidade. Da mesma forma, o prestígio simbólico de um projeto como o álbum do artista Siba superou com facilidade o prestígio de mercado do projeto apresentado pela dupla Zezé di Camargo e Luciano, segundo os critérios de apreciação de um campo cultural que busca se afirmar. Pode-se dizer que esse comportamento é análogo ao que ocorre entre o teatro, o romance e a poesia observados em As Regras da Arte. Nesse caso, o teatro era consumido pela massa burguesa ao passo que a poesia era apreciada por círculos restritos, mas o crédito atribuído ao teatro tendia a decrescer, em comparação com as demais linguagens artísticas, “com o volume e, sobretudo, com a dispersão social do público” (p. 135). A CNIC também indeferiu projetos culturais que se justificam em razão da sua missão social. No caso, projetos da área de circo que argumentavam oferecer a crianças e adolescentes oportunidades de profissionalização e autonomia para suas vidas (175ª Reunião Plenária). O segundo pressuposto do campo artístico, da impossibilidade de projetos culturais pertencentes a uma determinada linguagem artística serem avaliados por outros atores que não os próprios pares, também revelou-se perceptível. A análise das atas das reuniões plenárias da CNIC em 2010 e 2011 permitiu constatar a forte resistência por parte dos conselheiros aos pareceristas externos que realizam as primeiras análises das propostas apresentadas ao MinC. Os conselheiros adotam um tom fortemente crítico no sentido da desqualificação dos técnicos externos à CNIC, assinalando que “... os pareceres são ruins...”; ou ainda sugerindo “...a criação de um índice de qualidade do parecerista, onde a emissão de dois pareceres inconclusos determine o desligamento do parecerista” (186ª Reunião Plenária) e a redação de uma Portaria “... para a revisão da remuneração e punição aos pareceres inadequados” (187ª Reunião Plenária). Somente a partir da 188ª Reunião Plenária há o reconhecimento de que houve “melhora considerável na qualidade das análises dos pareceristas”.

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Para este trabalho interessa analisar se o que está em questão é o teor do parecer, pura e simples, ou fato de que este diminui o poder exercido pelo Conselheiro como parecerista mais relevante para a aprovação dos projetos. Ou seja, o quanto os conselheiros da CNIC atuam no sentido de obterem, ou conservarem, o monopólio da legitimidade que os torna uma espécie de subcampo inserido no campo da ação do Estado na cultura. A “qualidade” do parecer da qual se queixam deve ser esmiuçada, objetivada, de forma a se compreender também o quanto não há de “illusio, adesão coletiva ao jogo” (BOURDIEU, p. 193). Em 2011 foram analisados 14.066 projetos7, de forma que seria impraticável depender exclusivamente do parecer dos conselheiros da CNIC para que o apoio fosse concedido. Todavia, muitos desses projetos foram levados à Reunião Plenária para a emissão de novos pareceres. Este trabalho tabulou as votações em Plenária dos 488 projetos que passaram por uma segunda apreciação entre os conselheiros da CNIC. Com isso, procurou-se observar o quanto os conselheiros divergiam entre si na aprovação ou no indeferimento dos projetos, de forma a ser possível discutir como os conselheiros da CNIC procuram se legitimar reciprocamente, e assegurar à CNIC a posição de colegiado responsável pela consagração dos projetos culturais apoiados pelo Mecenato. Apesar de, na maioria das vezes, os projetos culturais serem apreciados pela Plenária em razão de divergências que um conselheiro tenha em relação ao parecerista técnico, em 45 casos o conselheiro seguiu o voto do parecerista pela aprovação, trazendo o projeto à Plenária mais com o intuito de registrá-lo como exemplo. O mesmo se dá nos casos em que o conselheiro segue o parecerista pelo indeferimento, descrevendo o projeto para os seus pares como uma proposta não merecedora de autorização. A maioria dos casos, no entanto, se deu em divergência com o parecer inicial, nos quais 185 aprovações foram conferidas em contraposição ao parecerista externo e, na outra direção, 158 indeferimentos foram conferidos em contraposição aos pareceres favoráveis iniciais. Observou-se também que houve nas reuniões plenárias análises de projetos que levaram os conselheiros a debaterem entre si o quanto determinado projeto pode ser considerado como cultural. Nessas ocasiões, surge com força a exortação para que sempre se tenha em vista a impossibilidade de os conselheiros representantes de uma determinada linguagem artística emitir juízo a respeito de um projeto relativo à outra linguagem. Desta forma, o voto da Plenária acompanhou, na maioria das vezes, o voto individual, tanto pela aprovação, como pelo indeferimento dos projetos. 4. CONSIDERAÇÕES Este trabalho observou que os dirigentes do Estado na área da cultura aturam entre 2010 e 2011 no sentido de promoverem mudanças no interior da CNIC que a trouxessem para mais próximo da sua esfera de influência. Esta assimetria, por sua vez, não implicou em um enfraque Disponível em http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php#. Acessado em 15/02/2016.

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cimento institucional por parte da CNIC, mas o contrário: deu início a um processo de maior legitimação desse colegiado junto a outros atores do meio cultural, como secretarias de estado da cultura e outras áreas internas do Ministério da Cultura, por meio das reuniões itinerantes realizadas em outros estados do Brasil, e das falas institucionais introduzidas nas reuniões plenárias. Da mesma forma, a instituição da Instrução Normativa 1 conferiu à CNIC uma racionalidade em seus processos, e a informatização modernizou seus processos decisórios. Essas medidas foram concebidas e implementadas em um cenário no qual o Ministro da Cultura, Juca Ferreira, pretendia reformar o próprio mecanismo do Mecenato. Esta reforma, na forma planejada, ainda não se deu, e as reformas na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura não representaram perda de poder dos representantes das entidades associativas. Verificamos que os mesmos assumem posicionamentos convergentes às formulações de Pierre Bourdieu sobre a formação do campo artístico, sendo orientados por uma noção de valor artístico de forte contraponto à possibilidade de lucratividade. Esses comportamentos revelam a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura como um espaço que se organiza sob um arranjo no qual o Estado assume e exerce uma efetiva coordenação dos seus trabalhos, ao passo que preserva a legitimidade dos representantes da sociedade civil como pontos de veto na análise das propostas. Ou seja, impulsionada internamente por situações de disputas pela conquista de domínios (no caso do Estado) e pela preservação de domínios (no caso dos conselheiros), a CNIC assume uma configuração de cooperação entre os atores envolvidos, que lhe permite avançar no número de projetos culturais que analisa, e a continuar produzindo resultados expressivos no fomento à produção cultural no Brasil, ao mesmo tempo em que se mantém em ebulição, com disputas que estão transformando gradualmente a sua constituição com o passar do tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECKER, Howard Saul. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010. BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DIAS, Caio Gonçalves. Da “Antropologia Filosófica” ao “Do-In Antropológico”: um estudo crítico da ideia de políticas culturais no Brasil (1985-2013). 356 f. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2014. GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana – Petrópolis, Vozes: 2011. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas e BARBALHO, Alexandre (Orgs.). Políticas Culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007.

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SIMIS, Anita & AMARAL, Rodrigo Correia do. “Mecenato no Brasil Democrático”. In: Revista EPTIC Online, Vol. XIV, número 3, set – dez de 2012. WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2, São Paulo: Editora UNB, 2004.

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POLÍTICAS CULTURALES Y COLECTIVOS ARTÍSTICOS COMUNITARIOS: EL CASO DEL PROGRAMA DE TEATRO COMUNITARIO MENDOCINO EN ARGENTINA1 Romina Sánchez Salinas2 María José Gadea3 RESUMEN: El presente trabajo observa las relaciones entre un programa de gobierno y un fenómeno artístico-comunitario local: el caso del Programa Provincial de Teatro Comunitario de la Dirección de Desarrollo Cultural de la Secretaría de Cultura del Gobierno de Mendoza (Argentina) en el período 2008-2014 y los grupos de teatro comunitario de la provincia. El artículo se centra en el análisis de la concepción de teatro comunitario promovida por el Programa a partir de los contenidos, mecanismos y metodologías que implementa, así como la de los grupos de teatro comunitario desde sus discursos y prácticas, en tanto encontramos que en torno a su significado se estructuran las principales tensiones y problemáticas del fenómeno. Las relaciones entre ambos fueron indagadas en las distintas instancias de articulación e intercambio entre el programa y los grupos, desde un diseño de investigación cualitativo. PALABRAS CLAVES: Estado - Políticas culturales - Gestión Cultural - Cultura Popular Teatro comunitario

1. INTRODUCCIÓN En el último quinquenio la sociedad argentina ha experimentado un fuerte crecimiento “de lo cultural” en sus múltiples dimensiones y acepciones. Por un lado, se observa una proliferación de colectivos, espacios, proyectos y redes que recrean nuevas formas de acción y organización colectiva y que se identifican como “culturales». Por otro lado, una marcada presencia del La investigación fue apoyada por el Instituto de la Cultura Pública en el marco del Concurso de proyectos de investigación en el campo de la cultura pública (2015), de la Subsecretaría De Cultura Pública y Creatividad, Ministerio De Cultura De La Nación -Argentina. 2 Licenciada en Sociología (Universidad Nacional de Cuyo - Mendoza), especialista en Gestión y Política en Comunicación y Cultura (FLACSO Argentina). Doctoranda en Sociología (IDAES-UNSAM) en el marco de una Beca Doctoral Tipo I (CONICET), con sede en el IMESC - IDEHESI de la Facultad de Filosofía y Letras de la UNCuyo (Mendoza/ Argentina). Contacto: [email protected]  3 Licenciada en Psicología (Universidad del Aconcagua - Mendoza), especialista en Salud Social y Comunitaria (Programa Médicos Comunitarios. Ministerio de Salud de la Nación). Psicóloga en la Dirección de Educación y Conciencia Ciudadana de la Municipalidad de Mendoza/Argentina. Co-fundadora del Proyecto Artístico Independiente Chacras para Todos. Contacto: [email protected] 1

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Estado en la esfera cultural pública a partir de la implementación de diversas políticas y organismos de fomento a la producción y consumo cultural en el período kirchnerista (2003-2015), que se refleja en una multiplicidad de programas, concursos, encuentros, ciclos, festivales y talleres (PAÍS ANDRADE, 2015) extendidos en gran parte del territorio nacional4. Notamos que existe un fuerte intercambio entre tales iniciativas de la comunidad y las políticas promovidas por el Estado que no se dan de forma unidireccional, sino que se condicionan mutuamente. Asumiendo la complejidad y el desafío que supone analizar el entramado de las relaciones entre lo público y lo comunitario, procuraremos observar ese diálogo en un caso particular dentro de las múltiples manifestaciones del campo cultural. Nos detendremos en una práctica artística ligada a la construcción y participación comunitaria en un territorio y con fines de transformación social: el teatro comunitario, conocido en Argentina como teatro de vecinos para vecinos. “Son espacios conformados por personas no profesionales del teatro que surgen a partir de la necesidad de un grupo de determinada región o población de reunirse, agruparse y comunicarse a través del teatro” (BIDEGAIN, 2007). La definición de teatro comunitario como “teatro de vecinos para vecinos” o “de la comunidad para la comunidad” se vincula en Argentina a la aparición del grupo Catalinas Sur (1983) y a la experiencia posterior del Circuito Cultural Barracas (1996), ambos de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA). En la provincia de Mendoza, si bien los primeros grupos en nominarse como teatro comunitario surgen en el 2006, fueron fundamentales experiencias barriales anteriores con trabajo en territorio a partir de prácticas de teatro popular, teatro del oprimido, murgas, entre otros. Un hito fundamental en el desarrollo del fenómeno en esta provincia, fue el lanzamiento en el año 2008 del Programa de Teatro Comunitario de la Dirección de Desarrollo Cultural de la Secretaría de Cultura del gobierno de Mendoza que aquí analizamos. Considerando que el análisis de la gestión cultural de una política pública demanda un abordaje integral que contemple la concepción de cultura y de política cultural que asume cada administración (TASAT, 2014), la propuesta de estudio consistió en reconstruir la concepción de cultura y de teatro comunitario adoptada por el Programa reconociendo las tensiones que provocaba en el campo del teatro comunitario mendocino. Uno de los hallazgos más interesantes es que el principio estructurador del campo teatral comunitario en Mendoza han sido las tensiones y las oposiciones entre las experiencias y definiciones de los grupos “del centro” (Buenos Aires y Capital Federal) y las de los de “la periferia” (Mendoza). En este sentido, nuestro objetivo inicial de identificar su significado para los grupos y para el programa se vio modificado, al comprender que en tanto refleja las tensiones y oposiciones de los participantes, fijarle una definición nos ocultaba el movimiento de sus actores. Para una caracterización de los principales ejes de acción de la(s) política(s) cultural(es) en el período kirchnerista ver País Andrade (2015). 4

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El estudio adoptó una metodología cualitativa de investigación partiendo de la idea que el objeto de investigación se construye según los significados que los actores y el investigador le atribuyen al mismo (SIRVENT, 1998). Las técnicas de investigación utilizadas fueron entrevistas en profundidad y observación participante en encuentros de los grupos y reuniones con representantes del programa. También se recurrió al análisis de fuentes secundarias, lo que implicó la consulta de documentos inéditos tanto de los grupos como del organismo público en cuestión que le dieron sustento al registro observacional. 2. TENDENCIAS EN EL ABORDAJE DE LO POPULAR EN POLÍTICAS CULTURALES PÚBLICAS En tanto las políticas culturales no tienen una frontera definida, ni mucho menos un anclaje seguro, trabajar en cultura supone involucrarse con ámbitos supuestamente no culturales (VICH, 2014). Dentro de este amplio espectro observamos distintas orientaciones en políticas culturales públicas: sociales, económicas, artísticas, etc., y en este sentido una política cultural puede ser entendida también como un cierto tipo de política social. Entendemos que cuando se diseñan políticas culturales como políticas sociales, suelen predominar algunas tendencias al asociarlas a acciones que “el Estado realiza a fin de «promover» la cultura en sectores «marginados» culturalmente” (OZOLLO & REPETUR, 2011). Nos detendremos en este punto a fin de advertir el concepto de cultura que predomina en la promoción cultural desde el Estado y en su abordaje desde los estudios culturales e históricos, teniendo en cuenta que el Programa que analizamos fomenta una práctica artística con fines de inclusión social. Un breve repaso histórico de las formas que asumió la promoción cultural nos muestra políticas que nos remiten a una noción de cultura entendida como bellas artes y como resguardo patrimonial. Se observa también un tipo de asistencialismo cultural, en tanto “prevalece la idea de llegar «desde arriba» a los ciudadanos, con una «alta cultura», uniformadora y «argentinizadora», pretendiendo hacer tabula rasa con las formas culturales autóctonas” (OZOLLO & REPETUR, 2011). En el campo académico, los estudios de las manifestaciones culturales también han tendido a desarrollarse en correlación con la formación del Estado-nación, y la cultura aparece como el cimiento social que posibilita la existencia de la nación como un todo (ORTIZ, 2016). En el recorrido por las distintas nociones en torno al concepto de cultura popular, aparece ligada históricamente al pasado, la tradición, lo salvaje, lo natural. Esta aceptación revela el dominocentrismo que opera frecuentemente en el rescate de lo popular: se construye una historiografía “a partir de lo alto” donde el concepto de cultura popular poco tiene que ver con las clases populares (GRIGNON & PASSERON, 1989). Nos interesa principalmente el pensamiento de Stuart Hall, quien sostiene que el principio estructurador de «lo popular» son las tensiones y las oposiciones entre lo que pertenece al

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dominio central de la cultura de élite o dominante y la cultura de la «periferia». Es esta oposición la que constantemente estructura el dominio de la cultura en la «popular» y la «no popular». El principio estructurador no consiste en el contenido de cada categoría, construido de forma descriptiva, ya que ese contenido sufre alteraciones de un período a otro. Si no que consiste en las fuerzas y las relaciones que sostienen la diferencia entre lo que, en un momento dado, cuenta como actividad cultural o forma de élite y lo que no cuenta como tal (HALL, 1984). Este concepto es el que nos permite pensar nuestro tema de estudio: el principio estructurador del campo teatral comunitario en Mendoza han sido las tensiones y las oposiciones entre las experiencias y definiciones de los grupos “del centro” (Buenos Aires) y las de los de “la periferia” (Mendoza).5 3. BREVE RECORRIDO POR LAS POLÍTICAS DE FOMENTO AL TEATRO COMUNITARIO EN ARGENTINA Observamos que en Argentina la mayoría de las líneas de apoyo y promoción de la actividad han sido en respuesta a proyectos y propuestas surgidas desde los mismos grupos organizados o desde la Red Nacional de Teatro Comunitario. Un episodio fundamental en este sentido lo constituye la Carpa Cultural Itinerante en CABA, que estimuló en el 2002 la creación de gran parte de los grupos que actualmente existen en Capital Federal6. Así, acompañando el clima de efervescencia social que se vivía tras la crisis del 2001, el teatro comunitario fue consolidando algunos colectivos que habían empezado a surgir en los barrios porteños. Años después (2009) y también tras el pedido específico de los grupos más antiguos, desde el Instituto Nacional del Teatro se implementó el Concurso Nacional de Teatro Comunitario con un jurado especial para la evaluación de las propuestas7, brindando apoyo a los grupos para montaje de espectáculos, sostenimiento de la actividad, compra de equipamiento técnico, capacitación, etc. Otro logro es la Ley de Promoción al Teatro Comunitario, aprobada en diciembre de 2014 por la Legislatura de la Ciudad de Buenos Aires, que otorga apoyo económico a los 7

Tomamos como “centro” a Capital Federal y Buenos Aires atendiendo la configuración geográfica e histórica de la Argentina. No tomamos de la definición de Hall la idea de élite, es decir, no estamos asociando el teatro comunitario de Capital Federal y Buenos Aires a la práctica de una élite. 6 El proyecto de la Carpa Cultural Itinerante fue una iniciativa de Adhemar Bianchi y Ricardo Talento, directores de Catalinas Sur y el Circuito Cultural Barracas respectivamente, que tenía como finalidad sembrar la semilla del teatro comunitario en todos los barrios de la Ciudad de Buenos Aires. Se implementa en el año 2002 y el resultado es muy satisfactorio ya que surgen varios grupos de teatro de vecinos en la Capital Federal que actualmente funcionan bajo la órbita de la Dirección de Promoción Cultural en Barrios. Ellos son: el Épico de Floresta, Res o no Res de Mataderos, Grupo de teatro comunitario de Pompeya y los Pompapetriyasos. Para más información http://www. buenosaires.gob.ar/cultura/promocion/programas/teatro 7 El lanzamiento de un concurso específico para teatro comunitario fue la respuesta a una petición de la Red Nacional de Teatro Comunitario, donde se argumentaba que no era adecuado exigirles a los proyectos de teatro comunitario idénticos requisitos y ser evaluados por los mismos jurados que los grupos de teatro independiente. 5

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grupos existentes en CABA a través de PROTEATRO8. Por último, algunos grupos reciben financiamiento de otras instituciones como el de Puntos de Cultura del Ministerio de Cultura de la Nación, Ley de Mecenazgo, planes específicos de universidades nacionales y diversos programas de apoyo locales. El Programa de Teatro Comunitario de la Dirección de Desarrollo Cultural de la Secretaría de Cultura del gobierno de Mendoza se creó en el año 2008 como “medio de recreación y recuperación de los valores históricos y culturales propios” y de integración de “vecinos de distintas edades y condiciones sociales”9. Su principal aporte consistía en financiamiento económico a la actividad mediante el pago a “talleristas”10. Resumiendo, la lógica del financiamiento público al teatro comunitario ha sido en general a partir de una iniciativa de uno o varios grupos ya existentes. El caso del Programa de Teatro Comunitario de la Dirección de Desarrollo Cultural de la Secretaría de Cultura del gobierno de Mendoza es casi excepcional en el país, tanto por haber sido creado exclusivamente para fomentar la creación de grupos de teatro comunitario como por su objetivo de sostenimiento regular de la actividad, cuando en general, las otras líneas de financiamiento brindan estímulos no regulares. 4. EL ORIGEN DEL PROGRAMA En el relato de los/las agentes de gobierno entrevistados/as, encontramos dos motivaciones fundamentales que explican el origen del Programa: por un lado, la necesidad de otorgar cierto reconocimiento u homenaje a la trayectoria de quienes ya venían realizando trabajo artístico-comunitario en algunos barrios del Gran Mendoza (puntualmente los casos de Chicho Vargas en el Barrio de La Gloria y de Rodrigo Toledo en el barrio Huarpes); por el otro, la idea de multiplicar el fenómeno del teatro comunitario, que “era como un boom en Buenos Aires”11. Otro dato relevante que aparece en este momento inicial es que el resto de las personas que conformaron los grupos fueron buscadas desde el Programa: se convocaron a profesores con experiencia en teatro en cárceles, teatro del oprimido, teatro popular, murgas (entre otros) para conformar un primer equipo del Programa. Entendemos que las características de este momento fundacional nos indican una primera diferencia fundamental entre la experiencia mendocina y la de los grupos de otras provincias: estamos ante un programa de gobierno que dio origen o promovió un fenómeno que Para más información ver http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/10-34408-2015-01 -05.html 9 www.cultura.mendoza.gov.ar 10 Así nominan en reuniones y planillas a los coordinadores de los grupos dentro del programa. 11 Podemos relacionar esta expresión a dos sucesos: a) La propagación de grupos de teatro comunitario en Argentina fue post 2001, alcanzando en 2004 una veintena de grupos y hacia 2010, casi cincuenta grupos en todo el país 2) En términos de agenda de gobierno fue un período donde se instaló el lanzamiento de programas, concursos y financiamiento a proyectos artísticos con fines de transformación social. 8

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en otras provincias había surgido como “una iniciativa de un conjunto de personas ligadas a un determinado territorio con una necesidad de reunirse y comunicarse a través del teatro” (BIDEGAIN, 2007). Por un lado, se pretendía dar reconocimiento a quienes se identificaba que venían construyendo experiencias similares al teatro comunitario, fortaleciendo un fenómeno local parecido, pero utilizando un nombre foráneo. Por otro lado, se incentivaba la creación de nuevos grupos que reprodujeran un modelo que había surgido en otro territorio. Esta tensión entre lo local y lo foráneo, también se vio reflejada en el diseño del programa, que tuvo muchas indefiniciones e irregularidades desde su implementación. Desde el punto de vista administrativo, se configuró como una plataforma de financiamiento económico para los grupos sin una contraprestación específica. La inexistencia de un contrato fundacional claro y explícito, que orientara la tarea los grupos y delimitara sus responsabilidades ante el Programa (sin significar esto verticalidad), los colocaba en una situación de confusión y en ocasiones, de enfrentamiento. Desde un punto de vista conceptual o de contenidos, no había una definición propia de teatro comunitario. La falta de claridad para saber lo que era teatro comunitario y lo que no era (al menos como requisito para poder formar parte del Programa), obligaba a los grupos a estar constantemente redefiniéndose y elaborando conceptualizaciones para tener una identidad propia. En ocasiones también llevándolos a que ellos mismos tengan que denunciar o definir quienes podían ingresar al Programa y quiénes no. 5. UNA MIRADA ANALÍTICA El análisis de la metodología e implementación del Programa en su devenir, nos permitió reconocer algunos mecanismos que ocasionaron tensiones al interior y entre los grupos: 1) el desconocimiento de los procesos de construcción colectiva característicos de la práctica teatral comunitaria que se intentaba promover (anclaje territorial, organización horizontal, entre otras particularidades del teatro comunitario); b) La falta de continuidad en las instancias formales de participación y seguimiento y c) La modalidad de funcionamiento del Ministerio de Cultura de la provincia de Mendoza y su impacto en la ejecución del programa. Estos mecanismos reflejan una concepción de cultura y de teatro comunitario particular que iremos reconstruyendo en el análisis. 1) Desconocimiento de los procesos de construcción colectiva característicos de la práctica teatral comunitaria que se intentaba promover: a) La modalidad de financiamiento del programa a través del pago a “talleristas”. Subyace a esta denominación una noción de servicio o prestación que brinda un profesional capacitado a un grupo que percibe tal formación. Nos preguntamos si detrás de esta denominación de “tallerista” no permanece una mirada etnocentrista, presente en muchas políticas de promoción cultural como vimos: la idea de “llevar al barrio” la cultura propia. Entendemos que los procesos que estimulan la creación de un gru-

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po de teatro comunitario no pueden reducirse al pago de un tallerista porque los objetivos que se proponen demandan una actividad y presencia constante. La intención es trabajar con los elementos emergentes de la cultura local a través del teatro. Este propósito toma distancia de la tradición que promueve la presencia del Estado “en los barrios” fomentando la “cultura popular” a través de talleres. En esta práctica, el teatro es medio y fin: a partir de herramientas teatrales se explora en una creación colectiva que tiene como finalidad una obra teatral que procura reflejar la cultura local. Los mecanismos y procesos que se despliegan alrededor de ello son parte del fenómeno y se apartan de la modalidad de taller donde se recibe una capacitación en forma pasiva. b) El período de financiamiento: Los estipendios del programa cubren la actividad de los meses que van de abril a noviembre, mientras que los grupos de teatro comunitario tienen un receso de a lo sumo, un mes (enero). Justamente, como los grupos no son espacios de formación sino espacios de configuración de lógicas participativas y comunitarias, no puede suspenderse por trimestres porque los lazos afectivos son tan importantes como las actividades colectivas y las presentaciones artísticas. Como comentaba un coordinador: “si vuelvo en abril pierdo la mitad de las abuelas”. Esa convivencia es tan importante como el proceso de ensayos y presentaciones teatrales. c) La irregularidad en los pagos: se suma a la dificultad arriba mencionada, la falta de constancia en la cancelación del estipendio mensual; a veces por irregularidades administrativas del Ministerio y otras por inconstancia de los coordinadores. El resultado es que el financiamiento no es continuo ni aún en los meses cubiertos (abril-noviembre) con una consecuencia negativa en la constancia de los grupos. Si bien ya aclaramos que ese financiamiento pago no es condición indispensable para la existencia de un grupo, en el Gran Mendoza las distancias y la falta de transporte público adecuado dificultan seriamente la actividad cuando no están garantizados los gastos de traslado. d) La falta de articulación. Hasta el momento han sido prácticamente nulos los eventos y actividades en la agenda del Ministerio de Cultura donde se ha sumado al teatro comunitario. Un reclamo permanente de los grupos ha sido la vinculación con otras manifestaciones culturales locales, como los festejos vendimiales12 o el carnaval, entre otros. Además, el Programa de Orquestas Infantiles sí fue integrado en la agenda por tanto el espacio existía. Los responsables de los grupos de teatro comunitario reclama La  Fiesta Nacional de la Vendimia  es una festividad tradicional de alto impacto turístico de la provincia de Mendoza. Incluye festejos en todos los departamentos de la provincia y un mega evento de cierre en la capital mendocina donde participan alrededor de 1000 artistas locales y se corona la reina nacional. 12

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ban algo que excedía al financiamiento: visibilización, reconocimiento, valiéndose de los recursos y programación que ya formaban parte del patrimonio estatal. e) Las exigencias o requerimientos Hace unos años se les exigía a los grupos como contraprestación del monto recibido, que replicaran la experiencia en otros barrios o departamentos distintos al suyo, desconociendo el anclaje territorial y la convicción por trabajar en un espacio público reconocido en la comunidad y con una problemática local como característica fundamental del teatro comunitario. El teatro comunitario re-significa una territorialidad particular. Conceptualmente “la plaza, el barrio, el club, la calle, el galpón, la escuela donde el grupo se reúne y ensaya siempre es un espacio público” (BIDEGAIN: 2007). Cabe aclarar que este requerimiento implicaba trabajo barrial del grupo en territorio ajeno, no la presentación de la obra en una ocasión. Este pedido fue implementado por el segundo director del programa, profesional ajeno al campo teatral y comunitario. 2) La falta de continuidad en las instancias formales de participación y seguimiento Dado que en materia de articulación el Estado propone diversas formas de interacción con otros actores, tomaremos el concepto de participación de De Piero para hacer referencia a una práctica articulatoria desde el Programa. El autor entiende por participación a aquella dirigida a incidir en algunas de las instancias de las políticas públicas de forma sistemática, lo que puede ser llevado adelante por ciudadanos individuales o agrupados en organizaciones o movimientos, como en el caso que pretendemos analizar. La participación entendida de esta manera, implica la existencia por parte del Estado de canales formales estables, para que esta participación sea efectiva y pueda lograr resultados y compromisos de parte de la autoridad pública (DE PIERO, 2010). En este aspecto, la relación del programa con los grupos de teatro comunitario ha sido muy variable y dependiente en gran medida del sistema de pagos. Esto significa que la vinculación se produce generalmente para regularizar la situación de algún/a tallerista (coordinador/a de grupos) y sólo en ocasiones eventuales se han reunido para evaluar el desarrollo de los grupos, pensar actividades extras o diagnosticar problemáticas. 3) La modalidad de funcionamiento del Ministerio de Cultura de la provincia de Mendoza y su impacto en la ejecución del programa En los 6 años del programa, han sido 4 los responsables del mismo, imposibilitando crecimiento, proyección, evaluación y ajuste de las líneas de acción. A su vez, el programa ha sido trasladado de una dirección a otra dentro del Ministerio de Cultura, con un agravamiento de su inestabilidad. Este tipo de ajustes es muy común dentro de la función pública argentina, los organismos de cultura no son la excepción. La postergación de lo cultural dentro de la estructura

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estatal (HERNÁNDEZ, 2014), sumada a la supeditación al tiempo político electoral que rige en general la agenda pública estatal, explican en gran parte la inestabilidad e irregularidad del Programa, y en cierta medida, la dependencia e inestabilidad de algunos grupos de teatro comunitario de la provincia de Mendoza. 6. LA TRAMA DE LOS GRUPOS: DEVENIRES Y VINCULACIONES Al observar los grupos encontramos dinamismo y cambio continuo. Realizando un breve recorrido por los movimientos dentro y fuera del Programa de teatro comunitario, identificamos algunas trayectorias comunes: • Grupos donde los coordinadores continuaron trabajando con teatro comunitario pero cambiaron de territorio, o permanecieron en el mismo barrio pero con diferente grupo. • Grupos que continuaron su labor barrial por fuera del Programa provincial de Teatro Comunitario. • Un caso que continúa trabajando en el mismo territorio desde el comienzo. Este grupo recibió siempre subsidio del Programa y es el que ha tenido mayor vinculación con la Red Nacional de Teatro Comunitario. • Grupos que dejaron existir. Las problemáticas más comunes que enfrentaron fueron: • Falta de convocatoria en la comunidad: algunos grupos no llegaban a conformarse porque no asistía gente o la asistencia era muy variable, principalmente los que comenzaban su trabajo con niños/as. En general, a los coordinadores que les resultaba más difícil era quienes planteaban su trabajo en una comunidad diferente a la propia o comunidades muy lejanas a su lugar de residencia. • Dificultades con el espacio físico: una problemática común a la mayoría de los grupos de teatro comunitario es la falta de espacios cerrados para ensayar. En algunas ocasiones se empezaba trabajando en un espacio y luego había que cerrarlo por imposibilidad de mantenerlo o cumplir con requerimientos burocráticos. Esto obligaba a los grupos en muchas ocasiones a mudarse, generando en algunos casos, mucho desgaste ya que el eje se volvía la búsqueda de un espacio en desmedro del trabajo artístico. Observamos que en la mayoría de los casos estos procesos fortalecieron a los grupos, mientras que en otros los llevaron a su disolución. • Irregularidades en la percepción del subsidio del Programa: esta situación dificultaba la continuidad de algunos grupos, sin presupuesto les resultaba muy difícil sostener la actividad, principalmente en aquellos casos que los coordinadores se trasladaban a barrios o departamentos no propios.

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Desde el 2011 en adelante se fueron sumando nuevos grupos y actualmente sólo quedan dos de los grupos o coordinadores que estuvieron desde el inicio. El resto fueron incorporados en los últimos cuatro años. Resulta importante analizar la movilidad de los grupos ya que muy pocos han podido anclarse en un territorio y sostener un trabajo territorial a lo largo de tiempo. Sería interesante analizar la composición de clase de los barrios, su ubicación geográfica y el barrio de pertenencia de la figura de coordinación, en tanto son variables muy relacionadas con la posibilidad de sostener un trabajo constante en territorio. La mayoría de los teatros comunitarios, tanto dentro como fuera de la provincia que han logrado sostenerse en el tiempo, se insertan en las capas medias y sus directores responsables pertenecen a la comunidad donde realizan la labor artístico-social. En relación a la vinculación de los grupos entre sí, se registran intentos de conformación de una red local que no termina nunca de consolidarse. Al respecto, observamos que la tensión que mencionamos en torno a la experiencia de los grupos de Buenos Aires y los locales es la misma que opera imposibilitando la conformación de una red de intercambio solidaria entre los grupos. Un buen reflejo de cómo se configura esta polaridad son los criterios en relación a quién debe brindar las capacitaciones: las opiniones se dividen entre quienes creen que hay aprovechar los recursos humanos locales y quienes prefieren que compartan su conocimiento grupos o directores/as de teatro comunitario con experiencia fuera de la provincia. Mucho/as demuestran incomodidad y desacuerdo cuando intenta medirse o evaluarse la experiencia local en los términos de la experiencia porteña o bonaerense. Se realizan encuentros, reuniones y existe un verdadero intento por crear un movimiento de teatro comunitario en la provincia, pero en el trasfondo están operando estas dos concepciones que dividen las aguas y obstaculizan el logro de objetivos puntuales. En cuanto a la concepción del teatro comunitario por parte de los grupos, nuevamente encontramos coincidencias y desacuerdos en relación a las características de aquella “experiencia central” de los grupos de Buenos Aires. Dentro de las coincidencias aparece la importancia del encuentro con otro/as, la convicción de transformar la realidad a través del arte, los lazos de solidaridad, el respeto por el otro, el rescate de lo lúdico, la participación activa en el barrio. En cambio, el relato acerca de acontecimientos históricos a partir del rescate de la memoria colectiva no aparece como algo central, incluso registramos que en varias obras se habla más de problemáticas sociales actuales. Las principales diferencias, nos remiten oportunamente a las problemáticas que veíamos que llevaron a muchos grupos a disolverse. En primer lugar, la decisión de ocupar o presentarse en el espacio público parece no ser una búsqueda central en todos de los grupos locales. En uno de los encuentros un director aseguró que en Mendoza no contar con un espacio físico es sinónimo de precariedad y descuido a la práctica teatral. En segundo lugar, observamos que la

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mayoría de los grupos de la provincia tienen directores/as o coordinador/as/es que no pertenecen a la comunidad donde funciona el grupo que coordinan. Una tercera diferencia, la constituye la numerosidad de los grupos: mientras que en la zona bonaerense los grupos suelen estar integrados por al menos 20 o 25 personas, en Mendoza los grupos a veces no alcanzan a tener 10 integrantes. Por último y en relación al financiamiento, la tendencia de los grupos mendocinos ha sido sostenerse gracias al aporte del Programa mientras que otras experiencias no locales suelen seguir funcionando independientemente del cobro o no de un subsidio. Una última problemática que visualizamos es el “olvido” o desconocimiento de la labor históricamente realizada desde el Programa y desde los grupos. Cuando ingresa un nuevo funcionario, los grupos se ven en el rol de explicarle qué es el teatro comunitario y sistematizar toda la relación con el Programa. Este mismo desconocimiento también se ve reflejado desde los grupos, cuando algunos nuevos integrantes en su discurso se refieren al “primer” o “segundo encuentro” provincial de teatro comunitario, cada vez que se organiza un encuentro, desconociendo constantemente los encuentros de años anteriores. 7. CONSIDERACIONES FINALES En aras de aportar una reflexión crítica y constructiva al campo de la gestión de la cultura pública comunitaria, nos situamos en aquellas instancias de encuentro o intercambio donde se hacían visibles las relaciones entre el Estado y los grupos artísticos, cuidando de no caer en una postura celebratoria del movimiento teatral comunitario, ni tampoco en una crítica demonizante del Estado. Este ejercicio implicó la construcción de una mirada dialógica que nos permitiera ver las relaciones y los movimientos de los actores, sin dejar de lado las tensiones y controversias que pueden haber operado positiva o negativamente en el desarrollo del teatro comunitario mendocino. La pregunta por el sentido inicial del Programa y su contexto de surgimiento fue fundamental para comprender el desarrollo posterior de todos los teatros comunitarios en la provincia. Observamos que desde su origen se constituyó, por un lado, como una política de apoyo principalmente económico para experiencias locales, ante la necesidad de otorgar cierto reconocimiento a quienes ya venían realizando trabajo artístico-comunitario en territorio. Por otro lado, con la intención de multiplicar un fenómeno que “era como un boom en Buenos Aires”, es decir, como una política de fomento a una experiencia externa, pero sin un reconocimiento previo de las inquietudes o necesidades de la comunidad local. Tomar como referencia a los grupos de Capital Federal y Buenos Aires fue favoreciendo cierta polarización en el campo local, principalmente en torno a la definición de teatro comunitario. Encontramos variadas y complejas concepciones de teatro comunitario en las prácticas y discursos de los/as participantes y agentes, dando cuenta que los procesos culturales “son bases modificables, dialécticas, complejas, tensas, negociables para fines que también son hete-

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rogéneos y disputables” (PAÍS ANDRADE, 2015). Las principales tensiones se observaron al momento de definir qué prácticas eran legitimadas como teatro comunitario y cuáles no dentro de la provincia. En general, esta legitimidad la daban los grupos, ya que el Programa no definía la actividad ni exigía requerimientos específicos para percibir el apoyo. A su vez, ciertos modos de operar del Programa demostraron que, en todo caso, el conocimiento del fenómeno era poco preciso o se lo asimilaba a otros fenómenos de promoción de lo comunitario. Estas controversias nos llevan a preguntarnos qué hubiese pasado si el programa tomaba otro nombre. Recientemente se han organizado reuniones a fin de armar un plan estratégico de teatro social en Mendoza. ¿Es probable que una categoría como teatro social permitiese configuraciones menos polarizadas como las que desplegó la categoría de teatro comunitario? Nos pareció importante reconocer cómo la postergación de lo cultural dentro de la estructura estatal, sumada a la supeditación al tiempo político electoral que rige en general la agenda pública estatal, explica en gran parte la inestabilidad e irregularidad del Programa y en cierta medida, la dependencia e inestabilidad de algunos grupos de teatro comunitario de la provincia de Mendoza. Considerando estas mutuas limitaciones, analizamos los procesos dinamizados con la puesta en marcha del Programa, distinguiendo algunas problemáticas y trayectorias comunes entre los colectivos artísticos. Reconocimos que para quienes venían trabajando en territorio, el Programa resultó una ayuda económica para continuar fortaleciendo su labor; en cambio para otros que nacieron a partir de su impulso, les resultó más difícil lograr una identidad propia más allá del estímulo. En este movimiento pudimos ver un nuevo centro: los grupos intentaban definir su identidad por oposición/cercanía no sólo a la experiencia porteña o bonaerense, sino también al Programa. Lo que nos lleva a preguntarnos si la dependencia de los grupos era sólo de los fondos económicos o si reflejaba una necesidad de una entidad más amplia que los sustentara o representara simbólicamente. Fueron esas mismas controversias en torno a las concepciones de Buenos Aires, y también en relación a los vínculos con el Programa las que, paradójicamente, impulsaron la reflexión, el debate y construcciones al interior de los grupos por crear un teatro comunitario con identidad local propia. Si bien por períodos se logró el acuerdo y el encuentro intergrupal, no se logró establecer una estrategia de articulación e intercambio clara y con continuidad en el tiempo que diera cuenta de un trabajo en red. Comprendimos que el objetivo de reconstruir la concepción de cultura que subyace al Programa y a los grupos excedía esta primera aproximación al fenómeno mendocino. Apenas pudimos observar algunos indicios de una mirada asistencialista y etnocentrista al fomentar recursos, estilos y modalidades de la cultura propia. Esto se traduce por ejemplo en la falta de continuidad en los encuentros, en desmedro de una participación activa y a favor de un rol de beneficiarios pasivos. O en que, para la mayoría de los coordinadores, la idea de que el subsidio o el apoyo del Ministerio es fundamental, volviendo su actividad excesivamente dependiente

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del financiamiento público. Por otro lado, y reconociendo la complejidad de sostener un trabajo comunitario territorial sin recursos públicos, observamos que no todos los grupos se han propuesto un fortalecimiento del fenómeno local desde la autogestión. Esta falta de constancia y crecimiento se percibe desde los agentes del Programa como falta de profesionalismo. Empieza a circular una idea de pobreza o marginalidad en torno a lo comunitario que se alimenta de forma recíproca entre el Estado y los colectivos artísticos. Finalmente, el panorama descripto nos abre nuevas preguntas del caso y algunas más generales ¿Cuál es el rol de los grupos de teatro comunitario en la construcción y diseño de las políticas culturales públicas? ¿Cuál era el objetivo de la conformación de la red mendocina de teatro comunitario?, ¿La posibilidad de construir una red tiene relación con la concepción de teatro comunitario que subyace las prácticas locales? ¿El trabajo en red, es inherente al fenómeno de teatro comunitario?, ¿Qué impidió en el caso mendocino capitalizar el valor de la heterogeneidad que caracteriza a las redes? ¿Con qué variables se relaciona la imposibilidad de anclaje territorial en el caso de algunos grupos? Proyectamos nuestras intenciones de seguir investigando el campo de la cultura mendocina y sus relaciones con el Estado, a fin de reconstruir un panorama más acabado de la cultura pública local y sus diversos actores.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIDEGAIN, Marcela. Teatro Comunitario: Resistencia y Transformación Social. 1° Ed. Buenos Aires: Atuel, 2007. Capítulos I y II. Págs. 33 y 38. DE PIERO, Sergio. Participación Ciudadana en políticas públicas. En AA.VV. RECORRIDOS DEL TERCER SECTOR. Informe sobre desarrollo humano en la Provincia de Buenos Aires N° I, 2009. Buenos Aires: 2010. GRIGNON, Claude & PASSERON, Jean-Claude. Lo culto y lo popular: Miserabilismo y populismo en sociología y literatura. Buenos Aires: Nueva visión, 1989. Capítulo 3. HALL, Stuart. Notas sobre la deconstrucción de lo popular. Publicado en SAMUEL, Ralph (ed.). Historia popular y teoría socialista. Barcelona: Crítica, 1984 HERNÁNDEZ, Alberto. El caso del Instituto Cultural de la Provincia de Buenos Aires. En clase en curso “Posgrado Internacional de Gestión y Política en Cultura y Comunicación” 2014 FLACSO. Buenos Aires: MIMEO. ORTIZ, Renato. Notas históricas sobre el concepto de cultura popular Disponible en: http://www.infoamerica.org/documentos_pdf/ortiz03.pdf, consultado enero 2016. OZOLLO, Javier., & REPETUR, Lionel. Instrumentos de navegación en política y gestión cultural. Mendoza: EDIUNC, 2011. Págs. 15 y 16.

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PAÍS ANDRADE, Marcela Alejandra. Avances y limitaciones en la política cultural Argentina y su gestión desde una perspectiva de género. En M. d. Nación, #Pensarlaculturapública: apuntes para una cartografía nacional. CABA: Ministerio de Cultura de la Nación, 2015. Pág 33. SIRVENT, María Teresa. Los diferentes modos de operar en investigación social. CABA: Facultad de Filosofía y Letras UBA, 1998. TASAT, José (comp.) Políticas culturales públicas. 1° Ed. Bs As: EDUNTREF, 2014. Págs. 31-53. VICH, Victor. Desculturalizar la cultura. México: Siglo XXI Editores, 2014. Introducción.

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DA EMBRAFILME À ANCINE: A EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS DE FOMENTO AO SETOR AUDIOVISUAL BRASILEIRO APÓS O ADVENTO DA MEDIDA PROVISÓRIA N° 2.228-1/2001 Samara Taiana de Lima Silva1 RESUMO: O presente ensaio tem por objetivo central analisar a evolução das políticas de fomento ao setor audiovisual brasileiro após a instauração da Medida Provisória n° 2.228-1/2001, que instituiu e deu origem à Agência Nacional do Cinema – ANCINE, órgão responsável pela fiscalização, fomento e regulação da atividade cinematográfica nacional, contrapondo o referido crescimento ao abandono que o setor supracitado sofreu durante a década de 1990, período maculado em virtude do encerramento das atividades da Empresa Brasileira de Filmes S/A – EMBRAFILME.Aqui serão abordados pontos relevantes à discussão que permeia a referida temática, tal qual o notório descaso que o setor audiovisual nacional amargou desde os seus primórdios, noção esta que vem sendo desconstruída a partir dos investimentos e dos esforços da gestão pública atual em face do setor em pesquisa. PALAVRAS-CHAVE: ANCINE, Cinema, EMBRAFILME, Fomento, Política.

1. INTRODUÇÃO O mercado cinematográfico brasileiro foi, desde seus primórdios, visto como um setor economicamente inconstante e tratado de modo secundário por parte da gestão pública, noção que foi acentuada na década de 1990, período no qual esta fatia do mercado atravessou a pior de suas fases, marcada negativamente pelo encerramento das atividades dos órgãos financiadores e fiscalizadores do campo audiovisual, a saber, a Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME) e o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), durante a gestão do então Presidente da República Fernando Collor de Melo. Esses dois órgãos foram, ao longo de duas décadas, a base da indústria cinematográfica no Brasil. Após este período conturbado, foi se popularizando e aprimorando o mecanismo de Renúncia Fiscal, inaugurado por meio da extinta Lei Sarney (Lei n° 7.505/86) e posteriormente Bacharela em Direito; Especialista em Cinema; Mestranda em Estudos Urbanos e Regionais – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro-Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cidades Contemporâneas – Departamento de Políticas Públicas – UFRN. E-mail: [email protected]

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aperfeiçoado através da Lei Rouanet (n° 8.313/1991), que se encontra em plena atividade até os dias atuais, conceitos que serão tratados mais detalhadamente ao longo deste trabalho, e que é tido como um dos principais facilitadores responsáveis por reestruturar paulatinamente a produção cinematográfica nacional. Desta feita, o presente estudo se compromete a analisar a relação Cinema/Estado sob a ótica da evolução do primeiro a partir da série de intervenções propostas pelo segundo, na forma de implementação e disseminação de uma gama de políticas públicas que visam o fomento da atividade audiovisual e videofonográfica brasileira, progresso nitidamente gradativo a partir do advento da Medida Provisória n° 2.228-1/2001, que deu origem à Agência Nacional do Cinema – ANCINE. Aqui discutiremos os avanços do setor comentado supra desde a fundação da referida autarquia até os dias atuais, exatamente quinze anos após este que é tido como o principal marco regulatório para setor audiovisual brasileiro no período compreendido como o “Ciclo da Retomada”. Remete à ideia de “ciclos” as fases que o cinema brasileiro atravessa desde os seus primórdios, sempre marcados por crises financeiras que comprometem a sua produção. Deste modo, traçaremos ainda uma linha cronológica de todos eles a fim de elucidar o interlocutor quanto à importância de cada um destes para que o setor audiovisual nacional tomasse os moldes que observamos atualmente. 2. BREVE HISTÓRICO DO CINEMA BRASILEIRO A primeira notícia acerca do cinema em terras brasileiras se deu no ano de 1896, no dia 08 de junho, na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente à Rua do Ouvidor, ocasião na qual um equipamento denominado “Omniographo” desembarcou na cidade, aproximadamente dezoito meses após o seu lançamento oficial, na cidade de Paris, em sessão para o público. Desde a sua invenção, através da ideia inovadora dos irmãos Lumière (França, 28/12/1895), até a chegada em terras tupiniquins, conta-se seis meses para que o Brasil pudesse ter o seu primeiro contato com aquela que era tida como uma mágica invenção: o cinema. Importante salientar que nesse período o cinema era tido como arte, “a sétima arte” e, em conformidade com a dinâmica social vigente naquele período, não possuía o caráter financeiro e mercadológico que foi ficando evidenciado com o passar dos tempos. Neste sentido, podemos citar o pensamento do autor Paulo Emílio Salles Gomes: A novidade cinematográfica chegou cedo ao Brasil, e só não chegou antes devido ao razoável pavor que causava aos viajantes estrangeiros a febre amarela que os aguardava pontualmente cada verão. Os aparelhos de projeção exibidos ao público europeu no inverno de 1895-1896 começaram a chegar ao Rio de Janeiro em meio deste último ano, durante o saudável inverno tropical. No ano seguinte, a novidade foi apresentada inúmeras vezes nos centros de diversão da Capital, e em algumas outras cidades (GOMES, 1980, p. 28). 1904

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A partir disso, se fixou no Brasil o advento do cinema. Como bem aponta BERNADET (1980), “a história do cinema brasileiro seguiu, respeitando suas fragilidades e ainda os moldes impostos pelos já consagrados mercados de exibição europeu e americano, estes que empregaram determinadas estruturas e modelos de produção que são respeitados até os dias atuais”. Assim, podemos entender que foi empregado no país um modelo de cinema realista, factual e de caráter progressista. As primeiras notícias que se tem sobre filmagens cinematográficas no Brasil ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, sob a responsabilidade de Alfonso Segreto, no ano de 1889. Também no Rio de Janeiro foram instaladas as primeiras salas de exibição de películas. Durante os dez primeiros anos de produção, o cinema brasileiro teve pouca expressividade, tanto no âmbito da reprodução de fitas estrangeiras quanto de vídeos aqui produzidos, de modo visivelmente artesanal. O principal entrave à distribuição do material cinematográfico produzido naquela época se dava pelo fato de muitas cidades brasileiras não disporem de energia elétrica. Entre os anos de 1912 e 1922 o cinema brasileiro conhece sua primeira grande crise, que se deu em virtude da grande ocupação das poucas salas de cinema brasileiro para prestigiar as produções norte-americanas, relegando para segundo plano os vídeos aqui produzidos.Posto isto, passamos para o tocante aos ciclos do cinema brasileiro, uma vez que todos estes foram de fundamental importância para que o mercado cinematográfico brasileiro tomasse os moldes que se vê na atualidade. 3. OS CICLOS DO CINEMA BRASILEIRO Ao longo da historiografia do cinema brasileiro, percebeu-se o estabelecimento de ciclos (ou fases), impulsionados pelas reuniões de cineastas, artistas, produtores audiovisuais e demais profissionais do setor cinematográfico, além de realizações regionais – os chamados “Ciclos Regionais”, notadamente marcados pelas grandes produções realizadas em Pernambuco, o mais expressivo polo de produção audiovisual do Nordeste -, bem como pela presença de empresários e empreendedores dispostos a investir no setor e que buscavam, de alguma forma, imprimir uma imagem profissional e rebuscada para o mercado do cinema nacional. No Brasil não se tinha, de início, uma imagem de indústria cinematográfica propriamente dita, uma vez que as produções eram extremamente amadoras e dispunham de equipamentos de baixa tecnologia. Embora atualmente tenhamos um mercado de cinema bem expressivo e estabelecido, não se há, até hoje, uma concepção de indústria cinematográfica forte e autossustentável, tendo em vista a presença constante da financeirização estatal em praticamente todas as produções, além da desleal, já conhecida e recorrente concorrência do mercado norte-americano. Nesta perspectiva, vale ressaltar ainda o conhecido descaso para com o setor artístico e cultural por parte das gestões públicas em todas as suas esferas, que contribuiu para o enfraquecimento do setor e se perpetuou desde o início dessas produções, todavia vem sendo modificado

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gradativamente a partir dos esforços da gestão federal atual, que desde o ano de 2003 segue firme na missão de oferecer vias de acesso e execução de produtos culturais cada vez mais interativos e democráticos, além de propor uma moderna reestruturação de todo o aparato legislativo do setor da cultura, como bem observa CALABRE (2013): “Logo de início é proposta uma reformulação na estrutura do próprio MinC. As secretarias passam a ser organizadas sob a lógica da implementação de políticas, substituindo a estrutura anterior que estava voltada para as atividades e finalidades da lei de incentivo.” Deste modo, a ideia de “ciclos” (ou fases) do cinema se desdobra a partir da oscilação das produções cinematográficas, que se revezavam entre grande produção e decaída da mesma, ou seja, são os intervalos de tempo existentes entre um estilo de produção e outro, que mudam com o transcorrer do tempo, sempre marcados por momentos de grandes expectativas e crises financeiras que tanto tem marcado a historiografia do mercado de cinema brasileiro.O teórico Arthur Autran, apoderando-se da definição de Eduardo Escorel, define os Ciclos do Cinema da seguinte maneira: A esta altura já é possível, com o auxílio de Eduardo Escorel, extrair alguns significados mais gerais a respeito da ideia de ciclo: trata-se de uma forma estruturante de toda a história do cinema brasileiro; o final de um ciclo é marcado por forte crise na produção de filmes nacionais; o novo ciclo é um “recomeçar” quase sempre a partir da situação de terra arrasada; o subdesenvolvimento – e suas crises e seus ciclos – é o elemento fundamental da sociedade brasileira e do cinema aqui realizado. Estas características terminam por reforçar a concepção do cinema brasileiro como algo descontínuo ou, pelo menos, que possui grande dificuldade em manter linhas de continuidade de qualquer espécie – modo de produção, expressão estética, relação com o público, expressão cultural, indústria, cultural, etc. (AUTRAN, 2010. p.118). Sendo assim, podemos resumir que os Ciclos do Cinema Brasileiro tem seu início com a Cinédia (1930, primeiro estúdio cinematográfico do país, localizado na cidade do Rio de Janeiro); passando pelo ciclo da Atlântida (1943, que se dedicava à produção das famosas “chanchadas”, estreladas pelos aclamados atores Oscarito e Grande Otelo); mais tarde o ciclo de Vera Cruz (1949,este que primava pela utilização de equipamentos de última geração, a fim de se distanciar o quanto possível da ideia de “cinema amador” imprimida pelos dois ciclos anteriores e visando se aproximar cada vez mais do padrão Hollywoodiano de produções, a fim de figurar como concorrente direto deste); cuidado técnico este que preparou o terreno para o ciclo chamado de Cinema Novo (décadas de 1960, 1970 e 1980, demarcado pelo chamado “cinema de autor”, sucesso de crítica que foi o ciclo responsável pela abertura das portas do exterior para o cinema nacional, tendo a significativa participação dos premiados cineastas Glauber Rocha e Cacá Diegues, dentre outros diretores que deixavam claras em suas produções as ideologias

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de extrema esquerda política que defendiam) e, por fim, o chamado Ciclo da Retomada, um de nossos objetos de estudo, período caracterizado principalmente pela implementação de uma série de políticas de fomento e incentivo à produção audiovisual, notadamente por intermédio da Lei Rouanet (n° 8.313/1991), nome dado em alusão a Sérgio Paulo Rouanet, então Chefe da Secretaria de Cultura da República durante o governo Fernando Collor de Melo. Sobre o Ciclo da Retomada, pelo fato de este ter sido marcado positivamente pelo início da implementação de uma série de políticas públicas voltadas ao fortalecimento do mercado cinematográfico nacional, faremos algumas observações pontuais a seguir. 3.1. O cinema da retomada O Ciclo da Retomada é caracterizado, principalmente, pela criação, popularização e implementação de uma série de leis e políticas de incentivo e fomento à atividade artística, notadamente no setor audiovisual. Referidos incentivos tem seu início no início da década de 1990, no governo de Itamar Franco, e sendo é um período marcado pela promulgação da Lei n° 8.685/1993, denominada Lei do Audiovisual. Essa lei foi a matriz do modelo de incentivo que nos anos seguintes seria amplamente divulgado, qual seja, o de investimentos financeiros em projetos culturais através da renúncia fiscal, tendo o referido modelo de incentivo possibilitado a reestruturação e retomada da produção cinematográfica brasileira. Nesta perspectiva, a autora Isaura Botelho define o modelo de renúncia fiscal vigente até hoje, traçando uma linha comparativa com o caso da EMBRAFILME, da seguinte maneira: Em geral, os governos veem nos incentivos fiscais uma forma de oferecer recursos sem precisar, necessariamente, aumentar de maneira efetiva seus orçamentos. Em alguns casos, e este lamentavelmente parece ser o brasileiro, as leis de incentivo vêm servindo não só para desviar a atenção da diminuição dos orçamentos públicos, como, principalmente, para substituí-los. E, o que é pior, sob a égide do incentivo, gasta-se muito mais dinheiro público em certas atividades (que, espertamente, inflacionaram os seus custos) do que em momentos nos quais havia uma agência de governo para organizar o setor, como é o caso do cinema: nos anos 70, época da EMBRAFILME, gastava-se em dólares menos da metade do que se gasta hoje com a produção e comercialização de filmes. (BOTELHO, 2001, p. 79). Nessa época, o cinema passa a ganhar característica de mercado financeiro propriamente dito, a filmografia passa a ter um caráter de indústria rentável e o mercado audiovisual ganha impulso e notoriedade, objetivando assim produções cada vez mais rebuscadas, contando com um corpo profissional competente e especializado, na busca incessante e rotineira de se igualar ao mercado cinematográfico americano. Neste diapasão, o setor audiovisual nacional procura cada vez mais atender às necessidades de público e de mercado, passando a produzir filmes

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nos mais variados gêneros, tais como comédia, terror, drama, policial e político, este último já famoso graças ao viés social das produções do ciclo de produção imediatamente anterior a este, qual seja, o Cinema Novo (ou Cinema de Autor). Agora dispondo de políticas de incentivo e do interesse da classe empresarial para patrocinar as produções, uma vez que o valor investido por esta em face das iniciativas culturais seria deduzido dos impostos devidos, o cinema brasileiro passa finalmente a ser visto como um mercado competitivo, buscando cada vez mais aumentar o número de espectadores, aproximando-se enfim da imagem de mercado sólido e autossustentável que vinha buscando desde os primórdios de sua produção. O apogeu do Ciclo da retomada se dá com a produção do filme Carlota Joaquina, A Princesa do Brasil. que conta em tom de humor a história de Carlota Joaquina, princesa que se casou com D. João VI, e enaltece suas desventuras e paixões, além de centralizar a mudança da corte portuguesa para o Brasil, em 1807, para escapar das tropas napoleônicas. Dirigido por Carla Camurati e lançado em 1996, o filme tinha tudo para ser considerado mais um dos fiascos que vinham sendo lançados no país, dado o estado de abandono do setor produtivo cinematográfico, mas o filme conseguiu uma proeza: tornou-se sucesso de público e despertou os olhares da crítica especializada, graças a um poderoso esquema de divulgação “boca a boca”, e ainda ao excelente desempenho da equipe na estreia. Com o tempo, o filme atingiu a impensável marca de mais de 01 milhão de espectadores, um número muito surreal para a realidade do cinema brasileiro na década de 1990. Filme realizado com baixíssimo orçamento (400 mil dólares, ou mais ou menos 01 milhão de reais à época), foi viabilizado graças à diretora ter sido contemplada com o prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Com isso, Carlota é tido como a primeira produção viabilizada no país após o fechamento da EMBRAFILME. A partir de então, o cinema brasileiro deu início a uma fase de produção visivelmente mais intensa, e com uma enorme e inesperada boa resposta do público. Segundo consta na obra de Melina Izar Marson (2006), quando o filme estreou (1995), tinha tudo para ser mais uma produção que iria “passar em branco” (sic), já que a média do público espectador de cinema nacional nos últimos anos era demasiadamente baixa. Além do mais, Carlota não contou com nenhum tipo de esquema de distribuição, havia sido realizado com baixíssimo orçamento e dirigido por uma diretora estreante. Entretanto, obteve mais de um milhão de espectadores. 4. EMPRESA BRASILEIRA DE FILMES S/A: 1969 A 1990 A Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME) era uma empresa brasileira de economia mista dotada de capital majoritariamente estatal, criada em 1969 e desde então atuava no cenário audiovisual nacional como sendo a principal financiadora do cinema brasileiro, além de ser responsável pela distribuição quase total dos filmes em todas as salas de cinema nacionais.Atuando como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC), seu período

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de atuação se deu de 1969 (fundada em plena vigência da ditadura militar) até 1990, quando o então Presidente da República Fernando Collor de Melo a extinguiu em virtude do mau momento que a economia nacional vinha atravessando. Apesar de ser a maior e principal empresa do segmento audiovisual nacional, a EMBRAFILME não atuava sozinha no mercado cinematográfico. Paralela a ela, observava-se a atuação de produtores independentes, com participação bem definida no eixo Rio-São Paulo, que produziam e distribuíam seus filmes sem depender do financiamento estatal. Era o chamado “cinema de boca” ou “cineminha”. A EMBRAFILME financiava, coproduzia e distribuía a parte mais significativa dos produtos cinematográficos nacionais, arcando sempre com a maior parte dos custos envolvendo as produções dos filmes, sem depender exclusivamente de verbas oficiais, uma vez que grande parte de seus recursos eram originários dos impostos sobre remessas de lucros das distribuidoras estrangeiras e ainda dos impostos sobre a vendagem de ingressos de cinema.“Assim, a produção do cinema nacional das décadas de 1970 e 1980 alcançou a média de 86 filmes por ano, com a presença da Empresa Brasileira de Filmes em 30 a 40% destes” (www.ancine.gov.br, acesso em 10/02/2016). Sobre o período de atuação da EMBRAFILME, vale destacar o pensamento da autora Melina Izar Marson: A EMBRAFILME, empresa de economia mista com capital majoritariamente estatal criada em 1969, era desde então a maior financiadora do cinema brasileiro, além de se responsável pela sua distribuição quase total. Apesar de ter surgido em pleno regime militar e de ter sido produto de intenções dirigistas conservadoras, a Embrafilme atendeu perfeitamente aos interesses dos cineastas que, desde a década de 50, já propunham ações estatais mais enérgicas para o cinema. Só para se ter uma ideia da ligação entre a Embrafilme (formulada e idealizada pela ditadura) e os cineastas (inclusive os de esquerda), o cineasta Roberto Farias, ligado ao grupo do Cinema Novo, foi dirigente da Embrafilme em um dos seus períodos mais produtivos, entre 1974 e 1979 (...). A EMBRAFILME foi responsável pela regularidade da produção do cinema no Brasil, através do financiamento da produção, da garantia da exibição (pela obrigatoriedade instituída via cota de tela para o produto nacional) e da distribuição dos filmes brasileiros. (MARSON, 2006, p. 18-19). A década de 1980 é marcada pelo início de mais uma crise no cinema nacional, evidenciada pelo desequilíbrio da economia, tanto nacional quanto internacional, o que abalou significativamente as finanças da EMBRAFILME e também a autossustentabilidade dos produtores independentes. Ademais, outro fator preponderante comprometeu a produção de filmes nacionais: a popularização do videocassete. Aliada à popularização da televisão e à elevada carga tributária que encarecia cada vez mais os preços dos ingressos de cinema, formaram o conjunto de fatores negativos que tornaram os produtos cinematográficos brasileiros como meios de entrete-

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nimento cada vez mais impopulares. Acerca desse péssimo momento que a economia brasileira vinha atravessando e que refletia diretamente no setor cultural, é válido citar o pensamento do autor Vinícius Portela Martins, que assim dispõe: A crise econômica da década de 1980, caracterizada pela inflação, desestruturação da economia e falta de recursos para investimentos, foi uma das responsáveis pela deteriorização do funcionamento orgânico da EMBRAFILME. Além de fatores de ordem econômica, fatores de ordem política, como a insatisfação do governo militar para com o filme “Pra frente Brasil” (Roberto Farias – 1982), também ajudaram na redução dos orçamentos da empresa. Já perto de seu fim, no ano de 987, a EMBRAFILME passou a ser uma distribuidora de filmes brasileiros. Foi extinta no governo do Presidente Fernando Collor de Melo. (MARTINS, 2012, p. 19). O encerramento das atividades da EMBRAFILME representa o fim de mais um ciclo da historiografia do cinema brasileiro. A atividade cinematográfica perde seu principal financiador e distribuidor e, principalmente, perde todos os seus mecanismos de proteção em face da ameaça do cinema estrangeiro, pois o então Presidente da República Fernando Collor tratou de promover a desregulamentação completa desta atividade, enfraquecendo as produções ao acabar com as cotas de tela, o que resultaria na abertura irrestrita da importação de produções estrangeiras, tendo por estopim o fim da fiscalização de entrada de produtos cinematográficos de origem externa. A Cota de Tela, por seu turno, é um importantíssimo e indispensável mecanismo de proteção das produções nacionais diante das estrangeiras, uma vez que determina uma quantidade mínima de produtos audiovisuais nacionais a serem veiculados nos canais nacionais, tanto nos canais abertos quanto nos que atendem aos critérios da comunicação audiovisual de acesso condicionado (TV por assinatura). O fechamento da EMBRAFILME significou, por fim, a associação imediata e maculada do governo Collor a um período de forte crise financeira e total descaso para com o setor cultural, o que ficou mais evidenciado graças ao fato de o setor privado de um modo geral não ter sido muito aberto ao diálogo, patrocínio e financiamento cultural. Acerca dessa desregulação dos setores responsáveis pelo cuidado para com os produtos culturais e artísticos nacionais, a renomada teórica Lia Calabre bem resume que: O Ministério foi extinto logo no início de 1990, já no governo Collor, sendo substituído por uma secretaria, e os órgãos a ele vinculados, na maioria, foram agrupados em dois grandes institutos: o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC) e o Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC); e a Lei Sarney extinta. (CALABRE, 2013, p. 142). O fim definitivo das atividades da EMBRAFILME se deu precisamente em março de 1990, quando Fernando Collor reduziu o Ministério da Cultura à condição de Secretaria da Cultura, passando a atuar subalternamente ao Ministério da Educação – daí a letra “C” na sigla

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MEC, já ultrapassada e que não passou por reformulação -, e deu fim às políticas de fomento às atividades culturais que vinham sendo aplicadas até então. Além da EMBRAFILME, Collor extinguiu ainda a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) e o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), este responsável pela regulação de normas e fiscalização do mercado cinematográfico brasileiro, e controlava a obrigatoriedade de veiculação de produções nacionais para a televisão. Com esta medida, a referida gestão deixou o setor audiovisual nacional completamente abandonado e desprovido de quaisquer tipos de políticas protecionistas, reguladoras ou fomentadoras, período traduzido como a maior crise que o mercado cinematográfico brasileiro atravessou desde os tempos de seu surgimento até os dias atuais. 5. MEDIDA PROVISÓRIA N° 2.228-1/2001 – AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA Com o fechamento da EMBRAFILME, em 1990, o setor cinematográfico nacional amargou o abandono e o descaso dos órgãos estatais. Somente 11 anos depois, com a aprovação da Medida Provisória n° 2.228-1 em 06 de setembro de 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, deu-se origem à Agência Nacional do Cinema (ANCINE), ocasião na qual o mercado audiovisual voltou a ser regulado, fomentado e fiscalizado. Porém, o início efetivo de suas atividades se deu somente em setembro de 2002, em virtude da demora na edição do decreto de regulamentação interna (4.121/02) e a restrições orçamentárias que a economia vinha atravessando à época (ANCINE, Relatório de gestão 2002; Brasil/TCU, 2004). A ANCINE é, portanto, a Agência Reguladora que detém a responsabilidade sobre a cadeia audiovisual nacional, fazendo parte da administração indireta, tendo surgido a partir do processo de descentralização das atividades de seu órgão diretamente superior, qual seja, o Ministério da Cultura. As Agências Reguladoras efetuam a regulação econômica de determinados setores da economia que demandam a intervenção estatal enquanto um ente independente e seus atos são dissociados dos órgãos que são frutos de seus surgimentos. O conceito de Agências Reguladoras no Brasil surgiu a partir das demandas advindas com o fortalecimento da economia, com o objetivo de formular órgãos com modelos institucionais dotados de autonomia financeira e administrativa, o que faz com que essas agências atuem independentes dos órgãos da administração direta. Pressupõe-se, com isso, a ideia desses órgãos mais estáveis e menos sujeitos à interferência dos governos federal, estadual e municipal. Enfatiza o autor Vinícius Portela Martins: A Agência reguladora do setor de cinema/audiovisual – ANCINE surgiu num ambiente em que Agências Reguladoras eram criadas para tratarem de questões e mercados estratégicos. O projeto original foi bastante modificado, pois previa, em linhas gerais, um financiamento baseado no modelo francês, o qual incidiria sobre o faturamento das TVs. Este acabou não se realizando, mantendo-se as mesmas formas de financiamento que já vinham sendo utilizadas. Criada como um órgão regulador,

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fiscalizador e fomentador da atividade cinematográfica e audiovisual, a ANCINE atua até os dias atuais intervindo no domínio econômico do audiovisual por meio da regulação e do incentivo ao setor (exceto segmento de radiodifusão) (MARTINS, 2012, p. 20). Conforme já foi dito anteriormente, o governo de Fernando Collor de Melo foi negativamente marcado por uma série de crises e instabilidades financeiras, e a mais negativa medida em face do setor artístico e cultural nacional foi o rebaixamento do Ministério da Cultura à condição de Secretaria da Cultura, ação que determinou o fechamento de todo o organograma responsável pela administração do mercado cinematográfico nacional, a saber, a EMBRAFILME e o CONCINE. Após onze anos de abandono, o referido setor passou novamente a ser objeto de preocupação da administração pública, ocasião na qual tomou novamente um lugar de destaque na agenda de discussões governamentais. Deste modo, foi criada a Agência Nacional do Cinema, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, autarquia responsável pela regulação, fomento e fiscalização da atividade cinematográfica e audiovisual brasileira até os dias atuais. Trazendo a nossa discussão para o presente momento, é impossível não destacar a série de benfeitorias que o modelo governamental vigente vem propondo para o campo artístico e cultural nacional. Desde 2003, a referida gestão vem somando esforços e investimentos a fim de estabelecer o mercado cultural – notadamente o audiovisual – como um eixo forte e economicamente rentável, sob a forma de fomento – direto e indireto - e inovação na propositura de novas políticas públicas que cada vez mais abrangem os mais variados eixos socioculturais, além de, acima de tudo, respeitar as especificidades destes. Junto à série de benfeitorias trazidas pela gestão federal atual para com o eixo cultura, temos o melhoramento do modelo de renúncia fiscal. Inaugurado pela Lei Sarney e posteriormente aprimorado pela Lei Rouanet – vigente até hoje -, o referido modelo concede abatimentos suntuosos nos impostos devidos pelas empresas desde que estas apoiem as iniciativas culturais aprovadas na referida lei. Ainda que este modelo careça de reformulações sérias, a fim de promover uma maior abrangência dos projetos contemplados por região, despolarizando a atuação da lei no eixo Rio-São Paulo, é notório que há um esforço constante por parte do Ministério da Cultura a fim de que estas discrepâncias regionais sejam sanadas. Lia Calabre, por seu turno, resume essa série de mudanças que até hoje continuam em andamento da seguinte maneira: Um ponto em pauta, logo no início da gestão do ministro Gil, era o da reformulação da Lei de Incentivo, que deveria ser substituída por uma mais adequada à nova realidade nacional. Para discutir e buscar subsídios para a reformulação da Lei Rouanet foram realizados os seminários “Cultura para todos”, que percorreu parte do país, sendo realizados nos seguintes estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Integravam as atividades dos seminários encontros setorizados com secretários de cultura estaduais e municipais;

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investidores privados e fundações, investidores estatais; e pessoas físicas (artistas e produtores em especial). Os participantes tinham como tarefa responder a duas questões: 1) Quais são os principais entraves para o acesso ao financiamento público federal da cultura (Lei Rouanet e Lei do Audiovisual)?;e 2) Quais os mecanismos que devem ser adotados para garantir a transparência e a descentralização do financiamento público da cultura? (CALABRE, 2013, p. 144). O modelo de renúncia tributária citado supra é indiscutivelmente a base do financiamento cultural nacional até os dias atuais, e notadamente vem passando por uma série de mudanças visando a maior abrangência de suas ações, fruto do constante diálogo envolvendo a sociedade civil e os gestores públicos, mais um ponto positivo que é digno de destaque na atuação da gestão atual, chamada por CALABRE (2013) de “A Era Lula” em uma de suas importantes obras acerca do panorama atual das políticas culturais no país. Acompanhando essa série de modificações e implementação de novos dispositivos que regulam a atividade artística e cultural no país, destacamos agora as importantes modificações que a ANCINE vem propondo em face do mercado audiovisual brasileiro, fato que obviamente não era observado na época da atuação da EMBRAFILME. Em suas ações de fomento, a ANCINE subdivide sua atuação de duas maneiras: por meio do fomento indireto, que se dá via Lei Rouanet (n° 8.313/91) ou Lei do Audiovisual (n° 8.685/93), dispositivos legais que possibilitam aos contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, abatimento ou isenção de tributos devidos, desde que redirecionem os recursos através de patrocínio, coprodução ou investimento aos projetos audiovisuais aprovados pela seleção da ANCINE; ou ainda por meio do fomento direto, onde a autarquia apoia financeiramente diretamente os projetos aprovados em suas chamadas públicas e editais de caráter seletivo ou automático, com base no desempenho da obra no mercado ou em festivais, o que inclui a realização do PAR – Prêmio Adicional de Renda e do PAQ – Programa ANCINE de Incentivo à Qualidade do Cinema Brasileiro. Outro avanço que merece destaque no que tange o fomento direto é o Fundo Setorial do Audiovisual, criado pela Lei n° 11.437/06 e regulamentado pelo Decreto n° 6.299/07 dentro dos parâmetros do Fundo Nacional de Cultura (FNC) que abrange os diversos segmentos da cadeia produtiva do setor, de produção até a exibição, abarcando também a distribuição e comercialização, além da infraestrutura de serviços. “O FSA é um fundo destinado ao desenvolvimento articulado de toda a cadeia produtiva da atividade audiovisual no Brasil. Seus recursos são oriundos da própria atividade econômica, de contribuições recolhidas pelos agentes do mercado, principalmente da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional - CONDECINE e do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações – FISTEL.” (www.ancine. gov.br, acesso em 10/02/2016).

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Esses modelos de fomento demonstram o papel cada vez mais destacado da cinematografia brasileira em face da indústria audiovisual mundial como um mercado em constante estado de evolução e aprimoramento de seu maquinário profissional e tecnológico, e evidencia que o cinema brasileiro da atualidade não depende apenas de grandes sucessos de bilheteria, mas também de alta qualidade técnica e artística, confirmada por meio da seleção e da premiação nos variados circuito de festivais apoiados pela ANCINE. Nestes termos, podemos destacar ainda o Prêmio Adicional de Renda (PAR), que é “um mecanismo de fomento direto lançado anualmente pela ANCINE com o objetivo de estimular o maior diálogo da cinematografia nacional com o seu público. Contempla empresas produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes de longa-metragem de acordo com o desempenho das obras no mercado de salas de exibição”, (www.ancine. gov.br, acesso em 10/02/2016), além do Programa Cinema Perto de Você, pensado para ampliar o mercado interno, no desiderato de fomentar a implantação de salas de cinema no Brasil. Trata-se de uma ação em conjunto liderada pelo Ministério da Cultura (MinC), a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Importante salientar ainda a relação jurídico-tributária que foi se instaurando a partir do momento em que a ANCINE se viu em total vigor de suas atividades, ou seja, somente a partir do governo de Luíz Inácio Lula da Silva, muito embora tenha sido aprovada na vigência da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Desta feita, salientamos a instituição da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (CONDECINE), que, subdividido em dois tipos (CONDECINE Licença e CONDECINE Rendimento), é um imposto incidente sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo, devida na hipótese em que não haja opção pelo benefício de abatimento do imposto de renda na fonte. É recolhida ao Tesouro Nacional e reinvestida no setor de produção cinematográfica brasileira (www.ancine.gov.br, acesso em 10/02/2016), bem como o Regime Especial de Tributação para o Desenvolvimento da Atividade de Exibição Cinematográfica (RECINE), que foi instituído pela Lei n° 122.599/2012. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Constatamos com o presente trabalho que o mercado cinematográfico brasileiro sempre foi um setor dependente da intervenção e investimento estatal e, acima de tudo, impulsionado por ciclos ocasionados principalmente por declínios financeiros.A produção cinematográfica brasileira sofreu seu principal golpe durante o governo de Fernando Collor de Melo, no início da década de 1990, quando este extinguiu o Ministério da Cultura e posteriormente todos os demais órgãos vinculados a ele, diminuindo o Ministério à condição de Secretaria e ainda encerrando

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as atividades do órgão central da cadeia produtiva do audiovisual, a EMBRAFILME. Posteriormente, o cinema amargou vários anos de descaso e abandono, o que resultou em pouquíssimas produções nacionais em cartaz, uma vez que, como se sabe, a produção audiovisual é das atividades artísticas mais dispendiosas financeiramente, e atuar sem o aporte financeiro garantido pelo Estado seria praticamente impossível. Essa má fase passa a mudar a partir da segunda metade da década de 1990, ocasião na qual o governo passa a implementar uma série de políticas de incentivo e fomento às atividades culturais, em especial ao setor audiovisual, baseadas sobretudo no modelo de renúncia fiscal vigente até hoje. Tem-se em 2001 a aprovação da Medida Provisória n° 2.228-1/2001, que cria a Agência Nacional do Cinema, órgão responsável por assumir as atividades que anteriormente eram desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Filmes S/A, todavia contando com uma diferença substancial: o interesse da gestão pública subsequente e atual em investir, fomentar e consequentemente desenvolver um setor que anteriormente padecia de completo descaso, em virtude da má vontade da gestão anterior para com ele.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUTRAN, Arthur. A noção de “ciclo regional” na historiografia do cinema brasileiro.Disponível em http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu20_Autran.pdf AUTRAN, Arthur. Brevíssimo panorama do Cinema Brasileiro nos anos 90. Disponível em: http:// mnemocine.com.br/cinema/histindex.htm BERNARDET, Jean Claude. O que é Cinema. Rio de Janeiro, Coleção Primeiros Passos. 1980. BOTELHO, Isaura. Dimensões da Cultura e Políticas Públicas. 2007. Disponível em: http://www. scielo.br/pdf/spp/v15n2/8580.pdf CALABRE, Lia. Política Cultural em Tempos de Democracia: a era Lula. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rieb/n58/a08n58.pdf CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: Balanços e Perspectivas. Disponível em: http:// www.guiacultural.unicamp.br/sites/default/files/calabre_l_politicas_culturais_no_brasil_balanco_e_ zperspectivas.pdf GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1986. MARSON, Melina Izar.O Cinema da Retomada: Estado e Cinema no Brasil da dissolução da EMBRAFILME à criação da ANCINE. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/ document/?code=vtls000377319 MARTINS, Vinícius Alves Portela. Fundamentos da Atividade Cinematográfica e Audiovisual. Rio de Janeiro, Ed. Elsevier. 2012.

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XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Ed. Paz e Terra. 2001. XAVIER, Ismail. O Cinema Marginal revisitado, ou o avesso dos anos 90. In: PUPPO, Eugênio (org.). Cinema Marginal brasileiro e suas fronteiras: filmes produzidos nos anos 60 e 70. Realização Centro Cultural Banco do Brasil, 2ª ed. São Paulo, 2004. www.ancine.gov.br – acesso em 10/02/2016 www.minc.gov.br - acesso em 10/02/2016

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O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PROJETO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP Sérgio de Azevedo1 RESUMO: O artigo descreve o processo de elaboração do Plano Municipal de Cultura do município de São José dos Campos, SP. Enumera os instrumentos de participação social, a articulação realizada entre Estado e Sociedade Civil e o processo de consultoria técnica realizada pelo Ministério da Cultura por meio da Universidade Federal da Bahia. Descreve algumas ações e procedimentos metodológicos e finaliza estabelecendo interseções entre a experiência relatada e a ideia de que a Gestão Cultural e as políticas públicas para a área da cultura pode cumprir um papel central na formação de agentes locais e no desenvolvimento das políticas culturais. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais; Sistema Nacional de Cultura; Sociedade Civil; São José dos Campos; Plano Municipal de Cultura.

O campo da cultura tem como um de seus principais enfrentamentos a institucionalização de seus mecanismos de gestão constituindo-se em um sistema minimamente definido, reconhecido por seus agentes e com seus principais componentes formalmente institucionalizados. Os planos estratégicos são instrumentos de planejamento em longo prazo que propõe um avanço no nível de formalização e institucionalização. Podem constituir-se, também, como mecanismos para a consolidação de uma política de Estado. Em alguns setores da administração pública, tem duração decenal. As áreas de educação, infância e juventude e saúde são alguns desses setores. Na área da cultura a elaboração de planos estratégicos decenais, os chamados planos de cultura, é muito recente. A título de exemplo, alguns dos primeiros planos municipais foram aprovados no final da primeira década deste século, como é o caso de Recife/PE (20092019), Joinville/SC (2010-2020) e Campo Grande/MS (2010-2020). Instrumentos de planejamento estratégico, além de serem recentes, encontram, na cultura, um campo de complexidades e de incontáveis variáveis que tornam sua elaboração um Doutorando em Educação pela Unicamp. Mestre em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Gestão cultural pela Universidade de Girona. Docente de Produção Cultural da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e Professor da Escola de Teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul (FASCS). Integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural da PUC-Minas. E-mail: [email protected]

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desafio que envolve tensões, embates e a necessidade de se inventar o fazer e o modo de fazer. A título de exemplo, como bem aponta Alfons Martinell (2011), as políticas educacionais se desenvolveram a partir da interpretação e tipificação de uma necessidade generalizadora. [...] Por outro lado, com as políticas culturais não se pretende cobrir as mesmas necessidades para toda a população, já que as necessidades culturais são baseadas na diferenciação e, acima de tudo, na procura da diversidade e no incentivo à diversidade e à excepcionalidade (2011, p. 117) Dentre outros desafios, podemos afirmar que políticas culturais consistentes são aquelas que consideram a transversalidade e intersetorialidade como eixos. O intento, portanto, é de que o plano de cultura dialogue com outras áreas da administração pública, com segmentos artísticos e a sociedade civil como um todo. Ou seja, o intento destaca uma tarefa imersa em complexidade e muitas dificuldades, que envolve articulação política e técnica. A proposta deste texto é mostrar como se deu o processo de elaboração de um plano de cultura, considerando todos os desafios e enfrentamentos envolvidos na tarefa. 1. O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA São José dos Campos é um município paulista pertencente à Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte. Tem população estimada de 681.036 pessoas (sétimo município mais populoso do estado) e ocupa a 51ª posição no ranking estadual do PIB per capita (IBGE, 2015). O município aderiu ao Sistema Nacional de Cultura (SNC) em janeiro de 2013, por meio da assinatura do Termo de Cooperação Federativa com o Ministério da Cultura. Para efetivar a adesão de São José dos Campos ao SNC, a Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), órgão gestor da área da cultura, criou um cronograma para implantar todos os componentes obrigatórios de seu próprio sistema local: - realizar Conferências Municipais alinhadas com as Conferências Estaduais e Federal (foi realizada em 2013 com a temática indicada pelo MinC e em 2015 para apresentar o projeto do PMC); - a criação de um fundo especial de financiamento à cultura (aprovado pela Lei Municipal Lei nº 9.069, de 13/12/2013); - a elaboração participativa do projeto de lei para criação do Sistema Municipal de Cultura (em tramitação na Câmara Municipal); - a reorganização administrativa da FCCR para mantê-la como órgão gestor exclusivo da área da cultura; e, – a criação de do Plano Municipal de Cultura (processos também em tramitação). Este artigo tratará, especificamente, do processo de elaboração do anteprojeto do Plano Municipal de Cultural, ocorrido no período de e julho de 2014 a dezembro de 2015. Em julho de 2014 foi assinada uma portaria da FCCR que dispôs sobre a elaboração do PMC e deu início formal ao processo. Dentre outras deliberações, foi criada a Comissão Organizadora para elaboração do Plano Municipal de Cultura, composta por oito representantes titulares e oito representantes suplentes, majoritariamente eleitos e representando a Sociedade Civil.

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A referida Comissão ficou encarregada de assessorar os trabalhos do Órgão Gestor e convalidar os processos e os relatórios elaborados. O processo, que no total durou dezoito meses, pode ser dividido em duas etapas. A primeira (julho de 2014 a junho de 2015) foi dedicada tanto à elaboração do Diagnóstico Institucional da Cultura quanto ao processo formativo de agentes locais e de assistência técnica, realizado por meio do Projeto “MinC-UFBA”, oferecido pelo Ministério da Cultura por meio da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. A segunda etapa (julho a dezembro de 2015) foi dedicada aos processos de escuta pública e participação social, levantamento e catalogação de demandas anteriores, processo de validação e aprovação tanto pela Comissão Organizadora quanto pelo Conselho Deliberativo da FCCR. O Conselho Deliberativo é um colegiado composto por 27 integrantes titulares da Administração Municipal e Sociedade Civil (e dois respectivos suplentes), os quais representam diversos segmentos da sociedade: instituições culturais, Câmara Municipal, Prefeitura, profissionais liberais, igrejas e personalidades de notável saber na área cultural e acompanham as ações da Diretoria Executiva. Em São José dos Campos, tem funcionado de forma análoga a um conselho de política cultural e há previsão de que, em 2016, passe por um processo de reformulação. Em relação à primeira etapa, cabe apresentar alguns detalhes complementares. O processo de elaboração do Relatório do Diagnóstico Institucional contou com o trabalho da Diretoria Executiva da FCCR e Comissão Interna de apoio à elaboração do PMC, validação e acompanhamento da Comissão Organizadora e assessoria técnica de uma profissional contratada especificamente para este fim. O resultado deste trabalho foi a elaboração e posterior aprovação de um relatório de 51 páginas que tratou, dentre outros, dos seguintes aspectos: Caracterização do município; Histórico de atuação pública em cultura; Levantamento e catalogação de Marcos legais; informações da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (Estrutura administrativa, Recursos humanos, Orçamento, dentre outros); Financiamento na área da Cultura; Equipamentos culturais próprios e cedidos em parceria; Grupos mantidos, apoiados ou conveniados; Projetos, festas e festivais; Parcerias; Bens preservados sob a administração da Fundação Cultural Cassiano Ricardo; e, frequência de atividades no período de 1986 a 2013. Ainda no período desta chamada primeira etapa, o município de São José dos Campos foi contemplado com a participação de dois agentes culturais (um representante do Órgão Gestor e outro da sociedade civil) na segunda edição do Projeto “MinC-UFBA”. A primeira edição, realizada em 2012 e 2013, atendeu vinte municípios brasileiros e foi uma das referências utilizadas pelo MinC para elaboração da publicação “Como elaborar um Plano Municipal de Cultura” (BRASIL, 2013). O município de São Caetano do Sul, SP, foi tema de artigo anteriormente apresentado no IV Seminário Internacional de Políticas Culturais (AZEVEDO, 2014).

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A segunda edição, realizada a partir de 2014 e atualmente em processo de finalização, intitulada “Projeto Planos Municipais de Cultura em Ambiente de Aprendizagem à Distância”, também uma parceria da EAUFBA com o MINC, teve como principal objetivo “desenvolver conhecimento em planejamento e gestão da cultura e ampliar a capacidade de elaboração de planos de cultura entre os municípios que aderiram ao Sistema Nacional de Cultura” (UFBA, 2016). Ainda sobre o projeto, cabe destacar algumas das ações propostas: • Conceber e estruturar um ambiente virtual de aprendizagem, com recursos e ferramentas que permitam prover a capacitação e a assistência técnica para 400 municípios ou 800 participantes e acesso a mais 1.200 pessoas integrantes de grupos de trabalho de elaboração de planos municipais de cultura; • Criar e realizar uma capacitação em elaboração de planos municipais de cultura, no formato de ensino à distância (EAD), com carga horária de 120 horas entre conteúdos, atividades dirigidas e elaboração do produto final; • Organizar encontros semipresenciais para reforço e compartilhamento de conteúdos e relações interpessoais, bem como acompanhamento de tarefas; • Organizar uma estrutura flexível de suporte técnico para elaboração de planos envolvendo assessoramento presencial e à distância. (UFBA, 2016) O participante do Poder Público do município de São José dos Campos completou todo o processo, realizado, em um primeiro momento na plataforma Moodle (ambiente virtual de aprendizagem por meio do qual se deu o processo formativo) e em segundo momento na plataforma PMC Modelo de Referência (conhecido como “Template_PMC”, tratou-se de sistema especialmente desenvolvido pela EAUFBA para elaboração e orientação do projeto do plano municipal de cultura). O resultado da participação foi a elaboração de um documento de 36 páginas que representou o primeiro esboço do PMC local, contemplando desde a caracterização e diagnóstico até diretrizes, objetivos, ações, metas e indicadores. Quanto à segunda etapa do processo de elaboração do PMC de São José dos Campos, cabe detalhar os procedimentos realizados. O Diagnóstico Setorial (cultural e artístico), realizado nesse período, pautou-se pela análise e sistematização de propostas registradas em oito documentos distintos, sejam eles governamentais, de participação social ou de pesquisa sobre hábitos e desejos culturais em São José dos Campos. Assim como na primeira etapa, o referido trabalho contou com o acompanhamento e validação da Comissão Organizadora e Conselho Deliberativo, bem como o assessoramento técnico de um profissional contratado (no caso, um dos autores deste texto). Detalhadamente, foram utilizados os seguintes documentos: (1) Relatório de participação social - Fórum Municipal de Cultura: Ano de realização: 2006. Conjunto de 195 propostas debatidas em dez grupos temáticos (Arquitetura e Patrimônio, Artesanato, Artes Plásticas, Audiovisual, Dança, Folclore,

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Hip hop, Literatura, Música, Teatro), consolidadas no encontro realizado na Câmara Municipal em 4 de fevereiro de 2006, com a presença de 219 pessoas. (2) Relatório de participação social - I Conferência Municipal de Cultura: Ano de realização: 2009. Conjunto de 76 propostas debatidas em cinco grupos temáticos (Grupo I - Produção Simbólica e Diversidade Cultural; Grupo II - Cultura, Cidade e Cidadania; Grupo III - Cultura e Desenvolvimento Sustentável; Grupo IV - Cultura e Economia Criativa Grupo V - Gestão e Institucionalidade da Cultura), consolidadas no encontro realizado no SESI de São José dos Campos em 30 e 31 de outubro de 2009, com a presença de 123 pessoas. (3) Manifesto artístico e cultural: Ano de elaboração e entrega: 2010. Conjunto de 11 propostas apresentadas em um documento único entregue em 20 de novembro de 2010, assinado por 5 representantes da Comunidade Artística e Cultural de São José dos Campos. (4) Relatório de participação social consolidado - “Diálogos culturais”: Ano de realização: 2013. Conjunto de 187 propostas debatidas em dez encontros setoriais, apresentados em ordem cronológica: Teatro, Políticas públicas culturais, Dança, Artes Visuais, Música, Encontro especial com equipe do Ministério da Cultura fala sobre os editais da Funarte e para Produtores Negros, Audiovisual, Arquitetura e Patrimônio Cultural, Literatura, Culturas Populares; (5) Relatório de participação social - II Conferência Municipal de Cultura: Ano de realização: 2013. Conjunto de 26 propostas debatidas em 4 grupos temáticos (Grupo 1 – Implementação do Sistema Nacional de Cultura; Grupo 2 – Produção Simbólica e Diversidade Cultural; Grupo 3 – Cidadania e Direitos Culturais; Grupo 4 – Cultura e Desenvolvimento), consolidado no encontro realizado em 13 e 14 de Julho de 2013, no Centro de Formação do Educador “Prof.ª Leny Bevilacqua”. (6) Relatório de dados da Pesquisa Hábitos culturais dos paulistas: Ano de realização: 2014. Trata-se de um projeto da J.Leiva Cultura & Esporte que começou a ser desenvolvido a partir de palestras, debates, análise de outras pesquisas com o objetivo de oferecer instrumentos e ferramentas que ajudem a entender a dinâmica das práticas culturais. Foram entrevistadas 7939 pessoas no município de São José dos Campos. (7) Relatório governamental - Diagnóstico Institucional da Cultura: Ano de realização: 2015. Relatório elaborado a partir da ação pública na área de cultura. Do material produzido, foram extraídos 39 registros que compuseram o total de propostas/ demandas elencadas para a primeira etapa de análise e elaboração do Diagnóstico Setorial (cultural e artístico).

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(8) Relatório governamental – PMC_Modelo de Referência: Ano de elaboração: 2015. Conjunto de 163 propostas elaboradas pela equipe da Fundação Cultural Cassiano Ricardo por conta da participação do município no Projeto de Elaboração de Planos Municipais de Cultura em Ambiente de Aprendizagem à Distância. O relatório foi finalizado em junho de 2015. (SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, 2016) Foram elencadas, analisadas e sistematizadas propostas dos últimos dez anos para que se pudesse construir o planejamento estratégico da área cultural para a próxima década. A sistematização, na prática, significou catalogar e classificar cada uma das propostas coletadas nos documentos citados anteriormente (em um total de 727) e classificá-las, de acordo com os seguintes itens: • Quanto ao Código da demanda/proposta: classificação crescente, em ordem cronológica em que as demandas/propostas foram apresentadas; • Quanto à demanda, proposta e/ou ação: transcrição da demanda tal qual como registrada nos documentos de cada um dos relatórios, corrigindo-se erros gramaticais ou de concordância; • Quanto à fonte da demanda/proposta: classificação em três tipos, a saber: (1) FCCR: propostas feitas pelo Órgão gestor da área da cultura; (2) Participação social: propostas da sociedade civil; e, (3) Pesquisa: dados de pesquisa sobre hábitos culturais realizada em São José dos Campos; • Quanto à área, linguagem ou transversalidade prioritária: Artes integradas, Artes visuais, Cinema e Audiovisual, Circo, Cultura Africana e Afro-brasileira, Cultura da Infância, Cultura e Arte Digital, Culturas Populares, Dança, Desenvolvimento Social, Educação, Gênero, Juventude, LGBT, Literatura, Meio Ambiente/SEMEA, Multiárea, Música, Patrimônio Cultural (Cultura Material, Imaterial, memória e registro), População em situação de vulnerabilidade social, Saúde, Teatro e Terceira Idade; • Quanto ao elo prioritário da cadeia produtiva: - Formação: Ações relacionadas ao ensino-aprendizagem das gramáticas artísticas e manifestações culturais estruturadas em diferentes níveis de aprofundamento em diversos formatos quanto à duração (workshops, oficinas, imersões, minicursos, prática livre, incentivo ao uso e apreciação estética etc.); - Informação e comunicação: Ações relacionadas à divulgação de eventos culturais em diferentes formatos textuais e mídias a fim de criar, formar e ampliar o público da cultura; - Difusão/circulação: Criação e pesquisa; Ações ligadas à circulação e distribuição dos bens culturais como: espetáculos de dança e teatro, shows musicais, saraus, exposições, exibição de filmes, mostras, festivais de arte e cultura etc.; - Gestão e fomento: Ações traduzidas na organização dos processos culturais tanto internas quanto externas aos órgãos gestores ligadas ao planejamento estratégico, pesquisas de público, criação de indicadores, construção, reforma, ade-

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quação, manutenção, equipamentos de espaços culturais recursos humanos e a projetos e programas culturais desde sua concepção, execução e finalização bem como editais enfocando os componentes da cadeia produtiva e outros; - Memória/Registro: Produção, circulação; formação, difusão, troca, mediação, apropriação e memória, culturas tradicionais e populares, valorização do patrimônio cultural: • Quanto à inserção metodológica no PMC: Caracterização; Diagnóstico; Fragilidades, Obstáculos e Desafios; Vocações, Potencialidades e Oportunidades; Diretrizes; Prioridades; Estratégias; Objetivos; Metas, Ações; Indicadores; Resultados; e, Impactos; • Quanto ao agrupamento, três classificações foram relacionadas: - um número aglutinador, que identificava itens relacionados. Por exemplo: todos os itens ligados ao Sistema de financiamento foram agrupados no número “2001” (para não confundir com a numeração das propostas cadastradas a partir das demandas); - Um agrupamento inicial, proposto a partir de temas às propostas feitas; - um agrupamento final, relacionado à estrutura metodológica do Plano Municipal de Cultura; • Quanto à situação atual da demanda, cada um dos itens foi analisado pela Comissão Interna de Apoio da FCCR, contextualizando a proposta, atualizando-a, se necessário e localizando-a diante das ações atuais. Foram classificados da seguinte forma: - Atendida/em execução: proposta já executada ou em execução continuada. - Parcialmente atendida / em processo de atendimento; - Em estudo; Inespecífica / relacionada à outra área administrativa ou instituição; - Não atendida; • Quanto à observação/histórico de análise da equipe FCCR: - registro da análise da Comissão Interna de apoio. • Quanto ao ano de registro da demanda: - ano em que a demanda/proposta foi apresentada; • Quanto à instância de demanda e/ou ação: - Em qual das instâncias foi registrada a demanda: • Quanto ao subgrupo no qual a demanda foi originalmente inserida: - registra em qual grupo a demanda foi apresentada. (SÃO JOSÉ DOS CAMPOS, 2016) Ao final do processo de organização, catalogação e análise dos dados, as 727 propostas iniciais foram reagrupadas em 232 propostas, divididas em 31 tópicos, a saber: Sistema Municipal de Financiamento e Fomento à Cultura; Institucionalidade e Gestão pública da cultura; Equipamentos culturais; SMICC - Sistema Municipal de Informações e Indicadores; Programa de Editais; Programa de Comunicação e Difusão da Informação; Ação cultural; Participação social e cidadã. Escutas públicas; Intersetorialidade e transversalidade – Educação; Intersetorialidade e transversalidade; Diversidade cultural; Pesquisa; Regionalidade - RM Vale; Parcerias

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e convênios; Sistema Municipal de Formação e Capacitação; Economia criativa; Economia solidária; Artes integradas: ações e políticas específicas; Artes visuais; Artesanato; Audiovisual e cinema; Bibliotecas; Circo; Culturas populares e tradicionais e valorização de mestres; Dança; Grafite; Hip Hop/Artes integradas; Literatura; Música; Patrimônio cultural histórico, material e imaterial; Teatro. Após este trabalho, conforme deliberado pela Comissão Organizadora para a Elaboração do Plano Municipal de Cultura, o roteiro foi submetido a uma nova etapa de participação social: as Audiências Públicas para elaboração do PMC de São José dos Campos. Foram realizadas cinco audiências territoriais sediadas em distintas regiões da cidade. Paralelamente ao processo de participação presencial, foi disponibilizada uma ferramenta virtual para consulta pública por meio da qual foi possível contribuir com propostas por meio de um endereço eletrônico. Vale destacar que, no site da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, foi criada uma página específica que disponibiliza todos os documentos elaborados para consulta pública. A FCCR atraiu 267 participantes, os quais apresentaram 343 propostas. Desse novo rol de proposições, 294 foram agrupadas em itens já existentes e 49 geraram novas proposições, até então não relacionados. Após as audiências públicas, as 343 novas propostas foram classificadas, conforme especificação apresentada anteriormente. Ao final, foram contabilizadas 1 070 propostas para a elaboração do plano estratégico da área da cultura. Podemos, então, considerar dois momentos para a organização das informações. O primeiro, documental, organizou 727 demandas, as quais geraram 232 propostas para compor o PMC. No segundo, após submeter o trabalho às audiências e consultas públicas, foram registradas 1 070 demandas, as quais geraram 281 propostas para o PMC. Considerando que cada uma das demandas teve quinze classificações diferentes, o processo de organização, catalogação e análise gerou, no total, 16 050 classificações. Desse montante, destacamos, nos gráficos apresentados a seguir, alguns recortes.

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Gráfico 1 – Classificação das demandas registradas para a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos quanto à fonte da informação (percentual e números absolutos)

Fonte: Relatório final da Fundação Cultural Cassiano Ricardo sobre a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura. Análise das 1070 propostas registradas após análise documental e encontros de participação social. 2015.

Gráfico 2 – Classificação das demandas registradas para a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos quanto à inserção no elo da cadeia produtiva, conforme classificação da FCCR. (percentual e números absolutos)

Fonte: Relatório final da Fundação Cultural Cassiano Ricardo sobre a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura. Análise das 1070 propostas registradas após análise documental e encontros de participação social. 2015.

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Gráfico 3 – Classificação das demandas registradas para a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos quanto ao ano em que foram registradas (percentual).

Fonte: Relatório final da Fundação Cultural Cassiano Ricardo sobre a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura. Análise das 1070 propostas registradas após análise documental e encontros de participação social. 2015.

Gráfico 4 – Classificação das demandas registradas para a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos em relação às áreas, linguagens ou transversalidades prioritárias (percentual)

Fonte: Relatório final da Fundação Cultural Cassiano Ricardo sobre a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura. Análise das 727 propostas registradas após análise documental. 2015.

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Gráfico 5 – Classificação das demandas registradas para a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos quanto à inserção em aspectos metodológicos (percentual)

Fonte: Relatório final da Fundação Cultural Cassiano Ricardo sobre a elaboração do projeto do Plano Municipal de Cultura. Análise das 727 propostas registradas após análise documental. 2015.

Após a realização das audiências públicas e consulta por meio de plataforma digital, uma nova redação do projeto foi elaborada. A nova consolidação foi apresentada à Comissão Interna de Apoio e à Comissão de Elaboração e Acompanhamento do Plano Municipal de Cultura para análise e validação. Após os debates e considerações, o próximo passo foi a elaboração do anteprojeto do PMC, o qual foi novamente submetido à leitura e validação da Comissão. O projeto aprovado foi submetido na III Conferência Municipal de Cultura de São José dos Campos, realizada em 21 de novembro de 2015, com a participação de 73 pessoas. Na Conferência, foram apresentadas 97 moções, as quais foram avaliadas, uma a uma, pela Comissão de Elaboração e Acompanhamento do Plano Municipal de Cultura. O texto final do anteprojeto do PMC de São José dos Campos foi aprovado em 26 de novembro de 2015 pela Comissão Organizadora para Elaboração do Plano Municipal de Cultura, o qual foi apresentado na Reunião Ordinária de dois de dezembro de 2015 do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Cassiano Ricardo, na qual também foi convalidado. Atualmente, o texto encontra-se em fase final de análise jurídica para ser submetido ao Poder Executivo e posteriormente encaminhado para a Câmara Municipal para votação. Sinteticamente, o processo de elaboração do Plano Municipal de Cultura de São José dos Campos contou com 1 070 demandas (propostas) inventariadas e catalogadas em oito instrumentos de participação cidadã ou registros de gestão. Ao final, contou com um total de 1 079

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participantes em todos os instrumentos de participação social e cidadã relacionados diretamente com a elaboração do Plano Municipal de Cultura, dos quais 267 foram credenciados nas audiências públicas em 2015. Foram realizadas dezoito reuniões oficiais da Comissão Organizadora para elaboração do Plano, cinco audiências públicas territoriais, um processo de consulta pública disponibilizado no site da FCCR e uma Conferência Municipal de Cultura convocada para validação da proposta. O anteprojeto aprovado conta com 280 proposições, assim divididas: 12 diretrizes, 17 objetivos gerais, 53 objetivos específicos, 32 metas e 166 ações. 2. REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO O processo de elaboração do PMC de São José dos Campos, SP, mostrou que se criou uma zona de confluência na qual diversos atores culturais atuaram de forma significativa e articulada. O Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, estabeleceu as bases e diretrizes de uma política cultural que pôde ser percebida em ação no município. Princípios do SNC, previstos no Artigo 216-A da Constituição Federal (regime de colaboração, o processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura e a promoção do desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais, dentre outros) foram percebidos na condução e elaboração do projeto do PMC. Pontos vitais das políticas culturais locais foram, por assim dizer, estimulados. Destaquemos alguns: Um processo de gestão que nasceu da participação e mobilização: se aprovado, o PMC de São José dos Campos será o primeiro plano decenal do município da área da cultura, elaborado com o objetivo de orientar e estruturar a ação pública no campo da cultura para os próximos dez anos. É uma experiência inédita para a cultura local, que vai muito além da organização de uma lista de demandas. É um plano que nasceu de intensa mobilização e pressão dos agentes do campo cultural em relação ao novo governo que assumiu a Administração Municipal em 2013 e que se propõe a criar mecanismos efetivos para o desenvolvimento cultural da e na cidade. Olhar dez anos para trás para projetar dez anos para frente: o histórico de participação social e os registros de demandas anteriores possibilitaram que, para construir um plano estratégico para os próximos dez anos, fosse considerado o que foi demandado nos últimos dez anos no município. Uma forma de construir um plano de ação que não desconsiderasse tudo o que já havia sido demandado e que, ao mesmo tempo, estivesse aberta novas considerações e atualizações das propostas. Ação conjunta de vários atores culturais e políticos: além do Governo Federal, já citado anteriormente, vale destacar a presença da universidade pública, por meio da ação formativa da Escola de Administração da UFBA. Os agentes locais, tanto representantes da administração municipal quanto artistas, produtores e cidadãos em geral, envolveram-se em um processo participativo e colaborativo. Se por um lado os números absolutos ainda reforçam que há muito

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para se evoluir na mobilização e participação, por outro a qualidade da participação mostra que muito se avançou nos últimos anos. “Pensando a cidade”: os números, apresentados nos gráficos, também possibilitam algumas inferências. Do total de propostas registradas, 77,88% foram oriundas de proposições da Sociedade Civil. O que mostra um histórico de participação social muito significativo. Além disso, ao contrário do que ocorreu em outros municípios que adotaram metodologia similar, a maioria das demandas (52,71%) eram relacionadas a aspectos relacionados à Gestão e Fomento e às ações “multiáreas” (55,43%, relacionados aos projetos e ações transversais, multisetorias). Em São José dos Campos, os itens mais citados eram relacionados ao Sistema de Formação, à reorganização administrativa do órgão gestor, ao Fundo Municipal de Cultura, aos canais de participação social, aos equipamentos culturais e ao patrimônio histórico. A percepção que se criou ao longo do processo é que, em geral, o joseense estava pensando a cidade e as políticas culturais. Em outros municípios, as demandas setoriais representaram a maioria das propostas registradas. Além disso, como já é sabido por quem acompanha encontros de participação social, a maioria das propostas é feita em forma de “ação” - projetos e/ou atividades para o alcance das metas e dos objetivos, assim como ocorreu em São José (43,88% das proposições). Ainda com relação aos números, quando a primeira proposta do PMC foi apresentada à sociedade, foram registradas 343 novas proposições, das quais 294 reforçavam propostas já existentes. Ou seja, as demandas referendaram o levantamento feito, reiterando inúmeras demandas já consolidadas no processo de construção do Plano. Em outros setores, os participantes se valeram dos encontros públicos para atualizar as propostas da área, inserindo-as em novo contexto. Isto é, o trabalho técnico feito anteriormente permitiu novas leituras da cidade e das políticas locais e isso, por si só, era comentado como um aspecto positivo e um resultado desejável. Formação de agentes locais: o processo formativo dos agentes locais permitiu um avanço tanto no processo quanto na elaboração do documento final. Acompanhando o processo, era notável o envolvimento dos agentes públicos e a capacitação que o projeto MinC-UFBA e outras ações correlatas promoveram na ampliação da compreensão da cultura e no desenvolvimento das políticas culturais locais. Por exemplo: apesar do Projeto Planos Municipais de Cultura em Ambiente de Aprendizagem à Distância prever apenas a participação de um único agente representante da administração municipal, o processo formativo foi compartilhado por diversos outros agentes do Órgão Gestor. O processo formativo para elaboração do PMC bem como os instrumentos de participação social também possibilitaram a formação de lideranças na área da cultura. Se por um lado é ainda pouco diante dos desafios, podemos considerar que o avanço também seja significativo. Além disso, a constituição de uma Comissão Organizadora para a Elaboração do Plano Municipal de Cultural foi uma forma de contornar o fato de que o município não contava com um Conselho Municipal de Política Cultural adaptado às novas

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orientações do MinC. Embora a Comissão do PMC fosse majoritariamente composta por representantes da Sociedade Civil, era perceptível o protagonismo dos representantes do Órgão Gestor e o grande esforço para manter a presença dos representantes da Sociedade Civil. Isso se reverteu positivamente na qualidade do processo. Por exemplo, as ferramentas de monitoramento e acompanhamento das metas do PMC, notadamente frágeis em PMCs aprovados em outros municípios, foram muito debatidas e o resultado foi a proposição de instrumentos mais efetivos de controle social e acompanhamento da execução do PMC, como a explicitação, no corpo da lei, dos mecanismos de publicização de informações e acompanhamento das metas. Por fim a equipe local apropriou-se das referências indicadas pelo Ministério da Cultura para construir um documento que dialogasse com o contexto local. A metodologia do planejamento estratégico foi um eixo estruturante, mas não completamente definidor do projeto final. Referências externas foram importantes e utilizadas nos debates. Contudo, cabe destacar que os agentes locais construíram as condições para a elaboração do Plano Municipal de Cultura e, também, uma forma própria e singular de fazê-lo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sérgio de. O Projeto Minc-UFBA e a elaboração do Plano Municipal de Cultura de São Caetano do Sul/SP: participação social, orçamento e gestão cultural. II Seminário Internacional de Políticas Culturais, 2014. BRASIL. Ministério da Cultura. Como fazer um plano de cultura. Ilustradora Joana Lira. São Paulo: Instituto Via Pública; Brasília, DF: MinC, 2013. MARTINELL, Alfons. As relações entre políticas culturais e políticas educacionais: para uma agenda comum In: COELHO, Teixeira. Cultura e educação. Itaú Cultural, 2015. IBGE, Cidades. IBGE Cidades@. Acesso em 10 de fevereiro de 2016. SÃO JOSÉ DOS CAMPOS. Projeto do Plano Municipal de Cultura 2016-2025. 2016. Disponível em . Acesso em 10/fev/2016 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Projeto Planos Municipais de Cultura em Ambiente de Aprendizagem à Distância. 2016. Disponível em www.planomunicipaldecultura.com.br. Acesso em 10/fev/2016

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ARTE E CRIAÇÃO NA ECONOMIA DOS BENS ABUNDANTES Sharine Machado Cabral Melo1 RESUMO: Grande parte da bibliografia acadêmica sobre temas como a economia criativa ou a economia da cultura, especialmente de tradição britânica e australiana, ressalta as especificidades da exploração da atividade criativa, principalmente nas indústrias culturais. Este artigo propõe uma leitura desse conjunto de enunciados a partir das pesquisas sobre o trabalho imaterial e o neoliberalismo. Dessa perspectiva, o capitalismo, que não cessa de explorar os recursos naturais, também se volta aos elementos predominantemente intangíveis, como a imaginação, o afeto e o pensamento. Por ser um campo em que a criatividade é bastante visível, as artes são diretamente afetadas pelos discursos e pelas práticas que emergem dessa abordagem. PALAVRAS-CHAVE: economia criativa, economia imaterial, artes, políticas culturais.

1. INTRODUÇÃO Em 1994, o primeiro ministro da Austrália batizou seu país de “nação criativa”. Poucos anos mais tarde, em 1997, foi a vez de Tony Blair formar uma equipe incumbida da tarefa de mapear as “indústrias criativas” do Reino Unido. Desde então, diversos governos e iniciativas privadas têm apostado em conceitos como “economia criativa”, “economia da cultura” ou “economia das artes”. Esses termos variam conforme a orientação política em voga. Na prática, as estratégias ora tendem a um maior financiamento público, que sofre cortes em períodos de crise financeira, ora buscam a sustentabilidade de atividades empreendedoras, artísticas ou culturais. Além disso, diversas cidades já foram declaradas “criativas”: Bilbao (Espanha), Londres (Inglaterra), Helsinki (Finlândia), Rio de Janeiro (Brasil). Inspiradas por autores como Richard Florida (2012), nos Estados Unidos, Charles Leadbeater (1999), na Inglaterra, ou Ana Carla Reis (2012), no Brasil, pelas análises de economistas como David Throsby (2011) ou John Howkins (2007), ou por relatórios de organizações como a UNESCO (2010), a hipótese que sustenta essas iniciativas é a de que a criatividade é o elemento que impulsiona a economia local e que permite o fluxo internacional de pessoas, de ideias e de dinheiro. Mestre (2010) e doutora (2015) em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com período de bolsa sanduíche, financiada pela CAPES, na University of Leeds – Reino Unido (2014/2015). Bacharel em Comunicação Social pela ESPM – SP. Trabalha como administradora cultural na Fundação Nacional de Artes – Funarte SP. E-mail: [email protected].

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De fato, desde o final dos anos 1990, há uma espécie de ritornelo sobre um enunciado que não cessa de enfatizar o valor econômico e social que pode ser extraído do pensamento e da imaginação. Nesse discurso, a capacidade de criar nunca aparece como exclusividade de alguns grupos sociais (como os artistas, por exemplo), mas se ressalta que é preciso preservar e incentivar a diversidade, que se manifesta na música e na dança, na literatura e nas artes populares, nos artesanatos e nas artes visuais, mas também nas pequenas e grandes empresas, nas organizações financeiras, nas mais diferentes ocupações – do ator ao designer, do professor ao engenheiro. Por mais democrático que possa parecer, esse discurso não é, de maneira alguma, ingênuo. Em primeiro lugar, ele toma o ato de criar (que, no simbolismo romântico, é visto como um produto do gênio, um dom inato e muitas vezes raro), como uma característica comum a todas as pessoas. Em seguida, ele busca extrair valor econômico de algo tão intangível como o pensamento – e não há nada aparentemente mais distante da imagem do chão de fábrica, que se formou no capitalismo industrial, com suas ações repetitivas, a produção em massa de bens de consumo, a extração de valor da força física e dos recursos naturais. Por um lado, a cultura se torna ordinária, como Raymond Williams (1967) já havia previsto nos anos 1960 – ela não se restringe mais a uma tradição estética, mas remete aos mais diversos domínios da vida. Por outro, a criação torna-se fonte de riquezas. O que esses movimentos podem dizer sobre nossa época? Para Justin O’Connor (2011), a cultura tornou-se um campo de interesses para a sociedade ocidental no momento em que as indústrias culturais começavam a ser adotadas como estratégia política e mercadológica, por volta dos anos 1970. Os Ministérios da Cultura, que haviam sido criados a partir da segunda metade do século XX, seguindo, em grande medida, o modelo francês, agora voltavam sua atenção para a cultura comercial, que ocupava parte do lugar antes reservado à preservação e à democratização das Belas Artes. Já nos anos 1980, o Ministério da Cultura da França passou a enfatizar o “multiculturalismo”. O então ministro Jack Lang propunha ações que abrangiam gêneros como o rock e o hip-hop, antes invisíveis às políticas públicas (POIRRIER, 2012). Na Inglaterra, pesquisadores como Garnham (2006) e Miège (1979) sugeriam que as indústrias culturais fossem integradas às estratégias de governo, uma vez que as formas “comerciais” de cultura também influenciavam os gostos do público. No Brasil, era criada a primeira versão da lei de incentivo fiscal (a Lei Sarney2), que mais tarde seria substituída pela Lei Rouanet3. Mas a noção de economia criativa não é uma simples evolução desses modelos, como, à primeira vista, pode parecer. Há uma inversão. No primeiro momento, havia uma preocupação com as questões econômicas inerentes à cultura, fosse ela entendida pelo viés da estética 2 Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015. 3 Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015.

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romântica, das experimentações artísticas ou de obras de cunho predominantemente comercial, e, por isso, gestores e teóricos apropriavam-se de conceitos como os de diversidade ou multiculturalismo. Já o discurso sobre a economia criativa faz da própria criatividade uma fonte de desenvolvimento social e econômico, com potencial para melhorar as condições de cidades e de países inteiros. Um dos efeitos é que as artes (domínio em que a criatividade, sem dúvida, é mais visível) acaba por integrar-se aos processos produtivos em geral. É por isso que essas questões não escapam de uma crítica aguda, que pode vir de acadêmicos ou dos próprios artistas. Além da exploração do trabalho criativo, o principal receio é que as artes percam “autonomia” e, com isso, percam também seu caráter de transgressão ou de resistência. Essa análise deixa entrever uma discussão mais antiga: será que a arte pode ser uma atividade economicamente interessada? Ou, pelo contrário, é o avesso do sistema produtivo com sua fabricação em série de bens de consumo? Embora seja um tema atual, com especificidades de nossa época, quando formulado dessa maneira, o debate remete à transição entre a idade clássica e a moderna, época em que nasciam tanto a estética quanto o liberalismo econômico. 2. SOBRE ARTE, ECONOMIA E LIBERDADE No livro As palavras e as Coisas, o filósofo Michel Foucault (2007) fez uma leitura bastante original da passagem do século XVIII para o XIX. Segundo ele, o liberalismo surgia não apenas ancorado na livre troca de mercadorias, mas principalmente no modo como se entendia o trabalho. Com a divisão de tarefas nas fábricas, proposta por economistas como Adam Smith e, em seguida, David Ricardo, a força dos empregados era transformada em uma unidade de medida, que gerava o “valor” de um produto ou serviço. Ao ser tomado, dessa maneira, como algo que pode ser medido e fragmentado, o trabalho também passava a ser visto como um investimento de tempo e esforço, sem que houvesse uma recompensa imediata, o que colocava o ser humano em contato com sua própria finitude: A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; se há uma ordem nas riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. (FOUCAULT, 2007, pp. 308-309) A vida “dobrava-se sobre si mesma”, assim como a economia e as linguagens. Mais do que a invenção de uma técnica de produção, Foucault viu neste movimento, que se expandia por toda a Europa, um exemplo de mudança epistemológica, o que, segundo ele, inaugurava a modernidade.

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Uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria, impõem-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; a análise das trocas e da moeda cede lugar aos estudos da produção, a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura de seu passado (FOUCAULT, 2007, p. XX) Mais tarde, nos cursos dados, no final da década de 1970, no Collège de France, Foucault (2008) voltou à passagem do século XVIII para o XIX, desta vez para analisar a biopolítica, ou o poder que se exerce sobre a vida. Novamente, o filósofo se deparou com a questão da liberdade: se a economia se tornava um campo específico de conhecimento, que seguia uma lógica própria, era preciso conhecer seus mecanismos. E a melhor forma, segundo os pensadores da época – de Smith a Kant, cada um em sua área de estudos – era deixar que ela funcionasse “naturalmente” a fim de que suas “verdades” se manifestassem. Para isso, seria necessário criar um “campo de liberdades”. A própria sociedade, que, até então, havia sido um domínio de poder dos reis absolutistas, emergia como um conjunto de cidadãos livres e heterogêneos. O principal exemplo era o mercado, em que se trançava uma rede de interesses. Mas essa liberdade deveria ser exercida dentro de certos limites: para que todos pudessem conviver “livremente”, era preciso que as pessoas seguissem determinados padrões de conduta, que soubessem “governar” a si mesmas. O governo, por sua vez, teria a tarefa de “conduzir as condutas dos indivíduos”, de forma que eles se adaptassem à “normalidade”: O liberalismo, no sentido que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição com a liberdade. É necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc. (FOUCAULT, 2008, p. 87) Nesse contexto, apresentado aqui de modo bastante esquemático, a arte também emergia, por um lado, como um campo autônomo, com uma organicidade própria, e por outro, como um exercício de governo de si. Basta percorrer os tratados de estética para verificar a busca por verdades que emergem da subjetividade dos artistas ou da própria obra, além da procura por uma liberdade que ora se relaciona à razão e à moral (a liberdade do pensamento em relação aos desejos do corpo), ora aponta para a transgressão dos valores tradicionais. Só que, ao contrário do trabalho, a arte não era entendida como algo extraído da força física, mas como um produto do “gênio”, um dom inato, natural ou espontâneo. Kant (2012), por exemplo, diferenciava a arte do trabalho justamente a partir do conceito de desinteresse. Para ele, o artista é aquele que cria sem receber nenhuma recompensa material em troca. Schiller (2011), por sua vez, via na arte uma forma de restituir a harmonia que havia sido rompida pela divisão do trabalho. A arte

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passava a ser entendida como uma linguagem universal, capaz de proporcionar a comunicação entre diversos povos, de criar uma comunidade, um acordo comum entre os cidadãos. Ocorre que foi justamente o desenvolvimento do mercado que possibilitou à arte emergir como algo à margem do trabalho “produtivo” ou economicamente “interessado”. Ao desvincularem-se das encomendas da nobreza e dos líderes religiosos, os artistas passavam por uma transformação no modo como criavam: em vez de cumprirem um pedido específico, como faziam na época dos grandes mecenas, eles deveriam produzir as obras antes de oferecê-las ao público, que agora percorria museus, teatros e galerias “desinteressadamente”, em busca apenas de “novidades” ou de “prazer”. Além disso, os artistas precisavam encontrar uma fonte de inspiração em temas de seu interesse, recorrendo, muitas vezes, à sua própria subjetividade. (GOMBRICH, 1981) É claro que alguns princípios do mecenato permanecem até hoje, da mesma forma que os artistas medievais ou renascentistas também compunham suas obras de um modo singular, mesmo que a atividade fosse coletiva em grande parte das vezes. Mas fatores como o estilo e o talento dos artistas foram iluminados a partir do século XVIII tanto pela Estética e pela filosofia quanto pela própria organização do mercado. E, dessa forma, criou-se uma ruptura imaginária entre o trabalho e a atividade do gênio, entre a força física e a criação, apesar da lida diária dos artistas, que se viam também envolvidos em uma rede formada por galeristas, publicitários, produtores, entre outros profissionais. Nesse ambiente, eram os elementos intangíveis da arte – a criação, a capacidade de imaginar e de se relacionar com os outros, o gênio dos artistas e a raridade de suas obras – que já apontavam para uma nova forma de compreender a economia e que, mais tarde, iriam se revelar em mudanças no próprio conceito de trabalho. 3. DO LIVRE COMÉRCIO DE OBRAS DE ARTE À ECONOMIA CRIATIVA Por questões históricas, como o mercantilismo e o liberalismo, a exploração do trabalho nas fábricas e a movimentação do mercado de artes foram bastante evidentes na Inglaterra. Um exemplo foi a época Vitoriana, o auge da Revolução Industrial no país. Durante este período, havia um intenso debate em torno do livre comércio de arte. Enquanto algumas pessoas criticavam o Estado por não adquirir obras que “honrassem a nação”, outras culpavam a Academia por agir contra o livre mercado (CODELL, 2010, p. 27). Os artistas, por sua vez, passaram a fazer parte do censo, integrando a categoria dos “profissionais”, embora não exatamente por realizarem um “trabalho”, mas por sua “contribuição geral à sociedade” (SHINER, 2001, p.201). John Ruskin (2004, p. 28; 39), um dos primeiros a tratar, sistematicamente, da relação entre arte, política e economia, refletia bem os problemas dessa época. Preso a uma noção romântica da arte e a uma visão paternalista do Estado, ele se perguntava como gerar o “homem genial”, como empregá-lo e como distribuir suas obras para toda a população. Nesse esquema,

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os artistas eram vistos como um “recurso da nação”, algo raro a ser preservado, assim como o ouro. O autor também era contra os “excessos” na composição e os gostos “frívolos” do público. Por isso, ele pensava em estratégias para incentivar a produção de “obras do gênio”, sem desvalorizá-las. Uma de suas ideias era aumentar o preço de alguns trabalhos, de forma que as pessoas tivessem “poucos objetos para olhar”, mas oferecer obras baratas ou gratuitas para que a população mais pobre também tivesse acesso. Apesar da visão familiar de economia, a obra de Ruskin é um exemplo claro de governo das condutas. Por isso, embora sua análise se referisse especificamente às questões de sua época, há, segundo o economista David Throsby (2011), alguns pontos que podem ser facilmente transportados para a atualidade, especialmente as discussões sobre os valores estéticos, financeiros e sociais da arte, e a necessidade de apoio do Estado, uma vez que a atividade dos artistas não seria “economicamente sustentável” (ou não poderia sustentar-se sozinha sem se perder em “modismos”, afastando-se dos padrões morais ou estéticos). Análises como essa, de viés kantiano, nunca foram um consenso. Bourdieu (1986), por exemplo, mostrou que, ao contrário do que pensava grande parte dos filósofos românticos, o campo artístico apresenta certa estrutura de interesses, velada, mas que contribui para a distinção entre as classes sociais – a cultura, para o sociólogo, já era entendida como um “capital”, como um investimento em um elemento intangível, mas que poderia se converter em um resultado econômico e social. Contudo, o simbolismo da exploração dos trabalhadores nas fábricas, as noções de governo de si e dos outros e a metáfora da liberdade e da comunicação universal proporcionadas pela arte persistiram. E, de formas muitas vezes paradoxais, é justamente esse imaginário, visível na figura dos “gênios”, ou daqueles que se afastam das questões materiais para se dedicarem à sua vocação, que até hoje impulsiona uma boa parte do mercado de artes. Ao contrário das linhas de produção, que lançam bens de consumo padronizados, é por causa da escassez, da raridade ou da “aura”, que as obras-primas têm valor. E esse valor, de fato, destaca-se do esforço físico quando se multiplica por meio do investimento, da especulação e do risco dos mercados financeiros. No século XIX, um elemento fundamental para que essa organização se sustentasse foi a imprensa, que hoje se expande para os meios de comunicação de massa e digitais. À medida que se desenvolviam, jornais e revistas, e mais tarde programas de rádio e televisão, tornavam-se responsáveis não somente por divulgar as artes, mas também por formar o público, que se estabelece em torno de correntes estéticas, artistas, galeristas e críticos. Nesse sistema, as relações interpessoais, a troca de conhecimentos e a difusão dos signos são fontes fundamentais de riquezas. O campo tornou-se ainda mais complexo a partir da segunda metade do século XX, marcada pela expansão das indústrias culturais, que não somente comentam e difundem as obras de arte, mas também criam suas próprias obras. Nesse mesmo período, essas características co-

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meçavam a afetar diretamente a economia de países como os Estados Unidos, que exportavam conteúdos audiovisuais para diversos locais do mundo. Tanto nas políticas de governo quanto nas pesquisas acadêmicas, percebia-se uma mudança na ênfase da produção de bens de consumo de massa para a criação de imagens e de ideologias (MILLER, 2009). Em resposta a essas transformações, muitos departamentos de pesquisa ingleses e australianos, além dos norte-americanos, interessavam-se pelas indústrias culturais. Os estudos culturais discutiam a divisão entre a “alta” e a “baixa cultura”, entre as “belas artes” - ou as obras do gênio - e a cultura “comercial”. Ao contrário da teoria crítica de Adorno e Horkheimer, Williams, Hall, Hoggart, entre outros, mostravam a importância das manifestações culturais diversas e a resistência das classes trabalhadoras por meio da cultura. Já na década de 1970, surgia mais uma corrente teórica, que inseria a política no cerne dos estudos culturais. Os principais pesquisadores australianos e ingleses, entre eles, Tony Bennett, usavam métodos de pesquisa qualitativa e um certo viés da arqueologia foucaultiana para analisar objetos como os meios de comunicação de massa, os museus e os direitos autorais. A ênfase recaía sobre os problemas de governo e a criação da liberdade individual (MILLER, 2009). Ora, quando a Austrália e o Reino Unido adotaram, oficialmente, a economia criativa como estratégia política, já havia uma consistente base teórica para que os pesquisadores desses países se debruçassem sobre o novo tema. 4. A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO CRIATIVO Quando surgiu na Inglaterra e na Austrália, o discurso sobre a Economia Criativa ressaltava o potencial transformador da cultura, que seria capaz de revitalizar cidades e países, atraindo investimentos e turistas. Além disso, havia uma ênfase, característica dos anos 1990, na “economia cognitiva”, que dizia que a troca de conhecimentos seria a principal fonte de recursos econômicos. Com isso, as relações empregatícias também mudariam: horários de trabalho mais flexíveis, relacionamentos mais informais entre colegas e entre empregados e empregadores, mais períodos de lazer. Essas características estariam presentes em todos os setores, das indústrias de base à produção cultural. No plano internacional, a economia se tornaria globalizada, com a ajuda de ferramentas digitais e das redes. Já nos anos 2000, essa retórica expandiu-se para os países emergentes. Nesse segundo momento, instituições internacionais como a UNESCO (2010) mostravam as melhorias sociais que poderiam ser obtidas por meio do investimento em atividades criativas, artísticas e culturais, uma estratégia relativamente barata para alavancar a economia de países africanos, orientais e latino-americanos. Todos esses enunciados ressaltavam uma inversão no pensamento econômico, que já não se restringia à extração de valor da força física dos corpos, tampouco tinha como

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base a escassez de recursos. A própria criatividade deixava de ser algo raro para transformar-se em um bem abundante – e, portanto, acessível a todos. Contudo, para Gil e Pratt (2008), apesar de o discurso sobre a economia criativa parecer democrático, a exploração do trabalho resiste, embora mude de aparência. Por trás da atividade de criação de artistas, designers, publicitários, entre outros profissionais, há a imposição dos empregadores em busca de objetivos mercadológicos. As horas de trabalho confundem-se com períodos de lazer, mas não deixam de atender às exigências capitalistas. Além disso, quando a criatividade se estende aos mais diversos domínios, as artes passam a ser apenas uma das fontes de ideias criativas. Para David Hesmondhalgh (2013), as indústrias culturais difundem signos (ou textos, como prefere o autor), porém, em grande parte das vezes, a motivação não vem da autonomia dos artistas, mas da estrutura das indústrias de comunicação de massa e digitais, com fins claramente comerciais. Oakley (2009), por sua vez, ressalta que as distinções sociais, de gênero e de classe também persistem e que, apesar da questão social ser sempre ressaltada nos discursos sobre economia criativa, os ganhos econômicos se sobrepõem aos outros objetivos, o que, por um lado, dá visibilidade às atividades artísticas e culturais, mas, por outro, ofusca seu caráter de resistência. No Brasil, a discussão crítica ainda é incipiente, uma vez que a Secretaria de Economia Criativa, nos moldes da instituição britânica, foi criada somente em 2012 e fechada em 2015. Mas o enunciado sobre as possibilidades de capturar os valores sociais e econômicos que emergem da criação se espalha por iniciativas privadas e órgãos públicos, como o Ministério e as Secretarias de Cultura. A demanda se manifesta nas metas de profissionalização do setor, nas contrapartidas, nos orçamentos e nos cronogramas de prêmios e editais, no discurso sobre a “economia da cultura” ou a “economia das artes”, entre outros exemplos. A diferença em relação ao estudo do tema pelos pesquisadores de origem anglo-saxônica é que a ênfase sobre a produção em série dos bens artísticos e culturais tende a ser menor. A proposta do governo brasileiro tem sido a de ressaltar a diversidade, que pode estar presente em um trabalho artesanal realizado em um pequeno povoado, nas linguagens que surgem na periferia, na tradição indígena ou nos diferentes gêneros artísticos (BRASIL, 2011). Essa abordagem abre a possibilidade de olhar para a questão de outro ponto de vista. A denúncia da exploração da força física ou mental dos trabalhadores, a luta de classes, e o ideal iluminista, que ainda ressoa na busca por autonomia artística em meio à banalização da criatividade, são caminhos válidos e já bastante aprofundados, mas eles referem-se principalmente à herança industrial, que é forte na Europa. Será que essa busca incessante pela criatividade não tem algo mais a dizer sobre a singularidade dos processos capitalistas da época atual? Será que eles ainda seguem os mesmos padrões do liberalismo econômico, como surgiu no século XVIII?

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5. EMPREENDEDORISMO E CAPITAL HUMANO Novamente, foi Foucault (2008), no final da década de 1970, que teve uma das primeiras percepções sobre uma mudança no sistema capitalista. Segundo o filósofo, quando o liberalismo econômico surgiu na Inglaterra, ele era uma forma de limitar o poder do Estado. Mas, após a segunda metade do século XX, principalmente a partir da ascensão do modelo norte-americano, o que funda o Estado passa a ser o próprio princípio econômico. A lógica predominante já não é a da livre troca de mercadorias, tampouco a do consumo ou do espetáculo, mas principalmente aquela do mundo empresarial, da concorrência. Analisando, então, a obra de economistas como Gary Becker, Foucault enfatizou a noção de “capital humano”: o trabalho é novamente inserido nas questões da economia, porém, não mais como algo fragmentado, a partir do qual se gera o valor de um bem ou serviço. O ponto de vista passa a ser o do empregado, que se transforma em um “sujeito ativo”: quais recursos ele tem a oferecer? Assim, o trabalho passa a ser também um capital, porque é um investimento em si mesmo, que gera uma renda ou salário, ao mesmo tempo em que é parte do processo produtivo. Como a organização do mercado de artes, desde o século XIX, já insinuava, esse trabalho não é somente o da força física, empregada nas fábricas, uma vez que o investimento é feito, cada vez mais, na forma de educação e cultura, e as riquezas emergem das relações interpessoais, da confiança e do risco. Por abordar o dessa maneira o “capital humano”, para Rogério da Costa (2008), o texto de Foucault apresenta uma das primeiras percepções sobre o capitalismo imaterial, aquele que, sem cessar de explorar os recursos naturais, volta-se para também para o conhecimento, a imaginação e o afeto. Com isso, para além da aparente contradição entre a força física e a atividade mental (que, de fato, não ocorre, uma vez que não há separação possível entre essas duas instâncias)4, o trabalho ultrapassa as paredes das fábricas e dos escritórios, e espalha-se pelos domínios da vida. Isso acontece porque não se pode parar de pensar ou de imaginar e porque as ocupações profissionais exigem cada vez mais o uso do afeto nos cuidados com os outros, nos serviços, nas comunicações, o que faz com que os processos de subjetivação também sejam cada vez mais requisitados. Se, na tradição estética, os artistas (ao contrário dos artesãos) são aqueles que se voltam à própria subjetividade para criar suas obras, quando cada pessoa se torna um empresário de si mesmo, um empreendedor, ou aquele que investe a própria vida em busca de riquezas, as distâncias entre o trabalho e a criação diminuem. As artes integram-se, em grande parte, aos processos produtivos em geral, de forma que os artistas passam a ser vistos também como potenciais empreendedores. E, desta vez, não se trata apenas de uma questão retórica. Segundo a filosofia de Spinoza (2009, p. 100), na qual boa parte da discussão sobre o capitalismo imaterial está fundamentada, mente e corpo são a mesma coisa, “concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão” 4

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Na prática, o circuito brasileiro exige cada vez mais dos artistas conhecimentos de economia, resultados financeiros e sociais. Mesmo os editais públicos não cessam de avaliar projetos com base em retornos para a sociedade e em contrapartidas. Os discursos políticos não se cansam de ressaltar a importância de “profissionalização do setor” e de propor mapeamentos e indicadores. Por sua vez, na busca por atenção ou por recursos, as correntes artísticas correm o risco de se fecharem em ciclos de financiamento ou em linguagens cada vez mais específicas, que geram especializações também da crítica ou do público. É claro que circuitos assim sempre ocorreram, mas, atualmente, é necessário cuidado para que não se percam elos mais frágeis dessa cadeia, como a educação e a formação de público. E esse esforço é possível porque, apesar de um cenário cada vez mais tomado pelo pensamento empresarial, e das críticas mais pessimistas, a arte não pode perder por completo seu caráter de resistência. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A POTÊNCIA DA CRIAÇÃO Foucault dizia que há uma política que atua sobre a vida, sobre os corpos do regime industrial ou sobre o pensamento. É a biopolítica, que, com suas técnicas de governo e seus processos de subjetivação, busca conduzir as condutas individuais. Como visto, esse mecanismo já estava presente nos museus e teatros do século XIX. Mas um grupo de filósofos contemporâneos, formado por Negri, Hardt, Lazzarato, entre outros, propõe uma atualização nos conceitos lançados por Foucault. Os pesquisadores diferenciam a “biopolítica”, o poder que se exerce sobre a vida, do “biopoder”, ou a potência da vida em si mesma. De herança spinozista, eles ressaltam o poder de afetar e de ser afetado e a capacidade humana de se compor com as pessoas a sua volta, criando novas possibilidades (PELBART, 2002). De fato, para Spinoza (2009, p. 105), todos os seres se esforçam para perseverar em sua existência, e é essa a própria essência da vida. Só que, ao contrário do que essa definição possa parecer à primeira leitura, o filósofo não entendia a “essência” como algo imutável, uma vez que o corpo e a mente são compostos de “muitos indivíduos”. Ou seja, as pessoas estão sempre em relação com outras pessoas e com os objetos que as rodeiam, compondo-se (ou, por vezes, “decompondo-se”). Essa potência da vida em perseverar por meio da composição é anterior a qualquer modelo econômico. Por isso, Negri ressalta que, quando um poder se exerce sobre ela, abre-se, por outro lado, a possibilidade de que sua força se manifeste. Como sugeria Tarde (1976), o ato de criar também promove composições entre ideias já existentes e, desses entrelaçamentos, produz algo novo, singular. É por meio de um processo chamado de “imitação” que a “criação” se espalha pela sociedade. Seus efeitos são infinitos, porque sempre levam a novas combinações, e abertos a todos, porque promovem novos “encontros”, novos “possíveis” (LAZZARATO, 2006, p. 47).

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Em uma entrevista concedida já no final de sua vida, Borges (2009; 2010) diz que o trabalho dos artistas consiste em transformar em signos, em linguagem verbal ou não, tudo o que há em sua volta. Como no Aleph, que contém em si todo o universo, a criação remete sempre a obras anteriores e futuras, mas também é aberta a novas leituras e se renova a cada instante. Essa é uma bela potência do ser humano: a capacidade de imaginar. E ela não é algo intangível, pelo contrário, é capaz de atualizar as coisas do mundo, promover modos de viver e de pensar, que afetam o dia a dia das pessoas. Ocorre que é também a potência da criação que faz com que o artista nunca descanse, “nem mesmo enquanto sonha” (idem, 2010). E são dessas duas características que o capitalismo atual busca se apropriar: a força da criação e seu trabalho permanente. Em suas diversas vertentes, os enunciados sobre economia criativa ou economia da cultura investem sobre essa potência que se espalha pela sociedade para extrair dela recursos sociais ou econômicos. Assim como a própria vida, a criação, que é multiplicidade, também pode ser capturada pelo sistema capitalista na forma de direitos autorais, das grandes corporações midiáticas, das obras com caráter predominantemente comercial. Porém, essa perspectiva não retoma, necessariamente, os debates sobre a autonomia artística e a exploração dos trabalhadores nos moldes fordistas, há outros caminhos. No caso específico dos artistas, pode-se pensar na apropriação, por parte do capitalismo, de uma riqueza que emerge do esforço diário em busca da realização das obras, por meio da cooperação e das redes – entendidas aqui, não somente em sua dimensão virtual ou digital, mas também física, material, aquela dos encontros do cotidiano. Contudo, quando se pensa nas redes, é possível ver também que pequenos acontecimentos (uma peça encenada em um teatro pouco conhecido ou uma nova composição musical) tendem a se proliferar por meio dos laços e dos nós, das justaposições entre as linguagens, do crescimento dos signos. O desafio é abrir espaços para a emergência desses acontecimentos, de modo que se expanda plenamente a potência humana de criar.

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DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA O MUNICÍPIO DE GRAVATAÍ/RS Simone Luz Ferreira Constante1 RESUMO: este artigo apresenta alguns desafios enfrentados na construção de políticas culturais para o município de Gravataí, localizado na Região Metropolitana da capital do Rio Grande do Sul. Ao analisar o processo de implementação de seu Sistema Municipal de Cultura, foram enfatizadas as etapas de criação do Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais, resultantes da pesquisa intitulada Cidades Culturais: novos rumos para a gestão cultural em Gravataí/RS. São apresentados alguns conceitos teóricos de Administração Pública da Cultura, Políticas Culturais e Indicadores culturais. Como instrumentos metodológicos, a pesquisa utilizou observação participante, pesquisa documental, questionários semiestruturados e entrevistas em profundidade. O produto final desta pesquisa é o diagnóstico do cenário cultural de Gravataí/RS. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Diagnóstico Cultural, Gestão Cultural, Indicadores Culturais, Sistema Municipal de Cultura

1. INTRODUÇÃO O Brasil vem passando por um momento de profundas transformações na forma de gerir o campo da cultura. Com a criação do Ministério da Cultura, em 1985, e a Constituição Cidadã, em 1988, o país assumiu o compromisso de mudar o paradigma da gestão cultural em todos os níveis de governo. Com o desmembramento do Ministério da Educação e Cultura (MEC), a área da cultura ganhava maior autonomia administrativa, econômica e jurídica, o que possibilitou o desenvolvimento de políticas culturais para o fomento e incentivo das mais diversas áreas e manifestações artísticas, formas de expressão da cultura nacional, preservação do patrimônio histórico, arqueológico, artístico e nacional. O Ministério da Cultura (MinC) assumia a Administração Pública da Cultura em nível federal, sendo o órgão responsável pela criação e o gerenciamento de políticas públicas para o campo cultural desde então. Mestranda em Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), com bolsa CAPES/PROSUP; Especialista em Gestão Cultural pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC RS); Bacharel em Comunicação Social / Relações Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Tecnóloga em Produção Audiovisual – Cinema e Vídeo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É Vice-Presidente do Conselho Municipal de Política Cultural de Gravataí. E-mail: [email protected]

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Paralelamente, o país vivia um momento de democratização das esferas políticas e maior consciência sobre a importância da cidadania para a consolidação de um Estado em que direitos e deveres tivessem pesos mais equilibrados. Com a criação de um dos principais marcos regulatórios para a construção de uma política cultural nacional, a Constituição Federal de 1988, através do trecho explicitado pelo Artigo nº 215 “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, inicia uma série de mudanças em relação à sistematização da área, institucionalização das políticas culturais, incremento de recursos humanos, técnicos, estruturais e financeiros, além da criação e implementação de políticas públicas de cultura. A cultura, portanto, passava a ser vista como um direito dos cidadãos e tornava-se objeto de políticas públicas e sua gestão uma obrigação do poder público. Segundo Néstor García Canclini (2005), políticas culturais são um conjunto de intervenções do Estado, juntamente com outras organizações da sociedade civil, com a finalidade de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as necessidades culturais da população e obter consenso para a transformação social. Para Antônio Rubim (2007), fazer política cultural é estabelecer uma intervenção estatal, conjunta e sistemática, abrangendo diferentes áreas da cultura, atores coletivos e metas. Com o intuito de garantir os direitos culturais de todos os cidadãos brasileiros, anos mais tarde o Ministério da Cultura instituiu o Sistema Federal de Cultura (SFC), o qual posteriormente passou a chamar-se Sistema Nacional de Cultura, tendo como objetivos iniciais: integrar os órgãos, programas e ações culturais do Governo Federal; contribuir para a implementação de políticas culturais democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e sociedade civil; articular ações com vistas a estabelecer e efetivar, no âmbito federal, o Plano Nacional de Cultura; e promover iniciativas para apoiar o desenvolvimento social com pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional. O Governo Federal reconhecia que o campo da cultura precisava ser estruturado, institucionalizado e profissionalizado. Era urgente uma proposta de gestão articulada e compartilhada entre Estado e sociedade, integrando os três níveis de governo, capaz de instituir processos decisórios democráticos, intra e intergovernos, com uma atuação pactuada, planejada e complementar. A essência do Sistema Nacional de Cultura estava no modelo tripartite de federalismo e na forma de organizar e equilibrar o direito à fruição e produção da cultura pelos cidadãos brasileiros. A partir de instâncias de participação e controle social, o poder público estabeleceu um formato político-administrativo mais estável e resistente às alternâncias de poder, organizando de forma sistemática suas políticas e recursos. Constituiu-se, assim, uma política de Estado, ao invés de uma política de governo.

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2. A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS CULTURAIS Formular políticas culturais implica em novas práticas, legislações e organizações da cultura. Nesse sentido, quando falamos em políticas públicas, devemos pensá-las como instrumentos de gestão, devendo ser formuladas e gerenciadas através de etapas administrativas como: planejamento, execução, monitoramento e avaliação. São exemplos de instrumentos: planos, programas, ações e atividades. A tomada de decisões deve ser baseada pela análise e conhecimento do contexto no qual se pretende atuar, de forma a antever os problemas e soluções, identificar oportunidades e ameaças, negociar considerando as forças e fraquezas, buscando mensurar e avaliar os resultados. Segundo Teixeira Coelho a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável (COELHO, 1997, p. 293). O Estado, através da criação e estruturação de órgãos gestores da cultura em nível federal, estadual e municipal, deve assumir a tarefa de planejar e fomentar as atividades culturais, garantir o acesso universal aos bens e serviços culturais, preservar e valorizar o patrimônio cultural, material e imaterial, e efetivar marcos regulatórios no âmbito da diversidade cultural, direitos autorais e economia da cultura. Nesse contexto, o órgão gestor da cultura nos municípios passou a ser o responsável pela gestão e execução dos Sistemas Municipais de Cultura, ou seja, pela coordenação das ações, criação e regulamentação dos marcos regulatórios, implantação de um programa de formação na área cultural, estruturação de mecanismos de financiamento à cultura, além da formulação de indicadores que sirvam como instrumentos de monitoramento e avaliação das políticas públicas de cultura. Todavia, é evidente que o campo da cultura apresenta algumas especificidades que tornam esse processo mais complexo, por lidar com aspectos intangíveis e sensoriais, gerar produtos de valor material e imaterial, serviços com alto valor agregado, atuar no plano do simbólico e do estético. A necessidade de planejamento e organização é vital para uma boa gestão, ou seja, para se conseguir a melhor relação entre recurso, ação e resultado. No entanto, a prática dos órgãos públicos gestores da cultura demonstra que o campo de atuação é pouco organizado, faltam marcos regulatórios, há excesso de burocratização e pouca formalização profissional por parte dos agentes com quem interage. Além disso, os recursos são escassos, sejam eles materiais, humanos ou financeiros, além de servirem para atingir fins definidos, geralmente subordinados ao poder político. A primeira etapa da gestão é o planejamento, que deverá estar baseado no conhecimento do contexto e da realidade em que se pretende atuar. Isso implica na necessidade de se fazer, previamente, um diagnóstico da área da cultura, levantando dados importantes para embasar a

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tomada de decisões. O gestor deve tomar como ponto de partida o reconhecimento do seu território, baseado no diagnóstico aprofundado, a fim de conhecer os diferentes atores sociais que interagem nesta relação. Ao realizar uma coleta sistemática de informações sobre o campo cultural do território que gerencia, precisa definir instrumentos de aferição quantitativa e avaliação qualitativa, os quais apresentarão dados capazes de conferir sentido aos fenômenos culturais. Para isso, o Sistema Nacional de Cultura sugere como ferramenta de monitoramento e avaliação das políticas públicas de cultura os Sistemas Municipais de Informações e Indicadores Culturais. Para o IBGE (2006), indicador cultural é um instrumento capaz de produzir conhecimento relevante sobre a realidade, traduzido em forma de estatística, de forma a sintetizar a informação, referindo-se ao tempo, ao espaço e aos segmentos sociais de forma articulada com uma temática. A pesquisa MUNIC, realizada por esse Instituto em 2006, foi um exemplo de levantamento de dados capaz de gerar informações estatísticas e indicadores de monitoramento das ações do Ministério da Cultura. A construção dos indicadores fomentou estudos, pesquisas e publicações, fornecendo informações relevantes sobre o campo da cultura para os órgãos governamentais e privados, subsidiando o planejamento e a tomada de decisões. Ao coletar e sistematizar os dados estratégicos sobre o campo cultural, o gestor estará subsidiado para produzir índices e indicadores relativos à sua área de atuação, o que lhe permitirá elaborar, acompanhar e avaliar determinadas políticas, programas ou projetos, ao comparar objetivos previamente estabelecidos e resultados alcançados. Além disso, do ponto de vista político, os indicadores culturais auxiliam o gestor no monitoramento dos avanços e retrocessos da sua gestão, impactando diretamente na sua tomada de decisões. 3. MEUS CAMINHOS INVESTIGATIVOS Minha atuação no cenário cultural do município de Gravataí teve início no ano de 1996, quando tive a primeira vivência no universo das artes, transitando pela dança, teatro e cinema. Percebi muitas dificuldades no campo artístico e decidi me engajar no movimento cultural para mudar essa realidade. Com o ingresso no mundo acadêmico, fui provocada a pensar em uma esfera mais ampla do campo das artes, com foco nos processos de planejamento de projetos, comunicação e marketing, produção cultural e gestão de recursos. As experiências profissionais como Produtora e Gestora Cultural, primeiramente no terceiro setor, seguida pela iniciativa privada, me impulsionaram a buscar mais capacitação na área de gestão. Em 2012, ingressei no Curso de Especialização em Gestão Cultural, junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC RS). Na época, já atuava como Conselheira Municipal de Cultura de Porto Alegre e, em 2013, fui contemplada com uma vaga no Curso de Extensão em Administração Pública da Cultura, promovido pela Escola de Administração da UFRGS, em parceria com o Ministério da Cultura, sendo essa uma capacitação para gestores e

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conselheiros. E foi a partir da necessidade de desenvolver um projeto de conclusão de ambos os cursos que surgiu a ideia do projeto Cidades Culturais, como uma ferramenta de assessoramento dos municípios para o gerenciamento das políticas públicas de cultura. O município escolhido como objeto de análise foi Gravataí, pois entendi que deveria dar esse retorno à comunidade cultural em que comecei minha carreira artística e que tanto carecia de sistematização do campo da cultura e formulação de uma política cultural consistente e continuada. Ao procurar o órgão gestor da cultura em nível municipal, a Fundação Municipal de Arte e Cultura (Fundarc), e o Conselho Municipal de Cultura (CMC), em abril de 2013, apresentei minhas intenções com a pesquisa. Os dois órgãos gestores informaram que o município ainda não tinha aderido ao Sistema Nacional de Cultura, tampouco estruturado esta sistematização no município, e manifestaram grande interesse em colaborar com a pesquisa. Essa integração me oportunizou o convite para assumir a Coordenação de Projetos e Eventos da Fundarc. Na sequência, fui indicada para representar o Poder Público Municipal no Conselho Municipal de Cultura e assumi o cargo de Secretária Executiva deste importante órgão de controle social. Diante da pesquisa que pretendia realizar, fui incumbida como Responsável Técnica pela implementação do Sistema Municipal de Cultura de Gravataí, sendo intermediadora junto ao Sistema Nacional de Cultura, gerenciado pelo Ministério da Cultura. Também em 2013, fui eleita Delegada Municipal para participar da 4ª Conferência Estadual de Cultura do RS, realizada em Lajeado, junto com outros colegas conselheiros da sociedade civil. Lá, por sua vez, fui eleita Delegada Estadual para representar os dirigentes de cultura na 3ª Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília, acompanhada por amigos e gestores do Conselho dos Dirigentes Municipais de Cultura do RS (CODIC/ FAMURS). A atuação como delegada me permitiu conhecer e discutir as políticas culturais que são pensadas e implementadas em diferentes regiões do país, identificar dificuldades comuns entre artistas, gestores e demais profissionais do campo, pensar e propor caminhos possíveis para essa mudança estrutural e a efetivação de políticas de Estado e não de “governos”. Com o aceite da parceria junto à Fundarc e ao CMC, foi estruturado um projeto para assessorar o município na sistematização de informações estratégicas sobre o campo da cultura, através de diagnóstico aprofundado sobre o cenário local, coleta de dados qualitativos e quantitativos e da formulação de indicadores culturais, os quais serviriam como instrumentos de proposição, monitoramento e avaliação das políticas públicas de fomento à cultura, sendo um embrião do Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais. Intitulado Cidades Culturais: novos rumos para a gestão cultural em Gravataí/RS, em 2014, o projeto foi contemplado pelo Edital SEDAC nº 11/2013 - Concurso “Desenvolvimento da Economia da Cultura Pró-cultura RS FAC”, na categoria pessoa física, finalidade Indicadores, Pesquisa e Capacitação, que tinha como objetivo a seleção de projetos que envolvessem

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ações de formação, capacitação, levantamentos de dados e mapeamento, possibilitando promover conhecimentos e experiências. Com isso, a Secretaria de Estado da Cultura, através do Fundo de Apoio à Cultura do RS (PRÓ-CULTURA RS FAC), Lei nº 13.490/10, financiou os recursos humanos, técnicos e financeiros necessários para a plena realização do projeto. É de fundamental importância destacar que esse mecanismo de fomento à cultura possibilitou a realização de uma gama de projetos voltados para a pesquisa, produção de informações e indicadores, fortalecimento da gestão, circulação e distribuição de produtos culturais, difusão da memória e do patrimônio cultural do Rio Grande do Sul. Além de mim, muitos outros gestores, produtores, artistas e pesquisadores puderam viabilizar ideias criativas e inovadoras, projetos artísticos sem apelo comercial, propostas de gestão e participação social. Diferentemente do que buscam empresas e instituições financiadoras de projetos culturais através das leis de incentivo à cultura, as quais visam o benefício fiscal para o patrocínio dessas iniciativas, além da visibilidade de suas marcas institucionais através da difusão/circulação/comercialização dos produtos e eventos culturais. Os Fundos Públicos de Cultura buscam fomentar e viabilizar financeiramente diferentes projetos de desenvolvimento da cultura, sem essa necessidade de retorno de marketing ou até mesmo financeiro a seus patrocinadores. Sendo assim, faço questão de frisar que sem o apoio financeiro do Fundo de Apoio à Cultura do RS, provavelmente esse projeto não teria sido realizado e o município de Gravataí seguiria sem um diagnóstico que permitisse aos órgãos de gestão e controle social um direcionamento sobre quais políticas culturais deveriam ser criadas e desenvolvidas em nível local. 4. O PROCESSO DE REALIZAÇÃO DA PESQUISA Uma das primeiras dificuldades encontradas para iniciar o projeto de pesquisa que visava a realização de um diagnóstico completo do cenário cultural gravataiense foi a falta de recursos humanos, técnicos e financeiros por parte da Fundarc para me dar apoio na coleta dos dados. Havia poucas informações organizadas sobre a comunidade cultural e os projetos já realizados pela instituição, parte da documentação e memória institucional foi perdida ao longo das trocas de gestões de diferentes governos opositores, além de um desconhecimento sobre quantas e quais entidades, grupos e organizações culturais existiam na cidade. Em um primeiro momento, fiz um levantamento em sites de busca na internet, para encontrar organizações, empresas e grupos culturais de Gravataí, para os quais foi enviado e-mail com formulário anexo. Fiz consultas aos arquivos documentais da Fundarc, aos servidores públicos e líderes da comunidade cultural para buscar maiores informações sobre os públicos de interesse para os cadastros. Disponibilizei cópias impressas a todos os interessados, sendo o formulário aplicado em todos os quatro workshops realizados pelo projeto Cidades Culturais, durante os Fóruns Setoriais de Cultura, a 4ª e 5ª Conferências Municipais de Cultura, além de

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outros eventos de formação realizados pela Fundarc. O mesmo formulário também ficou disponível na versão digital na web, através de link no blog do projeto Cidades Culturais2, visando facilitar a participação dos usuários online. As pessoas mostraram-se resistentes ao preenchimento do cadastro, talvez por desconfiança de pesquisas em geral e do que será feito com suas informações pessoais, ou mesmo por não compreenderem a importância de um levantamento como esse para a sistematização do campo da cultura.A grande maioria preferiu preencher o formulário impresso, até mesmo porque uma boa parte dos agentes tem dificuldade em operar ferramentas digitais ou não tem livre acesso à internet. Ao final da etapa de cadastramento, percebi que o número de agentes culturais cadastrados era ínfimo diante da quantidade de pessoas envolvidas com as instituições culturais da cidade, especialmente no que se refere aos centros de tradições gaúchas (CTGs), casas de povos de terreiros e escolas de samba, que são os segmentos de maior expressividade do município. No que tange às organizações culturais, percebi um certo desinteresse em preencher o cadastro no primeiro momento, necessitando muita insistência para a adesão e colaboração dos gestores. Mesmo assim, um grande número de formulários foi preenchido de forma incompleta, especialmente nas questões que envolviam a descrição do processo de gestão da instituição, infraestrutura física e sustentabilidade financeira. Poucos formularam respostas na questão que perguntava sobre a contribuição da instituição para o desenvolvimento cultural do município, além de não conseguirem responder ao certo se já haviam firmado parcerias ou participado de atividades com a Fundarc. De forma geral, todas as etapas do projeto foram cumpridas entre abril de 2013 e outubro de 2015, sendo essas: • Levantamento de informações sobre os marcos legais, mecanismos de fomento, políticas públicas, órgãos de controle, equipamentos culturais e patrimônios; • Aplicação do questionário individual “Cadastro Municipal de Agente Cultural”, junto aos artistas, técnicos, produtores, educadores, empresários, gestores, associados de entidades e outros parceiros da cultura. Até o momento, foram cadastrados 630 agentes culturais; • Aplicação do questionário “Cadastro Municipal de Organização Cultural” junto aos gestores de organizações culturais, empresários e microempreendedores locais. Até o momento, foram cadastradas 145 organizações culturais de Gravataí. O intuito dos questionários foi mapear todas as iniciativas culturais da cidade, conhecer o perfil,

A Revista Digital com o diagnóstico completo e todos os dados tabulados, bem como os vídeos das entrevistas podem ser acessados através do Blog do projeto, disponível pelo link: www.projetocidadesculturais.blogspot.com

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formação, experiências profissionais, atividades desenvolvidas, sustentabilidade das entidades/grupos/empresas, saber o que esperam da cultura em Gravataí e muito mais; Os participantes, pessoas físicas e jurídicas atuantes na área da cultura, receberam um número de registro no Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais de Gravataí; Gravação de entrevistas filmadas com uma amostra de 12 gestores culturais do município; Edição dos vídeos das 12 entrevistas e produção de um filme minidocumentário sobre a gestão cultural do município; Análise dos dados e formulação dos indicadores culturais de Gravataí; Divulgação dos resultados da pesquisa através de publicação eletrônica, vídeo documentário e do blog do projeto.

5. OS DESAFIOS DA IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA Um dos desafios foi articular os diversos agentes culturais para participar do processo de implantação deste Sistema, de forma a demonstrar sua real importância para o desenvolvimento da cultura no Município. Para isso, a capacitação ocorreu, primeiramente, com o quadro funcional da Fundação, para que pudessem ser os multiplicadores dessas mudanças e benefícios. O segundo passo foi engajar o Conselho Municipal de Cultura como um parceiro da Fundarc, com o intuito de discutir e planejar diretrizes e ações estratégicas para compor o Plano Municipal de Cultura, buscando assim um direcionamento para as políticas públicas de fomento à cultura para os próximos anos da gestão. Essa etapa teve como complicador o fato do Conselho ser um órgão criado recentemente, ainda sem prática de formulação de políticas públicas e com pouca articulação com os segmentos culturais que representa. O processo de diálogo e deliberação por parte dos conselheiros ainda é restrito, assim como o papel de fiscalização da gestão pública. Tanto o Conselho, quanto o Fundo Municipal de Cultura, foram criados no ano de 2010, através da Lei nº 3.008, durante a III Conferência Municipal de Cultura. Após a criação desses marcos legais, em 2011 a Fundarc iniciou o processo de criação do Plano Municipal de Cultura, reunindo a sociedade civil e o Poder Público durante os meses de maio e junho para discutir os rumos da cultura no Município. Ao todo, foram realizadas 10 Pré-Conferências, a partir das quais foram elaboradas e sintetizadas as propostas de ações de cada segmento cultural organizado. Entre os meses de maio e junho de 2013, foram realizados 10 Fóruns Setoriais de diversos segmentos culturais. Os encontros revisaram as propostas elaboradas no ano de 2011 e atualizaram essas demandas, transformando-as em diretrizes. Essas proposições foram transformadas em quatro diretrizes, 21 estratégias e 154 ações estratégias, compiladas no formato de

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texto-base do Plano Municipal de Cultura e apresentadas durante a IV Conferência Municipal de Cultura, sendo foi aprovado por unanimidade pela comunidade cultural presente. Nesse contexto, a IV Conferência Municipal de Cultura serviu como uma instância de rearticulação, diálogo e balizadora de interesses comuns. A nova configuração do Conselho permitiu que áreas estratégicas do Poder Executivo Municipal ocupassem cadeiras representativas da transversalidade, nas áreas de educação, desenvolvimento econômico e turismo, comunicação social, governança comunitária, captação de recursos, dentre outras, a fim de que fossem parceiras na implantação do Plano e do Sistema como um todo. Além disso, os conselheiros foram preparados para assumir a função, de forma que compreendessem que o seu papel é maior que deliberar sobre a aprovação de projetos e o gasto de recursos. A etapa posterior foi analisar o planejamento e pensar os demais componentes do Sistema, dentre eles o Programa Municipal de Formação Cultural, os Sistemas Municipais Setoriais de Cultura, além das reformulações necessárias no Sistema Municipal de Financiamento à Cultura, ainda compreendido somente como Fundo Municipal de Cultura.  Depois de um grande esforço coletivo entre Fundarc, Conselho e a comunidade cultural, em junho de 2014, foi promulgada a Lei nº 3.484/2014 que instituiu o Sistema Municipal de Cultura de Gravataí (SMC). Todo o processo de planejamento da estrutura deste Sistema e construção do projeto de lei, em conformidade com o que determinava o Ministério da Cultura, foi feito de forma conjunta, entre servidores da Fundarc e a nominata do Conselho Municipal de Cultura na gestão 2013-2015.  Após a realização da 5ª Conferência Municipal de Cultura, no ano de 2015, a Fundarc encaminhou o projeto de lei que institui o Plano Municipal de Cultura para a análise e aprovação dos Conselheiros de Cultura. Composto pela síntese do diagnóstico produzido pelo projeto Cidades Culturais e pelo texto-base com as diretrizes, metas e ações aprovadas em 2013. Após revisão do CMPC, o documento foi encaminhado pela Fundarc à Procuradoria Geral do Município, para revisão final e posterior envio à Câmara Municipal de Vereadores, com o intuito entrar em vigor em 2016, tendo sua vigência até 2025. Dentro do cenário regional, Gravataí também vem se consolidando como um dos municípios com o processo de construção do Plano Municipal de Cultura mais democrático, envolvendo a sociedade civil em todo o processo e dando protagonismo ao Conselho de Cultura como mediador. As Conferências tornaram-se espaços privilegiados para o debate e o planejamento das políticas culturais de forma coletiva, principalmente por serem antecedidas por diversos Fóruns promovidos pelos mais variados segmentos artístico-culturais do município. Quanto aos Sistemas Setoriais de Cultura, constatei que o município possui uma grande efervescência cultural, nas mais diversas áreas e expressões artístico-culturais. São diversos os grupos artísticos com ou sem caráter comercial, juridicamente constituídos ou informais, inte-

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grados através de associações, clubes, companhias e outras formas de organização cultural. A maioria desses grupos atua de forma isolada, sem constituir algum tipo de colegiado setorial. Não há sindicatos de representação artística em nível municipal, porém existiu, no período de 1986 a 1994, uma primeira Associação dos Artistas Gravataí, que visava integrar artistas de todos os segmentos artísticos com expressão na cidade. Essa entidade foi extinta em 1994 com a criação da Fundarc, que assumiu a missão de integrar todas as áreas artísticas, contando com a representação da Sociedade Civil em sua gestão através do Conselho Consultivo. Na sequência, com a criação do Conselho Municipal de Cultura e, posteriormente, transformação em Conselho Municipal de Política Cultural, os segmentos artísticos ganharam força e passaram a realizar encontros sistemáticos, principalmente nas reuniões mensais deste órgão. Através da institucionalização dos Sistemas Municipais Setoriais de Cultura, a proposta é reconhecer, formalizar e garantir o trabalho continuado dos agentes e organizações culturais atuantes no município. Através dos Fóruns Setoriais de Cultura que já acontecem na cidade desde 2011, o intuito principal é de que sejam realizados encontros, formações e diálogos permanentes, principalmente nos períodos entre as Conferências, para que todos os segmentos artístico-culturais possam acompanhar e fiscalizar as ações executadas do Plano Municipal de Cultura, além de fazer a interlocução dos seus representantes no Conselho Municipal de Política Cultural. Mais futuramente, a meta é segmentar o Plano Municipal em Planos Setoriais de Cultura, bem como criar linhas específicas de fomento e financiamento junto ao Fundo Municipal de Cultura e a futura Lei Municipal de Incentivo à Cultura.  Com relação à cadeia produtiva da cultura, foram cadastradas 630 pessoas, sendo que a maioria dos agentes culturais é do gênero feminino (55%), declara sua cor/raça branca (48%), reside em Gravataí (95%) e está concentrada em duas regiões da cidade, nos bairros Morada do Vale I (66) e Centro (58). A maioria também informou não ter nenhum tipo de formação na área da cultura e não respondeu se atua profissionalmente na área cultural. Dentre os segmentos artístico-culturais mais citados estiveram o tradicionalismo gaúcho, música, dança, teatro, carnaval, artesanato, artes visuais e literatura.  Quanto à escolaridade, 37% declararam formação de ensino médio/técnico e 31% ensino superior, o que demonstra uma boa qualificação dos respondentes. Apesar dos cursos de graduação, em sua maioria, não serem ligados à área da cultura, 8% declarou ter curso de pós-graduação/especialização, sendo grande parte de cunho cultural. Com relação à formação na área da cultura, muitos dos respondentes já haviam participado de algum tipo de oficina na área artística e/ou produção cultural, todavia declaravam não possuir formação. Da mesma forma, ao comparar as respostas de um mesmo entrevistado, percebi que produtores, gestores de entidades e artistas já consagrados na cidade não consideram que atuam profissionalmente na área da cultura. Ao avaliar os discursos de muitos artistas, concluí que só consideram profissionais na

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área da cultura aqueles que conseguem ter uma carreira artística sustentável, não necessitando ter outro tipo de emprego e/ou fonte de renda. Quanto à distribuição geográfica, identifiquei que a minoria dos pesquisados reside nos bairros mais periféricos ou rurais do município, caracterizando alguns bairros urbanos com maior efervescência cultural, como é o caso do Bom Sucesso, Santa Cruz, Vera Cruz, Morada do Vale II, Salgado Filho, São Geraldo, Parque dos Anjos, Jansen, Cohab’s e São Vicente. Também participaram poucos agentes culturais residentes em outros municípios como Cachoeirinha, Canoas, Esteio, Glorinha, Igrejinha e Porto Alegre, os quais trabalham e/ou atuam culturalmente em Gravataí. Como caminhos para o desenvolvimento de políticas públicas afirmativas, notei que 38% dos respondentes não declarou sua cor/raça, o que demonstra baixa afirmação étnica e/ ou racial no município. Já o aspecto gênero indica boas possibilidades de ações voltadas para a produção cultural feminina.  No que concerne à formação, é preciso oferecer mais atividades de capacitação através do Programa Municipal de Formação na Área da Cultura, sobretudo direcionada aos segmentos artístico-culturais mais representativos. No âmbito geral, é necessária uma política de fomento e incentivo à economia da cultura em nível local, estimulando atividades específicas da cadeia produtiva, já que 65% das pessoas não conseguiu responder se atua ou não profissionalmente na área da cultura. Com relação ao patrimônio cultural, conta com apenas seis bens móveis tombados como patrimônio histórico municipal e 47 bens móveis inventariados. O município ainda não possui bens culturais tombados em nível estadual e federal, mas três instituições estão batalhando por seus tombamentos e registros: Casa dos Açores do Estado do Rio Grande do Sul (CAERGS), busca tombamento material e registro imaterial; Associação Cultural e Beneficente Seis de Maio (único Clube Social Negro do município), busca  registro imaterial;  e  Federação Gaúcha de Laço, que busca reconhecer a prática do tiro de laço como patrimônio cultural imaterial do país. 6. RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a conclusão da pesquisa, percebi que a principal fraqueza do município é a falta de uma política cultural definida, que possa guiar as ações do Poder Público Municipal. O município não se caracteriza por investimentos na área da preservação e difusão do seu patrimônio histórico e cultural, tanto em relação aos bens materiais, quanto à memória e cultura imaterial. Recentemente, vem ampliando suas ações no que se refere ao desenvolvimento turístico da cidade, todavia com ações muito restritas à produção de material de comunicação informativo e fóruns de debate sobre o turismo rural e cultural, o que não caracteriza Gravataí como um município atrativo turisticamente para a realização de eventos e produção artísticas até o momento.

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Tampouco mostrou-se desenvolvido no que se refere à economia da cultura, pois a maioria dos agentes culturais não consegue atuar profissionalmente na área, nem mesmo as organizações culturais conseguem ser autossustentáveis, pois a cadeia produtiva da cultura é pouco estimulada e recebe poucos recursos financeiros e técnicos. Um fator que influencia nessa questão é a inexistência de uma Lei Municipal de Incentivo à Cultura que ofereça benefícios fiscais para o grande número de empresas instaladas na cidade, as quais poderiam patrocinar projetos de agentes e organizações locais. O Fundo Municipal de Cultura, apesar de já ter sido implantado e regularizado, contou com apenas dois editais de fomento a projetos culturais realizados pela sociedade civil (2012 e 2014), com recursos financeiros escassos e sem um departamento ou equipe responsável por gerenciá-lo, além de depender exclusivamente do repasse anual por parte do Governo Municipal. A ausência de uma Lei Municipal de Incentivo à Cultura também reduz o potencial de investimento das indústrias e empresas locais em projetos e iniciativas culturais, assim como em manutenção e programação de espaços culturais no município. Mesmo diante de tantas dificuldades, este projeto entregou à cidade uma grande quantidade de informações estratégicas sobre o campo da cultura local, que foram coletadas, tabuladas e analisadas, sendo todos os dados quantitativos e qualitativos apresentados no formato de Revista Digital, acessível gratuitamente pelo blog do projeto. Também foram entregues à Fundarc, à Secretaria de Estado da Cultura e ao Ministério da Cultura as versões impressas da Revista Digital, além de DVDs com todos os dados compilados e os vídeos das entrevistas com os gestores culturais. É necessário agora que a Fundarc providencie um sistema digital para disponibilização desses dados ao público, de forma a permitir que novos agentes e organizações também se cadastrem ou aqueles que já tiverem cadastro possam atualizá-los. Sem dúvida, a tomada de decisões da gestão pública estará muito mais embasada, a partir da contextualização do campo e da análise cuidados destes dados, fundamentais para o conhecimento da realidade e dos segmentos com maiores necessidades, para fins de planejamento dos investimentos de recursos e de políticas públicas de fomento. A partir dos formulários preenchidos pelas organizações culturais, dos relatos sobre o histórico das políticas culturais e análise do cenário de cada segmento artístico-cultural feita pelos gestores em suas entrevistas filmadas, será possível a antecipação dos possíveis problemas, a definição das forças e fraquezas da cultura no município, bem como das oportunidades e ameaças do contexto externo. Percebo que o desafio maior ainda está por vir, que é a execução dessas políticas públicas de cultura. Garantir autonomia administrativa e financeira para Fundação executar o Plano, ao mesmo tempo garantir apoio político para levar esse projeto adiante. Promover o diálogo permanente e qualificado com o Conselho, efetivando a participação e o controle social no que

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se refere à gestão pública da cultura. Potencializar os recursos financeiros para a realização dos projetos institucionais, a partir da captação através de mecanismos alternativos, reduzindo a dependência do orçamento municipal. Profissionalizar os artistas e capacitar os produtores para desenvolver a cadeia produtiva e se tornar autossustentáveis. Agregar como parceiros não só os agentes culturais, mas a população como um todo, visto que essa é o público-alvo dessas políticas. Fortalecer as relações institucionais com os demais entes federados, empresas, instituições culturais e órgãos de fomento. Monitorar as políticas públicas e intervir com reestruturações quando necessário. Avaliar a opinião pública a respeito da gestão da Fundarc e reavaliar o planejamento de forma permanente. Enfim, buscar o aperfeiçoamento do Sistema Municipal de Cultura e balizar os avanços do campo, realizando análises comparativas paulatinas, medindo o desempenho das políticas e os impactos diretos na população e, sobretudo, na realidade local. Para isso, acredito na importância dos indicadores culturais, os quais articularão dados concretos sobre o campo da cultura e ajudarão no direcionamento da gestão para as áreas que necessitam de políticas públicas prioritárias. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANCLINI, Néstor G.. Consumidores e cidadãos. 5ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. CARVALHO, Lúcia. A cultura como dimensão estruturante das políticas públicas. Salvador: 2007. Disponível em: http://www.cultura.ba.gov.br/wpcontent/uploads/2010/Sistema/artigo-lucia-carvalho. pdf. Acesso em: 02 de dez. 2015. COELHO, Teixeira. A pesquisa de indicadores culturais: audácias e dilemas. In: 1º DIAGNÓSTICO da Área Cultural de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte/ Vox Mercado, 1996. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997. IBGE. Munic 2006. Perfil dos Municípios Brasileiros. Suplemento especial de cultura. 2006. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/perfilmunic/cultura2006/default.shtm LEITÃO, Claudia. A gestão estratégica e os novos significados da cultura no novo século. In: LEITÃO, Claudia (org). Gestão cultural: significados e dilemas na contemporaneidade. Banco do Nordeste, 2003. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições e enormes desafios. Salvador: EDUFBA, 2007. VAN BELLEN. Indicadores de sustentabilidade: uma análise comparativa. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

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E ... APÓS A INCLUSÃO E O ACESSO Telma Luzia Pegorelli Olivieri1

RESUMO: A partir de breve relato sobre ‘os rolezinhos’ de jovens em São Carlos/SP, entre 2010 e 2012, e a reflexão sobre as Políticas Públicas de inclusão, principalmente as referente às políticas de cultura, inclusão cultural e juventude e cultura, este artigo busca apresentar alguns autores que podem contribuir para essa reflexão. A pequena revisão não esgota o tema, muito pelo contrário, procura indicar alguns possíveis caminhos teóricos sobre essa temática tão complexa: Políticas Públicas de Cultura para a Juventude. PALAVRAS-CHAVE: Políticas de Cultura, inclusão cultural, cultura e juventude.

Preâmbulo Em 2010, na terceira gestão de um governo democrático e popular em São Carlos/SP (este governo teve início em 2001) e após várias políticas públicas de inclusão implantadas, assim como adotadas também aquelas provenientes do governo federal, a partir de 2003, os jovens saíram da periferia começaram a ocupar o centro. Muito antes dos chamados “rolezinhos” iam em grupos, se encontravam, caminhavam conversavam. Primeiro foi o shopping e foram expulsos pela segurança privada (2009). Suas vestes, chamadas por alguns de “os calças largas”, bermudas, camisetas, boné ou gorro assustavam os frequentadores “habitue” do shopping aos sábados à tardinha. Os seguranças os expulsaram. Depois de não poderem frequentar o shopping foram para a Praça XV, localizada no bairro tradicional da elite burguesa e considerada a praça “mais bonita” da cidade. Também foram expulsos pela PM que recebia ligações dos moradores do entorno reclamando da “baderna” e dos “tipos estranhos” rondando a praça. Doutora e Pesquisadora em Políticas Culturais / Gestão Cultural e Formação Artística. Ex professora da Universidade Federal de São Carlos/UFSCar (1995/1012) e ex Coordenadora Geral da Secretaria de Articulação Institucional/SAI/MinC (2013/15). Foi Coordenadora de Cultura de São Carlos/SP por três gestões (2001/12), [email protected] 1

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A PM os expulsaram. Foram para a Praça Cel. Salles, praça da Câmara Municipal, centro da cidade. E aí em número muito maior, nunca menos de 100 e às vezes perto de 1.000. Antes de serem expulsos novamente as secretarias de Cultura e de Cidadania e Assistência Social tomaram a frente da discussão sobre os “direitos da juventude” e os jovens que para a praça iam tinham o direito constitucional de ir como também ao lazer, ao encontro, etc. etc. Reuniões com o “staff” do governo, comandantes da PM, juiz, etc eram marcadas por nós para “garantir os direitos de ir e vir, de estar e encontrar-se” (mesmo em nossos governos “esses encontros” são difíceis de serem incorporados, assimilados, aceitos e/tolerados), ocorriam todas as segundas-feiras. Em paralelo, nós das secretarias nos reuníamos todas as quartas-feiras com os jovens de nossas equipes, alguns jovens de coletivos culturais e com alguns dos jovens frequentadores da praça para avaliarmos as ações e propor atividades culturais para aquele público. A idade deles era bem variada de 11/12 anos (e isso era o que “pegava” ... “os menores” ...) até 20 e tantos. Todas as sextas-feiras, a partir das 17:30 lá estávamos nós, junto com a juventude. A partir de então por dois longos anos acompanhamos os meninos e meninas, com atividades, discussões e equipe permanente. No início de 2012 a praça entrou em reforma2 ... O que ocorreu nesse período de dois anos3 é o que me leva a refletir sobre esse tema ... após a inclusão e acesso ... ou que/ qual inclusão

O subsolo da Praça Cel. Sales, antigo estacionamento, foi reformado e ali foi instalado o Museu da Ciência e Tecnologia Professor Mario Tolentino, em novembro/2012. 3 Nesses dois anos tudo o que se pode pensar quando se tem grande aglomerado de jovens (de bom, legal, super legal, mas também fora dos padrões, do controle, de ruim, preocupantes ...) aconteceu: brigas, bebidas, PM, correrias, traficantes aliciando menores, drogas, menores caídos, danificação de patrimônio, prisões, pedradas, pauladas, etc. Motivos esses que eram a pauta das reuniões de segunda quando alguns desses fatos ocorriam. Mas tinham as atividades que nos davam e proporcionavam muito prazer, além de ser o combustível para enfrentar as reuniões das segundas e o ânimo para avaliar, propor e tomar alguma providência nas reuniões de quarta junto com eles. Os concursos de danças que eles mesmos inventavam (funk), imagens que eles produziam e projetavam na parede da Câmara, DJ’s e MC’s, desenhos, disputas de MC’s, break’s, etc. Nós “as dona” das secretarias os supríamos com equipamentos (som, imagem, materiais, etc.), banheiros químicos (não havia banheiros na praça), como também tínhamos nossos jovens todo o tempo por lá. Havia uma cumplicidade entre eles e um movimento que os faziam inventar e reinventar suas sextas feiras. Hoje podemos afirmar que 85% desse tempo os encontros da Juventude na Praça foram muito tranquilos e prazerosos. Era o espaço que eles procuravam. Mas, os 15% do tempo em que ocorreram “as coisas” que fugiam do controle, sempre iniciada por uma pequena minoria, e a PM “entrava em ação” era a manchete da imprensa (jornais e TV): “Menor caída na Praça Cel. Salles” ... “Tumulto na Cel. Salles danificou veículos” ... “Jovens consomem drogas na Cel. Sales e funcionários da prefeitura presentes” , etc. etc. 2

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1. INTRODUÇÃO Este artigo não tem conclusão, apenas algumas considerações finais. Ele vem da necessidade de se pensar, discutir, estudar, propor análises e iniciativas para a situação descrita acima e cada vez mais presente no cotidiano de nossas cidades. Essa necessidade me levou a buscar autores que pudessem colaborar com essas inquietações sob a ótica das Políticas Públicas de Cultura. Acredito que o direito à cultura, garantido constitucionalmente, é índice fundamental para contribuir para a construção da cidadania, dos plenos direitos à vida e à sociedade democrática. Nesta minha inserção teórica para refletir sobre este complexo tema Políticas Públicas de Cultura para a Juventude, me levou a reler alguns autores (Marilena Chauí e Néstor Gárcia Canclini) e pontuo algumas de suas ideias, amparada pela Constituição Federal. Marilena por ter sido uma das primeiras a propor teoricamente Políticas Públicas de Cultura no Brasil sob a ótica e a garantia dos direitos culturais, é imprescindível relê-la. Canclini por ser um mestre que se renova, sempre atento às nuances, voltas e revoltas da cultura ocidental, principalmente às mudanças de habitus e comportamento cultural na urbanidade das nossas cidades. Ambos já bastante conhecidos entre nós. Acrescento neste rol, Nicolás Barbieri4, sua tese de doutorado em ciência política Por qué cambian las políticas públicas? Uma aproximación narrativa a la continuidade, el cambio y la despolitización de las políticas culturales, defendida em 2012 na Universitat Autònoma de Barcelona e outros textos de sua autoria acrescentaram um novo olhar para minhas questões e estão contribuindo para minha reflexão sobre essa temática. No primeiro tópico deste artigo “Ampliando o Problema” apresento algumas das questões que originaram esta reflexão. No segundo, “Ampliando o Repertório” tento expor um pouco das ideias dos autores citados5. E por fim, nas considerações finais arrisco-me em apontar reflexões teóricas que contribuam para a complexa temática Políticas Públicas de Cultura para a Juventude. 2. AMPLIANDO O PROBLEMA O termo “problema” aqui utilizado tem o significado apresentado por Dermeval Saviani em seu texto A filosofia na formação do Educador, que recupera sua noção filosófica e não se esgota em mera questão cuja resposta podemos obter, por mais complexa que seja. ‘Problema’, Nicolás Barbieri é PhD em ciência política pela Universidade Autónoma de Barcelona e professor pesquisador do Instituto de Gobierno y Políticas Públicas. Entre outras atividades, prestou consultoria à Secretaria da Cultura de Bogotá/Colômbia. (http://uab.academia.edu/Nicol%C3%A1sBarbieri, acessado em 25 de janeiro de 2016) 5 Alertamos para não nos precipitarmos no reducionismo teórico. As obras desses autores vão muito além dos textos e das ponderações aqui postas. A limitação temporal e espacial foi um dos motivos que nos levaram a abordar somente esses textos, mas que acreditamos ser o ponto de partida para nossa reflexão. A busca é continua e lê-los é prazer. 4

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nessa concepção, é a necessidade de se conhecer alguma resposta que ainda não conhecemos e que precisamos conhecer. Mas uma questão cuja resposta se desconhece e se necessita conhecer; eis aí um problema (Saviani, p. 11). É nesta visão de “necessidade” que tentamos obter algumas respostas/e/ou caminhos para orientar nossa questão: e ... após a inclusão e o acesso: Políticas Públicas de Cultura para a Juventude. A inclusão dos jovens e o “fácil” acesso à determinados meios de consumo têm avançado nas políticas das garantias dos “direitos”? Os jovens, principalmente os da periferia, ainda são os que mais são agredidos, expulsos e excluídos de sua condição de cidadãos. Ao chegarem “ao centro” criam um “conflito de classes” que confronta com os padrões estabelecidos, aceitos e conformados padrões sociais. A intolerância é visível: nas cotas, nos aeroportos, restaurantes, shoppings, etc. As políticas de cultura que ampliam o acesso à cultura (popular, por exemplo) ainda são segregacionadas, ainda são ‘aceitas’ somente em determinados locais e em determinados contextos. Para além do folk (gente) e lore (conhecimento) como avaliar se as políticas de cultura estão garantindo os princípios dos direitos individuais e coletivos. O estado e a sociedade estão preparados para as políticas de inclusão, acesso e garantias de direitos? As políticas de inclusão e acesso têm garantido aos jovens o empoderamento necessário em seus repertórios? As políticas de inclusão e acesso vêm somar com as demais atividades que já dominavam/frequentavam/desenvolviam? Aparentemente não. A questão que acenava esses menino(a)s de 11, 12, 14, 16 anos tinham 1, 2, 4, 6 quando assumimos o governo, portanto ‘passaram’ por nós, nas creches, nas emeis, nos postos de saúde e provavelmente alguns/muitos participaram de nossos projetos culturais. Ok, “foram incluídos”, podem sair da periferia e estar no centro, era visível “a inclusão” dos jovens. Mas, qual o próximo passo, após a inclusão, diante do cenário descrito? O Estado e seus gestores, particularmente os de cultura, estão preparados para assumirem as políticas públicas de inclusão, incorporando suas narrativas e continuidades, no âmbito da gestão pública? Em artigo anterior6, também levantamos a seguinte questão: o desafio e a construção são dilemas para a criação/implantação de uma Política de Estado para a Cultura ou para preparar o Estado para as Políticas de Cultura? Esse empoderamento dos jovens na praça tem legitimidade simbólica e institucional? Perguntas, que a nosso ver são ‘problemas’, não nos faltam, partimos então, por meio da necessidade de conhecer, em busca de reflexões e conceitos que possam orientar/abrir alguns caminhos. Formação de gestores públicos para atuarem com o Sistema Nacional de Cultura: Desafios e Construção Apresentado no XI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura/ENECULT, realizado na Universidade Federal da Bahia, em agosto de 2015 e no 3. Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura, realizado na Universidade Federal do Cariri, em setembro de 2015

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3. AMPLIANDO O REPERTÓRIO Ampliar o repertório é o exercício teórico que nos propomos para alargar os horizontes, a questões que já apresentamos em 20137 e consideramos premente: a necessidade de se avançar: a) em relação ao protagonismo cultural com participação e controle social, b) nas teorias que permitam a reflexão para além das condições de acesso e democratização, a partir de estudos de casos, e c) reconhecer a relação conflituosa entre Estado e protagonismo social no cenário atual (OLIVIERI, 2013, p.15). É senso comum entre os estudiosos da área que após o término da 2ª. Guerra Mundial não faltaram discussões, resoluções e declarações que propõem pactos e avançam na chamada seara dos direitos humanos e/ou a garantia de!, Que se amplia nos direitos às especificidades temáticas. Organismos internacionais e multilaterais são criados como meio de ‘organizar’ a ordem, a moral e os bons costumes. A importância da cultura, da democratização do acesso e da inclusão social está presente em todos os discursos, independente de partidos e/ou posições ideológicas. No campo cultural a UNESCO, Organização das Nações Unidas, é considerada como o principal órgão internacional de discussão nos temas da educação, da ciência e da cultura. Em seu site (http://www.unesco.org/culture), a lista de textos que orientam sobre o tema é imensa: desde a Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional, de 1966 e considerado o primeiro oficial, até os mais conhecidos e citados como o da Segunda Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, realizada no México em 1982, o da 22ª Conferência Geral da UNESCO em 1983 e o da Declaração Universal da Diversidade Cultural de 2001. Não podemos deixar de citar também a Agenda 21 da Cultura – Um compromisso das cidades e dos governos locais para o desenvolvimento cultural8. Uma carta de princípios adotada por governos de várias cidades e países. Lideres políticos e gestores de cidades da CGLU comprometeram-se com os direitos humanos, a diversidade cultural, a sustentabilidade, a democracia participativa e a criação de condições para a paz. No Brasil, embora tenhamos um histórico de Políticas Públicas de Cultura desde a constituição do Estado Brasileiro, somente a Constituição Federal (CF) de 1988 estabelece os princípios dos direitos à políticas públicas e que atendam os interesses públicos. Encontramos em seus artigos alguns dos princípios fundamentais que tratam dos direitos e deveres individuais e coletivos (título II, capítulo I). E no campo da cultura temos o artigo 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará Programa pra Governar: implantação de uma política de estado para a cultura em São Carlos/SP – (20012012). Artigo apresentado no 1. Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura, realizado na Universidade de São Paulo/USP/Zona Leste, em setembro de 2013 e no V Seminário Internacional de Políticas Culturais, na Fundação Casa de Rui Barbosa, em maio de 2014 8 Agenda 21 da Cultura, aprovada pelo Programa Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) no Fórum Universal das Culturas, realizado em Barcelona-2004, (pnc.culturadigital.br) 7

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e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (grifo nosso). E o que seria o pleno exercício dos direitos culturais? Segundo Marilena Chauí (1995) o pleno exercício dos direitos culturais é a garantia de: • Direito de acesso e de fruição dos bens culturais por meio dos serviços públicos de cultura (bibliotecas, arquivos históricos, escolas de arte, cursos, oficinas, seminários, gratuidade dos espetáculos teatrais e cinematográficos, gratuidade das exposições de artes plásticas, publicação de livros e revistas etc.), enfatizando o direito à informação, sem a qual não há vida democrática; • Direito à criação cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilidade e da imaginação na criação das obras de arte e como trabalho da inteligência e da reflexão na criação das obras de pensamento; como trabalho da memória individual e social na criação de temporalidades diferenciadas nas quais indivíduos, grupos e classes sociais possam reconhecer-se como sujeitos de sua própria história e, portanto, como sujeitos culturais. • Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, graças à ampliação do sentido da cultura, criando para isso espaços informais de encontro para discussões, troca de experiências, apropriação de conhecimentos artísticos e técnicos para assegurar a autonomia dos sujeitos culturais, exposição de trabalhos ligados aos movimentos sociais e populares. • Direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos nos quais as associações artísticas e intelectuais, os grupos criadores de cultura e os movimentos sociais, através de representantes eleitos, pudessem garantir uma política cultural distanciada dos padrões do clientelismo e da tutela (CHAUÍ, 1995) As orientações da UNESCO, a Agenda 21 da Cultura, a compreensão e a garantia do pleno exercício dos direitos culturais, segundo o que define Chauí, estão longe de serem atendidos universalmente. Mas será possível implantá-los? Como num país com a dimensão continental do Brasil, sua extensa veia cultural diversificada e multifacetada e no cenário frágil e cambiante é possível ir além do acesso e da inclusão? Canclini (2004) define esta era de diferenças e desigualdades como a era de interconexões globalizadas e defende que é preciso entender a interculturalidade9 presente como fator agregador para esse cenário que tornam obsoletas as políticas baseadas no respeito relativista simples de grupos isolados (CANCLINI, 2007 s/p.). Ainda, segundo ele, o século XX, foi o século onde Canclini trabalhou com o termo interculturalidade em seu livro Diferentes, Desiguales y Desconectados – mapas de la interculturalidad (2004). Também utilizamos como referência seu artigo De cómo la interculturalidad global debilita al relativismo (2007) e a conferência proferida em 2012, na cidade do México El horizonte ampliado de la Interculturalidad. Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales CLACSO

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as diferenças foram reconhecidas, as lutas contra a desigualdade marcaram presença, a globalização, o reconhecimento da diversidade e o reconhecimento da multiculturalidade. Onde se admite a diversidade de culturas, salientando suas diferenças e propondo políticas relativistas de respeito, que a miúdo reforçam a segregação (CANCLINI, 2004, p.15). O ‘fracasso’ de algumas lutas empregadas no século XX, traz para o século XXI as dúvidas e perguntas sobre como conviver com as diferenças e as desigualdades em uma era de interconexões globalizadas (2007). A lógica capitalista do século XX de produção, circulação e consumo, têm várias versões/desdobramentos no século XXI, alguns autores até arriscam um novo termo: prosumidores10. Entender a nossa era, não é substituir teorias que não mais dão conta de ‘explicar’, que aparentemente esgotaram-se, mas sim adotar, também aquelas possíveis de ampliar os horizontes e sua coexistência com o ‘novo’. De um mundo multicultural – justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação – passamos a outro intercultural globalizado. Se, concepções multiculturais admitem a diversidade de culturas, salientando suas diferenças ... interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento ... Ambos termos implicam dois modos de produção do social: multiculturalidade supõe aceitação do heterogêneo, interculturalidade implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e reciprocidade (CANCLINI, 2004, p. 15). Se, ainda não assimilamos/incorporamos a diversidade cultural (multiculturalismo) na maioria das nossas políticas públicas, o que dizer da interculturalidade, pensando, particularmente na juventude. Se, no passado recente os jovens eram o futuro da nação, eram preparados/ cobrados para isso e as políticas de inclusão não deram conta. Agora os jovens são o presente, estão no presente e vivem o presente. Não são um conjunto cultural homogêneo, aparecem como a cultura distinta dentro da própria sociedade. Mais que cultura, as culturas (2012, s/p). Interculturalidade pressupõe reorganização e reposturas nos campos midiáticos, educacionais e econômicos. Além de não ser um conceito simples de ser compreendido pois implica em reconhecer e transcender as relações econômicas, as análises culturais e as estratégias educativas. O estudo transdisciplinar, além de uma necessidade epistemológica, é uma urgência para abarcar a articulação de variáveis sociais, culturais e políticas que intervêm na degradação combinada de capitalismo e democracia (2012, s/p). Continuando o olhar desvelador sobre os jovens, Canclini (212) cita Martín Hopenhayn que aponta para os seguintes paradoxos, os jovens hoje tem mais anos de estudo (educação formal) e menos acesso à emprego, lidam com facilidade aos novos meios de comunicação e informação, mas não acedem aos espaços ‘consagrados’ das deliberações políticas e poucos são Aquele que produz e consome (produtor + consumidor). Termo criado por Alvin Toffler, escritor de A Terceira Onda (1980)

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filiados a partidos políticos. Expandem exponencialmente ao consumo simbólico, mas não ao consumo material. Estão mais incorporados aos processos consagrados de aquisição de conhecimento e formação de capital humano, porém mais excluídos dos espaços em que se exerce o capital humano, a saber: o mundo do trabalho e a porta de ingresso para o bem estar próprio (Hopenhayn, 2008: 53, apud CANCLINI, 2012). E conclui Canclini: as novas gerações aparecem como representantes de uma radical diferença cultural. Na realidade, vozes de muitas novas diferenças (CANCLINI, 2012, s/p). Barbieri traz reflexões importantes para o estudo das políticas culturais na contemporaneidade. Vou utilizar de suas reflexões desenvolvidas na já citada tese de doutorado e em dois artigos: Cultura, políticas públicas y bienes comunes: hacia unas políticas de lo cultural (2014) e Nuevas políticas, nuevas miradas y metodologias de evaluación. ?Cómo evaluar El retorno social de las políticas culturales? (BARBIERI, 2011). Irei limitar, neste artigo, três pontos que me parecem contribuir para a reflexão proposta neste artigo: a defesa de Barbieri para que as políticas culturais reconheçam a cultura não somente como substantivo, mas também como adjetivo (o cultural) (BARBIERI, 2014), a necessidade de se considerar o retorno social das políticas culturais e para isso é preciso estabelecer novos indicadores e novas metodologias de avaliação das políticas de acesso e inclusão cultural, uma vez que os indicadores tradicionais ou ‘medem’ as atividades culturais como meio ou como fator em si mesmo (BARBIERI,, et al., 2011) e as mudanças que propõe para a gestão das políticas públicas das políticas de acesso às políticas de bens comuns (BARBIERI, 2014). Os conceitos desenvolvidos por Barbieri estão fundamentados em sua tese de doutorado (2012). As análises apresentadas parte da contextualização, a exemplo de Canclini, da aparente ineficácia das políticas públicas ‘reparadoras’, ‘relativistas’, desenvolvidas no século XX. As políticas culturais, nessa perspectiva, se fundamentam no tripé produção, circulação e consumo, promovendo o mercado, garantindo o ‘acesso’ e a democratização da cultura, institucionalizada pelo ‘estado’. Pensamos as políticas culturais como políticas dos setores culturais (cine, teatro, etc); pensamos os problemas culturais como problemas dos agentes do setor cultural e pensamos os resultados das políticas culturais em termos de consumo quase binário (2014, p.107). Em outras palavras: Desenvolvemos políticas da cultura substantiva e não da cultura adjetiva (idem). Adotar o cultural (cultura adjetivada) no desenvolvimento das políticas culturais é conceito defendido há algum tempo por vários autores. Canclini, em seu artigo De cómo la interculturalidad global debilita al relativismo (2007), também defende a hipótese de que devemos deixar de pensar a cultura somente como substantivo e passarmos a entendê-la também como adjetivo. Segundo ele, que se apoia nas ideias de Arjun Appadurai (1996), tratar a cultura como substantivo (a cultura) é coisificá-la, é tratá-la apenas como objeto e quando a adjetivamos (o cultural) permite-nos pensar suas “diferenças, contrastes e comparações ... menos como uma

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propriedade de indivíduos ou grupos, mas como subconjunto de diferenças que foram selecionadas e mobilizadas com o objetivo de articular as fronteiras da diferença (Appadurai, 1996, apud CANCLINI, 2007)”. Muda-se a ótica do objeto de estudo e recupera-se o sentido político da cultura. Ao propormos estudar ‘o cultural’, abarcamos o conjunto dos processos através dos quais dois ou mais grupos representam e intuem imaginariamente o social, concebem e gestionam as relações com os outros, ou seja, as diferenças, ordenam sua dispersão e sua incomensurabilidade mediante uma delimitação que flutua entre a ordem que torna possível o funcionamento da sociedade, as zonas de disputas (local e global) e os atores que a abrem para o possível (CANCLINI, 2007 s/p, grifo nosso). Para Barbieri tratar a cultura como o cultural é entender que o cultural seria aquilo que nos permite ser agentes daquilo que nos faz protagonistas em nossas práticas sociais. São as maneiras em que como atores enfrentamos e negociamos, e portanto, também como imaginamos aquilo que compartilhamos. Confrontar e compartilhar formam parte indivisível de qualquer processo cultural (BARBIERI, 2014, p. 109) Reconhece-se a legitimidade das políticas culturais de democratização e acesso implantadas, na maioria dos casos a partir dos anos 60 (nos países desenvolvidos e particularmente na Europa) para a consolidação do setor cultural (promoção de espaços de participação e expressão social, maior profissionalização das atividades artísticas,etc). Porém, a partir dos anos 80 iniciam as críticas a esse modelo e identificam-se os processos de expansão/segregação no campo de atuação das políticas culturais empregadas. Segundo, Barbieri, et al., (2011, p. 479) vivemos numa época em que diferentes atores esperam do ‘estado’ a promoção de diferentes objetivos (coesão social, interculturalidade, educação, regeneração urbana, participação política e governança, seguridade e paz, sustentabilidade, etc ). Nesse sentido, não é mais possível avaliar as políticas culturais a partir da lógica da eficiência econômica e/ou em critérios estéticos e de consumo cultural (idem). Chama atenção também, para o fato de que várias metodologias de avaliação sobre os impactos culturais e retorno social, avaliam as ações da política de cultura com indicadores que permitam mensurar a eficácia e objetivos de outras políticas públicas: como educação, saúde, meio ambiente, segurança, etc, defendendo para isso a função instrumental da ação cultural (BARBIERI, et al., 2011, p. 481). Por exemplo, para um indicador educacional perguntas que indiquem a ‘melhora dos vínculos entre a escola e a comunidade’ (idem, p. 483). Esse modelo tradicional de avaliação gera ‘falsas’ expectativas sobre a importância da cultura e pressão desmesurada sobre os agentes culturais (idem, p. 484). Outra perspectiva diante da crítica ao modelo tradicional é a criação de indicadores que avaliem as políticas culturais no seu valor público: criar indicadores próprios que reconheçam na cultura seu valor: elementos

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afetivos, intangíveis e experiência e práticas culturais. Por ex., indicadores que revelem na transversalidade da cultura os benefícios das políticas culturais para a cidadania (idem, p. 485). Com base nesses argumentos os autores propõem ampliar o olhar sobre o que deve ser analisado e avaliado na implantação das políticas culturais. Propõem 9 eixos temáticos e que a partir deles se possam desenvolver um sistema de indicadores para medir o retorno social das políticas culturais. Vamos citar aqui os nove eixos temáticos, sem a exaustiva discussão que fazem sobre os mesmo: 1. Identidade e moral coletiva – as políticas culturais contribuem à criação, à potencialização e à manutenção das identidades coletivas e de sentimento de pertencimento comunitário; 2. Capital social (I): coesão e inclusão social – as políticas culturais promovem a geração e a aceitação de normas e valores compartilhados, que por sua vez permitem a consolidação de vínculos necessários para o desenvolvimento das comunidades; 3. Capital social (II): participação cidadã e ação coletiva – as políticas culturais fomentam o desenvolvimento de counidades culturais (artistas, gestores, usuários, público, etc) em alto grau de cidadania, que se traduz no aumento da participação e ação coletiva; 4. Reconhecimento e gestão de conflito – as políticas culturais podem fomentar uma ideia de democracia mais aberta e acessível que permita enfrentar os conflitos sociais dentro de um marco simbólico; 5. Revalorização das denominadas ‘classes produtivas’ – se trata de grupos que costumam estar sub-representados nas audiências culturais, e seus níveis de participação e consumo cultural também são escassos; 6. Desenvolvimento autônomo e promoção da criatividade das pessoas – o retorno social das políticas culturais está diretamente vinculado ao desenvolvimento autônomo dos indivíduos e a promoção de sua criatividade para interpretar, entender e fazer entender aos demais o mundo que os rodea; 7. Novas centralidades – as políticas culturais contribuem para a geração e o reconhecimento de novas centralidades, para além do entorno urbano; 8. Reinterpretação da paisagem – as políticas culturais geram uma troca significativa de atitudes na reinterpretação da paisagem, que se entende como construção cultural e, portanto, coletiva; 9. Transformação do espaço urbano – se trata de um dos aspectos mais controvertidos, complexos e, portanto, mais significativos do retorno social das políticas culturais, e que merece uma atenção especial. (Barbieri, et al., 2011, p. 485/9)

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Ao final, a partir desses eixos são propostos doze índices que, acreditam os autores, dar conta de se avaliar o retorno social das políticas culturais (Barbieri, et al., 2011, p. 494/6). No entanto, alertam para a complexidade na criação de índices que possam avaliar o retorno social das políticas sociais, bem como suas limitações e possibilidades de manipulação. Além dos riscos e da complexidade chamam atenção para que a construção de indicadores não seja feita em gabinetes meramente técnicos. Construir indicadores para avaliar políticas culturais não é uma tarefa meramente técnica. Os indicadores deveriam poder refletir uma perspectiva complexa e suficientemente ampla do fenômeno social que busca medir, considerando as particularidades territoriais e motivacionais dos atores envolvidos (BARBIERI, et al., 2011, p. 494). O último ponto que abordamos, e que em nosso entendimento também, contribui para a reflexão teórica do problema apresentado no início deste artigo, procura trazer para a gestão das políticas públicas as políticas de bens comuns (2014). No cenário contextualizado de conflito e confrontação, heterogêneo e globalizado não é mais possível desenvolver ‘uma’ política cultural seja de acesso e/ou inclusão seja estética e/ou demandas de mercado. Nesse cenário, as políticas sob a ótica de o cultural devem ser complementar e não substitutivas. Assim como Canclini, ele entende que tratar a cultura como o cultural é designar sua função política que implicará em reequilíbrios do setor cultural. Essa designação (política) é parte de um processo emergente na atualidade: o da reflexão e ação no âmbito dos bens comuns (Barbieri, 2014, p. 110). Mas como seria o desenvolvimento de políticas culturais centradas nos bens comuns? Segundo ele, embora o tema não seja novo os estudos na esfera das políticas culturais são exíguos. Sua primeira afirmação é: os bens comuns não são nem espaços nem objetos. Os bens comuns são compostos por: a) sistemas de governança ou de gestão compartilhada de recursos; b) sistemas desenvolvidos por determinadas comunidades, e c) sistemas que têm normas e regras identificáveis (BARBIERI, 2014, p. 111). É esse olhar de compartilhamento e governança que vem propor a ser adotado como políticas dos bens comuns. As políticas culturais deveriam ir além das ofertas dos serviços culturais e também reconhecer e identificar as comunidades que gestam de maneira compartilhada seus recursos sejam eles materiais ou imaterias, que criam suas próprias normas e regras e com elas garantem sua governança e sustentabilidade. Ao propor essa mudança na gestão das políticas culturais, Barbieri não isenta o governo de suas responsabilidades, pelo contrário ao assumir as políticas culturais como políticas dos bens comuns, ... o papel do governo é entendido e assumido como plenamente político (no mais amplo e complexo sentido da palavra) ... estaríamos diante de governos que (sem deixar de assumir sua parte de responsabilidade) oferecem seu apoio a modelos de gestão híbridos, que escapam do

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excesso de intermediação tradicional, mas também da mercantilização das políticas (BARBIERI, 2014, p. 114). Sem contudo, ter as certezas e respostas às muitas perguntas, Barbieri, acredita que é possível conceber políticas culturais que construam o público como algo heterogêneo, que não reduzem o que é público ao institucional ou estatal, e que trabalhem com a ideia de público como espaço do comum (um espaço diverso e, portanto, não isento de conflitos). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como escrevi no início deste artigo procurei trazer para discussão alguns pontos que pudessem colaborar com análises para as políticas de inclusão cultural, particularmente para a juventude. e que possam contribuir para iniciativas a serem adotadas por políticas públicas de cultura na gestão do cotidiano de nossas cidades. Parti do fundamento constitucional que garante o pleno exercício dos direitos culturais, aqui definidos com o auxílio de Marilena Chauí. E busquei autores que pudessem auxiliar na complexa compreensão temática Políticas Públicas de Cultura para a Juventude. Esses autores têm repertórios que se complementam. Enquanto Canclini nos apresenta os paradigmas conceituais a partir de uma visão contextualizada das relações sociais nos dias de hoje, Barbieri vai contribuir à discussão sob a ótica das políticas culturais. Apreender e incorporar o conceito de interculturalidade torna-se tarefa imprescindível. A contextualização que Canclini faz sobre a situação, habitus e comportamento dos jovens nos dias de hoje fornecem uma lupa que nos permite enxergar com outro olhar ‘os rolezinhos’. Para além e a partir da contextualização, Canclini e Barbieri propõem algumas mudanças de paradigmas: 1. que passemos a reconhecer e a tratar as políticas culturais não somente como substantivo (a cultura), mas também como adjetivo (o cultural), 2. a necessidade de se avaliar as políticas culturais levando em consideração o retorno social dessas políticas e estabelecer novos indicadores e novas metodologias de avaliação das políticas de cultura e 3. que a gestão cultural seja uma gestão das políticas de bens comuns (que não são nem espaços nem objetos), mas que leve em conta as novas ordenações e rearranjos de formas de gestão e governança. É importante destacar que o Ministério da Cultura, desde 2003, instituiu como diretriz estabelecer o pleno exercício dos direitos culturais com a compreensão e conceituação das dimensões: simbólica, cidadã e econômica da cultura. Para tanto tem pautado suas ações, visando

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alcançar as 53 metas do Plano Nacional de Cultura11, bem como a implantação do Sistema Nacional de Cultura12 em todo o território nacional e que tem como princípio a gestão compartilhada entre estado e sociedade. Mas é preciso avançar na qualificação dos gestores. Tem-se claro que não são simples atitudes a serem assumidas que vão garantir as mudanças na gestão das políticas culturas. É preciso construir uma narrativa que aponte para a continuidade das políticas públicas de cultura, no âmbito da gestão pública da cultura. Mais que isso é urgente que gestores de cultura sejam qualificados com os subsídios que os façam compreender o cenário atual e tenham capacidade para propor mudanças. Alargar os horizontes e avançar, entre outras questões, nas teorias que permitam a reflexão para além das condições de acesso e democratização. Acredito que este artigo avança nessa direção. Há muitas portas a serem abertas, há muita reflexão a ser desvelada para que tenhamos garantido o pleno exercício dos direitos culturais, da cidadania, dos plenos direitos à vida e à sociedade mais equânime e democrática.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBIERI, N. Cultura, políticas públicas y bienes comunes: hacia unas políticas de lo cultural. In Kult-ur. Àgora. Vol 1, n. 1, 2014, pp. 101-119 in http://dx.doi.org/10.6035/kult-ur.2014.1.1.3, acesso em janeiro de 2016 _________ Por qué cambian las políticas públicas? Uma aproximación narrativa a la continuidade, el cambio y la despolitización de las políticas culturales. Tesis doctoral, Universitat Autònoma de Barcelona, 2012, in http://uab.academia.edu/Nicol%C3%A1sBarbieri, acesso em janeiro de 2016 ________; A. PARTAL y E. MERINO (2011): Nuevas políticas, nuevas miradas y metodologias de evaluación. ?Cómo evaluar El retorno social de lãs políticas culturales?, Papers Revista de sociologia, 96/2: pp. 477-500, in http://uab.academia.edu/Nicol%C3%A1sBarbieri, acesso em janeiro de 2016

Emenda Constitucional n. 48 de 10 de agosto de 2005 na CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988 - TÍTULO VIII - SEÇÃO II - DA CULTURA (arts. 215 a 216), acresce ao artigo 215 o § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II - produção, promoção e difusão de bens culturais; III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; IV - democratização do acesso aos bens de cultura; V - valorização da diversidade étnica e regional. 12 Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012, acrescenta o Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. 11

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CANCLINI, N.G. El horizonte ampliado de la Interculturalidad. Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales CLACSO. Ciudad de México, noviembre 2012, in http://nestorgarciacanclini.net/ index.php/hibridacion-e-interculturalidad/156-el-horizonte-ampliado-de-la-interculturalidad _________ De cómo la interculturalidad global debilita al relativismo. in Giglia, Ángela, Carlos Garma y Ana Paula de Teresa, compiladores: ?A dónde va la antropología?, Universidad Autónoma Metropolitana, México D.F. 2007 _________ Diferentes, Desiguales y Desconectados – mapas de la interculturalidad. Barcelona, Gedisa editorial, 2004 CHAUÍ, M. Cultura política e política cultural, in Estudos. Avançados, vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995 OLIVIERI, T.L.P Formação de gestores públicos para atuarem com o Sistema Nacional de Cultura: Desafios e Construção, Anais do XI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura/ENECULT, Universidade Federal da Bahia, 2015 ________ Programa pra Governar: implantação de uma política de estado para a cultura em São Carlos/ SP – (2001-2012). Anais do V Seminário Internacional de Políticas Culturais, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2014 SAVIANI, Dermeval. A filosofia na formação do Educador, in Educação do senso comum à consciência filosófica, São Paulo, Cortez, 1980

SITES CONSULTADOS http://www.unesco.org/culture/laws/html_eng/conven.shtml - acesso a partir de janeiro de 2016. http://nestorgarciacanclini.net/index.php/hibridacion-e-interculturalidad/71-fragmento-de-como-lainterculturalidad-global-debilita-al-relativismo - acesso a partir de janeiro de 2016. http://nestorgarciacanclini.net/index.php/hibridacion-e-interculturalidad/156-el-horizonte-ampliado-dela-interculturalidad - acesso a partir de janeiro de 2016. pnc.culturadigital.br - acesso a partir de janeiro de 2016.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS, CULTURA E DESIGUALDADE: NOTAS SOBRE O BRASIL SEM MISÉRIA Tereza Ventura1 RESUMO: O texto reconstitui o quadro institucional de inclusão e de reconhecimento social e jurídico dos grupos étnicos no Brasil. Em seguida trabalha com os dados dos relatórios de avaliação produzidos pelo Programa Brasil sem Miséria. A iniciativa ressalta o posicionamento das comunidades quilombolas no núcleo duro da produção social e politica da pobreza, desigualdade e da discriminação racial. Ao mesmo tempo, exige um comportamento jurídico e normativo de grupos comunitários que se encontram a margem do Estado. Por fim, o texto apresenta notas para uma discussão mais específica da relação entre a proposta de uma politica de combate a exclusão dos grupos étnicos e o reconhecimento das diferenças culturais e das desigualdades raciais que em conjunto com variáveis e contextos específicos, afeta a institucionalização da política, bem como o acesso a direitos, bens e recursos. PALAVRAS-CHAVE: quilombo, cultura, raça, desigualdade, reconhecimento.

O programa de combate a pobreza - Brasil sem Miséria2- (BSM) empreendido pelo governo federal a partir de 2010, tem visibilizado informações que permitem relacionar categorizações culturais, étnicas e pobreza no Brasil. Embora os instrumentos desta politica estejam ainda ancorados na politica nacional de segurança alimentar, a iniciativa destaca o desafio de conjugar o combate a pobreza com a privação de direitos, sociais, legais, culturais e territoriais. Ao colocar em evidência questões que reforçam a construção social da pobreza, o programa permite tematizar a forma pela qual diversas variáveis da pobreza se entrelaçam as condições de vida dos grupos tradicionais específicos. A partir da classificação e identificação dos grupos sociais vulneráveis e de uma ampla extensão de documentos civis, o Ministério do Desenvolvimento Social busca atingir, entre outras, as seguintes estratégias: (i) garantia do acesso as politicas publicas de cidadania e de inclusão produtiva; (ii) atuação direta junto as famílias ou

Departamento de Ciências Sociais da UERJ. [email protected] O Plano Brasil sem Miséria (2011-2014) foi elaborado por uma ampla equipe interministerial sob a coordenação da Ministra de Desenvolvimento Social Tereza Campello e Ana Maria Medeiros da Fonseca. Disponível em: http:// www.brasil.gov.br/ /plano-brasil-sem-miseria.pdf 1 2

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comunidades etnicas, por meio dos serviços de Assistência técnica de extensão rural (ATER); (iii) redução das desigualdades de gênero, raça, etnia e geração; (iv) (Brasil, 2014b:453) Se por um lado, o programa contribui na crescente diminuição da pobreza crônica no Brasil, por outro, ele revela a necessidade de um aperfeiçoamento na agenda de combate ao quadro permanente de desigualdade que afeta os grupos classificados também por suas especificidades culturais e étnico-raciais. O desafio que se impõe é combinar dinâmicas universais e particulares que relacionam a pobreza, direitos culturais e o acesso aos direitos dos grupos quilombolas, indígenas e tradicionais. O Programa Brasil sem Miséria3 instituiu um cadastramento diferenciado dos povos tradicionais e criou um sistema de entrada de dados de identificação dos grupos. São considerados GPTE (Grupos Tradicionais Específicos): Indígenas, Quilombolas, ciganos, extrativistas, pescadores artesanais, comunidades de terreiro, ribeirinhas, assentados da reforma agrária e moradores de rua. O quadro conceitual do Brasil sem Miséria apresenta uma compreensão da pobreza como um fenômeno múltiplo, que engloba além da renda, a privação dos indivíduos aos meios que possibilitam o exercício dos direitos e das oportunidades socioculturais de desempenho e uso de seus atributos e capacidades. (SEN:1992) Tal esforço implica no aprofundamento de perspectivas que apontem possiblidades de minimizar os efeitos de uma politica de “gestão estratégica da pobreza” e ampliar os dispositivos culturais que interseccionam o processo estrutural de exclusão e vulnerabilização social das comunidades tradicionais e particularmente dos quilombolas. Neste sentido, os grupos quilombolas ganham destaque não apenas enquanto descendentes de populações nativas ou escravizadas pelo poder colonial, mas enquanto comunidades que se encontram ainda social e culturalmente racializadas e discriminadas pelo poder público e pela sociedade em geral. Os grupos passam a ser considerados em suas condições sociais de vida e não enquanto categorias culturais e ecológicas (Guimarães,2004,Arruti,2009 Jaccoud,2009) . Ao longo das ultimas décadas, as comunidades culturais ganharam força como públicos específicos de políticas. No entanto, apesar de alguns avanços, permanece como um desafio traduzir as classificações e dinâmicas de diferenciação sócio-cultural em extensão dos direitos legais, sociais, do direito a vida e a inclusão produtiva. Os relatórios do programa em que se baseia este artigo trazem evidencias que permitem demonstrar que a correlação entre diferenças “identitárias” ou culturais e pobreza, torna os grupos étnicos e raciais mais vulneráveis a reprodução sistemática da pobreza e das “desigualdades horizontais” (Stewart, 2002). Parte substantiva da clientela do programa Brasil sem Miséria é composta por mulheres negras e jovens, em torno de 73%, comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/ /plano-brasil-sem-miseria.pdf 3

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Por outro lado, as identidades culturais, a pobreza e as demandas fundiárias são variáveis constitutivas de um processo politico e econômico em que se associam os grupos étnicos a luta pelo reconhecimento de seus direitos constitucionais. Ao trazer tamanha complexidade politica, cultural e racial para o âmbito de uma politica de combate a pobreza, corre-se o risco de invisibilizar os critérios em que se pautam as especificidades destes grupos no processo de produção social da pobreza.Acresce-se também que a luta pelo reconhecimento de dinâmicas culturais étnicas e raciais que justificam a permanência do uso da terra, tornam-se semântica e simbolicamente, associadas as lutas políticas pela criação de áreas de conservação, democratização do regime distributivo das terras. A perspectiva politica da desigualdade articulada a especificidade e justiça cultural se dilui em uma transversalidade institucional entre diversos órgãos públicos sem que estejam voltados para a defesa dos direitos culturais identitários reforçados por politicas de promoção da igualdade racial e da diversidade cultural. Apesar da intensa mobilização dos movimentos sociais através da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, e de fóruns proporcionados pelas conferencias nacionais de politicas públicas, as comunidades quilombolas não possuem representações específicas em politicas culturais ou em conselhos locais específicos, além de não participar dos processos de financiamento público das politicas e serviços como construção de escolas, centros de cultura, unidades de saúde entre outros.   O Brasil surpreendeu o mundo, recentemente, ao diminuir o índice de pobreza crônica de 6,5 % a 1,6% da população brasileira, totalizando uma queda de 82% nos últimos dez anos. Entre os principais destinatários desta politica se encontram os negros totalizando 76% dos segmentos considerados em situação de pobreza crônica, com renda média per capita inferior de 140 reais. 1. IDENTIDADE ÉTNICA E POLITICAS PÚBLICAS O Estado Nacional não formalizou uma politica de integração dos ex-escravos dos descendentes dos povos indígenas à sociedade brasileira. A orientação ideológica do Estado, após quatro séculos de escravidão, foi de negar a existência de diferenças políticas, étnico-culturais e sociais no acesso aos direitos de igualdade. O período imediatamente posterior a abolição do trabalho escravo coincidiu com o crescimento da imigração europeia, que alcançou a média de três milhões de pessoas nas duas primeiras décadas no século XX. O Estado Nacional defendia a incorporação de todas as diferenças étnicas, históricas e culturais numa única matriz de convivência intercultural que se convencionou chamar de democracia racial. Particularmente a partir dos anos 30, a nação brasileira passa a ser interpretada com base no conceito de mestiçagem (Freire,1933) fundado na mistura biológica e cultural entre negros, indígenas e brancos.

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A promoção de uma nação mestiça através de um politica cultural de assimilação implicou na renúncia a uma identidade afrodescendente que só recentemente tem ocupado a esfera pública estatal. A primeira regulação estatal da questão racial surgiu nos anos 50 através da lei Afonso Arinos que penalizava a discriminação racial e mais recentemente, com a promulgação, após um longo período de ditadura militar, da constituição federal de 1988. Desde a constituição de 1988, 2621 comunidades quilombolas foram certificadas embora apenas 154 tenham obtido a titulação do território. O processo de constitucionalização, de ampliação participação da sociedade civil e dos setores populares foi acompanhado pela integração do país as restrições impostas pelo plano neoliberal de ajuste estrutural. Neste contexto, as garantias sociais articuladas ao mundo do trabalho e a economia, perdem eficácia diante do regime de flexibilização pós-fordista e da crescente privatização dos serviços sociais e de proteção pública. A identificação de grupos sociais e étnicos específicos no direcionamento de políticas públicas é uma demanda colocada por lutas sociais das comunidades tradicionais rurais e urbanas pelo reconhecimento de suas tradições e direitos territoriais. Tais lutas sociais foram incorporadas aos movimentos transnacionais das identidades fortalecidos pela ratificação da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que reconheceu o direito dos povos tradicionais ao seu próprio desenvolvimento, autonomia e o acesso pleno aos mecanismos de justiça social. Respaldadas também pelo artigo 215 da Constituição Brasileira de 1988, as comunidades rurais e urbanas passaram a orientar suas lutas na defesa de seus enunciados simbólicos e identitários no processo de luta pela igualdade e pela representação cultural e politica de suas aspirações emancipatórias. Embora tenham adquirido direitos sociais, políticos e civis, a grande maioria das comunidades tradicionais não tem qualquer acesso ao consumo de bens e serviços básicos de cidadania. A agenda quilombola e afro-descendente em geral, alcançou visibilidade a partir de políticas culturais de defesa da diversidade, bem como de conferencias e fóruns internacionais ligados à preparação da Conferencia Mundial contra o Racismo e a Discriminação Racial realizada em Durban no ano de 2001. Contudo, foi somente em 2003 que o então recém-empossado Presidente Lula assinou o decreto 4887 regulamentando “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (Decreto 4887/2003). A partir deste procedimento, estava regulamentado o processo de reconhecimento identitário e histórico vinculado ao território quilombola e as comunidades tradicionais. Trata-se de instrumento pautado na auto- identificação do cidadão como membro da comunidade quilombola.

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A importância do Decreto 4887/2003 se reflete na reação política e no debate público sobre a sua constitucionalidade, tendo em vista os interesses que regem a apropriação das terras pelo setor econômico da mineração, do agronegócio, da celulose e da economia agrária do país. Pouco tempo depois, em 2004, foi ajuizada pelo DEM (partido politico Democráticos de orientação liberal e de centro direita) uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3.239/2004) que em 2012 foi relatada junto ao Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Cezar Peluzo. Retomado o processo em março de 2015, a ministra Rosa Weber afirmou a constitucionalidade do decreto, encerrando uma etapa de luta politica iniciada em abril de 2012 contra o voto de inconstitucionalidade. O reconhecimento da existência jurídica das comunidades quilombolas adota como base suas heranças históricas, seus valores e práticas culturais. A institucionalização do decreto de 2003 foi acompanhada pelo lançamento de uma politica nacional quilombola, pautada no Estatuto da Igualdade Racial, no plano Brasil Quilombola e numa agenda social quilombola. Sob a coordenação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada em 2003, a gestão do Programa Brasil Quilombola é compartilhada e exercida por meio do Comitê de Gestão da Agenda Social Quilombola (CGASQ). O Comitê tem como finalidade propor e articular a agenda quilombola às ações inter setoriais para o desenvolvimento presentes na pauta dos ministérios4. O Estado, através do Ministério da Cultura, instituiu uma politica cultural de base comunitária. “Criado no mesmo ano de 2004 o Programa Cultura Viva se destina à população de baixa renda; comunidades indígenas, rurais, quilombolas,  gays e lésbicas (Lei Cultura Viva: 2014)”. O programa trazia um dispositivo inovador na área das politicas públicas de cultura, a conexão em rede das culturas comunitárias, mediante a oferta de equipamentos e de acesso as redes digitais. Os Pontos de Cultura seriam instituídos através de uma política de transferência de recursos públicos. No entanto, a maior parte das comunidades quilombolas não possuía os atributos jurídicos e técnicos que condicionam a transferência de recursos públicos entre os quais se exigia a inscrição mínima de três anos no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica e a constituição como organizações sem fins lucrativos. A ausência do letramento, a herança de saberes, apesar de consolidar um enraizamento cultural único, não foi compatível com a realização de projetos, uso de equipamentos, prestações de contas e assinaturas de convênios. Para atenuar a dificuldade de acesso aos recursos públicos, o Ministério da Cultura instituiu um programa de premiação projetos direcionados aos direitos culturais de indígenas e afro- descendentes. O Prêmio Cultura Viva reconheceu vários O Comitê é composto pelas seguintes entidades, a saber: SEPPIR; Casa Civil da Presidência da República; Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); Ministério da Cultura (MinC); Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); Ministério de Minas e Energia (MME); Ministério da Saúde (MS); Ministério da Educação (MEC); Ministério da Integração Nacional (MI); Ministério dos Transportes; e Ministério das Cidades.

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projetos de base comunitária representado pelos povos ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pelos griôs, mestres de capoeira e pelos povos de terreiro Embora a politica dos pontos de cultura (Turino,2009) tenha possibilitado a emergência de iniciativas culturais de base comunitária, os instrumentos jurídicos e institucionais do Estado Brasileiro não permitem o acesso direto aos recursos públicos por parte das associações comunitárias. Em 2007 o governo instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais a PNPCT (Decreto Presidencial nº 6.040). Ao instituir a Politica Nacional de Desenvolvimento Sustentável para as comunidades Tradicionais, o governo afirmava defender “Territórios Tradicionais como os espaços necessários a reprodução cultural dos povos e comunidades tradicionais compreendidas como comunidades culturalmente diferenciadas” (BRASIL, Decreto 6.040:2007). Identificadas como ecológicas, culturais e sustentáveis, muitas comunidades rurais, agora convertidas em quilombolas, lutam pela defesa de suas identidades e modos de vida que as legitimam ao pleito de RDS (Reservas de Desenvolvimento Sustentável). Tal dispositivo normativo, no entanto, tem sido utilizado na institucionalização de unidades de conservação ambiental em áreas de ocupação de povos tradicionais sem qualquer consulta prévia. As comunidades Tradicionais lutam para exercer autonomia sobre seus territórios, portanto a atribuição jurídica de Unidade de Conservação ainda não inclui as aspirações e modos de vida das populações locais. Vários territórios quilombolas foram transformados em reservas ecológicas ou parques nacionais. No entanto, o reconhecimento como áreas de conservação implica no desempenho de uma performance identitária e ecológica e na renúncia as suas reais aspirações de vida e de desenvolvimento. Eles são legíveis aos benefícios públicos na medida em que se auto- representam como grupos étnicos. A inserção destes novos atores e novas etnicidades (Hall:1997) em processos representativos específicos, inevitavelmente cria conflitos entre a oportunidade de acesso e a submissão aos novos espaços de poder e recursos. As reivindicações dos grupos tradicionais não se justificam por uma identidade fixa e herdada de um passado comum, mas pela construção e disputa permanente de novas reivindicações, no interior de um campo de identidades, representações impostas, conflitos e lutas politicas por direitos humanos e culturais. Do mesmo modo, as comunidades quilombolas ou remanescentes dos quilombos, apesar de terem problemas comuns, apresentam também histórias, culturas e religiões diferentes. (Munanga: 2006) A histórica marginalização das politicas universais, da esfera pública e do mercado conferiu as comunidades tradicionais e grupos rurais quilombolas uma situação de pobreza extrema. Uma das reivindicações prioritárias das comunidades quilombolas tem sido o direito sobre suas terras, o protagonismo de seu próprio desenvolvimento e o livre acesso as politicas públicas.

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Segundo João Evangelista de Sousa, presidente do conselho regional quilombola, a principal dificuldade para os quilombolas é no acesso as políticas públicas. Neste sentido, o Programa Brasil sem Miséria introduziu um dispositivo de visibilidade inédito da ausência de acesso dos grupos quilombolas as políticas públicas. Os relatórios testemunham as condições de exclusão social destes grupos, permitindo reconhece-los além da sua categorização ecológica e cultural. 2. OS QUILOMBOLAS E O CADASTRO ÚNICO DE PROGRAMA SOCIAL O cadastro nacional de programas sociais (CAD) possui dados relativos a 136.925 famílias quilombolas. Entre 2007 e 2015 houve um salto extraordinário de famílias quilombolas com acesso ao Programa Bolsa Família (PBF)5. Em 2007 esse número era de apenas sete mil famílias. No período de oito anos mais cento e trinta mil famílias foram inseridas no PBF. Se por um lado, esse dado representa a atenção política e governamental para a inclusão desses grupos na politica de erradicação da pobreza, por outro lado, ele demonstra o esvaziamento da agenda social e cultural quilombola bem como do acesso aos direitos sociais e culturais garantidos pela constituição. Os povos quilombolas ou as populações negras rurais ficaram impedidos por muitos anos de acessar a Politica não contributiva de Seguridade Social voltada para a população que pratica agricultura familiar. O acesso a esta política garantiria direitos de aposentadoria, estendido aos portadores de doenças crônicas, auxilio maternidade através da qual receberiam um salário mínimo, (Política de Seguridade Social não contributiva Lei 8472) sem ter contribuído para a previdência social. No entanto, esta legislação previdenciária universal não foi assegurada a população quilombola. Aspectos como ausência da posse legal da terra, a falta de documentos e provas específicas do desempenho como trabalhador(a) rural, o não reconhecimento da participação ativa das mulheres no trabalho rural e o desconhecimento das mesmas sobre esse direito, impediram o acesso legítimo das comunidades tradicionais ao direito previdenciário básico. Foi somente a partir do ano de 2007, uma década depois de promulgada a nova constituição, que os primeiros quilombolas do Estado de Pernambuco e Alagoas começaram a ingressar no sistema de seguridade social do Estado Brasileiro. O Ministério Público do Estado de Pernambuco, através do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Cidadania, realizou uma consulta ao Instituto Nacional de Seguridade Social sobre as comunidades quilombolas. A partir deste procedimento, o Estado brasileiro emitiu um parecer segundo o qual um documento atestando que o auto- reconhecimento como membro de uma comunidade quilombola, seria suficiente para acessar benefícios sociais. O relatório do PBSM (2014) pautado em comunidades quilombolas que moram em terras tituladas identificou que 35% das famílias pesquisadas deixam de receber o beneficio Bolsa Família porque se encontram entre 50 e 100 km de distancia Programa de transferência condicionada de renda instituído pelo governo federal em 2004. Ver http://mds.gov.br/ assuntos/bolsa-familia

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do posto de acesso mais próximo, não tendo também acesso a educação e saúde. A logística de acesso ao beneficio de transferência de renda se combina com a ausência sistemática de oferta de serviços públicos como educação, saúde e transporte em muitas comunidades. 3. PRIVAÇÕES E ACESSO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS Nos dados de setembro de 2015, 96.488 mil famílias quilombolas, ou seja, aproximadamente 75% possuíam renda per capita menor que 70 reais outros 10% possuem renda de até 140 reais (MDS: set: 2015). Apesar dos quilombolas serem prioritários para o Cadastro Único, estima-se ainda um contingente 50% maior de quilombolas em extrema pobreza ainda não cadastrados, sem qualquer registro de documentação civil. Em 2007 a Chamada Nutricional Quilombola registrou que a proporção de crianças quilombolas desnutridas até a idade de cinco anos era 76% maior que a população brasileira e 44% maior que a população rural (BRASILd, 2007: 96). O ultimo relatório sobre Segurança Alimentar publicado pelo MDS em dezembro de 2014, mostrou que em todos os 97 territórios quilombolas titulados pesquisados só foi encontrado um único CRAS (Centro de Referencia e Assistência Social), com relação ao atendimento de agentes comunitários de saúde, 15% das 169 comunidades não conheciam este serviço e 62 % relataram a ausência de atendimento comunitário de saúde. Entre as comunidades quilombolas somente 3% tem acesso a saneamento básico ao passo que esse percentual é de 45% para a população brasileira e de 22% para a população situada na pobreza. (BRASILb,2014:130) Conclui-se que essas famílias, mesmo as que ocupam terras tituladas, representam majoritariamente grupos sociais esquecidos e marginalizados que vivem em estado de pobreza multidimensional crônica. Neste quadro de indicadores a compreensão da reprodução social, econômica e cultural destes grupos só pode ser interpretada a partir de práticas de subsistência como extrativismo e um modo de vida específico, numa perspectiva própria de desenvolvimento e organização social. Por outro lado, a obtenção de um registro no cadastro de proteção social do Estado exige além do deslocamento de famílias, uma lista de documentos como certidão de nascimento, casamento, carteira de trabalho, título de eleitor e comprovante de residência que o Estado nunca os forneceu. Sem uma documentação civil não se pode acessar os programas de tarifa social de energia, bolsa família, carteira de idoso, cisternas e entre outros programas básicos de existência social. Para acessar outros serviços como auxilio alimentação, venda de produtos artesanais e mercados institucionais de agricultura familiar é necessário obter uma certificação de aptidão! As principais privações identificadas estão estreitamente relacionadas a ausência do próprio Estado junto as comunidades. O beneficio mais simples, o Bolsa Família, está associado a frequência escolar e carteiras de vacinação atualizadas dos filhos. Os dados do cadastro revelaram também que em média 30% dos quilombolas são iletrados. A ausência sistemática de escolas e postos de saúde, se soma a precária institucionalização da educação e particularmente,

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da educação escolar quilombola. Todos estes exemplos mostram claramente a forma como o Estado reconhece os direitos dos quilombolas no Brasil. A pobreza e o acesso aos direitos são intrinsicamente articulados e produzidos pela presença e ausência sistemática do Estado na vida social dos indivíduos. O programa exige um comportamento jurídico e normativo de grupos comunitários que nunca tiveram intitulados ao exercício de seus direitos e que deles foram, sistematicamente, mantidos a margem. O relatório identificou que aproximadamente 35% da população quilombola com idade média de 25 anos, não sabe ler ou escrever com precisão. Esta taxa é de 11,8% para a população negra brasileira e de 5.6% entre os brancos. Este índice por sua vez não pode ser explicado pela condição rural apenas, no Estado do Rio de Janeiro o percentual de analfabetos chega a 30% em áreas próximas aos centros urbanos, configurando uma média de 26% da população quilombola do Estado do Rio de Janeiro.( CEPERJ,2010) Ainda que o Brasil possua uma extensão territorial que em muitos casos manteve comunidades étnicas isoladas do contato intercultural e social intenso, os elevados índices de analfabetismo e de pobreza crônica se repetem nas comunidades quilombolas próximas de centros urbanos de cidades como o Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. As comunidades e seu meio ambiente sofrem permanente ameaça seja pela ocupação ilegal de fazendeiros e grileiros, seja pelas explorações econômicas da terra, pelo desequilíbrio ambiental que as tornaram, em sua maioria, desprovidas de esgotamento sanitário ou acesso a agua potável. A ausência do acesso as politicas públicas compromete o desafio do Programa BSM de assegurar a integração entre politicas culturais e territoriais de desenvolvimento e de acesso aos serviços, editais públicos e equipamentos públicos.Os relatórios trazem evidencias de que a marginalização das populações específicas decorre da negligencia do próprio Estado, do racismo institucional dos agentes públicos e da ausência de padrões de participação decisória e de representação dos grupos subalternos junto as prefeituras, órgãos públicos e politicas públicas. A multiplicação dos quilombos está, em muitos municípios, servindo a uma nova forma de exploração de comunidades rurais, muitas desconhecem terem sido certificadas por solicitação de prefeituras. Não existem também evidências que comprovem a aplicação de recursos recebidos pelos municípios direcionados as famílias quilombolas. (Arruti,2009) As comunidades quilombolas não possuem representações específicas em conselhos locais. De acordo com o relatório do Ministério do Desenvolvimento Social (Brasil:MDSa,2014:), uma em cada cinco prefeituras demonstrou desinteresse ou recusa em deslocar um agente social para cadastrar comunidades quilombolas no Cadastro Único. Apesar da pobreza extrema, o relatório trouxe informações significativas sobre a qualidade associativa das comunidades quilombolas. Entre as 169 comunidades quilombolas pesquisadas em 2011, 67,9 % possuíam associação de moradores. (BRASIL, MDSa:2014)

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O ativismo feminino reúne um conjunto expressivo de temas voltados para o direito das parteiras, o uso de ervas e tratamentos tradicionais de saúde, o direitos das mães e associações de mulheres. Em quase todos os territórios quilombolas são encontradas mulheres benzedeiras que tratam as doenças com ervas e conhecimentos tradicionais.As mulheres negras e quilombolas ocupam uma tripla inserção categorial na estrutura da desigualdade como gênero, raça e etnia e sobre elas incide a responsabilização pela família. A Chamada Nutricional Quilombola, pesquisa realizada em 58 municípios em 2007 identificou que aproximadamente 37% dos lares eram chefiados por mulheres (MDS c,2008: 98).A ausência de creches, escolas, canalização de água e serviços públicos são indicadores de contextos que agravam ainda mais as privações que afetam a situação feminina nestes territórios. Em 35% das comunidades tituladas não foi encontrado qualquer equipamento público. Sendo que o principal equipamento encontrado em 20% das comunidades são os centros de culto entre eles igrejas evangélicas. A constituição de esferas de representação da população quilombola é um desafio fundamental na politica de reconhecimento e combate a desigualdade. Ainda são precários os vínculos com o poder público, entre os 5mil e 200 municípios do Brasil, apenas 86 possuem representação em conselhos de promoção da igualdade racial e 19 conselhos estaduais sendo que 47% destes conselhos estão situados na região sudeste. (SINAPIR:maio/2015) A inclusão dos quilombolas numa politica universal de combate a pobreza é simultaneamente um processo de reconhecimento e construção de uma existência social, jurídica, geográfica e cultural dessas comunidades. Neste contexto, parece incoerente o recente projeto financiado pelo Banco Mundial de instalação de uma fábrica de lingerie em comunidades quilombolas no Rio Grande do Norte. Tal projeto acabará por reforçar ainda mais a sobre representação e posição que as comunidades negras possuem em categorias de menor status social com baixo prestígio e menor remuneração. Considerando uma agenda focalizada na soberania alimentar, programas como Pronaf, Ater, PAA e PANAE e o direito a comercialização de artesanatos ainda dependem de uma declaração de aptidão – DAP. O que o relatório não coloca, mas a publicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário visibiliza é que pessoas como a líder quilombola Maria Bernadete, agricultora familiar da Bahia, esperou muitos anos para obter a declaração de aptidão que lhe permite acessar programas. O PAA6 foi considerado pela ONU uma das maiores iniciativas de compra institucional de alimentos do mundo que prioriza a aquisição de alimentos e produtos produzidos por comunida Por meio do Programa PAA , criado em 2003, o poder público compra os alimentos de agricultores familiares e os distribui para os grupos em situação de vulnerabilidade social e instituições públicas de alimentação e nutrição, instituições sócio assistenciais, escolas e outras finalidades.

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des e agricultores familiares. Mas para acessar este mercado institucional, ou seja, para participar da lógica distributiva de recursos públicos, é necessário adquirir os atributos jurídicos e sociais sistematicamente negados pelo próprio Estado. Segundo o líder quilombola Domingos Printes, da Comunidade Abuí, na região de Oriximiná (Pará),: “não existe pra nós como quilombola um meio pra que se pudesse acessar esses projetos” a dificuldade acesso estaria segundo ele ligada “aos dois lados: à burocracia, difícil pra nós quilombolas, que temos o modo de vida diferente e, por outro lado, pela política mesmo, o governo do Estado, o poder municipal que não têm interesse”(CPI,2014:7). Podemos concluir que os recursos existem, mas e o acesso aos recursos? O que está em jogo são as condições do exercício do direito de acesso aos recursos sobre o risco de reproduzir um dos aspectos fundamentais do modo de produção social da pobreza: a impossibilidade do exercício dos direitos cujo acesso é marcado pela ausência de atributos em sua maioria condicionados pelo status inferiorizado de cultura, raça e gênero que reforçam ainda mais a desigualdade que atinge os grupos quilombolas. As medidas legais não são capazes de atribuir por si mesmas a reputação moral, social e jurídica destituída aos excluídos, sem a desconstrução dos valores que legitimam a desigualdade. O reconhecimento das identidades étnicas e culturais nos diz muito pouco se não disponibiliza formas concretas que conferem legitimidade ao exercício dos direitos culturais, políticos, legais e econômicos. A desigualdade que afeta os grupos étnicos no Brasil não pode ser explicada por variáveis da pobreza e do racismo apenas. O processo distributivo de terras permanece um desafio fundamental a desigualdade que afeta os grupos tradicionais e as comunidades rurais do Brasil. Menos de 3% da população detém 70% de todo o uso econômico da terra no Brasil. Ao lado da representação politica no congresso contrária aos direitos constitucionais dos grupos tradicionais, a economia do agronegócio do Brasil ocupa 8% do mercado global de comercialização de produtos como celulose, minérios, soja e carne. Mostramos que ao lado do reconhecimento tardio do direito territorial e da identidade, os grupos tradicionais foram afetados por configurações específicas de desigualdade relacionadas às oportunidades de vida e de vínculos com o mercado e o Estado. Os grupos minoritários não possuem os atributos exigidos para acessar as politicas a eles oferecidas. A ausência de atributos é um pressuposto seletivo da própria politica que estabelece as fronteiras entre aqueles que são legalmente aptos e os que devem permanecer a margem do Estado. Neste sentido, os relatórios mostram que a posição social enquanto minoria étnica interfere no acesso aos recursos reforçando a vulnerabilidade dos grupos tradicionais a pobreza. As politicas culturais podem desempenhar um papel fundamental no reconhecimento legal, politico, cultural e social das comunidades quilombolas. Contrariamente ao reforço da iden-

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tidade tradicional, ecológica e engessada no passado. A contribuição de uma politica cultural de reconhecimento adviria exatamente do fortalecimento social dos valores que permeiam os diferentes modos de vida, histórias e condições territoriais que afetam as comunidades tradicionais. Neste sentido, a cultura quilombola é um processo em curso com a própria construção pública de uma cidadania, através da qual os povos quilombolas conquistam o direito de se reinventar e reivindicar seus próprios repertórios simbólicos e discursivos.

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TURISMÓLOGOS NO MUSEU: UM PROJETO PARA OS VISITANTES DO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA Thaís Costa1 Rômulo Duarte2

RESUMO: O Museu Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, é considerado o primeiro museu-casa aberto a visitação no país, sendo um reconhecido patrimônio cultural do século XIX. O fluxo variado de visitantes que se interessam pelos aspectos materiais e imateriais deste patrimônio impulsionaram a gestão do MCRB a reconhecer a importância da elaboração e execução de um planejamento turístico e da qualificação da experiência dos visitantes a partir do projeto intitulado “Museu Casa de Rui Barbosa: estabelecendo relações com turistas nacionais e internacionais”. O projeto visa qualificar os serviços e equipamentos a fim de proporcionar uma melhor experiência aos visitantes. Dessa forma, este trabalho busca, além de apresentar as ações realizadas pelo grupo de turismólogos nos primeiros vinte meses de trabalho, analisar os resultados do projeto e suas potencialidades. PALAVRAS-CHAVE: Museu Casa de Rui Barbosa, Patrimônio Cultural, Turismólogos, Turismo Cultural.

1. INTRODUÇÃO Embora a relação entre museus, cultura e turismo possa parecer óbvia para muitas pessoas, ainda é bastante incomum a presença de profissionais de turismo na gestão, no planejamento, e mesmo nos setores ligados ao atendimento de variados museus e instituições culturais. A percepção do museu como um atrativo turístico, provoca além da ideia de instituição cultural e educativa, mas a compreensão de que o local é também uma área de lazer e entretenimento. Mesmo com toda a complexidade que a palavra lazer engloba, as definições contemporâneas sobre o termo convergem ao evocar seu caráter liberatório, hedonístico e pessoal. A experiência da visitação museal englobaria então essas características? Qual o seu real potencial Mestre em História, Política e Bens Culturais, FGV. Especialista em Turismo pela mesma instituição e em Jornalismo Cultural pela UERJ. Turismóloga UNIRIO. Docente FACHA, pesquisadora CESAP/UCAM e bolsista FCRB. E-mail: [email protected]. 2 Turismólogo pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Turismo na Fundação Casa de Rui Barbosa. E-mail: [email protected] 1

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de atratividade de turistas? Com o crescente aumento do fluxo de turistas na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, com o efeito acarretado nas estatísticas de visitação dos museus, o enfoque a estes questionamentos por parte de gestores e funcionários destas instituições começa a produzir alguns resultados. Este trabalho busca, com base neste cenário, apresentar a atuação do grupo de turismólogos no Museu Casa de Rui Barbosa, destacando as múltiplas ações empreendidas pelo grupo de pesquisa, assim como analisar se os resultados alcançados foram positivos e suas potencialidades. Intenta-se ainda, investigar o processo de criação e as constantes discussões sobre a continuidade desta iniciativa, além de contribuir para construção de um material teórico e empírico sobre o assunto. É importante esclarecer que esta produção tem caráter qualitativo e se baseia na experiência de trabalho dos autores, participantes do projeto desde sua fase inicial. Dessa forma, a metodologia engloba uma análise bibliográfica sobre as temáticas museus, patrimônio, lazer e turismo, assuntos intrínsecos ao objeto deste estudo, para um embasamento teórico. Dados quantitativos e qualitativos gerados por pesquisas e documentos desenvolvidos pelo grupo são referenciados para investigação sobre os resultados alcançados, as limitações do projeto e o retorno por parte do público. Recorre-se ainda à documentos do museu que contribuem na contextualização da instituição e da personalidade Rui Barbosa. A estrutura deste artigo segue a seguinte configuração: a primeira seção traz um breve histórico sobre a transformação da casa de uma personalidade política brasileira em museu, bem como a sua consolidação enquanto tal. Posteriormente, apontamentos sobre o entendimento do museu como um patrimônio cultural e turístico são salientados em uma seção que apresenta e analisa o projeto do qual os turismólogos atuam. São enfatizadas as ações que vem sendo realizadas para melhorar a experiência dos visitantes no museu e para contribuir com as pesquisas na área. Por fim, algumas considerações finais que ressaltam apontamentos sobre uma eventual continuidade e desdobramentos do projeto. 2. A CASA SE TRANSFORMA EM MUSEU A história que permeia a casa onde morou Rui Barbosa e sua família durante 28 anos remonta ao final do século XIX, mais precisamente no ano de 1849, quando Bernardo Casimiro de Freitas, o Barão da Lagoa, adquire a área recém loteada na Rua São Clemente, de nº 66 e constrói a chácara, no lugar das benfeitorias que ali existiam. No ano seguinte, a construção da casa de estilo neoclássico que “consistia de dois corpos ligados entre si além de telheiro, banheiro e galinheiro” (MAGALHÃES, 1994, p. 15) havia sido finalizada, bem como o “jardim, horta, pomar e grande parreiral sobre vergalhões e barra de ferro” (MAGALHÃES, 1994, p. 15).

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Ainda segundo a referida autora, em 1879 a chácara, agora localizada no nº 98 da Rua São Clemente, é vendida para o Comendador Albino de Oliveira Guimarães, que fica sob sua posse por onze anos, até ser arrematada em um leilão pelo inglês John Roscoe Allen e sua mulher. Três anos mais tarde, em 1893, Rui Barbosa e sua esposa, Maria Augusta, compram a chácara da Rua São Clemente. Magalhães (1994) afirma que quando Rui e sua esposa adquiriram a casa, ela já possuía o traçado dado por seu segundo proprietário, o comendador Albino de Oliveira Guimarães, ficando a cargo do próprio Rui Barbosa, apenas algumas alterações mais pontuais que ficaram sob responsabilidade do arquiteto Antônio Jannuzzi. A supervisão dessas obras ficou a cargo do seu cunhado, Carlos Viana Bandeira, o Carlito como era chamado por Rui, pois este teve que se exilar juntamente com sua família, primeiro na Argentina e depois na Inglaterra, tendo em vista as acusações de sua participação na Revolta da Armada. Assim, Rui acompanhava o andamento das obras na chácara por meio das correspondências trocadas com o seu cunhado. Passado o exílio, Magalhães (1994) comenta que Rui Barbosa e sua família vêm direto para a chácara na Rua São Clemente, nº 106, agora conhecida como “Villa Maria Augusta”, homenagem à companheira de 46 anos de casório, e lá residem até 1923, ano em que Rui falece, aos 73 anos. Ao longo desse período a casa foi adquirindo características que refletiam o convívio familiar, sobretudo do patrono Rui Barbosa que, somou a biblioteca os 37.000 volumes de livros, transplantou diversas espécies de rosas para o jardim, os quais tinha um zelo incomparável, no cuidado diário com podas e uso de técnicas e produtos para tratar pragas e prolongar a vida e beleza de suas espécies, ordenação a instalação de uma ducha de água fria, no quiosque do jardim, para os dias mais de verão, dentre tantas outras características. No ano seguinte ao seu falecimento, Maria Augusta, esposa de Rui, vende a casa para o governo brasileiro, que tinha pretensões de transformar a casa em museu. Como ela tinha o interesse em preservar a memória do marido, essa alternativa soou mais interessante do que as outras duas propostas que recebera, uma da embaixada inglesa, que queria comprar a mansão e a outra do Jockey Clube de Buenos Aires, que queria comprar a biblioteca. Assim, em 1924, Maria Augusta “ (…) vende a casa, mobiliário, biblioteca, manuscritos, arquivo e propriedade intelectual das obras à Fazenda Federal dos Estados Unidos do Brasil pelo valor de dois mil, novecentos e sessenta e cinco contos de réis” (MAGALHÃES, 1994, p. 21). Em 1927, através do decreto presidencial de 4/04/1927, a casa é transformada em museu (MUSEU CASA DE RUI BARBOSA, 2013). Há uma vasta categorização de museus presente na bibliografia (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2014; JULIÃO, 2008). Dessas categorias, o museu casa parece apelar para o público por diferentes aspectos que vão de acordo com as suas diversas classificações. Segundo Carvalho (2013) existem nove categorias de museu-casa, a saber: casa de personalidade, de colecionador, de arquitetura destacada, de eventos históricos,

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de sociedade local, ancestral, de poder, clerical, vernacular, casas para museu, salas temáticas e casas rurais. Cada classificação levará em conta um ou mais aspectos da construção do museu como instituição, seja ele uma personalidade que ali residiu, um casarão histórico, com algum destaque histórico relevante ou ainda alguma característica arquitetônica de períodos marcantes. No caso específico do Museu Casa de Rui Barbosa, na classificação proposta por Carvalho (2013), o museu se enquadra na classificação de casa de personalidade, pois foi naquela casa que o Rui Barbosa, ilustre figura política brasileira do século XIX e início do século XX. Mesmo sendo classificada como tal, não se pode deixar de destacar o aspecto arquitetônico da residência do jurista, um casarão neoclássico de meados do século XIX rodeado por um jardim eclético. Ainda é possível perceber as diferentes técnicas do estilo arquitetônico nas fachadas e também no seu interior. A residência na qual Rui Barbosa residiu por 28 anos foi aberta em 13 de agosto de 1930, configurando-se, então, como o primeiro museu-casa do país. Hoje, o museu é um dos diferentes setores da Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição federal criada na década de 1960 cujos objetivos são, dentre outros, a preservação, manutenção e difusão do Museu Casa de Rui Barbosa e de seu jardim histórico (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 2015). Em 1930, depois de um período fechada e após uma reforma na casa e no jardim, Washington Luís, o então presidente, inaugura a Casa de Rui Barbosa no dia 13 de agosto. Ainda nessa ocasião, cada uma das salas da casa recebeu um nome que fazia referência à atuação do Rui Barbosa na política, no direito e na vida familiar (MAGALHÃES, 1994). Oito anos mais tarde, em 1938, a casa é tombada pelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), pelo seu valor histórico e artístico (MUSEU CASA DE RUI BARBOSA, 2013) e o jardim torna-se histórico a partir da publicação da Carta de Florença, na década de 1980, documento básico “para a salvaguarda dos jardins históricos mundiais” (ICOMOS, 1981). A organização da casa do jurista brasileiro em museu foi feita com o intuito de manter a originalidade da vida familiar, mas também destacando o papel do Rui Barbosa em diferentes esferas. Contudo, com a morte do patrono e venda da casa para o Governo, um leilão foi organizado em 1924 na própria mansão e muitos dos objetos foram vendidos, além daqueles que foram divididos entre os herdeiros. O retorno desses objetos foi sendo feito à casa, ora por doação, ora por compra, com destaque para a grande parte que foi trazida de volta por intermédio de Américo Jacobina Lacombe, diretor da casa por 54 anos (RANGEL, 2015). Conforme destaca Rangel (2015), a administração de Lacombe foi importante para a consolidação do museu, já que este trabalhava constantemente para a aquisição de acervo, como os 40 objetos que adquiriu após o falecimento da esposa do Rui Barbosa, Maria Augusta em 1948 e também pela propagação da imagem do patrono, através de eventos, seminários, publi-

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cações, palestras e discursos que realizou em diferentes momentos durante o período que foi diretor da instituição. Desde 1930 que o museu casa está aberto ao público para a visitação, salvo alguns momentos em que foi fechado para obras e reaberto ao público, como em 1972 (REIS, 2011). Cabe ressaltar que o museu foi transformado em fundação na década de 1960, ampliando sua área de atuação e após a construção do prédio anexo na década de 1970. Todas as atividades pertinentes à fundação foram realocadas e o museu pode ser inteiramente disponibilizado para visitação pública. Atualmente o museu é uma divisão do Centro de Memória e Informação da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB/Ministério da Cultura). O registro dos dados de visitação ao museu é feito desde 1929, de acordo com informações obtidas pelo levantamento estatístico oficial da instituição. Esse registro era compilado, anualmente, sobre a forma de relatórios que apontavam a quantidade total de visitantes que o museu recebera naquele ano. A seguir foi feito um resumo com as informações extraídas dos relatórios anuais da instituição. Todos estes relatórios estão guardados no Arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. Uma primeira observação feita foi que nos relatórios iniciais, este registro era feito sem qualquer distinção de origem ou idade, sendo todos os visitantes contabilizados de uma única forma. Contudo, este registro foi sendo alterado ao longo dos anos e do crescimento das atividades da fundação. Na década de 1970, por exemplo, outras variáveis foram incluídas no registro dos visitantes, notadamente, a partir do ano de 1972, quando foram incluídas as variáveis “adulto”, “criança” e “estrangeiro”. Ainda assim, não é possível afirmar se, por exemplo, as crianças estrangeiras eram contabilizadas nesta tipologia, na de estrangeiro ou ainda em ambas as variáveis. O registro foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos, com a inserção de variáveis, supressão de outras, conforme a instituição lançava novos projetos como, por exemplo, a mediação no museu com grupos escolares ou visitantes espontâneos, eventos musicais, eventos acadêmicos, dentre outros. Em 2005 foi feita uma última padronização destas estatísticas, sendo esta a que prevalece até hoje. Com relação aos números de visitação ao Museu Casa de Rui Barbosa, pode-se perceber uma flutuação no número de visitantes na casa entre as décadas de 1930 e 1960, ficando entre mil e seis mil. Na década de 1970, há um aumento significativo no número de visitantes. Os números começam em 16 mil, em 1972, chegando até 24 mil em 1974. Esses elevados índices permanecem até o final da década e a partir de 1980 em diante, os números voltam a se estabilizar entre dois mil e oito mil visitantes. Neste período, a casa esteve fechada em dois momentos por alguns meses em 1984 e novamente em 1986, segundo informações deste levantamento estatístico. Nos dez anos seguintes, de 1986 a 1996, a visitação no museu variou entre os 1.800 visitantes até oito mil, com oscilações entre esses anos. De 1997 a 2005, há um aumento na curva

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de visitantes, cujo ápice acontece no ano de 1999, quando o museu recebeu 10.595 visitantes. Ressalta-se, contudo, que neste número estão incluídos os visitantes das exposições temporárias no museu e jardim. Neste período o museu esteve fechado ora parcialmente, ora totalmente para a visitação por motivos de obras ou processo de restauração das salas, fator que incentivou a queda no número de pessoas no museu no período. De 2005 até 2013, há um crescimento no número de visitação, alcançando quase 12 mil visitantes neste último ano. Em 2014, o número de visitação vem variando na casa dos 11 mil visitantes e até o presente momento, os dados indicam uma quantidade parecida com a obtida no ano anterior. Este aumento substancial no interesse pelo museu por parte de moradores da cidade e de turistas influenciou, de certo modo, a criação de projetos de mediação das visitas, que vem se transformando ao longo dos anos. 3. O MUSEU E O PROFISSIONAL DE TURISMO A afetividade do público com o museu não é passível de mensuração, devido sua complexidade e por seu caráter subjetivo. Ao longo desses anos de existência, a instituição recebeu variados perfis de visitantes, com diferentes expectativas e anseios. Todavia, com o objetivo de intensificar a aproximação e o envolvimento do público com o museu e, assim, contribuir para a melhoria da experiência turística, a gestão da instituição desenvolveu o projeto Visitas Especiais Mediadas - VEM. As mediações das visitas ao museu já existiam antes deste projeto, porém eram voltadas apenas para grupos previamente agendados, especialmente compostos por estudantes do ensino fundamental e médio. No entanto, a VEM foi criada pela museóloga Aparecida Rangel com o objetivo de atender o público espontâneo que também demandava acompanhamento específico. Os responsáveis pelas mediações eram os estagiários, que poderiam ser graduandos dos cursos de museologia ou turismo. Apesar da boa receptividade do público para com esse projeto, ainda havia a necessidade de desenvolvê-lo com ações mais planejadas e inovadoras que pudessem envolver o público ainda mais. A princípio, a chefe do museu, Jurema Seckler, buscou contratar guias de turismo para realizar este trabalho. No entanto, ela não encontrou nenhuma empresa que oferecesse este serviço especificamente para uma instituição. A solução encontrada foi a criação de um projeto que envolvesse bolsistas especificamente formados em turismo. Em maio de 2014, o edital de bolsas da Fundação Casa de Rui Barbosa contemplou o projeto Museu Casa de Rui Barbosa: estabelecendo relações com os turistas nacionais e internacionais. A instituição, regularmente, oferece bolsas de pesquisa vinculadas a diferentes setores que desenvolvem projetos específicos. A titulação dos candidatos varia de acordo com as neces-

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sidades de cada projeto, podendo ser graduandos, graduados, especialistas, mestrandos, mestres, doutorandos ou mesmo doutores, que podem se concorrer a vagas de estágios pós-doutorais. Diversas são as áreas contempladas, sendo a grande maioria relacionadas às ciências humanas ou sociais. Para o referido projeto do museu, foram solicitados seis profissionais formados em turismo com experiência anterior na área. Partindo da concepção de museu também como atração turística e considerando todo o seu valor histórico, arquitetônico e cultural, este projeto de turismo se diferencia dos anteriores que focavam somente nas mediações. O documento também contempla diversas atividades de pesquisa, planejamento turístico e de qualificação do espaço e dos serviços oferecidos ao público espontâneo. Tem por objetivo geral o de “elaborar, a partir do diagnóstico do potencial turístico, um plano de ação para a inserção do museu no cenário turístico da cidade do Rio de Janeiro” (PROJETO DE TURISMO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA, 2014, p. 03). Como objetivos específicos é proposto “montar programas para a visitação do Museu Casa de Rui Barbosa como estratégia de atração dos diversos segmentos sociais contribuindo para a preservação de um importante documento museológico da cidade do Rio de janeiro. Levantar bibliografia específica sobre a relação turismo e museus. Qualificar o atendimento ao turista em todos os seus aspectos”. (PROJETO DE TURISMO MUSEU CASA DE RUI BARBOSA, 2014, p. 03). Julga-se necessário frisar que, apesar destes objetivos preverem um desenvolvimento da imagem do museu no roteiro turístico da cidade, a ideia, segundo Jurema Seckler, não era de aumentar significativamente a quantidade de visitantes no museu, mas sim de qualificá-lo a fim de melhorar a experiência do público. Dessa forma, os pesquisadores bolsistas foram contratados para desenvolver tais ações sob a supervisão da chefe do museu Jurema Seckler e orientação inicial da professora Telma Lasmar, da Universidade Federal Fluminense. Os bolsistas selecionados foram Gabriel Schwantes, João Freitas, Renata Garanito, Tatiane Freitas, além dos dois autores deste artigo, Rômulo Duarte e Thaís Costa. Atualmente, Tatiane Freitas e Gabriel Schwantes não participam mais do projeto. Dentre as diversas funções desenvolvidas pelo grupo durante esses primeiros vinte meses, estão a mediação das visitas, a organização e curadoria de eventos, a realização de oficinas de hospitalidade para os funcionários do museu, a criação de roteiros alternativos na casa e no jardim, a contribuição com os setores de comunicação e museologia por meio da execução de ações de promoção e qualificação do museu. A fim de atender os objetivos traçados no projeto, o grupo realizou inicialmente diversas pesquisas sobre a história da casa, de Rui Barbosa e sua família e também sobre o contexto histórico do Rio de Janeiro e do Brasil no período em que Rui Barbosa viveu. A partir de então, as visitas mediadas puderam ser realizadas, com base em uma vasta bibliografia estudada. O grupo

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se responsabilizou por reestruturar a VEM, definido horários específicos das visitas e buscando atender as diferentes demandas dos visitantes. Cada mediação considera as particularidades dos visitantes e procura atender suas expectativas. A avaliação deste trabalho ocorre por meio de pesquisas de satisfação e também das avaliações e mensagens que o museu recebe em sua página na rede social online Facebook ou no site de viagens TripAdvisor. Até o momento o retorno recebido por este trabalho vem sendo muito positivo. Figura 1: Comentário de um visitante no site TripAdvisor

Paralelamente a essas atividades, os turismólogos desenvolveram um plano de ação para o museu. Para a realização deste documento o grupo se baseou nas etapas básicas demandadas para um planejamento de um atrativo turístico, balizados na ideia de que o planejamento é uma ação fundamental para desenvolver a atividade turística prezando pela sustentabilidade da localidade, assim como Dias (2003) defende. “O patrimônio natural e cultural está integrado ao território e, portanto, qualquer iniciativa de desenvolvimento deve contemplar utilização racional dos recursos dentro de uma perspectiva de um modelo de desenvolvimento sustentável” (DIAS, 2003, p. 37). Este documento foi elaborado a partir de um diagnóstico que contempla um inventário turístico da oferta e da demanda. Após a análise dos resultados desta etapa e a identificação das forças, fraquezas, oportunidades e ameaças por meio da matriz SWOT, fundamentada pelos pesquisadores Kenneth Andrews e Roland Christense, foram feitas proposições para melhorias no local. Por fim, essas proposições foram incluídas em um plano de ação que definia o que deveria ser executado no ano posterior. Com a renovação da bolsa em maio de 2015, algumas ações propostas no plano de ação puderam ser executadas e outras demandas foram surgindo, de acordo com as necessidades do museu. O grupo atualmente se dedica a organizar seu primeiro grande evento acadêmico, o I Seminário Nacional de Turismo e Cultura, e a mediação de visitantes às obras que estão sendo realizadas no museu.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A iniciativa da Fundação Casa de Rui Barbosa em contratar turismólogos para se dedicarem a planejar e qualificar o espaço e os serviços para melhor receber o público demonstra uma preocupação da instituição em proporcionar uma experiência prazerosa e agradável de lazer e cultura a seus visitantes. O trabalho do grupo de turismólogos vem recebendo um retorno muito positivo, tanto da chefia do museu, quanto da diretoria do Centro de Memória e Informação e do público em geral. Apesar dos resultados bastante assertivos, o grupo encontra ainda algumas limitações para o desenvolvimento de suas atividades. A dificuldade em conseguir recursos, muito associada às limitações de verbas em instituições públicas é um desses problemas. Contudo, acredita-se na pertinência deste projeto e na sua possível implementação em outras instituições culturais que se interessem em desenvolver a atividade turística e de lazer. É notável, ainda, o potencial dos profissionais de turismo, que podem atuar em conjunto com outros profissionais, visando a melhoria geral dos serviços oferecidos destas instituições.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESVALLÉES, André., MAIRESSE, François. Conceitos-chave de museologia. São Paulo: Armand Colin; Comitê Internacional para Museologia do ICOM; Comité Nacional Português do ICOM, 2014. DIAS, Reinaldo. Planejamento do Turismo: política e desenvolvimento do turismo no Brasil. São Paulo: Atlas, 2003. FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Sobre a fundação. Disponível em: Acesso em: 25 de novembro de 2015. JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. Caderno de diretrizes museológicas 2: mediação em museus: curadoria, exposições, ações educativas, pp. 19-32. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, Superintendência de Museus, 2008. OLIVEIRA, Lucia Lippi. Cultura é Patrimônio – um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. MAGALHÃES, Rejane Mendes Moreira de Almeida. Rui Barbosa na Vila Maria Augusta. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1994. MUSEU CASA DE RUI BARBOSA. São Paulo: Banco Safra, 2013. _____. Levantamento estatístico de visitação. Fundação Casa de Rui Barbosa: Rio de Janeiro, 2014. IPHAN – INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL/MINISTÉRIO DA CULTURA. (org.) Isabelle Cury. Cartas Patrimoniais, 3ª ed. Brasília: IPHAN, 2000. ICOMOS – INTERNATIONAL COUNCIL ON MUNUMENTS AND SITIES. Carta de Florença: Carta dos Jardins Históricos. Florença, 1981.

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RANGEL, Aparecida Marina de Souza. Museu Casa de Rui Barbosa: entre o público e o privado. 2015. 261f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. REIS, Claudia Barbosa. Memória de um jardim. Estudo do acervo do Museu Casa de Rui Barbosa 6. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2011.

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A VIDEOARTE NO BRASIL: UM PANORAMA ANTES E DEPOIS DA ORIGEM DO FESTIVAL VIDEOBRASIL Thamara Venâncio de Almeida1 RESUMO: Procuramos apontar no presente artigo um panorama da videoarte antes e depois da origem do Festival Videobrasil. O que se refere ao cenário anterior, indicamos uma série de fatores e seus principais agentes que contribuem para a expansão da prática no Brasil até o momento da origem do Festival, em 1983. Trabalharemos, a partir das edições do Festival, o modo como o mesmo contribui para fomentar a prática, demonstrando seu crescimento a datar de sua origem. A seguir, ocuparemos de enunciar o modo como a política cultural do Videobrasil se aprimorou ao longo de suas edições em prol de difundir, fomentar e refletir em torno da produção artística do Sul Global, sendo considerado hoje, um dos principais festivais de vídeo e arte eletrônica da América Latina. PALAVRAS-CHAVE: Videoarte, Festival Videobrasil, Política Cultural, América Latina.

1. INTRODUÇÃO “O vídeo é uma ferramenta que surgiu em um momento de questionamento profundo dos suportes, materiais, lugares e formatos da arte”, constata Solange Farkas, criadora e curadora-geral do Festival Videobrasil até a atualidade. (ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL; SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SESC SP, 2015) A videoarte em seus primórdios, principalmente no Brasil, não foi de imediato aceita, passando por muitas dificuldades. Uma figura central para sua expansão e amadurecimento da prática no país será o historiador, crítico e curador de arte Walter Zanini, grande entusiasta da videoarte. Enquanto diretor do MAC-USP viabilizou meios de expandir a prática no país, ajudando também na produção ao procurar adquirir para o museu um equipamento de vídeo portátil para auxiliar os artistas. O campo da videoarte brasileira passou por diversas transformações ao longo dos anos, em diferentes contextos políticos, culturais e econômicos. A partir dos anos 1980 desenvolve-se um ambiente mais propício à produção, exibição e distribuição, anteriormente sendo afetado pela ditadura civil-militar, fato que dificultou uma maior expansão do vídeo por inúmeras razões. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens do Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]

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É nesse contexto, de afrouxamento político, que o Festival Videobrasil surge para contribuir para a criação em videoarte do país. Passando por várias transformações, que aqui indicaremos, o Festival toma espaço significativo, passando a ser considerado um dos principais festivais de vídeo e arte eletrônica da América Latina. O seu acervo é apontado como um dos mais ricos. Traçando um panorama da prática da videoarte antes e depois da origem do Festival Videobrasil, podemos indicar e fundamentar o crescimento da atividade no Brasil e demonstrar a relevância do Festival, como espaço de exibição, intercâmbio, debate, pesquisa e produção. O intuito para apresentar a política cultural do Festival, é trabalhar a partir das suas edições, indicando transformações e mudanças, para listar assim os principais pilares pelos quais o Festival se orienta e se palpa. Sendo assim, evidenciamos com mais clareza o formato que o Festival adquiriu na atualidade, seguindo projetos que estavam pertinentes desde as primeiras edições. 2. ANOS 70 E 80 NO BRASIL: OS PRIMEIROS PASSOS EM DIREÇÃO A EXPANSÃO DA PRÁTICA DA VIDEOARTE Nos primeiros anos, a videoarte no Brasil caminha lentamente na sua expansão, encontrando dificuldades, seja na produção, pelo obstáculo de compra do equipamento, seja na exibição, pela falta de espaços expositivos ou até mesmo pela censura sofrida pela ditadura civil-militar vigente no país. O historiador, crítico de arte e curador Walter Zanini, considerava importante para a motivação e expansão da prática no Brasil a 13ª Bienal de São Paulo (1975), a qual é marcada por uma presença significativa de artistas norte-americanos da videoarte. A Bienal anterior, de 1973, também contou com a participação de videoartistas dos EUA, embora de menor porte, com outra curadoria, tendo passado por muitos problemas em suas apresentações. Ainda em 1973, teremos a primeira aparição do vídeo em museu nacional com a documentação filmada pela TV 2 Cultura do “Passeio Sociológico pelo Brooklin”, no MAC-USP, em que registra a ação do artista multimídia francês Fred Forest acompanhado de artistas e estudantes. Em outubro do mesmo ano, na VIII Jovem Arte Contemporânea (JAC), também do MAC-USP, aconteceu o primeiro programa de videoarte visto em museu no país, em que foram apresentados vídeos de Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Sônia Andrade, Ângelo de Aquino, entre outros. No ano seguinte, sob empenho de Walter Zanini, artistas brasileiros participam da mostra internacional VideoArt, realizada no Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. Zanini recebera o convite para coordenar uma representação brasileira na exposição, vários artistas prepararam projetos, porém devido a inúmeras dificuldades de continuidade do trabalho, - que envolvia em alguns casos a não obtenção de um aparelho de vídeo

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- muitos não conseguiram entregar a tempo suas obras. Foram então, o grupo de artistas do Rio de Janeiro, – Anna Bella Geiger, Ângelo de Aquino, Sônia Andrade, Ivens Machado e Fernando Cocchiarale – que tiveram seus trabalhos enviados pelo correio por Walter Zanini, graças a Jom Tob Azulay, que havia adquirido uma câmera Portapack nos EUA, colocando à disposição desses artistas, propiciando suas produções. Sobre esse período de consolidação, mas também de muitas dificuldades da videoarte, Walter Zanini relata a respeito: (...) quando entrou aqui a nossa videoarte na década de 1970, nos anos de 1974 e 1975, já era um momento assim de desenvoltura, de consolidação do videoarte. Mas o vídeo teve inícios solitários, digamos. (...). Não se tinha melhor informação aqui ou um apoio crítico. A crítica muitas vezes ia contra esse tipo de arte, não levava a sério. Foi muito difícil. E, além disso, o equipamento de filmagem era caro, de difícil aquisição, difícil de ser utilizado. No caso do aparelho Sony Portapack, nós começamos a comprá-lo em 1975 e somente em 1976 conseguimos de fato. Não era fácil conseguir isso na USP, era tudo muito demorado e o aparelho era importado, a verba era da reitoria e era a ditadura, isso também complicava (...). (FREIRE, 2013, p. 90) O ano de 1976 foi crucial para o contexto da videoarte, pois foi o ano em que o MAC-USP criou o Setor de Vídeo, e também adquiriu finalmente a câmera Portapack. Esse ano contou com a presença de Antoni Muntadas2 no Brasil, que realizou performances, debates e mostrou vídeos no MAC-USP. No ano seguinte o museu promoveu várias mostras com trabalhos em vídeo, dedicando a primeira delas, “7 artistas do vídeo”, a Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Letícia Parente, Miriam Danowski, Paulo Herkenhoff e Sônia Andrade. O museu ofereceu paralelamente um curso técnico especializado a vários interessados. Outras exposições em sequência foram “Vídeo no MAC”, a “Video Post” e a “Videomac”. Em 1977, na 14ª Bienal Internacional de São Paulo, a videoarte ganhou um lugar específico entre os sete temas propostos para o evento, onde pela primeira vez, a escolha das obras internacionais, não teve mais que ficar a critério das representações por países. No ano seguinte, 1978, Walter Zanini deixará a direção do MAC-USP, sendo o Setor de Vídeo do museu desativado após sua saída. No mesmo ano, o Museu da Imagem e do Som (MIS) realizou o “I Encontro Internacional de Vídeo Arte de São Paulo”, onde foram apresentados alguns dos trabalhos realizados no MAC-USP nos anos anteriores. Com iniciativa de Roberto Sandoval, criou-se em 1978, em São Paulo, a escola de Artes Visuais (Áster), juntamente com seus sócios Walter Zanini, Julio Plaza, Donato Ferrari e Regina Silveira. Além dos ateliês, uma sala era alugada por Roberto Sandoval e Renata Padovan como Videoartista espanhol reconhecido internacionalmente, contém obras nos principais museus do mundo, vive e trabalha em Nova York desde os anos 1960, começou a produzir vídeos em 1971. Possui mais de cem obras, incluindo videoperformances e videoinstalações. É um dos pioneiros da videoarte na Espanha. Em: VALDELLÓS, Ana Sedeño. Historia y estética del videoarte em España. Comunicación social: ediciones y publicaciones, 2011.

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sede de uma produtora de vídeo que funcionava também como um ateliê-escola, onde Sandoval disponibilizava para os artistas apoio técnico para experimentarem essa linguagem, além de organizar seções de videoarte onde apresentava trabalhos lá realizados ou advindos do exterior. A Áster foi importante para o campo das artes visuais, por promover produções e exibições, e abranger a discussão crítica da videoarte. O instituto teve vida curta por apresentar problemas com a Prefeitura de São Paulo, sendo multado por operar em área residencial. Em 1979, sob a presidência de Figueiredo, foi sancionada uma lei que concedia anistia aos cassados e exilados pela ditadura. Muitos artistas e intelectuais puderam voltar para o Brasil desde então. Dentre os fatores mais importantes para um início da consolidação do campo da videoarte, os indicados acima são os mais importantes. Veremos despontar nos anos 1980 outros fatores e agentes que ajudarão a expandir ainda mais a prática artística, sendo tais esforços fruto da década anterior. A década de 80 continua amplamente estabelecendo diálogos com a década anterior, tanto nas produções, quanto nos esforços de ampliação da prática que começam a ver seus resultados nesse período. Embora se estabeleça um diálogo, houve na década de 80, grandes mudanças de protagonistas advindos de formações e orientações diversas, muito contrárias à dos pioneiros, cuja produção videográfica refletia sua visão plástica. As discussões em torno da linguagem videográfica são ampliadas durante toda a década de 80. Enquanto a geração anterior estabelece resistência a TV de massa com um embate crítico, a geração que surge nos anos 1980 busca acrescentar a perspectiva crítica estratégias de gerar novas estéticas alternativas para se relacionar com essa mídia. Foram inúmeras as contribuições nesse período para se firmar a consolidação do campo da videoarte, e será nesse momento que veremos surgir grupos de criações coletivas, festivais, produtoras, e claro, uma maior abertura de venda de equipamentos portáteis e a disseminação do videocassete. Seguindo cronologicamente a ordem dos fatos, na 16ª Bienal de São Paulo (1981), Zanini é convidado por Luiz Villares, para ocupar o cargo de curador geral – primeira vez na história da Bienal de São Paulo que se incluiu tal função -, onde propõe a ação inédita de organização por analogias de linguagens, e não mais por países de origem. As propostas de renovação da Bienal de 1981 foram aperfeiçoadas na edição seguinte, de 1983, onde foram criados setores dedicados a tecnologias eletrônicas. Em 1982, são lançados no mercado brasileiro pela Sharp, os primeiros videocassetes domésticos fabricados no Brasil, em VHS, de ½ polegada. A distribuidora lançou também as primeiras câmeras VHS de vídeo, que passou a substituir “processos caseiros de captação e edição de imagens em super-8 pela captação e edição de imagens em vídeo”. (Mello, 2008)

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Com a chegada de equipamentos portáteis semiprofissionais no Brasil, começaram a aparecer grupos coletivos de exploração da linguagem audiovisual, que logo despontou na criação das primeiras produtoras independentes de vídeo. Dentre as pioneiras, estavam as paulistas TVDO (lê-se tvtudo) e a Olhar Eletrônico. A TVDO foi criada em meio acadêmico no ano de 19793. Já a Olhar Eletrônico aparece em 1981, constituída por arquitetos recém-formados4 da FAU-USP. Ambas encerram suas atividades no final da década de 1980. Christine Mello (2008) constata que “o importante nesse período era abrir o espaço das práticas midiáticas para a diversidade de opiniões e visões divergentes”. Nesse contexto de abertura democrática, seja no acesso, na produção ou na veiculação da informação, surgem uma dezena de festivais e mostras de vídeo no país5. 3. A ORIGEM DO FESTIVAL VIDEOBRASIL E AS MUDANÇAS EM SUAS EDIÇÕES O Videobrasil, um dos primeiros festivais brasileiros de vídeo, surge em 1983 para organizar, expor e legitimar o campo da videoarte – entre outras artes eletrônicas. Concebido por Solange Farkas, por quem é dirigido e curado até a atualidade, tem desde os primórdios a capacidade de exibir, premiar, debater e intercambiar trabalhos de arte eletrônica nacional e internacional, tendo aparecido em um momento em que o vídeo ainda procurava um lugar de exibição para sua linguagem. Sobre o festival, Solange Farkas escreve: Esse festival nasceu em 1983 para aglutinar esse campo intelectual em torno de um espaço de exibição, premiação e intercâmbio entre os setores da produção audiovisual que o vídeo questiona. Funcionou como espaço da articulação espontânea da produção local e promoveu sua conexão com a arte internacional, especialmente a partir de 1985. Mas, na dialética desse processo de internacionalização, o Videobrasil sempre esteve preocupado com a procura e a determinação da nossa identidade audiovisual como latino-americanos e, mais amplamente, como produtores do Hemisfério Sul. (FARKAS, apud MACHADO, 2007, p. 219-220) A primeira edição do Festival Videobrasil aconteceu sob o apoio de grandes empresas, como a MAC (fabricante de fitas magnéticas de áudio e vídeo cassete), a SHARP (fabricante de televisores a cores e gravadores vídeo cassete), a Polyvox (fabricante de consoles e cartuchos para videogames) e a Sony (fabricante de videocassetes). O Festival premiava os ganhadores com videogames e videocassetes, além de contemplá-los com assinaturas das revistas Video News (lançada em 1982), Som 3 (lançada em 1979) e Novidades Fotoptica (lançada em 1970 Dentro da Escola de Comunicações e Artes da USP por Tadeu Jungle, Walter Silveira, Ney Marcondes e Paulo Priolli. Em: MELLO, Christine. EXTREMIDADES DO VÍDEO. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008. 4 Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Paulo Morelli e Beto Salatini, 5 De acordo com pesquisa realizada pela autora em catálogos do Festival Videobrasil. 3

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por Thomaz Farkas, um dos principais financiadores do festival desde sua origem). O festival aconteceu até a sua oitava edição no Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo, transferindo-se depois para o SESC Pompéia. Dentre a programação da primeira edição, além dos tapes em concurso, houve exibições de tapes fora de concurso e mesas de debates. Na segunda edição do Festival Videobrasil, foi criado o Vídeo Mercado, devido à necessidade dos realizadores independentes no ano anterior de comercializar os seus tapes. O Vídeo Mercado foi a primeira tentativa organizada que tentou estabelecer uma ponte entre os produtores de videotapes e interessados em comprar o produto. O festival amadurece em sua terceira edição, dando início a criação de uma Videoteca no Museu da Imagem e do Som. Além de guardar e preservar trabalhos de membros que circulavam, o festival busca a iniciativa de restaurar e mapear tapes dos pioneiros, a fim de preservar suas experiências. Com a ajuda da Sony do Brasil e patrocinado pela Secretaria de Estado da Cultura e o MIS, foi realizado um rigoroso trabalho de levantamento de acervo, garimpo e arqueologia eletrônica, em que se buscou tais obras, dispersas entre São Paulo e Rio de Janeiro, sendo encontradas guardadas em péssimas condições de conservação, em que a maioria estavam deterioradas. Ainda nessa terceira edição, de 1985, o Festival passa a excluir obras da mostra competitiva que já haviam sido exibidas pela televisão, e com intenção de atender a uma produção diversificada, opta por criar novas categorias como clipe, documentário, ficção e experimental. No mais, ainda temos a importante presença da Secretaria de Estado da Cultura no evento, que anuncia a criação de um prêmio, caro para fomentar a produção de vídeo. Farkas constata que o Festival se consolida como um espaço fundamental de exibição de vídeo em 1986, na sua quarta edição. Devido ao grande número de inscritos - ver tabela 01 abaixo -, essa edição realizou uma seleção mais cuidadosa que a anterior. O quarto Festival Videobrasil realizou em parceria com o Video Data Bank de Chicago a mostra norte-americana de vídeo contemporâneo, flertando com a internacionalização. Muitos artistas puderam presenciar nesse ano a euforia de ver finalmente sancionada a lei de incentivo à cultura, pelo Presidente José Sarney.

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Tabela 01: Festival Videobrasil / Mostra Competitiva6

Edição do Festival/ano 1º Festival Videobrasil/1983

Nº de obras inscritas 78

Nº de obras selecionadas 36

2º Festival Videobrasil/1984

120

60

3º Festival Videobrasil/1985

96

50

4º Festival Videobrasil/1986

192

40

5º Festival Videobrasil/1987

223

50

6º Festival Videobrasil/1988

174

35

7º Festival Videobrasil/1989

160

41

8º Festival Videobrasil/1990

200

32

9º Festival Videobrasil/1992

304

45

10º Festival Videobrasil/1994

239

37

11º Festival Videobrasil/1996

438

69

12º Festival Videobrasil/1998

400

70

13º Festival Videobrasil/2001

644

135

14º Festival Videobrasil/2003

765

97

15º Festival Videobrasil/2005

652

130

16º Festival Videobrasil/2007

791

66

17º Festival Videobrasil/2011

1295

101

18º Festival Videobrasil/2013

1957

107

Dentre os festivais Videobrasil que se seguem, surge uma ampla gama de acontecimentos e mudanças que irão nortear as produções de videoartistas, passando a estabelecer um maior contato internacional com outros circuitos e agentes. Na edição de 1987, o Festival aposta fortemente na internacionalização, convidando um dos artistas inventores da videoarte para a mostra, o nova-iorquino Ira Schneider7.

Tabela criada de acordo com os dados fornecidos pela Associação Cultural Videobrasil. Em: ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL; SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SESC SP.. VIDEOBRASIL: Três décadas de vídeo, arte, encontros e transformações. São Paulo: Edições Sesc São Paulo: Videobrasil, 2015. 7 Ira Schneider começou a produzir vídeo em 1969 com o advento de equipamentos de vídeo portáteis. O Consulado Geral dos Estados Unidos cedeu cinco trabalhos do artista para a mostra.

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Na edição seguinte, a sexta, a mostra evolui para uma nova fase, não tendo mais, apenas, a intenção de dar força a jovens produtores, mas sim, a de estimular a profissionalização deles. Até então, essa mostra foi a mais recheada de convidados internacionais, o que fez com que os realizadores brasileiros entrassem em contato direto com a produção de fora. E é dessa política de contato com a produção global, oferecendo aos artistas brasileiros do vídeo oportunidades de aprendizado e troca fora do país, que o Festival Videobrasil se palparia cada vez mais, a cada edição. O Festival Videobrasil incorpora em sua sétima edição (1989) um programa de residências artísticas, com o intuito de estimular um diálogo profícuo entre artista e instituição. A primeira contemplada no programa, pelo videoclip “Manuel” (1989), foi a videoartista Sandra Kogut, ganhando o prêmio especial Montbéliard por sua trajetória artística. Realizou sua residência em 1990 no CICV (Centre Internacional de Création Vidéo Montbéliard, França), a respeito da experiência concedida relata: O convite inesperado, abriu todo um horizonte de possibilidades. A ideia de passar meses num lugar, tendo acesso a uma tecnologia até ali completamente inacessível, para desenvolver minhas ideias, criar, fazer o que eu quisesse, parecia um sonho. (...). Foi uma época muito rica, de muita liberdade. Fazíamos os projetos quase num gesto de loucura, sem muita ideia de como viabilizá-los. Eles eram fruto de muita teimosia. (ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL; SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SESC SP, 2013, p.37) Na sua oitava edição, em 1990, o Festival adquire caráter internacional, incorporado ao nome do evento. Com a sua política cultural de implementar produções que aconteciam fora do circuito principal da arte e do vídeo, o festival abre espaço de sua mostra competitiva para realizadores da América do Sul, Austrália, África e Sudeste Asiático. Após a oitava edição, o festival voltaria apenas em 1992, com significativas transformações. Nesse ínterim de dois anos, é criada a Associação Cultural Videobrasil que insere o evento no centro de um programa de fomento e pesquisa da produção do Sul geopolítico. O festival muda a periodicidade anual para bienal, com foco em vídeos de caráter artístico e experimental. Passa a ser realizado no Sesc Pompeia e firma parceria com o Serviço Social do Comércio de São Paulo. Nessa edição, em 1992, o festival comissiona sua primeira obra, The Desert in My Mind, de Eder Santos. Em 1994, há novamente uma mudança no nome do festival, que incorpora a expressão “arte eletrônica”, sendo chamado de 10º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica. Na edição de 1996, o festival aprimora a ocupação do espaço e recebe um público de trinta mil pessoas, fruto do árduo trabalho curatorial dos anos anteriores, que concretizou nessa mostra. Trazem a São Paulo 83 convidados de quinze países, expandindo o Sul geopolítico para acomodar o Oriente Médio. O número de inscritos cresce de forma significativa nessa mostra, assim como o número de obras selecionadas - ver novamente tabela 01. 2001

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A próxima edição, de 1998, como anunciado em catálogo da mostra, marca um momento de expansão do projeto. Estende sua presença geográfica e amplifica sua programação para um público ainda mais diversificado e numericamente maior. Divide-se entre a três sedes do Sesc de São Paulo, ampliando para três semanas de apresentação no Sesc Pompeia, Sesc Ipiranga e Sesc Vila Mariana. Passados três anos após a última edição em 1998, é realizado em 2001 o 13º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica. Dentre esse hiato de tempo a Associação Cultural Videobrasil em parceria com o Sesc São Paulo realizou a Mostra Africana de Arte Contemporânea no ano 2000. Com a disseminação de novas tecnologias, a décima terceira mostra se revela cheia de possibilidades, dividindo-se em duas categorias: vídeos e novas mídias. Houve um aumento de 61% de inscritos na mostra competitiva em relação à anterior, sendo a categoria de competição de vídeos aberta apenas aos países em desenvolvimento e aos de língua portuguesa. Na sua edição de vinte anos (2003), marcado pelo contexto político global pós-11 de setembro, a mostra competitiva pautada pelo tema Deslocamentos, é definida ao afirmar seu caráter curatorial priorizando obras de forte teor crítico. Passando a ser eleito por temas, o assunto que rege o eixo curatorial da décima quinta edição (2005) é a performance. A história da performance permeia toda a mostra, sendo temas de workshop e da primeira edição do Caderno Sesc_Videobrasil, lançado a partir deste ano em todas as edições. A mostra competitiva passa a ser nomeada de Panoramas do Sul, dividindo-se em três propostas temáticas: Estado da Arte, Investigações Contemporâneas e Novos Vetores. O décimo sexto Festival (2007) se apropria das aproximações existentes entre cinema, vídeo e artes visuais homenageando o filme Limite (1931), de Mário Peixoto, que se torna tema da edição. Nesse ano há uma grande expansão no Programa de Residências do Festival, oferecendo a competidores oito prêmios de residência em três continentes – detalhe para os prêmios em dinheiro, que também crescem em número e valor. Após a última edição citada, o Festival faz uma pausa durante quatro anos, retornando, em 2011, com a abertura da mostra competitiva Panoramas do Sul a todas as manifestações artísticas. A exposição é composta por vídeos single channel, pinturas, esculturas, instalações, objetos e performances. A programação educativa do festival é marcada por extensas discussões nos seminários que foi visto por trezentos mil visitantes. Na edição de trinta anos, o Festival tem como tema a sua própria história, presente principalmente da instalação 30 anos, em que evoca obras, artistas e encontros que marcaram três décadas de Festival. A Videoteca disponibiliza ao público mais de mil obras, entre clássicos internacionais e trabalhos que participaram das primeiras mostras competitivas. As mudanças ocorridas em cada edição do Festival foram de encontro a realizar seu principal objetivo, que é dar espaço e voz aos produtores do Sul Global. Cumprindo o projeto de in-

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tercambiar trabalhos de artistas fora do eixo, dando-os oportunidade de expor e entrar em contato com artistas renomados, o Festival oferece subsídio e fomenta a produção em videoarte e outras mídias eletrônicas. Os debates oferecidos pelo mesmo são igualmente importantes, não só para aprimorar a prática artística, mas também para enriquecer a pesquisa crítica sobre o tema. 4. A POLÍTICA CULTURAL DO FESTIVAL VIDEOBRASIL A partir de algumas das mudanças nas edições do Festival que indicamos acima, podemos apontar os principais pilares no qual o Festival Videobrasil vem se sustentando. Um destes pilares é a criação do Programa de Residências Videobrasil em sua sétima edição, em 1989, que surgiu para intercambiar e conectar trabalhos produzidos aqui e no mundo. Por meio da contemplação de bolsas aos produtores brasileiros, o programa propicia o enriquecimento da prática nacional ao entrarem em contato com novos interlocutores, diferentes culturas e tecnologias mais avançadas. Desde 1990 o festival concede prêmios de residência artística de forma regular, tendo contemplado ao longo das edições quase quarenta artistas8. O Programa de Residências, ao longo das edições do Festival, se tornou estratégico para o Videobrasil, principalmente após sua expansão na décima sexta edição em 2007. Em vez de três bolsas, passa a conceder oito, o que se torna evidente no aumento dos números de inscritos no Festival após essa edição - Ver novamente Tabela 01. Outros pilares importantes para a Associação são os Programas Públicos e as Ações Educativas - sendo esta última implementada mais recentemente. Os programas públicos que visam encontros e debates enriquecedores para a prática da arte com o vídeo, estão presentes desde sua primeira edição, com as mesas de debates dispostas na mostra. Ao longo das edições as ações dos programas se mostraram essenciais para reconfigurar os espaços expositivos, com suas trocas que extrapolam o campo das artes, dialogando com outras áreas do conhecimento, como cinema, música, dança. Além de encontros e debates, os Programas Públicos propõem o intercâmbio de trocas simbólicas entre os convidados que trazem novas reflexões e olhares. As atividades têm por intuito o desdobramento de temas e conceitos presentes nos festivais e exposições, ajudando a expandir, com questionamentos, a proposta curatorial presente no Festival. A intenção é promover a troca, procurando renovar a cada edição, proporcionando a atualização com o que surge de mais recente no campo. O Programa de Ações Educativas foi implantado em 2009, na exposição da artista conceitual francesa Sophie Calle intitulada Cuide de Você, obra apresentada pela primeira vez na 52ª Bienal de Veneza (2007). A curadoria educativa realizou atividades práticas, reflexivas e 8

Para visualizar lista de contemplados acessar: http://site.videobrasil.org.br/residencias/artistas

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poéticas de modo a instigar a expressão criativa e crítica do público. As ações educativas esteve presente em outras três exposições paralelas9 e no décimo sétimo e décimo oitavo Festival. Sobre a seleção do júri para a mostra competitiva, até a quarta edição do Festival vemos a repetição de alguns nomes. A política de não repetição de membros do júri, estabelecida após a quarta edição do Festival, foi essencial para conter as críticas feitas ao júri dessa quarta mostra. Composto por Candido José Mendes de Almeida, Décio Pignatari, Marcos Gaiarsa, Sylvio Back, Tetê Vasconcelos e Walter George Durst, o júri dessa mostra foi chamado de vergonhoso por ter feito um arranjo de última hora. Transferiram para o U-Matic, o grande prêmio do VHS, alegando baixa qualidade nos trabalhos selecionados. O Festival foi tachado de incoerente pela ação do júri, considerando hediondo a mudança para outra bitola. Após esse infortúnio, optou-se por não mais repetir membros do júri, passando a ser renovado a cada edição. E por último, e mais importante, é a política cultural que o Festival adquiriu ao se tornar um evento internacional em 1990, se abrindo a realizadores fora do eixo Europeu e Norte-Americano, privilegiando países ainda em desenvolvimento. Possui hoje, um dos mais ricos acervos de vídeo e performance do Sul geopolítico, contendo mais de mil e trezentas obras, entre vídeos, videoinstalações e registros de performance. No mais, realiza itinerâncias de exposições e mostras de vídeo pelo Brasil e o mundo, e produz periodicamente grandes exposições de artistas consagrados na arte contemporânea. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Através de dados fornecidos pela Tabela 01 aqui divulgada, e os comentários e fatos apresentados, podemos efetuar a importância que a criação e o permanecer do Festival Videobrasil teve para o crescimento e divulgação da prática da videoarte – entre outras artes eletrônicas – no Brasil. Tentamos aqui, não estabelecer apenas a importância que o Festival teve para o crescimento da prática da videoarte, mas também indicar a relevância que ele realizou e realiza como espaço de permanência da memória das produções passadas, assegurando e exibindo as produções futuras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL; SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SESC SP. Em residência: Rotas para pesquisa artística em 30 anos de Videobrasil. São Paulo: Edições Sesc São Paulo: Videobrasil, 2013. 192 p. São elas: Joseph Beuys – A Revolução somos nós (2010/2011), Isaac Julien – Geopoéticas (2012) e Memórias Inapagáveis – um olhar histórico no acervo Videobrasil (2014).

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_______. Videobrasil: Três décadas de vídeo, arte, encontros e transformações. São Paulo: Edições Sesc São Paulo: Videobrasil, 2015. 352 p. CRISTINA, Freire (Org.). Walter Zanini: Escrituras críticas. São Paulo: Ed. Annablume/MAC-USP, 2013. 420 p. FARKAS, Solange. O Videobrasil e o vídeo no Brasil: Uma trajetória paralela. In: MACHADO, Arlindo. Made in Brasil: Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007. 219 - 223 p. MACHADO, Arlindo (Org.). Made in Brasil: Três décadas de vídeo no Brasil. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007. 448 p. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2008. 255 p. NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002. 528 p.

CATÁLOGOS 1º Festival de Vídeo Brasil, 1983. 2º Festival Fotoptica - MIS de Vídeo Brasil, 1984. 3º Vídeobrasil, 1985. 4º Videobrasil, 1986. 5º Festival Fotoptica Videobrasil, 1987. 6º Festival Fotoptica Videobrasil, 1988. 7º Festival Fotoptica Videobrasil, 1989. 8º Fotoptica International Video Festival, 1990. 9º Festival Internacional Videobrasil, 1992. 10º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica, 1994. 11º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica, 1996. 12º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica, 1998. 13º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica, 2001. 14º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica - Deslocamentos, 2003. 15º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica – Performance, 2005. 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil. São Paulo: Edições SESC SP, Associação Cultural Videobrasil, 2007. 256 p. 17º. Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil / SESC São Paulo; Associação Cultural Videobrasil; curadoria geral de Solange O. Farkas. São Paulo: Edições SESC SP, 2011. 256 p.

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18º. Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil / SESC São Paulo; Associação Cultural Videobrasil; curadoria geral de Solange O. Farkas. São Paulo: Edições SESC SP, 2013. 256 p.

SITES CONSULTADOS http://videobrasil.org.br/ consultado em 03/12/2015 http://www.audiorama.com.br/somtres/ consultado em 03/12/2015

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INDICADORES CULTURAIS MUNICIPAIS A PARTIR DOS GASTOS PÚBLICOS Tiago Costa Martins1 Caroline Fernandes da Silva2 RESUMO: O debate do presente artigo se enquadra em duas dimensões: por um lado está centrada na configuração de indicadores culturais no Brasil; por outro, está focada na esfera municipal para a configuração de tais indicadores com vistas às políticas públicas culturais. A partir do acesso ao “Controle Social”, banco de dados do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul para os 497 municípios gaúchos, o trabalho coloca em tela o desafio de empreender a articulação entre controle social (transparência pública via Tribunal de Contas), política e economia da cultura em torno de indicadores culturais municipais. A primeira parte do artigo apresenta uma breve problematização em torno do controle social, política e economia da cultura. No segundo momento destaca-se a noção de indicadores culturais. Por fim, o artigo apresenta um exercício de construção de indicadores para os municípios. PALAVRAS-CHAVE: política cultural, economia da cultura, prefeituras.

Num esforço empreendido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o Ministério da Cultura, o Brasil somente em 2004 conseguiu criar o seu primeiro Sistema de Informações e Indicadores Culturais. Construção recente em se tratando da diversidade cultural brasileira e, mesmo que tímido, dos investimentos estatais e da mobilização econômica do setor em todo o território nacional. Na esteira dessa constatação há de se supor que as pesquisas na área dos indicadores culturais também são consideradas recentes no país. É evidente que existem outras implicações por trás dessa conjuntura – o lugar da cultura nas ciências sociais pode ser uma das implicações, mas também há de se destacar a parca condições para coligir dados primários na cultura.

Professor Adjunto do Curso de Relações Públicas – ênfase em produção cultural – UNIPAMPA. Doutor em Desenvolvimento Regional PPGDR/UNISC. Integrante do Observatório Missioneiro de Atividades Criativas e Culturais – OMiCult. Mail: [email protected] 2 Bacharel em Relações Públicas – ênfase em produção cultural - Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA. Integrante do Observatório Missioneiro de Atividades Criativas e Culturais – OMiCult. Mail: [email protected] 1

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Curiosamente, as informações do Sistema de Informações e Indicadores Culturais para o período 2007-2010 apontou o protagonismo dos municípios (prefeituras) no desenvolvimento de políticas culturais. Segundo o IBGE (2013), a participação na despesa com cultura no total da despesa, segundo as esferas de governo, em 2010 foi a seguinte: Federal 0,1%; Estadual 0,5%; Municipal 1,1%. O dispêndio de recursos municipais em cultura destaca o protagonismo das prefeituras. Mas novamente coloca em relevo outra dificuldade em contar com dados primários em cultura que podem se transformar em indicadores confiáveis sobre a realidade cultural brasileira na esfera municipal. O debate do presente artigo se enquadra nessas duas dimensões: por um lado está centrada na configuração de indicadores culturais no Brasil; por outro, está focada na esfera municipal para a configuração de tais indicadores com vistas às políticas públicas culturais. A trajetória do estudo no tema se estabeleceu a partir de 2013, quando a pesquisa intitulada “A alocação de recursos públicos e a possibilidade de configuração de um arranjo produtivo da cultura regional” foi contemplada com recursos da Chamada CNPq/MinC/SEC nº80/2013. Na ocasião, a pesquisa acessou o banco de dados do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul para os 497 municípios gaúchos. O trabalho desenvolvido colocou em tela o desafio de empreender a articulação entre controle social (transparência pública via Tribunal de Contas), política e economia da cultura em torno de indicadores culturais municipais. Desta forma, o problema norteador é como construir indicadores culturais municipais em apoio à sociedade, à avaliação das políticas públicas e ao impacto econômico da cultura. Na primeira parte do artigo apresentamos uma breve problematização em torno do controle social, política e economia da cultura. No segundo momento apresentamos a noção de indicadores culturais. Por fim, destacamos um exercício inicial de construção de indicadores para os municípios a partir dos dados disponíveis no Tribunal de Contas. 1. CONTROLE SOCIAL, POLÍTICA E ECONOMIA DA CULTURA O presente estudo enfatiza o desafio de empreender a articulação entre controle social, política e economia da cultura em torno de indicadores culturais municipais. Essa articulação pode ser reconhecida como “problemática” já por envolver cultura nas suas diversas formas de compreensão. Para estancar qualquer fragilidade nesses termos é oportuno perceber cultura em duas dimensões: antropológica e sociológica. A primeira reconhecida como as interações sociais empreendidas pelo indivíduo nas suas relações com objetos e outros indivíduos, constituindo modos de pensar, sentir, valorar e manejar o mundo construído socialmente (BOTELHO, 2001). A segunda, no sentido da cultura constituir e ser constituída por um contexto estruturado com funções, sistemas, especializações e formas organizativas (BRUNNER, 1993). Cultura evidenciada por um sistema de produção cultural com atividades e relações culturais estabelecidas

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por agentes e instituições: artistas; produtores; governos; patrocinadores; consumidores; etc. A partir do momento em que se reconhecem tais dimensões, entrelaçadas e coexistindo, é que se percebe a cultura como uma teia de significados construída socialmente, ligada por agentes e instituições estabelecidos na dinâmica da produção, distribuição, uso, apropriação e consumo. Dito isso, o que se propõem a seguir é a exposição de alguns contextos que envolvem o controle social, a política e a economia da cultura, e, por fim, os indicadores culturais. Controle social inicialmente está associado a qualquer dispositivo institucional empreendido pelo Estado em relação à sociedade. Mas por conta das transformações políticas e a ascensão da democracia, controle social também é reconhecido como o “controle da sociedade civil sobre o Estado, enquanto perspectiva de mudança social” (MACHADO, 2012, p. 53). No Brasil essa transformação é marcada pela constituição de 1988 que, respaldada legalmente, possibilitou a transformação do controle social como base democrática e como instrumento de efetivação da participação social. Assim, controle social pode ser visto como os mecanismos de acesso à sociedade aos processos que informam as decisões dos governos (MACHADO, 2012). Uma das formas de controle social é o controle orçamentário, quando é possível verificar valores, cifras, números de algum ente governamental. No entanto, disponibilizar as contas públicas não realiza por completo o controle social à medida que distancia a leitura desses dados pela população e não se apresenta as conexões com as políticas públicas que tais números estão associados. Nesse sentido, o controle social é sinônimo de fiscalização, quando deveria ser desenvolvido como “uma consciência política nas pessoas que a integram, representantes da sociedade civil e do governo (...)” (MACHADO, 2012, p. 58). Existem inúmeros instrumentos legais de controle orçamentário, especialmente nos municípios. No Rio Grande do Sul, por exemplo, com a informatização dos processos de fiscalização, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) criou um sistema de “Controle Social” das despesas realizadas pelos municípios gaúchos, oriundas do Sistema de Informações para Auditoria e Prestação de Contas – SIAPC. O site do Tribunal3 oferece acesso livre às despesas (e receitas) dos municípios através dos empenhos, liquidados e/ou pagos pelas prefeituras por ano de exercício orçamentário. Aqui, talvez seja oportuno questionar em que medida é possível articular cultura e controle social. Sabidamente, em sua dimensão antropológica a sociedade brasileira ainda carece de uma cultura democrática que possa efetivar tais mecanismos/ferramentas como controle social. Há uma necessidade de conferir à sociedade o “empoderamento” que se requer para que as políticas públicas sejam desenvolvidas de modo que atendam às demandas da população. Tal situação/problema se articula, então, com a necessidade de publicização de informações, percebida em três perspectivas: técnica; pedagógica; política. O sentido técnico de publicização está 3

Disponível em www.tce.rs.gov.br

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na decodificação das informações socializadas nos registros oficiais, permitindo sua compreensão e análise pela sociedade (MACHADO, 2012). O sentido pedagógico está na adequação de vocabulário e significados de difícil compreensão à população, pensando a publicização “como instrumento capaz de contribuir para a formação de opinião e para fortalecimento de iniciativas (...)” (MACHADO, 2012, p. 100). Por fim, seu caráter político está na divulgação dos processos referentes à gestão das políticas públicas, enfatizando o poder de negociação e articulação entre o Estado e a sociedade. A publicização está atrelada, portanto, a efetiva ação da sociedade no controle social, desde que existam instrumentos que estimulem a população a se tornar protagonista, mais do que mera espectadora das políticas públicas. Assim, o controle social reconhecido como processo e como instrumento pode ser percebido articulado com os indicadores voltados à cultura. No entanto, essa problematização precisa avançar ao segundo ponto: políticas culturais. Historicamente as políticas culturais estão posicionadas numa visão estatista na qual a sua configuração e primazia estariam na ação do Estado. A partir da década de 1960 surgiram as primeiras discussões conceituais na qual política cultural seria “entendida como um conjunto de princípios operacionais, práticas administrativas e orçamentárias e os procedimentos que fornecem uma base para a ação cultural do Estado” (UNESCO, 1969, p. 4). O debate é reconfigurado dentro da abordagem multicêntrica das políticas públicas. Fundamentalmente essa abordagem reconfigura a compreensão do que é “pública”. O que a define são os contornos da definição do problema “e não se o tomador de decisão tem personalidade jurídica estatal ou não estatal” (SECCHI, 2012, p. 05). No campo da cultura essa reconfiguração é percebida na definição de política cultural como o conjuntos de intervenções “realizadas por el estado, las instituciones civiles y los grupos comunitarios organizados a fin de orientar el desarrollo simbólico, satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso para un tipo de orden o de transformación social”. (CANCLINI, 2005, p. 06). Por meio desse conceito percebe-se que a ênfase está nas formas de intervenção (incluso sua ausência) com a combinação de agentes e instâncias institucionais de organização da cultura dentro de um circuito estruturado (BRUNNER, 1987). Portanto, a política cultural está estabelecida na dimensão sociológica da cultura com pretensão de atuar na dimensão antropológica para o consenso, ordem ou transformação social. Desta forma, não seria um equívoco dizer que na política cultural se trata de perceber o conjunto de agentes e instâncias que “entran en relación con su realidad territorial y asumen algunas responsabilidades en el conjunto de los objetivos que la propia política les propone” (MARTINELL, 1999, p. 202). Destaca-se, assim, outro ponto da problematização: para os objetivos desse estudo é preciso ter em conta a associação com os circuitos culturais e a relação com o Estado, especificamente os municípios do Rio Grande do Sul. Os circuitos seriam os resultados estabelecidos

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dentro de um conjunto de manifestações culturais e as instituições estatais que fomentam/organizam/estruturam essa manifestação. No Brasil, o protagonismo dos municípios (prefeituras) no desenvolvimento de políticas culturais é percebido pelo percentual de investimento em recursos financeiros. Segundo o IBGE (2013), através do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (2007-2010), a participação na despesa com cultura no total da despesa, segundo as esferas de governo, em 2010 foi a seguinte: Federal 0,1%; Estadual 0,5%; Municipal 1,1%. Notadamente, há de se ter por preocupação a compreensão desses números como ações governamentais traduzidas em políticas culturais municipais que são representativas no campo da cultura. Portanto, a leitura dessa realidade parecer ser um problema a ser resolvido. Por outro lado, o entendimento de política cultural estabelecida nos municípios permite uma articulação com a economia da cultura. A despesa pública no setor gera consequências positivas para a economia e o desenvolvimento local, a partir do impacto direto sobre suas despesas e os salários que distribui; Estabelece relações com a oferta privada e o consumo público do mercado da cultura; E exerce um efeito de alavancagem sobre as coletividades territoriais com o de deslocamento dos gastos públicos, mobilizando organizações de outros municípios e regiões (TOLILA, 2007). A articulação entre política e economia da cultura se estabelece, assim, a partir da noção de que “o gasto público realizado por uma dada escala de governo, em um conjunto fixo de políticas públicas, em um dado ano fiscal, expressa com relativa precisão as preferências alocativas dos atores sociais” (REZENDE, 1997, p. 01). Assim, ao prover uma política pública à cultura, a demanda pública de uma prefeitura irá (i) apoiar diretamente os bens e serviços culturais já existentes no mercado; (ii) mobilizar a oferta dos que não estão consolidados no mercado; e (iii) apoiar bens e serviços não culturais, mas que se relacionam e apoiam as atividades nucleares da cultura (MARTINS, 2015). Mas como é possível ler essas políticas culturais? Há mecanismos de avaliação dessas políticas? Como se pode verificar o impacto econômico dos gastos em cultura? As informações municipais são acessíveis à população? Há mecanismos de publicização para o controle social das políticas culturais municipais? Ora, esta confluência entre as necessidades sociais e culturais da população, as práticas das administrações municipais e o impacto econômico dessas práticas criam um cenário que requer mais do que nunca ferramentas e guias de ação para o cidadão (munícipe) e para as políticas culturais municipais. Trata-se de refletir e propor indicadores culturais.

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2. INDICADORES CULTURAIS Os indicadores culturais podem ser percebidos como um tipo específico de indicador social. Este, por sua vez, é uma medida geralmente quantitativa, “dotada de significado social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou programático (para a formulação de políticas)” (JANNUZZI, 2002, p. 55). Os indicadores culturais, que começaram a ser discutidos por volta nos anos 70, assim como as políticas culturais, tornaram-se de interesse dos governos e da academia há não muito tempo. Arroyo (1999) faz uma linha cronológica sobre o surgimento dos indicadores culturais ao longo da história. O autor inicia mencionando a UNESCO, que em 1972 organizou uma reunião para apontar as primeiras impressões sobre estatísticas e indicadores na perspectiva cultural, tornando-se assim um marco histórico para os indicadores culturais. Em 1979, em Viena, Bohner (1979) sugere as características que os indicadores deveriam apresentar. Na International Conference on Communication em 1980, no México, houve uma sessão exclusiva para discutir pela primeira vez sobre as estatísticas culturais, tendo como nome “Os Indicadores Culturais e o Futuro das Sociedades Desenvolvidas” (ARRROYO, 1999, p. 1). No ano de 1982, a Academia de las Ciencias Austriacas realizou um simpósio a fim de discutir indicadores culturais. Este foi chamado “Os Indicadores Culturais para o Estudo Comparativo da Cultura”. Posteriormente, em 1986, todas as articulações mencionadas resultaram em um projeto da UNESCO intitulado “Framework for Cultural Statistics”, no qual são mostrados os quadros estatísticos de diferentes países e o que os mesmos dizem sobre cultura e suas expressões culturais, atualizado em 2009 (PFENNIGER, 2004). Devido à carência em estatísticas e a busca por intensificar os estudos na área, na década de 90 originou-se o Grupo de Orientação Específico na Europa. Este grupo tinha como intuito o de “criar um sistema de informação coerente e comparável entre os Estados membros” (PFENNIGER, 2004, p. 3). Este contexto histórico chamará atenção para a formação de conceituação e constituição dos indicadores culturais. Uma dessas situações históricas em debate foi o próprio conceito de cultura. Assim, para o presente trabalho, é importante estabelecer um marco referencial para o conceito de cultura, já que para cada definição do termo os indicadores as estatísticas para a medição serão diferentes (PFENNIGER, 2004, p.2). La cultura y las políticas culturales pueden jugar un papel importante no solo en el desarrollo social, mejorando la cohesión social, sino también en el desarrollo económico, urbanístico, medio ambiental, turístico, etc. de los territorios. Nos situamos en una «política cultural proyectiva que puede vehiculizar, a través de su articulación, las posibilidades de desarrollo en aspectos tan relevantes como la vertebración simbólica del território (LLADÓ; MASÓ, 2012, p. 118). 2012

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É nessa perspectiva que os indicadores culturais dão a dimensão da materialização dos investimentos e das ações em prol do desenvolvimento da cultura, tanto local quanto a nível nacional. Esta materialização acontece de forma numérica e de maneira que a mensuração seja estatística. No entanto, mesmo tendo uma reflexão acerca do que será usada como “cultura”, Mariana Pfenniger (2004) diz que “a complexidade do termo ‘cultura’ deveria fazer-nos supor que não tem indicadores nem estatística capaz de captá-lo em sua totalidade” (2004, p. 2, tradução nossa). Por ende, un indicador cultural se diseña especialmente con el fin de entregar información pertinente a las políticas culturales. Un indicador es más que un dato: es una herramienta diseñada a partir de datos que le dan sentido y facilitan la comprensión de la información. Un indicador debe ser una información sintética que oriente sobre dónde se está respecto a cierta política y que ayude a los responsables políticas en la toma de decisiones (PFENNIGER, 2004, p. 3). É importante frisar que os dados por si só não possuem capacidade suficiente para informar sobre um fenômeno, não podendo assim, afetar o comportamento do seu receptor (ARROYO, 2006). Ou seja, “para ser utilizados devem converter-se em indicadores e estes novamente em informação para oferecer as bases da futura ação pública em termos culturais, produzindo um feedback”4 (ARROYO, 2006, p. 89). Os dados são apenas o princípio de uma articulação maior, ou seja, a partir deles que as informações são construídas e assim, possíveis de serem entendidas e transmitidas. Neste sentido, “a importância dos dados está na sua capacidade de associar-se dentro de um contexto para converter-se em informação”5 (ARROYO, 2006, p. 89). uno de los principales problemas es la adecuación de la información existente y su transformación a datos analizables. Existe mucha información en el entorno cultura, sin embargo la mayoría no es exportable a datos y en consecuencia susceptible de convertirse en indicadores válidos (ARROYO,2006, p.90). Assim como a percepção sobre o que é possível quantificar e tornar indicador cultural, a confiabilidade das ferramentas utilizadas no processo de captação, análise e compreensão dos dados, colabora para uma apropriação no momento de utilizar as informações para a construção de um argumento.

Tradução livre de: Para ser utilizados deben convertirse en indicadores y estos nuevamente en información para ofrecer las bases de la futura acción pública en términos culturales, produciéndose un feedback (ARROYO, 2006, p. 89) 5 Tradução livre de: a importancia de los datos está en su capacidad de asociarse dentro de un contexto para convertirse en información (ARROYO, 2006, p. 89). 4

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3. A CONSTRUÇÃO DE INDICADORES CULTURAIS MUNICIPAIS É na conjuntura apresentada que o presente estudo, ainda em caráter inicial, trabalha para a construção de indicadores culturais municipais. Para tanto, as discussões apontadas na problematização são passíveis de esquematização. Figura 1: A configuração dos indicadores culturais na perspectiva do estudo.

Fonte: Martins (2015), projeto de pós-doutorado.

A partir desse enquadramento teórico a pesquisa trabalhou com a possibilidade de utilizar os dados das prefeituras fornecidos pelo Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul. O Sistema de Informações para Auditoria e Prestação de Contas – SIAPC oferece acesso livre às despesas (e receitas) dos municípios através dos empenhos, liquidados e/ou pagos pelas prefeituras por ano de exercício orçamentário6. Isso permite verificar o órgão (as unidades, as funções, as subfunções, projetos, atividades e recursos vinculados a outras instâncias de governo), o credor (com o número do Cadastro de Pessoa física – CPF – ou jurídica – CNPJ), a rubrica (de acordo com o que foi estipulado no orçamento do município) e a função (como saúde, educação, transporte, cultura, etc.). Ao escolher um ano de execução orçamentária é possível visualizar todos os empenhos realizados pela prefeitura. Os dados dispõem do número do empenho, tipo (empenho, liquidação ou pagamento), credor, data, valor e histórico. Na descrição do histórico a prefeitura informa o motivo da realização da despesa, tal como o exemplo: “Valor que se empenha para pagamento referente a locação de sala na Avenida Presidente Vargas, nº 2095, para Exposição dos Trabalhos Para elaboração do “Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010” o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística se utiliza do “Sistema de Coleta de Dados Contábeis Consolidados”, via Caixa Econômica Federal e Secretaria do Tesouro Nacional.

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de conclusão da Oficina de Pintura” (TCE-RS, 2013). Nota-se que nessas descrições há referência ao produto ou serviço (locação) e ao domínio cultural (Artes visuais, como a pintura). Já ao consultar o link “credor” há uma lista dos credores do ano escolhido. O sistema apresenta o número do cadastro como pessoa física ou jurídica e ainda informa se o empenho foi liquidado e, finalmente, pago ao credor. Por fim, os dados disponíveis ainda possibilitam verificar, para os casos referentes à pessoa jurídica, qual a atividade principal e o local (município) do credor. Para consultar essas informações é preciso acessar o site da Receita Federal do Brasil e buscar pelo serviço de “Emissão de Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral”. Um serviço de domínio público que requer somente o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, disponível pelo Sistema do TCE. Nesse sentido, vale dizer, a metodologia da pesquisa versa sobre o tratamento das informações sobre as despesas orçamentárias dos municípios. Se para os indicadores culturais do IBGE a análise dos gastos governamentais com a cultura apresenta o padrão de alocação destas despesas, na presente proposta aponta-se o perfil desses gastos e os desdobramentos que estes resultam ao atuarem na difusão, preservação e promoção da cultura no que versa aos custos de produção de cada atividade cultural7. Assim, para a relação entre política e economia da cultura as informações disponíveis e o cruzamento destas oferece uma gama razoável de dados públicos sobre as despesas em cultura sintetizados na tabela abaixo. Quadro 1: Informações para a configuração de indicadores (TCE e Receita Federal).

Item Credor Valor Histórico

Dados diretos Tribunal de Contas - Pessoa jurídica - Pessoa física - R$ - Descrição despesa

Dados indiretos Receita Federal - Atividade principal - Município - Bens ou serviços - Setores culturais Fonte: Martins (2015).

O ordenamento e a organização dessas informações possibilita a criação de variáveis numéricas e nominais que podem receber tratamento estatístico oportuno para a consecução dos indicadores.

“A captação dos dados da administração pública difere dos outros setores da economia, tendo em vista que a função principal do governo na economia é a produção de bens e serviços não mercantis. A produção não mercantil da administração pública é, por convenção, medida pelos custos de produção por não ser objeto de transação no mercado” (IBGE, 2013, p. 68).

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Os empenhos dos municípios gaúchos disponibilizados pelo sistema do TCE-RS podem ser acessados pela função 13- Cultura e com isso ser gerado alguns indicadores culturais municipais. Os dados, por exemplo, cruzados com informações do IBGE podem mostrar quanto é gasto por habitante em cultura em um determinado município (se utilizar “valor total empenhos pagos na função 13”). Abaixo serão apresentadas três exemplos de indicadores culturais viáveis a partir dos dados disponibilizados. São elas: gasto em cultura per capta; gasto em cultura por tipo de pessoa (CPF/ CNPJ); e; porcentagem em cultura com relação ao gasto total. Tabela 1: Ficha técnica do indicador: gasto em cultura per capta. Definição Interpretação e Uso

Gasto em cultura per capta Compreende-se no gasto das prefeituras municipais durante o ano

Metodologia de Cálculo Simplificada

Alocação de recursos públicos municipais em cultura por habitante. O setor financeiro responsável por passar para o TCE os dados não necessariamente passa os dados referentes às ações ligadas a cultura, como também podem relacionar expressões culturais a outros setores, não podendo assim analisar a sua totalidade. Gasto em cultura

Desagregação Geográfica Periodicidade Fonte

Número de habitantes segundo o IBGE Municípios, Estado Anual Dados:

Limitações

Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) Categorias disponíveis (subgrupos) Parâmetros e Recomendações Informações complementares

Instituto Brasileiro de Geografia e estatística IBGE Não há parâmetros Informações disponibilizadas geralmente por secretarias, departamentos ou, muitas vezes não são direcionados na função “Cultura”. Muitas vezes as variações significativas correspondem ao interesse da gestão do município. Pode-se assim compreender as especificidades de cada localidade. Fonte: Silva (2015).

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Tabela 2: Ficha técnica do indicador: porcentagem de gasto em cultura por tipo de pessoa. Definição Interpretação e Uso Limitações

Percentual de gasto em cultura por tipo de pessoa. Compreende-se na destinação do gasto das prefeituras municipais durante o ano em cultura para CPF e CNPJ. No caso do CNPJ a desatualização do cadastro ou o fechamento da empresa no site da Receita Federal não terá nem o CNPJ válido e nem o registro do CPF. Percentual em CPF = Total gasto em cultura em CPFx 100 Gasto total em cultura

Metodologia de Cálculo Simplificada Percentual em CNPJ = Total gasto em cultura em CNPJx 100 Gasto total em cultura Desagregação Geográfica Periodicidade Fonte Categorias disponíveis (subgrupos) Parâmetros e Recomendações

Informações complementares

Municípios, Estado Anual Dados: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) Não há parâmetros Informações disponibilizadas geralmente por secretarias, departamentos ou, muitas vezes não são direcionados na função “Cultura”. Muitas vezes as variações significativas correspondem ao interesse da gestão do município. Pode-se assim compreender as especificidades de cada localidade. Fonte: Silva (2015).

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Tabela 03 – Ficha técnica do indicador: porcentagem dos gastos em cultura relação ao gasto total. Definição Interpretação e Uso Limitações

Metodologia de Cálculo Simplificada Desagregação Geográfica Periodicidade Fonte Categorias disponíveis (subgrupos) Parâmetros e Recomendações Informações complementares

Porcentagem do gasto em cultura em relação ao gasto total do município. Compreender o percentual do gasto em cultura com relação ao total e também, posteriormente um comparativo com outras áreas d1a prefeitura. O setor financeiro responsável por passar para o TCE os dados não necessariamente passa os dados referentes às ações ligadas a cultura, como também, podem relacionar expressões culturais a outros setores, não podendo assim, analisar a sua totalidade. Gasto total em culturax 100 Gasto total Municípios, Estado Anual Dados: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) Não há parâmetros Informações disponibilizadas geralmente por secretarias, departamentos ou, muitas vezes não são direcionados na função “Cultura”. Muitas vezes as variações significativas correspondem ao interesse da gestão do município. Pode-se assim, compreender as especificidades de cada localidade. Fonte: Silva (2015).

Para melhor elucidar a aplicabilidade dos indicadores culturais, o exercício metodológico utiliza-se do caso da prefeitura de Santo Ângelo, como já estudado em outro momento8. Município com 78.836 habitantes, em 2013 teve um gasto total de 116.313.292,33 e o gasto total em cultura de 755.694,39. Quadro 2: Caso municipio Santo Ângelo, 2013.

Indicador cultural

Resultado

Gasto em cultura per capta Porcentagem de gasto em cultura por tipo de pessoa Porcentagem dos gastos em cultura relação ao gasto total

R$ 9,58 CPF = 78% CNPJ = 6,6 % 0,99 %

Fonte: Martins (2015).

Ver pesquisa “A alocação de recursos públicos e a possibilidade de configuração de um arranjo produtivo da cultura regional: a “Rota Missões” no Rio Grande do Sul”. Desenvolvida em 2014, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq em parceria com o Ministério da Cultura.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os indicadores culturais mostram de que forma a cultura está sendo conduzida em determinados localidades. A partir disso se tem uma visão detalhada da maneira com que as políticas estão agindo e contribuindo para a sociedade local. Portanto, depois do exposto afirmar-se que é possível configurar indicadores culturais através do fluxo informacional do “Controle Social” do TCE-RS, assim como sugerir a criação de um Sistema de Indicadores com as variáveis que também são possíveis de construção a partir dos dados disponibilizados. Compreender os indicadores culturais nesse processo torna-se relevante para seu uso na construção das políticas públicas. A partir disso é possível projetar as mudanças necessárias para uma nova gestão, uma nova perspectiva de futuro. A realidade apresentada a partir dos indicadores além de nortear ações, proporciona a manutenção e melhorias às políticas já aplicadas. Acredita-se, a partir do exposto, na relevância dos indicadores culturais para o desenvolvimento das políticas públicas, entretanto, ainda carece de um avanço nas pesquisas e estudos da temática. Os indicadores são parte importante na argumentação e construção de políticas públicas culturais, além de auxiliar na avaliação, monitoramento e manutenção de políticas. O presente trabalho buscou articular teoria e prática até então não relacionados, reafirmando mais uma área que a cultura transpassa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONET, Lluís. Estadísticas e indicadores al servicio del análisis del sector cultural y de la evaluación de las políticas públicas de cultura. La economía de la cultura Iberoamericana. III Seminario sobre Políticas Culturales Iberoamericanas: Madrid, 11 al 15 de diciembre de 1995, Madrid: OEI, 1997. BOTELHO, Maria Isaura. Dimensões da cultura e políticas públicas. Revista São Paulo em Perspectiva, 15(2), 2001, p. 73-83. BRUNNER, José Joaquín. Políticas culturales y democracia: hacia una teoría de las oportunidades. IN: CANCLINI, Néstor García (ed.). Políticas culturales en América Latina. Ciudad de México: Editorial Grijalbo, 1987. 175-203p. _________. La mano visible y la mano invisible. América Latina: cultura y modernidad. México, Editorial Grijalbo, 1993. p. 205-47. CANCLINI, Nestor. Definiciones en transición. En libro: Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas. Daniel Mato. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2005. pp. 69-81. CARRASCO-ARROYO, Salvador. Indicadores culturales: una reflexión. Econcult, 1999. CARRASCO-ARROYO, Salvador; et. al. Propuesta metodológica para el diseño de un sistema de indicadores culturales local basado en la planificación estratégica. Política y Sociedad, v. 51, n. 2, p. 423-446, 2014.

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SILVA, Caroline Fernandes da. A configuração dos indicadores culturais por meio do “Controle Social” do Tribunal de Contas do Estado – RS. (trabalho de conclusão de curso). São Borja: Universidade Federal do Pampa/Curso de Relações Públicas, 2015. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE. Sistema de Informações e Indicadores Culturais (2007-2010). Rio de Janeiro: IBGE, 2013. LLADÓ, Anna Planas; MASÓ, Pere Soler. Sistema de indicadores para políticas municipales culturales: una herramienta de evaluación. Empiria: Revista de Metodología de Ciencias Sociales, n. 24, p. 117-140, junio-diciembre, 2012. JANNUZZI, Paulo de Martino. Considerações sobre o uso, mau uso e abuso dos indicadores sociais na formulação e avaliação de políticas públicas municipais. Revista de Administração Pública – RAP, v. 36, n. 01, p. 51-72, jan.- fev., 2002. __________. Indicadores sociais no Brasil. Campinas: Alínea, 2012. MACHADO, Loiva Mara de Oliveira. Controle social da política de assistência social: caminhos e descaminhos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. MARTINELL, Alfons. Los agentes culturales ante los nuevos retos de la gestión cultural. Revista Iberoamericana de Educación. n. 20, p. 201-215, May/ago., 1999. MARTINS, Tiago Costa. A alocação de recursos públicos e a possibilidade de configuração de um arranjo produtivo da cultura regional (relatório final de pesquisa). São Borja: MinC/CNPq, 2015. Observatório Regional Base de Indicadores de Sustentabilidade – ORBIS. Construção e Análise de indicadores. Curitiba: SESI/PR, 2010. REZENDE, Flávio da Cunha. Descentralização, Gastos Públicos e Preferências Alocativas dos Governos Locais no Brasil: (1980-1994). Dados, Rio de Janeiro , v. 40, n. 3, 1997. Disponível em http://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300005&lng=en&nrm=iso. Acesso em 24/10/2014. SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, esquemas de análise, casos práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2012. TOLILA, Paul. Cultura e economia: problemas, hipóteses, pistas. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2007. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Controle social. Disponível em . Acesso em: 06 março 2013.

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RENÚNCIA FISCAL PARA A CULTURA: UMA OUTRA VISÃO POSSÍVEL Ulisses Quadros de Moraes1 RESUMO: No campo da cultura2 podemos entender a renúncia fiscal como um movimento para promover acréscimos orçamentários. Para que isso ocorra, é necessário que as isenções concedidas sejam parciais com complementação privada de recursos. Esse processo pode ser entendido tanto como apropriação de recursos públicos pela iniciativa privada, como por uma ação de diversificação de procedimentos, escolhas e resultados. Nosso propósito é analisar alguns desses modelos implementados no Brasil a partir dos anos 1980, a natureza das parcerias entre iniciativa privada e Estado, o surgimento da participação de conglomerados empresariais no gerenciamento de parte dos recursos empregados à cultura através de Leis de Inventivo, evidenciando alguns de seus limites, problemas e ganhos para segmentos sociais distintos. PALAVRAS-CHAVE: cultura, política pública, arte, isenções fiscais, Leis de incentivo.

1. UM BREVE PANORAMA DA RENÚNCIA FISCAL Pode-se afirmar que estar aberto a novas idéias, de onde quer que venham, e demonstrar-se capaz de adaptá-las aos próprios propósitos e de encontrar maneiras de testar sua validade constituem a marca tanto do bom historiador como do bom teórico. (BURKE, 2002, p. 230) O desenvolvimento de modelos de parceria público-privadas voltadas à cultura baseadas em renúncias fiscais tiveram suas concepções e implementações em parte do Ocidente a partir dos anos 1980, período de acirramento de crises econômicas globais bem como de implementação de modelos político-econômicos denominados neoliberais3.

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná, professor convidado nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Cinema e Vídeo da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR, e Pós-Graduação das Universidades Tuiuti do Paraná, UNESPAR, Centro Universitário de União da Vitória – UNIUV, PUC PR e União Educacional de Cascavel – UNIVEL. Email: [email protected]. 2 Ainda que arte e cultura possam ter significados diferentes, ao logo do texto usaremos “cultura” para definição de ambos os termos. 3 Simbolicamente representados pela ascensão de Ronald Reagan nos EUA (1981-1989) e Margareth Thatcher na Inglaterra (1979-1990), as décadas de 1980 e 1990 foram períodos de expansão de privatizações e diminuição do papel do Estado nas economias em boa parte do mundo Ocidental. 1

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Apesar das diferenças entre países, marcos regulatórios desses mecanismos foram baseados em três princípios: 1) incremento e salvaguarda da produção e consumo nacionais; 2) inclusão de produtores e realizadores voltados à pesquisa de linguagens, independentes, em início de carreira, representantes de segmentos de culturas tradicionais, etc.; 3) acesso à sociedade aos bens e serviços produzidos. Desde então, debates e análises de procedimentos e resultados contribuíram para o aperfeiçoamento desses dispositivos existentes até os dias de hoje. Em parte da Europa, Estados Unidos e América Latina4, inclusive Brasil, os mecanismos de renúncia fiscal são distintos. Percentuais das isenções, natureza dos beneficiários e a destinação dos produtos resultantes são elementos importantes na análise desses modelos. Países como Estados Unidos, Grã-Bretanha, Colômbia e Uruguai, limitam às instituições sem fins lucrativos os benefícios do recebimento de investimentos. Já França e Uruguai5, ainda que permitam a participação de instituições que visem lucro, vinculam a utilização desses recursos à socialização dos bens e serviços derivados. Ainda assim, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, notadamente no mercado de artes visuais, a utilização de dispositivos públicos legais para acúmulo econômico privado tem se mostrado como uma das conseqüências das legislações que isentam a tributação das transações de compra e venda de obras de arte6: ... o capital cultural pode ser transformado em capital social de conhecimentos e relações, e que estes, por sua vez, podem ser usados para acumular capital econômico. É a fluidez e a flexibilidade do capital privado que tornam conceitualmente concebível e de fato viável a confluência de suas variantes, precisamente na posição desses grandes empresários. A possibilidade de intercâmbio dessas diferentes formas de capital é, da mesma maneira, inteligível no âmbito das corporações. (WU, 2006, P. 150) A dinâmica da organização e administração privadas, a busca pelo lucro e pela maximização da exposição de suas ações e suas relações com as burocracias estatais, podem encontrar nas isenções fiscais possibilidades para a dinamização e maximização de capital simbólico7 resultando em um acúmulo de capital econômico. Esse se constitui um dos principais flancos da fragilidade das isenções fiscais para a cultura.

Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Uruguai, Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Espanha, França, Grã Bretanha, Itália, Portugal. (MORAES, 2013) 5 O Uruguai possui duas modalidades de investimento em sua Ley de Pressupuestos. Uma delas permissiva à participação, como recebedora de recursos, de empresas com fins lucrativos e outra não. Os níveis de isenção fiscal para cada uma das modalidades é de 15% e 70%, respectivamente. (MORAES, 2013) 6 Há também na França esse dispositivo, ainda que não tenhamos feito uma análise pormenorizada sobre os resultados de sua utilização. 7 Grosso modo, para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930 – 2002) capital econômico são renda, salário, imóveis, etc.; capital cultural, saberes reconhecidos; capital social relações que podem derivar em dominação ou capital simbólico = distinção social. 4

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Ainda assim, as políticas de renúncia fiscal podem ser entendidas como ferramentas importantes para uma interação público-privada, onde a divisão das responsabilidades, a democratização da gestão, a ampliação de recursos e o compromisso com a diversidade cultural de cada nação componham os objetivos de um amplo programa de ações. É sobre essa problemática que nos deteremos a partir deste momento, analisando sobretudo a utilização da Lei Rouanet no contexto brasileiro. 2. A RENÚNCIA FISCAL NO BRASIL No Brasil, mecanismos federais de isenção fiscal para a cultura foram implementados através das Leis de Incentivo Sarney (n˚ 7.505 de 02/07/86), Rouanet (8.313 de 23/12/91) e Lei do Audiovisual (n˚ 8.685 de 20/07/93)8. A Lei Sarney, regulamentada pelo Decreto n˚ 93.335 de 03/10/86, contemplava os vários segmentos da produção cultural, com recursos provenientes do IR de pessoas físicas e jurídicas através de “doação, patrocínio e investimento” (§ 1 e 3 – LF 7.505). Essas categorias escalonavam os percentuais de abatimento das contribuições. §1˚ Observado o limite máximo de 10% (dez por cento) da renda bruta, a pessoa física poderá abater: I – até 100% (cem por cento) do valor da doação; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio; III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento. § 2˚ A pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido, valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda, tendo como base o cálculo: I – até 100 (cem por cento) do valor das doações; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio; III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento. A regulamentação feita através do Decreto n˚ 93.335, dizia o que segue: Art. 6˚ Para fins deste regulamento, considera-se: I – doação: a transferência definitiva de bens ou numerários, a favor ou através de pessoas jurídicas de natureza cultural, sem proveito para o doador; II – patrocínio: a realização, pelo contribuinte a favor de pessoas jurídicas de natureza cultural, de despesas com a promoção ou publicidade em atividades culturais, sem proveito pecuniário ou patrimonial para o patrocinador; III – investimento: a aplicação de bens ou numerário com proveito pecuniário ou patrimonial para o investidor (artigo 8˚). A intenção do poder público era vincular um percentual progressivo de renúncia fiscal à iniciativa privada segundo a natureza de sua participação no mecanismo.

Como a Lei do Audiovisual é um mecanismo instituído para um segmento único, audiovisual, suas características não serão abordadas neste estudo. A citação aqui se deveu ao fato de que seu funcionamento obedece a uma dinâmica bastante próxima à instituída pelas demais Leis Federais de Incentivo à Cultura.

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Outra característica era a “otimização” dos abatimentos financeiros. No Artigo 1˚ da Lei 7.505, lemos: O contribuinte do imposto de renda poderá abater da renda bruta, ou deduzir como despesa operacional, o valor das doações, patrocínios e investimentos inclusive despesas e contribuições necessárias à sua efetivação, realizada a favor de pessoa jurídica de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos, cadastrada no Ministério da Cultura, na forma desta Lei. Assim, sobre os recursos canalizados a projetos culturais não incidiriam impostos sobre a renda, já que eles seriam deduzidos do montante tributável, incrementando em até 25% os abatimentos concedidos. Desse modo, para a categoria “doações”, poderia haver 125% de “restituições”; para “patrocínios” 105%; e para “investimentos” 75%. Um grande negócio para o investidor privado. Seria com a Lei Rouanet que surgiria o Programa Nacional de Incentivo à Cultura – PRONAC, com mudanças importantes nos mecanismos de isenções fiscais, dentre as quais a criação e implementação do Fundo Nacional de Cultura, que previa investimentos diretos pelo poder público, e do Mecenato, com a participação da iniciativa privada sob a dinâmica de isenções fiscais9. De 1991 a 1999, com abatimentos diferenciados e modelos próximos aos da Lei Sarney, o Mecenato se estruturava em duas modalidades: doação e patrocínio. Também a natureza dos incentivadores foi levada em conta para o estabelecimento dos limites de investimentos dedutíveis, estipulados em 4% para PJ e 6% para PF do total do IR devido. Em relação aos percentuais de abatimentos fiscais e conforme contido no Artigo 26 da Lei, as isenções seriam escalonadas como segue: O doador ou patrocinador poderá deduzir do imposto devido na declaração do Imposto sobre a Renda os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos culturais aprovados de acordo com os dispositivos desta Lei, tendo como base os seguintes percentuais: I – no caso de pessoas físicas, oitenta por cento das doações e sessenta por cento dos patrocínios; II – no caso das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, quarenta por cento das doações e trinta por cento dos patrocínios. § 1˚ A pessoa jurídica tributada com base no lucro real poderá abater as doações e patrocínios como despesa operacional. Alguns anos mais tarde, a partir de 1999, modificações na legislação (Lei 9.874 de 23/11/99), ampliaram as isenções para 100% dos montantes investidos por pessoas físicas e Para o Fundo Nacional de Cultura – FNC, os recursos seriam geridos diretamente pelo poder público em diversos programas, fossem implementados pelo Ministério da Cultura ou por outras instituições a ele ligadas (FUNARTE, por exemplo). Entretanto, nosso objetivo neste artigo se restringe ao universo dos mecanismos de Mecenato com a participação da iniciativa privada, motivo pelo qual não nos deteremos com mais pormenores ao FNC.

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jurídicas, à exceção de dois segmentos: música popular e artes integradas10, que obteriam abatimentos entre 40% (mínimo) e 65% (máximo): Art. 18.... § 1o  Os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias efetivamente despendidas nos projetos elencados (grifo nosso) no § 3o, previamente aprovados pelo Ministério da Cultura, nos limites e nas condições estabelecidos na legislação do imposto de renda vigente, na forma de: a) doações; e b) patrocínios. ... § 3o  As doações e os patrocínios na produção cultural, a que se refere o § 1o, atenderão exclusivamente aos seguintes segmentos: a) artes cênicas; b) livros de valor artístico, literário ou humanístico; c) música erudita ou instrumental; d) circulação de exposições de artes plásticas; e) doações de acervos para bibliotecas públicas e para museus. Ora, não é difícil supor que através dessa alteração foi deturpado um dos princípios que nortearam o poder público a instituir um mecanismo dessa natureza: a ampliação de investimentos para ações culturais através da complementação financeira da iniciativa privada. Ao Estado foi relegada a função de análise técnica de projetos encaminhados a uma comissão11 avaliadora, constituída por representantes do poder público e da sociedade civil. Nem mesmo na condição de mediador dos vários interesses dos segmentos artísticos o gestor público teve reservado um papel mais central. Não foram instituídos, por exemplo, mecanismos que garantissem uma distribuição de recursos minimamente equilibrada entre os entes da Federação, nem tampouco normas mais claras que estimulassem a canalização de parte dos investimentos para setores pouco assistidos, da produção de segmentos artísticos chamados independentes. Essas diretrizes permanecem em vigor até os dias de hoje, sem modificações importantes12. 3. RECURSOS PÚBLICOS, GESTÃO PRIVADA Desde os anos 80, há um movimento crescente de empresas públicas e privadas em ações de fomento à cultura com a utilização da renúncia fiscal. Petrobras, Banco do Brasil, Natura e Banco Itaú se inserem nesse contexto. Quatro grandes empresas situadas entre os maiores conglomerados do mundo em suas áreas de atuação. Cada uma delas, a seu modo, incentivam

O Artigo 26 da Lei n˚ 8.313 regula esse dispositivo. Por “Artes Integradas” se passou a entender qualquer proposta encaminhada à Lei Rouanet que contemplasse dois ou mais segmentos artísticos. 11 A Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC, criada pelo Programa Nacional de Nacional de Apoio à Cultura através da Lei 8.313/1991. 12 O Projeto de Lei n˚ 6.722/2010, que está em tramitação na Câmara dos Deputados, prevê a instituição do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – ProCultura. Dentre vários outros dispositivos, o Programa instituirá um novo modelo de Incentivo Fiscal em substituição à Lei Rouanet. Mais informações no http://www.cultura. gov.br/3cnc-na-midia/-/asset_publisher/lwbHQZhg52O4/content/procultura-preve-melhor-distribuicao-dos-recursos/10907 10

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idéias de artistas de todo o país, tanto independentes quanto aqueles já inseridos no contexto de produção e consumo da indústria cultural. Os bancos do Brasil13 e Itaú14 investem sobretudo em programações de centros culturais próprios, localizados em capitais de Estados; a Petrobras15 não possui centros culturais, e se destaca pelo volume de recursos investidos e pela abrangência de seu programa; a Natura, por sua vez, atua no cenário da música, com ênfase para o segmento popular16. Cada uma dessas empresas escolhe propostas através de editais de concorrência e vinculam seus apoios à aprovação de projetos enviados às Leis Rouanet, do Audiovisual, estaduais e municipais de incentivo à cultura. Estruturas burocráticas de avaliação foram criadas para uma demanda crescente vinda de todas as regiões o país, resultando num processo de profissionalização da gestão de recursos derivados de renúncia fiscal. Há, no entanto, sensíveis diferenças de procedimentos entre essas empresas. Enquanto Banco do Brasil, Petrobras e Natura, condicionam seus apoios a aprovação de projetos individuais17 junto ao MinC, o Instituto Itaú Cultural – IIC18 envia, ele próprio, um projeto à Lei Rouanet, abrangendo todas as suas ações anuais. Dessas práticas derivam conseqüências que, para nós, são de extrema relevância. Como as isenções fiscais são de 100% para todas as áreas, à exceção de música popular e artes integradas, Banco do Brasil e Petrobras obtém abatimentos integrais para a grande maioria de seus incentivos. A Natura, por sua vez, investe no segmento de música popular e o IIC envia ele próprio um projeto global ao MinC, enquadrado como artes integradas. Natura e IIC tem, portanto, isenções parciais (de 40% a 65%) e investem recursos próprios em seus programas, num percentual aproximado de 35% dos valores totais aplicados. Agora vamos a um outro ponto peculiar ao IIC. Sendo uma instituição ligada a um dos maiores conglomerados financeiros do mundo, presumimos com certo grau de segurança que suas ações poderiam ser mantidas com recursos próprios. Ao lançar mão das Leis de Incentivo, o IIC compete com segmentos da sociedade para os quais as Leis foram inicialmente pensadas. Ainda mais. Após a aprovação de seus projetos, o IIC tem os incentivos garantidos pelas empresas do próprio conglomerado Itaú. Sem dúvida, questões relevantes que nos ajudarão a compor nossa conclusão. Agora vamos incluir elementos complementares a esse raciocínio. http://culturabancodobrasil.com.br http://www.itaucultural.org.br 15 http://ppc.petrobras.com.br 16 http://www.naturamusical.com.br 17 As propostas são enviadas pelos próprios proponentes à CNIC/MinC, analisadas e, em caso de aprovação, incentivadas pela empresa. 18 Instituto criado pelo Banco Itaú para ações de fomento, pesquisa e preservação de acervos culturais. 13 14

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O primeiro concerne aos limites legais de investimento, que na Lei Rouanet são de 4% para PJ e 6% para PF do IR devido. Dessa maneira, os incentivadores têm em suas mão um poder limitado de aplicação e co-gestão19 de recursos. Os 96% do IRPJ e 94% do IRPF restantes são recolhidos aos cofres públicos como sempre foram, e administrados pela União. Pensemos também sobre a democratização do Estado. É lícito supormos que a burocracia estatal deva ser tecnicamente capaz em suas ações, e que dessas ações derivem escolhas que contemplem a complexidade da sociedade com eficiência e transparência. Entretanto, entre “o que deve ser” e “o que de fato é” pode haver uma diferença significativa. Aparelhamento político e dificuldade na profissionalização e aperfeiçoamento dos quadros estáveis de funcionários podem prejudicar a lisura de processos de escolha ou mesmo comprometer sua qualidade. Naturalmente, a iniciativa privada não está alheia a ambientes dessa natureza. Interesses escusos, influências, incompetência derivada da baixa profissionalização, não são características unicamente da gestão pública. Entretanto, ao instituir mecanismos como os das Leis de Incentivo, o Estado delega a um universo bastante amplo e variado o poder decisório sobre a co-gestão de parte de recursos estatais. As inúmeras empresas habilitadas a participarem das isenções fiscais podem compor um espectro cujos objetivos poderiam estar ora conjugados, ora concorrentes entre si. Desse ambiente, poderia resultar uma maior pluralidade de escolhas e uma diversificação de interesses. Ainda cabe uma consideração quanto às complementações orçamentárias. Tendo como exemplos os casos específicos do IIC e da Natura, vimos que os projetos encaminhados são enquadrados como “artes integradas” e “musica popular” respectivamente – Artigo 26 da Lei Rouanet, com isenções de 65% do montante investido. Os 35% restantes são oriundos do orçamento das próprias empresas, levando a um acréscimo financeiro em ações de investimentos em cultura e também a uma co-responsabilização dessas empresas no que se refere à lisura dos processos e à qualidade dos resultados pretendidos. Por último, há que se levar em conta os níveis de socialização dos produtos obtidos através das Leis de Incentivo. Dentre os programas das 4 Empresas por nós citadas, chamamos a atenção para as particularidades do IIC. Todos os programas empreendidos pelo Instituto, assim como as atividades desenvolvidas em suas dependências são gratuitos. Também todo o material produzido é distribuído “...gratuitamente e direcionada a centros de pesquisa e produção em artes, órgãos de imprensa, Universidades, Secretarias de Estado e Municipais de Cultura, Órgãos e Departamentos do Governo Federal e demais instituições ligadas à produção e estudos artísticos e culturais.” (MORAES, 2013, p. 295) Usamos o termo “co-gestão” tendo em vista todos os projetos viabilizados através da Lei Rouanet serem aprovados por uma Comissão pública de avaliação antes de serem contemplados pelas escolhas e incentivos da iniciativa privada. 19

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Obviamente o critério para escolha dessas parcerias é estabelecido pelo IIC, mas se pensarmos que a sociedade deve ser o objetivo final dos investimentos realizados com recursos estatais, é lícito supor que nesse caso esse objetivo está sendo cumprido. Se comparado a outras ações similares que se utilizam do mesmo mecanismo, veremos que o IIC é uma exceção à regra. Nos 3 editais das outras empresas citadas, Petrobras, Banco do Brasil e Natura, não há qualquer impedimento de comercialização de qualquer produto resultante. O Estado, por sua vez, tampouco exige que isso seja feito por proponentes beneficiários dos editais20, com ou sem a participação da iniciativa privada. Estes são elementos que, ao nosso ver, devem também pautar uma avaliação cuidadosa a respeito dos mecanismos de isenção fiscal instituídos no Brasil através das Leis de Incentivo, bem como de seus impactos para os segmentos culturais e para toda a sociedade. 4. CONCLUSÃO Não estamos aqui fazendo uma defesa intransigente das Leis de Incentivo nos moldes existentes. Entretanto, há que se considerar dados concretos com o objetivo de buscarmos um melhor conhecimento do que se constituiu como uma ferramenta importante das políticas públicas voltadas para a cultura. É preciso salientar que para que se efetivem, as intervenções públicas devem estar relacionadas tanto ao fomento à produção como a mecanismos de divulgação, circulação e exibição, em âmbitos local, regional e global. Ampliação de recursos, democratização da gestão, diversidade cultural representada nos programas desenvolvidos, poderiam ser questões contempladas em “parcerias público-privadas” baseadas em mecanismos de renúncia fiscal através de Leis de Incentivo à cultura, por exemplo. Aos modelos existentes nos dias de hoje no Brasil, correções pontuais poderiam minimizar problemas visando um futuro de integração público-privado, com o aproveitamento dos avanços tecnológicos, da multiplicidade da criação humana e de suas culturas, visando otimização e qualificação de ações e resultados. Dentre as possibilidades de alteração, poderiam estar contempladas: 1) instituição de modelos progressivos e diferenciados de isenção, de acordo com a natureza dos beneficiários: produção independente, pesquisas de linguagem, culturas populares e de base, produções ligadas à indústria de consumo de massa, produções trans-nacionais, etc.; 2) participação compulsória e crescente de recursos privados para atividades voltadas ao grande mercado e/ou para artistas com notório reconhecimento público e já inseridos no mercado consumidor em larga escala, Situações similares ocorrem com ações desenvolvidas diretamente pela máquina estatal, como por exemplo, nos Editais do Fundo Nacional de Cultura, editais da Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, Editais das Secretarias do MinC, etc. 20

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etc.; 3) isenções diferenciadas entre os Estados e Regiões brasileiras, visando a canalização de recursos a localidades pouco assistidas pelo poder público e distantes das atenções da indústria; 4) limitação e regulação de investimentos de empresas em seus próprios projetos; 5) limitação e regulação de participação de instituições públicas ou ligadas ao poder público; 6) ações compulsórias de publicização e socialização de resultados/produtos; 7) para editais nacionais de grandes empresas, obrigatoriedade de envio de projetos às Leis de Incentivo pela própria Empresa, o que na quase totalidade dos casos resultaria em enquadramento no Artigo 26 – abatimentos parciais, com respectivo incremento privado de recursos; 8) implementação de fóruns permanentes de debate, visando aprofundamento do diálogo entre o poder público e a sociedade civil acerca das políticas culturais nacionais; etc. Por fim, é importante lembrar que Leis de Incentivo são dispositivos complementares às políticas públicas. Programas de valorização da diversidade cultural; investimento na produção de pesquisas de linguagem; integração entre as políticas derivadas das diversas instâncias públicas; investimentos em educação; interação das ações públicas a ambientes de comunicação e das indústrias culturais; utilização das novas tecnologias voltadas à divulgação, distribuição e exibição, etc., constituem a realidade de muitos dos sistemas públicos de gestão cultural mais avançados do mundo. A esse respeito, cabe-nos lembrar as palavras de Jean-Pierre Warnier no que concerne a um modelo de política cultural pública em tempos de globalização: As políticas culturais se baseiam em três constatações. A primeira mostra que as indústrias culturais são um ramo importante da economia. Elas criam empregos. A cultura em sentido amplo (educação, comunicações, know-how) é um fator de desenvolvimento econômico. A segunda constatação é que o setor das indústrias da cultura inclui a mídia. E é a mídia que permite que grupos privados e o Estado exerçam um maior ou menor controle sobre a comunicação cultural e a informação. A terceira constatação é que a transmissão das tradições culturais se apóia no patrimônio herdado do passado. Para conservar sua identidade, os grupos e as nações devem manter, cultivar, renovar seu patrimônio. A transmissão cultural está estreitamente ligada à educação. (...) Estes são os três aspectos de qualquer política cultural: a) desenvolvimento econômico, b) promoção e controle da informação-comunicação, c) socialização dos indivíduos e transmissão do patrimônio cultural e de identidade. (grifados no original) (WARNIER, 2003, p. 97-98) Essas são nossas contribuições às análises de modelos de parcerias público-privadas para cultura efetivadas no Brasil através de mecanismos de renúncia fiscal e/ou Leis de Incentivo.

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POLÍTICAS CULTURAIS PARA A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL: O EDITAL DE APOIO À COEDIÇÃO DE LIVROS DE AUTORES NEGROS Vagner Amaro1 Patrícia Vargas Alencar2 RESUMO: Este artigo discute os reflexos relacionados ao Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros, lançado em 2013 e fruto de lutas judiciais. Traça um breve histórico dos elementos que possibilitaram a um cenário favorável para a criação do mesmo. Traz à cena questões de cunho ideológico subjacentes à dinâmica de elaboração de políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial no contexto cultural. Para tanto, parte de teorias sobre políticas públicas, tomando como norte alguns de seus atores sociais. Sugere como o bibliotecário pode atuar em relação às políticas públicas culturais para a bibliodiversidade. PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas, Políticas culturais, Literatura; Autores negros.

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor dos olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum. (EVARISTO, Conceição, 2014, p. 18-19.) O trecho destacado acima corresponde ao conto Olhos d`água, do livro homônimo, lançado em 2014 pela editora Pallas. Esta obra foi uma das vencedoras do Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros (em anexo), realizado pela Fundação Biblioteca Nacional em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR, que em 2013 contemplou 19 obras. O foco deste artigo volta-se para o edital mencionado, pela sua relação direta com a Biblioteconomia no que tange ao compromisso ético dos profissionais da informação com a Vagner Amaro. Mestrando em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. E-mail: [email protected] 2 Patrícia Vargas Alencar. Professora do Mestrado Profissional em Biblioteconomia do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia da UNIRIO. E-mail: [email protected] 1

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bibliodiversidade, no que ele evidencia sobre as possibilidades de atuação das bibliotecas, ao ser gerido pela Fundação Biblioteca Nacional e por, principalmente, em conjunto com os outros editais de promoção da igualdade racial, ter sido incialmente suspenso por liminar concedida pela 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão, em uma Ação Civil Pública, com alegação de que estes editais geravam lesão ao patrimônio público e afrontavam os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade e isonomia. Os outros editais também lançados em novembro de 2012, mês da consciência negra, para realização em 2013, foram o Apoio para Curta-Metragem — Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual; o Prêmio Funarte de Arte Negra e o Apoio a Pesquisadores Negros. Em relação ao edital de coedição, questiona-se a descontinuidade diante de sua especificidade, visto que embora um novo edital de coedição tenha sido lançado em 2015 pela Biblioteca Nacional, foi dele excluído o recorte racial. Diante do exposto, este artigo objetiva investigar os impactos causados pelo Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros, a partir da identificação do cenário em que ele foi criado, bem como analisa em que medida sua elaboração correspondeu a uma demanda da sociedade. Busca-se identificar os resultados alcançados pelo edital, tendo como exemplo os caminhos percorridos pelo livro Olhos d’água e indicar, mesmo que de forma incipiente, algumas motivações para as reações negativas que o edital obteve, as tensões sociais que levou ao seu embargo e, após reação da sociedade civil, sua liberação. Para a realização desta pesquisa, foram entrevistadas uma das autoras ganhadoras do prêmio, Conceição Evaristo e a editora e sócia da Livraria e Editora Kitabu, Fernanda Felisberto, que vem se dedicando em editar, distribuir e vender uma quantidade expressiva de obras da literatura afro-brasileira. Buscou-se embasamento teórico na literatura sobre políticas públicas, literatura afro-brasileira e, em específico, nos textos sobre políticas culturais para os afrodescentes. Pode-se, então, categorizar este artigo como uma avaliação de uma política pública para a promoção da igualdade racial na área de cultura. 1. POLÍTICAS PÚBLICAS: ENQUADRANDO UM CONCEITO Torna-se importante definir o conceito de políticas públicas adotado para este trabalho, visto que não há consenso na literatura da área sobre esta expressão. Para Secci (2014) uma política pública é uma diretriz para enfrentar um problema público, possui dois elementos fundamentais que são a razão para o estabelecimento de uma política pública e a resolução de um problema entendido coletivamente como relevante. Em geral, as políticas são geradas dentro do aparato institucional do Estado, embora as iniciativas e decisões tenham diversas origens. Pode-se citar como origens para o estabelecimento de políticas públicas os atores sociais, que, segundo manual de políticas públicas do Sebrae (2008), são os grupos que integram

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o Sistema Político, apresentando reivindicações ou executando ações, que serão transformadas em políticas públicas. Eles podem ser do segmento estatal ou privado. Os atores estatais são aqueles que exercem funções públicas no Estado, tendo sido eleitos pela sociedade para um cargo por tempo determinado (os políticos), ou atuando de forma permanente, como os servidores públicos (que operam a burocracia), e os atores privados são os que não possuem vínculos diretos com o Estado. No caso do Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros, vale destacar a luta do movimento negro por representação da cultura produzida pelos negros fora dos aspectos mais tradicionais da cultura, que o senso comum relaciona mais ao folclore e à cultura popular, do que uma “cultura intelectualizada”, e também todos os outros indivíduos negros e não negros, que atuam de forma individual e coletiva para a igualdade racial. A complexidade atual dos elementos que originam políticas públicas é apontada por Oliveira (2010) quando afirma que a sociedade torna-se cada vez mais complexa, com uma diversificação de atores, interesses e demandas dirigidas ao Estado e que, por outro lado, temos uma pluralidade de manifestações culturais atreladas a grupos sociais, a comunidades, a igrejas, ou seja, manifestações da sociedade civil. Nos dias de hoje, o Estado, as empresas e o chamado terceiro setor estão atuando no mundo da cultura. O tamanho e a dispersão das manifestações culturais expressam a complexidade e a diversidade do mundo atual. Entende-se que se há um aumento da complexidade dos grupos que mobilizam ações para a implementação de uma política pública, também torna-se maior o desafio de sua avaliação. Tenciona-se neste artigo uma possibilidade de avaliação do edital de coedição, mas, para tanto, torna-se necessário estabelecer um entendimento sobre o ciclo da política cultural, do qual alguns itens são destacados com uma breve descrição. Saravia e Ferrarezi (2006) afirmam que o ciclo de políticas públicas é composto por sete etapas. Começando pela (1) inclusão de determinado pleito ou necessidade social na agenda de políticas; seguido da (2) elaboração que consiste na identificação e delimitação de um problema atual ou potencial da comunidade e a determinação de alternativas para sua solução; (3) a formulação que inclui a seleção da alternativa considerada mais conveniente; (4) a implementação que é constituída pelo planejamento e organização do aparelho administrativo e dos recursos humanos, financeiros, materiais e tecnológicos necessários para executar a política; (5) a execução que é o conjunto de ações destinadas a atingir os objetivos estabelecidos para uma determinada política; (6) o acompanhamento que é o processo sistemático de supervisão da execução; e por fim, (7) a avaliação que consiste na mensuração, bem como, na análise dos resultados produzidos, sendo, segundo os autores, a avaliação a área que mais se desenvolveu nos últimos tempos. Para Sechi (2014) o ciclo de políticas públicas é um esquema de visualização e interpretação que organiza a vida de uma política pública em fases sequenciais e independentes. O autor

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informa como fases principais deste ciclo a identificação do problema, a formação da agenda, a formulação das alternativas, a tomada de decisão, a implementação, a avaliação e a extinção. Para análise deste trabalho, foram selecionados os seguintes itens definidos por Sechi (2014) a agenda como um conjunto de problemas ou temas entendidos como relevantes, podendo ter a forma de um programa de governo, um planejamento orçamentário, um estatuto partidário, ou ainda, uma simples lista de assuntos que o conselho editorial de um periódico julga como importante; o problema público como aquilo que se diferencia do que se gostaria que fosse realidade, salientando que o problema existe quando existe a expectativa de alcance de uma situação melhor e que o problema apenas se torna público quando os atores políticos intersubjetivamente o consideram um problema relevante para a coletividade. Outros dois itens que se destacam na análise deste artigo são a avaliação da política pública e a extinção do problema. Segundo Sechi (2014) a avaliação é a fase do ciclo em que o processo de implementação e desempenho da política pública é examinado com o intuito de conhecer melhor o estado da política e o nível de redução do problema que a gerou. Giullani (2005) elenca como causas da extinção de uma política pública quando o problema que originou a política é percebido como resolvido, quando os programas, as leis ou as ações que ativavam a política pública são percebidos como ineficazes, quando o problema, embora não resolvido, perdeu progressivamente a importância e saiu das agendas políticas formais. De acordo com o cenário brasileiro de dificuldade de ascensão do autor negro na cena literária, em que incluem livrarias, mídia, festas e outros eventos literários, percebe-se que nenhum destes itens aventa uma possibilidade para a extinção do edital de apoio a coedição de autores negros, o que leva a uma necessidade de maior investigação sobre o objeto desta pesquisa. Para a autora da obra exemplificada neste artigo, Conceição Evaristo, em entrevista para este trabalho, o mercado editorial tende acolher já os nomes consagrados ou então uma figura midiática: Becos da Memória levou 20 anos para ser publicado, enviei para duas ou três editoras e recusaram, (no momento o livro está no prelo para uma edição francesa); a mesma situação eu enfrentei com Ponciá Vicêncio, também foi recusado, até que eu resolvi bancar a publicação. É um livro que já foi traduzido para o inglês e para o francês, sendo lançado nos Estados Unidos e na França. Hoje Ponciá Vicêncio é uma obra que já tem um currículo, esteve no vestibular da UFMG, no CEFET/MG e em mais quatro instituições mineiras, assim como esteve no vestibular da UEL/Universidade Federal de Londrina e hoje Olhos d’água esteve no vestibular da UEMG. Outra questão, embora nós tenhamos hoje uma pesquisa acadêmica de peso sobre livros de autoria negra, e muitos pesquisadores não só da área da literatura debruçados sobre nossas obras, falta ainda uma visibilização “midiática” sobre a autoria negra. É esperado que uma mulher negra saiba cozinhar, cuidar de uma casa, cuidar de crianças, enquanto babá... Espera-se também que ela seja boa

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de cama, que ela saiba dançar e cantar, mas não que ela saiba escrever, ainda é uma ideia que não compõe o imaginário brasileiro. A fala da escritora Conceição Evaristo evidencia as dificuldades encontradas para conseguir publicar uma obra e em como estes entraves estão relacionados com o imaginário e as representações sobre o negro. Diante desta exposição, cabe verificar quais as lutas e os atores sociais que possibilitaram a criação de ações em busca da igualdade racial em relação aos escritores negros. 2. POLÍTICAS CULTURAIS PARA A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL O Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros teve como objeto a formação de parcerias para o desenvolvimento de projetos editoriais sob a forma de coedição, a fim de produzir publicações de autores brasileiros negros, na forma de livros, em meio impresso e/ ou digital, com o propósito de divulgar, valorizar, apoiar e ampliar a cultura brasileira dos afrodescendentes, em geral, e dar maior acessibilidade à sua produção cultural, artística, literária e científica, atendendo ao que estabelece a Lei nº 10.753/2003, que criou o Programa Nacional do Livro, e ao Decreto nº 7.559/2011, que dispõe sobre o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Uma lei e um decreto deram aporte legal para sua realização e para a classificação dos candidatos como negros se utilizou o critério do IBGE, que é a autodeclararão. Percebe-se que a política de promoção da igualdade racial explicitada neste edital vem em decorrência de uma série de outras questões que foram amadurecidas ao longo dos anos, em que se destacam as ações afirmativas, sendo as cotas para ingresso nas universidades públicas sua parcela mais polêmica e midiatizada. Embora o edital se baseie em leis de promoção do livro e da leitura, estas não contemplavam as questões relativas à cultura afro-brasileira, conforme atesta Silva (2014), o PNLL em seus quatro eixos, que são democratização do acesso, fomento à leitura e a formação de mediadores; valorização institucional da leitura e desenvolvimento da economia do livro, não há referências à população afro-brasileira e sua sub-representação no sistema LLLB, assim como são ausentes também os conteúdos ligados às africanidades e relações raciais. Traçando breve histórico das lutas para a garantia de espaços de atuação nas políticas culturais dos governos, tem-se como marco temporal a década de 90, que segundo Queiroz (2014) foi quando os debates sobre políticas afirmativas de recorte racial no Brasil começaram a ganhar espaço na cena política nacional. Toda sua fundamentação está na premissa de que é impossível novos resultados com velhas práticas. Se o país realmente deseja sair do conjunto das nações com as piores taxas de desigualdade entre os pobres e ricos deve fazer um exame de suas políticas públicas, visando eliminar práticas que justificam, produzem e mantêm o quadro de desigualdade.

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A autora aponta como marcos desta década em relação à política cultural a Lei Rouanet e outras inovações institucionais que possibilitaram a renovação dos museus, os programas do patrimônio histórico, artístico e cultural, a política do patrimônio imaterial e o incremento do cinema, destacando que toda essa dinâmica esteve distante de uma reflexão sobre o papel da cultura no desenvolvimento do país, na promoção da justiça e no exercício da cidadania e distante ainda mais, do tema da promoção da igualdade racial. Para Queiroz (2014), um outro destaque neste breve histórico é o governo Lula, quando as discussões sobre políticas culturais começam a tomar outro rumo, expressando o propósito de vincular a cultura ao desenvolvimento socioeconômico do país e a promoção da cidadania. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, instou a equipe do MinC a pensar uma política de cultura voltada para o exercício da cidadania, o que resultou na implementação de programas e projetos e ações nos quais pode-se identificar uma perspectiva inclusiva, como por exemplo os pontos de cultura. Este propósito do Estado encontrou atores sociais ávidos por mudanças sociais que garantissem maior espaço nas representações culturais do país figuras que se encontravam em estado periférico. Para Queiroz (2014) compreendia-se que garantir direitos culturais para todos implica em considerar as especificidades de cada matriz cultural de forma a possibilitar que, em meio às diferenças, o princípio de equidade seja aplicado, alertando que a questão era e é como garantir essa tão defendida igualdade por meio de políticas culturais que considerem a histórica exclusão vivenciada pelas culturas negras no Brasil. Neste sentido, outras ações foram defendidas pelas secretarias e fundações voltadas para a igualdade racial, pelo movimento negro e por indivíduos da sociedade civil, pois apesar dos avanços a desigualdade ainda prevalecia, conforme denuncia Silva(2014) quando pondera que a inexistência de dados estatísticos desmembrados por raça acerca da distribuição dos recursos para a cultura não invisibiliza o predomínio de pessoas brancas nos postos de comando e prestígio da cena artística brasileira, fato que fundamentou a realização dos editais para criadores, produtores culturais e pesquisadores negros de 2013, elaborados pelo Ministério da Cultura e Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial, para apoiar agentes culturais negros que enfrentam sérias dificuldades de acesso aos mecanismos públicos de fomento, contrapostos às facilidades oferecidas às produções artísticas de referência eurocêntrica. Neste breve relato pode-se constatar a mobilização dos atores sociais para o estabelecimento de políticas públicas, no caso dos editais em específico, recaem sobre eles a suspensão movida por liminar concedida pela 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão, em uma Ação Civil Pública, sobre esta suspensão Conceição Evaristo, em sua entrevista, afirma que não se pode perder de vista, que esse edital está dentro da perspectiva das Ações Afirmativas, em que

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o estado brasileiro através de ações compensatórias busca reparar uma injustiça histórica que se inicia com o processo de escravização dos povos africanos e seus descendentes no Brasil. Creio que qualquer brasileiro que tenha um mínimo de consciência, um mínimo de honestidade, mesmo sem conhecer profundamente a história do Brasil, sabe que a nação brasileira teve como um de seus pilares o trabalho escravo de homens, mulheres e crianças. E que a pobreza dos africanos e seus descendentes no Brasil foi a herança, foi a moeda que se ganhou com a carta de alforria. sabe também que o racismo brasileiro tem impedido às pessoas negras uma ascensão social.  As críticas que esse edital recebeu são as críticas que o Movimento Social Negro recebe sempre. Nós negros quando acusamos a sociedade brasileira de racismos e criamos as nossas formas de enfrentarmos somos acusados de estarmos promovendo o racismo. Hoje a expressão de “racismo reverso” acusa o negro de ser racista em relação ao branco. Essa pessoa que vê um caráter racista nesse edital por contemplar uma autoria negra, poderia a título de ilustração, ler a vida de escritores e escritoras negras, para saber como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Luiz Gama, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, dentre outros, enfrentaram, sofreram ou silenciaram diante de situações que tiveram de enfrentar por serem negros e mestiços. É provável, bem provável que quem tenta embargar um edital como esse, embarga também ações afirmativas que contemplem comunidades indígenas brasileiras. Ressalta-se que este fato evidencia que embora as políticas públicas partam de mobilizações de vários atores sociais frente a um problema, não necessariamente sua aceitação será hegemônica por toda a sociedade. E que mesmo após sua implantação, os atores sociais que a elaboraram permanecem vivenciando tensões para sua efetividade, como relata Silva(2014): No período de 2013-2014 a FCP atuou no sentido de pautar a necessidade de adoção de medidas afirmativas, por parte do sistema MINC, com o objetivo primeiro de permitir aos brasileiros de origem africana o pleno exercício da cidadania, também participou de diversos fóruns, com destaque para as audiências públicas sobre financiamento para a cultura negra e a mobilização realizada por artistas e produtores culturais em oposição ao embargo do edital para produtores negros e curta afirmativo em 2013 impetrado por juiz maranhense. (SILVA, Cidinha, 2014, p. 367) Como resultado da mobilização da sociedade civil em relação a suspensão do edital a AGU, defendeu que ele fosse cumprido, entendendo que os editais não privilegiam determinado segmento da sociedade, pelo contrário, é uma ação pontual com o objetivo de integrar parte da população em certa área de produção cultural, o que acaba por estimular o respectivo ingresso em área específica de trabalho. Destacaram também que a suspensão causava prejuízo ao cronograma desenvolvido para o concurso e às expectativas dos participantes que inscreveram os

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seus projetos. O Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro concordou com a AGU e liberou a realização dos projetos. Outro aspecto relevante para se avaliar a elaboração e os impactos do edital de coedição é o que ele possui de específico, que são as publicações. No mercado cultural qual o espaço e a representação do autor negro, quais suas possibilidades de acesso a grandes editoras e distribuidoras e quais os entraves que sua obra encontra que o diferencia de um autor não negro? O que justifica a adoção de uma ação dentro de uma política pública para a edição de obras de autores negros. 3. A LITERATURA AFRO-BRASILEIRA Para Guimarães (2014) a literatura afro-brasileira é um conceito em construção, um processo e um devir. Além de segmento ou linhagem, é componente de amplo encadeamento de discurso. Ao mesmo tempo dentro e fora da literatura brasileira. Constitui-se a partir de textos que apresentam temas, autores e linguagens mas, sobretudo, um ponto de vista, que culturalmente é a afrodescendência, como fim e como começo. Sua presença implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido à história literária canônica. O conceito de literatura encontra ressonâncias no de literatura periférica, pois em muitos casos, seus autores fazem parte do mesmo grupo social. Para Assis (2014) do ponto de vista político-ideológico a literatura periférica contribuiu para deslocar sujeitos marginalizados socialmente – sobretudo negras e negros pobres – da posição de objetos da literatura – personagens estigmatizados que corroboram lugares sociais e preconceitos – para a posição de sujeitos da literatura – romancistas, contistas e poetas que criam personagens, dessa vez caracterizados por suas próprias experiências e retratando sua realidade, falando de si e por si. Também organizam saraus literários da periferia, criando possibilidades de divulgação e apreciação da sua arte, formação de leitores e escritores negros e constroem um importante espaço de articulação política e formação identitária. Ocorre que um autor apenas encontrará seus leitores se tiver mecanismos de distribuição e divulgação dos seus livros, e não estar em grandes editoras o impõe barreiras que apenas o romantismo e a força de vontade não conseguem sobrepor. Nascimento (2014) atesta estes obstáculos quando afirma que embora os autores da literatura periférica não demostrem resistência em publicar por grandes editoras – pelo contrário, até aventam essa oportunidade como um modo de agregar prestígio às suas produções e ampliar o número de leitores – escritores negros e periféricos continuam publicando, majoritariamente, de maneira independente, em livros artesanais ou impressos em gráficas que cobram pela edição e requerem que os autores disponham de recursos próprios ou financiamento externo. Por isso mesmo, uma das estratégias mais recorrentes de produção são as publicações coletivas, em que se pode dividir os custos ou somar talentos na busca por patrocínio. Destaca-se como marco destas publicações os Cadernos Negros, que desde 1978 publica coletâneas de poesias e contos de autores negros.

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Fernanda Felisberto, editora e livreira, em entrevista para este artigo, aponta que existem determinadas áreas que já possuem um acúmulo muito grande de autores publicando que são as áreas de história, educação e sociologia, e o motivo é simples, são áreas de humanas e ciências sócias que já possuem tradição de pesquisadores negros: “Nas outras áreas estamos construindo este processo mais tardiamente, o que não significa que não existam profissionais, mas a questão é furar a barreira editorial e conseguir publicar, a solução tem sido as editoras independentes e de pequeno porte, o que você quiser saber sobre Literatura Negro-Brasileira hoje, é só olhar o catálogo das editoras pequenas, até porque muitas das vezes o autor paga parte da edição.” Os pesquisadores sobre este tema vêm encontrando dados relevantes para esta análise sobre a ausência de autores negros no mercado editorial brasileiro. Uma pesquisa realizada na Universidade de Brasília, comandada por Regina Dalcastagnè, que analisou os romances brasileiros publicados desde 1990 revelou que menos de 5% dos autores são pretos ou pardos. Em entrevista, Conceição Evaristo comenta sobre o edital e a situação dos autores negros: Vejo como uma ação bastante positiva e necessária. Escritores e escritoras negras, na grande maioria, publicam, divulgam e comercializam, eles mesmos suas obras. Publicam em editoras pequenas ou por formas alternativas, como gráficas, e muitas vezes assumem os gastos da publicação. Depois da publicação, outras dificuldades aparecem. Distribuição, divulgação... Uma obra publicada por uma editora já inserida no mercado livreiro, a venda do livro se torna menos difícil. Diante dessas barreiras e de outras, são necessárias políticas públicas para publicação de obras, cuja autoria nasça dos grupos desprivilegiados socialmente. E cumprindo uma política pública, não só de publicação, mas ainda de distribuição, essas obras são encaminhadas para bibliotecas públicas, para as escolas, isto é, para espaços fundamentais de leitura. Para Dalcastagnè (2008) a literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais no que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira. É o caso da população negra, que em séculos de racismo estrutural foi afastada dos espaços de poder e de produção de discurso. Na Literatura não é diferente. São poucos os autores negros e poucas, também, as personagens – uma ampla pesquisa com romances das principais editoras do país publicados nos últimos 15 anos identificou quase 80% de personagens brancas, proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores. Isto sugere outra ausência, desta vez temática, em nossa literatura, o racismo. Se for possível encontrar, aqui e ali, a reprodução paródica do discurso racista, com intenção crítica, fica de fora a opressão cotidiana das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe às suas trajetórias de vida. O mito da democracia racial elimina tais questões dos discursos públicos, incluindo aí o do romance.

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Assim, negros e brancos, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, moradores do campo e da cidade, homossexuais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de diferentes maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis e solidários aos seus problemas. O que estas autoras defendem é que mesmo com a capacidade de ficcionalizar a realidade característica da literatura, autores criam seu universo ficcional a partir de referências de vida e pesquisa o que faz com que as representações dos negros, que estão fora dos mecanismos de produção desta literatura seja criada com elementos estereotipados. Felisberto (2014) afirma que pensar as identidades, e consequentemente seus sujeitos é tema obrigatório dentro das reflexões das infinitas lutas antirracistas, e pensar sobre este ponto dentro do cânone da literatura brasileira implica em analisar a ausência de diversidade identitária em uma sociedade plurirracial, o que demostra como a literatura reproduz as desigualdades sociais e raciais no Brasil. Devemos pensar o cânone sob rasura, tendo a presença da literatura negra feminina e masculina como fator motivador para o nosso questionamento, já que a experiência da negritude no Brasil é encenada nesta produção. Este tópico revela a importância de uma maior diversidade das perspectivas da literatura, que alcance os meios de distribuição e divulgação, ampliando assim as representações do brasileiro. Dalcastagnè (2008) reivindica que precisamos de escritoras e escritores negros, porque são eles que trazem para dentro de nossa literatura outra perspectiva, outras experiências de vida, outra dicção. Precisamos de mais negros e negras moradores da periferia, trabalhadores e trabalhadoras escrevendo, não para fazer relatos de suas vidas, mas para que sua imaginação e sensibilidade deem forma a novas criações, que refletirão, tal como ocorre entre os escritores da elite, uma visão de mundo formada tanto de uma trajetória de vida única, quanto de disposições estruturais compartilhadas. Referente ao edital de coedição, a avaliação considera a fala de Felisberto (2014) quando informa que literatura negro-brasileira não está disponível nas livrarias e bibliotecas, o que não ocorre com o cânone. Dentro desta perspectiva, se faz necessário um diálogo mais estreito entre setores da administração pública, responsáveis pelas compras governamentais e as editoras interessadas em trabalhar com este nicho de mercado, já que a cadeia do livro, no que tange a literatura negro-brasileira, está ávida por ser sempre retroalimentada, uma vez que há autores querendo publicar e leitores já pactuados com esta temática, aguardando sempre por aquela publicação. A partir dos textos apresentados, traçam-se algumas considerações acerca do tema e das possibilidades de avaliação do Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros, acentuando que este é apenas um estudo inicial sobre o tema.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerou-se para este artigo um tipo de avaliação de políticas públicas que esteja focado nas razões que levaram a sua realização e o seu impacto. Trevisan e Bellen (2008) informam sobre um tipo de avaliação de políticas e da correção de ação (evaluation), na qual se apreciam os programas já implementados no que diz respeito aos seus impactos efetivos, em que se investigam os déficits de impacto e os efeitos colaterais indesejados para poder extrair consequências para ações e programas futuros. Nessa etapa, caso os objetivos do programa tenham sido atendidos, o ciclo político pode ser suspenso ou chegar ao fim, senão a iniciação de um novo ciclo, isto é, a uma nova fase de percepção e definição de problemas. Neste sentido, entendemos que pelo objeto avaliado o impacto ainda está em curso, pois as publicações foram lançadas em 2014, no entanto, já se pode avaliar que há uma contribuição para a bibliodiversidade quando se coloca em cena autores que estavam em situação periférica em relação ao mercado. Para Souza (2014) bibliodiversidade é uma noção concreta que aplica o conceito de biodiversidade ao livro. Ela remete à necessária diversidade das produções editoriais disponibilizadas para o público. O livro de criação é a encarnação da bibliodiversidade, opondo-se ao fenômeno da Best-sellerização (produção editorial que se baseia essencialmente em produtos produzidos para o maior número possível, com uma tomada de riscos mínima e respondendo essencialmente aos objetivos financeiros.). Esta é uma questão a ser refletida pelos bibliotecários no que diz respeito à formação dos seus acervos, tanto em relação à aquisição como também em relação às possibilidades de colaboração para a produção das edições e na realização de eventos literários com autores que se encontram à margem da cena literária. Torna-se cada vez mais imprescindível que os bibliotecários se apropriem dos conhecimentos a respeito das políticas públicas, visto que a diversidade dos atores sociais que compõem os cenários que geram novas políticas se torna mais complexa. É necessário compreender as políticas como parte de sua construção. Segundo Guelman (2010) o estabelecimento das políticas culturais deve se fortalecer de uma visão e prática construtivista e expressiva, com tramas mais construtivas perpassando os espaços sociais. A partir desses espaços, devemos nos interrogar sobre as condições emergentes de expressão. É no espaço das mediações, estabelecido no jogo dos agentes sociais com o Estado, que se deve pensar uma práxis das políticas culturais. É preciso pensar uma política cultural como dinamização de um sistema, como um processo de vitalização de um sistema, não sendo algo gerado de dentro para fora, mas um processo constituído na própria realidade e que se desenvolve a partir desta como trama ou tessitura social. Por meio do Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros a escritora Conceição Evaristo publicou sua coletânea de contos Olhos d’água, alguns destes contos haviam sido publicados nos Cadernos Negros, com repercussão restrita e com a coletânea vem alcançando grande repercussão. O livro recebeu o Prêmio Jabuti 2015, em terceiro lugar na categoria con-

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tos, vêm sendo adotado por escolas, distribuído em bibliotecas e entrou na lista do vestibular, ampliando o número de leitores desta e de outras obras da autora, leitores destes, muitos, que provavelmente, segundo o que as pesquisas aqui apresentadas indicam, passariam sua existência sem conhecer tão potente obra.

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BELÉM COMO METRÓPOLE CULTURAL E CRIATIVA DA AMAZÔNIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A ELABORAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELÉM Valcir Bispo Santos1 RESUMO: Este artigo se propõe a apresentar alguns elementos que possam contribuir para a elaboração do Plano Municipal de Cultura de Belém, maior cidade da Amazônia Oriental brasileira. A ideia básica é que a elaboração deste plano pode se sustentar em três (3) diretrizes fundamentais: Participação Social, Criatividade e Diversidade Cultural. O objetivo é criar parâmetros tanto para uma política cultural democrática e descentralizada, como também para uma estratégia de desenvolvimento tendo como eixo a Cultura e os traços singulares de sua manifestação. E, desta forma, formular uma visão estratégica de Belém como metrópole criativa e cultural da Amazônia. PALAVRAS-CHAVE: criatividade, diversidade cultural, participação social, plano de cultura, Belém.

1. INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar alguns elementos que possam contribuir para a elaboração do Plano Municipal de Cultura de Belém, maior cidade da Amazônia Oriental brasileira. A ideia básica é que a elaboração deste plano pode se sustentar em três (3) diretrizes fundamentais: Participação Social, Criatividade e Diversidade Cultural. Desta forma, pode-se criar parâmetros tanto para uma política cultural democrática e descentralizada, como também para uma estratégia de desenvolvimento tendo como eixo a Cultura e os traços singulares de sua manifestação. E, assim, formular uma visão estratégica de Belém como metrópole criativa e cultural da Amazônia. Este artigo está organizado em quatro (4) seções, incluindo essa introdução. A segunda seção se refere a analisar como o princípio da Participação Social está presente no processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Belém- SMC Belém. A terceira seção abordar Professor Doutor da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará – UFPA; conselheiro titular no Conselho Municipal de Política Cultural de Belém representando as “Universidades”; integrante do Instituto Luzeiro Cultural – Iluz; e-mail: [email protected]

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como o princípio da Diversidade Cultural se tornou referencial importante para o processo de democratização da política cultural, assim como a noção de Criatividade se tornou referencia como um dos eixos de inovação no século XXI e de uma nova abordagem de estratégia de desenvolvimento. E examina como esses princípios, junto com uma metodologia de participação social, podem se tornar referencias para a construção de um Plano Municipal de Cultura para Belém, a partir de uma visão estratégica de Belém como Metrópole Cultural e Criativa da Amazônia. E na última seção, fazem-se as considerações finais. 2. A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA DE BELÉM A participação social está presente desde a origem do processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Belém – SMC Belém. Isso porque a luta pela democratização da política cultural se constituiu no eixo dinamizador mais importante deste processo. Alguns grupos culturais, inicialmente ligados ao Teatro, começaram a se mobilizar contra a “política de balcão” que caracteriza a política cultural de Belém por décadas, e que se constitui em das únicas vias para se conseguir algum “financiamento” para os grupos culturais. Outra alternativa de financiamento é a lei municipal de renúncia fiscal para a Cultura denominada como “Tó Teixeira”. No entanto, essa lei contém mecanismos que concentram recursos na cultura, semelhante ao que ocorre em nível nacional com a Lei Rouanet, que provoca, inclusive, uma concentração regional dos recursos2. Isso porque são as empresas que definem os projetos culturais a serem financiados, tendo em vista, sobretudo, o retorno de “imagem de mercado” que o artista ou grupo cultural pode proporcionar às empresas. Frente a esse panorama desolador que afligia a cultura local como um todo, logo os grupos ligados ao Teatro perceberam que não seria possível ficar restrito a uma demanda ou visão setorial. E começaram a se articular com outros grupos culturais. Para isso, foi importante o apoio e mediação da Comissão de Cultura da Câmara Municipal de Belém, presidida pelo então vereador Marquinho Silva (PT). Dessa forma, a partir de uma visão e discussão mais ampla sobre a política cultural, esses grupos, ativistas e fazedores de cultura se articularam em uma frente ampla denominada como Fórum Municipal de Cultura de Belém – FMC Belém. O objetivo estratégico do FMC Belém passou a ser a implementação do Sistema Municipal de Cultura de Belém – SMC Belém, pois, dessa forma, poderia se conseguir a democratização da política cultural e o acesso mais descentralizado aos recursos de financiamento para os diversos grupos e segmentos artísticos e culturais. “(...) em 16 anos de funcionamento da Lei Rouanet, dos 15 maiores projetos, 14 foram realizados no Rio de Janeiro e São Paulo. Entre 2003 e 2009, a região Sudeste teve 23 mil projetos apresentados e R$ 3 bilhões captados. Em contrapartida, a região Norte apresentou 786 projetos e obteve R$ 40 milhões captados.” (SALGADO et al, 2010)

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Assim, em 2012, a partir de reuniões em vários bairros e realização de alguns seminários, formulou-se uma proposta de Projeto de Lei de Iniciativa Popular, a primeira experiência do gênero de formulação de Sistema Municipal de Cultura em termos de grandes cidades brasileiras3. Começou-se a coletar assinaturas de apoio em praças públicas, feiras e mercados municipais, faculdades, bares e festas diversas. Desta forma, quando se conseguiu cerca de 30 mil assinaturas de apoio (seriam necessárias cerca de 50 mil assinaturas para poder ser enviada automaticamente para a Câmara Municipal), o então Prefeito de Belém, Duciomar Costa (PTB), em meio ao processo eleitoral daquele ano, decidiu assumir o projeto e enviá-lo à Câmara como um projeto do Executivo Municipal. Esse contexto político, marcado pelas eleições municipais e pela adoção do projeto de Lei de Iniciativa Popular pelo então Prefeito (provavelmente conduzido pelo cálculo dos ganhos eleitorais que isso poderia proporcionar), se mostrou estratégico para ampliar a base de apoio parlamentar ao projeto. Desta forma, no dia 24 de julho de 2012, a Câmara Municipal de Belém aprovou por unanimidade a Lei Municipal “Valmir Bispo Santos”4, que criou o Sistema Municipal de Cultura de Belém. E uma semana depois, foi promulgada pelo Prefeito como Lei Municipal No. 8.943, de 31/07/2012 (vide BELÉM, 2012). Devido a essa intensa participação social na sua formulação, o Sistema Municipal de Belém – SMC Belém contém várias inovações e avanços, sobretudo em termos de democratização da gestão e da política cultural. A composição do Conselho Municipal de Política Cultural – CMPC é formada majoritariamente por representantes da sociedade civil, pois dos 38 titulares, 27 (ou seja, 70% da composição do CMPC) são representantes dos diversos segmentos culturais, artísticos e sociais, eleitos diretamente pelos seus pares por meio dos respectivos Fóruns setoriais e distritais. Por sinal, são justamente esses Fóruns Permanentes de Cultura, setoriais e distritais, que permitem a participação direta na gestão cultural de artistas, fazedores de cultura e moradores. Inclusive na formulação do Plano Municipal de Cultura e nas suas subversões setoriais e distritais, conforme os artigos 20 e 21 da Lei “Valmir Santos” (BELÉM, 2012). Desta forma, os Fóruns Permanentes de Cultura permitem a efetiva implementação de um modelo de democracia participativa na gestão da política pública da Cultura, o que constitui uma grande inovação política em termos de gestão de políticas públicas. Outra inovação importante é em relação ao Sistema Municipal de Financiamento à Cultura - SMFC5, pois o artigo 37 da Lei “Valmir Santos” dispõe que pelo menos 2% do total da re Segundo o Guia de Orientações para os Municípios: Sistema Nacional de Cultura, “a instituição do Sistema Municipal de Cultura (SMC) deve ser feita por meio de lei própria, encaminhada à Câmara de Vereadores pelo prefeito do município”(BRASIL, MinC, 2011b: 33). 4 Homenageando o historiador, ativista e gestor cultural, que foi superintendente da Fundação Cultural “Curro Velho” e do Bosque municipal “Rodrigues Alves”, além de único paraense a ter presidido a UNE – União Nacional dos Estudantes (em 1988), e que tinha falecido alguns meses antes da aprovação da Lei. 5 O SMFC é composto por 3 fontes: 1) pelo orçamento público municipal, definido pela LOA; 2) pelo Fundo Municipal de Cultura; e 3) pela lei de incentivo fiscal “Tó Teixeira”, por meio de renúncia fiscal do IPTU e ISS. 3

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ceita municipal deve compor esse Sistema, sobretudo o Fundo Municipal de Cultura (BELÉM, 2012). Isso representa cerca de três (3) vezes mais do que foi inicialmente alocado em 2015 para a Fundação Cultural do município de Belém – Fumbel, que correspondia acerca de 0,6% do total da receita municipal daquele ano. Ademais, isso representa o dobro do que dispõe a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 421/2014, inicialmente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal em junho de 2015 6. No entanto, houve vários contratempos para se efetivar a implementação do SMC Belém e a Lei “Valmir Santos” durante a atual gestão do Prefeito Zenaldo Coutinho (PSDB), eleito em 2012, que atrasaram bastante esse processo. Mas apesar destes contratempos, os movimentos culturais e o FMC Belém voltaram a se articular em 2015, realizando audiências públicas e atos culturais. Importante foi a aceitação, por parte da promotora pública estadual Elaine Castelo Branco, de uma denúncia por “desvio de responsabilidade” por parte do Prefeito Zenaldo Coutinho devido a não implementação da Lei “Valmir Santos”. Assim, pressionado pela Justiça e pelos movimentos culturais, o prefeito Zenaldo Coutinho recentemente deu posse ao Conselho Municipal de Política Cultural, no dia 14 de janeiro de 2016. Isso deu impulso, finalmente, ao processo de efetiva implementação do Sistema Municipal de Cultura de Belém7. O acompanhamento da elaboração do Plano Municipal de Cultura é a grande missão que se impõe a essa primeira gestão do Conselho Municipal de Cultura de Belém, pois o Plano representa o principal instrumento da gestão cultural. Em vista disso, apresentar-se-á na próxima seção algumas propostas de diretrizes e insumos essenciais para a elaboração deste Plano. 3. A CRIATIVIDADE E A DIVERSIDADE SOCIAL COMO EIXOS BÁSICOS PARA A CONSTRUÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELÉM 3.1 As recentes mudanças na concepção de Cultura e no papel da Política Cultural Vários estudiosos destacam as mudanças ocorridas no Ministério da Cultura - MinC e na concepção da política cultural a partir das gestões conduzidas pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira entre 2003 e 2010. O ponto chave é a reorganização do MinC, visando recuperar a capacidade de realização de políticas culturais, em oposição à privatização das decisões de investimento de recursos públicos, cujo emblema maior é a Lei Rouanet e as leis correspondentes de renúncia fiscal nas esferas estaduais e municipais (RUBIM, 2010). A proposta de emenda constitucional estabelece um piso constitucional para investimentos em cultura nas três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Para o Ministério da Cultura estão previstos 2% da receita de impostos da União, já no caso dos estados a PEC estabelece 1,5% do orçamento dos estados e 1% para os municípios. 7 No entanto, ainda há um sério risco à implementação da Lei Valmir Santos, pois o Prefeito Zenaldo Coutinho enviou um projeto de lei à Câmara Municipal em outubro de 2015 em que propõe mudanças tão profundas no SMC Belém que retira praticamente todas as suas inovações e avanços na gestão democrática, o que representaria, na prática, uma revogação da Lei Valmir Santos. 6

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Pode-se destacar algumas iniciativas nesse sentido. Em primeiro lugar, a condução das políticas pelo Estado dependeria de uma reorganização institucional, com mudanças na estrutura do ministério, bem como da construção de instituições e órgãos em nível estadual e municipal. Em segundo lugar, deveria se reconhecer a cultura em suas três dimensões: simbólica, do direito à cidadania e do desenvolvimento econômico. Ademais, as políticas culturais deveriam deixar de ser somente políticas para os produtores e artistas, como na história recente, e voltar-se também para a população em geral. A população e os demais agentes envolvidos com atividades culturais, por fim, teriam papel decisivo na configuração participativa das diretrizes de política (SOTO, CANEDO, OLIVEIRA e SALGADO, 2010). A elaboração do Plano Nacional de Cultura – PNC também seguiu essa nova abordagem e a estratégia de metodologia participativa, a partir de deliberações da I Conferência Nacional de Cultura, realizada em 2005. O PNC apresentou novas referências para a concepção de Cultura e sobre o papel das políticas culturais, incorporando contribuições reconhecidas internacionalmente, sobretudo, do Mondiacult8 e da Conferência Mundial de Cultura. Nesta nova visão institucional, a Cultura passa ser percebida como elemento distintivo de agrupamentos sociais, e o direito à cultura como elemento indispensável para a realização da Cidadania. Além disso, a garantia e valorização das mais diversas manifestações culturais e o acesso aos instrumentos e equipamentos de produção e consumo culturais passam a ser considerados como elementos centrais para a construção do desenvolvimento sustentável do país (BRASIL, 2009). O objetivo central do PNC é reorganizar o campo das políticas culturais no país, criando mecanismos de desenvolvimento e inclusão social através da Cultura. Os princípios norteadores do PNC, que servem como guias para os objetivos gerais do Plano, se baseiam nas três (3) dimensões básicas da Cultura: simbólica, cidadã e econômica. A dimensão simbólica considera as manifestações culturais como aspectos inerentes às diversas dimensões que caracterizam a identidade nacional (ou regional), servindo como contraponto à visão (reducionista, diga-se de passagem) de cultura como “arte consolidada”9. A dimensão política valoriza a Cultura como instrumento de cidadania, através da garantia de acesso à infraestrutura e equipamentos para produção e consumo de cultura, mercantil e não-mercantil, e pela preservação do patrimônio histórico-cultural, material e imaterial. E a dimensão econômica considera a Cultura como elemento catalisador de oportunidades, capaz de agir como mecanismo de inclusão social por meio de seu potencial gerador de emprego (trabalho) e renda.

Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (México, 1982) Entende-se como “arte consolidada” manifestações artísticas tidas como “cultas”, restritas a pequenos círculos das artes plásticas, performáticas, da música, e outras expressões geralmente associadas a públicos restritos ou intelectualizados; ou formas de expressão simbólicas massificadas, mobilizadas por grandes grupos de capital das comunicações, da indústria fonográfica, cinema e editoração, por vezes também denominado como “indústria cultural”.

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Outra importante medida foi a instituição do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que teve sua proposta de estruturação, institucionalização e implementação aprovada pelo CNPC (Conselho Nacional de Política Cultural) em 2009. Assim como o PNC, o SNC pretende estruturar mecanismos para execução de políticas culturais como política de Estado, e não apenas como meras políticas de governo. O SNC tem a função de instituir um sistema para políticas culturais no país, articulando órgãos federais, estaduais e municipais. Essa rede teria como objetivo garantir coesão destas políticas e estimular o desenvolvimento e institucionalização em regiões que ainda não possuam mecanismos para promoção da cultura a partir do Estado. Para garantir esse processo, o SNC atrela a referida institucionalização (criação de secretarias de cultura ou órgãos afins) à remessa de recursos. 3.2. O princípio da Diversidade Cultural Em consonância com várias estratégias delineadas no PNC, o principio da valorização da diversidade cultural (seja nacional ou regional) encontra uma forte correspondência com o avanço relativo da descentralização no campo do planejamento e execução de políticas culturais. Além disso, encontra-se intimamente associado à dimensão simbólica da cultura, pois a valorização da diversidade cultural deve ocorrer por meio da recuperação do patrimônio material e imaterial, e pela garantia democrática de acesso a equipamentos culturais. Assim, a valorização da dimensão simbólica e regional da cultura é central para o reconhecimento de inúmeras expressões culturais relegadas à situação de virtual abandono por parte do setor publico ao longo das ultimas décadas, e é indispensável para a constituição de uma verdadeira cidadania, assim como para o desenvolvimento sustentável. A valorização da diversidade cultural possui um grande potencial transformador, intrínseco a um projeto de desenvolvimento nacional (ou regional ou ainda territorial), e se afigura como fundamental para a cultura brasileira (ou regional), pois caminha em sentido contrário à tradicional imposição de modelos culturais e à descaracterização das manifestações populares e regionais. No caso da Amazônia, há traços singulares da sua formação social, econômica, política e cultural que a distinguem claramente de outras regiões brasileiras. No período colonial, a Colônia do Brasil seguia uma estratégia de ocupação territorial e econômica delineada pelos colonizadores portugueses com base na empresa colonial escravocrata (com mão de obra vinda da África nos tristemente famosos “navios negreiros”) e em latifúndios de plantations de cana-de-açúcar. No entanto, a Colônia do Grão-Pará (e Maranhão, conquanto essa última região seguisse outra trajetória) se distinguia por ser uma região periférica a esse modelo, seguindo outro modelo de ocupação (ALENCASTRO, 2000; CARDOSO, 1984). A base econômica na Amazônia Colonial era a extração de produtos (ou especiarias) da floresta10, com utilização, 10

Também conhecidas como “drogas do sertão”.

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sobretudo, da mão de obra nativa indígena. Portanto, a formação cultural e social dos povos amazônicos possuem traços distintivos, que articulam diferentes tipos sociais, embora os traços hegemônicos derivem dos povos indígenas, do colonizador português e da mestiçagem destes, que passou a ser conhecido como “caboclo” ou “ribeirinho”. A trajetória da cidade de Belém segue os traços gerais dessa formação, pois desde o período colonial, Belém se tornou o principal entreposto do comércio das “drogas do sertão”. Essa condição se fortaleceu ainda mais no período áureo da economia da borracha11, na segunda metade do século XIX até o início do séc. XX, pois o centro do financiamento desse comércio internacional se localizava em Belém, com destaque para as principais casas de exportação e importação. Mas isso começa a mudar a partir do início da década de 1960, com as políticas de “integração” da Amazônia ao processo de acumulação de capital concentrado em nível nacional, sobretudo, na região sudeste, utilizando a construção de grandes rodovias nacionais. Com isso, Belém vai perdendo progressivamente boa parte do domínio da vasta rede urbana, mercantil e de serviços em que comandava várias outras regiões e cidades amazônicas. 3.3. A Criatividade e a emergência de um novo paradigma de desenvolvimento A Criatividade é considerada um dos principais eixos de inovação do século XXI. A emergência de um novo paradigma de desenvolvimento, centrado na Economia Criativa, reflete essa visão que articula Economia, Cultura e Tecnologia, sobretudo as mídias digitais e eletrônicas12. Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a criatividade é vetor do processo de inovação que, por seu turno, é considerado elemento central para a competitividade de um país. Assim, a promoção da criatividade e do suporte aos setores criativos seriam objetivos centrais para uma contribuição decisiva do MinC ao desenvolvimento do país (RUAS, 2011). Em documento publicado em 2011, o MinC apresenta sua proposta para um “Brasil Criativo”, em que propõe uma concepção de economia criativa que seja capaz de lidar com as especificidades nacionais, embora também incorpore algumas reflexões internacionais contemporâneas, sobretudo de agências multilaterais como a UNESCO e a UNCTAD. Dessa forma, os setores criativos são apresentados como: (...) todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, que resulta em produção de riqueza cultural e econômica. (MinC, 2011a: 22). Nesse período, a borracha se distinguia como o segundo produto da pauta de exportações brasileira, atrás somente do café, sendo extraída de seringueiras distribuídas pelas florestas da Amazônia por meio de um sistema de comércio e organização do trabalho rudimentar conhecido como “aviamento”. (CANO, 1998; SANTOS, 1980). 12 Conforme Duisenberg (apud Reis, 2008), a Economia Criativa é “uma abordagem holística e multidisciplinar, lidando com a interface entre economia, cultura e tecnologia, centrada na predominância de produtos e serviços com conteúdo criativo, valor cultural e objetivos de mercado”. 11

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Essa concepção proposta pelo Minc aparentemente supera uma limitação encontrada em parte da literatura internacional sobre o tema, sobretudo de inspiração anglo-saxônica, que, a partir da concepção de “indústria criativa” (industry crative), considera que a propriedade intelectual seria a principal referência para mensurar a atividade criativa. No conceito proposto, portanto, a analise da economia criativa deve partir da “(...) criação e da produção, ao invés dos insumos e/ou da propriedade intelectual do bem ou do serviço criativo” (MinC, 2011: 22). A emergência do campo da Economia Criativa tem relação direta com a expansão do processo de globalização, mas, sobretudo, com as inovações tecnológicas relacionadas às mídias digitais. Conforme observa Reis (2008:24), “a economia criativa compreende setores e processos que têm como insumo a criatividade, em especial a cultura, para gerar localmente e distribuir globalmente bens e serviços com valor simbólico e econômico”. Isso inclui setores tecnológicos, como o de software, pois são fundamentais para sustentar modelos de negócios e a dinâmica de processos nesta economia. De fato, o escopo da Economia Criativa vai além dos setores que tradicionalmente compõe a Economia da Cultura. Para além das atividades ligadas ao Patrimônio Cultural, Artes e Mídias, o documento “Brasil Criativo” também inclui como setores criativos a área de “criações funcionais”, onde desponta o design (interior gráfico, moda, joias e brinquedos), serviços criativos (arquitetura, publicidade, P&D Criativos, lazer e entretenimento) e novas mídias (softwares, jogos eletrônicos e conteúdos criativos digitais) (MinC, 2011a). Mais recentemente, tem despontado também como setor criativo o campo da Cultura Alimentar, embora envolto em algumas polêmicas, relacionadas, sobretudo, à visão de “gastronomia”, conforme será abordado mais adiante. Entre as políticas consideradas “estruturantes” pelo plano “Brasil Criativo”, destaca-se, no campo macroeconômico, o surgimento e institucionalização de “territórios criativos” (bairros, polos produtivos, cidades e bacias criativas). No campo microeconômico, destaca-se o apoio direto ao empreendedor e aos empreendimentos criativos, com a promoção de incubadoras, birôs, linhas de financiamento e outros instrumentos de suporte. De maneira complementar, o apoio às Redes e Coletivos de empreendedores da economia criativa segue o mesmo direcionamento (MinC, 2011a). A temática da Cidade Criativa, por sinal, tem provocado crescente interesse no campo da literatura sobre Economia Criativa, sobretudo por meio da influência de autores como Landry (2000) e Florida (2002). Tanto que desde 2004, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) tem promovido a formação da Rede de Cidades Criativas, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento. O objetivo da Rede, segundo a UNESCO, é aproximar cidades que adotam soluções criativas para promover o desenvolvimento sustentável, inclusão social e produção cultural. Atualmente, a Rede reúne 116 municípios em todo o mundo, distribuídos em sete categorias: Artesanato e Arte Folclórica, Design, Fil-

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me, Gastronomia, Literatura, Música e Arte de Mídia. Belém foi anunciada recentemente como componente da Rede na área da Gastronomia13. Landry (2000), por exemplo, acredita que o maior recurso que as cidades possuem para superar a “crise urbana” é o seu povo, com a sua criatividade e imaginação, que substitui o papel que antes era ocupado pela vantagem da localização, posse dos recursos naturais e acesso aos mercados para forjar o seu desenvolvimento. Florida (2002), por sua vez, desenvolve a noção de “classes criativas”, definida como aquelas ocupações que vão de artistas e desenvolvedores de software aos gestores e especialistas da área jurídica (os “profissionais criativos”). Essas ocupações atraem empresas de rápido crescimento, alta tecnologia e grande mobilidade. Além disso, as pessoas que ocupam essas posições criativas são tolerantes e os ambientes de trabalho se assemelham mais a espaços boêmios de consumo. Por isso, Florida tende a valorizar territórios ou espaços criativos nas cidades. Exemplo disso seriam os centros boêmios, com bares, casas noturnas e espaços culturais diversos, pois se tornam atrativos para estimular a presença de uma força de trabalho cujo estilo de vida tende a valorizar o consumo dessas experiências. 3.4. Algumas potencialidades que Belém apresenta em termos de recursos criativos e culturais Nesta seção serão apresentadas algumas propostas, a título de ilustração, acerca das potencialidades e recursos que Belém apresenta, e que podem posicioná-la como Metrópole cultural e criativa da Amazônia. É importante observar que o processo de elaboração do Plano Municipal de Cultura de Belém deve contar com ampla participação social, sobretudo por meio dos Fóruns Permanentes de Cultura. Além disso, já existe um bom acúmulo de demandas sociais e coletivas institucionalizadas por meio das quatro (4) Conferências Municipais de Cultura que já foram realizadas (embora a última, realizada em agosto de 2013, tenha sido muito prejudicada devido vários incidentes e por não ter havido plenária final e nem resultados sistematizados, pois a Comissão Organizadora Local foi destituída de modo monocrático pela então presidente da Fumbel, Heliana Jatene). Uma política de valorização dos espaços culturais e criativos encontra clara consonância com a visão de cidade criativa, aberta, tolerante e boêmia, tal como preconizada por Florida (2002). Belém tem longa tradição de boêmia, e isso também tem relação com o seu crescimento econômico como cidade portuária, possibilitando a interação com diversos ritmos musicais e culturais que vinham de outros rincões da Amazônia, mas também do Caribe e de outras regiões da América, África e Europa. Isso possibilitou a incorporação da música afro-latino-caribenha, como o merengue, e de outros ritmos, que encontravam eco em espaços como o Bar São Jorge Ver link: < http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/belem_salvador_and_santos_become_part_of_unesco_creative_cities_network/#.Vr2t5vkrLIU > Acesso em: dez. 2015. 13

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ou a gafieira “Estrela do Norte” (FARIAS, 2011). No entanto, estes e outros tradicionais redutos da boêmia belenense foram fechados – como a famosa boate Lapinha, com seus shows de variedade, inclusive de artistas transformistas. Para poder reverter esse cenário, faz-se necessário uma política de fomento para empreendimentos culturais e artísticos, que pode se constituir em uma das linhas de financiamento da política de incentivo fiscal ou do Fundo Municipal de Cultura. O rico e diversificado patrimônio histórico de Belém pode se constituir em alternativa para utilização por grupos e empreendimentos culturais, sobretudo de casarios e sobrados coloniais que se encontram em estado de abandono e deterioração. Já existem, por sinal, empreendimentos culturais desse tipo, como é o caso da Associação “Fotoativa”, do Casulo Cultural, do Espaço Cultural “Valmir Santos”, entre outros. Mas a ausência de fomento e de incentivo público faz com que alguns destes empreendimentos estejam ameaçados, como é o caso do “Casarão dos Bonecos”, ou até fechados, como foi o caso do Teatro “Cuíra”. Em outra cidade com patrimônio histórico tão diversificado como Belém (e diversificado movimento cultural), como é caso de Recife, há o movimento “Ocupe Estelita”, exemplo de como o movimento social e cultural pode empoderar-se com a defesa e valorização do marco histórico da cidade (BUENO, 2014). Outra medida importante do ponto de vista da diversidade cultural é a construção de uma política de valorização da identidade ribeirinha e indígena. Essa política pode ser viabilizada por três medidas interligadas. Primeiramente, realizar um mapeamento cultural ou um inventário de pontos e áreas culturais ou de territórios culturais em Belém. Esse mapeamento deve se deter inclusive nos espaços de reprodução da cultura de povos tradicionais (cultura de terreiro, quilombolas, cultura indígena, ritmos ligados à tradição ribeirinha e de outros povos e etnias). Em segundo lugar, uma política de preservação e de formação de memória dos mestres da cultura popular e tradicional, pois os saberes ligados a essa tradição cultural se encontram inscritos, sobretudo, por meio da tradição oral e tácita. Nesse sentido, torna-se de suma importância uma legislação e política pública de manutenção desses mestres por meio de bolsas próprias, uma espécie de bolsa cultural para mestres da cultura. Uma terceira medida pode ser dar via patrimônio histórico, que pode ser visualizado por meio de “pegadas na rua” ou “museu de rua”, como pode ser o caso da revolta popular da Cabanagem (ocorrida no período 1835-40) e seus vestígios nas ruas e prédios de Belém. Ou organizar um Museu da Condição Indígena, por exemplo, que poderia seguir o exemplo do Museu Internacional da Escravidão, em Liverpool, inaugurado em 2007 e que expõe os fundamentos econômicos da escravidão. Esse Museu cumpre os três principais objetivos a que se propõe: mostrar como milhões de africanos foram escravizados, evidenciar a participação crucial de Liverpool (e da Inglaterra como um todo) no processo, e enfatizar as conseqüências dessa exploração para as diferentes partes envolvidas (HASHIZUME, 2008). O cineasta e produtor cultural João Januário Guedes, que participar do Conselho Municipal de Política Cultural de Belém, representando a cadeira do Audiovisual, defende que o

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prédio do Solar da Beira, no complexo do Ver-o-Peso, poderia ser transformado em um Espaço de Referência da Cultura Ribeirinha, por exemplo. Outra alternativa é a utilização de espaços públicos municipais para fins culturais e criativos. É verdade que os espaços culturais municipais se encontram muito concentrados na área central de Belém. A ampla e populosa periferia de Belém tem pouquíssimos espaços culturais, e os poucos que existem estão completamente abandonados, como é caso da Biblioteca Municipal “Avertano Rocha”, em Icoaraci, ou o Espaço cultural e esportivo “Mestre Setenta”, no bairro do Guamá. Mesmo assim, com criatividade e ousadia, há vários coletivos e iniciativas culturais que tem ocupado ou feito intervenções em espaços públicos, inclusive em Mercados e Feiras Municipais. Essa é uma alternativa interessante, pois existem 42 feiras livres e 18 mercados municipais em Belém, registrados em 2013 e administrados pela Secretaria Municipal de Economia (SECON). Há vários exemplos de intervenções culturais regulares em mercados municipais, como nos casos do Sarau Multicultural do Mercado de São Brás, do Batuque do Mercado de São Brás, organizado pelo “Bloco da Canalha”, da intervenção cultural e criativa do Mercado do Porto do Sal pelo coletivo “Aparelho”. Além desses, há o “Batuque na Praça”, realizado na Praça da República, e movimentos como o “Tela Firme”, no bairro da Terra Firme. No entanto, essas iniciativas culturais não tem nenhum apoio do Poder Público municipal, e, por vezes, tem de enfrentar repressões por parte do aparato de segurança pública e até da Guarda Municipal. A mais notável experiência de ocupação de prédio público por coletivos culturais foi o movimento “Ocupa Solar da Beira”, também conhecido como “Ocupação Solar das Artes”, no complexo do Ver-o-Peso, que ocupou esse prédio público, que se encontrava ocioso, por 24 dias em 2015, promovendo diversas iniciativas culturais e criativas. No entanto, não houve nenhum diálogo por parte da Prefeitura de Belém com esse movimento, que teve de se retirar do local por meio de mandato judicial, mesmo sem a Prefeitura apresentar uma proposta para uso daquele prédio, conforme notificação do Ministério Público Federal. Outra área cultural com amplo reconhecimento no cenário nacional é a Música. Conforme já colocado, a privilegiada posição de Belém, no delta da bacia do rio Amazonas, e a sua trajetória como cidade portuária, possibilitou que a cidade tivesse acesso a contatos culturais e sociais diversificados com outros rincões da Amazônia e de outras partes do mundo, como o Caribe. Esses ritmos, muito deles “reinventados”, fazem parte da identidade regional, sobretudo de regiões ribeirinhas da Amazônia, como é o caso do Carimbó, recentemente reconhecido como “patrimônio cultural nacional”. A popularização desses ritmos no ambiente urbano de Belém contou com a importante colaboração das “aparelhagens”, como é caso do “brega”, que acabou se fundindo com outros ritmos, como é o caso do “tecnobrega”. A formação profissional de músicos deriva de alguns espaços tradicionais, como o Conservatório “Carlos Gomes”. No entanto, a indústria fonográfica é pouco desenvolvida. A cultura “ribeirinha” não é cultuada

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pelos segmentos das classes média e alta, que seguem padrões de consumo cultural imitativos ou colonizados, sobretudo do sudeste do país. Assim como também existem poucas casas de entretenimento (ou espaços culturais) que oferecem música ao vivo. E tampouco existem espaços para difusão de música autoral. Isso faz com que o mercado musical local seja restrito, fazendo com que aqueles que pretendem seguir carreira artística profissional tenham de se transferir para mercados musicais mais consolidados, sobretudo de São Paulo e Rio. Para romper esse círculo vicioso, faz-se necessário fomentar políticas públicas de difusão e circulação, aliada à formação de público, que devem ser discutidas no âmbito do Fórum Municipal de Música. Algumas alternativas passam pela difusão da música regional em rádios e canais de TV, e propiciar apoio aos espaços culturais que patrocinam música ao vivo, sobretudo de cunho autoral. Outra alternativa pode ser a difusão da disciplina “Música” no ensino básico, sobretudo em escolas públicas, e oferecer cursos de capacitação como educadores para músicos que se encontram na ativa. Outra área da cultural local com amplo reconhecimento nacional e até internacional é a Culinária, que também é conhecida como Gastronomia ou Cultura Alimentar. Conforme frisado, esse reconhecimento fez com que Belém fosse incorporada recentemente à Rede de Cidades Criativas, da UNESCO, na área da “gastronomia”. As peculiaridades da culinária regional são provenientes das particularidades da cultura amazônica, que incorpora pratos e ingredientes da(s) culinária(s) indígena(s), mesclada com tradições culinárias diversas, inclusive portuguesa e africana(s). Além disso, há uma imensa variedade de peixes, ervas, condimentos e temperos provenientes dos ecossistemas amazônicos. Daí deriva pratos típicos, como a maniçoba, diversos pratos que utilizam o tucupi e o jambu (como pato no tucupi, “caldeirada” de peixe, vatapá, tacacá, entre outros), entre outros. Algumas iniciativas recentes projetaram ainda mais a culinária regional, como é o caso do Centro Global de Gastronomia e Biodiversidade, projeto do Governo do Estado do Pará, que deve começar a funcionar em 2017. O projeto conta com participação do Instituto Paulo Martins, que foi um dos mais renomados “chefs” culinários paraenses, da Atá, instituto ligado ao renomado “chef” Alex Atala, e do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, além de outras entidades. Apesar da ampla cobertura mediática ao empreendimento, há algumas críticas e dúvidas sobre o projeto. Há, sobretudo, a questão do reconhecimento dos detentores de conhecimento tradicional na área, sobretudo por parte de comunidades tradicionais. Isso remete, inclusive, ao famoso caso das “erveiras” do Ver-o-Peso, que são feirantes que comercializam ervas, e da empresa multinacional de cosméticos “Natura”. A empresa utilizava ervas tradicionais da Amazônia, como cumaru, breu branco e priprioca, em novas linhas de cosméticos, baseado em conhecimentos transmitidos pelas erveiras. Estas, no entanto, foram alertada pela OAB – seção Pará, e a partir de negociações, a Natura reconheceu as “erveiras” como portadoras de conhecimentos tradicionais, e a partir de então, passou a pagar royalties para a Associação das erveiras, conhecida como “Ver-a-erva” (OESP, 2006). Outra polêmica tem a ver

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com a questão do suo do termo “Gastronomia”, pois ativistas da área, como Tainá Marajoara, consideram que o termo só se refere aos empreendimentos comerciais, mas sem incorporar a culinária enquanto forma de identidade regional ou cultural, que é mais ligada às comunidades tradicionais. Ou seja, não incorpora a dimensão simbólica de cultura. Por isso, Tainá e outros ativistas defendem que o termo “Cultura Alimentar” é mais representativo dessa tradição. Um importante patrimônio material e imaterial e que também se notabiliza como principal cartão turístico de Belém é o Ver-o-Peso, tradicional complexo de feira livre e mercados que fica na área antiga e central de Belém, cuja origem se confunde com a história da própria cidade. Para além de ser provavelmente o principal centro de abastecimento popular de Belém, o Ver-o-Peso também se notabiliza pela sua dimensão cultural, talvez tão importante quanto sua dimensão econômica. Através do Ver-o-Peso são transacionados inúmeros produtos e socializados ou transmitidos vários conhecimentos, sobretudo de cunho oral ou tácitos, pois o complexo recebe uma gama imensa de produtos e conhecimentos da mais variadas regiões da Amazônia, notadamente ribeirinhas. Por isso, existem projetos para reconhecer o Ver-o-Peso como patrimônio imaterial da cultura brasileira, ou patrimônio cultural da humanidade, como defende a superintendência regional do IPHAN no Pará, pois o patrimônio histórico do complexo já foi tombado pelas três esferas governamentais (federal, estadual e municipal). Por outro lado, também existe projeto para levantamento dos empreendimentos e iniciativas criativas do Ver-o-Peso, no sentido de institucionalizá-lo como “território criativo” (SANTOS, 2014). No entanto, essa dimensão cultural e/ou criativa praticamente não é levada em conta nos projetos de reforma do Ver-o-Peso, como é o caso da última proposta de reforma para a área, que está sendo propagandeada pela gestão do Prefeito Zenaldo Coutinho, e que se encontra envolta em intensa polêmica e debate. Por fim, cabe observar que as Universidades, juntamente com outras instituições, como o SEBRAE, pode desempenhar papel relevante em duas áreas cruciais: em estudos sobre as Cadeias Produtivas de atividades da Economia da Cultura e setores da Economia Criativa; e na formação de polos tecnológicos ligados às atividades e empreendimentos criativos e da cultura digital. Assim como participar da elaboração técnica do Plano Municipal de Cultura. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Belém apresenta muitas potencialidades e recursos para se tornar a Metrópole Cultural e Criativa da Amazônia. Essa potencialidade já foi considerada por alguns estudiosos, como Berta Becker, que, em seu último livro, considera que um das alternativas para o desenvolvimento de Belém passa pela Cultura e pela Economia Criativa (BECKER, 2013). No entanto, essa possibilidade tem de ser abraçada, sobretudo, pela sociedade civil e pelos fazedores de cultura. Por isso, é de suma importância a mobilização social, ou seja, a

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participação social no processo de elaboração do Plano Municipal de Cultura. Os instrumentos institucionais já estão aptos para isso, pois a estrutura dos Fóruns Permanentes de Cultura, previstas pela Lei “Valmir B. Santos”, que criou o Sistema Municipal de Cultura de Belém, agrega os moradores, artistas e demais fazedores de cultura no sentido de participar da gestão cultural, particularmente na elaboração do Plano Municipal de Cultura. Ou seja, institui um modelo de democracia participativa na política e gestão cultural de Belém. A articulação entre Criatividade e Diversidade Cultural, sobretudo no que se refere à cultura e conhecimentos considerados tradicionais, é essencial para a viabilidade dessa visão estratégica. A democratização da política cultural e descentralização e acesso a equipamentos de produção e difusão cultural deve se fundir com uma estratégia de desenvolvimento que coloque a Cultura como eixo central. A UNCTAD, por exemplo, considera que as indústrias criativas só podem servir aos objetivos culturais e econômicos do processo de desenvolvimento se conseguir relacionar os conhecimentos tradicionais, de um lado da cadeia de valor, ao consumidor final, na outra extremidade (UNCTAD, 2010). No entanto, cabe observar que o fomento a empreendimentos e iniciativas criativas não pode ser dissociado da proposta de valorização da diversidade cultural e de democratização da política cultural. Esse é um risco grave, pois poderia levar a uma exacerbação da dimensão econômica (sobretudo da acumulação capitalista e da prática dos negócios) em detrimento das dimensões simbólica da cultura e da cidadania cultural. Esse parece ter sido o caso de Buenos Aires. Inicialmente, a formulação inicial de um Plano Estratégico de Cultura, denominado de “Buenos Aires Cria”, em 2001, concebia a Criatividade como “capacidades de todos de imaginar e encarar situações, focando a criatividade como forma de resolução diversa e plural da vida, pluralismo que envolve a perspectiva dos direitos culturais proclamados como fundamento das políticas culturais”. O Plano destacava como problemas a concentração e o peso das empresas transnacionais no seio das indústrias culturais, e propunha que Buenos Aires “deveria ser a vitrine da Argentina” e se tornar a “capital cultural do MERCOSUL” (BAYARDO, 2013). No entanto, depois de uma mudança na administração do governo local, houve uma mudança de enfoque no Plano, que a partir de 2007, passou a seguir uma linha da concepção de “indústrias criativas”, segundo o enfoque anglo-saxão, que privilegia a abordagem da propriedade dos direitos autorais ou de patentes na geração das atividades criativas. A partir dessa nova postura política, a cultura foi considerada ou subordinada à agenda de política econômica das indústrias criativas e no processo, seus aspectos distintivos foram ofuscados (BAYARDO, 2013: 11). Nesse sentido, torna-se importante considerar que um diagnóstico sobre o setor cultural deve incorporar um estudo das relações de poder que se expressam no sistema econômico, na cultura e nas suas interações no campo da economia urbana e cultural. Ou seja, é importante in-

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corporar no diagnóstico sobre o setor cultural que deve constar do Plano Municipal de Cultura de Belém metodologias de estudo com base na Economia Política da Cultura (BOLAÑO et al, 1999).

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LA “CLASE CREATIVA” CHOLA COMO BASE PARA LA CONSTITUCIÓN DE LA PAZ COMO CIUDAD CREATIVA Valeria M. Salinas Maceda1 RESUMO: En el Estado Plurinacional de Bolivia se encuentra La Paz, ciudad que alberga un sin número de muestras y manifestaciones culturales sumamente interesantes, que van desde las tradiciones ancestrales más arraigadas hasta un arte urbano mestizo único. Esta metrópoli tiene mucho que mostrar, pero el modelo de gestión urbana empleado hasta hoy en día, no ha contemplado del todo la complejidad del ámbito social y cultural en el que se aplica, sin reconocer aún a La Paz como una ciudad creativa, a pesar de haber promovido elementos propios de la creatividad dentro de la urbe. En este contexto, se analiza un distrito cultural específico que se ha ido gestando naturalmente con características muy particulares, el cual podría permitirle a La Paz, convertirse en una ciudad creativa impulsada económicamente por la producción de la clase creativa chola. PALAVRAS-CHAVE: Industrias Creativas, Cholaje, Identidad, Clase Creativa, Fiestas Patronales.

“A los hijos de español y de india o de indio y española, nos llaman mestizos, por decir que somos mezclados de ambas naciones; fue impuesto por los primeros españoles que tuvieron hijos en Indias, y por ser nombre impuesto por nuestros padres y por su significación, me llamo yo a boca llena, y me honro con él”. (DE LA VEGA, 1990, p. 424-425) DESARROLLO De un tiempo a esta parte, los actores de gobierno que operan en la ciudad de La Paz, han generado importantes transformaciones en cuanto a infraestructura, espacios recreativos y estética de la urbe. Paralelamente, han mostrado cierta tendencia a la promoción y organización de festivales, ferias y otros eventos que permiten a artistas de diversas ramas mostrar su Licenciada en Economía de la Universidad Privada Boliviana con Maestría en Desarrollo Rural en la Universidad de Extremadura, España, y estudios Post-Graduales en Religión, Cultura e Investigación para el Desarrollo en la Universidad del Programa de Investigación Estratégica en Bolivia. E-mail. [email protected].

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producción en espacios de fácil acceso a la población. Esto ha provocado que La Paz se reconozca a ella misma como una ciudad más cultural, en la que las expresiones artísticas se multiplican de la mano del folclor, las tradiciones aymaras y costumbres mestizas. Sin embargo, todas las actividades antes mencionadas aún se consideran, tan sólo elementos del entretenimiento y de la “belleza” propia de las artes, sin haberse incorporado, como elementos clave, a un modelo de desarrollo que contenga principios de la economía naranja2 y que se sustente en la innovación, la creatividad y la clase creativa. En un momento en el que la revolución de la economía del conocimiento está generando un ambiente de competencia no sólo entre empresas, sino también entre territorios, La Paz no puede verse excluida y mucho menos puede incluirse con posibilidad de perder. Es por esta razón, que se requiere implementar una “nueva política urbana”, en la que se escatimen esfuerzos por identificar ventajas competitivas urbanas (Rodríguez; Vicario; Martínez, 1995) teniendo como eje central al contexto territorial a partir del cual se generan (Ludvall, 1992) y espacio social en el que se gestan. En el marco de una economía global, el contexto territorial, resulta primordial para impulsar la capacidad competitiva de las empresas (Porter, 1990), entendiendo que éstas no sólo se limitan a ser unidades productivas convencionales, sino que son empresas que incorporan por un lado, desarrollo de diversos conocimientos y por otro, innovación. Al hablar de conocimiento, generalmente se vincula este término con la investigación científica, elementos técnicos, organizativos o académicos; pero es necesario tener en cuenta que existe un conocimiento que no proviene directamente de la academia, sino de la herencia cultural, que se genera a partir de la experiencia y en muchos casos nace a partir de la relación holística de los nativos con su entorno. En el caso del factor innovación, son varios los autores que sostienen que se da a partir de un proceso de aprendizaje en el cual convergen diversos actores que interactúan de acuerdo a convenciones sociales pertenecientes a un entorno cultural concreto (Lundvall, 1992; Malmberg & Maskell, 2002). Por lo tanto, la innovación no es un elemento exógeno que pueda importarse desde afuera, más bien debe generarse dentro del territorio para estar fuertemente vinculado al mismo, a su cultura y a su entorno social. Sólo así los resultados del proceso de aprendizaje que conlleva el innovar, podrán responder eficientemente a necesidades reales. En este punto, se denota que la innovación requiere participación dinámica de la sociedad, por lo que las personas también deben considerarse un elemento clave de la competencia (Rodríguez; Vicario; Martínez, 1995). De esta manera, teniendo en cuenta conocimiento, innovación y personas, para generar ventajas competitivas, precisamente la competitividad del territorio dependerá de las con Según Buitrago & Duque (2013) La Economía Naranja es el conjunto de actividades que de manera encadenada permiten que las ideas se transformen en bienes y servicios culturales, cuyo valor está determinado por su contenido de propiedad intelectual. El universo naranja está compuesto por: i) la Economía Cultural y las Industrias Creativas, en cuya intersección se encuentran las Industrias Culturales Convencionales; y ii) las áreas de soporte para la creatividad.

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diciones de productividad que puedan generarse en su interior (Porter 1998) teniendo a la actividad creativa como principal impulsor de la economía y dinamización urbana (Florida, 2002, 2010). Ante este análisis, la denominada “clase creativa” cobra protagonismo, pues este grupo selecto de personas, es el que posee el talento para crear activos intangibles (Rodríguez; Vicario; Martínez, 1995) que diferencian y valorizan la urbe en la cual habitan. Por lo tanto, se convierten en los generadores de innovación y por ende en los motores del crecimiento económico de un territorio (Gertler, 2004). Este hecho da a entender que las ciudades deberían preocuparse por atraer este tipo de personas y lograr que permanezcan dentro sus fronteras, o caso contrario fomentar la formación de actores creativos. Ahora bien, Rodríguez (et.al, 1995) hace referencia a dos particularidades de la clase creativa. Primero, se define a las personas que la componen como la gente “adecuada” que posee la capacidad de reforzar la competitividad urbana. Por otro lado, también se indica que “la creatividad y el talento depositado en una mano de obra muy educada desplaza a los factores tradicionales del crecimiento territorial”. Sin duda, ambas afirmaciones colocan a la “clase creativa” en un nivel jerárquico superior al de la gente común y la posicionan como una élite exclusiva. La pregunta es, cómo se identifica cuál es la gente “adecuada” y cuál no lo es. Quizás adecuado sea quien es considerado mano de obra muy educada, es decir con alta formación académica. Sin embargo, existe gente, que a pesar de tener el talento para pertenecer a la élite creativa, no puede acceder al sistema de educación superior por cuestiones sociales y económicas. Sin duda, este es un tema controversial, pues este planteamiento estaría, de cierta manera, limitando demasiado la concepción sobre quién pertenece a la “clase creativa” y quién no. Brown (2005) indica que la ciudad que desee atraer a este grupo particular de individuos talentosos, deberá responder a sus variadas necesidades de espacios de residencia, los cuales pueden ir desde distritos artísticos dinámicos, hasta zonas residenciales de lujo que les permitan estar cerca a centros neurálgicos de las zonas de negocios. Tomando en cuenta este punto de vista, las urbes tendrían que iniciar un proceso de transformación de espacios e infraestructuras, mediante el cual se generen comodidades valoradas por la “clase creativa” y que estén a la altura de esta élite. Es decir, deberían instaurarse bares refinados, restaurantes de lujo, ambientes bohemios, teatros, clubs, entre otros, en aras de consolidar atmósferas multiculturales y multidimensionales que propicien el intercambio de pensamientos y criterios que impulsen la creatividad (Florida, 2010). Sin embargo, es interesante detenerse a analizar quiénes asistirían a estos espacios de interacción, seguramente algunos pocos. En este afán de dotar de exclusividad a los ambientes creados para que la élite creativa pueda convivir, el factor multicultural que debe estar presente, se limita enormemente. En su planteamiento para la formación de ciudades creativas, Florida (2010) identifica a la tolerancia como un eje central de su estrategia, al concebir un ambiente en el que exista tal diversidad, que pueda ser ordenado tan sólo a partir del principio

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del respeto por el otro y sus diferencias. Es en este punto, donde su teoría recae en contradicciones. Es difícil comprender la tolerancia sin inclusión, y proponer generar espacios exclusivos para la “clase creativa”, no promueve precisamente la integración. Es este mismo autor quien sostiene de manera crítica que la “sociedad sigue fomentando el talento creativo de una minoría y desdeña las capacidades creativas de la mayoría3”, pero su propuesta consolida precisamente esta acción, al propiciar el elitismo para los creativos, cuando las sociedades están formadas por actores complejos que van más allá de un grupo en concreto. En este sentido, en el texto “Ciudades creativas: ¿paradigma económico para el diseño y la planeación urbana?4”, se menciona que la tolerancia planteada por Florida, puede estar vinculada a la orientación sexual de los miembros que componen la clase creativa, lo cual no es malo, pero si reduccionista. De ser así, se estaría hablando de una tolerancia que se aplica a un conjunto de personas “específicas”, siendo ésta un privilegio que se restringe para unos pocos. Scott (2007), cuestiona este aspecto al exponer el caso de los inmigrantes (legales e ilegales) provenientes de países en vías de desarrollo, que son excluidos de los espacios en los que se relaciona la “clase creativa”. Esta visión es interesante, pues quien migra, lleva consigo toda la carga cultural del país del que proviene, factor que claramente contribuye a la formación de ese ambiente multiétnico, multicultural, interracial planteado por Florida, pero que irónicamente, por sus marcos de exclusividad, no amplía los alcances de su tolerancia a estos actores clave del intercambio cultural pro creatividad. Ahora bien, aterricemos esta teoría en una ciudad habitada por mestizos, cholos, aymaras migrantes del área rural y algunos gringos5 que han decidido quedarse. A este contexto, sumémosle el hecho de que los espacios de formación académica orientados a ramas creativas convencionales (música, actuación, diseño de modas, cine, etc) son reducidos. Entonces, podría inferirse que la “clase creativa”, concebida como grupo élite y mano de obra “bien educada”, no cuenta con las herramientas necesarias para producirse en un espacio geográfico propiamente paceño. Sin embargo, teniendo en cuenta que la creatividad se desarrolla en personas que han podido conocer diferentes perspectivas de la realidad, de mentes que se han nutrido de variadas y ricas experiencias, y que han absorbido y desarrollado distintos tipos de conocimientos (Florida, 2010), la condición mestiza de gran parte de los habitantes de La Paz, parece dotarlos de estas características de manera natural. El mestizo, proviene de la fusión de dos mundos, de la mezcla entre blancos e indígenas (De la Cadena, 2000), de haber experimentado más de una perspectiva de la realidad. Desde el punto de vista nacionalista, el mestizaje conduce a la homogenización (Wade, 2008), a una mezcla que hace a todos cada vez más similares, a un “blanqueamiento” occidentalizado de la 3 FLORIDA, 2010. 4 HERRERA; MOLINA; BONILLA, 2013. 5 Gringo es una palabra que se utiliza en la ciudad de La Paz de manera informal para referirse a los extranjeros, sin importar su país de procedencia.

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sociedad (Stutzman, 1981). En este sentido, al imponerse una cultura dominante con el objeto de borrar rastros de otra, el mestizaje puede entenderse como un etnocidio (García, 2014). Ahora bien, qué sucede cuando el mestizaje re-crea todo aquello que pretendía eliminar, cuando en lugar de oponerse a “lo indio”, lo reconstruye activamente (Wade, 2003), haciendo que los elementos “poco blaqueados” de la mezcla manifiesten su presencia y se destaquen en una lucha contra la homogenización. Desde este punto de vista, la condición de mestizo puede permitir mantener vivos y hacer contemporáneos elementos de una identidad india que no se resigna a desaparecer. En este contexto, es como hasta hoy en día, en la ciudad de La Paz, una fuerte presencia mestiza-india se impone, haciéndose visible indiscutiblemente a través de “lo cholo” (Rodríguez, 2010). Existen indicios que indican que el término “cholo” proviene del léxico aymara “chhullu”, palabra que se traduce al español como mestizo (Bertonio 1612). Del mismo modo, la historia devela que en la época colonial el denominativo cholo se utilizaba de manera peyorativa para referirse a aquellos que habían nacido como producto de la unión de nativos y extranjeros (Morner 1969). Siguiendo la línea de Orduna (2007) que indica que este proceso de “cholificación” puede considerarse una versión bolivianizada del mestizaje, al momento de hablar de aquellos que son considerados mestizos, inevitablemente se hace referencia a los cholos, cholas y su cholaje. Es importante, comprender que producto de la cholificación, de la fusión de elementos urbanos, criollos, indígenas y occidentales, surge una nueva identidad, la cual no renuncia a sus componentes culturales indios (Rodríguez, 2010), es más se aferra a ellos. Por lo tanto, es posible afirmar que el cholaje posee una identidad fragmentada y fracturada, la cual se caracteriza por mantener en el tiempo ciertos rasgos y peculiaridades de su raíz original, y por ser producto de la transformación de otros aspectos que la caracterizaron a lo largo de la historia (Llanque 2008). Esta fragmentación, le permite al indio, sobrevivir en la cosmopolita ciudad de La Paz, a causa de la decisión propia de reinventarse sin perder su esencia original, conservando un sin número de conocimientos, usos y costumbres de sus ancestros originarios, los cuales se han integrado a la modernidad evitando su extinción. Dentro de este contexto, la ciudad de La Paz es el territorio en el que se ha gestado una “clase creativa” muy particular, conformada por cholos, estos mestizos andinos con fuertes rasgos indios, más próximos a lo indígena que a lo occidental. Son ellos, quienes lentamente y de manera tímida (a un inicio) han ido edificando industrias creativas con un fuerte sustento identitario. Este grupo dista de encajar en los parámetros descritos por Florida, pues está compuesto por cholos y cholas, esos indios que a partir de su herencia cultural (por muchos años menospreciada por las élites) han generado productos creativos que responden a su concepción peculiar de estética, entretenimiento y glamour. Los creativos mestizos, no han esperado a que la ciudad transforme su infraestructura para habilitar espacios de exclusividad en los que pue-

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dan intercambiar criterios en un ambiente de tolerancia. Ellos han tomado las calles de la urbe para convertirlas en sus zonas de reunión, para que prácticamente cada fin de semana del año, el ámbito de la “fiesta” sea su espacio de máxima generación y expresión de creatividad. Aquellos que por mucho tiempo, por no pertenecer a las “altas elites”, recibieron de todo menos tolerancia de parte de la sociedad, han encontrado en las industrias creativas, desde principios del nuevo milenio, la herramienta clave para ser no sólo tolerados, sino respetados y admirados. En un escenario como el descrito, la teoría de Florida parece no encajar del todo, pues no responde a los desafíos de barrio, de la vida cotidiana (Sabaté & Tironi, 2008), olvidando las complejidades sociales de urbes peculiares. En La Paz, la innovación y la creatividad tienen una fuerte dinámica en los barrios más populares, donde han hallado la forma de responder a las necesidades sociales generadas a partir de costumbres y tradiciones que son parte del estilo de vida cholo-mestizo. La creatividad es un proceso que surge a partir de las motivaciones internas de los individuos y de los estímulos del entorno, los cuales pueden incentivarla o cohibirla (Florida, 2010) y es justamente así como la creatividad chola salió a flote. Por un lado, impulsada por el deseo interno de crear productos con identidad mestiza, que reflejen el cholaje en su máxima expresión y por otro, motivada por la rebeldía hacía un entorno que por mucho tiempo acalló todas estas aspiraciones y se limitó a estructurar espacios en los que los cholos no tenían cabida, en los que primaba la “exclusividad” para la élite. Los tiempos cambiaron, también lo hizo el contexto sociopolítico y la clase chola obtuvo otra jerarquía en la sociedad gracias a la prosperidad económica que alcanzó por el fruto de su trabajo. Estas condiciones, le permitieron demandar y crear espacios que se adaptaran a sus actividades y vivencias. De esta forma, espontáneamente y escapando de la percepción de los planificadores urbanos, surgió un distrito cultural 100% chukuta6 erguido en los pilares del cholaje. Se entiende por distrito cultural, una “zona urbana en la que se concentran actividades, bienes y servicios de origen cultural7” y esto es lo que precisamente se encuentra en el “Macrodistrito Max Paredes” de la ciudad de La Paz, lugar donde se sitúan los barrios “14 de Septiembre”, “Los Andes” y “Gran Poder”. Esta zona es el sitio en el que se movilizan sumas importantes de dinero a lo largo de todo el año, cuando los creativos cholos realizan transacciones en un mercado cultural en el que se intercambian productos y servicios para llevar adelante las actividades correspondientes a las fiestas patronales. Este tipo de festividades tienen un origen religioso y se asocian a un punto geográfico concreto, convirtiéndose en una especie de prácticas de religiosidad local que se celebran con el fin de dar cumplimiento a los compromisos o promesas asumidas con un santo del cual se esperan favores personales o colectivos (Dabbagh, 2013). La devoción de la sociedad chola a estos santos “católicamente-indigenizados”, es el motor que 6 Chukuta, palabra que se emplea popularmente para denominar a personas u objetos originarios de La Paz. 7 HERRERA; BONILLA; MOLINA, 2013.

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dinamiza la actividad de las industrias creativas mestizas, las cuales responden a las necesidades generadas por más de 300 fiestas patronales celebradas de forma anual en la ciudad de La Paz8. El vínculo entre fiestas patronales e industrias creativas gira en torno a las denominadas entradas folclóricas, eventos durante los cuales cientos de devotos agrupados en fraternidades folclóricas9, recorren las calles10 de la ciudad paceña bailando danzas tradicionales, como demostración de fe y devoción hacia el santo que veneran. Todas las fraternidades llevan adelante ensayos de la danza de su elección cada fin de semana (mayormente los domingos) hasta el día de la entrada, durante los cuales toman las calles del Macrodistrito Max Paredes para convertirlas en su pista de baile mientras se dirigen hacia los diferentes locales donde se realizan las denominadas “recepciones sociales”, fiestas en las que los fraternos comparten comida y bebidas alcohólicas al son de los mejores grupos musicales11. Es importante recalcar que lo descrito sucede cada fin de semana a lo largo de todo el año, celebrándose más de una recepción social por día, con una concurrencia que supera las 500 personas en cada acontecimiento. Por lo tanto, la productividad de las industrias creativas cholas prácticamente no se detiene, aunque si presenta cierta estacionalidad vinculada a las dos entradas folclóricas más grandes, llevadas a cabo entre los meses de mayo y julio12. La compleja dinámica social de estos eventos, asociada a una serie de actividades que han adquirido un carácter ritual, demanda y fomenta el consumo de diversos bienes y servicios creados por los creativos cholos, específicamente para cumplir con la funcionalidad de “la fiesta”. Es en este sentido y con la finalidad de satisfacer las necesidades de todo este sistema de celebraciones, que han ido surgiendo diferentes industrias culturales y creativas que atienden exclusivamente los requerimientos de una estética propia de la sociedad chola. El diseño de moda es una de las áreas más dinámicas de este distrito cultural. Por un lado, se encuentra la industria de la moda para chola paceña, en el que se pueden distinguir cuatro sectores: joyería, zapatería, diseño de sombreros y diseño de prendas de vestir13. Los varones que participan de las fiestas patronales, recurren a diseñadores de moda masculina que Dato oficial recabado en la Secretaría de Culturas del Gobierno Autónomo Municipal de La Paz. También denominados “conjuntos folclóricos”. Según Cajías (2009) “Los conjuntos más numerosos pasan de 500 miembros, los medianos, de 150; todos ellos tienen mujeres y hombres de diferentes clases sociales y de diferente filiación étnica, pero el núcleo organizador y fundador tiene una identidad social muy definida por su actividad económica, pertenencia a un vecindario o centro educativo. Los conjuntos folklóricos más numerosos son los que están vinculados a una actividad económica, especialmente con gremios de comerciantes, bordadores y transportistas”. En cada fiesta patronal el número de fraternidades folclóricas sobrepasa las 50. 10 Durante la entrada folclórica del “Señor Jesús del Gran Poder”, una de las más grandes de la ciudad, se recorren aproximadamente 15 kilómetros de distancia. 11 Las recepciones sociales son fiestas que se asemejan a conciertos privados, en los que se puede disfrutar de la música en vivo de los grupos de moda a nivel nacional e internacional. 12 La Entrada del Señor Jesús del Gran Poder y la Entrada de la Virgen del Carmen. 13 El atuendo tradicional de la chola paceña se denomina “parada”, está compuesto por la pollera y la manta. Además, se confeccionan blusas y centros, prenda de vestir que se porta debajo de la pollera para darle vuelo a la misma. 8 9

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confeccionan ternos especiales, sombreros y joyería. Por otro lado, se encuentra la industria de los llamados “bordadores”, artesanos que se encargan de la elaboración de los atuendos folclóricos que lucen los bailarines en las entradas. Cada pieza elaborada dentro de esta área de creación sigue fielmente estándares de moda propios del cholaje, en los que el brillo, el oro, las combinaciones llamativas de colores y los apliques de fantasía son los elementos más valorados. Por otro lado, se encuentra la industria audiovisual, dentro de la cual los productos generados son diversos. La producción de programas televisivos folcloristas14 ha cobrado gran relevancia en los últimos tiempos, emitiéndose al menos uno en cada canal a nivel nacional. Al existir un espacio popular en el que se puede dar a conocer la oferta de bienes y servicios cholos para la celebración de fiestas patronales, la producción de spots publicitarios se ha hecho bastante común en este medio. Además, se ha incrementado el número de fraternidades que demandan protagonizar un videoclip al son de la canción que danzarán en la entrada, dinamizando a directores creativos, productores, directores de fotografía, vestuaristas, entre otros. Las fraternidades más exigentes suelen acompañar la invitación impresa a las recepciones sociales con un DVD, el cual contiene cortos o documentales referentes a la historia de la agrupación de folclórica. Finalmente, el área de la fotografía cobra relevancia al satisfacer la demanda de sesiones fotográficas que retratan a las familias cholas ilustres que participan de las celebraciones patronales. Es necesario aclarar que desde hace unos cinco años aproximadamente han empezado a visualizarse indicios del surgimiento de una fotografía de moda chola que captura a las modelos emergentes de este ámbito, así como a las nuevas tendencias de los diseñadores de indumentaria. La industria del diseño gráfico también ha presentado una evolución importante en cuanto al desarrollo de productos culturales con identidad chola. Esta área tiene a su cargo la diagramación de revistas folcloristas que reflejan la actualidad de este grupo social y de sus principales acontecimientos. La aparición de revistas especializadas en moda de chola paceña, también ha creado un nuevo espacio de trabajo para los diseñadores gráficos. Además, la constante producción de invitaciones para las recepciones sociales es un rubro en el que la actividad laboral es dinámica durante todo el año. El posicionamiento de diseñadores de moda chola, femenina y masculina ha empezado a demandar la creación de logos, tarjetas de presentación, papelería y otros elementos que les permitan promocionar y diferenciar su marca y su nombre, impulsando de esta manera el sector del diseño de imagen corporativa15. La estética empleada en esta industria es peculiar, pues rompe con todos los preceptos del diseño gráfico, fusionando muchos colores al mismo tiempo, saturando los textos con distintos tipos de fuente, teniendo como favoritos al Son programas que dan cobertura exclusiva a los eventos relacionados con las fiestas patronales. Si bien el sector vinculado a la creación de imagen corporativa está presente en el medio, lucha contra los obstáculos que se presentan al enfrentarse a debilidades en cuanto a conceptos de propiedad intelectual y derecho de uso de marca.

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dorado, al plateado y al brillo. Otra característica importante, es el uso de diferentes materiales en un solo elemento impreso, mientras mayor sea la cantidad de materiales, mayor será el costo del producto final, y en una invitación, por ejemplo, esto ayuda a mostrar el poderío económico del grupo social que pagó por ella. Dentro de la industria de la música, se distinguen dos sectores: el de las bandas de música folclórica y el de los grupos musicales. Las primeras, son agrupaciones de músicos que acompañan a los bailarines durante el recorrido que realizan en sus ensayos y el día de la entrada folclórica. Quienes ejecutan la música marcan el ritmo de las danzas en las festividades al son de instrumentos como los bombos, platillos, trompetas, trombones, entre otros. Estas bandas son numerosas y ofrecen espectáculos diferenciados en cuanto a repertorio y coreografía. Muchas de ellas son dueñas de renombre y no sólo ejecutan su música en la ciudad de La Paz, sino que también participan en eventos a nivel nacional e internacional. Por otro lado, se encuentran los grupos musicales folclóricos y de música convencional, en su mayoría del género tropical. Aquellos que se dedican al folclor, firman contratos de sumas considerables para componer piezas musicales exclusivas para cada fraternidad, las cuales suelen estrenarse de manera anual. Tanto las agrupaciones folclóricas como las de música tropical nacional e internacional, animan cada fin de semana las recepciones sociales de los fraternos, ya sea en conciertos abiertos en las calles de la ciudad, o de manera mucho más exclusiva en locales en los que la entrada se restringe estrictamente a miembros de las fraternidades y sus invitados. En cuanto a los sectores de servicios que se dinamizan con estas celebraciones, están el de peluquería y arreglo personal16, el de montaje de luces y sonido para fiestas y el de alquiler de locales para recepciones sociales. Lo interesante de este último, es que se ha creado un tipo de arquitectura especial denominada “neo andina17” para construir locales específicamente para este tipo de celebraciones, los cuales distan mucho de los tradicionales salones de fiestas utilizados comúnmente. Estos lugares deslumbran con su extravagancia, gran lujo y colorido explosivo. Por otro lado, el servicio de gastronomía tradicional y repostería también se dinamizan a partir de la fiesta. El primero, respondiendo a la necesidad de servir un plato nacional fuerte en las recepciones sociales y el segundo, dando un aire más delicado con el diseño de cupcakes y tortas temáticas en las que se reflejan íconos de la sociedad chola o personajes de las danzas tradicionales de cada fraternidad. Como se ha descrito, son varias las industrias culturales y creativas que se han dinamizado a partir de las fiestas celebradas por la sociedad chola, acontecimientos de alta relevancia cultural que incorporan ritos y costumbres mestizas. Lo interesante, es que dichas industrias son Salones de belleza que específicamente sean expertos en el colocado de trenzas de cabello “falsas” (extensiones de cabello) y tullmas (accesorio para adornar el trenzado). Además, se demanda exclusivamente el maquillaje de fantasía tradicional de algunas danzas folclóricas. Se ha creado un nuevo y especial servicio de “estilismo”. 17 Estilo arquitectónico creado por Freddy Mamani. 16

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administradas por miembros de este grupo social específico y en ellas, son los cholos y cholas, quienes trabajan como genios creativos. Por cuestiones naturales, de articulación y de relaciones sociales, estas unidades productivas se han aglutinado en un territorio específico, creando un distrito cultural dinámico a través del cual se alimentan y preservan tradiciones, mientras a la vez se fortalecen identidades. Lamentablemente, el modelo de gestión urbano aún no reconoce, al cien por ciento, el trabajo de esta “clase creativa” como producción proveniente de industrias consolidadas. Si bien se conoce la manera en la cual este sector invierte fuertes cantidades de dinero en la organización de sus celebraciones, este hecho no pasa de ser un dato curioso y aun no se ha reconocido la oportunidad estratégica de convertir estas industrias creativas en una punta de lanza para el planteamiento de una nueva política urbana en la cual el cholaje sea el emblema de la ciudad de La Paz como urbe creativa y lo creado a partir de “lo cholo” pueda contribuir al crecimiento económico. CONCLUSIONES La ciudad de La Paz puede transformarse en una ciudad creativa, pues posee elementos culturales interesantes, llamativos y cuenta con una “clase creativa” particular que a partir de elementos de su identidad y sus tradiciones ha generado un distrito cultural dinámico y consolidado. Si bien las teorías sobre ciudades creativas, identifican como un factor relevante la atracción de una élite de actores creativos “bien educados”; en una sociedad mestiza de herencia aymara, no ha sido necesario crear espacios de atracción de estos grupos específicos, sino que la “clase creativa” se ha formado en los barrios populares, donde los rasgos culturales son mucho más puros y las costumbres originarias están más arraigadas. Lo llamativo de los creativos del cholaje es que su producción surge a partir del conocimiento empírico, es decir que en casi todos los casos, sus creaciones nacen a partir de conocimientos inculcados en el núcleo familiar haciendo valer el conocimiento transmitido de generación en generación. Se sostiene que la creatividad es un proceso que surge a partir de inquietudes internas del ser humano y estas industrias son el vivo reflejo de esta afirmación. Se debe rescatar que la producción creativa y cultural de este grupo social aparece como una herramienta para “hacerse visible” ante una sociedad que por años discriminó a los “cholos”. Hoy en día a partir de la producción creativa basada en la funcionalidad de la fiesta, se muestra el estilo de vida propio del ámbito del cholaje, en un contexto de gran extravagancia que satisface preferencias de estética, entretenimiento y glamour que no son nada convencionales. Al tener en cuenta estos factores, se reconoce que la producción creativa proveniente del Macrodistrito Max Paredes, es única en el mundo, pues los cholos y cholas paceñas tienen su origen en La Paz y es ahí donde hallan su motivo de ser, de cómo ser y cómo existir. Por lo tanto, es tiempo de reestructurar el modelo de gestión y política urbana para situar los ojos en esta “clase creativa” que es capaz de posicionar su producción

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como ventaja competitiva para que La Paz puede entrar a la competencia inter-territorial con elementos diferenciados, auténticos y que reflejen rasgos culturales de su gente y del territorio. La Paz puede ser vista como una ciudad creativa, y el cholaje puede ser la clave para conseguir que esta transformación se realice con éxito.

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A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DICURSIVA DA POLÍTICA CULTURAL Valéria Viana Labrea1 RESUMO: Este artigo reflete sobre a constituição da memória discursiva do discurso institucional do Ministério da Cultura, no período de 2003 a 2010, caracterizando-o como um discurso político populista, destacando-se sua função de símbolo. Adoto como referência teórica a escola francesa de Análise do Discurso (PÊCHEUX: 1995) e Laclau (2005). PALAVRAS-CHAVE: discurso, memória, populismo, política, cultura.

Nos últimos anos, surgiram várias experiências que permitem vislumbrar uma tendência na política cultural de dar voz e visibilidade a grupos culturais antes invisíveis para a grande parte da sociedade, criando novos discursos e narrativas. Estas iniciativas passam pela afirmação do poder da experiência, utilizando-a para construir lugares de pertença e enraizamento, pequenos mundos de sentido (LABREA:2014a). Seus sujeitos principais são agentes culturais oriundos das periferias urbanas, zonas rurais, povos e comunidades tradicionais, comunidades indígenas e comunidades quilombolas, grupos sociais que até pouco tempo atrás eram invisíveis, subalternos e considerados irrelevantes como produtores de cultura, saberes e conhecimentos nos discursos produzidos pela ciência hegemônica, mas que atualmente, articulados em redes culturais e protagonistas de políticas públicas que contemplam suas especificidades, conseguem dar maior visibilidade e legitimar seus discursos, seus fazeres e seus saberes, ao menos para parte da sociedade, criando uma tensão onde, até pouco tempo atrás existia somente o silêncio e a opacidade. Um espaço especialmente fértil para observar estes pequenos mundos atuando é o Ministério da Cultura (MinC), em que projetos culturais comunitários recebem recursos financeiros

Valéria Viana Labrea é Professora Adjunta na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do curso de Licenciatura em Educação do Campo. Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (2014), mestre em Educação e Gestão Ambiental pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (2009), especialista em Gestão Cultural pela Fundação Itaú Cultural/Universidade de Girona/Espanha (2012), especialista em Educação Ambiental pelo SENAC (2007), graduada em Letras - licenciatura plena em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000). Contato: [email protected].

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do Estado para, ao menos discursivamente, continuar fazendo o que fazem2. A ideia do Estado investir em equipamentos culturais que já contam com o reconhecimento e o respaldo da comunidade foi uma alternativa do governo federal à tendência até então de investimento em projetos pontuais e sem continuidade. Este artigo3 apresenta uma análise, seguindo a escola da francesa de Análise do Discurso (PÊCHEUX: 1995)4, sobre a produção da memória discursiva5 do MinC, caracterizando-a, a partir da leitura de Laclau (2005). Enfatizo nessa análise a rede de formulações elaborada sobre o novo desenho e o ineditismo da política cultural executada pelos Ministros de Estado da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira, na gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no período entre 2003 e 2010. O discurso produzido nesse período aponta as diretrizes e as prioridades, o novo modo de organizar as políticas culturais, as rupturas com as gestões do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o conceito ampliado de cultura e um novo léxico para a política cultural: do-in antropológico; tradição e invenção; ruptura e contradição; popular e erudito; intervenções agudas nas profundezas dos brasis urbano e rural; reinventamos o Estado; refundamos o MinC, entre outras ideias-forças. Considero que as falas originadas dessas expressões constituem o discurso fundador da política cultural e serão referência a partir de então. Para a AD, discurso fundador é aquele que “cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui uma memória outra” (ORLANDI: 1993, p.13). No caso do MinC, o discurso fundador é um discurso a priori que se constitui em matriz de sentido para falar da política. Em minha leitura, houve uma cuidadosa elaboração discursiva por parte dos gestores do MinC, com conteúdos fortemente ideológicos e simbólicos, alinhados a uma visão altermundista, que vinculou uma política a uma poética que articula ideias a imagens. Uma direção de sentido foi enfatizar o aspecto de novidade e de reinvenção da política e é nesse aspecto que focarei nesse artigo. Segundo Orlandi (1993), o discurso fundador organiza espaços de identidade histórica, constitui uma memória discursiva que passa a ser institucional e legítima. A memória discursiva pode ser entendida como os já-ditos que, de alguma forma se relacionam, determinam e atualizam o discurso do MinC no período estudado. Foucault (1969) dirá que há um domínio de memória, formado por enunciados que não são mais discutidos, Destacam-se nessa linha o Programa Cultura Viva da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial do Iphan, o Programa Pontos de Memória do IBRAM, os Editais para Bibliotecas Comunitárias e Pontos de Leitura da Diretoria de Livro, Leitura e Literatura, entre outros. 3 Esta discussão foi iniciada na tese Redes híbridas de cultura: o imaginário no poder. Cartografia e análise do discurso do Programa Cultura Viva - 2004 a 2013, disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/16149, acesso em 15/01/2016. 4 Sugiro a leitura dos seguintes textos sobre a teoria da Análise do Discurso: GADET, F. e HAK, T. (1997); ORLANDI, Eni P. (1988; 1993; 1996, 1999; 2003), descritos na bibliografia. 5 Sobre esse assunto recomenda-se a leitura de ACHARD, P. et al. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999. 2

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não se questiona seu valor de verdade nem sua validade, eles “já estão postos e em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade, descontinuidade histórica” (idem:65). O discurso do poder, na nova gestão, se coloca como uma novidade no campo cultural e esta característica irá determinar suas condições de produção. Na perspectiva discursiva, as condições de produção mostram a conjuntura em que um discurso é produzido. O papel que assumiu a cultura no programa democrático-popular do governo do Presidente Lula, a consequente reestruturação do MinC, a ocupação dos principais cargos (e das principais posições enunciativas) pelos gestores militantes político-partidários e parte dos movimentos sociais, conformou o contexto político-ideológico que torna possível dizer a política cultural nos termos em que foi dita. A fim de valorizar e fortalecer as novas prioridades do governo federal no campo cultural, essas dialogavam e refletiam um contexto mais amplo: a Constituição Federal de 19886 que contempla também a diversidade, o direito, a cidadania cultural e a participação social; a proposta de cultura do Partido dos Trabalhadores7 para o governo federal - que dialoga com as inúmeras experiências de descentralização da cultura nos governos petistas municipais e estaduais; a política cultural desenvolvida nas gestões anteriores (LABREA:2014b). Estes são os antecedentes que permitiram ao MinC propor um novo conjunto de políticas públicas para o país e, a partir de diretrizes claras, como a noção ampliada de cultura; públicos, territórios e linguagens prioritários redefinidos; a ampliação gradativa dos recursos orçamentários e humanos. O Ministro Gilberto Gil inicia sua gestão com três grandes desafios: Primeiro, retomar nosso papel constitucional de órgão formulador e executor de uma política cultural para o país, o que vai exigir a deflagração de um amplo processo participativo capaz de subsidiar a construção dessa Como exemplo, cito: (...) as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico- culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. [e se obriga a proteger] (...) as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (BRASIL, 1988: Art. 216). 7 O Partido dos Trabalhadores (PT) apresentou o conteúdo programático para as políticas federais da cultura no documento A imaginação a serviço do Brasil: programa de políticas de cultura (2002) e, desde então, já estava pré-configurada uma proposta de demarcar um diferencial em relação à orientação neoliberal das gestões passadas. Cito: Escolhemos ouvir as diferentes experiências que vamos construindo nas administrações populares que governamos em todas as regiões do país, os grupos culturais e a reflexão dos estudiosos das questões da cultura, munidos de algumas convicções firmadas no Programa de Governo para 2002 da Coligação Lula Presidente, que defendemos para o Brasil. É necessário e urgente por abaixo os muros do apartheid social e cultural que fraturam a sociedade brasileira; reconhecer a cultura como um direito social básico, condição para o pleno exercício republicano e democrático; conjugar as políticas públicas de cultura em todas as suas linguagens música, literatura, dança, artes visuais, arquitetura, teatro e cinema com a ação quotidiana da rede escolar; afirmar as identidades étnico-culturais regionais como condição definidora da nossa identidade nacional; trabalhar políticas culturais de longo prazo, pois uma nação que se preza não entrega ao mercado a formação de sua juventude e a transmissão dos seus valores éticos ensinados e aprendidos ao longo da história. (PT:2002, grifo meu). 6

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política. Segundo, fazer a reforma administrativa e a nossa correspondente capacitação institucional para operar tal política. Terceiro, obter os recursos financeiros indispensáveis à implementação desta política (GIL in: ALMEIDA et alii:2013, p.249). Instala-se, já no primeiro ano da gestão Gil no MinC, uma disputa pela narrativa. De um lado a defesa da ampliação dos públicos e da interiorização das ações e de outro a resistência dos grupos até então favorecidos em abrir mão dos parcos recursos públicos da cultura. O discurso dos gestores do MinC dá a entender que a política pública cultural que defendem é uma iniciativa contra-hegemônica, pois antes de 2003 o ministério privilegiava, principalmente através da Lei Rouanet, grupos culturais hegemônicos, instalados no circuito Rio-São Paulo, que tradicionalmente tinham acesso aos recursos do Estado, conheciam sua estrutura e mecanismos, sendo o que Boaventura Santos (2005) denomina os hiper-incluídos. Gilberto Gil afirmou que antes de assumir a pasta, o MinC havia entregue a política cultural do país para o mercado, para os departamentos de comunicação e marketing das empresas, pela via dos incentivos fiscais (GIL in: ALMEIDA et alii:213, p.249). Assim não é difícil compreender a necessidade de a narrativa do MinC se sobrepor a um imaginário mais elitista e conservador - mas que predomina também nas classes populares - do que interessaria às políticas culturais, sempre associada às belas-artes ou à alta cultura. Havia de fato demandas culturais reprimidas, que não tiveram espaço dentro dos governos anteriores e que a partir de então pautaram a agenda do MinC. Seu primeiro e mais importante deslocamento é a ampliação do conceito de cultura, enfatizando uma visão antropológica, pois entendem que “tudo está impregnado de cultura” (FERREIRA in BARROSO: 2010). Essa afirmação deve ser lida com cuidado, pois não se quer dizer que qualquer coisa é cultura, mas busca ampliar a compreensão do que seria próprio às políticas públicas desenvolvidas pelo MinC e se afastar do entendimento de que a cultura se interessaria somente pelas belas-artes ou se limitaria a atividades de lazer e recreação - ou interessaria à elite ou ao entretenimento -, tendo valor secundário e acessório. Em sentido antropológico, a cultura é uma dimensão da existência social, um conjunto dinâmico de todos os atos criativos de uma sociedade. Portanto, uma forma de estar no mundo, de forma criativa, considerando tradição e novidade como inseparáveis. Nesse sentido, a sociedade é uma fato de cultura, sem o qual não se criam instituições, não se negociam significados e diretrizes, não se travam conflitos. (…) Desigualmente distribuída e desigualmente valorizada em suas manifestações, indicia desigualdades sociais mais gerais – e as reproduz (BRASIL:2003c, p.63-4, grifo meu). Juca Ferreira esclarece qual o entendimento de cultura prevalece no MinC:

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Enxergamos cultura em toda a trama social. A cultura humana é tudo que resulta da ação humana, de suas interferências sobre o mundo; é tudo que torna visível o pensamento do homem sobre si mesmo e sobre o ambiente que o cerca. Todas as nossas práticas sociais são diferentes formas de concretização da cultura de que fazemos parte. (…) Cultivar é ordenar e sistematizar um conhecimento, nascido de um conjunto de valores, transformando-o em uma ou mais práticas. Não se pode ter dúvida que o desenvolvimento de uma sociedade humana é a tradução mais corriqueira de um processo civilizatório mais amplo. Projetar o desenvolvimento de uma sociedade é, em última instância, idealizar um modelo de civilização (FERREIRA in BARROSO: 2010, p. 265-278, grifo meu). Gilberto Gil, em seu discurso de posse8, coerente com essa visão, defende que “formular políticas públicas para a cultura é, também, produzir cultura” (GIL in: ALMEIDA et alii:2013, p.231): No sentido de que toda política cultural faz parte da cultura política de uma sociedade e de um povo, num determinado momento de sua existência. No sentido de que toda política cultural não pode deixar nunca de expressar aspectos essenciais da cultura deste mesmo povo. Mas, também, no sentido de que é preciso intervir. Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora deste jogo, dessa dialética permanente entre tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta (GIL in ALMEIDA et alii:2013, p.23; BRASIL: 2010b, grifo meu). Essa ideia é retomada por Gil em vários discursos que sedimentam uma nova narrativa para descrever as políticas culturais: Gostaria de retomar uma de minhas primeiras falas como ministro, quando disse que o MinC seria o espaço da experimentação de rumos novos, o território da criatividade popular e das linguagens inovadoras, o palco de disponibilidade para a aventura e a ousadia. Disse também que novas e velhas tradições, signos locais e globais, linguagens de todos os cantos são bem-vindos a este curto-circuito antropológico. A cultura deve ser pensada neste jogo, nessa dialética permanente entre tradição e invenção, nos cruzamentos entre matrizes muitas vezes milenares e tecnologias de ponta, nas três dimensões básicas de sua existência: a dimensão simbólica, a dimensão de cidadania e inclusão, e a dimensão econômica (GIL in BRASIL:2009a, p.12, grifo meu). Para ler a íntegra, acesse aqui: http://www2.cultura.gov.br/site/2003/01/02/discurso-do-ministro-gilberto-gil-na-solenidade-de-transmissao-do-cargo/, acesso em 13/10/2013. 8

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Da ideia da centralidade da cultura na vida política e social, Gilberto Gil e Juca Ferreira estabeleceram um novo discurso, fundador de uma poética afirmativa sobre o novo papel e a importância da cultura no país e este projeto disputa com outras visões a orientação da política até então. Juca Ferreira, em 2008, declara: Refundamos o Ministério da Cultura como aliado da sociedade criando condições para que a Cultura se faça, se recrie e se apresente no centro da agenda do Poder com novos marcos regulatórios e ações que eliminem os guetos, reúnam aldeias e praças céu e chão, gramados e carpetes, água e terra, rompam paredes para viver em redes (FERREIRA in FONTELES: 2010, p.17, grifo meu). A nova gestão do MinC, ao propor o conceito antropológico de cultura e se posicionar criticamente sobre os mecanismos de financiamento e se propor a modificá-los, ao contemplar novos territórios e novas subjetividades, ao nomear e reconhecer a diversidade, ao dialogar com as novas tecnologias, ao reconhecer o direito ao acesso à cultura e propor um novo olhar sobre o direito autoral, inaugurou uma nova política cultural para o país. O MinC a partir das proposições dos Ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira busca desenvolver programas que enfatizem a democracia, o direito e a diversidade cultural. A democracia cultural se opõe à ideia de democratização cultural, entendida como um processo de popularização do acesso às artes eruditas. A democracia cultural “não discute somente a questão da ampliação de público, mas principalmente quem controla os mecanismos de produção cultural” (COELHO:2012, p.163). Já os direitos culturais são um desdobramento dos Direitos Humanos, que implicam, “basicamente, no direito à fruição da vida e produtos culturais, de usufruir dos benefícios do progresso da ciência e da técnica e o direito autoral” (op.cit: p.172). A diversidade é um valor estrutural para o MinC: “a diversidade refletida em política pública republicana com a estética do caldeirão brasileiro em permanente fervura de trocas e reinvenções” (FERREIRA in FONTELES: 2010, p.17, grifo meu). A democracia, o direito e a diversidade são as apostas do MinC para criar uma alternativa à política cultural exercida nas gestões de Fernando Henrique Cardoso e seus antecessores9, como pode-se perceber na declaração de Juca Ferreira: Deslocando o MinC da posição marginal a que foi relegado em governos anteriores e ao colocar em prática a robusta – e necessariamente transversal - ação de inclusão social ora em curso, o Governo Lula optou por reconhecer a centralidade da cultura no impulso de um desenvolvimento sustentável e, em especial, a importância da cultura. Ao tomar posse, o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, anunciou que haveria – como, de fato, houve – genuína transformação e ampliação do Sobre a gestão da política cultura no governo FHC e antecessores sugiro a leitura de RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. Salvador: EdUFBA, 2007.

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conceito de cultura nas ações de fomento e reconhecimento do Estado brasileiro. O intenso processo de redemocratização do País exigiu o abandono de histórica visão elitizada e concentradora. Visão que desembocava numa política cultural voltada para manifestações consagradas - atividades de pequena parcela da população. Ao formular programas inéditos, como o Cultura Viva, passou-se
a incluir a diversidade cultural brasileira
no escopo das ações de fomento,
incluindo o complexo índio e o
negro-mestiço e envolvendo todas
as linguagens e formações (FERREIRA in: BRASIL:2004,p.10-11). A abordagem do ministério nessas questões buscou fortalecer as políticas culturais em três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica. Inicialmente, a cultura em sua dimensão simbólica. A arte e a cultura intimamente conectadas com a interpretação que fazemos do mundo. (...) Depois, a dimensão cidadã. A cultura como fator de inserção social, como um direito fundamental, como uma necessidade humana básica, essencial, tão importante quanto a alimentação, a moradia, a educação e a saúde. (…) E, por fim, a cultura como matéria prima de um dos processos mais dinâmicos da economia, sua dimensão econômica, algo em franca expansão em todo o planeta e já, hoje em dia, responsável por uma parcela considerável de nosso PIB, superando em muito vários setores tradicionalmente dinâmicos do mundo dos negócios (FERREIRA in BARROSO: 2010,p. 265-278; BRASIL:2010b). No campo formal, prolifera uma política de eventos e de editais que buscam dar recursos financeiros para iniciativas populares e equipamentos culturais comunitários. Neste jogo entram em cena os textos-manifestos que são reproduzidos literalmente em vários documentos oficiais10 , suas ideias-forças e sua poética são repetidas e reforçadas nos eventos, citadas nas falas de outros gestores, reproduzidas nas falas dos beneficiários das políticas, aparecem em estudos e pesquisas. Essa matriz de sentidos vai sendo incorporada e repetida de várias formas diferentes, estabilizando-se e inscrevendo-se na configuração típica dos discursos pedagógicos que é a circularidade: “discursos que se auto-alimentam, repetindo o mesmo” (ORLANDI:1996, p.15). A repetição de um enunciado discursivo e a regularização de seu sentido passa a constituir sua memória discursiva.

Por exemplo, o Discurso de Posse do Ministro Gil está no site do MinC, está no Cadernos do Do-in Antropológico (BRASIL:2003), no Cultura Viva... (BRASIL:2005a), no Programa Cultura Viva...(BRASIL:2010a), na Teia (BRASIL:2006b), no Almanaque Cultura Viva (BRASIL:2010b), no Cultura pela Palavra (ALMEIDA et al:2013). Outro exemplo, o texto Desescondendo o Brasil Profundo de Célio Turino aparece no Cultura Viva... (BRASIL:2005a), no Programa Cultura Viva... (BRASIL:2010a), no Almanaque Cultura Viva (BRASIL:2010b); o Teias - cada ponto cria um centro de TT Catalão está no Almanaque Cultura Viva (BRASIL:2010b) e no Nem é erudito, nem é popular (FONTELES:2010). Essa repetição reforça a memória discursiva do MinC. 10

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Esse modo particular de falar a política pode ser caracterizado, nos termos de Laclau (2005), como um discurso político populista que se inscreve como uma narrativa que contém “uma lógica de intervenção política que condensa significados, para reduzir a complexidade da esfera pública” (LACLAU:2005, p.27). Convém esclarecer que ao falar de populismo, me afasto do imaginário social e do senso comum que o marca como um qualificador da política necessariamente de cunho negativo e pejorativo, identificando os políticos populistas como demagógicos e superficiais. Ao contrário, entendo o populismo como uma prática política com uma proposta de reconfiguração da esfera pública que se contrapõe a um modelo até então hegemônico e que abre caminho para que outra hegemonia possa se instalar. Ele seria característico de uma política de entremeio, que cria condições para que um projeto supere outro. O discurso político populista pode ser entendido como uma estratégia de o governo comunicar seu esforço em superar um projeto desgastado - mas com o qual forçosamente ainda dialoga -, e criar as condições para um novo projeto - ainda não totalmente estruturado. Este discurso populista sinaliza políticas híbridas - ideias inovadoras mas que concretizam-se através de instrumentos formais e convencionais e muitas vezes há conflito com a gestão e a legislação. E por isso a ênfase nas imagens, na retórica e nos processos metonímicos. Para Laclau (2005), a opacidade do discurso populista resulta da indeterminação da própria realidade social, isto é, em um momento de transição há indeterminação do modelo mais adequado e isso se reflete e em muitos casos define os sentidos do discurso populista. O populismo, no discurso do MinC, pode ser entendido como o início de uma proposta de reconstrução mais ou menos radical de uma nova ordem política, uma vez que a anterior se encontra saturada (LACLAU:2005), que tem nos setores periféricos e em suas demandas, a principal referência para a ação cultural. O político populista, desta forma, representa uma vontade popular. Os até então “sem Estado” (TURINO in BRASIL:2005a, p.15), a partir dai serão o público prioritário das políticas culturais e serão considerados também produtores de cultura e esse reconhecimento será fundamental para a penetração da política. A proposta de reconstrução que caracteriza o discurso do MinC se torna maior do que o ministério em si porque agrega no plano simbólico e imaginário todas as demandas reprimidas historicamente no campo da cultura popular e periférica. O MinC se torna um símbolo ou, nos termos de Laclau, um significante vazio, que irá ser preenchido por um conjunto de demandas sociais que representa a totalidade das necessidades não atendidas destes grupos até então invisibilizados, subalternos e irrelevantes para as políticas culturais. O MinC se destaca na Esplanada e tem adesão imediata porque se torna o símbolo comum - reúne Estado e sociedade em torno de um mesmo projeto. A base do populismo é a mobilização do espaço social em torno de um mesmo significante. O discurso populista representa o reconhecimento e a legitimação destas demandas por

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parte do Estado e isso é fundamental para ampliar e reconhecer identidades e credibilizar as experiências culturais forjadas nestes espaços. O reconhecimento é poder - empoderamento. O Estado exerce seu poder simbólico (BOURDIER:2002) de reconhecer e nomear os novos interlocutores da política cultural. Laclau (2005) busca na linguística saussuriana a ideia do signo - que é composto pelo significante e o significado -, para dizer que a função de símbolo é um significante vazio que, no caso do MinC, como já referi acima, será preenchido pelo conjunto de demandas reprimidas que representam todas necessidades não atendidas destes grupos até então à margem da política. A função de símbolo cria um imaginário de parceria entre Estado e sociedade e elide a assimetriz que há entre eles. Assim, articulações são formadas entre gestores e beneficiários da política sem que se faça uma análise prévia dos paradoxos que essa aliança pode acarretar: influência, cooptação, vinculação e dependência econômica dos recursos estatais, pautas imbricadas, opacidades dos lugares sociais, redes híbridas. A função de símbolo credibiliza essa experiência para além de todos os problemas de gestão enfrentados e articula identidades coletivas em torno de um projeto político para disputar, ao menos discursivamente, uma nova hegemonia. A função de símbolo e de significante vazio permite que cada um reconheça aspectos novidadeiros e originais na gestão cultural e estes aspectos, exceção aos mais cristalizados no discurso institucional que é repetido ad infinitum, raramente coincidem: cada um vê na política o que quer, cada um preenche o significante vazio com os sentidos que melhor representam sua posição-sujeito, seus valores e suas demandas no campo cultural. Assim o discurso do MinC estrutura-se para enfatizar sua função de símbolo, não só pelas imagens que constrói e reproduz, mas também em função da posição-enunciativa na qual se fala a política: a liderança carismática. Para Laclau (2005), o líder é o sujeito que domina a retórica e que construi uma posição enunciativa na qual tem o direito de ocupar este lugar de liderança, nos termos de um representante legítimo de uma investidura ontológica. O líder fala sobre e fala com, atua como um mediador entre o Estado e a sociedade. No populismo há a crença na necessidade de uma liderança. Essa crença cria a ilusão de que o mérito da política advém da liderança e não das suas condições de produção, que são apagadas. Da mesma forma, quando a liderança se ausenta se cria uma nova ficção, a de que essa liderança é a única possibilidade da política properar. Ou seja, o populismo cria a crença que a política pública não é pública, mas vincula-se a alguém ou um grupo e, na ausência desse grupo ou liderança, ela não tem condições de funcionar. Outra característica do discurso político populista é o que Courtine (2003) chama de hierarquização da memória - a estratégia discursiva que define o que deve ser lembrado. No caso, o que pode e deve ser lembrado é o período entre 2004 e 2010, o período de consolidação do discurso fundador e da memória discursiva. A memória discursiva mostra como evidente e na-

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turalizado um esforço brutal de reiteração: as retomadas e paráfrases produzem memória. Essa memória retorna com efeito de pré-construído, de já-dito, de implícitos, se atualiza nos novos discursos produzidos. A narrativa do poder, segundo Corten, determina “o fechamento do espaço político” (CORTEN in INDURSKY et al:1999, p.40). Entendo que este fechamento implique em monologia, embora crie o efeito de polifonia: todos falam o mesmo. Há muitas vozes, mas todas em uma mesma direção de sentidos. O trabalho de lembrar o acontecimento é feito pelo Estado que (re)produz os textos e as imagens que irão circular no conjunto da sociedade: o sujeito lembra o que foi dito do acontecimento e não o acontecimento em si. Criam-se, nas palavras de Courtine, “rituais discursivos da continuidade, que produzem um corte temporal ligando o presente da enunciação ao passado - e também ao futuro - discursivo, em uma anulação imaginária do processo histórico” (in INDURSKY et al:1999, p.20). O ritual discursivo aponta para uma memória já interpretada, recorte do real, com os sentidos já dados. Os enunciados que compõem a memória discursiva definem “os limites para os outros enunciados” (CORTEN in INDURSKY et al:1999, p.43). Por este motivo entendo que a memória institucional se entrecruza com a memória social na memória discursiva: o Estado institui o ritual discursivo de continuidade que mais o favorece e escolhe e legitima o que deve ser lembrado. O MinC, ao fortalecer os grupos culturais em seus discursos, igualmente se fortalece porque mostra como a política pública foi bem sucedida, e os grupos culturais - ao repetirem o discurso institucional - igualmente se fortalecem porque ocupam espaços de interlocução antes a eles vedados. Com este duplo fortalecimento, apaga-se o trabalho de tornar evidente alguns acontecimentos - e não outros - e naturaliza-se uma versão da política, que passa a ser história. Governo e sociedade aparentemente ocupam os mesmos espaços de argumentação, ocultando as diferentes posições sociais ocupadas por cada grupo: eles são parceiros11. Da mesma forma não se diz, nem governo nem sociedade, que ambos querem se manter no poder, continuar ocupando os espaços conquistados. A questão do poder é o implícito com o qual todos dialogam. No plano discursivo, o projeto político do MinC procurou quebrar a lógica da humilhação e as relações extremamente desiguais que caracterizam a burocracia do Estado brasileiro. Penso que o Estado tradicional naturalizou uma pedagogia da desigualdade caracterizada nos serviços que não funcionam, nas filas e longa espera, na redundância dos documentos desnecessários, na ausência de memória institucional, no burocrata que não está e quando está não serve ao público, mas o submete a um ritual repleto de falhas. O projeto político que estava no poder no período estudado deliberadamente buscou romper com a pedagogia da desigualdade e criar Aqui vale lembrar a definição de Carl Schmitt do político: “a distinção específica do político, à qual se podem reduzir os atos e as motivações políticas, é a discriminação do amigo e do inimigo” (SCHMITT apud CORTEN in INDURSKY:1999,p.39).

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mecanismos de inclusão: a burocracia não mais como dádiva ou como favor, mas como direito. Não por acaso esse projeto retorna em 2015 e retoma, em novas condições de produção, seu papel de formulador das políticas culturais no país.

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UMA AVALIAÇÃO DO PROGRAMA VALE CULTURA Victor Hugo Barreto de Sena Sampaio1 RESUMO: O Programa Vale Cultura foi criado pelo Governo Federal brasileiro em dezembro de 2012. O intuito da política é promover o acesso à cultura aos trabalhadores com baixa ou média renda no Brasil. O presente estudo foi feito com base no construto teórico da avaliação de políticas públicas. Para a pesquisa foram utilizadas as seguintes variáveis: concentração de trabalhadores beneficiários por região; capilaridade das empresas beneficiárias e concentração das empresas em capitais. A principal conclusão da pesquisa foi à confirmação da hipótese de que a promoção do acesso à cultura gerada pelo Programa Vale Cultura ocorre de maneira desigual entre as diversas Unidades da Federação. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Públicas, Vale Cultura, Política de Cultura, Acesso à Cultura

1. INTRODUÇÃO O campo de políticas públicas é bastante interdisciplinar. Áreas como economia, ciência política, antropologia, sociologia, psicologia, direito e outras diversas são importantes fontes de conhecimento para o estudo das políticas públicas. No que diz respeito à ciência política é possível constatar a necessidade da produção de estudos sobre programas e políticas já implementados para então melhorar a qualidade dos serviços públicos prestados no país. Ao longo dos últimos 15 anos o Brasil demonstrou uma evolução no quadro de estudos sobre políticas de setores como transferência de renda, educação e saúde. No entanto, é notável que algumas áreas recebem menor atenção da academia. Temos como exemplo os temas que tratam de meio ambiente, esporte e cultura. Portanto, a partir da ideia de que o campo de políticas culturais é bastante relevante para o desenvolvimento social do Brasil, esse trabalho visa reduzir a lacuna existente entre as políticas de cultura e a produção científica da área. O objeto de estudo dessa pesquisa é o Programa Vale Cultura, política vinculada ao Ministério da Cultura. Utilizou-se para tal o construto teórico da avaliação de políticas públicas a

Mestrando em Educação pela Universidade de Brasília. Graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (2015). E-mail – [email protected]

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fim de testar a hipótese de que a promoção do acesso à cultura proporcionada pelo Programa Vale cultura ocorre de maneira desigual entre todas as Unidades da Federação. É notável que o Brasil apresente uma série de desigualdades entre suas Unidades da Federação. As regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste são menos desenvolvidas economicamente que Sul e Sudeste, e isso se reflete na quantidade de empresas que estados e municípios têm em seu território. A partir dessa ideia foi elaborada a hipótese de que a execução do Programa Vale Cultura também aconteceria de maneira desigual. Conforme explicita o Plano Plurianual (PPA 2012-2015) 2, a política cultural consiste em um fator de inclusão social de extrema relevância para a redução de desigualdades sociais. O documento ainda atesta o princípio constitucional de que a cultura é atribuição de todos os níveis de governo. Ademais, o PPA 2012-2015 cita um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2009, que confirmou a existência de déficit no acesso de cidadãos brasileiros de baixa ou média renda a determinados tipos de atividades culturais, como teatro, cinema, literatura e outros. A partir desse contexto, a formulação do Programa Vale Cultura foi uma resposta institucional à demanda nacional por cultura. 2. REFERENCIAL TEÓRICO Para compreendermos de maneira mais completa a proposta desse artigo é necessária à diferenciação conceitual entre análise e avaliação de políticas. A análise de políticas públicas é composta por uma interpretação do desenho institucional e das características constitutivas de cada programa (ARRETCHE, 1998). Essa perspectiva evidencia o foco das análises de políticas no aparato institucional e também em características regimentais de cada programa. Em contrapartida, “por avaliação política, entende-se ‘a análise e elucidação do critério ou critérios que fundamentam determinada política: as razões que a tornam preferível a qualquer outra’” (ARRETCHE apud Figueiredo & Figueiredo, 1986, p. 2). Ainda, a abordagem teórica sobre avaliação de políticas públicas leva em consideração o caráter político da adoção de programas. “Por exemplo, ainda que se possa esperar que a cobrança de consultas médicas tenda a excluir a população mais pobre do acesso a serviços médicos com base no exame do desenho institucional de uma dada política de saúde, apenas um estudo de avaliação poderá afirmar com relativa segurança quais parcelas da população foram efetivamente excluídas e qual o impacto desta medida nas condições de saúde da população” (ARRETCHE, 1998, p. 3) BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Plurianual. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/PPA/2012/mp_004_dimensao_tatico_sociais.pdf - Acesso em 29/04/2015.

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Nesse sentido, podemos compreender que análises têm foco no desenho institucional da política e avaliações buscam estabelecer relação de causalidade entre uma ação e um resultado. Avaliações buscam interpretar o outcome da implementação de um programa. Apesar de possuírem diferentes conotações teóricas, “análises” e “avaliações” de políticas podem ser feitas de maneira conjunta, de modo a complementar as pesquisas feitas sobre políticas públicas. 3. DESCRIÇÃO DO PROGRAMA VALE CULTURA O Programa Vale Cultura consiste em uma política pública que visa promover o acesso à cultura, prioritariamente aos trabalhadores de baixa ou média renda. O Vale Cultura é um cartão com valor de 50 reais mensais, que podem ser acumulados, e devem ser gastos pelo trabalhador com as seguintes atividades: ingressos de teatro; cinema; museus; espetáculos; shows; circo; CDs; DVDs; livros; revistas; jornais; mensalidade em cursos de fotografia, teatro, música e outros (BRASIL, 2015) 3. É valido ressaltar que apenas trabalhadores com vínculo empregatício formal podem se tornar beneficiários do programa. Sendo assim, a formalidade do ponto de vista trabalhista é um dos pré-requisitos para adesão a política. Um aspecto importante em relação ao Programa Vale Cultura diz respeito à adesão a política. Quem decide sobre adesão ao programa são os empregadores e não os empregados. Ademais, caso a empresa seja adepta do Programa de Cultura do Trabalhador e o empregado não tenha interesse em usufruir do cartão, este não fará parte do programa. Outro aspecto a despeito da adesão à política é o fato de qualquer empresa, que possua CNPJ, poder aderir ao programa Vale Cultura junto às empresas operadoras. Em outras palavras, padarias, farmácias e outros estabelecimentos de pequeno porte estão aptas a aderir à política, bem como, empresas de grande porte. Em resumo, o funcionamento do programa está dividido em quatro grupos: empresas beneficiárias, que fornecem o benefício do Vale Cultura aos seus empregados; empresas recebedoras, que aceitam o cartão do vale cultura como forma de pagamento para seus serviços; empresas operadoras, que vendem o cartão do vale cultura para empresas beneficiárias; e, por fim, o trabalhador, que usufrui do cartão para acessar serviços culturais. Cabe ressaltar que empresas beneficiárias e operadoras recebem isenções fiscais4 para desempenhar as atividades de disponibilizar e comercializar o Vale Cultura.

Ministério da Cultura. Vale Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/valecultura - Acesso em 15/05/2015. 4 Caso as empresas optem por aderir ao programa, passam a ter direito de deduzir até 1% de seu Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com base em seu lucro real. Essa dedução ocorre em consonância com os gastos para garantir o benefício a seus trabalhadores e não pode ultrapassar o teto de 1% do IRPJ. 3

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4. METODOLOGIA A hipótese central desse trabalho é de que a garantia do acesso à cultura proporcionada pelo Programa Vale Cultura ocorre de maneira desigual entre as Unidades da Federação brasileiras. A pesquisa foi conduzida com base em um estudo descritivo acerca do Programa Vale Cultura. No que tange à abordagem quantitativa, foi elaborado um banco de dados com a localização das empresas beneficiárias do Programa Vale Cultura para então criar estatísticas descritivas sobre a execução do Programa de Cultura do Trabalhador. No sítio na internet do Programa Vale Cultura são disponibilizados os dados referentes a nome da empresa beneficiária, Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e com qual empresa operadora aquela comercializa5. A partir de uma pesquisa pelo CNPJ de cada empresa foi possível então observar o município onde essa se localiza e a quantidade de trabalhadores usuários do cartão. Dessa forma, pode-se mensurar a capilaridade da política, ou seja, quais estados e municípios apresentam empresas que aderem ao Programa de Cultura do Trabalhador. As principais fontes para a coleta de dados institucionais da política foram as seguintes: Lei de acesso à informação (Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão); portal do Ministério da Cultura e portal do Vale Cultura6. 5. AVALIAÇÃO DO PROGRAMA VALE CULTURA A Secretaria de Fomento e Incentivo a Cultura, vinculada ao Ministério da Cultura, informou por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) o seguinte quadro relativo ao programa Vale Cultura:

5

.

Ministério da Cultura. Vale Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/valecultura - Acesso em

15/05/2015

6 Para o levantamento sobre a localização das empresas beneficiárias do programa foram utilizados os seguintes sites: http://compras.dados.gov.br/docs/home.html - - acesso em 15/05/2015 http://empresasdobrasil.com - acesso em 15/05/2015 https://www.infoplex.com.br - acesso em 15/05/2015 www.cnpjbrasil.com - acesso em 15/05/2015 www.foneempresas.com - acesso em 15/05/2015

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Tabela 1: Elaboração: Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura. Ministério da Cultura. (2015)

Distribuição de Trabalhadores Beneficiários por Região Região

Trabalhadores

%

Sudeste Sul Nordeste Norte Centro-Oeste Região não informada TOTAL

213.495 52.459 42.804 24.519 22.326 14.713 370.316

58% 14% 12% 7% 6% 3% 100%

Do total de trabalhadores que usufruem do Vale Cultura 72% estão concentrados na região Sul e Sudeste do Brasil. Essa porcentagem corresponde a um total de aproximadamente 266.628 trabalhadores que estão situados nessas regiões. Esse dado demonstra a desigualdade com que trabalhadores de diferentes regiões usufruem do Programa Vale Cultura. Por se tratar de uma política federal é importante que ela seja distribuída de maneira similar entre todas as Unidades da Federação. Para mensurar a distribuição do programa é necessário analisar o perfil demográfico de cada estado e município. Ademais, é importante salientar que grande parte da população do Brasil está concentrada na região Sudeste, fazendo com que a demanda por acesso a cultura nessa região seja maior. No entanto, a concentração populacional isoladamente não explica de modo completo a diferença no percentual de trabalhadores que usufruem do benefício em cada região. Ainda por meio do SIC foi realizada uma solicitação junto ao Ministério da Cultura para apurar quantos trabalhadores usufruem do Vale Cultura e recebem menos de cinco salários mínimos mensais. O intuito da solicitação foi descobrir quantos trabalhadores de baixa ou média renda (público alvo do programa) recebem o benefício da política. A resposta dada pela Coordenação-Geral de Desenvolvimento e Controle e Avaliação, que integra a estrutura do Ministério da Cultura, foi de que em março de 2015 o público alvo da política correspondia a 68,62% dos trabalhadores que eram contemplados pelo programa. A despeito de a maior parte dos empregados estarem no estrato de renda desejado, existem diversos desafios para melhorar os resultados da política. Alguns desses desafios são aumentar a quantidade de empresas beneficiárias nas diversas regiões, elevar o número de trabalhadores que têm acesso ao cartão e difundir a política para empresas de pequeno porte em vários municípios.

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O quadro disponibilizado pelo Ministério da Cultura, relativo aos trabalhadores beneficiários, demonstra um panorama amplo do programa, contudo, não reflete as diferenças de implementação entre estados e municípios de uma mesma região. Sendo assim, é importante desagregar os dados a fim de verificar como se da à execução política em municípios e estados de uma mesma região. Esse esforço visa traçar um panorama mais detalhado sobre a realidade do programa em cada Unidade da Federação, como será visto no próximo tópico. 6. CAPILARIDADE DO VALE CULTURA Conceitualmente, do ponto de vista físico capilaridade é à propriedade de fluidos subirem e descerem entre tubos para molhar a superfície7. Transpondo essa definição para à ciência política, pode-se entender capilaridade como a capacidade de uma prática política ou política pública se disseminar ao longo de diferentes territórios. Sendo a capilaridade a capacidade de disseminação de uma prática em um sistema político, mensurar como a propriedade (política) chega às superfícies (estados e municípios) pode ser interpretado como um método para se analisar a abrangência de políticas públicas implementadas. É importante ressaltar que a capilaridade não pretende mensurar “a quantidade de fluidos” que chega as “superfícies”. Em outras palavras, a pesquisa não visa mensurar quantos trabalhadores são contemplados por cada empresa, mas sim observar a existência de trabalhadores e empresas contemplados pelo programa em diferentes níveis de governo.

7 Michaelis. Definição de capilaridade. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/capilaridade%20_923247.html – Acesso em 15/05/2015.

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Tabela 2: Elaboração Própria*.

Capilaridade do Programa Vale Cultura Estados

Municípios por estado

Municípios com empresas adeptas

% de adesão

PI AM TO PB MA RN RR AC MT BA SE PA GO AP AL CE MG PR RO MS RS SC PE ES SP RJ BRASIL

224 62 139 223 217 167 15 22 141 417 75 144 246 16 102 184 853 399 52 79 497 295 185 78 645 92 5569

11 4 10 18 19 17 2 3 22 72 13 25 43 3 20 37 184 89 12 19 131 82 54 23 234 52 1199

4,91% 6,45% 7,19% 8,07% 8,75% 10,18% 13,33% 13,63% 15,60% 17,26% 17,33% 17,36% 17,47% 18,75% 19,60% 20,10% 21,57% 22,31% 23,08% 24,05% 26,36% 27,80% 29,19% 29,48% 36,28% 56,52% 21,53%

Fonte: Vale Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/valecultura - Acesso em 15/05/2015.

*

O Distrito Federal (DF) possui empresas adeptas ao Vale Cultura, porém elas não foram computadas nesse quadro.

Do ponto de vista nacional 1199 municípios possuem empresas beneficiárias adeptas ao Vale Cultura. Pelo fato do Brasil se tratar de um país de extensões continentais, é possível

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atestar que o Programa de Cultura do Trabalhador tem grande relevância no contexto nacional enquanto política federal. É possível verificar que o programa tem abrangência nacional na medida em que está presente em todas as Unidades da Federação. Contudo, a tabela sobre a capilaridade da política demonstra a disparidade na adoção do programa em diferentes estados. Piauí, Amazonas, Tocantins, Paraíba e Maranhão, respectivamente, têm os piores índices de adesão à política, sendo que menos de 10% de seus municípios contam com empresas adeptas ao programa. Em contrapartida, os estados que possuem melhores índices de capilaridade para o programa são Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Pernambuco e Santa Catarina. O fato de a adesão à política ser uma escolha das empresas tem bastante relevância. Caso a burocracia ou os decisores públicos tenham o interesse em ampliar a quantidade de trabalhadores beneficiários, principalmente em estados com menor adesão, devem fazer um esforço para atrair o interesse de empresas beneficiárias nesses estados. Do ponto de vista absoluto, os estados que têm mais municípios com empresas adeptas a politica são: São Paulo (234), Minas Gerais (184), Rio Grande do Sul (131), Paraná (89) e Santa Catarina (82). Outro aspecto relevante é a presença de Pernambuco nos melhores índices de capilaridade. Enquanto os estados da Paraíba e do Maranhão estão posicionados entre os últimos no que diz respeito a porcentagem de adesão, a colocação de Pernambuco entre os cinco melhores resultados atesta uma desigualdade na distribuição da política na própria região nordeste. Um forte indício da necessidade de aumentar a difusão do Programa Vale Cultura é o fato de que apenas um estado (Rio de Janeiro) possui mais de 50% dos municípios com empresas adeptas ao programa. Essas comparações corroboram a ideia de que, mesmo que uma política seja federal, sua implementação varia de acordo com cada estado e município, o que interfere nos efeitos e impactos da política. Compreendendo a importância da distribuição das empresas em cada Estado é importante destrinchar os dados da capilaridade em outra perspectiva, que é a da concentração das empresas em capitais. 7. CONCENTRAÇÃO DAS EMPRESAS BENEFICIÁRIAS O perfil de focalização das empresas é o seguinte:

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Tabela 3: Elaboração Própria**.

Concentração de Empresas Beneficiárias Estados

Capitais

SC ES RS MG PR TO PA SP BA PE GO PB MA MT RO AL RJ SE RN CE PI MS AC RR AP AM DF* BRASIL

Florianópolis Vitória Porto Alegre Belo Horizonte Curitiba Palmas Belém São Paulo Salvador Recife Goiânia João Pessoa São Luís Cuiabá Porto Velho Maceió Rio de Janeiro Aracaju Natal Fortaleza Teresina Campo Grande Rio Branco Boa Vista Macapá Manaus Brasília Nacional

Total de Empresas na % de Beneficiárias empresas no capital na capital estado 321 139 529 885 537 23 105 1978 290 282 204 55 86 112 32 73 691 55 89 207 37 95 12 7 22 45 276 7187

52 38 160 297 191 9 44 875 131 135 103 28 44 62 18 42 407 35 57 135 25 65 10 6 19 42 276 3306

16,20% 27,34% 30,25% 33,56% 35,57% 39,13% 41,90% 44,24% 45,17% 47,87% 50,49% 50,91% 51,16% 55,36% 56,25% 57,53% 58,90% 63,64% 64,04% 65,22% 67,57% 68,42% 83,33% 85,71% 86,36% 93,33% 100,00% 46,00%

Fonte: Vale Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/valecultura - Acesso em 15/05/2015.

O total de empresas contempladas é de 7259, entretanto, 72 não foram encontradas. Em virtude disso o total passa a ser de 7187. O Distrito Federal é analisado como Município, por isso sua taxa de concentração é de 100%. **

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Levando em consideração todos os estados, suas capitais e o Distrito Federal, o Brasil tem em média 46% das empresas beneficiárias do Vale Cultura concentradas em capitais. Esse valor demonstra que, na perspectiva nacional, quase metade das empresas beneficiárias estão situadas em grandes centros urbanos. Isso também significa que do ponto de vista nacional os trabalhadores que são empregados em capitais têm maior probabilidade de serem contemplados pelo programa. Os estados que têm menor concentração das empresas nas capitais são: Santa Catarina; Espírito Santo; Rio Grande do Sul; Minas Gerais e Paraná. A menor concentração das empresas pode ser interpretada de maneira positiva já que pelo fato das empresas beneficiárias não estarem focalizadas nas capitais os trabalhadores de vários municípios tem maior probabilidade de serem contemplados pela política. Os estados que têm maior concentração de empresas nas capitais são: Amazonas; Amapá; Roraima; Acre e Mato Grosso do Sul. A região Norte concentra grande parte das empresas beneficiárias em suas capitais. Esse ponto pode ser interpretado de maneira negativa na medida em que caso um trabalhador viva em qualquer uma dessas unidades da federação e não trabalhe nas capitais, sua probabilidade de ser contemplado pela política é bastante reduzida. No entanto, contrariando a tendência de concentração das empresas beneficiárias da região Norte, o estado de Tocantins é o sexto estado que menos concentra as empresas em sua capital. 8. CONCLUSÕES A avaliação do programa Vale Cultura, proposta nesse trabalho, teve como intuitos fomentar estudos sobre políticas públicas culturais no Brasil e propor alterações que possam implicar em melhorias na execução de tais políticas. Aprimeira conclusão é de que a política tem abrangência nacional, já que está presente em todos os estados. Entretanto, é possível constatar uma concentração de empresas nas capitais de boa parte dos estados. Ademais, o fato de o Programa de Cultura do Trabalhador se tratar de uma política federal leva a compreensão inicial de que a promoção do acesso à cultura gerada pelo programa se daria de maneira equânime entre as Unidades da Federação, contudo, os dados da política confirmam a hipótese de que a promoção do acesso à cultura ocorre de maneira desigual entre as diversas Unidades da Federação. Assim como explicitado na descrição da política, o fato de qualquer estabelecimento (padarias, farmácias, mercados e etc.) poder aderir ao programa Vale Cultura faz com que pequenas empresas, inclusive em pequenos municípios, possam garantir esse benefício a seus trabalhadores. Todavia, apesar disso, é possível observar a concentração de empresas adeptas nas capitais dos estados.

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No entanto, mesmo com a concentração dos efeitos do Programa Vale Cultura, a tentativa de promover uma política que vise atenuar desigualdades no acesso à cultura é bastante positiva para o desenvolvimento social do Brasil. Sendo assim, é interessante apontar algumas alternativas para reduzir as desigualdades na promoção do acesso do Vale Cultura, bem como levantar questionamentos que possam aumentar a quantidade total de empresas e trabalhadores beneficiados pela política. 9. CONSIDERAÇÕES PARA ALTERAÇÕES NO PROGRAMA Os dados de implementação da política evidenciam que apenas 1199 municípios (21,5%) possuem empresas beneficiárias que fornecem o cartão Vale Cultura a seus trabalhadores. Tendo em vista que o Brasil tem 5570 municípios, é possível atestar que o Programa Vale Cultura ainda deve crescer bastante no que diz respeito a sua capilaridade, caso queira ampliar seus efeitos e impactos positivos8. Para enfrentar esse desafio é importante que o Governo Federal faça a divulgação do Programa Vale Cultura junto às empresas em diversos estados e municípios, principalmente naqueles em que há um menor contingente de trabalhadores contemplados. Outra medida importante é sistematizar e divulgar a lista de empresas recebedoras (que aceitam o cartão do Vale Cultura como forma de pagamento). Isto é importante porque de nada adianta que o Governo Federal divulgue o Programa Vale Cultura para empresas em pequenos municípios se as empresas operadoras não habilitarem locais para receber o Vale como pagamento. Cabe ressaltar que a divulgação do Programa Vale Cultura não deve ficar somente a critério do Ministério da Cultura, afinal, as empresas operadoras, que comercializam os cartões, obtêm mais lucros caso mais empresas e trabalhadores usufruam do programa. Sendo assim, também são responsáveis por divulgar o Programa de Cultura do Trabalhador. Uma medida que poderia melhorar os resultados do programa seria o estabelecimento de um acordo de cooperação entre as Secretarias Estaduais e Municipais de Cultura e o Ministério da Cultura. Por serem mais próximas aos beneficiários, tanto empresas quanto trabalhadores, é possível que as Secretarias tenham mais informações acerca das demandas da política em suas respectivas localidades. Além desse fato, o acordo pode promover coordenação intergovernamental entre os três níveis de governo fortalecendo o ideal de federalismo cooperativo. Nesse sentido, a discussão dos efeitos e do programa Vale Cultura dentro de arenas institucionais como, conselhos, conferências e fóruns de cultura, pode aumentar a participação social na gestão da política de cultura e promover melhorias na coordenação intergovernamental (entre governos) e também na coordenação extragovernamental (entre governo e a sociedade civil). 8

A tabela n° 2 demonstra quais estados precisam de maior disseminação da política.

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Em síntese, as medidas propostas nesse trabalho para melhorar os resultados do Programa Vale Cultura são: aumentar a divulgação da política, sistematizar e divulgar a lista de empresas recebedoras habilitadas e promover um acordo de cooperação técnica entre os três níveis de governo.

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DIAGNÓSTICO RÁPIDO DA SITUAÇÃO DA CULTURA NO MUNICÍPIO DE CARACARAÍ – RR1. Vilso Junior Santi2 Leila Adriana Baptaglin3 Francilene Cardoso da Silva4 RESUMO: O presente trabalho apresenta os resultados do Diagnóstico Rápido da situação da Cultura no município de Caracaraí, no Estado de Roraima. A pesquisa objetivou identificar a situação da cultura local (manifestações, equipamentos, legislação etc.); Mapear as suas fragilidades, desafios e obstáculos a serem superados para o seu desenvolvimento; e também, indicar as suas potencialidades. A metodologia utilizada em sua construção contou com o levantamento de dados socioeconômicos, sociais e culturais do Município; inventário das manifestações culturais; análise documental; entrevistas; e também análise e interpretação dos dados coletados. Os resultados apontam que o município apresenta um grande potencial na área cultural. Porém, a realidade encontrada aponta para uma série de dificuldades pela falta de incentivos e apoio à cultura por parte de empresas privadas. O único incentivo ao setor cultural vem do apoio dado pelo poder público municipal e estadual, os quais estimulam ações ainda consideradas pontuais. PALAVRAS-CHAVE: Gestão Cultural; Diagnóstico Rápido; Caracaraí, Roraima.

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho teve o objetivo de apresentar o Diagnóstico Rápido da situação da Cultura no município de Caracaraí, no Estado de Roraima. Nele serão exibidos alguns aspectos sobre a realidade histórica, social e econômica do município com a finalidade de mostrar de maneira objetiva e concisa a estruturação e a disseminação da cultura ao longo da história, evidenciando seus potenciais e suas fragilidades. Em atendimento a um dos pré-requisitos exigentes para conclusão do curso de Extensão em Gestão Cultural, realizado pela UFRR, foi elaborado este trabalho com um breve diagnóstico situacional da realidade cultural do município de Caracaraí – RR. Trabalho desenvolvido com base no relatório apresentado como produto final para o Curso de Extensão em Gestão Cultural – UFRR. 2 Universidade Federal de Roraima – Email: [email protected] 3 Universidade Federal de Roraima – Email: [email protected] 4 Departamento de Cultura da Universidade Federal de Roraima – Email: [email protected] 1

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Neste sentido, será realizado uma breve descrição histórica e geográfica, as características da economia, a cultura e o levantamento do Patrimônio Cultura: material e imaterial do município. Também serão discutidas as potencialidades do município em geral, na economia, na produção agrícola e pecuária, e, as leis voltadas para a Cultura que criam alguns eventos culturais e datas comemorativas. Serão discriminadas ainda, as organizações e associações existentes no município de Caracaraí que, junto com a Secretaria Municipal de Educação, planejam e formulam projetos que beneficiam as famílias da região que participam das respectivas associações. Será evidenciado também os registros de artistas, artesãos e organizações culturais, a partir do levantamento feito pelo Projeto “Colchas de Retalhos” da Universidade Estadual de Roraima - UERR. E, ainda, o registro do calendário de eventos, os pontos turísticos do município e as políticas públicas que objetivam financiar as atividades de incentivo a Cultura do Estado e, para finalizar, o Conselho Municipal de Cultura. 2. HISTÓRICO DO MUNICÍPIO O Município de Caracaraí é conhecido como “Cidade-Porto” por ter o maior movimento fluvial do estado. Teve como primitivos habitantes a nação dos Paravianas, na época, vulgarmente chamados de Paravilhanas, a qual dominava às margens do rio Branco. O distrito-sede de Caracaraí, outrora simples campo destinado ao embarque de bovinos, era propriedade particular do fazendeiro coronel Bento Ferreira Marques Brasil. Teve suas primeiras residências erguidas por volta de 1900, sendo seus habitantes empregados ou vaqueiros do referido cidadão. Caracaraí nasceu como um local de embarque de gado para a capital do Estado do Amazonas – Manaus. Os bovinos desciam até a “Boca da estrada”, onde iniciam-se as Corredeiras do Bem-Querer. Ali eram desembarcados e tangidos até um curral no Porto Municipal. Depois eram embarcados novamente e enviados de barco ao matadouro de Manaus. Mercadorias vindas de Manaus e com destino a Boa Vista faziam este caminho em sentido inverso. E isso foi o que desenvolveu o lugar. O nome dado pelos indígenas a um pequeno gavião comum na região deu origem ao nome do Município. Caracaraí foi criado pela Lei Federal n.º 2.495, de 27 de maio de 1955 e, segundo dados do IBGE (senso 2010) Caracaraí tem aproximadamente de 20.261 habitantes. 2.1. Geografia Caracaraí está localizada na margem direta do Rio Branco e apresenta um clima quente e úmido. Seus limites são com os Municípios de Iracema, Cantá e Bonfim a Norte; a Guiana

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Inglesa a Nordeste; Caroebe a Sudeste; São João da Baliza, São Luiz do Anauá e Rorainópolis ao Sul e o Município amazonense de Barcelos a Oeste. Caracaraí é o maior Município de Roraima em extensão territorial. As principais localidades do Município são: Caracaraí (sede); Vila Novo Paraíso; Vila Petrolina do Norte e a Vila Vista Alegre. Figura 1: Localização do Município de Caracaraí.

Fonte: www.seplan.rr.gov.br

O município é cortado pela rodovia federal BR-174 que liga Boa Vista a Manaus e à Venezuela. Este município é detentor de elevados percentuais de áreas protegidas e possui uma reserva indígena de 7.638,06 Km2, onde vivem as etnias Wai-Wai, Wapixana e Yanomami. 2.2. Transporte O Aeroporto de Caracaraí possui a quarta maior pista de pouso da Amazônia Ocidental, com 2.500 metros de extensão, concluída pela COMARA – Comissão de Aeroportos da Amazônia, no ano de 2003. A navegabilidade, de Caracaraí a Manaus, pelo baixo rio Branco é maior que em outros pontos a norte (ainda que grandes embarcações tenham dificuldades durante as fortes secas para navegação).

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As duas maiores e principais estradas federais de Roraima (BR-174 e BR-210 – Perimetral Norte) cruzam-se no município, sendo que no trecho de 130 Km entre a sede municipal e a Vila de Novo Paraíso as duas rodovias seguem sobrepostas. 2.3. Serviços Urbanos O município dispõe de agência de Bancos, dos Correios, rede telefônica e estação de rádio difusão. Na saúde, existe um hospital público com 25 leitos e vários postos no interior. Caracaraí conta ainda com um Fórum de Justiça e uma delegacia. Existem no município 24 escolas municipais e 09 estaduais, sendo uma delas indígena. O Município conta ainda com 02 escolas técnicas e 02 polos universitários. 3. POTENCIALIDADES A economia do município de Caracaraí apresenta perspectivas agrícolas positivas. No Município estão assentadas cerca de 3.150 famílias de pequenos produtores. Além da atividade agrícola, existe uma intensa atividade comercial baseada em produtos de fabricação caseira. A aptidão agrícola do município, segundo as condições climáticas, possibilita o cultivo de inúmeras culturas. Já caça e a pesca são as atividades principais das comunidades ribeirinhas e indígenas. Sendo a pesca umas das principais atividades econômicas do município e o pescado de Caracaraí um produto de exportação. Na região de Caracaraí a maioria dos produtores rurais tem título de posse do lote que ocupa. No município existem 17 associações de produtores rurais, essas associações junto com a Secretaria Municipal de Agricultura e a Cooperativa de Produtores Rurais executam projetos que beneficiam os agricultores familiares da região de abrangência das respectivas associações. O crédito rural é um instrumento de política agrícola que objetiva financiar as atividades rurais. Existem três modalidades básicas do crédito: Custeio, Investimento e Comercialização. 4. POLÍTICAS CULTURAIS O setor de cultura do município de Caracaraí é gerido pelo Departamento de Cultura da Prefeitura, que está vinculado a Secretaria Municipal de Educação, e possui apenas um funcionário – o diretor de cultura na cidade. De acordo com a Lei nº 573/2014, que estima as receitas e fixa as despesas do Município de Caracaraí, para o exercício de 2015, foi destinado à cultura do Município, um percentual de 1,0129% do orçamento geral da Prefeitura. Este cenário passa a ser estruturado após a aprovação da lei que institui o Sistema Nacional de Cultural - SNC sendo concluído com a “Ementa Constitucional nº 236/2008, que insere

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a cultura no rol dos direitos sociais” (SNC, 2011, p. 40). Com a busca pela implementação do Sistema Municipal de Cultura inicia-se todo um aparato de organizações para que o sistema seja consolidado. Institui-se assim uma organização que reúne [...] a sociedade civil e os entes federativos da República Brasileira – União, estados, municípios e Distrito Federal – com suas respectivas políticas e instituições culturais, incluindo os subsistemas setoriais já existentes e outros que poderão vir a ser criados: de museus, bibliotecas, arquivos, do patrimônio cultural, de informação e indicadores culturais, de financiamento da cultura, etc.(SNC, 2011, p. 41) É com base nesta organização que se inicia um trabalho de mobilização dos Estados e Municípios na perspectiva de um trabalho conjunto e que venha a atender as demandas do setor cultural aproveitando os incentivos, os projetos e as organizações já existentes tendo em vista que o objetivo do SNC constitui-se em Formular e implantar políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade civil, promovendo o desenvolvimento–humano, social e econômico–com pleno exercício dos direitos culturais e acesso aos bens e serviços culturais. (SNC, 2011, p. 42). Percebemos assim, no município de Caracaraí, que a Lei Estadual de Incentivo à Cultura também pode ser citada como uma política pública, do Governo do Estado, voltada às produções culturais de Roraima, que beneficia iniciativas em Caracaraí e que se insere neste cenário da implementação/organização do Sistema Nacional de Cultura. O Festival Folclórico de Caracaraí foi um dos Projetos aprovados pela referida lei no último exercício. Verifica-se que ainda que as políticas públicas nessa área são poucas e bem restritas e, é importante admitir que o seu funcionamento contribui na consolidação e disseminação da cultura do município, pois as ações dessa área estão interligadas as demais proporcionando alguns avanços. Em termos de organização social, o município apresenta uma diversidade e um grande potencial representado por meio das associações da área de cultura, que poderão possibilitar um impulso significativo na economia local, com o incentivo ao turismo e a venda de produtos relacionados aos fazeres da cultura de Caracaraí. Essa logística passa pelo fortalecimento e desenvolvimento do sistema municipal de cultura. 4.1. Legislação O Município de Caracaraí também possui Leis que instituem alguns eventos culturais, são eles: a Lei nº 305/98, de 16 de Junho de 1998, que trata do Dia da Bíblia; a Lei nº 447/07, que trata da realização do Festival Folclórico de Caracaraí; a Lei nº 456/07 que trata do Arraial

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do Pescador, o qual faz parte do Calendário Municipal da Cidade; e ainda, a Lei nº 553/13, que trata da Semana da Cultura Gospel. Estas são algumas leis que podem se relacionar à cultura da cidade de Caracaraí. Há ainda a lei nº 439/2007 institui os feriados municipais oficias do Município de Caracaraí. Na apresentação destas leis, percebemos que as mesmas são limitadas em termos de aspectos culturais, pois estão relacionadas à promoção de eventos e a um determinado seguimento sem levar em consideração uma ação continua, de formação permanente e diversificada. Isso para que a cultura não se torne um elemento alienante. 4.2. O Conselho Municipal de Cultura de Caracaraí O Conselho Municipal de Cultural representa a importância da cultura dentro do Sistema Municipal de Cultura. Sua representação e sua finalidade. Neste sentido, apesar de Caracaraí ainda não possuir um Conselho Municipal de Cultura instituído, o Município já dispõem de uma minuta da lei que cria o Sistema Municipal de Cultura. No entanto, para implantação e funcionamento do referido sistema, há necessidade de cumprir outros protocolos e ritos, como por exemplo, a elaboração do Plano Municipal de Cultura. Entendemos assim, que a cultura deve ser trabalhada em sua tridimensionalidade: simbólica, econômica e cidadã (SISTEMA NACIONAL DE CULTURA, 2011). Por conta destes aparatos de valorização e organização do sistema cultural, os debates acerca da elaboração do Plano Municipal de Cultura são extremamente necessários, contudo constatamos que no município de Caracaraí os mesmos ainda não se iniciaram. Tal fato se deve a falta de consciência da comunidade local e do poder público municipal para a importância estratégia que a Cultura pode ter no desenvolvimento do município de Caracaraí. Mesmo com a minuta que cria o Sistema Municipal de Cultura de Caracaraí tramitando na Câmara de Vereadores do Município á vários meses, parece não haver interesse dos mesmos para que a Lei venha a ser aprovada. Dessa maneira, o Sistema não é regulamentado e as ações culturais desenvolvidas continuam a ser pontuais e mal articuladas, produzindo com isso resultados questionáveis e limitados no mercado cultural local. Isso se deve a não existência de um Sistema Municipal de Cultura, mas sim de um departamento de cultura vinculado à Secretaria Municipal de Educação. O departamento de cultura tenta suprir algumas demandas do setor cultural, contudo, ainda bastante desvinculadas das propostas existentes e da necessidade de atendimento do setor. O trabalho que realizado atem-se a realização de ações pontuais como o levantamento de artistas, artesões e organizações culturais, contudo, o trabalho de incentivo, apoio e valorização destes ainda não é viabilizado.

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5. ARTISTAS, ARTESÕES E ORGANIZAÇÕES CULTURAIS. Ao trabalharmos com o conceito os artistas, artesões e organização esculturais do município entendemos que estes fazem parte do patrimônio cultural local. Segundo a constituição Federal em seu artigo 216 “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Neste sentido, o trabalho cultural no município de Caracaraí vai ao encontro de trazer a tona os bens patrimoniais locais sejam eles materiais ou imateriais. Bens materiais, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, “[...] é composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza, conforme os quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas”. (IPHAN, 2015, p.01). Já os bens imateriais, segundo o IPHAN, dizem respeito [...] àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas) (IPHAN, 2015, p. 01) A partir desta compreensão acerca dos bens patrimoniais, apresentamos um levantamento dos elementos concretos da cultura de Caracaraí que são o registro e inventário dos artistas, artesãos e organizações culturais de Caracaraí. Esse levantamento contou com a colaboração decisiva do Projeto “Colcha de Retalhos” – uma ação de Extensão Universitária realizada por acadêmicos, docentes e egressos do Campus Caracaraí da Universidade Estadual de Roraima (UERR). Foram definidas cinco frentes de ação, quais sejam: 1. Mapeamento das Organizações Culturais (Pessoas Jurídicas); 2. Identificação dos Sujeitos Culturais–Saberes (parteiras, raizeiras, benzedeiras, rezadeiras, casas de religião de matriz indígena ou africana); 3. Identificação dos Sujeitos Culturais–Fazeres (artesãos, estilistas, desenhistas, grafiteiros, pintores, poetas, escritores, cordelistas, designers, cantores, compositores, músicos, etc.); 4. Mapeamento dos Bens edificados; 5. Identificação das Famílias pioneiras. Parte dos resultados coletados pode ser verificada na sequencia. Os depoimentos das Famílias Pioneiras foram prejudicados em sua coleta neste sentido não apresentaremos estes dados nesta escrita. Destacamos, contudo, a existência de pontos turísticos do município os quais fazem parte do cenário patrimonial de Caracaraí e perfazem as potencialidades do município.

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5.1. Organizações Culturais Conforme levantamentos de campo foram registradas três Organizações Culturais na sede do município, quais sejam: a) Associação Folclórica de Caracaraí Cobra Mariana; b) Associação Xorroxó de Caracaraí; e c) Grupo Folclórico de Caracaraí Gavião Caracará. Todos estes agrupamentos culturais possuem registro no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica e atuam na promoção de ações culturais no Município de Caracaraí. 5.2. Sujeitos Culturais–Saberes A categoria denominada Sujeitos Culturais–Saberes se preocupou em arrolar os sujeitos detentores e praticantes de saberes tradicionais, alguns deles já ameaçados de extinção. Os sujeitos culturais de saber com maior destaque na comunidade de Caracaraí são apresentados a seguir, conforme Quadro: Quadro 1: Sujeitos Culturais–Saberes

Nome

Tipo de Saber ou Ofício

Sebastião Fonseca de Andrade Francisco Ferreira Lima Sebastião José da Silva Maria de Fátima Parente Nestor Ferreira da Silva Raimundo Farias de Souza

Pega barriga, parto, garrafada e massagem. Reza. Garrafada. Parto, reza, pega barriga, garrafada Religião de Matriz Africana Reza, pega barriga, garrafada, benzimento

Fonte: Projeto Colcha de Retalhos, Levantamento de Campo, 2015.

5.3. Sujeitos Culturais–Fazeres Na categoria denominada Sujeitos Culturais–Fazeres, buscou-se diagnosticar pessoas que atuavam diretamente na parte artística do município. Os resultados mais significativos desse encontro constam no Quadro 2 disposto na sequência:

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Quadro 2: Sujeitos Culturais – Fazeres

Nome

Tipo de Atividade ou Ofício

José Roberto de Lima Correia

Artesão, Desenhista, pintor, trabalhador manual e Estilista. Músico, cantor Canta e toca. Músico, cantor e compositor Produtor musical. Poeta e Compositor Compõem letras de musicas e poesias Artesã, pintora e trabalhadora manual Pinta telas, crochê e pinturas em tecidos. Artesão, trabalhador manual, designer Cestaria, esculturas, biojoias, entalhes em madeira.

Cleveland Lima da Silva Jeremias Ferreira Gomes Isaque Ferreira Gomes Marina Rodrigues da Silva Genival Dias Castro

Fonte: Projeto Colcha de Retalhos, Levantamento de Campo, 2015.

5.4. Bens Edificados Já os Bens Edificados de relevância que são encontrados na cidade estão listados conforme o Quadro 3. Quadro 3: Bens Edificados

Nome Prefeitura Municipal de Caracaraí Prédio do INCRA (ocupado atualmente pela ADERR) Prédio do CRAS Corpo de Bombeiros (antiga Rodoviária) Escola Municipal Couto de Magalhães Monumento aos Pioneiros Orla Monumento dos Milagres Praça Padre Calleri Igreja Nossa Senhora do Livramento Ponte sobre o rio Branco Fonte: Projeto Colcha de Retalhos, Levantamento de Campo, 2015.

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5.5. Pontos Turísticos Conforme dados do Governo do Estado de Roraima, Caracaraí apresenta um atrativo de grande importância para a atividade do ecoturismo, dado as inigualáveis oportunidades de observação da flora e fauna. Entre os pontos turísticos mais destacados do Município estão: as Corredeiras do Bem-Querer; o Complexo Ecoturístico da Ilha de Jarú; e, o Amazon Água Boa Lodge. Com base neste levantamento dos bens culturais do município, podemos perceber um leque bastante grande de patrimônios que adentram o material (organizações culturais, bens edificados e pontos turísticos) e o imaterial (Sujeitos culturais-Saberes e Sujeitos culturais – fazeres). Contudo, o cenário de preservação e valorização destes bens ainda carece de atenção e entendimento pelos gestores culturais e pela comunidade como um todo. Os bens patrimoniais, não só em Caracaraí, carecem de cuidados na perspectiva de preservação da história e na perpetuação da cultura. O município de Caracaraí, por conta de um cenário ainda recente e desconexo da cultura apresenta-se ainda com maiores dificuldades carecendo de qualquer incentivou ao desenvolvimento destes espaços e destes sujeitos. 6. CALENDÁRIO DE EVENTOS Ao tratarmos do calendário de eventos, podemos destacar que alguns municípios de Roraima são referência em determinadas manifestações culturais e Caracaraí é um deles. No primeiro trimestre de cada ano, realiza-se o Carnaval, o Carafolia – o melhor carnaval do Estado de Roraima. Também ocorrem no município, o Festival Folclórico Gavião Caracará e Cobra Mariana. O festival tem como atração principal a disputa entre os dois grupos folclóricos da cidade (Cobra Mariana e Gavião Carcará), trazendo uma disputa semelhante ao Festival Folclórico de Parintins, realizado no Amazonas. Ambos são os dois maiores eventos que a cidade Porto realiza para celebrar a cultura. Merecem destaque também algumas datas festivas e históricas: o Aniversário do Município; o Festejo da Nossa Senhora do Livramento; o Dia Consagrado a Santa Luzia e o Campeonato Municipal de Futebol. Estes festejos, ao retratarem o cenário cultural de Caracaraí demonstram a riqueza e o potencial patrimonial do mesmo. Atentar para as políticas de valorização, preservação, incentivo e desenvolvimento destas manifestações culturais é algo que pode ser alavancado com um Conselho Municipal Cultural organizado e independente, com verbas e recursos humanos necessários.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, observamos as peculiaridades de Caracaraí através da pesquisa bibliográfica e pesquisa empírica qualitativa realizada pelo grupo “Colcha de Retalhos”. Ao fazermos esse diagnóstico, enfrentamos a falta de registro e a dificuldade perante os órgãos públicos na obtenção de informações nos documentos oficiais dentro do município. Percebemos também que ainda há muito a ser feito para que a cultura de Caracaraí contemple suas especificidades. Verificamos ainda que os agentes públicos são fundamentais para que haja a concretização da proposta de formação do Conselho Municipal de Cultura e também para a formatação de um Plano de Desenvolvimento Cultural que contemple as potencialidades encontradas no município. Elementos centrais que fazem parte da construção do sistema municipal de cultura de Caracaí. Nesse sentido, os dados apontam que o município de Caracaraí possui um grande potencial cultural, imaterial e material. As manifestações culturais podem ser comprovadas por meio da realização dos festivais onde se misturam raças, etnias, credo e religiosidade, expressando a diversidade que marca a cidade e atrai um grande número de visitantes, seja pela grande celebração que se promove, pela gastronomia, ou pelas belezas naturais da região. O diagnóstico apresentado nos mostra que existe a necessidade de investimentos e aplicabilidade de leis para o incentivo de grupos culturais que já vem trabalhando e desenvolvendo suas atividades no município, junto com o departamento de cultura. Porém ficou evidente a necessidade de se criar leis que possibilitem o acesso à cultura de forma a atender os anseios da sociedade local. Leis que venham consolidar políticas culturais que visem uma melhor utilização dos espaços físicos existentes para suprir os anseios da comunidade. Diante das informações coletadas, sentimos a necessidade de um olhar diferenciado para potencializar a cultura local por meio de criação de leis que incentivem de fato o desenvolvimento da cultura local e possam contribuir significativamente para o seu fortalecimento. Ficou evidente a necessidade de implantação de um sistema normativo que garanta o funcionamento das associações culturais já existentes; que valorize os saberes e fazeres tradicionais já consolidados; que estimule a ocupação adequada de espaços físicos que ajudaram a marcar a identidade local; mas que também estimule o desenvolvimento de novas práticas culturais e de vanguarda.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Constituição Federal 1988. Disponível em: . Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

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CENSO 2010. Resultados. Disponível em: www.ibge.gov.br. acesso em: 22 nov 2015. FREITAS, Aimberê. Estudos Sociais - RORAIMA: Geografia e História. 1 ed. São Paulo: Corprint Gráfica e Editora Ltda., 1998. GOVERNO DO ESTADO DE RORAIMA. Turismo. Disponível em: . acesso em: 20 nov 2015. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Patrimônio Material. Disponível em . Acesso em: 20 de janeiro de 2016. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Patrimônio Imaterial. Disponível em . Acesso em: 20 de janeiro de 2016. PREFEITURA DE CARACARAÍ – RR. Informações sobre Caracaraí. Disponível em: . Acesso em: 22 nov 2015. RORAIMA. Secretaria de Estado do Planejamento e Desenvolvimento de Roraima. Informações Socioeconômicas do Município de Caracaraí – RR. 1 ed. Boa Vista: CGEES/SEPLAN – RR. 2010. 67p. SISTEMA NACIONAL DE CULTURA: Estruturação, Institucionalização e Implementação do SNC. Disponível em: . Acesso em: 20 de janeiro de 2016.

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POLITICAS CULTURAIS NAS SOCIEDADES MODERNAS: UM ESTUDO SOBRE O PAC CIDADES HISTÓRICAS NA PERSPECTIVA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO Welyza Carla da Anunciação Silva 1 Sarany Rodrigues da Costa2 Kláutnys Dellene Guedes Cutrim3

RESUMO: Em uma sociedade que se identifica moderna em meio suas experiências e em detrimento da velocidade na qual as mudanças e transformações afetam todas as suas esferas, observa-se que o processo de modernização teve seu inicio nas artes e literatura, se disseminando e a partir de então trazendo verdadeiras inquietações para as ciências sociais que discutem seus conceitos e pressupostos gerando muitas polêmicas e discussões sobre suas possíveis contradições. Na esfera cultural, destaca-se para este artigo, como tem ocorrido as questões de preservação do patrimônio cultural, tendo como objeto de estudo o PAC Cidades Históricas, instituído pelo governo federal por meio do Ministério do Planejamento em parceria com o da Cultura e da Educação, sendo um marco nas questões de preservação dos sítios urbanos históricos pelo IPHAN. PALAVRAS-CHAVE: Pós-modernidade, Políticas Culturais, Preservação do Patrimônio Cultural.

1. INTRODUÇÃO Perante uma sociedade que apresenta uma diversidade cultural imensurável seja de forma exterior aos grupos sociais ou mesmo em seu interior e que um grupo pode apresentar diversas formas culturais dentro de si, o conceito de modernidade e pós-modernidade tornou-se algo extremamente intrigante para as ciências sociais. Em um contexto social que se justifica inicialmente no processo de globalização em face de um sistema capitalista, no qual todas as esferas sociais passam por mudanças e transformações Mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Bolsista CAPES/FAPEMA. [email protected] 2 Mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Bolsista CAPES/FAPEMA. [email protected] 3 Professora Doutora da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, do Departamento de Turismo e Hotelaria e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Interdisciplinar em Cultura e Sociedade. [email protected] 1

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a todo instante, os fundamentos que pautam as bases teóricas do conceito e pressupostos da pós-modernidade tornam-se inconsistentes ao explicitar um verdadeiro paradoxo na sua estrutura, percebido nas sobreposições dos campos sociais. Sobreposições que demonstram ora a busca incessante pelo desenvolvimento e progresso, ora promove ações que visam a manutenção do sistema, ou seja, os estilos de vida, as diretrizes que norteiam as leis políticas e econômicas, as crenças e costumes de um grupo e mesmo as verdades científicas são gaseificáveis, mudam antes mesmo que tenham tempo de se solidificar. Com isso a […] “a nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições” (PALLARES-BURKE, 2004, p. 304-305), percebendo-se um paradoxo entre uma sociedade dita pós-moderna e um discurso conservador, que conduz todas as mudanças e transformações em todas as esferas sociais. Destacando-se para este artigo as questões culturais, e que estão relacionadas a preservação do patrimônio cultural nas cidades históricas a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em um contexto pós-moderno que coloca em lados opostos conservação de um legado histórico e o progresso almejado por um discurso que visa sair de uma estrutura heterogênea para uma homogênea, considerada sinônimo de globalização em uma era pós-moderna, que vem traçar novas bases para as políticas públicas que regem a cultura e suas ações. Essas ações geridas pelo Estado, ou por outras instituições, têm o objetivo de garantir o acesso à cultura aos cidadãos e assim chamadas de políticas culturais. Tais políticas visam o estimulo à produção cultural, a proteção e preservação do patrimônio e das manifestações culturais, bem como o uso e disseminação da cultura, tendo sua história iniciada a partir da preservação do patrimônio, que, por sua vez, surgiu com o objetivo de criar e consolidar uma identidade nacional. Entre essas ações o Governo Federal criou, por meio do Ministério do Planejamento, o Programa de Aceleração do Crescimento, com o intuito de retomar o planejamento e a execução de obras grandiosas no âmbito de infraestrutura social, urbana, logística e energética no Brasil. Como um novo marco na preservação do patrimônio cultural no país, na segunda etapa do PAC, o governo cria um novo segmento no Programa, o qual tem como destinação aos sítios históricos urbanos tombados pelo IPHAN, surge então o PAC Cidades Históricas (IPHAN, 2016). Dentro deste cenário, e entrelaçando as discussões acerca da pós-modernidade, é que este trabalho se desenvolve objetivando compreender como se dá essas relações nas quais passado, presente e um futuro emergente se cruzam e assim desenham novas formas de representações sociais e culturais ao longo dos tempos. Destacando, assim, as ações do governo brasileiro do campo das politicas culturais, estudando, mais especificamente, o PAC Cidades Históricas do ponto de vista da preservação da memória nacional edificada.

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2. SOCIEDADE E MODERNIDADE A sociedade passa por transformações em todas as suas esferas ao decorrer da história a partir das suas relações com o tempo e com o espaço, perpassando as ideias de uma estrutura estática e sólida em detrimento do pensamento moderno e pós-moderno. Esses pensamentos vêm romper com as fronteiras sejam geográficas, políticas e econômicas com o intuito de unificação, vista claramente a partir do processo de globalização que ora vem disseminar os mecanismos de um mundo que se identifica a partir da sua volatilidade – assim pode-se dizer – como pós-moderno. Isso devido a dinâmica em que a sociedade está inserida, onde nada é fixo ou imutável, mas antes tudo se transforma, cria e recria a cada momento na qual a ciência e seus pressupostos não são verdades absolutas, mas questionáveis em uma velocidade imensurável e em uma realidade que proporciona sentimentos volúveis de alegria, satisfação, conhecimento, mudança, inovação tecnológica, porém intangíveis. Esse cenário paradoxal da modernidade que de acordo com BERMAN (1986, p. 14): [...] ao mesmo tempo que une a espécie humana [...] é uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN 1986, p. 14) Todos esses contrapontos são percebidos em toda a estrutura social, a partir dos conflitos políticos e da economia instável que a permeia, nas transformações culturais, transformações no espaço, na relação de consumo e na intervenção midiática no modo de vida das pessoas gerando mudanças sejam coletivas ligadas à ideologia holística ou individual pautado num ideal individualista, nas quais o indivíduo passa a fazer parte de um todo social mesmo que de forma inconsciente, mas também gera contradições ao defender seus ideais – nem tanto próprios. Berman (1982) ainda salienta a dialética da modernização e do modernismo, ressaltando a dificuldade de se obter algum controle sobre a história da modernidade e a dividiu em três fases: Na primeira fase, do início do século XVI até o fim do século XVIII, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem idéia do que as atingiu. [...] a segunda fase começa com a grande onda revolucionária de 1790. Com a Revolução Francesa e suas reverberações, ganha vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política. [...] No século XX [...] terceira e última fase, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento. (BERMAN 1982, p. 15-16)

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Essa conjuntura histórica mencionada por Berman (1982), que abarca o processo de modernização deixa perceptível a coexistência de dois mundos na qual emerge as ideias de modernismo e modernização, reforçando o paradoxo que envolve a ideia de unificação e fragmentação, fragilizando os conceitos e pressupostos da modernidade que passa a ser questionada sobre suas reais intervenções e consequentes mudanças na sociedade, já que tudo parece se caracterizar em um grande campo de ambiguidade. Tudo isso transpassa pela modernização do capitalismo que acaba por criar um novo mercado mundial interferindo diretamente nas relações de produção e consumo, promovendo individualismo, alienação, fragmentação, a efemeridade, a inovação, a destruição criativa, o desenvolvimento especulativo, mudanças de experiências no espaço e no tempo, como relata Marx em seus escritos. De acordo com Harvey (1992), “há algum tipo de relação entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos flexíveis de acumulação e um novo ciclo de compreensão do tempo-espaço do capitalismo”. Isso se traduz a partir do novo comportamento que a sociedade apresenta e que são percebidas nas transformações culturais, sejam elas históricas, tradicionais, folclóricas, mitos e magias ligadas às práticas culturais de um povo e/ou comunidade, de maneira global ou local que se reflete nas (re) construções do espaço em detrimento ao tempo, caracterizando uma sociedade em que “tudo o que é sólido se desmancha no ar” Berman (1982). Dentro deste contexto se quer destacar os efeitos da pós-modernidade em relação às questões culturais que permeiam os novos paradigmas e ideais acerca da preservação do patrimônio cultural em uma sociedade que tudo é passageiro e nada é estável, levantando posicionamentos sobre preservar em um espaço que sofre as ações do tempo e das necessidades e representações frenéticas da sociedade atual. Berman (1982) demonstra essa nova realidade citando efeitos como: [...] a descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habita ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano [...]. (BERMAN 1982, p. 15) Nesse intuito podem-se discutir as questões que norteiam a preservação do patrimônio cultural nas cidades históricas em um mundo globalizado e pós-moderno no qual nada se mantém e tudo é muito volúvel. Com a inquietação dos indivíduos por inserirem-se no ciclo do pós-moderno, que na verdade para alguns autores se trata apenas de uma nova fase ou ciclo capitalista, ações que visam inserir as cidades, Estados e países nesse circuito, ações de diversos âmbitos tem sido desenvolvidas a partir das esferas governamentais a respeito da preservação das cidades históricas, sem, entretanto deixar de acompanhar o fluxo da modernização.

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Dentro deste cenário, alguns projetos foram criados como, por exemplo, o Programa de Aceleração do Crescimento voltado para cidades histórias – sendo aqui analisado sob a perspectiva da preservação do patrimônio cultural – com o intuito de por em prática as ideias de preservação das cidades históricas, porém inseridas nesse novo paradigma pós-moderno e sem se isentar inevitavelmente do paradoxo de modernizar versus preservar gerado pelos efeitos da globalização e dos conceitos de modernização. 3. POLITICAS CULTURAIS O acesso à cultura é um direito de todos os cidadãos, sendo assim, o Estado tem o dever de facilitar esse acesso. Mas, na sociedade moderna, essa tarefa não está restrita ao poder público, ela tem sido efetuada, também, por outros atores, com ou sem o auxilio do Estado, tais como: entidades civis, instituições privadas e sociedade organizada. Contudo, o governo ainda figura, mesmo que de forma deficiente, como o principal provedor dessa que se constitui uma das necessidades da população. Sendo uma das necessidades da população, o acesso à cultura passa a fazer parte da agenda governamental, e assim, será alvo, também, das políticas públicas. Nesse sentido, as políticas públicas surgem como uma forma de gerir os problemas e as demandas coletivas “através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas predefinidos” (DIAS; MATOS, 2012, p. 14). Assim, as políticas públicas constituem um conjunto de ações voltadas a atender às necessidades dos indivíduos. Na sociedade contemporânea, as políticas públicas têm passado por um processo de redefinição onde o Estado passa a ser o articulador de programas e projetos que abrangem não só as necessidades básicas da população, mas todos os campos da vida social. Nesse sentido, Reinaldo Dias afirma que as políticas públicas constituem um “conjunto de ações executadas pelo Estado, enquanto sujeito, dirigidas a atender às necessidades de toda a sociedade”, o autor diz ainda que essas políticas são formadas por “linhas de ação que buscam satisfazer ao interesse público e têm que estar direcionadas ao bem comum” (DIAS, 2003, p. 121). Assim, as políticas públicas refletem, a um só tempo, pensamento e ação do governo em favor do bem coletivo. As ações do Estado, ou de outras instituições, com o fito de garantir o acesso à cultura aos cidadãos são chamadas de políticas culturais. Essa garantia de acesso envolve outros fatores como: o estimulo à produção cultural, a proteção e preservação do patrimônio e das manifestações culturais, e ainda, o uso e disseminação da cultura. Nessa perspectiva, Teixeira Coelho Neto (1997), citado por Reis (2011), ao conceituar políticas culturais diz que elas constituem: uma ciência da organização das estruturas culturais, a política cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas

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pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, a distribuição e o uso da cultura, a preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável. (REIS, 2011). Essas políticas, de acordo com Lima, Ortellado e Souza (2013), ocorrem em três tipos, os quais foram desenvolvidos de forma histórica e cumulativa. Os autores dividem esses tipos em três gerações: Políticas de primeira geração - consolidação da identidade e preservação do patrimônio; Políticas de segunda geração - intervenção e regulação econômica do setor cultural; e Políticas de terceira geração - difusão e produção cultural. A primeira tem como objetivo a consolidação da identidade nacional e a preservação do patrimônio, e ainda, o reconhecimento da diversidade das comunidades que integram o Estado nacional. O objetivo da segunda é minimizar o impacto (cultural/ econômico) da indústria cultural estrangeira e fortalecer a indústria nacional; e fomentar o setor econômico criativo. E a última visa à ampliação do acesso à cultura consagrada; e ao apoio da produção simbólica dos diversos segmentos sociais (LIMA; ORTELLADO; SOUZA, 2013). De acordo com Rubim (2012), a criação do Ministério dos Assuntos Culturais na França, em 1959, pode ser considerado o momento de fundação das políticas culturais no mundo ocidental. O autor destaca ainda que foi, principalmente, por intermédio das ações desenvolvidas pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) no âmbito da cultura que as políticas culturais alcançaram importância e entraram para a agenda pública internacional (RUBIM, 2012). No Brasil, a história das políticas culturais se inicia a partir da preservação do patrimônio histórico edificado (aspecto que será destacado neste trabalho), o qual surgiu com o objetivo de criar e consolidar uma identidade nacional. No Brasil, temos como marco dessa história a criação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, hoje instituto (IPHAN). Este órgão é responsável pela salvaguarda do patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial. Para tanto, o IPHAN faz uso de vários instrumentos legais para identificar, selecionar, conservar e restaurar os bens culturais de natureza material (áreas urbanas, imóveis rurais, edificações, objetos móveis, em geral de cunho religioso) e imaginária, ou integrados à arquitetura, como forros altares etc., enquadrando-os na categoria de patrimônio nacional (CHUVA, 2012, p. 67). Em nosso país a preservação da memória edificada figurou por um longo tempo como alvo principal das políticas culturais do Estado, que se restringia à “preservação daquilo que

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comporia o conjunto dos símbolos formadores da nacionalidade, tais como o patrimônio edificado e as obras artísticas ligadas à cultura erudita (composições, escritos, pinturas, esculturas, etc.)” (CALABRE, 2007, p.9). Ficando em segundo plano os bens e manifestações representativos da cultura popular, e, sobretudo, o patrimônio imaterial, o qual só ganhou registro específico a partir do ano 2000. Nas sociedades modernas, tanto os bens culturais materiais, quanto os imateriais possuem inestimado valor, porém, nem sempre reconhecido pelo Estado. O patrimônio material, por ser tangível, recebe mais reconhecimento e, consequentemente, investimentos em maior proporção. Porém, ambos merecem ser protegidos e preservados, sobretudo nas sociedades modernas, pois, conforme afirma Berman (1982), citado por Harvey (1992, p. 21): ser moderno é encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo – e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.

(HARVEY 1992, p. 21) E essa destruição, que se apresenta inerente à modernidade, não exclui o patrimônio cultural, o que torna ainda mais urgente sua preservação. 4. PAC CIDADES HISTÓRICAS SOB A PERSPECTIVA DA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO. Em 2007 o governo federal lançou, por intermédio do Ministério do Planejamento, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O Programa surgiu com a intenção de retomar o planejamento e a implantação de grandes obras nas áreas de infraestrutura social, urbana, logística e energética no Brasil. Em 2013, como um novo marco na preservação do patrimônio cultural no país, o governo abre uma nova linha no Programa que se destina, de forma exclusiva, aos sítios históricos urbanos tombados pelo IPHAN, surge então o PAC Cidades Históricas (IPHAN, 2016). O PAC Cidades Históricas é um programa intersetorial que recebe recursos dos ministérios da educação, turismo e cultura, com a concepção do IPHAN, tendo sua execução em parceria com os municípios, universidades, além de outras instituições federais. O Programa conta, ainda, com a cooperação técnica da Caixa Econômica Federal e das unidades federativas que recebem suas ações, sendo um total de vinte estados que abrigam 44 cidades históricas reconhecidas como patrimônio nacional e 11 como patrimônio mundial. Esses sítios históricos deverão “receber cerca de R$1,6 bilhão de investimentos para a recuperação, restauro e qualificação de seus conjuntos urbanos e monumentos” (IPHAN, 2013, p. 1). Essa política expressa a preocupação do Estado em alinhar as questões preservacionistas ao crescimento econômico do país, de forma que este possa beneficiar aquelas. A fim de preservar a memória do país por meio da proteção do patrimônio cultural edificado, o governo empenha

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esforços que sejam capazes de alcançar esses objetivos e, ainda, promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Nesse sentido, Cutrim (2011, p. 44) afirma que “entendidas como signo que reflete e refrata os valores de uma sociedade, as políticas públicas de preservação do patrimônio devem ser pensadas a partir da espessura histórica e social que as envolve”. Pensando nessas questões, o governo traz, nas palavras da então ministra da cultura, Marta Suplicy, no folder de divulgação do PAC Cidades Históricas, um discurso que destaca a relação preservação versus desenvolvimento sustentável, quando diz que: Se, no passado, a pobreza e o subdesenvolvimento retardaram as transformações e, de certa forma, evitaram a destruição do nosso patrimônio, na atual fase de crescimento econômico e redução das desigualdades que vivenciamos no Brasil, os investimentos na preservação tornam-se parte indissociável da estratégia de desenvolvimento sustentável do país (IPHAN, 2013, p. 1). Neste enunciado, percebe-se no discurso do Estado que a modernização, ou seja, a modificação do patrimônio histórico cultural só não ocorreu de forma mais acentuada por falta de poder econômico, mas que, havendo agora o crescimento deste poder, torna-se urgente a preservação a fim de que não ocorra o desaparecimento da identidade nacional em decorrência da destruição do patrimônio. Ao longo desse discurso percebe-se, também, que a ideia de preservação é sempre apresentada vinculada à ideia de desenvolvimento. Isso nos leva a fazer um paralelo com o que lemos em Cutrim (2011) sobre a relação entre capitalismo e preservação cultural: Na busca pela dominação, o capitalismo gera um fenômeno interessante: ao mesmo tempo em que a globalização incentiva a quebra das fronteiras, posicionando-se contrariamente à diversidade que, notoriamente, existe no mundo, paradoxalmente reforça um movimento oposto: o das diferenciações culturais incentivadas pela preservação, oriunda dos processos de patrimonialização, que buscam preservar raízes como forma de não perder o referencial ameaçado pelo processo da globalização – Grifo nosso (CUTRIM, 2011, p. 47). Essa fala da autora mostra a importância da preservação e exaltação da diversidade cultural frente às ameaças de homogeneização que o processo de globalização nos impõe. Atrelada a essa preocupação, somando-se ainda à do desenvolvimento sustentável, o governo brasileiro investe no PAC Cidades Históricas muitos recursos de ordem financeira, e técnica, com a intenção de possibilitar “às gerações atual e futuras, ambientes urbanos mais humanos e respeitosos para com os valores culturais, preservando bens que caracterizam a nossa cultura e conferem ao Brasil uma diversidade de identidades única em todo o mundo” – Grifo nosso (IPHAN, 2013, p. 1).

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Outra ação do Programa é a disponibilização de uma linha de crédito especial, no valor de R$ 300 milhões, destinada ao financiamento de obras em imóveis privados situados em 105 cidades que possuem áreas tombadas pelo IPHAN, tendo seus juros subsidiados e prazos diferenciados de pagamento. Os recursos poderão ser utilizados na recuperação de residências, ou investidos na adaptação de imóveis para destinação de algum tipo de atividade econômica, como, por exemplo, o setor de hospedagens ou de alimentos e bebidas (IPHAN, 2013, p. 1). Com essa medida o governo investe não apenas em cultura, mas também no turismo e na economia de cada cidade beneficiada pelo Programa. O turismo, atividade econômica de grande relevância para a economia, teve sua importância reconhecida no processo de desenvolvimento do PAC Cidades Histórias, e exerceu muita influência na seleção das cidades e dos bens a serem restaurados pelas as ações do Programa. Os sítios históricos reconhecidos pela UNESCO como Patrimônio Mundial e como Patrimônio Nacional pelo IPHAN, os quais representam importantes destinos para o turismo cultural foram priorizados e contemplados com projetos do PAC Cidades Históricas. Observa-se a que estratégia de preservação do poder público brasileiro consiste em somar esforços e investimentos das três esferas do governo, municipal, estadual e federal, articulados às políticas públicas de diferentes setores, ou seja, ações intersetoriais. Isso com o objetivo de otimizar os recursos, integrar as políticas e, assim, promover o desenvolvimento sustentável do país e atender às diversas demandas sociais, e também, culturais da população. Nesse sentido, Antonio Rubim (2012, p. 15) afirma que, ao longo da história, a relação entre política e cultura “sempre foi marcada pelo predomínio da finalidade e pela instrumentalização da cultura. Agora acontece uma radical guinada, na qual a cultura é o fim e a política apenas o recurso para atingir esse fim”. 5. CONSIDERAÇÕES FINAS Ante as discussões apresentadas sobre os conceitos de modernidade e pós-modernidade de alguns autores que fundamentaram a elaboração deste trabalho, percebe-se que a pós-modernidade em vários pontos entra em desacordo com suas próprias bases teóricas, gerando polêmicas e gerando muitas inquietações acerca de sua consistência. Isso devido às experiências vividas por diferentes estruturas sociais que demonstram uma corrida incessante para adentrar no ritmo alucinado que a pós-modernidade diz proporcionar, por meio da globalização, dos avanços tecnológicos, por meio do surgimento de novos paradigmas, teorias cientificas que a partir do momento que se descobrem já passam a se desfazer no ar. Foi dentro deste cenário que se traçou uma discussão sobre as questões que tangem as políticas culturais relacionadas ao PAC Cidades Históricas que se propõe a preservar sítios urbanos históricos em uma sociedade que se apresenta em meio a um turbilhão de mudanças e com

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a incansável sensação de se inserir no pós-moderno gerando conflitos ao manter o antigo em um tempo que tudo se transforma a cada momento e busca a todo custo ser moderno. Na perspectiva de uma sociedade moderna, entendemos que as políticas culturais constituem as ações do governo, e de outros agentes, destinadas a garantir à população o direito à cultura. No Brasil, esse direito é previsto pela Constituição Federal em vigor, que em seu artigo 215 diz que o Estado deve garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultural nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 1988, art. 215). Consideramos esta uma conquista das sociedades modernas, as quais, reconhecendo a cultura como uma necessidade dos indivíduos, decidem assegurar o direito ao suprimento dessa necessidade por meio de instrumento legal. Tão importante quanto garantir o acesso à cultura é preservar os bens e manifestações representativos do modo de vida de um povo. Percebendo isso, o governo brasileiro empenhou muitos esforços e recursos em um grandioso programa para preservação do seu patrimônio cultural edificado. O PAC Cidades Históricas tornou-se um marco nas estratégias de preservação do país, e busca, por meio de uma política intersetorial e de ações articuladas entre as três esferas de governo, promover o desenvolvimento sustentável da nação – tão almejado pelas sociedades modernas – mas sem, para isso, ter que degradar o patrimônio cultural do país. Não pretendemos, com este trabalho, esgotar as possibilidades de estudo da política cultural em questão (PAC Cidades Históricas), mas, sim lançamos um olhar, do ponto de vista da preservação do patrimônio cultural edificado, sobre esta que tem sido um diferencial nas políticas públicas do país. Muitas outras opções de análise são permitidas sobre o Programa, uma delas é sob a ótica da transformação social que se deseja alcançar por meio da implantação desta política, de forma a avaliar as reais possibilidades dessa transformação. Investigando, ainda, se houve a participação popular na elaboração dessa política e na escolha dos bens que receberão as ações de restauração, tendo em vista que a participação popular se constitui em um dos fatores de extrema importância para políticas culturais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. CALABRE, L. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In.: Anais do III Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. Salvador, maio/2007.

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CHUVA, M. Preservação do Patrimônio Cultural no Brasil: uma perspectiva histórica, ética e política. In: _________, NOGUEIRA, A. G. R. Patrimônio Cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2012. CUTRIM, K. D. G. Patrimônio da Humanidade: a edificação discursiva da cidade de São Luis nas políticas de preservação do Estado. Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2011. Tese de doutorado, 188 f. DIAS, R. Planejamento do Turismo: política e desenvolvimento do turismo no Brasil. São Paulo: Atlas, 2003. _________; MATOS, F. Políticas públicas: princípios, propósitos e processos. São Paulo: Atlas, 2012. HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. SP: Ed. Loyola, 1992. Modernidade e Modernismo, p. 21-44. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Folder de divulgação do PAC Cidades Históricas 2013. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/.../PAC_2_ Cidades_Historicas.pdf. Acesso em 28 jan. 2016. KUMAR, K. Da Sociedade Pós-Industrial à Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. 258 páginas. LIMA, L. P. B.; ORTELLADO, P.; SOUZA, V. O que são as políticas culturais? Uma revisão crítica das modalidades de atuação do estado no campo da cultura. In.: Anais do IV Seminário Internacional – Políticas Culturais. Rio de Janeiro, outubro/2013. Disponível em: http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2013/11/Luciana-Piazzon-Barbosa-Lima-et-alii.pdf. Acesso em: 28 jan. 2016. PALLARES-BURKE, M. L. G. Entrevista com Zygmunt Bauman. Revista tempo social – USP. São Paulo, v. 16, n. 1, jun. 2004. PAC CIDADES HISTÓRICAS. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/235. Acesso em: 28 jan. 2016. Pós-modernidade em questão: ERIKSEN, Thomas H. & NIELSEN, Finn S. O fim do Modernismo? In:_. História da antropologia. 6 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. REIS, P. F. Estado e políticas culturais. In: Anais do II Seminário Internacional Políticas Culturais. Rio de Janeiro Set/2011. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/palestras/Politicas_Culturais/II_Seminario_Internacional/FCRB_PaulaFelixReis_Estado_e_politicas_culturais.pdf. Acesso em: 28 jan. 2016. RUBIM, A. A. C. Panorama das políticas culturais no mundo. In.: Políticas culturais. Org. Antônio Albino Canelas Rubim e Renata Rocha. Salvador: EDUFBA, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/12003/1/politicas_culturais.pdf Acesso em: 10 fev. 2016.

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O CINEMA EM TRANSE: DEBATE CULTURAL E POLÍTICA CINEMATOGRÁFICA NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA (1982-1990) Wolney Vianna Malafaia1 RESUMO: A transição democrática atingiu profundamente o cinema brasileiro a partir de 1982, com a saída do diplomata Celso Amorim da presidência da Embrafilme; a partir deste momento desenvolveu-se uma diversificação do emprego de recursos na produção de filmes brasileiros, sendo deslocado do centro desta produção o grupo de cineastas egressos do Cinema Novo, radicados no Rio de Janeiro, e criado um espaço ainda maior para produtores e diretores de outros estados, principalmente os de São Paulo. Ao lado da intensa turbulência política do período, o setor cinematográfico debateu os novos rumos do cinema, propondo saídas e alternativas, que passavam pela reformulação do aparato estatal na área cinematográfica. Fruto desse debate foi a formulação do documento intitulado Política Nacional de Cinema (1986), elaborado no governo José Sarney (1985-1990), documento que propôs as linhas gerais para o desenvolvimento da política cinematográfica entre 1987 e 1990. PALAVRAS-CHAVE: Cinema Novo, Transição Democrática, Política Cultural, Política Cinematográfica; Debate Cultural.

1. TEMPOS DE TRANSIÇÃO, TEMPOS DE CRISE A transição democrática atingiu profundamente o cinema brasileiro em abril de 1982, com a demissão do Diretor Geral da Embrafilme, Celso Amorim, por causa do seu envolvimento na produção e distribuição pela empresa do filme Prá Frente Brasil, de Roberto Farias. A história do filme se passava em 1970, ano de Copa do Mundo de futebol e de exacerbada repressão política no Brasil; a questão central era justamente essa: enquanto a maior parte da sociedade se embriagava com a seleção brasileira e com os ganhos materiais proporcionados pelo chamado milagre econômico, a repressão desencadeada pelo regime atingia estudantes e trabalhadores, jovens revolucionários e veteranos comunistas, inocentes ou envolvidos com a luta armada, todos eram submetidos a torturas indescritíveis, muitos eram assassinados. Programado para ser lançado justamente meses antes de uma outra Copa do Mundo de Futebol, a de 1982, o filme Doutor em História Política e Bens Culturais pelo Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais, Cpdoc/FGV. Professor de Educação Básica do Colégio Pedro II, Campus São Cristóvão III; e-mail [email protected];

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foi censurado e teve a sua distribuição proibida, muito embora fosse um produto da Embrafilme e contasse com o apoio dessa empresa estatal para a sua distribuição. Ao protestar contra esse arbítrio, Celso Amorim praticamente colocou o seu cargo à disposição e foi substituído por Roberto Parreira, ex-presidente da Funarte, um intelectual de grande importância dentro da área cultural estatal. Durante a sua gestão, ainda que enfrentasse dificuldades não conhecidas pelo seu antecessor, o produtor Roberto Farias, Celso Amorim promoveu uma descentralização de financiamentos e seleção de projetos, gerando uma tímida diversificação da produção cinematográfica ainda que mantivesse a hegemonia do grupo cinemanovista à frente de grandes produções bancadas pela empresa. Além da crise financeira, que reduziu em boa parte os recursos da empresa, e da inflação alta, que desvalorizava os mesmos, a gestão de Celso Amorim esbarrou, ainda, em dois grandes obstáculos: a resistência da mídia televisiva a qualquer tentativa de se garantir ao produto nacional um percentual de exibição na mesma e a ação da censura, a qual, depois de um período de relativo relaxamento, entre os anos 1979 e 1980, retornara com força máxima, a partir de 1981, perseguindo principalmente a chamada imprensa alternativa, o teatro e o cinema brasileiros. O caso Prá frente Brasil, ilustra bem essa questão (SIMÕES, 1999: 223-243). O ano de 1982 assinalaria, também, uma guinada na conjuntura política do país, com a realização de eleições para os governos estaduais em novembro e a vitória da oposição em vários estados de grande peso político e econômico como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná, dentre outros. A sociedade civil, com uma série de entidades e organizações representativas de grupos e interesses variados, se articulava fortemente e ganhara o apoio do movimento sindical em ascensão, com a realização de congressos que procuravam organizar as centrais sindicais não permitidas pela legislação trabalhista. A partir deste momento, com a posse dos novos governos estaduais em março de 1983 e contando com um Congresso Nacional onde a oposição, tendo à frente o PMDB, possuía a maioria dos parlamentares, a transição democrática se acelerava e ganhava contornos mais nítidos como um verdadeiro caminho sem volta, não obstante a série de medidas casuísticas adotadas pelos defensores do Estado autoritário, procurando retardar o máximo possível o processo de redemocratização. O período 1982-1984 foi de intenso debate político, culminando na campanha das Diretas, Já!, no início de 1984, que levou milhões de pessoas às ruas, clamando por eleições diretas para presidente da República e a democratização imediata do país. Esses debates e essa agitação política se reproduziam na área cultural e, particularmente, na área cinematográfica, essa mais dependente ainda do Estado em função das políticas de incentivo à produção e ocupação do mercado desenvolvidas no decorrer dos anos setenta. Entretanto, mais do que o debate político, a produção cinematográfica nacional foi marcada pela crise econômica do período: o corte de gastos atingiu a Embrafilme, seu apoio à

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produção e à própria distribuição dos filmes brasileiros teve que ser contingenciado, reduzido mesmo; a inflação em alta constante fazia com que os recursos obtidos com a taxação do filme estrangeiro, recolhida diretamente dos borderôs das salas de exibição, se desvalorizassem, dado o tempo em que eram depositados e ficavam à disposição do governo para remanejamentos possíveis e inventados. Algumas produções desse momento tiveram grande importância e alcançaram bom sucesso de público como os filmes Memórias do Cárcere (1983), de Nelson Pereira dos Santos, e O Beijo da Mulher Aranha (1984), de Héctor Babenco, na realidade, produções que já haviam sido devidamente encaminhadas e aprovadas na gestão de Celso Amorim. Esse período, no entanto, ficou mais caracterizado pelas vertentes que já se faziam presentes desde 1979: produções tidas como pornochanchadas, mas que já derivavam para um tipo de cinema pornográfico, produto típico da chamada Boca do Lixo, em São Paulo (RAMOS, 1987: 438440); uma produção considerada como pornô chique, de Arnaldo Jabor e Walter Hugo Khouri, e uma produção mais orientada para um público jovem como Menino do Rio (1982) e Garota Dourada (1984), de Antônio Calmon, e Beth Balanço (1984) de Lael Rodrigues, dentre outros (RAMOS, 1987: 445-449). A administração de Roberto Parreira representaria um novo ciclo dentro da Embrafilme, no qual a estatal não deveria operar como componente do Estado, mas, sim, como um elemento do governo, oferecendo alternativas ao uso político de seu poder estratégico e financeiro. Aos poucos surgiriam conflitos com alguns produtores, principalmente quando evitava produzir filmes de teor político ou erótico. Porém, sua habilidade política era capaz de administrar as relações com as lideranças dos cineastas, anulando as lideranças corporativistas. Ao mesmo tempo, esvaziava a força da distribuidora, que, a essa época, já se encontrava em declínio diante das dificuldades que o mercado cinematográfico apresentava, principalmente com o surgimento dos primeiros filmes pornográficos, que esvaziavam o filão de filmes eróticos de sexo não explícito. A distribuidora, que já se sustentava, nos últimos anos, pela comercialização dos filmes dos Trapalhões e de filmes eróticos adquiridos no mercado paulista, como Convite ao prazer, Eros, o deus do amor, Iracema, a virgem dos lábios de mel e Amor estranho amor, perderia diversos profissionais que foram se transferindo para outras empresas. (GATTI, 2007: 110). Por outro lado, a Lei do Curta (Lei 6281, de 9 de dezembro de 1975), criara uma reserva de mercado para o curta-metragem brasileiro, a qual, somada ao baixo custo da produção, favoreceu a ascensão da produção de curtas-metragens e de documentários, que, inclusive, passaram a contar com o apoio de órgãos culturais de governos estaduais, como Rio de Janeiro e São Paulo, a partir da posse dos novos governos de oposição em 1983. Com este incremento na produção de curtas-metragens e documentários, fortaleceu-se a Associação Brasileira de Docu-

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mentaristas (ABD), fundada em 1973, a qual possuía várias seções regionais, destacando-se as do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, vindo assumir, assim, grande projeção no debate sobre a política cinematográfica e sobre os incentivos oficiais à produção e distribuição. O clima político existente em 1984, favoreceu o debate cultural e fortaleceu a participação da sociedade civil na vida política do país. As entidades representativas do setor cinematográfico deparavam-se com uma série de questões que envolviam não só a produção e distribuição cinematográficas, especificamente, como, no geral, a própria orientação que teria a produção cultural no país com o término do regime militar e o reinício do processo democrático. Com o advento da Nova República, em março de 1985, esse debate se intensificaria e, juntamente com a crise econômica, iria conferir à produção cinematográfica os parâmetros que balizariam a partir daquele momento seu desenvolvimento e sua busca de identidade. 2. A NOVA REPÚBLICA E A POLÍTICA NACIONAL DE CINEMA A desestruturação do arcabouço montado pelo Estado autoritário na área cultural foi tão forte que, entre o final de 1984 e meados de 1985, a Embrafilme ficou sem Diretor Geral, sendo a empresa dirigida por Carlos Augusto Calil, que exercia o cargo de Diretor do Setor de Operações Não-Comerciais na gestão Roberto Parreira. Esse abandono da parte de um Estado autoritário que se desfazia a olhos vistos não afetou o debate cultural, pelo contrário, muitos se articularam no sentido de preencher o vazio, procurando ocupar o mesmo com propostas concretas e aproveitando o momento de transição democrática que se consolidava. A Nova República assumia criando um Ministério da Cultura, reivindicação antiga dos setores artísticos e intelectuais, sendo nomeado para ministro o político mineiro José Aparecido de Oliveira, o qual ficou pouco tempo no cargo, substituído por Aluísio Pimenta em maio de 1985. A abertura ao diálogo e à participação de artistas e intelectuais foi concretizada; vários fóruns das diversas áreas da produção cultural foram instalados, grupos se articulavam. Em julho de 1985, diante de um grande número de artistas e intelectuais presentes no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, o ministro da Justiça, Fernando Lyra, anunciou o fim da censura no Brasil; o Conselho Superior de Censura seria extinto e, em seu lugar, seria criado o Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Expressão (SIMÕES, 1999: 243). Carlos Augusto Calil, que então exercia o cargo de Diretor Geral da Embrafilme na condição de pro tempore, foi finalmente nomeado para o mesmo em junho de 1985. A empresa passava por grandes dificuldades: desde 1980, sofrera corte de gastos e perda de receitas em função da crise econômica; a arrecadação caíra substancialmente e o setor de exibição encontrava-se em grande crise com o fechamento de salas e a defasagem técnica que prejudicava a exibição de filmes. A estratégia da Direção Geral da Embrafilme, naquele momento, foi a de preservar os compromissos assumidos, referentes aos contratos de produção e distribuição de filmes e

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buscar parcerias para produções futuras. Neste mesmo mês de junho, foi criada uma comissão para discutir e elaborar uma Política Nacional de Cinema. Esta comissão foi dividida em duas áreas: comercial (produção, distribuição e exibição) e cultural (curta-metragistas, documentaristas, pesquisadores e cineclubistas); nela estavam presentes figuras expoentes do Cinema Novo como Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl e Leon Hirszman, que coordenou os debates e elaborou o relatório da área cultural cinematográfica. Podemos, portanto, falar de uma sociedade civil cinematográfica, estruturada desde a segunda metade dos anos setenta, e que assumiu uma importância fundamental tanto no debate específico sobre a política cinematográfica, como também no debate cultural mais amplo. Associações de classe como a Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI) e a Associação Paulista de Cineastas (APACI); a Associação Brasileira de Documentaristas (ADB), com suas ativas seccionais de Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia; os cineclubes representados pelo Conselho Nacional de Cineclubes (reestruturado a partir de 1976) com importantes Federações nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia; técnicos e produtores independentes organizados em associações de técnicos e produtores, as quais derivarão em organizações sindicais como o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual (1987), representando São Paulo e os estados do Sul e Centro-Oeste, além do Distrito Federal, e o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica (1988), no Rio de Janeiro; associações de críticos de cinema e o Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, criado em 1969 dentre outras. Todas se articulavam e defendiam seus interesses, promovendo fóruns de debates e reuniões, onde discutiam e deliberavam propostas para a área cinematográfica. Um bom exemplo desses fóruns são as Jornadas Nacionais de Cineclubes, realizadas anualmente desde 1974, quando da rearticulação do movimento cineclubista, na jornada nacional de Curitiba, até 1989, quando da última jornada nacional realizada em São Paulo2. Esses segmentos oferecem saídas para a crise como a montagem de um setor de distribuição alternativa, articulado a partir de duas distribuidoras independentes: a Distribuidora Nacional de Filmes para Cineclubes (Dinafilme), criada em 1977 e vinculada ao Conselho Nacional de Cineclubes (CNC), e a Cinema Distribuição Independente (CDI) criada por produtores e exibidores independentes de São Paulo. A partir de 1984, cineclubistas, curta-metragistas, documentaristas, pesquisadores e críticos de cinema se articulam criando espaços alternativos de exibição como o Cineclube Bexiga, em São Paulo, e o Estação Botafogo, no Rio de Janeiro; As Jornadas Nacionais de Cineclubes constituem uma fonte importante para a análise de propostas feitas pelo setor e por outros próximos aos cineclubistas como curta metragistas e documentaristas. Rearticulado o movimento cineclubista em 1974, quando da Jornada Nacional em Curitiba, onde foi elaborada a Carta de Curitiba, que afirmava, dentre outras propostas, a defesa do cinema nacional e o combate à censura, até a última jornada desse ciclo, realizada em 1989, em São Paulo, todos esses encontros produziram anais, com registros dos debates e das propostas formuladas divididas em setores como distribuição, exibição e produção.

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em 1987, essa experiência se estende ao Rio Grande do Sul com a criação da Casa de Cinema de Porto Alegre e a Minas Gerais, com o Espaço Savassi, em Belo Horizonte. Esse circuito alternativo se consolida e é reforçado pela entrada do Serviço Social do Comércio (SESC) no setor, investindo na aquisição de curtas-metragens e documentários, formando um acervo próprio, e promovendo ciclos, seminários e cursos sobre o cinema brasileiro, em várias de suas unidades espalhadas pelo país3. Em 1986, três fatos marcam a produção cinematográfica brasileira. Primeiramente, a adoção do Plano Cruzado, em 27 de fevereiro de 1986, com o congelamento de preços de bens e serviços e a reforma monetária, derrubando provisoriamente a inflação; este plano acabou por possibilitar, ainda que num curto espaço de poucos meses, investimentos maiores na produção cultural, devido justamente ao congelamento de preços de bens e serviços e à desindexação da nova moeda (cruzado) em relação ao dólar. Em segundo lugar, a publicação da Política Nacional de Cinema, em edição especial do Diário Oficial da União, em março do mesmo ano. Previam-se, assim, investimentos na ordem de U$550 milhões a serem aplicados tanto na produção (onde o Estado aumentaria a sua participação), quanto na distribuição e exibição (linhas de crédito especiais para a modernização dos espaços exibidores); maior fiscalização em relação à arrecadação tributária incidente sobre filmes estrangeiros e ao cumprimento da reserva de mercado para o filme brasileiro; defesa dos interesses nacionais através da afirmação da produção cinematográfica (o “mandato social” dos cineastas brasileiros, caracterizado pela frase atribuída a Paulo Emílio Salles Gomes: “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”4); atribuição de um papel secundário à iniciativa privada; divisão da Embrafilme em dois setores: um setor comercial (produtores, exibidores e distribuidores) e outro cultural (curta metragistas, documentaristas, pesquisadores, cineclubes etc.). Consolidava-se, aqui, a construção de uma política cinematográfica que contemplava, em tese, os variados setores do cinema brasileiro. Em terceiro lugar, a promulgação da Lei Sarney de Incentivo à Cultura (Lei 7505, de 02 de julho de 1986), criando regras para o financiamento da produção cultural através da renúncia fiscal. Essa lei de incentivo à produção cultural, somada aos efeitos do Plano Cruzado, possibilitou, durante alguns meses, o crescimento dos investimentos na produção cinematográfica, Acompanhando a expansão desse setor de exibição alternativo, temos o surgimento de várias publicações voltadas para o cinema brasileiro e o debate político e estético, como os jornais Cine Imaginário e Tabu, no Rio de Janeiro, a Revista Cisco, da Universidade Federal de Goiás, o jornal Imagem e Movimento, da Federação Paulista de Cineclubes, dentre outros. Destacam-se, também, a revista Filme Cultura, produzida pela Embrafilme, que também editava o Jornal da Tela e os Cadernos de Crítica, e a Revista Cinemin, da Editora Brasil-América (EBAL), a qual, criada nos anos quarenta para acompanhar a difusão do cinema hollywoodiano, em sua nova edição, nos anos oitenta, irá abrir um espaço considerável para a produção nacional. 4 Sobre a polêmica frase e o debate que segue à mesma, cf. Assim falava Paulo Emílio? Maria do Rosário Caetano, BRASIL DE FATO, 03.set.2012. 3

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do que se aproveitou a Direção Geral da Embrafilme, na pessoa de Carlos Augusto Calil, para transformar os investimentos obtidos via Lei Sarney numa espécie de complemento aos parcos recursos recebidos pela Embrafilme para financiar a produção. Tal estratégia, no entanto, não fugiu aos efeitos perversos do Plano Cruzado e, após as eleições de 15 de novembro daquele ano, eclodiu uma grande crise, corroborada no meio cinematográfico com a substituição de Carlos Augusto Calil por Fernando Ghignone, político paranaense, visto que o diretor geral da Embrafilme havia se indisposto com o ministro da Cultura, Celso Furtado, justamente quanto à utilização dos recursos advindos da Lei Sarney (GATTI, 2007: 60-61). Com o fracasso do Plano Cruzado, deu-se o agravamento da crise econômica e a inflação, que parecia extinta, voltou aos seus patamares de dois dígitos mensais. Outros planos foram adotados na sucessão do Plano Cruzado, mas seus resultados foram temporários, gerando, inclusive, efeitos negativos que só foram corrigidos décadas depois. Com a crise, cresceram as pressões por uma maior liberalização da economia, menor intervenção do Estado e abertura do mercado aos produtos estrangeiros, bem como a desregulamentação de uma série de atividades econômicas e culturais. Um pouco na contramão do que vinha sendo exigido, é promulgada a Lei 7624, em 5 de novembro de 1987, a qual criava a Fundação Nacional Pró-Leitura, a Fundação Nacional de Artes Cênicas (Fundacen) e a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB). Reorganizando o setor cultural, principalmente no que dizia respeito ao incentivo à produção, o governo federal atendia em parte às demandas do setor cinematográfico expressas na Política Nacional de Cinema: a área cultural da Embrafilme ganhava status próprio, recebendo parcos 15% do orçamento destinado à área cinematográfica; os outros 85% continuariam com a Embrafilme, agora voltada exclusivamente à área comercial (produção, distribuição e exibição). Em tempos de crise, tais mudanças nada acrescentaram e, devido à necessidade de reconstruir estruturas para garantir o pleno funcionamento das recém-criadas fundações, aumentaram-se os gastos com a burocracia, desviando recursos que por muitas vezes poderiam atender às atividades-fim. Esse período, no entanto, não é marcado somente pela crise econômica ou pelas ingerências políticas do governo federal em relação à área cinematográfica. Assistimos nesse espaço de tempo de alguns anos, algo entre 1984 e 1988, a uma guinada importante no que diz respeito à produção cinematográfica brasileira: o eixo da produção, distribuição e exibição se consolida no estado de São Paulo; o estado do Rio de Janeiro assume uma posição secundária, distanciando-se cada vez mais do novo polo principal. Outras produções regionais se consolidam, destacando-se a produção do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, do Distrito Federal, da Bahia e de outros estados do Nordeste como Pernambuco e Ceará. Muito embora o setor de exibição não se recupere do fechamento de centenas de salas de cinema, ocorrido na primeira metade da década de oitenta, tal processo é estancado e, em várias cidades, ocorreu um processo de modernização, com a abertura de novas salas em espaços comerciais como shoppings centers. Esse processo foi sensível,

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muito embora o panorama de crise dominasse o cenário e servisse como uma cortina de fumaça à lenta mudança que então se desenrolava. A produção se diversificara e um número maior de cineastas estava colocando suas obras no mercado; muito embora ainda não pudesse concorrer em pé de igualdade com o produto estrangeiro, o filme brasileiro já ocupava boa parte das salas de cinema e alcançava um público relativo, obtendo um considerável sucesso. Nos anos 80, as transformações do cinema brasileiro emergiram de diferentes focos – São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro – mas o polo emblemático do novo cinema foi a produção paulista. Se é possível observar que um novo design se esboça no início da década, a partir de filmes como Eu te amo (Jabor, 1981), seu desenvolvimento mais orgânico e articulado numa produção diversificada se dá, para valer, em São Paulo, quando uma nova geração pratica uma cinefilia reconciliada com a tradição do “filme de mercado” sem os resíduos nacionalistas do “mercado é cultura” derivado do Cinema Novo. São realizados filmes cheios de citações nos moldes da própria produção norte-americana dos anos 80; é reformulado o diálogo com os gêneros da indústria e são descartadas as resistências aos dados de artificio e simulação implicados na linguagem do cinema, descartando-se de vez o “primado do real”, o perfil sociológico das preocupações. Alguns críticos associaram tal ênfase no “profissional para o mercado” à ideia do pós-moderno, em voga desde então, traço que, por outras vias, sinaliza o seu afastamento em face da tradição instalada pelo Cinema Novo. Diversificada em suas propostas, nem sempre restrita ao figurino desenhado acima (as diferenças são nítidas entre Suzana Amaral, Chico Botelho, Djalma Batista e Sergio Bianchi, por exemplo), a experiência paulista se empenhou no ajuste às novas condições de um Brasil onde a urbanização avança, mas o cinema se retrai, sendo precocemente atropelado pelo aguçamento da crise econômica e política do cinema brasileiro. (...). (XAVIER, 2001: 40-41). Advento da pós-modernidade ou ajuste do processo de modernização autoritária, desenvolvido nos anos setenta, o cinema brasileiro percorrer uma verdadeira montanha russa nos anos oitenta, passando da euforia à depressão, retornando à euforia e mergulhando, depois, na mais profunda depressão, outra vez. Entre o final de 1987, com a saída de Fernando Ghignone, e o início de 1990, a Embrafilme teve quatro diretores gerais; ao final do governo Sarney, encontravam-se à frente da empresa Moacir de Oliveira e Marco Altberg, os quais, conjuntamente, assinaram uma série de contratos e convênios comprometendo o orçamento da estatal por vários anos à frente; uma tentativa desesperada de forçar a continuidade do projeto de cinema que fora desenvolvido nos anos setenta e ganhara fôlego com a Política Nacional de Cinema, de 1986. Todo esse esforço, no entanto, seria inútil. Ao longo da década de 1980, as condições de produção, distribuição e exibição dos filmes havia se modificado profundamente. O grande investimento realizado por produtores

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norte-americanos no desenvolvimento de efeitos especiais que possibilitaram o lançamento de inúmeros filmes de ficção científica, terror ou simplesmente filmes de ação, acabou por consolidar uma nova faixa de consumo cultural, caracterizada por grandes produções, os blockbusters, que visavam públicos mais amplos e enfatizavam meramente o entretenimento. Por outro lado, a expansão da televisão e o surgimento do home vídeo acabaram por ampliar o próprio conceito de mercado do audiovisual, não mais restrito às salas de exibição (MATTA in MELEIRO, 2010: 44-45). A área estatal não conseguiu produzir a tempo uma estratégia de ocupação desses nichos de mercado ou mesmo de concorrência com os mesmos. Muito embora a Política Nacional de Cinema já tivesse previsto tais questões e tivesse oferecido propostas, ainda que tímidas, para as mesmas, não havia instrumentos nem recursos que possibilitassem a aplicação prática dessas propostas. A crise econômica contribuiu ainda mais para o desgaste dessa estratégia que unira produtores e Estado em torno de uma política de incentivo à produção e ocupação do mercado; a falta de recursos somada à difusão das ideias neoliberais fortaleciam as propostas de retirada da intervenção do Estado da área de produção cultural, fim dos subsídios e das políticas de incentivo que representavam gastos considerados supérfluos; tudo isso corroborou com a vitória de Fernando Collor de Mello nas eleições presidenciais de 1989. 3. DIANTE DO FIM, SEM HAPPY END Em março de 1990, logo após assumir, a presidência, Collor de Mello nomeou o cineasta Ipojuca Pontes para ministro da Cultura e este procedeu à extinção de praticamente todo o setor cultural do governo federal. A Embrafilme, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro foram extintos, seus recursos, patrimônio e contenciosos foram inventariados para posterior prestação de contas, seus contratos e convênios anulados; os recursos oriundos da tributação de filmes estrangeiros e outras receitas que cabiam à Embrafilme e à Fundação do Cinema Brasileiro foram apropriados pelo Ministério da Fazenda, desaparecendo no caixa único do governo federal. O Ministério da Cultura foi extinto sendo seu lugar ocupado por uma Secretaria de Cultura vinculada diretamente ao Gabinete da Presidência da República, composta por um Conselho Nacional de Política Cultural, um Departamento de Produção Cultural e outro de Cooperação e Difusão Cultural; todos os Institutos e Fundações anteriormente existentes foram extintos e, através da Lei nº. 8029, de 12 de abril de 1990, foram criados o Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC) e o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC), concentrando as atividades referentes às artes em geral, e o Instituto de Cinema, o qual, praticamente, administrava o que sobrou da área cultural cinematográfica objeto da extinta Fundação do Cinema Brasileiro (CALABRE, 2009: 107-110); quanto à produção, distribuição e exibição de filmes, ficaram restritas à ação do mercado. (...) A operação de desmonte da atividade cinematográfica atingiu a capacidade de produção e competição do cinema brasileiro no seu próprio

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mercado. Nem mesmo foram preservados os mecanismos de controle estatístico por parte do Estado. De uma situação de estabelecimento confortável frente ao mercado o cinema reduziu-se novamente a uma atividade periférica, recomeçando do zero. A produção nacional, que atingira nos picos dos anos 1970 mais de 100 filmes por ano, com uma ocupação de mercado da faixa de um terço, vai voltar a níveis insignificantes, e nesse vácuo permitir a reconquista desse terreno pelo cinema americano. O cinema brasileiro perdeu suas agências financiadoras, sua capacidade de produção e de distribuição e finalmente seu público, embora isto se tenha dado também por conta da modernização tecnológica (TV a cores e home vídeo), que mudou radicalmente o panorama do mercado de cinema. (AMANCIO, 2007: 180-181). Na gestão Ipojuca Pontes, de março de 1990 a março de 1991, um cineasta casado com uma atriz de cinema e teatro, Tereza Rachel, a destruição da área cinematográfica oficial foi total. No período, a produção de longas metragens nacionais praticamente desapareceu, os títulos brasileiros caíram de 25% para 10% dos vídeos disponíveis em locadoras; a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros caiu para 70 dias ao ano; os tributos cobrados sobre filmes estrangeiros foram revogados; com o fim do Concine, a normatização dos setores de distribuição e exibição de filmes foi anulada e a fiscalização extinta. No governo Itamar Franco, após um rápido contencioso judicial, promovido por empresários do setor que se consideravam prejudicados pelas medidas tomadas pelo governo Collor, foi publicado o Decreto nº. 575, de 23 de junho de 1993, que consolidou a liquidação da empresa e transferiu seus bens e haveres para o Ministério da Cultura. Para tentar corrigir distorções e possibilitar um relativo apoio às produções culturais, para as quais o mercado cultural não oferecia espaço, foi aprovada em 23 de dezembro de 1991, a Lei nº.8313, com o título de Programa Nacional de Incentivo à Cultura, sendo conhecido como Lei Rouanet, por conter dispositivos de renúncia fiscal para investimentos na área cultural e como uma referência ao secretário de Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, que havia sido empossado em março de 1991, em substituição ao anterior, Ipojuca Pontes (CALABRE, 2009: 111). Esta lei acabou por se tornar uma espécie de tábua de salvação para a produção cinematográfica nacional, pois muitos produtores e cineastas se valeram dela para tentar viabilizar suas produções, já iniciadas ou à espera de financiamento; de certa forma, é essa lei que servirá como suporte à chamada “retomada” da produção cinematográfica brasileira que terá lugar a partir de 1993. A íntima relação entre o Estado e a produção cinematográfica, no entanto, jamais seria retomada. Com o governo Collor de Mello, encerrou-se, de forma melancólica, um período de políticas de incentivo à produção, distribuição e exibição, bem como de relativa ocupação do mercado pelo filme brasileiro; encerrou-se também um período de um rico debate político e cultural, um período em que as políticas públicas que estavam sendo formuladas para a área cultural ganhavam espaço na mídia, produziam discussões acaloradas, promoviam fóruns, semi-

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nários e reuniões sem fim, marcadas por interesses variados, mas com igual empenho das várias partes envolvidas. Tudo isso consolidava uma suprema pretensão, de todos os participantes, de que discutir cinema se constituíra num alicerce de grande importância para a consolidação do processo democrático; uma concepção do intelectual como intérprete da nação, observador arguto de suas carências e construtor perfeito de suas fantasias e miragens; tudo isso se desenrolava como se pairasse no ar, e invadisse as mentes e corações, a consciência de que se estava construindo um novo país.

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