ANÁLISE COMPARATIVA DO PROJETO E DAS PLANTAS DAS FORTIFICAÇÕES DO RIO DE JANEIRO ATRIBUÍDAS AO BRIGADEIRO JOÃO MASSÉ

June 30, 2017 | Autor: F. Correa-Martins | Categoria: Military History, Brazilian History, Historical Cartography
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Análise comparativa do projeto e das plantas das fortificações do Rio de Janeiro atribuídas ao Brigadeiro João Massé Francisco José Corrêa-Martins Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Departamento de Geociências – Instituto de Agronomia [email protected]

RESUMO As questões defensivas da região hoje ocupada pela cidade do Rio de Janeiro surgiram quando os franceses ali se estabeleceram, em 1555. Após sua expulsão pelos portugueses, estes passaram a construir fortificações para protegerem a nascente colônia. Mas o sistema defensivo mostrou-se ineficiente quando das novas incursões francesas do século XVIII, sobretudo a de 1711. Para melhor proteger a cidade, foram propostas as construções de novas fortalezas, como a da Conceição, e a edificação de um muro que ligaria o morro de mesmo nome, com direção quase N-S, ao Morro do Castelo, muro esse que visava impedir um ataque vindo do interior, fechando por esse lado o acesso à cidade. Na análise feita na documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino em Portugal, especialmente o projeto e as plantas atribuídas ao Brigadeiro João Massé, verificamos que, contrariamente ao que outros pesquisadores afirmaram, o muro fora projetado para ser construído somente entre os dois morros, e não encostas acima; que há discrepâncias entre as plantas e o projeto, e que não há evidências concretas de que as plantas do Rio de Janeiro atribuídas ao brigadeiro tenham realmente sido feitas por ele. PALAVRAS-CHAVE: Rio de Janeiro, João Massé, Sistema Defensivo, Fortificações, Arquivo Histórico Ultramarino, Cartografia Histórica ABSTRACT The defensive issues in the region now occupied by the city of Rio de Janeiro emerged when the French settled there in 1555. After his expulsion by the Portuguese, they began to build fortifications to protect the nascent colony. But the defensive system proved to be inefficient when the new French incursions of the eighteenth century, particularly in 1711. To better protect the city, the construction of new fortresses like the Conception, and building a wall that would connect the hill of the same name, with almost NS direction, the Castelo Hill, this wall that was intended to prevent an attack were proposed from inside, closing at it this way access to Rio de Janeiro. Thus In the analysis in the existing documentation on Arquivo Histórico Ultramarino in Portugal, especially the project and plans attributed to Brigadier Jean Massé, we find that, contrary to what other researchers have said, that the wall designed to be built only between two hills, and no slopes above; are there differences between the plant and the project, and that there is no concrete evidence that plans from Rio de Janeiro attributed to Brigadier have really been made by him. KEYWORDS: Rio de Janeiro, Jean Massé, Defense System, Fortifications, Arquivo Histórico Ultramarino, Historical Cartography

Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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INTRODUÇÃO Em meio às obras que por que passa a região portuária do Rio de Janeiro, há um pequeno oásis de tranquilidade no alto de um pequeno morro, escondido em meio aos prédios que o circundam, junto à Praça Mauá. Trata-se do Morro da Conceição, no alto do qual estão o antigo Palácio Episcopal e a Fortaleza da Conceição, edificações ocupadas atualmente pela 5ª Divisão de Levantamento, uma organização militar do Exército Brasileiro voltada à cartografia e mapeamento sistemático1. A referida fortificação, em cuja entrada está gravada a data de 1715, que marca o término da construção de suas muralhas, é o que restou de um plano de defesa que buscava proteger a cidade de agressões estrangeiras, e que foi objeto de três plantas, conjunto documental esse de autoria atribuída ao Brigadeiro João Massé. Assim, nosso trabalho se concentrará na análise daqueles documentos cartográficos e outros, catalogados na década de 1910 por Eduardo Castro e Almeida, quando estavam na Biblioteca Nacional de Lisboa, reunidos no “Archivo de Marinha e Ultramar”, e que hoje estão depositados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)2, em Lisboa, Portugal, parte da qual foi publicada em alguns volumes dos Anais da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, trabalho esse que posteriormente foi recepcionado no Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, ou simplesmente Projeto Resgate3. UM ESPERADO ENGENHEIRO A partir do estabelecimento dos portugueses no interior da Baía da Guanabara, ainda no século XVI, a preocupação com as condições defensivas da posição não deixaram de se fazer sentir. Assim, para além da entrada da baía, diversas obras de fortificação foram feitas na própria cidade, fossem com muros grossos de pedra, fossem simples trincheiras de terra4. A documentação mostra uma constante 1

O autor trabalhou de 1986 a 1996 na 5ª Divisão de Levantamento, resultando desse tempo um texto de divulgação histórica, publicado internamente (CORRÊA-MARTINS, 1996), cujo conteúdo tem sido reproduzido sem o devido crédito. 2

A transferência do Archivo de Marinha e Ultramar para o Arquivo Histórico Ultramarino ocorreu em 1931 (IRIA, 1966, p. 36). 3

Neste trabalho, quando fizermos citação a algum documento do Arquivo Histórico Ultramarino, de ora em diante AHU, referente à Capitania do Rio de Janeiro, nós faremos a referência tanto aos volumes dos Anais da Biblioteca Nacional, de ora em diante An. Bibl. Nac., onde foram publicados, quanto ao “Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à Capitania do Rio de Janeiro – CA existentes no Arquivo Histórico Ultramarino”. Isto porque existem diferenças nas notações em cada um dos instrumentos de pesquisa. 4 Bem diferente do que afirmou SALOMON (2002, p.14), de que “o trabalho de fortificação do Rio de Janeiro [fora] iniciado por Massé”.

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preocupação com a defesa, em especial no momento em que outros pontos da colônia brasileira foram invadidos. O temor se transformou em realidade em 1710 e 1711, com duas incursões francesas onde, na primeira, os próprios moradores foram os principais responsáveis pela vitória, que não conseguiram repetir uma segunda vez frente aos recursos que dispunha Duguay-Trouin, combinados com a inépcia do Governador Francisco de Castro e Morais, resultando em um saque vultoso, de mais de 600 mil cruzados, tão repetido nos livros didáticos de história5. As impressões do ocorrido foram as mais impactantes, e ante os reclamos do governador-geral, o Conselho Ultramarino decidiu, em 6 de agosto de 17126, que o brigadeiro João Massé passe ao Rio de Janeiro e dali à cidade da Bahia e seja um tão grande engenheiro e de tão conhecida ciência e suposição, que se deve escrever ao governador do Estado do Brasil que chegando àquela praça o dito sujeito o mande ver estas fortificações e desenhe o que se deve obrar nelas, e com o parecer dos mais engenheiros e aprovação do mesmo governador se execute o que se tiver por mais conveniente neste particular, em ordem a ficar mais defensável esta mesma praça. O Brigadeiro João Massé, de origem francesa7, havia integrado o exército aliado do qual Portugal participara na Guerra de Sucessão da Espanha, então recém concluída, e veio para o Rio de Janeiro em companhia do governador nomeado, Francisco Xavier de Tavora, que também atuara naquele conflito. Contudo, a viagem para o Brasil parece não ter sido boa para Massé. De fato, em carta de 16 de agosto de 1713, o Governador Francisco Xavier de Tavora, que tomara posse em junho, escrevia ao rei que ainda não podia remeter as plantas das novas fortificações que seriam construídas na cidade porque o Brigadeiro João Massé estava doente. E na mesma carta lemos que, pouco após sua chegada ao Rio de Janeiro, o rei já havia ordenado que Massé seguisse para a Bahia, o que seria feito depois de “Ajustada a forma que devem ter estas fortificações, e principiadas alguãs plantas das demais, e vizitada a praça de

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Existem diversas publicações sobre esse período histórico, Como sugestão, entre outros, apontamos FRAGOSO (2004), CASTRO (2009) e CORRÊA-MARTINS (2013). 6

Consulta ao Conselho Ultramarino – Carta do Governador Geral do Estado do Brasil Pedro de Vasconcelos, e relação “do estado em que se achavam as fortalezas daquele Estado, feita pelo tenente general engenheiro Miguel Pereira da Costa. Documentos Históricos – Consultas do Conselho Ultramarino, Rio de Janeiro – Bahia, 1710-1716, V. 96, 1952, p. 63. 7 A nacionalidade de Massé tem sido motivo de dúvidas ao longo do tempo. Tencionamos abordar essa questão futuramente.

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Santos”, parecendo que a Coroa considerava de simples execução o planejamento de fortificações para as praças do Rio de Janeiro e Santos8. Segundo MOREAU (2011, p. 229), o registro da carta patente de Massé ocorreu no Rio de Janeiro em 9 de junho de 17139 e, na Bahia, em 30 de maio de 1714. Portanto, após restabelecer sua saúde, supõe-se que tenha feito seu trabalho no Rio, passando depois para Santos, que pertencia então à Capitania do Rio de Janeiro, com a finalidade de também levantar suas necessidades defensivas, retornou ao Rio, onde parece ter-se ocupado em formalizar as fortificações a serem construídas em ambas as cidades, e partiu para a Bahia em maio de 1714, não existindo registro de seu retorno às terras cariocas.

O PROJETO DE DEFESA DO RIO DE JANEIRO ATRIBUÍDO AO BRIGADEIRO JOÃO MASSÉ Como vimos antes, o Governador Francisco de Tavora informara ao rei, em agosto de 1713, que o Brigadeiro Massé estava adoentado, o que “otem embaraçado de naõ ter todo aquelle Conhecimento das partes, que se devem fortificar, que como dependem taõbem do seu votto, como V Mae manda pella sua Real ordem, espero pella sua melhora pa se estas principiarem”. Mas enquanto o brigadeiro não se restabelecia, o governador providenciava materiais para o reparo e construções de fortificações. A documentação evidencia, inclusive, que o Governador Tavora discutia as questões das obras com Massé, como na carta de 16 de agosto de 1713, em que escreveu que “Taõbem discorremos em fechar esta Cide, fazendo lhe hum simples muro ao Redor”10, o que nos permite concluir que tanto a concepção da construção de “hum simples muro”, como de outras fortificações construídas entre 1713 e 1716, como a Fortaleza da Conceição, foram do Governador Francisco Xavier de Tavora, juntamente com o Brigadeiro João Massé, e não como tem sido aceito até o momento, creditando as fortificações apenas ao francês. As obras de defesa que o Rio de Janeiro recebia então ficam mais claras no documento nº 3323, depositado no AHU, intitulado “Rellaçaõ de todas as fortificaçoens e reparaçoens necessarias para a conseruaçaõ e defensa da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro e de seu Porto, referidas as plantas

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Carta do Governador Francisco de Tavora, sobre as fortificações do Rio de Janeiro. An. Bibl. Nac, V.39, 1917, D. 3308, p. 332 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3308. 9 E não como escreveu SALOMON (2002, p. 08). 10

Carta do Governador Francisco de Tavora, sobre as fortificações do Rio de Janeiro. An. Bibl. Nac., V.39, D. 3308, p. 332 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3308. Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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que vaõ a parte”11, datado de 1º de meio de 1714, está estruturado em três tópicos, “Das Fortalesas da Barra”, tratando das defesas existentes na entrada da Baía da Guanabara, “Da Ilha das Cobras”, pensada como uma “fortaleza Real” ou cidadela, e “Da Cidade do Rio de Janeiro”, focando as fortificações na ocupação urbana da porção ocidental da baía já mencionada. Queremos ressaltar que, embora traga ao final nome de “João Massé”, não se trata da assinatura do brigadeiro e engenheiro12. Portanto, em nossa opinião, esse documento pode ser uma cópia. Segundo a “Rellaçaõ”, a cidade estava situada entre “cinco outeiros que todos a dominaõ, e lhe ficaõ muy vezinhos proximos”, sendo esses “outeiros” os montes de S. Bento, da Conceição, de S. Antonio e S. Sebastião, além da Ilha das Cobras, sendo que apenas para S. Bento não eram previstas fortificações “por ser de húa parte rodeado do mar, e bastante escarpado, e da outra enserrado dentro dos muros” da própria igreja e convento. Sem dúvida, a grande “inovação” que aparece na “Rellaçaõ” era o muro que fecharia a comunicação com a parte interior da cidade. Seu projeto previa uma altura de vinte e quatro palmos [5,28m] do sapato (sic) ao cordaõ que hé bastante contra emprezas de escalladas, e fazer-se um parapeito em cima, alto, de sete palmos [1,54 m] e grosso de tres [0,66m] obseruando o espaço desde a igreja do Parto onde se ata com o Monte de São Sebastião athe o Sitio da donde vay fechar ao mar, deue de ser tudo innacessiuel, só fazendo húa porta na ladeira do Collégio com hú lanço de muralha a direita e a esquerda que feche ao mesmo Monte escarpado o mais perto que puder ser. A “Rellaçaõ” deve ter seguido para Portugal junto a carta do Governador Francisco de Tavora, de 8 de junho de 171413, pois a certa altura consta que

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An. Bibl. Nac, V.39, p. 334-335 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3323. Há uma transcrição integral em FERREZ (1972, p. 210-215). 12

Fazemos esta afirmação com o respaldo de diversos documentos existentes no AHU, de período posterior à sua estada no Brasil, nos quais o brigadeiro francês deixou sua assinatura. Um exemplo é o Parecer da Junta de Engenheiros, sobre fortificações em Pernambuco, de 17 de novembro de 1729, AHU_ACL_CU_015, Cx 39, D. 3541. Outro documento, reproduzido mais a frente neste trabalho, mostra como é a verdadeira assinatura de João Massé. 13

Cartas (2) do Governador Francisco de Tavora, sobre as fortificações do Rio de Janeiro e a oferta de Francisco do Amaral Gurgel, a que se refere a consulta antecedente. Anexas ao n.º 3317. An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 333 AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3318--3319. Ocorre que só a carta de junho é de 1714 (D. 3319), pois a de 9 de agosto é 1713 (D. 3318). Trata-se de um erro de catalogação. Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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Nesta remetto as plantas das fortificaçoens que se fazem nesta Cid.e, dando as rasoens por que saõ percisas14, regulandome pella despesa que athe o presente se tem feito com ellas severa conta que remetto o que haõ de custar15: e porque as obras naõ estaõ em termos de pararem, sem hua considerável perda. Tanto a “Rellaçaõ” de Massé como a carta do governador fizeram referência às plantas remetidas para Portugal, mas sem as especificar. Ora, no parecer do cosmógrafo Manuel Pimentel, datado de 6 de novembro de 171416, ele informa que “Vi as plantas das fortificaçoens do Rio de Janeiro, da Ilha das cobras, e da Lagem que está na barra, e posto que na relação junta”, o que permite então concluir que foram pelo menos três as plantas enviadas, uma relativa à Ilha da Laje, outra à Ilha das Cobras, e, muito provavelmente, a “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro, Com súas Fortifficaçoins”17. Para além da menção das plantas e o motivo para as fortificações, ressaltamos que a referência do governador sobre uma possível paralisação das obras reporta uma carta do soberano, de 12 de fevereiro de 1714, na qual ordenara “que por ora se pare com as obras athe nova resoluçaõ de V Mage”, talvez impressionado com os gastos. Anos mais tarde, o então Governador Antonio de Brito Freire Menezes (1892, p. 223 e 224), em carta ao rei, datada de 2 de março de 1718, relativa às condições das fortificações e artilharia da praça do Rio de Janeiro, escreveu que A fortificação [somente] da cidade consta de duas fortalezas, que occupam dois oiteiros próximos e eminentes d’ella, a que chamam de São-Sebastião e da Conceição; entre elles corre uma distancia de 300 braças, em que está o muro, que forma nove ângulos avançados, e quazi no meio a porta principal com um revelim, que o defende; da fortaleza de São-Sebastião corre pela ladeira a muralha (sic) do mar junto do forte de Santiago, e da fortaleza da Conceição continua o muro pela ladeira até o mar junto do trapixe dos terceiros. 14

E que estão na “Rellaçaõ” de Massé.

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“Avaliaçaõ das obras a fazer nas fortificaçoens que ficaõ pa se fazer na da Cidade, Barra e Porto do Rio de Janeiro, para por o mesmo em estado de segurança e defensa [ilegível] a aparte”. An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 334 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3322. Anexa ao n.º 3317. O valor constante da avaliação é de 200.000$000 réis, que é a conversão dos 500.000 cruzados já citados, na razão de 1 cruzado equivaler a 400 réis. Essa avaliação traz ao final o nome de Joaõ Massé mas, novamente, não é a assinatura dele. Provavelmente é outro documento copiado. 16 Carta do cosmógrafo Manuel Pimentel, sobre as plantas das fortalezas do Rio de Janeiro, da Ilha das Cobras e da Laje, em que se conforma com as indicações do Engenheiro João Massé. An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 333 AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3321. Anexa ao n.º 3317. 17 An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 335-336 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3324. Existem uma planta e uma elevação relativas à Laje, An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 336 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3326 e D.3327. Todas anexadas ao D. 3317. Não foi encontrada qualquer referência à planta da Ilha das Cobras que teria sido remetida na citada carta do governador e examinada pelo cosmógrafo. Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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Ou seja, daquilo que consta no plano atribuído ao Brigadeiro Massé, a Fortaleza da Conceição e parte do muro foram de fato construídos, ao contrário do que afirmou BUENO (2009, p. 125), de que o projeto relativo ao Rio de Janeiro não fora realizado e que somente em parte o seria posteriormente pelo Brigadeiro Silva Paes. AS PLANTAS DO RIO DE JANEIRO ATRIBUÍDAS AO BRIGADEIRO JOÃO MASSÉ No AHU existem oito documentos cartográficos, cuja autoria é atribuída ao Brigadeiro João Massé, três deles relativos ao Rio de Janeiro e os outros cinco a Santos e fortificações projetadas para aquela praça. Assim, a primeira planta atribuída ao Massé foi catalogada como “Planta da cidade do Rio de Janeiro. 0m, 370 X 0m,270. Esboço colorido e incompleto de João de (sic) Massé”18. E é fácil entender a razão disso. Na parte superior, está escrito, à tinta ferrogálica e com letra de época, “Cidade do R.o de Jan.o aos 22. 58.’ de Latit. Austral. com a delineação de M. Massé”19 (Figura 1).

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An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 331, D. 3295, anexa ao D. 3287. - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3295, anexa ao D. 3287. 19

IRIA (1966, p. 73) considerou que a planta foi confeccionada por volta de 1712, data que foi repetida acriticamente, entre outros, por REIS (2000, p. 357 e 360), ignorando que João Massé só chegou ao Rio em junho de 1713.

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Figura 1 - “Cidade do R.o de Jan.o aos 22. 58.’ de Latit. Austral. com a delineação de M. Massé”. 0 m, 370 X 0m,270. Escala em braças, canto inferior esquerdo. Acervo do AHU.

Examinando essa planta, aquarelada nas cores vermelha e amarela, verificamos que há quatro edificações assinaladas, “Coll.o”, escrito e com uma cruz, que era o Colégio dos Jesuítas, “S. Seb.am” e “Conceycão”, ambos escritos, que eram as fortificações nos morros do Castelo e Conceição, e, com uma cruz, a Igreja da Candelária. Além disso, conseguimos identificar a unidade de medida utilizada na escala dessa planta, o que não havia sido feito até agora, e que é a braça. Também verificamos que a porção inicial da escala gráfica foi perdida, fato que não tinha chamado a atenção até agora. Assim, a escala gráfica sem dano era de 350 braças. O segundo documento cartográfico atribuído ao Brigadeiro Massé é apresentado a seguir (Figura 2).

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Figura 2 - Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro, Com as súas Fortifficaçoins. 0 m,870 X 0m,575. Acervo do AHU.

Trata-se da “Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com suas fortificações (sic). 1774 (sic). 0m,870 X 0m,575. Colorida”20 que, embora catalogada junto com a “Rellaçaõ ...” que ao final tem o nome de João Massé, só foi atribuída ao brigadeiro posteriormente por FERREZ (1959, p. 390), baseado na ordem real para a vinda dele ao Brasil, e que “a planta não assinada” seria da autoria provável de Massé “já que está anexa (sic) a um relatório assinado por ele (sic)”, o que já dissemos ser incorreto, afirmando ainda que o “documento data de 1713”, provavelmente baseado na data que aparece na legenda da planta (Figura 3). FERREZ (1959, p. 389) apontou corretamente que existem duas escalas na planta, o que levou as fortalezas de terra a serem representadas em tamanho dobrado, em uma escala de 100 braças, em relação à cidade, em escala de 200 braças, trazendo o inconveniente de “deixar de assinalar detalhes nas proximidades das mesmas”21. Várias edificações, religiosas e militares, são identificadas na planta com letras maiúsculas, mas há quatro edifícios religiosos somente identificados por uma cruz, a saber, as igrejas de São José, Santa Cruz dos Militares e da Candelária, além da Ermida do Rosário, junto ao muro no fundo da cidade. Essa planta traz a legenda abaixo: Explicaçoins Notta. As linhas coradas de amarello mostraõ as obras, e reparaçoins feitas de novo, ou principiadas p.a se fazer, desde o mez de Julho de 1713 (sic) [algarismo rasurado, originalmente “1712” – ver adiante]. As Linhas amarellas mostrão as obras q.e estão sôo dessinadas desde o d.o tempo. A. Fortaleza de S. Sebastião com suas obras feitas de novo, e dessinadas. B. Bulvarte dessinado no Sitio em q.e está a Sée, com sua Linha de Comunicação. C. O Collegio com sua cerca e Ladeiras D. A Mizericordia. E. Fortaleza antiga de S.to Iago. 20

An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 335, D. 3324, anexa ao D. 3287. - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3324, anexa ao D. 3287. 21

A representação cartográfica e a existência de uma dupla escala desse documento cartográfico suscitaram da parte de Roberto Conduru (1997, p. 81) o comentário de que Massé “não via a cidade de forma autônoma e indiferenciada mas sob a ótica da guerra, privilegiando a questão da segurança – as fortificações aparecem em escala dobrada se comparada à escala das demais edificações. Neste sentido, o plano de Massé ‘sugere como um exercício de dominação, cujo indício mais revelador é um desenho onde (...) a urbe é suprimida (sic) por aquele que pretende defendê-la. Para Massé, proteger e dominar são sinônimos’”. Ora, as afirmações de CONDURU (1997) mostram seu desconhecimento da missão de Massé no Brasil, que já expusemos anteriormente. Na cartografia, a preocupação da engenheira militar era a representação do real, a cidade e seus contornos topográficos, para o planejamento de sua defesa, ou seja, científica, mas não cientificista, o que inviabiliza, de pronto, uma suposta “supressão” da urbe, afirmação absurda já que os quarteirões e ruas estão representados na planta, sendo que as fortificações representadas de forma ampliada são apenas as fortalezas de São Sebastião e da Conceição, diferentemente do que afirmou aquele autor. Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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F. Caÿs dessinado. G. Almazems del Reÿ H. Caza da Moeda I. Convento do Carmo. L. Cazas do Governador e alfandiga. M. Convento de São Bento, com sua cerca e Ladeira. N. ALmazems da Junta. O. Battaria da Parainha, q.e deve ser reparada. P. Trapixo dos Terceiros. Q. Fortaleza da Conceição com suas comunicaçoens ao mar, e ao muro da Cidade. R. Cazas do Bispo, com suas platteformas por diante. SSS. Muro da Cidade. T. Convento de S.to Ant.o com Sua cerca e Ladeira e uma obra dessinada na coroa de seu monte. V. A Ilha das Cobras com suas fortifficaçoens dessinadas e Sua ponta (sic) [letra rasurada, “a” sobre “e”] de Communicação. X. Linha punctuada q.e mostra outro Sitio, aonde se pode atar o muro, se se quizer Emcluir os coarteis dentro delle. Portanto, a atribuição da data com base na legenda merece reservas, tanto em vista da rasura por nós detectada como dos termos ali encontrados, pois que “As linhas coradas de amarello mostraõ as obras, e reparaçoins feitas de novo, ou principiadas p.a se fazer, desde o mez de Julho”, ou seja, mostram construções que desde 1712 estavam sendo feitas. Além de contar com duas escalas, essa planta é aquarelada nas cores verde, vermelha e amarela, de ter uma rosa dos ventos, e possuir o relevo representado por hachuras, esse documento cartográfico apresenta um interesse particular na medida em que nela estão representados quarteirões, arruamentos e a marinha da cidade22, entre outros pontos. O terceiro documento cartográfico foi catalogado inicialmente como “Plantas (sic) dos Fortes de Nossa Senhora da Conceição e S. Sebastião do Rio de Janeiro. 1714 [?]. 0 m,450 X 0m,230. Coloridas”23, título e data atribuídas, já que a planta não apresenta nenhuma dessas informações. Quando catalogada, foi feita uma transcrição incompleta da legenda, pois omitiu a informação sobre coloração das linhas (Figura 3).

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Gilberto Ferrez (1972, p. 58) afirmou que “Foi portanto Massé o primeiro a planificar este cais”. Só que na transcrição que ele mesmo fez dos relatórios de Quitam e Lescolle, consta que estes já haviam apresentado um projeto para o cais em 1649 (FERREZ, 1972, p.164). 23

An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 335-336, D. 3325, anexa ao D. 3287. - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3325, anexa ao D. 3287.

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Figura 3 – Sem título [Plantas (sic) dos Fortes de Nossa Senhora da Conceição e S. Sebastião do Rio de Janeiro]. 1714 [?]. 0m,450 X 0m,230. Escala em braças, porção central inferior. Acervo do AHU.

A imputação de autoria foi feita por FERREZ (1972, Estampa 26), que a intitulou de “Planta inédita de João Massé, mostrando como pretendia defender a cidade pelo lado interior, em 1713”, em desacordo, portanto, com a catalogação acima transcrita. Além de ser aquarelada nas cores vermelha, amarela, verde, marrom e azul, ela possui uma escala gráfica de 100 braças/1.000 palmos, e a representação do relevo é feita de forma pictórica. As identificações estão relacionadas ao perímetro do muro projetado e porções externas. A parte interna, onde ficaria a cidade não está representada. E apresenta uma rosa dos ventos. Sua legenda é a que se encontra a seguir Explicação O que esta corado de Amarello esta feito de nouo, ou dessinado p.a se fazer A Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. B Muro da mesma Cid.e C Arobaldo da Misericordia.

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D Porta do Campo. E Forte de N.a S.a da Conceição. F Caza do Bispo. G Comunicação do Forte ao Muro. H Banquette do d.o Forte ao Mar. I Trapixo da ordem Tery.a. L Conuento de S. Bento com sua cerca. M. Forte de S. Sebastião. N. Colegio dos P.es da Comp.a O. Calçada do Collogio. P. Igresia da Sée Q. Conuento de S. Ant.o com Sua Cerca R. Hermida de N. S.a do Rozario S. Batteria no Mar

TRAÇAS E TRAÇAS: COMPARANDO AS PLANTAS ATRIBUÍDAS AO BRIGADEIRO JOÃO MASSÉ Em nossa pesquisa sobre as plantas acima apresentadas, não encontramos nenhum trabalho que comparasse os três exemplares, o que faremos agora. Confrontando-se as três plantas, verifica-se que todas foram confeccionadas utilizando “braças” na escala gráfica, o que nos permitiu compará-las e verificar o ajustamento entre si (Figura 4).

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Figura 4 – Comparação das plantas (A), 3295, (B), D. 3324 e (C), D. 3325. Todas do acervo do AHU. Imagens tratadas digitalmente.

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Examinando os três planos, não há dúvidas de que o mais completo é a “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ ...”, D.3324 (Figura 2). E, além disso, é o único que mostra a Ilha das Cobras, e com a fortificação com as obras previstas para ela na “Rellaçaõ” (Figura 5).

Alem da porta principal a da d. fortalesa com seu rauelim deue-se fazer outra no ligar Sinalado na planta com hú parapeito por fora que a Sirua p. communicaçaõ da fortalesa ao baluarte de Santo Antonio, o qual parapeito deue decorrer por cima da praya, aonde se desembarca.

Tem-se tambem designado na planta húa praça dentro na fortalesa com húa sisterna no meyo e Casas para quarteis e almazes etc.

Figura 5 – Ilha das Cobras: representação cartográfica retirada do D. 3324, comparada com os trechos relativos às obras na mesma constantes na “Rellaçaõ”.

Sobre quando os mapas foram feitos, somente a planta acima referida apresenta uma data, e que foi alterada. Essa modificação foi detectada pela mudança na espessura dos números, comparada ao texto; pelo desalinhamento do algarismo “3”, que ultrapassou o alinhamento, e, especialmente, pela emenda feita sobre o último número, escrevendo-se o número “3” sobre o “2” existente, mas que não cobriu completamente o número grafado anteriormente (Figura 6).

A

B

Figura 6 – Legenda da “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ ...”, D. 3324. (A) Detalhe da data alterada. Nota-se o final do número “2” embaixo do “3”. (B) O número limpo digitalmente.

O exemplar D. 3295 (Figura 1) apresenta diversas linhas feitas a lápis, bem como diversos traços errados, já cobertos por tinta ferrogálica, tendo todos os indícios de ser uma cópia, ainda que incompleta, feita a partir de um “original” que teria sido desenhado por Massé, como está indicado claramente no alto da folha. E sua comparação com o D. 3324, a “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ ...”

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(Figura 2) mostra um ajuste muito bom para a maior parte do muro e com a fortaleza de São Sebastião, pois com relação a extremidade direita, junto ao morro da Conceição, há uma pequena deformação para o alto da folha. Mas, em escala, o ajuste é quase total, ou seja, também nela estão as fortificações citadas com o tamanho ampliado. Nossa conclusão é que D. 3295 é uma cópia de D. 3294, feita com o objetivo, talvez, de cartografar alterações no projeto primitivo, como se nota junto ao Morro da Conceição (Figura 7).

Figura 7 – Comparação das plantas (A) 3295 e (B) D. 3324. Ambas do acervo do AHU. Imagens tratadas

digitalmente. Já a planta D. 3325 (Figura 3) apresenta problemas bastante sérios em sua construção. O primeiro é a posição da rosa dos ventos, apontando para uma direção não coincidente nem com D. 3324 (Figura 2) ou outras plantas do Rio de Janeiro posteriores. Se a representação da Fortaleza de São Sebastião guarda alguma relação de posicionamento como D. 3295 e D. 3324, a Fortaleza da Conceição está rotacionada em cerca de 30º para a esquerda, além de não ter representado o revelim na frente da mesma, presente em D. 3295 e D. 3324. O muro projetado é representado com certa semelhança, mas o início aparece ligado à marinha da cidade, com uma “S. Batteria no Mar”, que não constava da “Rellaçaõ”, e o final junto ao Morro da Conceição é diferente, correndo ao longo do sopé do morro em Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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direção à Prainha. E, descendo da Fortaleza da Conceição em direção ao Trapiche dos Franciscanos, temos “H Banquette do d.o Forte ao Mar”, um tipo de fortificação incorreta naquele ponto, segundo Adler Homero Fonseca de Castro (informação pessoal). Com relação à representação da topografia, quando comparada à “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ ...”, D. 3324, verifica-se que tanto a posição do Morro de Santo Antonio como do Morro da Conceição estão deslocadas para a esquerda. E que não há qualquer semelhança da marinha da cidade entre as duas plantas (Figura 8).

Figura 8 – Comparação das plantas (B) D. 3324 e (C) D. 3325. Ambas do acervo do AHU. Imagens tratadas digitalmente. As linhas em vermelho mostram os deslocamentos verificados nas representações do alto do Morro de Santo Antonio (X), da Fortaleza da Conceição (Y) e da marinha da cidade (Z).

Embora tenha aparência de uma planta, em nossa opinião, esse documento foi produzido por uma pessoa que tinha um conhecimento muito limitado de cartografia, nos parecendo, sobretudo, trabalho de um copista. E, pelos claros erros encontrados, o desenho não foi feito na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, em função da análise que fizemos das três plantas, concluímos que D. 3295 e D. 3325 foram feitas tendo sob as vistas uma planta atribuída ao Brigadeiro João Massé, que apresentava graficamente o projeto de fortificação para a cidade do Rio de Janeiro.

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E, como vimos, o acervo do AHU tem uma “Rellaçaõ de todas as fortificaçoens e reparaçoens necessarias para a conseruaçaõ e defensa da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro e de seu Porto, referidas as plantas que vaõ a parte”, D. 3323, que se ajusta, embora não completamente, à “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro, Com as súas Fortifficaçoins”, D. 3324. Deste modo, pelo aspecto incompleto de uma e pelos graves erros encontrados na outra, concluímos que as plantas D. 3295 e D. 3325 NÃO SÃO de autoria do Brigadeiro João Massé. E, no que toca ao quesito de quando elas teriam sido feitas, consideramos que D. 3324 foi elaborada depois de maio de 1714, em função da data existente na “Rellaçaõ” e outros aspectos a seguir discutidos. Seguir-se-iam então D. 3295 e D. 3325, sendo que acreditamos que essas duas plantas não devem ter sido feitas depois de 1718, tendo por base as informações prestadas pelo Governador Freire Menezes em sua correspondência já referida anteriormente. Apesar disso, consideramos que a atribuição da autoria de D. 3324 ao Massé sob cautela até o momento, já que nenhum exemplar catalogado no AHU a ele atribuído traz a assinatura do brigadeiro, ao contrário do que afirmou BUENO (2009, p. 124).

DO TRAÇO À TRAÇA: COMPARAÇÕES ENTRE O PROJETO E A PLANTA ATRIBUÍDOS AO BRIGADEIRO JOÃO MASSÉ Partindo do pressuposto que tanto a “Rellaçaõ” ou projeto, datada de 1º de maio de 1714, como a “Planta da Cidade de Saõ Sebastião ...” são da lavra do Brigadeiro João Massé, não poderiam existir discrepâncias entre eles. Só que elas existem e são várias. No texto, consta que “deue ser tudo innacessiuel, só fazendo húa porta [n]a Ladeira do Collegio”. Já a planta mostra “quazi no meio [do muro] a porta principal com um revelim, que o defende”, nas palavras de MENEZES (1892, p. 223), que escreveu isto em 1718. Essa porta e o revelim não são mencionados no projeto de 1º de maio de 1714. Não consta da “Rellaçaõ” a largura do muro projetado24, mas MENEZES (1892, p. 224), escreveu que “tem-se observado na sua largura os 14 [palmos, 3,08m] que lhe desenhou o brigadeiro Monte (sic), e tam bem na distancia dos contrafortes de 25 palmos [5,28m] de uns a outros”, que também não constam da “Rellaçaõ”. Ora, no projeto não há referências aos salientes ou ângulos. Já a planta mostra cinco e MENEZES (1882, p. 223) fala em “nove ângulos avançados”. Seria isso, como conjecturou CASTRO (2009, p. 258), 24

Na planta, a largura do muro é de uma braça, 2,2m.

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“um indício de que o projeto fora alterado, como outros deixados pelo Brigadeiro?” A afirmação do Governador Freire Menezes de que “tem-se observado na sua largura os 14 [palmos, 3,08m] que lhe desenhou o brigadeiro Monte (sic)” indicaria a existência de outra planta do Brigadeiro João Massé, cujo paradeiro é desconhecido? A fortificação prevista para o alto do Morro de S. Antonio é mais um ponto de discórdia, pois, enquanto no projeto ela fora prevista com forma hexagonal, nesta planta aparece com a forma octogonal. Ora, essas importantes diferenças entre o projeto e a planta apontam para alguns aspectos negligenciados até agora. Um deles é a doença de Massé. Ele continuava doente em agosto de 1713, dois meses após sua chegada ao Rio de Janeiro. Pelo projeto, é evidente que ele pouco andou pela cidade, não indo nem a Praia Vermelha ou a Ilha da Laje (CASTRO, 2009, p. 215). É provável que ele tenha feito seu anteprojeto a partir de um ponto alto na cidade, na Fortaleza de São Sebastião, por exemplo, esboço esse que ele teria passado para um subordinado, com conhecimento de desenho e fortificações, e que teria a missão de secretariá-lo, para que este subordinado sim, além de desenhá-lo, fizesse a redação do documento que continha as linhas gerais do mesmo, e que seria enviado para Lisboa. E não esqueçamos que ele ainda tinha de ir até Santos para realizar as mesmas tarefas ordenadas pelo rei no Rio de Janeiro, e sua ida para à Bahia já fora determinada. Um exemplo da redação ou mesmo de produção de documentos por subordinados, e não por aqueles que o assinam fica evidente, por exemplo, no exame da “Conta do que podera custar a Fortz.a que se esta fazendo na Barra grande de S.tos, por conta de Joaõ de Castro morador na d.a villa."25 (Figura 9).

25

An. Bibl. Nac., V.39, 1917, p. 344, D. 3389 - AHU_CU_017-01, Cx. 16, D. 3389.

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Figura 9 - Conta do que podera custar a Fortz.a que se esta fazendo na Barra grande de S.tos, por conta de Joaõ de Castro morador na d.a villa

Examinando o documento, vemos que o “ss” de “brassas” é diferente do que está na assinatura, o mesmo se aplicando para “Joaõ” e “é”. Assim, a caligrafia e mesmo a tinta utilizadas para redigir o documento não são as mesmas usadas por João Massé para assiná-lo. Voltando ao projeto, não podemos continuar considerando ele foi só do Brigadeiro João Massé, mas era também do Governador Francisco Tavora. Já vimos anteriormente que enquanto o francês estava acamado, ele tocava as obras e conversava com o brigadeiro para verificar quais seriam as melhores soluções. Assim, as alterações do previsto no projeto ou “Rellaçaõ”, bem como o que foi

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cartografado na “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ ...” devem ser creditadas ao Governador Tavora, que ali ficou até novembro de 1716. Portanto, se a “Rellaçaõ” tem a ideia geral do que alguns chamam de “Projeto do Brigadeiro Massé”, e que tem até seu nome no final, o mesmo não se dá com a “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro, Com súas Fortifficaçoins”, que consideramos, à vista do que expusemos, NÃO É de autoria de João Massé. Com base em nosso exame, consideramos equivocada a afirmação de CAVALCANTI (2004, p. 51), sobre a existência de uma “faixa de segurança, constante do Projeto de João Massé”, que impediria construções junto do muro, pois nada encontramos a respeito na “Rellaçaõ”, ou na “Planta da Cidade de S. Sebastiaõ ...”. A questão da faixa de segurança para fortificações já havia sido referida anteriormente por FAZENDA (1919, p. 369), referindo uma ordenança de 20 de fevereiro de 1708 que teria estipulado “uma zona de 15 braças” extra-muros na qual ninguém poderia construir. Mas, segundo VASCONCELLOS (1866, p. 61) a restrição de 170 incidia sobre atividades agrárias e que somente em 1812 é que se estabeleceu, de fato, a proibição para qualquer edificação “dentro da demarcação de 600 braças, 1:318m,800, em roda da esplanada das praças de guerra ou fortalezas”. Se por um lado, a última ordenação nos permite entrever a origem da lei relativa aos terrenos de marinha no Brasil, também explica porque vemos edificações civis praticamente coladas à Fortaleza da Conceição na “Carta Topographica da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeyro, tirada, e executada pelo Capitão Andre Vaz Figueyra, Academico da Aula Militar. Anno d'1750”, pertencente ao acervo da Mapoteca do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Voltando à planta, vemos que entre a última rua representada e a Ermida de N.Sa. do Rosário, não há a representação do canal d’água referido por um oficial francês em 1748 (FERREZ, 1968, p. 250) que, na sua descrição da cidade do Rio de Janeiro, escreveu que distava do muro “20 toesas”, ou 36 metros. Tendo em vista que o canal deu origem à Rua da Vala, hoje Uruguaiana, e que no alinhamento da mesma está a igreja de mesma invocação, medimos a distância entre a ermida cartografada e a última rua representada, que identificamos como a Rua dos Ourives26, e obtivemos 47 braças, cerca de 100 metros. Só que a distância correta está na casa dos 180 metros, uma diferença de 80%, o que reforça nossas conclusões de que o Brigadeiro João Massé não foi o autor desse documento cartográfico.

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Com a construção da Avenida Central, em 1904, a Rua dos Ourives foi dividida em dois trechos. Hoje, aquela parte mais próxima do Morro da Conceição recebeu o nome de Rua Miguel Couto, enquanto o trecho mais próximo ao desaparecido Morro do Castelo é hoje conhecido como Rua Rodrigo Silva. Anais do 2º Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica

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CONCLUSÕES Na bibliografia sobre fortificações e a cidade do Rio de Janeiro, o nome do Brigadeiro João Massé aparece quase sempre associado ao muro que teria projetado e desenhado, entre sua chegada em junho de 1713 e partida para a Bahia em maio de 1714. O exame da documentação relativa às fortificações do Rio de Janeiro, e que teriam sido produzidas pelo brigadeiro francês, mostrou que sua idealização teve a parceria, talvez preponderante, do Governador e Capitão General do Rio de Janeiro Francisco Xavier de Tavora, que iniciara as obras enquanto Massé ainda estava doente. Das três plantas do Rio de Janeiro atribuídas ao engenheiro militar francês, D. 3295, D. 3324 e 3325, verificou-se que D. 3295 é uma cópia de D. 3324, e que D. 3325, devido à quantidade de erros nela observados, não foi produzida por um engenheiro militar ou cartógrafo. Mas a comparação entre aquela que seria a planta original, D. 3324, a “Planta da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro, Com as súas Fortifficaçoins”, com a “Rellaçaõ de todas as fortificaçoens e reparaçoens necessarias para a conseruaçaõ e defensa da Cidade de Saõ Sebastiaõ do Rio de Janeiro e de seu Porto, referidas as plantas que vaõ a parte”, ambos atribuídos ao Brigadeiro João Massé, apresentam discrepâncias relevantes, o que nos levou a conclusão, pautada por outros detalhes técnicos, que a planta acima citada também não foi desenhada pelo brigadeiro. Nossa pesquisa comprovou que a utilização da documentação cartográfica deve ser feita com atenção aos detalhes, sejam de construção, escala, cores ou orientação, posto que, ao ignorá-los ou interpretá-los ligeiramente, pode-se chegar a conclusões inverossímeis. Verificou-se ainda que vários documentos que estão no AHU são cópias de época, e que a maioria dos documentos, por serem administrativos, foi preparada por funcionários para serem assinados pelas autoridades, algo que continua comum nos dias atuais. Ou seja, muito poucos são autógrafos. Também encontramos diversos documentos catalogados equivocadamente, tal como D. 3295, a planta ““Cidade do R.o de Jan.o aos 22. 58.’ de Latit. Austral. com a delineação de M. Massé”, que foi incluída em um conjunto de documentos que trata de uma de consulta ao Conselho Ultramarino, sobre as fortalezas que seria preciso construir para a defesa do Rio de Janeiro, datado de 2 de março de 1712, mais de um ano antes da chegada de do Brigadeiro João Massé ao Rio de Janeiro. Assim, baseados neste trabalho, bem com pesquisas anteriores, recomendamos um especial cuidado com relação à atribuição da autoria de documentos, especialmente os cartográficos manuscritos, pois, embora possam até trazer o nome de uma pessoa, somente um exame acurado possa revelar, de fato, o personagem por trás do mapa.

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AGRADECIMENTOS Ao final deste trabalho, queremos agradecer à Dra Maria Dulce de Faria, da Fundação Biblioteca Nacional, pelo acesso aos documentos cartográficos do AHU, à equipe da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, pelo apoio na consulta à coleção documental digitalizada do AHU, e ao Primeiro Sargento Claudio Quintela Nahon, do Arquivo Histórico do Exército (AHEx), pela preparação das imagens.

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