ANAIS - VI SEVFALE 2006 Os que falam e os que calam em Rawet ANNA C S CHAVES.pdf

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Os que falam e os que calam: palavras e silêncios no conto “O Profeta”, de Samuel Rawet

Anna Cecília Santos Chaves1 (Faculdade de Direito/UFMG e Núcleo de Estudos Judaicos da FALE/UFMG)

“Aqueles que experimentaram o encarceramento (e, muito mais em geral, todos os indivíduos que atravessaram experiências severas) se dividem em duas categorias bem distintas, com poucas gradações intermediárias: os que calam e os que falam”. Assim Primo Levi dá início ao capítulo “Estereótipos”, de sua célebre obra Os afogados e os sobreviventes.2 A partir dessas duas posturas comumente adotadas pelas vítimas de um evento traumático que se propõe, no presente trabalho, uma análise do conto “O Profeta”, de Samuel Rawet, integrante da coletânea Contos do Imigrante3, publicada em 1956. Cunhou-se a denominação “Literatura de Testemunho” para designar os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, no período da II Guerra Mundial. De acordo com Márcio Seligmann-Silva, entretanto, é necessário “manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um ‘martírio’ pode testemunhar; todos podem. E, por outro lado, o ‘real’ é – em certo sentindo, e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo - sempre traumático. Pensar sobre a literatura de testemunho implica repensar a nossa visão da História – do fato histórico.”4 O conto “O Profeta”, de Samuel Rawet, a partir dessa perspectiva, mais do que uma obra literária, é um testemunho histórico, que corajosa e 1

Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. Orientadora: Profa. Dra. Lyslei de Souza Nascimento, FALE/UFMG. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 127. 3 RAWET, Samuel. Contos do imigrante. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. 4 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura do Trauma. Cult – Revista Brasileira de Literatura. Dossiê Literatura de Testemunho. Ano II, nº 23. São Paulo: Lemos Editorial e Gráficos Ltda., junho de 1999, p. 42-63. 2

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sensivelmente ousa adentrar os meandros psicológicos de um sobrevivente da Shoah5 e sua difícil e melancólica tentativa de adaptação em um novo meio social, após a Guerra. Um traço reiterado nesses textos literários é a “tensão entre a necessidade de narrar a experiência da barbárie e a percepção da insuficiência da linguagem diante do horror – redimensionando a relação entre literatura e realidade, salientando o caráter traumático de toda a experiência e equação pós-moderna que transforma a literatura em ficção.”6 Tal conflito recebe de Seligmann-Silva as definições “efeito transbordante” e “efeito de choque”, entendidos, pelo crítico, como a impossibilidade simbolizar o evento traumático. No conto “O Profeta”, um velho sobrevivente da Shoah, recém-chegado às terras brasileiras, é recebido pela família do irmão, já instalada e aparentemente adaptada ao ambiente social da cidade do Rio de Janeiro. De início, a chegada da personagem vem envolta, naturalmente, da atmosfera de “novidade”, não apenas por sua trajetória de vida, tão distinta dos demais, como também por sua vestimenta (capotão negro além dos joelhos, contrastando com a longa barba branca, que recobria o rosto de pele ainda mais alva), que remontava à Europa Oriental da Idade Média, figurino tão descompassado com os novos costumes da família assimilada. Mas, o “Profeta”, como viria a ser apelidado mais tarde, silencia frente aos questionamentos. Às indagações dos familiares, respondia com meias-palavras ou silêncios, evitando reavivar, diante do abismo que se punha entre o cenário de horror do passado e o conforto que se lhe apresentava no presente, as lembranças que ainda lhe doíam e perturbavam a alma: O que lhe ia por dentro seria impossível transmitir nesse contato superficial que iniciava agora. Deduziu que seus silêncios eram constrangedores. Os

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Termo hebraico que significa “catástrofe”, mais adequado para conceituar o crime de genocídio perpetrado contra o povo judeu, durante a II Guerra Mundial, do que “Holocausto”, palavra que vem imbuída da conotação de sacrifício e oferenda à divindade, segunda à Bíblia. 6 SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 40.

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silêncios que se sucediam ao questionário sobre si mesmo, sobre o que de mais terrível experimentara. Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência do horror ante uma mesa bem-posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas?7

Observam-se na personagem, nesse primeiro momento, contornos psicológicos perceptíveis de forma recorrente nos sobreviventes da Shoah, depreendidos de seus testemunhos orais e escritos dos eventos fatídicos vividos durante a Guerra. Quase que unanimemente, eles descrevem a dimensão de sofrimento que o relato lhes representa, por colocá-los outra vez em “confronto com a catástrofe, com a ferida aberta pelo trauma.”8 No entanto, o silêncio gerado pelo bloqueio da dor entra em choque com o dever da memória, entendido como a necessidade de narrar a experiência, seja pela obrigação moral da denúncia, ou como forma de tributo àqueles que pereceram, ou, simplesmente, pela inelutável precisão de compartilhar o peso do sofrimento, numa tentativa de libertação do eco do passado no presente e de encontro de um modus vivendi na sociedade, ou seja, de reconstrução da própria vida no novo meio. Cabe também ressaltar, quando se aborda a questão do dever da memória, que essa é uma característica fundamental da tradição judaica, nos dizeres de Ethel Mizrahy, “na tradição judaica, o imperativo de lembrar ou de não esquecer foi assegurado a despeito de qualquer historiografia. A tradição garante que a memória flua através de dois canais: o ritual e a narrativa. No judaísmo, o ritual e a narrativa que estão indissoluvelmente embricados.”9 Não obstante, no conto, a personagem central vai de encontro a uma dupla barreira comunicativa, sendo que uma surge com a total falta de afinidade com o idioma estrangeiro e a outra com a “percepção tanto da insuficiência da linguagem diante de fatos (inenarráveis) 7

RAWET, 1998, p. 25. SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 45. 9 MIZRAHY, Ethel Cuperschmid. Labirintos da memória: narrativas de sobreviventes. In: ENCONTRO NACIONAL DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO, 3, 2003, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2004, p. 83-84. 8

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como também – e com um sentido muito mais trágico – a percepção do caráter inimaginável dos mesmos e da sua conseqüente inverossimilhança.”10. “Esquecer o acontecido, nunca. Mas como amesquinhá-lo, tirar-lhe a essência de horror ante uma mesa bem-posta, ou um chá tomado entre finas almofadas e macias poltronas?”11. Esse trecho do conto pode ser entendido como uma tentativa da personagem de “redução”, de “empobrecimento” dos fatos, para fazê-los caber nas palavras e no imaginário do ouvinte. Acerca dessa questão, Valéria de Marco constrói uma interessante reflexão, tecida a partir de uma frase de Primo Levi, problematizando a capacidade de reconstituição dos fatos por meio dos relatos testemunhais dos sobreviventes: “Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas.'' (LEVI, 1990, p.47)12. Freqüentemente, a frase é extraída de seu contexto para criar uma hierarquia de autoridade entre testemunhos. No entanto, a afirmação de Levi não tem esse objetivo. Ela é uma constatação da existência de um limite intransponível de seu próprio relato, pois, no mesmo texto, observa o autor que as ''testemunhas integrais'', as que vivenciaram o processo inteiro do extermínio nazista, os que morreram nas câmaras de gás e fornos crematórios, não voltaram para narrar. A frase demarca uma perspectiva da narração e ancora sua origem no vivido. E, reiteradamente, considera Levi que, além de responder a uma necessidade interior e a um movimento com o objetivo de evitar a repetição daquela barbárie, relatar sua vivência é uma forma de dar notícia dos que não puderam falar, caso do menino Hurbinek, em A trégua: ''Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras.'' (LEVI, 1997, p. 31).13

Logo de início, o narrador confronta as expectativas do “Profeta” com a realidade encontrada: “Supunha encontrar aquém-mar o conforto dos que como ele haviam sofrido, mas que o acaso pusera, marginalmente, a salvo do pior. E conscientes disso partilhariam com ele em humildade o encontro.”14 A esperança da compreensão fraternal que se manifestaria de forma espontânea, como conseqüência natural da cumplicidade originada dos laços ancestrais

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SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 40. RAWET, 1998, p 25. 12 A autora faz referência à edição de 1990 da obra Os afogados e os sobreviventes, de Primo Levi. 13 MARCO, Valéria De. Velódromo de invierno: horror sem fronteiras. In: FANJUL, A; OLMOS, A.C; GONZÁLEZ, M. M.. (Org.). Hispanismo 2002. São Paulo: Humanitas, 2004, v. II, p. 296-302. 14 RAWET,1998, p. 25. 11

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comuns, é rapidamente frustrada. O narrador informa ao leitor, que, em pouco tempo, a personagem se dá conta de que havia incorrido em um “ligeiro engano.”15 Observa-se, pois, que somada à angústia da impossibilidade de representação verbal da experiência vivida, há também a lacuna resultante da total falta de afinidade entre as trajetórias de vida do sobrevivente e aquela de seus familiares, o que anula as possibilidades de uma interseção comunicativa que permita ao grupo uma capacidade de entendimento mínimo da dimensão do horror por ele vivenciado durante o período da Guerra: “Concluiu ser impossível a afinidade, pois as experiências eram opostas. A sua, amarga. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempo!? Deus, meu Deus!”16 No prefácio de Os Afogados e os Sobreviventes, Primo Levi expressa que o temor de narrar sem

ser escutado, ainda nos campos, “atormentava sistematicamente os

sobreviventes”:17 Quase todos os sobreviventes, oralmente ou em suas memórias escritas, recordam um sonho muitas vezes recorrente nas noites de confinamento, variados nos particulares mas único na substância: o de terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente. (...) é importante ressaltar como ambas as partes, as vítimas e os opressores, tinham viva a consciência do absurdo e, portanto, da não credibilidade daquilo que ocorria nos Lager; e, podemos aqui acrescentar, não só nos Lager mas nos guetos, nas retaguardas da frente original, nos postos da polícia, nos hospitais para os deficientes mentais.18

Outra comum característica psicológica das vítimas da Shoah é o encobrimento dos fatos como conseqüência da vergonha das humilhações sofridas e do sentimento de culpa pela sobrevivência. Sobre este último ponto, Primo Levi, em um de seus relatos testemunhais,

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RAWET, 1998, p. 25. RAWET, 1998, p. 29. 17 KIRSCHBAUM, Saul. Samuel Rawet: Profeta da Alteridade. 2000. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo 2000, p. 44. 18 LEVI, 2004, p. 10. 16

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chega a expressar “só os piores sobreviveram”, numa alusão ao fato de que aqueles que permaneceram cegamente fiéis aos seus princípios morais e/ou religiosos, sem ceder ao desespero da fome e da luta pela sobrevivência, inexoravelmente tiveram suas vidas extirpadas durante o processo de lenta degradação sofrido nos campos e guetos. O processo de exclusão da personagem central tem uma continuidade gradativa. Não tardou até que lhe fosse atribuído o apelido de “Profeta”, cunhado pelo genro do irmão, que fazia acompanhar a frase sempre de um riso de escárnio. Observador, o sobrevivente notara que a palavra, cujo significado ainda não compreendia, “nunca andava sem um olhar irônico, uma ruga de riso.”19 Com isso, sentia acentuado o equívoco observado logo no primeiro dia, ganhava força a “sensação de que o mundo deles era bem outro, de que não participaram em nada do que fora (para ele) a noite horrível.”20

Em sua análise do conto, Kirschbaum

acrescenta que a personagem “compreende que se tornara para aquelas pessoas, com a barba branca e o capotão negro, um ícone do arcaísmo, um estereótipo.”21 Curioso também observar que o epíteto “Profeta” é dotado de carga semântica completamente avessa ao que vivencia o seu titular. “Professar”, conforme expresso no dicionário,22 quer dizer “predizer”, “vaticinar”, significados que estão diretamente ligados à idéia de futuro. O “Profeta” de Rawet, ao contrário, é um sobrevivente de uma experiência traumática. O trauma, por si, “determina a repetição e a constante ‘posterioridade’, ou seja, a volta aprés-coup da cena.”23 Em outras palavras, os fantasmas do passado tem constantes aparições no presente na vida da personagem central do conto, seja na dor da rememoração da Shoah, ou na “visualização” do evento em ocasiões inesperadas: “formas na penumbra do quarto (onde dormia com o neto) compunham cenas que não esperava rever. Madrugadas 19

RAWET, 1998, p. 26. RAWET, 1998, p. 26. 21 KIRSCHBAUM, 2000, p. 41. 22 Dicionário Priberam: Língua Portuguesa On-Line. Disponível em: 23 SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 43. 20

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horríveis e ossadas. Rostos de angústia e preces evolando das cinzas humanas. As feições da mulher apertando o xale no último instante.”24 Assim, dia após dia, a personagem, a partir do núcleo familiar, adentra um processo de marginalização que consolida sua condição de isolamento. Até mesmo no ambiente da sinagoga, sentia-se sem lugar. Contrastava com a displicência da maioria a seriedade com que ele expressava sua fé e guardava as tradições ancestrais: “fechava os olhos às intrigas e se punha de lado, sempre de lado (...) E nisso tudo pesava-lhe a solidão, o estado de espírito que não encontra afinidade.”25 Uma vez consciente de sua condição marginal, num segundo momento, na aflita tentativa de inserção naquele meio, a personagem aceitou se impor um sofrimento que anteriormente tentara evitar, “principiou a narrar o que havia negado antes.”26 Aqui tem início uma tentativa da personagem de re-humanizar-se. Para ela, torna-se pungente a necessidade de ganhar voz, de relacionar-se com os membros do grupo social. E, somado ao desejo de re-aquisição da humanidade perdida, há o imperativo de denunciar a vivência do horror, de compartilhar a dor, de manter viva a tradição da memória. Mizrahy tece a seguinte reflexão: “Quem testemunha um trauma tenta superá-lo, procura deixar de ser esmagado pela insensibilidade e pela passividade, reata práticas sociais, adquire voz.”27 Também nesse contexto, o “Profeta” atua como uma metonímia dos sobreviventes da Shoah. Após um longo período de resistência à memória, surge o testemunho. Esse lapso temporal entre o evento traumático e o início das narrativas, do mesmo modo, encontra substrato na realidade da vida de muitas vítimas do nazismo, como é o caso, por exemplo, do

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RAWET, 1998, p. 29. RAWET,1998, p. 29. 26 RAWET, 1998, p. 26. 27 MIZRAHY, 2005, p. 85. 25

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escritor Elie Wiesel, cuja trajetória biográfica aponta um hiato de 10 anos entre sua libertação de Auschwitz e seu primeiro relato testemunhal, A noite.28 Não obstante, a curiosidade inicial da família havia arrefecido. Por condescendência, alguns lhe ouviram contar as histórias da Shoah, mas, para a personagem que narrava os terríveis fatos, o significado daquelas palavras não os atingia, “não teriam ouvido e visto o bastante para também se horrorizarem?”29 No máximo, alguma emoção superficial despontava vez ou outra, mas era passageira, rapidamente esquecível. A verdadeira dimensão do horror era-lhes inalcançável, refletia. Acerca desse bloqueio comunicativo, Piero Stefani escreve em uma de suas obras, “a característica que une todas as testemunhas da Shoá é a consciência de que sua palavra não é bastante ouvida ou que permanece totalmente sem ser escutada”.30 Expandindo a observação do núcleo familiar a um nível macroscópico, oportuna se faz a reflexão complementar de Mizrahy: Nas sociedades modernas, a prática de narrar é cada vez mais rara. Transmitir experiências aos ouvintes ou dar conselhos pressupõe uma linguagem comum entre o narrador e o ouvinte. Ora, além do distanciamento temporal das gerações, há o distanciamento entre as pessoas, cada uma vivendo no seu egoísmo e individualidade, preocupada apenas em resolver seus problemas imediatos. O mundo moderno é altamente utilitarista (...) Tradição não é um fator de peso numa sociedade em que o novo é um valor extremo.31

A impossibilidade de tradução do que vivera na Guerra, somada às censuras dissimuladas dos familiares, levaram a personagem, num terceiro momento, a um novo e definitivo recolhimento ao silêncio: “Calou. E mais que isso, emudeceu.”32

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WIESEL, Elie. A noite. Trad. Irene Ernest Dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. RAWET,1998, p. 25. 30 STEFANI, Piero. Citado por MIZRAHY, 2005, p. 88. 31 MIZRAHY, 2005, p. 62. 32 RAWET, 1998, p. 28. 29

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Berta Waldman descreve a técnica narrativa de Rawet como aquela em que “um narrador em terceira pessoa dirige a cena literária e assume a palavra, ao mesmo tempo em que os protagonistas permanecem em silêncio, armando-se assim um emaranhado de relações cujos sentidos têm que ser buscados no jogo entre o contar e o calar.”33 Kirschbaum, num exame que demonstra grande sensibilidade ao texto, acrescenta: O autor não pode deixá-lo falar, para não falsear a situação que está descrevendo. Isto coloca um problema estrutural para a narrativa: Como dar voz a um personagem silenciado, que não pode se expressar? Como comunicar seus estados de espírito ao leitor? A exclusão sofrida pelo personagem encontra seu correlativo no próprio texto, refletindo-se na escolha da estratégia narrativa: o autor recorre ao discurso indireto livre e se limita a registrar o discurso interior do personagem: O personagem não se manifesta diretamente, seu silêncio ecoa no discurso do narrador.

Ganha destaque a questão, talvez central no conto em análise, da reconstituição da experiência psicológica do campo de concentração no meio social para o qual a personagem se transfere após a Guerra. A exclusão por ela sofrida se dá de maneira gradativa, porém devastadora, e não somente no âmbito da sociedade de maioria não-judia, como também “em nível microscópico, no seio da família, da comunidade religiosa.”34 Partindo desse entendimento, Kirschbaum elabora um interessante exame do valor semiótico da alcunha, interpretando o papel por ela exercido no processo de marginalização sofrido pelo sobrevivente: Se a enunciação do genro tem pretensões ao consenso social, devemos concluir que o epíteto “profeta” tem aproximadamente o mesmo valor ideológico para todo aquele grupo. O que isso indica? Que estamos face a um grupo social que percebe a si mesmo (ou se quer) tão distanciado de um judaísmo mais “tradicional” que pode erigir o signo “profeta” em ícone de tudo aquilo de que o grupo “se livrou” (ou imagina ter se livrado). De forma paradoxal, os procedimentos racistas utilizados na propaganda nazista para fomentar sentimentos anti-semitas através da formação de estereótipos, dá ênfase em isotopias para discriminar aqueles dentre os seus que ainda não se assimilaram, que surgem como espectros de um passado que se quer

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WALDMAN, Berta. Citada por OLIVEIRA, Leopoldo O. C. de. Literatura brasileira e imigração judaica: memória da identidade ou identidade através da memória?. In: ENCONTRO NACIONAL DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO, 3, 2003, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2004, p. 115. 34 KIRSCHBAUM, 2000, p. 43.

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esquecer. É o fenômeno bem conhecido da alienação: o grupo oprimido absorve com voracidade os valores impostos pelo opressor; freqüentemente agindo de forma ainda mais opressiva.35

Com o passar do tempo, a personagem parece concluir que a “noite horrível”36 lhe havia aniquilado completamente a identidade. A tentativa de reconstruí-la, portanto, dentro daquele grupo, parecia-lhe um esforço inútil. O processo de despersonificação que sofrera fora tão visceral que a personagem central do conto sequer recebe um nome do narrador, sendo apenas identificado pelo epíteto que lhe deram, “Profeta”. Como outrora havia sido apontado pelo rótulo “judeu”, depois reduzido ao signo de uma estrela amarela pregada no peito, e, mais tarde, se tornado nada mais do que uma seqüência de números tatuada no braço. A Shoah lhe havia despido de seu lugar no mundo, de um sentido de vida, de semelhantes. A Guerra lhe havia extirpado cada um dos mínimo elementos que constituíam sua humanidade. Conforme analisa Kirschbaum, lançando seu foco sobre a obra É isto um homem?37, de Primo Levi: Primo Levi observou que nos campos de concentração o extermínio físico praticado pelos nazistas era precedido de um extermínio psíquico, de uma aniquilação do indivíduo, de uma despersonificação: as pessoas são reduzidas à condição de peças, perdem seus nomes próprios passando a ser identificadas por números; são desnudadas e depois vestidas com bonés e túnicas ridículas; são submetidos a um ritual absurdo de imobilidade e de gestos automáticos, sem sentido38.

À solidão do passado ia se sobrepondo, para a personagem, a solidão do presente, até o limite do intolerável, que viria a desembocar no gesto extremado da tentativa de regresso à velha Europa. Assim, o “Profeta” aproveita-se da momentânea ausência da família para, sem planos, apoio ou recursos financeiros, ir “em busca da companhia de semelhantes.”39

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KIRSCHBAUM, 2000. p. 48. RAWET, 1998, p. 26. 37 LEVI, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 38 KIRSCHBAUM, 2000, p. 47. 39 RAWET, 1998, p. 30. 36

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Estrangeiro à família, ao Brasil e de si mesmo, a personagem tenta reencontrar-se nesse empreendimento ilusório. Kirschbaum complementa: O grupo social, que Rawet parece constituir em representante simbólico da comunidade, tendo bem aprendido a lição do opressor, é impiedoso. Procede à destruição da identidade do protagonista com espantosa eficiência. Recusando-se a dar ouvidos às suas narrativas do horror vivido na Europa, ato de narrar que poderia contribuir para restituir-lhe um mínimo de auto-respeito e senso de dignidade, realiza a desconstrução semiótica do corpo na dimensão da fala. Zombando de sua figura arcaica e gargalhando à vista do capote suspenso na cadeira, destrói sua autoimagem, atingindo as dimensões cinésica e proxêmica40. A mensagem do grupo é muito clara: assimile-se, seja exatamente como nós, abandone tudo o que, no seu passado, representava algum valor; ou então, vá em busca de semelhantes, aqui não há lugar para você.

Embora pensado com antecedência, uma vez no navio, o gesto lhe parecia inconseqüente e infantil. Privado da capacidade de comunicação na terra estrangeira, vê o passadiço se levantar sem conseguir expressar, a não ser num murmúrio para si mesmo, seu arrependimento. Em seu íntimo, ecoava a pergunta “voltar, para onde?”. Se de sua antiga terra nada mais restara do que ruínas. Nada mais do que as ruínas de uma história, de uma cidade, de um povo, de uma língua. Nada mais do que as ruínas do homem que fora, outrora.

Referências bibliográficas BAZZO, Ezio Flavio. Rapsódia a Samuel Rawet. Brasília: Anti-Editor Publicadora, 1997. Dicionário

Priberam:

Língua

Portuguesa

On-Line.

Disponível

em:

GUZ, Grace Zicker. Entre lá e cá: a literatura da Shoá. In: ENCONTRO NACIONAL DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO, 3, 2003, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2004, p. 281-284.

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Kirschbaum se refere aos conceitos cunhados por Izidoro Blinkstein, trabalhados no ensaio “Semiótica do corpo no universo concentracionário de Primo Levi”, em Corpo e Sentido. Campinas: Editora Unesp: 1996, p. 190. Para Blinkstein, o procedimento de despersonificação pode ser descrito como uma “desconstrução semiótica do corpo, nas suas três dimensões: a da fala, a cinésica e a proxêmica.”

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IGEL, Regina. Imigrantes Judeus/Escritores Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997. KIRSCHBAUM, Saul. Samuel Rawet: Profeta da Alteridade. 2000. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004. __________. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MARCO, Valéria De. Velódromo de invierno: horror sem fronteiras. In: FANJUL, A; OLMOS, A.C; GONZÁLEZ, M. M.. (Org.). Hispanismo 2002. São Paulo: Humanitas, 2004, v. II, p. 296-302. MIZRAHY, Ethel Cuperschmid. Muito além das cinzas: narrativas de Auschwitz.2005. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte. MIZRAHY, Ethel Cuperschmid. Labirintos da memória: narrativas de sobreviventes. In: ENCONTRO NACIONAL DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO, 3, 2003, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2004, p. 121-132. OLIVEIRA, Leopoldo O. C. de. Literatura brasileira e imigração judaica: memória da identidade ou identidade através da memória?. In: ENCONTRO NACIONAL DO ARQUIVO HISTÓRICO JUDAICO BRASILEIRO, 3, 2003, Ouro Preto. Anais... Belo Horizonte: Instituto Histórico Israelita Mineiro, 2004, p. 111-120. RAWET, Samuel. Contos do imigrante. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. SEFFRIN, André (Org.). Samuel Rawet: contos e novelas reunidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura do Trauma. Cult – Revista Brasileira de Literatura. Dossiê Literatura de Testemunho. Ano II, nº 23. São Paulo: Lemos Editorial e Gráficos Ltda., junho de 1999, p. 42-63. WIESEL, Elie. A noite. Trad. Irene Ernest Dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

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