Analise Critica da dança do Ventre - Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo -

June 13, 2017 | Autor: Carol Louro | Categoria: Dance Studies, Belly dance in a social-cultural context
Share Embed


Descrição do Produto

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Faculdade de Comunicação e Filosofia

Curso de Comunicação das Artes do Corpo





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Repensando a dança do ventre
Análise crítica e os novos campos de aplicação











Monografia de Conclusão de Curso
Orientadora Christine Greiner




São Paulo

2005

Agradecimentos


À Christine Greiner, por sua integridade intelectual sendo grande
estimuladora de questões diversas.


À Rosa Maria Hercoles, por aceitar fazer parte desta banca
e contribuir com seus comentários e críticas que
contribuíram para o meu desenvolvimento.


À Márcia Mignac, por ser guerreira e lutar com sua inteligência para a
realização de seus objetivos, entre eles, o reconhecimento da Dança do
Ventre.

Ao Percival A. Louro, por não só me apoiar como também
acreditar em minha capacidade artística.
Ao Rodrigo Louro, por ser um cientista, não menos "maluco"
que um artista, e, portanto, experimenta as diversidades da
vida.


À todas as minhas alunas, em especial, Carolina Rodrigues, Márcia Lima e
Valéria Alves por permitirem que meus aprendizados se expandam e se
transformem em ensinamentos.

À Shams Siram Kaur, por despertar em mim sentimentos grandes
e nobres e por fazer-me sentir orgulho de nossa dança.


Ao Pedro Galvão, por toda paciência carinho e dedicação à parte gráfica
deste trabalho.








































Dedico este trabalho à Maria Izabel louro,
por, entre tantas coisas, me ensinar a lutar pela
concretização meus sonhos.

Sumário

 
 
Introdução
............................................................................
............................. 3
 
Capítulo I – A Mímese dos estereótipos
........................................................... 6
 
Capítulo II - Um novo texto cultural
..................................................................... 20
 
Capítulo III – "Da dança ao ventre de mãos dadas com a vida "
...................... 28
 
Conclusão: Outras possibilidades
....................................................................... 40
 
Bibliografia
............................................................................
........................... 43






Introdução


 
Já foi o tempo em que a dança do ventre era tipicamente árabe. Hoje,
ela pode ser apreciada em diversas partes do mundo, inclusive em lugares
que não só aderiram à sua prática como também acrescentaram informações
colocando a experiência em evolução.
No Brasil, a sua presença no cenário artístico está completando trinta
e cinco anos e já possui mais de cem mil praticantes. A difusão e a
aceitação desta arte é algo realmente impressionante, todavia, a
"eroticidade" mal interpretada parece estigmatizá-la. Esta, assim como
outras marcas que a dança do ventre foi adquirindo no decorrer dos seis mil
anos de sua existência, parece ser um obstáculo para aqueles que querem
estudar e apresentar um novo viés para esta arte.
A dificuldade maior é a bibliografia. Em português, a maioria dos
livros é do tipo manual que ensina o como fazer: a roupa, a maquiagem e
alguns passos. Há também aqueles que tentam relatar as origens da dança,
porém elas são longínquas e de difícil verificação.
Esta monografia é o inicio de uma pesquisa que procura aprofundar o
olhar em relação à dança do ventre, desvinculando-a do aspecto
exclusivamente sexual. No primeiro capítulo, cataloguei alguns
estereótipos, tomando como critério, gravidade e distância em relação à
realidade. Para tanto, foram utilizados artigos publicados em revistas,
sobretudo, na época da novela "O Clone" (emitida pela rede Globo em 2002);
e também informações trazidas, com freqüência, por alunas no início das
minhas aulas[1]. Este capítulo inicial foi organizado a partir de uma
tentativa de esmiuçar essas características acopladas à dança do ventre,
desmistificando-as e separando o que de fato faz parte da dança e o que é
apenas fruto de desinformação ou preconceito.
Lidando com a dança do ventre há cerca de uma década, sempre
acreditei que haveria uma maneira de unir o seu riquíssimo universo
simbólico aos "padrões de movimentos". Isso porque, há um distanciamento
entre o trabalho corporal e os signos relacionados ao feminino, que ora
aparecem exagerados e produzem estereótipos, ora são negados por
conseqüência de preconceitos gerados em nossa cultura. No segundo capítulo,
proponho que este universo simbólico seja incorporado aos movimentos da
dança servindo como experiência e investigação do corpo feminino.
Além destas discussões gerais, a monografia focará também em uma
experiência específica que tive a oportunidade de conhecer através da
professora, da Universidade Federal da Bahia, Márcia Virgínia dos Reis
Mignac[2]. Quando as portas se abriram para este projeto, pude observar que
a dança do ventre está inserida num contexto absolutamente distinto dos
seus estereótipos, que não raramente têm estimulado a desvalorização e a
prostituição do corpo juvenil. O trabalho desenvolvido por Márcia em
Salvador, propõe exatamente o contrário. No caso, a dança do ventre ajuda
na recuperação de meninas que sofreram abuso sexual. Esta experiência é
relatada no terceiro capítulo.
Enfim, neste último ano de faculdade dei o primeiro passo para um
estudo da dança do ventre junto ao meio acadêmico, o que na minha visão tem
se configurado como um grande laboratório onde possibilidades podem ser
afloradas. Deslocar as instruções desta dança para um estudo do corpo, que
não esteja necessariamente ligado à dança étnica, é uma dessas
possibilidades. Como primeira pesquisa, esta monografia busca esclarecer e
apresentar uma nova alternativa aos textos que proliferam no mercado e só
exploram o lado sensual da dança do ventre.

 
 
 
 
 
 
 

Capítulo I


A mímese dos estereótipos


A Dança do Ventre tornou-se popularmente conhecida através da novela
"O Clone", exibida em 2002. Escrita por Glória Peres, o melodrama trouxe um
pouco da cultura árabe e mostrou que a dança pode ser apreciada como forma
de entretenimento. Relatou como as mulheres são tratadas de acordo com o
islamismo; tratou da poligamia e apresentou a dança árabe masculina e
feminina. Como tudo que é tratado através da comunicação de massa, a dança
do ventre também se tornou uma febre. Milhares de meninas que estavam
iniciando seus estudos começaram a dar aulas para atender a proliferação
dos inúmeros lugares que estavam ensinando a dança do ventre. Todo mundo
queria ser Jade (protagonista feminino) e dançar para conquistar Lucas (o
galã). Não precisou de muitos capítulos para que o folhetim se
transformasse num grande atrativo sexual. Conhecida como uma dança
sensualíssima, acabou por se tornar "uma arte de sacolejar os quadris"
(Minha Revista, 2001). De atriz, Giovanna Antonelli passou à instrutora da
técnica e, por conseqüência, da "arte de seduzir". Apareceu em muitas
revistas ensinando passos através de fotografias.






Não demorou muito para a mídia contribuir para o processo de
vulgarização da dança, propiciando o reaparecimento de músicas como "...
ela fez a cobra subir..." lançadas no ano 2000. Ao som do refrão as
bailarinas do grupo de pagode usavam adereços que emitiam signos da dança
do ventre e também executavam alguns movimentos da dança.
 
Ao entrar para o mercado através do mundo fantasioso das novelas, esta
dança mergulhou em profunda deturpação. O fato de ser uma "arma para a
sedução" (Minha Revista, 2001), fez com que muitas mulheres se tornassem
bailarinas de dança do ventre da noite para o dia. Usar a dança para
apimentar uma relação a dois, tornou-se uma meta a ser conquistada em menos
de um mês de aula, não raramente associada a técnicas de strip-tease e
assim por diante.
Contudo, este boom sofrido pela cultura árabe, ao invés de
elucidativo, fez retroceder as imagens dos séculos dezoito e dezenove
quando, devido às novas rotas de comércio, a moda árabe atingiu a Europa,
adentrou as casas, inspirou a moda, os costumes e alguns segmentos das
artes. Napoleão e sua expedição, em profundo deslumbramento, principalmente
pelo Egito, produziram volumosas páginas a respeito do "fascinante e
misterioso" Oriente, dando início à Era Orientalista, período em que foi
construída uma espécie de "imaginário oriental" altamente sedutor e
desejoso reforçado pelas pinturas da época que retratavam mulheres
misteriosas e nuas[3].


 

Em seu livro, Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente, o
ensaísta palestino Edward W. Said (1978) descreveu, através de uma atitude
política e uma consciência da relação imposta pelos processos de
colonização, a invenção de uma falsa imagem de grande parte do que
conhecemos como árabe. Ressaltou que havia antes de mais nada uma
necessidade de suprir variados interesses, muito mais do que um compromisso
com um contexto determinado. Orientalismo nada mais era do que um discurso
de poder.
A apropriação equivocada da cultura árabe resultou em equívocos
significativos em relação ao corpo da mulher oriental, porque este foi
submetido a um olhar carregado de valores culturais distintos. O pensador
indiano, Homi K. Bhabha (2003), que repensou criticamente o campo de
estudos inaugurado por Said, tem sinalizado e questionado o fenômeno em que
o colonizado "mimetiza" o colonizador para ser aceito, reconhecido,
catalogado. Entretanto, chama a atenção para o fato de que a mímica é um
acordo irônico e ambivalente porque, para ser eficaz deve transparecer a
diferença. As mulheres, vindas do Oriente, tiveram que se apropriar dos
valores sexuais ocidentais, porque estes estavam configurando a dança do
ventre. "Assumiram" trejeitos e comportamentos. Esta adequação foi em
etapas e o resultado do processo foi retratado em Hollywood, que no início
do século vinte, tornou "real" a sedutora imagem da mulher oriental árabe,
das histórias de 1001 noites de Sherazade. Esta nova atitude das mulheres
foi absorvida, servindo de referência até hoje. Enfim, as vestes e a
maneira de dançar dessa época configuraram a Belly Dance.
[4]
O exotismo estereotipado do Oriente foi traduzido nos filmes e
incorporado, principalmente, através de roupas e de comportamentos.
Taheya Carioca

Samia Gamal com Farid al- Atrache
1930 – Filme- Coleção Arabesque, Nova Iorque

Não há registro, de que nem as mais "ousadas" das bailarinas egípcias,
conhecidas por ghaziya (plural ghawazee)[5]; utilizassem roupas que
deixassem o ventre a mostra, as pernas de fora e os seios expostos. É
importante perceber que, hoje, a roupa de dança do ventre tornou-se uma
indumentária exótica, porque carrega a intenção ou interpretação da
bailarina, o que muitas vezes faz com que a roupa apareça mais do que a
própria, deslocando o olhar do espectador para o corpo-objeto. A exposição
exagerada do corpo também emite signos que resultarão na interpretação da
dança. Esse figurino específico tornou-se uma marca. Há evidências de que
esta roupa "congela" a dança, pois insiste no mesmo significado, aquele
configurado na nossa sociedade. Não raramente, no Carnaval ou nas festas à
fantasia, algumas mulheres e crianças vão trajadas de "Odaliscas", o que
produz uma confusão imensa, porque odalisca, segundo o dicionário Aurélio,
seria uma escrava que servia as mulheres do sultão, o que não tem nada a
ver com a dança do ventre.
Uma pergunta sempre me inquieta: o que afinal tornaria mulheres com
papéis sociais tão distintos, embaralhadas no mesmo estereótipo? A cascata
de desentendimentos e imagens orientalistas é imensa e não cabe a esta
monografia esgotá-las. O objetivo é apenas sinalizar o fenômeno.
No que diz respeito ao comportamento, uma atitude exótica em relação
ao que parece diferente, é esperada. Segundo Zygmunt Bauman (1999), algo
estranho e ainda não identificável, ao entrar no novo sistema cria
desestabilidade. Por ser algo indefinível é poderoso. Não é uma coisa nem
outra. Nem o mesmo, nem o outro. Então, o novo sistema estigmatiza e
neutraliza a coisa estranha, classificando-a como exótica. Desta maneira a
informação perde a significância moral e pode conviver "bem" neste novo
ambiente.
O povo egípcio é alegre e muito dançante. São ousados e extremamente
festivos. A dança do ventre no Egito conseguiu sobreviver à religião
mulçumana, que é super rígida em relação ao comportamento das mulheres.
Todos amam esta dança e a tratam com respeito. A diferença é que embora a
considerem sensual e atraente não a tratam especificamente como "sexual". A
mulher árabe quando dança, é vista em primeiro lugar como uma mulher
dançando, por isso sua sensualidade é expressa de forma natural,
espontânea, da forma como ela entende esses signos. O olhar, a sedução, o
jogo e o improviso fazem parte de uma apropriação com o público. A
bailarina ocidental, fruto de uma cultura de espetáculo representa e
"espetaculariza" o que é ser mulher, porque dentro da autonomia que o
próprio palco lhe dá, acredita que "tudo pode" ao dançar, e então, não
raramente interpreta de forma esteriotipada essa mulher poderosa, sedutora
e sensual.

Milla Tenório, Brasil




No entanto, algumas bailarinas orientais, principalmente as que
residem no Líbano, usam a imagem deturpada e configurada da bailarina
ocidental. Novamente, parece que o Bhabha está correto, porque esta atitude
representa a mímica da imagem que o "outro", o colonizador, criou. O
colonizado, "compra", importa e exporta essa imagem. E, não raramente esta
é repercutida no exterior. É um modelo tão fortemente implantado, que tem
sobrevivido aos tempos e aos novos pensamentos.







Dalia, Líbano

É preciso salientar que não há como negar a sensualidade da dança do
ventre. No entanto, o motivo pelo qual a sedução na dança do ventre é
tratada e olhada de maneira "sexista" ocorre principalmente por duas
razões: (1) a desinformação generalizada, pois há um cultivo ao misticismo
exagerado e a criação do mito bailarina; e (2) um forte preconceito em
torno da mulher, figura sedutora, gerado e introjetado pela igreja
medieval. Há também o fato de que a liberdade conquistada pelas mulheres do
século vinte e um deve ser conciliada com o discernimento entre
sensualidade ou sexualidade explícita e principalmente com o caminho que
cada uma vai escolher. "A boa dança está nos olhos de quem vê, refletindo a
postura de quem a executa". (Sabongi, 2004)
Há uma displicência por parte dos profissionais da área de Dança do
Ventre que insistem em utilizar o lado sensual da dança como marketing, o
que acaba destinando-a a um "recurso amoroso" e dando vazão à mídia para
igualar a dança do ventre ao pompoarismo e ao strip-tease.




O resgate da feminilidade também é mascarado através de técnicas para
atrair o parceiro sexual. Esta noção reflete o quanto, na nossa sociedade,
ainda
perduram vestígios de idéias machistas provenientes de conceitos sem
esclarecimentos que insistem na imagem da mulher-objeto .
A falta de uma organização e união de classe pelos profissionais desta
dança provoca confusões gigantescas a respeito da nomenclatura. Por ser uma
dança importada e com poucos profissionais que podem ser considerados de
fato pesquisadores da técnica, a sua nomenclatura não é oficial e varia
bastante de acordo com a escola. Existem padrões de movimentos que, de
certa forma, permitem a organização e a replicação desta dança, mas a
confusão de nomes muitas vezes cria armadilhas, pois o nome empregado não
condiz com a execução do movimento. Podemos observar, por exemplo, o
rebolar. Este movimento corporal, originário do samba, consiste em um
movimento redondo de quadril em que por conseqüência mexe-se o tronco. Na
dança do ventre existem muitos movimentos arredondados, mas normalmente
mexe-se o quadril separado do tronco e vice-versa. Os redondos (assim
chamados por mim), também possuem uma movimentação externa ao corpo, ou
seja, desenham no chão um círculo. Existem os redondos de desenhos internos
mas que, como disse antes, preservam a parte de cima "imóvel". Leigos
empregam o termo rebolar para a dança do ventre e ao fazerem isso agem de
maneira preconceituosa, porque não têm a menor idéia do que estão falando,
acabam por desvalorizar a dança. Não ter uma nomenclatura organizada de
maneira mais geral, faz com que a característica de "expressão de um povo",
culturalmente transmitida através da oralidade, sobreviva à indústria
cultural, pois esta emprega valores e funções às artes que, muitas vezes,
não correspondem ao pensamento específico da mesma. Para sobreviver em
regime capitalista, parece que tudo deve ter uma função para que possa ser
consumido, e esta função é padronizada para que aquilo se torne um produto.
O risco, sempre presente, é o de que, em seu processo evolutivo, não
raramente alguns pensamentos perdem a peculiaridade e a singularidade.
Transformada em objeto utilitário, podemos dizer que o slogan da
dança do ventre está vinculado aos benefícios que ela traz. Virou um
"pacotinho", cujo conteúdo inclui: auto-estima, sensualidade, feminilidade,
mistério e fertilidade. Pode ser "comprado" e "consumido", mostrando
resultados nas primeiras aulas. Este excesso de características exóticas e
pejorativas atribuiu à dança do ventre um misticismo exagerado e fez com
que muitas histórias sobre sua origem sejam inventadas e vendidas como
verdadeiras, apenas com o intuito de manter estável o imaginário de lugares
que só conhecemos através dos filmes.
A origem desta dança é incerta. Há registros de facções da dança do
ventre, em muitos lugares do Oriente. Devido à maioria desses países
utilizarem hoje a língua árabe, a dança ficou conhecida como uma dança
árabe. O fato é que, aqui no Brasil quando querem se referir a algo da
cultura árabe, a expressão é: lá das arábias. Entretanto, ao todo são 22
países árabes que apesar de falarem a mesma língua e a maioria seguir a
religião mulçumana (90%), possuem culturas extremamente diferentes. O rolo
compressor que chama tudo de tudo, também é usado na dança, pois cada um
desses países possui uma dança típica com nomes diferentes, mas para "nós"
é tudo dança do ventre. Só muda a roupa e o acessório que as bailarinas
utilizam.






























Capítulo II
Um novo texto cultural.


Um texto cultural não se restringe à formulação de construções
verbais, porque imagens, mitos, jogos, rituais, gestos, cantos,
performances, dança... são linguagens, que, assim como a verbal, mantêm uma
coerência própria capaz de estabelecer processos comunicativos. O ser
humano produz cultura[6], entre outras razões, para que estas informações
de vários domínios não se percam ao longo do tempo, entretanto os apelos de
cada época possibilitam novos conceitos, novos movimentos, novos gestos. O
processo é natural, mas a emergência desses novos fatores nos leva a crer
que a estabilidade de um sistema é variável. As informações entram,
continuamente, em um processo de re-contextualização.

Trazer a discussão sobre a dança do ventre para hoje, é perceber suas
adaptações em novos ambientes espaço-temporais. Longe dos exageros e das
"colagens" expostos no primeiro capítulo, há também outras possibilidades
de organização.

 
"Narrativizar significou e significa para o homem atribuir nexos e
sentidos, transformando os fatos captados por sua percepção em símbolos,
mais ou menos complexos, ou seja, em encadeamentos, correntes, associações
de alguns ou de muitos elos sígnicos. Foi provavelmente este procedimento o
gerador de um universo de sentido - universo simbólico".(Baitello, 1999:
37).
Podemos dizer, então, que as elaborações intelectuais e imagens
simbólicas a respeito da dança do ventre, têm funcionado culturalmente, no
sentido de permitir sua sobrevivência e contribuir para a estimulação do
aprendizado. A pesquisa, neste âmbito, contextualiza os conteúdos
ancestrais e a herança relativa à arte e aos papéis da mulher, inclusive
como mãe. A dança do ventre, dentro deste universo simbólico, é um rito de
celebração à vida que não só mimetiza a origem da vida, através de seus
movimentos ondulatórios representantes das contrações de uma gestante no
momento do parto, como também, faz com que as mulheres renasçam, pois como
em todo aprendizado há a "morte" como final de um ciclo.
Dentro deste universo simbólico, os conteúdos evocados pela dança do
ventre carecem de ritos e estratégias para que a execução do movimento se
transforme e estabeleça a relação perdida entre esta noção específica da
mulher com sua feminilidade.
"Pois bem, dançando com movimentos eróticos, que insinuavam a
fecundação, num ambiente de alegria e com prazer, essas jovens de seis mil
anos atrás, realizavam o seu treino físico e psicológico para o desempenho
das funções sexuais e maternais. O cheiro dos incensos, o ritmo acelerado
dos tambores e a exuberância dos movimentos são estímulos fisio-psíquicos
intensos, que podem levar a um estado de transe. Em condições assim, ocorre
as solturas das barreiras do inconsciente do pensamento, favorecendo o
contato com a dinâmica interna. Dessa maneira buscava-se ativar o arquétipo
inerente a todos e evocar a luminosa imagem da Mãe". ( Penna, 2000: 87).
A dança antiga que as sumérias, acádias, babilônias, egípcias e
asiáticas aprenderam de suas ancestrais foi, segundo Penna, uma expressão
ritual e sagrada de identificação entre a mulher e a deusa. Pelo
treinamento que essa dança proporcionava, as moças conseguiam superar o
medo, criar filhos saudáveis e sobreviver às rudes condições da época.
(op.cit, 2002: 88).
Esta dança hoje está inserida em uma época socialmente contraditória,
onde muito se fala sobre a sexualidade, mas perduram tabus e preconceitos a
respeito do sexo. Vive-se a herança da sociedade patriarcal e com isso são
carregados valores masculinos que, muitas vezes, separam a mulher-mãe da
mulher-sensual, pois a maternidade ganhou significado de dor e perda. Não
há como utilizar aquela dança que preparava as mulheres para parto em seu
contexto original. O imaginário orientalista organiza movimentos corporais
que possibilitam a contextualização de novos pensamentos.
O universo simbólico desta dança quando estudado pela psicologia[7],
entende que a vivência corporal desenvolve e traz à tona processos
psíquicos femininos. As suas primeiras representações eram rituais e os
movimentos se configuravam como forma de oração.
Através das ciências cognitivas, (e.g: Damásio 2000, Lakoff e Johnson
1999, Sacks 1986) sabemos que o processo de cognição começa na
motricidade. O pensamento daquela época, ou seja, dentro dos rituais e das
danças primitivas, foi apreendido e organizado em dança. Hoje, o pensamento
é outro, não utilizamos a dança como forma de oração, o que não significa
que não existam outras formas de informação organizada.
Através da teoria do Corpomídia (Katz e Greiner, 2001, 2003 e 2005), o
corpo é entendido como algo que se transforma evolutivamente e é co-
dependente do ambiente. Há trocas contínuas de informações com o meio.
Portanto, o corpo é algo que carrega marcas da vida, histórias e/ ou fatos
ocorridos, mas também é algo que evolui continuamente. A dança do ventre, a
partir dessas informações, consegue sobreviver neste ambiente tão diferente
de sua origem, porque há outras questões envolvidas que, por sua vez, são
adaptadas a partir das novas condições. Destaca-se: a tridimensionalidade,
a espacialidade e a temporalidade, imersas em aspectos da dança do ventre
relativos à base musical, à diversidade folclórica e à dramaticidade.
Sua estrutura musical é a música árabe, e esta é composta por ritmos
orientais e ocidentais[8]. Quero ressaltar a importância da música como
método eficaz de aprimoramento das noções sensoriais, através do tempo,
contratempo e pausa, e também da carga de intenção dada ao movimento. O
principal instrumento de percussão da música árabe chama-se derbacke[9].
Seu toque dita a qualidade de intenção que deve ser dada ao movimento,
permitindo um aguçamento do aparelho sonoro. Além disso, é possível
detectar o ritmo usado e codificar os padrões de movimento que podem ser
trabalhados. No entanto, esta codificação é dependente da interpretação e
repertório de movimento de cada bailarina. O ritmo também denota a
capacidade interativa do corpo que procura sempre agregar informação à
música e não apenas repetir informação.
Os braços possuem algumas características interessantes. A maneira
mais simples é usá-los apenas como moldura aos movimentos de outras partes
do corpo, deixando um tônus alto para possibilitar a sustentação das
cadeias musculares do braço. Ao incluir ombro, braço, antibraço e mãos,
todas as articulações são trabalhadas em rotação, para cima e para baixo,
para fora e para dentro, tendo o corpo como referência. Os movimentos
fluidos de braço escrevem um texto, que ao serem desvinculados de leituras
codificadas, evoluem para um gesto singular.
O pesquisador e coreógrafo Ivaldo Bertazzo (2000)[10], idealizador do
método de Reeducação do Movimento que propõe vivências corporais com mais
consciência, investiga a possibilidade de reestruturar o individuo em
função do movimento. A reeducação do movimento, ou seja, o entendimento
ósseo-muscular e direcional permite um profundo trabalho de corpo.
Investiga, minuciosamente, cada parte e as múltiplas possibilidades de
movimento. Aliando o conhecimento em anatomia e eutonia aos padrões de
movimento da dança do ventre, é possível compreender e recuperar a
tridimensionalidade do corpo e, também, devido à ciência das múltiplas
possibilidades de movimento, "florear" [11] a partir do movimento original.


A diversidade folclórica da dança do ventre traduz o pensamento de
diferentes povos, imersos em culturas distintas. Faz-se necessário o
conhecimento específico das regiões de origem e suas histórias. A bailarina
deve possuir uma interpretação específica para cada dança e entender os
objetos como bengalas, jarros, candelabros e pandeiros, não só como
adereços. O estudo e a investigação, no próprio corpo, das tensões e dos
diferentes tônus, dão qualidade específica a estas danças.
A expressividade na dança do ventre é um dos aspectos mais importantes
porque é necessário o conhecimento profundo de todas as outras etapas, para
que esta se apresente como uma postura estética e política. É preciso
conhecer bem as nuances da música para que seu corpo possa traduzi-las em
movimentos. A experiência motora traz à tona sensações vividas e uma
expressão facial sutil ou forte, dependente da intenção da intérprete.
É possível, também, aplicar o processo de pesquisa desta dança,
utilizando apenas algumas instruções da mesma. O fluxo, a transferência de
peso, o impulso, as rotações diversas, seja da parte superior ou inferior
do corpo, os diferentes tônus, a exploração do espaço e dos níveis, podem
trazer diferentes tempos e qualidades a estas instruções. Esta gama de
possibilidades permite que a "dança do ventre" seja utilizada num processo
de criação vinculado a contextos da dança contemporânea. Neste sentido, a
técnica pode ser entendida como um meio e não um fim. Ela se torna uma
ignição para novos pensamentos e não apenas para demonstrações virtuosas.
 

Capítulo III

"Da Dança ao Ventre de mãos dadas com a vida".
 
"Eu aprendi com a
primavera a ser cortada e a voltar inteira"

Cecília Meireles [12]
 
Márcia Mignac, bailarina e professora de Dança do Ventre, residente
no Estado da Bahia, em Salvador, formada, licenciada e atualmente
professora do curso de Licenciatura da Escola de dança da Universidade
Federal da Bahia, coordenou em 2003, ao lado de Ana Elisabeth Simões
Brandão (Beth Rangel)[13] o projeto: "A Dança do Ventre na reconstrução da
corporeidade em adolescentes vítimas de abuso sexual", proposto e aprovado
pelo Departamento de Criação Coreográfica da Escola de Dança da UFBA e
encaminhado ao PROEXT 2003/SESu-MEC tendo como parceria a Pró-Reitoria de
Extensão da Universidade Federal da Bahia. projeto entrou em vigor dia 12
de maio de 2004, com extensão em 2005.
Como parte da proposta, foram realizadas 45 oficinas, sendo trinta de
dança do ventre e quinze de arte-educação. As beneficiárias são vinte
meninas, na faixa etária de 12 a 18 anos, assistidas pelo CEDECA[14] e
Projeto Viver[15]. Além das professoras citadas a equipe é integrada por
Geovanna Alves Lemos, estudante de dança da UFBA, pela educadora Catarina
Vilanova Miranda de Oliveira, pela estudante de psicologia da UFBA Teresa
Paula Galvão Vieira da Costa e a doutoranda do instituto de Saúde coletiva
e professora da faculdade de enfermagem da UFBA, Jeane Freitas de Oliveira.
"O eixo central desta proposta é enfocar a dança como ação sócio-
pedagógica e contribuir na reorganização física e emocional do esquema
corporal comprometido pela introjeção do trauma sexual. Em oficinas de
dança do ventre e arte-educação, são objetivadas a reconstrução da
corporeidade e o fortalecimento da autonomia e da cidadania, por meio de um
trabalho articulado com eixos temáticos que atendam a educação para o
desenvolvimento de valores e novos projetos de vida. Como exemplo, pode ser
citado o acesso ao Curso Pré-Universitário da Escola de Dança da UFBA, nos
casos em que a participante deseje ingressar na Universidade e escolha a
Dança como atividade profissional."16
Aconteceu em maio de 2003 uma oficina de pré-seleção. Os critérios
escolhidos para a seleção foram: o fato das meninas serem assistidas pelo
núcleo psicossocial da instituição em decorrência do abuso sexual; atender
a faixa etária de 12 a 18 anos e disponibilidade de cumprir a carga horária
das atividades durante os 6 meses com a autorização dos pais. Atualmente
quinze adolescentes freqüentam o projeto, encaminhadas pelo CEDECA e pelo
VIVER.
Meninas que sofrem abuso sexual passam a ter muitas dificuldades
motoras, apresentam rigidez excessiva nas articulações, principalmente nos
joelhos, o que conseqüentemente interrompe a fluidez do movimento corporal.
Elas passam a possuir um corpo fragmentado, cindido e também um curvamento
típico da coluna com projeção de ombros para frente. O projeto tinha como
intenção inicial a reorganização física e o restabelecimento da ordem
natural do crescimento. As jovens se vêem em total aturdimento causado pelo
trauma da violência e vivem num conflito de papéis. Ao mesmo tempo,
vivenciam um luto infantil e a experiência precocemente imposta pelo abuso,
em muitos casos, na forma de estupro.
O projeto foi construído como hipótese, mais tarde comprovada, de que
o trauma da violência sexual é introjetado a partir do acionamento do corpo
e reorganizado através da reconstrução dada pela dança do ventre, pois
através da ação motora se tem uma nova atitude perante a vida.
A partir dos padrões de movimento da dança do ventre foi possível
investigar que o treinamento desta dança contribui para a reconstrução da
corporeidade dessas meninas, pois o movimento serve como ignição para a
desestabilização do corpo que foi fragmentado. A dança do ventre,
tipicamente feminina, traz a renomeação das partes negadas, marginalizadas.
Márcia sempre teve preocupação em não trazer a dança do ventre como
chamariz.
Em um primeiro contato, foi pedido às meninas que se auto-retratassem
em um brasão. Foi contada a história dos brasões, símbolo de identidade, e
através dos desenhos anônimos foi possível perceber, com a ajuda da
psicóloga, traços infantis, aturdimento entre o masculino e o feminino,
identificação com as professoras (reprodução das tatuagens delas) e muita
dificuldade em partilhar os brasões através de palavras. Em uma nova
tentativa, após seis meses de projeto, já foi possível notar grandes
transformações, muitas palavras de vida.

Márcia trouxe
A história da dança do ventre, desde o matriarcado, vem ressaltando a
importância da mulher neste período e questionando qual o papel que a
mulher ocupa hoje. Percebeu-se, em sala de aula, que para nomear a mulher
sempre aparecia o estigma negativo e se começou a classificar um "zoológico
das mulheres". A questão era: "qual seria a minha contribuição para isso?".
As professoras observam o comportamento das meninas, orientando para o
jeito de andar, falar e também para o tamanho da saia. Sinalizando a
existência de um comportamento emissor de signos configurados como
eróticos, sexuais, muitas vezes reforçado pela mídia. Em contraponto,
mostram como elas podem agir de acordo com sua idade e período de vida, a
adolescência sem ser alvo do interesse do outro.
O primeiro contato com a dança do ventre trouxe símbolos de forte
sexualidade como a feiticeira, o strip-tease. Aos poucos, o projeto foi
dissolvendo esses estereótipos e as meninas passaram a valorizar o corpo
feminino e entender que não poderiam ser mais uma na história a usar a
dança do ventre como atrativo sexual. Com o tempo, o comportamento sugerido
em sala de aula estava mudando o comportamento no cotidiano.
Em uma experiência em sala, a professora recolheu frases ditas pelas
meninas, nas oficinas de arte-educação, e as usou nomeando movimentos
congelados de dança do ventre, por exemplo:
"Olha como eu estou bonita!"; mãos na direção do quadril
"Estou paquerando"; mão no rosto, pose típica da dança do ventre e
etc...
Ligando estes movimentos foi possível construir uma grande história
dançada, exercitando a fluidez nas meninas e dando um viés suave do olhar
para si. Neste momento, o cuidado era no sentido de que as meninas
sustentassem aquela imagem construída e principalmente se olhassem daquela
maneira.
Segundo a professora Márcia, os conteúdos se cruzam. Fortalecer o
físico é também trabalhar o mental, o emocional e principalmente o
imaginário que a dança do ventre traz. As oficinas de arte-educação
ministradas primeiramente por Catarina, e hoje em dia por Ana Teresa
(Teca), norteiam o trabalho e contextualizam a dança para a real situação
das meninas, em sua maioria, negras, de baixa renda e violentadas. São
abordados temas a respeito do individuo na sociedade, direitos e deveres
como cidadãs: leis, histórias de mulheres vitoriosas, turismo sexual;
criando um espaço para a discussão. Também foi criado um "Contrato de
Convivência" (que fica preso na parede durante toda aula) e a "Tenda da
Amizade": envelopes contendo o nome de todas, onde as meninas trocam
cartinhas de agradecimentos, reclamações. Graças a essas cartas as
professoras do projeto confirmaram a suspeita de uma vida sexual
clandestina. Foram inseridas as oficinas de orientação sexual por Jeane
Freitas que apresentou, nas primeiras aulas, os órgãos e suas
funcionalidades, prevenção, métodos contraceptivos, gravidez, entrevista
com uma das meninas do projeto que tinha acabado de parir; e programação
para tratar dos temas como aborto e o próprio abuso sexual.
O lúdico é trabalhado para preparar o corpo, fortalecer a coesão do
grupo, afirmar as diferenças e também a confiança entre elas. Márcia faz
questão de ressaltar que a dança do ventre foi introduzida aos poucos
trabalhando apenas pequenas partes do corpo para dar visibilidade e re-
significação àquelas negadas e esquecidas. Afirma também, que na dança do
ventre não se usou movimento de repetição, porque para a professora, não
traria a reconstrução da corporeidade das meninas. Para a apropriação do
corpo, foram utilizados em sala de aula exercícios como: "que parte do
corpo você mais gosta?". As primeiras respostas sempre eram de partes que
não indicassem algo sexual, negando principalmente os seios e os quadris.
A professora sempre questionava a existência dessas partes e trazia os
movimentos da dança casando com as necessidades delas, destacando ainda,
que não tinha a proposta estética do movimento, o maior interesse era
apropriação da parte do corpo que estava mexendo. Quando inseria a dança do
ventre de fato muitas ficavam tensas e tímidas.
"Que impressão você tem do seu ventre?". Este foi o tema de uma das
aulas em que a Márcia trouxe a dança para perto das meninas. Usou também a
história e o significado do ventre no mundo todo, mas a idéia principal era
indicar o ventre como símbolo de fonte de vida e nascimento,
contextualizando a "origem da dança do ventre" nas sociedades antigas e
matriarcais17.
Essa etapa do projeto contribuiu para que essas meninas reconhecessem
mais uma parte do seu corpo e também para melhorar a relação afetiva entre
mãe e filha ressaltando a importância do amor materno abalado pelo
reconhecimento, muitas vezes, do pai como o agressor.
Um círculo feito de batom vermelho isolou a parte do ventre
centralizado pelo umbigo. Movimentos da dança do ventre localizados na
região dos quadris foram executados e o foco foi dado à movimentação desse
círculo. Após a aula depoimentos foram deixados em um papel.
O trabalho de realinhamento postural foi necessário principalmente
devido ao direcionamento do olhar para baixo, adquirido pela a atitude
perversa da sociedade de indicá-las como principal culpada pelo abuso,
nesse aspecto houve também um trabalho de conscientização para o papel
cultural da mulher, um objeto de desejo.
Dentro do imaginário que a dança do ventre traz, perguntaram às
meninas como seria a personagem odalisca. Percebeu-se, através dos relatos,
a personificação desta odalisca, alguns desejos e sonhos. No primeiro
capítulo faço uma crítica ao uso da nomeação odalisca para bailarinas de
dança do ventre, entretanto, ao ser questionada, Márcia respondeu: "Quanto
à palavra Odalisca, existe um pré-julgamento ocidental que é super clichê,
seria interessante até conceituar a palavra odalisca e discorrer sobre
esses preconceitos. Porém, para o perfil das meninas no projeto, de
periferia e baixa renda, a palavra odalisca foi usada por ser uma metáfora
mais aceita e de fácil entendimento. Elas não têm esse distanciamento e nem
essa análise crítica. Era melhor trabalhar com elas em alguns momentos a
projeção do mito, na terceira pessoa, "a odalisca não olha para baixo" ,
"uma odalisca é sempre charmosa, tem sempre atitude" , do que nomeá-las,
tipo " Fulana, não olhe para baixo", essa metáfora, a introdução de um
personagem, foi uma estratégia de co-projeção e uma forma de inserir
mandatos que não fossem invasivos e pessoais." Logo no começo do projeto a
Márcia trouxe: o mapa e fotos de várias bailarinas, da mais vulgar, a mais
clássica, a feiticeira, a Jeanny, fotos de beduínas, pinturas orientalistas
... Falando do significado e da carga, muitas vezes, vulgar dada a estas
imagens e também à figura odalisca, que está associada a serviços sexuais,
refletindo sobre o uso desses clichês.
Segundo Márcia: "Na autobiografia, muitas utilizaram a palavra
odalisca para projetar suas emoções e intenções, e continuo usando quando
sinto necessidade de dar vazão a essa porta subjetiva, do se renomear, e
agregar um outro olhar".
Todas as meninas receberam nomes árabes, apropriando-se da personagem.
Houve uma aula em que elas usaram as roupas de dança do ventre o que para
as professoras, foi um marco.
Márcia utiliza muitas metáforas no intuito de tentar descobrir até
que ponto as meninas estavam cientes de que a dança estava trazendo vida a
elas, então criou um exercício, em sala de aula, usando uma bacia e algumas
pedras de gelo. Pediu para as meninas segurarem as pedras de gelo e
perceberem que o calor da mão transformava o gelo em água, derretia. Usou
essa imagem dizendo que algumas violências configuravam-se em imagens
congeladas, mas que não importava o que havia acontecido no passado e sim o
que de fato elas estavam fazendo para isso mudar, ou seja, descongelando,
dando vida a essas partes, transformando o corpo em algo fluido.
"Houve dentro do exercício a proposta do descongelar os padrões
corporais e associar a dança como movimento que descongela e traz novos
padrões tônicos para o corpo, como: fluência, graciosidade, leveza e
continuidade. Assim como a própria vida, é uma tentativa de descongelar
imagens que foram introjetadas, seja através da memória (muitas meninas
trazem o ato da violência no cotidiano) ou em imagens de sonhos. Numa
tentativa de tentar elaborar essas imagens, recortes, que infelizmente
fazem parte da realidade", completa Márcia.
Em um outro momento utilizou este exercício para composição
coreográfica. Através da improvisação individual, foi associado às
metáforas que a água trás. Banho, limpeza, gostoso... lavar roupa, tomar
banho de mar, de rio, lavar um bebê... Márcia tentou associar essas
referências ao feminino. Figuras femininas como sereias que se banham e se
enfeitam, até a da cultura local, como OXUM, Deusa da água doce, orixá
feminino da fertilidade, doce, suave, que se enfeita e é vaidosa. E com
isso foi criando pequenas células de movimento, desconstruídas e
reorganizadas no corpo. Alguns exemplos foram os de uma menina que descobre
a sua face no rio e se surpreende como no mito de narciso e começa a se
enfeitar. Outra trás para a cena movimentos de como se tivesse dando banho
em seu filho, etc... Assim muitas imagens foram construídas. Esse exercício
tornou-se uma cena do espetáculo.
No projeto SESu/MEC havia a proposta de apresentação de uma aula
pública como amostra de final de curso, entretanto o potencial criativo e
expressivo das meninas desenvolvido no decorrer do processo requereu a
ampliação da amostra para o espetáculo "DA DANÇA AO VENTRE: DE MÃOS DADAS
COM A VIDA". A decisão da participação, a freqüência nos ensaios e a
apresentação do espetáculo no teatro exigiu das meninas, coragem,
autonomia, disciplina, responsabilidade e representou uma verdadeira
evolução individual e coletiva. O corpo outrora marginalizado e socialmente
desprezado tornou-se foco principal, central, valorizado e acolhido pelo
público. Serviu para que muitas afirmassem a sua nova postura para a
família, para a sociedade e principalmente para elas mesmas.
O projeto de 2004 foi concluído com todas as metas cumpridas de forma
positiva o que levou à extensão para o ano de 2005. As beneficiárias
experimentaram um processo real e transformador de vida. No que diz
respeito à dança do ventre, o projeto serviu como investigação pedagógica
desta dança colocando-a como estímulo motor da reconstrução do corpo
traumatizado e também como principal aliada ao resgate do feminino. Não
como meta, mas como processo.
 


 
 
 
 
 
 
 

Capítulo IV


Conclusões: Dança do Ventre, outras possibilidades.

 
Após analisar e relatar parte da evolução da dança do ventre, tendo
como critério suas diversas adaptações (adequação cultural ou interesse
comercial), proponho que esta conclusão seja o começo de uma reflexão do
que pode ser trabalhada a partir dos padrões de movimento que esta dança
constrói.
Na contemporaneidade, as artes trazem a pesquisa do corpo a partir das
especificidades de diversos lugares. Há uma "deshierarquização" das ações
corporais e a síntese da pesquisa é sempre processual, por isso tão
singular a cada corpo. Na dança do ventre, pode-se constatar que instruções
como: fluxo, transferência de peso, impulso, entre outras relatadas nesta
monografia, colocam-na em um lugar de experimento, e, portanto, podem
contribuir para a pesquisa contemporânea. Esta outra maneira de lidar com a
dança do ventre é mais abrangente do que daquela ligada à dança étnica,
entretanto é possível que uma complemente a outra reafirmando a
sobrevivência da dança do ventre durante tantos anos e em culturas tão
distintas.
A pesquisa de caráter investigativo é, portanto, oposta ao produtor de
estereótipos, que tem sido mais facilmente encontrado nos meios de
comunicação e escolas de dança no Brasil e no exterior.
Outras possibilidades de investigação estão vinculadas, por exemplo,
ao projeto da professora Márcia Virgínia dos Reis Mignac, porque o mesmo
contribui para a dissolução dos estereótipos, seguindo contra uma lógica
que afirma a dança do ventre como algo sexual e, em um primeiro momento,
coloca os movimentos desta dança, apenas como ignição motora e
conseqüentemente, descoberta das particularidades de cada corpo. Depois,
traz a dança do ventre e todo o seu universo simbólico, como fonte
estimuladora e reconhecedora do universo feminino, tão importante para
aquelas meninas violentadas. O local onde acontece o projeto, Salvador, é
propício para a discussão, pois as meninas estão imersas em um lugar que
transpira sexualidade, o qual tem como herança à perversidade dos pais, que
abusam de suas filhas para iniciá-las na vida sexual e por fim, onde o
turismo sexual é uma fonte de ambição e riqueza.
Com todas essas possibilidades, pretendo colocar em prática um
processo de criação a partir das instruções e verificar os possíveis
desdobramentos desta dança na cena contemporânea.


 
 
 
 
 

Bibliografia

 
 
Albuquerque, Fernanda G. C. O ventre da dança - a busca do feminino através
da dança do ventre. Trabalho de conclusão de curso de psicologia da PUC-SP.
2000.
 
Azevedo, Maria Amélia. Mulheres Espancadas - A violência denunciada. 1ª
edição SP: Editora Cortez, 1985.
 
Baitello, Norval Junior. O animal que parou os relógios - Ensaios sobre
comunicação, cultura e mídia. 2ª edição. SP: Editora Annablume, 1999.
 
Bauman, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência .RJ: Jorge Zahar Editor, 1999.
 
Bhabha, K., Homi. O Local da Cultura. BH: Editora UFMG, 2003.
 
Bencardini, Patrícia. Dança do ventre - Ciência e Arte. 1ª edição SP:
Editora Textonovo, 2002.
 
Bertazzo, Ivaldo. Espaço e Corpo - Guia de Reeducação do Movimento. 1ª
edição. SP: Editora Sesc, 2004.
 
Bertazzo, Ivaldo. Cidadão Corpo - Identidade Autonomia do Movimento. 1ª
edição. SP: Editora Summus, 2002.
 
Buenaventura, Wendy. Serpent of the Nile – Women and Dance in the Arab
World. New York :Editora Interlink Books, 1994.
 
Cenci, Claudia. A dança da Libertação. 1ª edição. SP: Editora Vitória
Régia, 2002.
 
French, Marilyn. A Guerra contra as Mulheres. Editora Best Seller. SP:
licença editorial Círculo do Livro. Traduzido por Maria Therezinha M.
Cavallari. 1992.
 
Greiner, Christine. O Corpo - pistas para estudos indisciplinares. 1ª
edição. SP: Editora Annablume, 2005.
 
Greiner, Christine e Amorim, Claudia. Leituras do Corpo. 1ª edição SP:
Editora Annablume, 2003.
 
Katz, Helena e Greiner, Christine – "A natureza cultural do corpo" in
Lições de dança 3. RJ: Editora UniverCidade, 2001.
 
Kurbhi, Fabiana Haddad. Dança do ventre o papel do corpo na individuação
feminina. Trabalho de conclusão de curso de psicologia da PUC-SP, 2001.
 
La Regina, Glaucia. Dança do ventre - uma arte milenar. SP: Editora
Moderna, 1998.
 
Marques, Sandra. Dança do ventre uma possibilidade de resgate do feminino
na mulher. Trabalho de conclusão de curso de psicologia da PUC-SP, 1994
 
Muraro, Rose Marie e Boff, Leonardo. Feminino e masculino - A nova
consciência para o encontro das Diferenças. 2ª edição RJ: Editora
Sextante, 2002.
 
Penna, Lucy. Dance e Recrie o mundo - a força criativa do ventre. 2ª edição
SP: Editora Summus, 2005.
 
Qualls-Corbett, Nancy. A Prostituta Sagrada – a face eterna do feminino. 4ª
edição SP: Editora Paulus, 2002
 
Said, Edward. Orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente. SP:
Editora Companhia das Letras, 1990.
 
Shokry, Mohamed. La Mujer y la Danza Oriental. Madrid: Mandala Ediciones,
1998.
 
Yolanda, Thomé Bettencourt. A mulher no mundo de hoje. RJ: Editora vozes,
1967.
 
Artigos em Revistas e Jornais:
 
Revista História Viva. RJ por Claudine Le Tourneur d'Ison, egiptóloga
-Tradução de Celso Paciomik. Edição nº5, março de 2004.
 
Revista Viver- Mente & Cérebro. SP: Editora Duetto, Novembro de 2004.
Sabongi, Jorge. " Sensualidade e Erotismo na Dança do Ventre". SP, 2003.
(Carol onde foi publicado este artigo do Sabongi?)


 


Websites:
 
www.khanelkhalili.com.br
 
www.lulusabongi.com.br
 
www.terra.com.br
 
www.folhauol.com.br
 
www.clonecomics.com
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
 
 



-----------------------
[1] Sou praticante da dança do ventre há dez anos e ensino há seis. Em
2002, me tornei proprietária junto a uma sócia, Valéria Alves, da Escola
Hôb Salam, localizada no bairro de Pirituba em São Paulo.
[2] Coordenadora do projeto Re-creio, que entre outras coisas, ministra
aulas de dança do ventre a meninas que sofreram abuso sexual.
3- Alguns artistas, como Etienne Dinet (1870), Filippo Bartolini (1860),
do século dezenove, não resistiram e viajaram pessoalmente ao Oriente
Médio, encontrando um mundo de encanto; afinal lá estavam distantes da
recém industrializada e conseqüentemente poluída Europa. O tema principal
de suas obras foi a mulher, e se faz necessário lembrar que eles tinham um
contato maior com as dançarinas e prostitutas, porque o Islã não permitia
que as mulheres se exibissem para estranhos, nas pinturas fica claro a
enorme sensualidade e também o enorme mistério daquelas que se ocultavam em
mantos.
 
[3] Capas dos Cds de George Abdo. Gravado em 1973. O modelo das roupas das
bailarinas, retratam a maneira configurada em Hollywood.
[4] As Ghawazee eram exóticas: tingiam seus cabelos com henna (usavam-
na também para decorar mãos e pés), delineavam os olhos com antimônio,
enfeitavam-se com pulseiras brincos e colares feitos de conchas azuis
(para afastar o mau-olhado), as moedas recebidas pela dança eram
pregadas as roupas principalmente na região dos quadris.
 
[5] A origem da palavra cultura vem de cultivo e, portanto, associada a
tudo que pode ser aprendido e replicado.Cada vez mais existem estudos de
que não é algo restrito ao homem.
 
[6] Na biblioteca da PUC-SP há trabalhos de conclusão de curso em
psicologia que estudaram essa relação com a dança do ventre. Como o de
Sandra Marques, em "Dança do ventre uma possibilidade de resgate do
feminino na mulher". Trabalho de conclusão de curso de psicologia da PUC-
SP, 1994.
 
8 - Alguns ritmos possuem influências ocidentais como: Fox, Bolero e o Vals
 
9 - É um instrumento que possui um corpo feito de alumínio e no topo há
uma "pele" que produz sons agudos, graves e intermediários a esses.

 
 
[7] - Ivaldo Bertazzo realizou um projeto com adolescentes do Complexo da
Maré (Rio de Janeiro) o que resultou em três espetáculos. Também, realizou
o espetáculo Dança comunidade com adolescentes de sete ONGs da periferia de
São Paulo. Todos, com a proposta de reestruturar o indivíduo através do
movimento.
 
[8] "Florear" é uma capacidade musical árabe que consiste em um improviso
dos músicos em cima da base. Semelhante a um diálogo.
 
[9] Frase de Cecília Meireles usada por Márcia para ilustrar as violências
que sofremos na vida.
 
[10] Beth Rangel, Diretora dos Colegiados de Curso e professora do
Departamento de Teoria e Criação coreográfica na UFBA.
[11] CEDECA - Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Instituição não-
governamental que atende crianças e adolescentes vítimas de abuso e
exploração sexual
 
15 Projeto Viver. Serviço especializado no atendimento a pessoas em
situação de violência sexual, ligado a Secretaria de Segurança Pública de
Estado da Bahia.
 
 
17 No Egito, Arábia e Fenícia (Líbano) os rituais de fertilidade eram
oferecidos as deusas Hathor, Bastet e Ísis.Cumpriam a mesma função de
encorajar a fertilidade humana e a germinação das sementes, mas focalizando
a região dos quadris e ventre nasceu uma dança centrada nas regiões
primordiais do corpo da mulher responsáveis pela reprodução. Utilizavam
movimentos ondulátorios, como representação do momento do parto e
nascimento. Essa dança, hoje, conhecemos pelo nome de Dança do Ventre.
 
 

-----------------------
Foto utilizada pelo grupo de pagode, É o Tchan, para divulgação da música
Alibaba.

Jean-León Gerôme – Harém Pool
c. 1860 pintura a óleo

Provavelmente, essa roupa usada, hoje, composta por duas peças e feita com
lantejoulas ou pedras, foi introduzida na dança a partir dos estúdios de
cinema. O uso de sapatos de salto para dançar também apareceu nesta época

Alexandria, Washington

 
 
 


Jillina, Los Angeles


 
 

"A dança do ventre no Líbano acabou tornando-se uma competição semelhante
ao nosso carnaval de escolas de samba, onde é gasto muito dinheiro neste
tipo de entretenimento. As roupas das bailarinas chegam a custar o
equivalente a três mil reais. Os shows possuem produções gigantescas, no
estilo broadway."

Segundo brasão

Primeiro brasão

Segundo brasão realizado por uma aluna do projeto.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.