Analisar o parlêtre em tempos de intolerância

July 23, 2017 | Autor: Lucíola Macêdo | Categoria: Psicoanálisis, Psicanálise
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Analisar o parlêtre em tempos de intolerância1 Lucíola Freitas de Macêdo Há algumas semanas recebi, junto com alguns colegas de diferentes Seções da EBP, um convite feito por Paula Borsói e Frederico Feu, editores do EBP – Debates, para falar sobre a intolerância, e mais precisamente, como ela tem se manifestado em minha prática clínica. Naquele momento já andava as voltas com o tema de trabalho da conversação do ENAPOL, “A biopolítica e as novas segregações”, e coincidentemente encaminhava o debate inicial sobre o tema seguindo os rastros da intolerância, essa que tem estado no centro de inúmeros episódios, alguns deles trágicos, a atravessar o cotidiano da cena social e política brasileira e mundial. Dois deles soam particularmente inquietantes: a polarização ocorrida nas últimas eleições no Brasil e o atentado ao Charlie Hebdo. Uma questão colocada por Eliane Brum em recente artigo publicado no jornal El País se atualiza uma e outra vez, e não cessa de iterar, tal como podemos notar em uma infindável sequência de acontecimentos: em que momento a opinião, a ação e/ou as escolhas do outro, do qual divergimos se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? A pergunta pela segregação posta pelo EBP-Debates em consonância com o artigo de Eliane Brum convocam, por sua vez, o percurso realizado por Éric Laurent em texto “O racismo 2.0” publicado no Lacan Cotidiano n. 371: ao racismo turbinado de nosso século, acredito que corresponda uma nova modalidade de intolerância. Esboçarei a seguir algumas de suas coordenadas, nesta breve contribuição ao debate. Partamos das mutações da biopolítica: um dos pontos críticos, só para citar um entre inúmeros exemplos, está escrito em alto e bom tom no British Medical Journal, quando em 2003 publica um editorial afirmando que o conceito de dignidade é um conceito absolutamente inútil em ética médica (Macklin, 2003). Em seu lugar, propõe as noções de utilidade e de eficácia em se atingir objetivos. Mas quem dita os objetivos? O mercado, o grande soberano dos tempos que correm. Nesta perspectiva, que alguém esteja vivo ou morto, será irrelevante, já que o corpo humano, morto ou vivo, valerá unicamente na medida de sua utilidade (Tealdi, 2014). Eis o fértil terreno, adubado pela festa dos protocolos, a normatização das práticas de saúde, e seu brado retumbante ao proclamar o fim da clínica. Quando Jacques-Alain Miller expressa, em “O amor pela polícia”, a sua estupefação com o fervor que a população parisiense devotou à polícia francesa por ocasião do atentado ao Charlie Hebdo, e com o amor do povo francês pelas forças de repressão naqueles dias, indagava-se também se aquele amor duraria, contando para tanto com o tempo lógico, como ferramenta capaz de elucidar, em um futuro próximo, a opacidade em jogo: o momento de concluir estaria logo adiante. Li o texto com especial atenção, seguindo-o linha a linha. Mas ao final, uma questão me perturbava: será que haverá momento de concluir? Ou apenas uma profusão infinita de instantes de ver? Já não se fala mais em Amarildo e Charlie também já passou, como um furacão revolvendo as redes sociais. Depois veio o ataque de Copenhague. E outros virão. As 1

Contribuição para o debate preparatório ao XX Congresso dos Membros da Escola Brasileira de Psicanálise: Analisar o parlêtre, como bem dizê-lo? Realizado em Salvador-BA de 10 a 12 de abril de 2015.

notícias. A comoção passageira. E nada de tempo de compreender. Nem de momento de concluir. Em lugar da tríade, o curto circuito do tempo diluído no caldo da sabedoria morna e monótona dos protocolos. Ao final de tudo, um número a mais para engordar as estatísticas. E é só. Os recentes acontecimentos, do atentado ao Charlie à Chacina do Cabula, parecem apontar para uma espécie de implosão do tempo lógico. Mas o que isso tem a ver com a clínica dos praticantes da psicanálise? Os efeitos não apenas chegam à clínica, mas a perpassam. Nas instituições, nos consultórios, nas ruas, através do recurso cada vez mais comum às passagens ao ato como tentativas de haver-se com aquilo que não se compreende, ou como modo de defesa frente a algo vivido como insuportável. O simbólico parece rarefeito, quando não, inoperante, o que sugere uma primazia do eixo imaginário em conexão direta com o real; corriqueiras tem sido, também, as saídas pela agressividade e o ódio ao semelhante como moedas de troca frente aos choques dos gozos, a esgarçar o tecido social; é neste estado de coisas que, não raro, se descortina uma vontade imperativa de destruição daquele que encarna o gozo rejeitado. Outro capítulo a ser investigado é aquele da intolerância ao discurso do inconsciente, e mesmo, ao discurso analítico, e o manejo preciso que a clínica exige do praticante. Nota-se uma primazia da mostração em detrimento do exercício de elaboração e de implicação subjetiva, o que tem consequências para a vida, e portanto, para e clínica, e também, quanto às formas de constituição e expressão dos sintomas. Como bem ressalta Cesar Skaf no Um por Um n.222, o corpo funciona sozinho, não há ser no corpo. Não há ser, mas existe o acontecimento. Acontecimentos de corpo e suas marcas de gozo. Minha hipótese é que tais marcas de gozo comportam um ponto de foraclusão para todo e qualquer sujeito, vindo a funcionar tal qual um paralelo a atravessar a verticalidade da clínica estrutural, aproximando entre si, neste exato ponto, as clássicas estruturas clínicas, antes absolutamente separadas pelo bastião do Nome do Pai. Arriscaria a dizer, então, que a clínica do falasser é um clínica do acontecimento de corpo, de sua localização e nomeação. E assim, onde se apresentará a intolerância ao discurso analítico, e mesmo, ao inconsciente, lê-se as marcas da não relação, dos pontos de exterioridade ao simbólico, as marcas de gozo aí fixadas; e inventa-se, com o recurso à palavra (e não menos, aos silêncios), uma arte de manejar lacunas; e uma arte de extrair do lacunar, nomes, nomeações. Estava às voltas com tais questões quando “Vítima ou vitória”, agudo texto de Antoni Vicens, veio em minha ajuda, levando-me a pensar o quanto as novas expressões da segregação e da intolerância correspondem também a uma eclosão inaudita de respostas e de posições vitimizantes. Vicens relembra, em seu texto, as coordenadas da vitimização universal dos estoicos ao cristianismo, de Rousseau à ética da psicanálise, da qual no frigir dos ovos, se esperaria encontrar sujeitos livres de toda e qualquer posição vitimizante. Na “religião civil” da sociedade ideal de Rousseau, é próprio ao sentido requerer uma vítima; assim como é próprio das religiões se fundarem sobre sacrifícios. Mas não há sociedade ideal. Nem tampouco há clínica ideal. Em psicanálise, convém separar a vítima de seu sentimento de culpa, “esse véu negro a recobrir o real da condição de vítima”: “retirado o véu, somos todos vítimas, mas a ética da psicanálise se funda sobre a possibilidade de construir sob tal posição, uma dignidade que não é devedora de sacrifícios” (Vicens, 2014). Diferentemente do que preconiza o editorial do British Medical Journal ao descartar sumariamente a dignidade; ou as religiões, onde a dignidade se engrandece e engorda tanto mais, quanto maiores e mais penosos forem os

sacrifícios feitos em seu nome, frente à intolerância reinante, a psicanálise aposta, ainda, na frágil (e inútil!) dingdade da palavra. Referências: BRUM, E. “A boçalidade do mal”. El País/ Opinião, 2 de março de 2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/02/opinion/1425304702_871738.html MILLER, J-A. “O amor pela polícia”. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2015/01/jacques-alain-miller-lamour-de-la.html LACAN, Seminário7, a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. LAURENT, E. “Racismo 2.0”. In: Lacan Cotidiano n.371. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html MACKLIN, R. British Medical Journal, vol. 237, 20 dec. 2003, p. 1419-1420. SKAF, C. “Analisar o parlêtre: uma interpretação que é exterior ao saber”. In: Um por Um n.222. TEALDI, J.C. “Biopolítica y psicoanalisis”. In: Conceptual, n.15, 2014, p.58-66. VICENS, A. “ Vittima o vittoria”, 2014. Disponível em: http://www.marcofocchi.com/di-cosa-si-parla/vittima-o-vittoria

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