ANÁLISE CRÍTICA DO CONTEXTO SOCIAL NO FILME (CAPITÃES DA AREIA)

July 24, 2017 | Autor: Sérgio Gurgel | Categoria: Direito Penal, Filosofia do Direito, Sociología, Direito E Arte
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Autores: Sérgio Quezado Gurgel e Silva (Brasil) e Márcio Rafael Gazzineo (Brasil) para a disciplina de História do Direito, integrante da matriz curricular do Curso de Doutorado em Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA).
BRASIL. Decreto nº. 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927, 1927.
SARAIVA, J. B. C. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil, Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2005, p. 35.
CLOWARD, R.; OHLIN, L. Illegitimate Means, Anomie and Deviant Behavior. American Sociological Review 24, p. 146.
BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999, p. 70.
GARCIA-PABLO DE MOLINA, A. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 170
Em referência a sua célebre trilogia literária, O Senhor Dos Anéis.
ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1998, p. 276.
ZAFFARONI, E. R.; PIRANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro, 9ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 84.
DE MOURA, G. M. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal, Niterói, Impetus, 2006, p. 36.
YOUSAFZAI, M. I am Malala: the girl who stood up for education and was shot by the taliban, London, Weidenfeld & Nicolson, 2013, p. 132.
Op cit. p. 135.
RAWLS, J. A theory of justice, Harvard, Havard University Press, 1999, p. 180.
ALTHUSIUS, J. Politica, Indianapolis, Liberty Fund, 1995, p. 48.

Análise Crítica do Contexto Social no Filme "Capitães da Areia"

Resumo
O presente trabalho promove uma reflexão crítica acerca das questões sociais presentes na obra cinematográfica Capitães da Areia (2011) da direção de Cecília Amado, baseado na literatura homônima de Jorge Amado.
Com efeito, a abordagem recairá sobre a realidade retratada pela película, em especial no que toca às dificuldades suportadas pelas crianças do enredo que, marginalizadas pela sociedade e pelas instituições públicas, lutavam pela sobrevivência através da criminalidade.
Sob um prisma mais acurado das idiossincrasias da realidade da época, primeiras décadas do século XX, será possível discorrer acerca da perda de identidade dos infantes, que se divorciavam de qualquer lembrança do passado, de suas famílias e de si mesmos, vez que a única importância de suas vidas resumia-se a garantir a sobrevivência naquele momento.
A despeito do momento histórico já longínquo, se verá que a temática se apresenta ainda atual, permanecendo hodiernamente o descompromisso efetivo do Poder Público com a preservação da vida e identidade das crianças abandonadas.

Palavras-chave
Capitães da areia, crianças abandonadas, marginalização infantil.

Abstract
The current work promotes a critical analysis of social issues present in the cinematographic work Captains of the Sand, directed by Cecília Amado, based on the homonymous literature of Jorge Amado.
The approach will fall on the reality protrayed by the film, particular as regards the difficulties suffered by the children of the plot that are marginalized by society and public institutions, fighting for survival through crime.
Under a more accurate perspective of the idiosyncrasies of the reality of the time, early twentieth century, you can argue about the loss of identidy of infants, which is divorced from any memory of the past, their families and themselves, since the only importance of their lives was summed up to ensure the survival at that time.
Despite the historical moment now distant, it will be seen that the subject appears still current in our times, remaining, nowadays, the effective disengagement of the government with the preservation on life and identity of the abandone children.

Palavras-chave
Captains of the Sands, abandoned children, children's marginalization.

Corpo do Trabalho
Prefacialmente, cumpre narrar que a história narrada no filme Capitães da Areia remonta a um período entre as décadas de 30 e 40 e tem cenário na cidade de Recife, localizada no sul do Estado da Bahia, num Brasil que ainda se alicerçava como República após o levante político-militar ocorrido em 1889 que culminou com o fim da soberania imperialista de Dom Pedro II.
O enredo retrata as dificuldades vivenciadas por um grupo de garotos de rua que se organizaram em uma espécie de colônia onde cada criança desempenhava um papel diferenciado em benefício daquela coletividade.
A despeito da curta idade, os garotos apresentam um comportamento maduro quanto à assunção de responsabilidades e encaram a desafiadora realidade com rigidez, na tentativa de ocultar quaisquer traços da jovialidade da quão ainda são indissociáveis.
O drama das crianças é realçado pelo desprezo ofertado pela sociedade baiana, que as considera escória indigna da própria existência e sem qualquer valor humano.
As dores da marginalização – literalmente, postos à margem – são minimamente amaciadas pelo acolhimento das instituições religiosas, que, apesar da pouca contribuição material para a sobrevivência dos menores, lhes contempla com o bem de que mais necessitam: atenção.
Pelo ambiente de abandono em que estão inseridas, as crianças desenvolveram um amadurecimento precoce que, aparentemente, lhes tolheu a capacidade de perquirir por sonhos, notadamente porque traçaram como o objetivo único de suas vidas a preservação da própria existência, simplesmente.
Este raciocínio se reflete com clareza nas situações do filme em que o nominado "Sem Pernas" insere-se em uma família patrícia como filho adotivo com a finalidade de facilita o saque que seria empreendido pelos demais garotos do bando.
Neste momento, "Sem Pernas" acabou por receber sinceras demonstrações de afeto da sua então mãe, que não poupava esforços em evidenciar seu interesse em conceder afeto, carinho e sustento material ao menor, que seria tratado como verdadeiro filho.
Ainda assim, o garoto optou pelo bando, permitindo a surdina entrada de todos na residência do casal com a pilhagem de diversos bens, sacrificando, assim, a oportunidade de reestruturação de sua vida no seio de uma entidade familiar manifestamente acolhedora e comprometida.
Outro evento que demonstra cabalmente que os garotos abandonaram a vontade de buscar a realização de seus sonhos por acreditarem-se indignos para tanto é o momento em que o chamado "Professor", agraciado com o dom da pintura, recebeu a proposta de um bem aparentado andarilho para que fosse à próspera cidade de Rio de Janeiro explorar com mais profissionalismo seu talento artístico.
Novamente, a oportunidade concedida ao "Processor" de autodeterminar-se em sua vida restou desperdiçada à medida em que o ligeiro furto da carteira do sujeito se tornou uma opção mais atraente naquele momento.
Apesar de jovens, as crianças se organizaram de forma disciplinada, havendo a figura de um líder, "Pedro Bala", ao qual todos garantiam respeito e o comprometimento deste com a integralidade dos garotos abandonados.
As disputas internas eram resolvidas, no mais das vezes, pelo líder que, quando necessário, se valia da própria força física (sua, ou de seu bando principal) para rechaçar qualquer motim ou ato de rebeldia, chegando, inclusive, a expulsar um grupo de garotos que promoviam arruaça no meio da coletividade de crianças.
Ainda assim, com as responsabilidades que sobre eles recaíam, a parcela infantil jamais se despregou do bando, que por vezes se viam divertindo-se em um carrossel ou brincando junto às ondas do mar nordestino.
Os capitães da areia, forma como eram conhecidos entre a sociedade baiana, apesar de austeros e rígidos em seus atos de vilania, não se libertaram dos desejos infantis de apenas serem felizes e sonharem, mas tais atributos se quedaram ofuscados pela realidade seca que lhes impunha uma busca rotineira e sinuosa pela sobrevivência onde não possuíam qualquer valor aparente.
A vida na criminalidade não foi, assim como ainda não é, um objetivo de vida para os garotos abandonados, na verdade, era o meio, aliás, o único meio de sobrevivência que puderam encontrar.
Embora de pequenas proporções, a batalha diária dos capitães da areia assemelha-se às lutas de classe que guiaram o curso da história da humanidade.
Assim como um dia os escravos buscaram reconhecimento, o fizeram as mulheres, o fizeram os trabalhadores, e ali, naquela cidade de Salvador/BA o fizeram as crianças abandonadas.
A revolução do líder "Pedro Bala" na colônia agrícola após sua internação evidencia o espírito revolucionário inserido em seus intentos e que lhe impediam de apenas se conformarem com a vida miserável que tinham.
Por volta daquela época, o ordenamento jurídico brasileiro não se prestava a contemplar a segurança e proteção dos jovens em situações de risco, mormente porque o Código de Menores de 1927 o qual, in thesis, dispunha sobre "assistência e proteção aos menores", inclusive sobre "medidas necessárias à guarda, tutela, vigilância, educação, preservação e reforma dos abandonados ou delinquentes", em verdade, apenas acentuou ainda mais a segregação destas crianças.
O referido Códex, pouco preocupado com o melhor interesse da criança abandonada, claramente emanava o fito de resguardar a sociedade contra elas, e não o contrário, como se vê da conceituação de criança vadia dada pelo seu art. 28, in verbis.

"Decreto nº. 17.943-A de 12 de Outubro de 1927.
Art. 28. Redija-se assim o § 2º do art. 2º do decreto n. 16.272, de 20 de dezembro de 1923: São vadios os menores que: 
a) vivem em casa dos paes ou tutor ou guarda, porém se mostram refractarios a receber instrucção ou entregar-se a trabalho sério e util, vagando habitualmente pelas ruas e logradouros publicos
b) tendo deixado sem causa legitima o domicillo do pae, mãe tutor ou guarda. ou os logares onde se achavam collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados, ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de occupação imoral ou prohibida." (sic)

Vê-se, ainda, no art. 71 do mesmo provimento legislativo que os menores delinquentes qualificados como perigosos poderiam até mesmo ser remetidos para uma prisão comum, onde cumpririam suas penas até a regeneração.
Tal qual o Código Civil vigente desde 1916, o Código de Menores de 1926 não teve o condão de preocupar-se com a salvaguarda de direitos humanos das crianças, o que concedeu ao direito brasileiro no início deste século XX um forte quê de patriarcal e patrimonialista, e não de social.
Apesar de vanguardista na América do Sul, esta lei de proteção aos menores deu berço a uma marginalização de toda criança pobre, ainda que pertencente a uma entidade familiar, notadamente porque tornava irregular – e passível de correição judicial qualquer situação em que o menor estivesse dado ou propício à delinquência.
Em suma, a indigitada lei não se preocupou em reestruturar o ambiente familiar para que melhor antedesse aos interesses da criança, mas sim retirá-la da delinquência de forma forçosa, impingindo-lhe privações de liberdade e as reinserindo em casas de proteção onde poderiam ser vigiadas até que se regenerassem.
A doutrina de Saraiva bem apontou o seguinte para a legislação da época:
"Veio-se construindo a Doutrina do Direito do Menor, fundada no binômio carência/delinquência. Se não mais se confundiam adultos com crianças, desta nova concepção resulta um outro mal: a consequente criminalização da pobreza."

A ideia marcante da época de que a família é funesta à infância impunha em um tratamento de indiferença, senão de reproche, às necessidades mais básicas dos menores abandonados, em especial no que verte à saúde, educação, lazer e moradia.
A Constituição Republicana de 1891, por sua vez, não dispendeu sequer um único dispositivo para garantir o direito à entidade familiar ou à criança em seu bojo, restando mais preocupadas em dispor sobre a organização do Estado e declarar alguns poucos direitos dos cidadãos brasileiros, havendo um tímido, mas reconhecido, avanço quando da Carta Magna seguinte, de 1934.
O "problema da criança" foi analisado pelo Brasil, no período a que se remonta a película ora em análise, como o problema que estes menores de rua causam à sociedade, e não como o problema suportado por estes indivíduos.
A própria Lei brasileira de nº. 6.994 de 19 de junho de 1908 estabelecia a criação de "colônias correcionais", locais onde os menores delinquentes haveriam que ser recolhidos, lá se quedando junto a criminosos adultos, o que é retratado no filme quando da retenção de "Pedro Bala" junto a outros detentos comuns.
Aliás, é de bom alvitre destacar que no Código Criminal vigente, de 1890, a inimputabilidade do menor somente ocorreria até os 9 anos, sendo que, entre os 9 e 14 anos, o magistrado do caso analisaria o nível de seu discernimento, podendo promover sua condenação.
A delinquência infantil pode ser explicada pela Teoria da oportunidade diferencial (Strain theory) de Cloward e Ohlin, que se aprofundaram nos estudos prévios de Durkheim, para os quais a criminalidade dos jovens menos abastados decorria de sua própria condição (subcultura) social, a qual lhe impunha como único meio de atingir os fins colimados (sobrevivência) a prática de delitos, e não um fim em si mesmo.
Para estes autores, uma série de fatores impõe a busca pela criminalidade como instrumento para atingir determinados objetivos.
"Roles, wheter conforming or deviant in contente, are not necessarily freely avaliable; acess to them depends upon a variety of factors, such as one's socioeconomic position, age, sex, ethnic affiliation, personality characteristics, and the like. The potential thief, like the potential physician, finds that access to his goal is governed by many criteria other than merit and motivation".

A conclusão a que se chega, segundo a indigitada teoria, é de que, quanto maiores as oportunidades de autodeterminação concedidas às famílias – e jovens – marginalizadas, menor a sua propensão à criminalidade.
Baratta, estudioso da criminologia crítica, empresta concordância a esta teoria quando explana que a subcultura econômica de uma classe corresponde à "diversidade estrutural das chances de que dispõem os indivíduos de servir-se de meios para alcançar os fins culturais", o que também é reiterado pela impecável doutrina de Antônio Garcia-Pablo ao compreender que a delinquência do infante é um "mecanismo subjetivo da ausência real de vias legítimas para fazer valer as metas culturais ideais".
A delinquência infantil que, infelizmente, ainda hoje acomete indistintamente as cidades brasileiras tem como maior propulsor a inexistência de políticas públicas que fomentem a educação das famílias de baixa renda, que insiram os jovens residentes das periferias em projetos culturais e profissionalizantes, que, enfim, permitam que qualquer ser humano, independentemente de sua classe social, seja efetivamente capaz de buscar e alcançar seus mais inocentes sonhos.
Dentre todas as necessidades primárias dos jovens marginalizados está a educação, que se pode enaltecer como a pedra angular do desenvolvimento de um país a longo prazo, vez que o seu fomento indubitavelmente afeta positivamente todos os outros setores (economia, assistência médica, segurança pública, cultura, et cetera).
O direito à autodeterminação, nestes causos, justifica a violação racional das vedações criminais, à medida em que um sujeito somente assim poderá identificar-se como indivíduo soberano de si mesmo e capaz de trilhar seu próprio caminho no sonho que perquire.
A imagem de uma criança abandonada ou de um delinquente juvenil frente à sociedade é estigmatizada como uma escória da qual as cidades devem se livrar, entretanto, cada um dos menores possui suas próprias características, seus próprios dons e anseios, não sendo possível desprezá-los porque reina em seus interiores um brilhantismo de personalidade, embora encarcerado pela pobreza e pelo abandono.
O filme apresentado demonstra uma realidade em que os crimes (ou atos infracionais) perpetrados pelos menores resumem-se a furtos e roubos, o que decorre da necessidade premente de se prover a própria subsistência com bens materiais mínimos, evidenciando uma delinquência famélica, e não por luxúria.
Beber da água da literatura ficcional pode auxiliar a melhor compreender o que representam os pobres capitães da areia, e aqui é válido reverberar os imortais ensinamentos de J. R. R. Tolkien na figura de Frodo de que mesmo a menor das pessoas pode exercer um grande papel na história do mundo.
Afaz-se oportuno arvorar a Teoria estrutural-funcionalista a fim de se apontar que um determinado ato jurídico somente pode ser tido por ilícito acaso a realidade social em que se insere o apresente como moralmente inidôneo.
Àqueles capitães da areia que se viram sem qualquer outra opção de sobrevivência, a prática de pequenos delitos é abarcada pela referida teoria, mormente porque o ato colimado é compreensível no meio social da época, em que não lhes era oportunizado, sequer em condições mínimas, saúde, educação, moradia, trabalho lícito ou qualquer outra assistência governamental.
E é justamente nesta situação de dicotomia em que a dúvida sobre a corretude de um ato é condenada pela lei mas possa ser moralmente aceitável que se destaca a falibilidade da premissa pela qual todos os atos proibidos por lei são injustos.
A criação de crianças marginalizadas – notadamente, dos delinquentes juvenis que daí advêm –, desprovidas de passado e sem qualquer centelha de expectativa para o futuro consiste em cenário cuja responsabilidade deve ser imputada ao Estado, falho em sua missão de prover harmonia e igualdade social.
Desta concepção se extrai uma particular doutrina, nominada como teoria da co-culpabilidade, que tradicionalmente se faz invocada nos imbróglios judiciais envolvendo a prática de atos infracionais por menores.
A referida corrente do estudo criminológico tem como primordial percussor o jurista argentino Zaffaroni, que bem a disseca ao compreender que parte da culpa pela prática de um delito famélico por um jovem abandonado, v.g., deve recair sobre a máquina estatal, que se quedou desidiosa em lhe prover uma alternativa lícita qualquer de sobrevivência.
Poder-se-ia, até mesmo, justificar a legitimidade do ato na seara criminal ante a escusa da inexigibilidade de conduta diversa, mormente porque não se poderia exigir de um sujeito em uma circunstância extrema de abandono e risco de vida que necessite furtar para se alimentar apenas aguarde a morte.
Para o renomado jurista argentino, a legitimidade da resposta criminal do Estado "surge de la necesidad que la impone el limitado poder de que dispone y, en modo alguno legitima la pena".
Assim, pela corrente teórica exposta, o notório nível de vulnerabilidade dos capitães da areia justificaria a aplicação desta excludente de ilicitude, legitimando seus atos porque escusáveis e condenando o Estado por sua ausência no trato desta problemática social.
Em obra compartilhada por Zaffaroni e Pierangeli, se tratou com maestria o ponto nevrálgico da teoria da co-culpabilidade, com especial correlação à falta de oportunidade dos infratores e à sua incapacidade de autodeterminação, senão vejamos.
"Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer há aqui, uma "co-culpabilidade", com a qual a própria sociedade deve arcar."

O entendimento é reforçado pela doutrina de Moreira de Moura, para quem a teoria "reconhece a co-responsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos, praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação".
Trata-se de um desdobramento lógico do princípio máximo da isonomia, pela qual se deve perquirir as minúcias das circunstâncias da vida do menor abandonado antes de lhe impor uma condenação ou pena.
Retomando a relevância da educação como o instrumento-mor de combate à delinquência infantil retratada na película Capitães de Areia, afaz-se prudente destacar a premissa de que a construção de mais escolas e a educação de mais crianças evita a necessidade de se construir mais presídios ou de se punir mais os adultos no futuro.
A promoção da educação como um dever estatal e um direito do povo oportunizaria aos jovens de classes menos abastadas a chance de autodeterminação, capacitando-os a adquirirem autonomia através do labor e engrandecendo-os em intelectualidade que lhes propiciaria uma análise crítica mais acurada de tudo que os cerca.
Em reconhecimento da indispensabilidade da educação de todos como forma de se combater as mazelas sociais que acometem uma comunidade, a Nobel da Paz, Malala Yousafzaï pregou com fervor que o ensino deve ser sempre uma prioridade, e bem assinala que "a caneta e as palavras podem ser muito mais poderosas do que metralhadoras, tanques ou helicópteros", concluindo impecavelmente ao conclamar que "deveríamos aprender tudo e então escolher qual caminho seguir".
Contudo, seja por natureza própria, seja pela sua formação ao longo da vida, o homem tende ao egocentrismo, e não raramente o legislador – que, antes de tudo, é homem – olvida em garantir às classes mais humildes da sociedade um provimento legislativo eficaz e que lhes garanta mais objetivamente o direito de acesso ao ensino.
A atividade legislativa seria o primeiro ato positivo a ser empregado pelo Estado e, para tanto, se torna recomendável a utilização do principado de John Rawls intitulado véu da ignorância, pelo qual o parlamentar haveria que se imaginar na situação de cada indivíduo quando da confecção de uma lei.
Oportuno trazer à baila os ensinamentos consagrados pelo referido sociólogo, vez que sua hermenêutica tem, teoricamente, se apresentado bastante viável a fim de resguardar direitos de minorias.
"The aim is to use the notion of purê procedural justice as a basis of theory. Somehow we must nullify the effects of specific contingencies which put men at odds and tempt them to exploit social and natural circumstances to their own advantage. Now in order to do this I assume that the parties are situated begind a veil of ignorance. They do not know how the various alternatives will affect their own particular case and they are obliged to evaluate principles solely on the basis of general considerations".

A edição de leis que abracem a realidade da delinquência juvenil como um problema a ser respondido de forma acautelada, com educação dos jovens, e não repressão criminal, é o primeiro passo de um longo processo de modulação social, cujos maiores obstáculos serão enfrentados quando do cumprimento das próprias leis.
Ao Poder Executivo recai a responsabilidade de tornar efetiva a proteção dos menores abandonados com políticas ostensivas de promoção de eventos culturais, de oferecimento de cursos profissionalizantes, com o estabelecimento de novas instituições de ensino básico e fundamental, assim como a manutenção e melhoria da infraestrutura das já existentes.
O retorno ao Estado será propiciado em longo prazo e de diversas formas, vez que a garantia de ensino básico e fundamental de qualidade propicia o desenvolvimento de uma sociedade intelectual e crítica, promovendo, daí, melhoria de mão-de-obra local, impulsão na economia com instalação de novas empresas (nacionais e estrangeiras), redução dos índices de criminalidade, conscientização no que toca a saúde familiar e, por fim, o resultado de uma imensa melhoria na qualidade de vida não somente dos menores, que passariam a dispor e maior autodeterminação, como da sociedade integralmente considerada, que se beneficiará dos potenciais préstimos destes jovens que poderão somar esforços no mercado de trabalho e no enobrecimento cultural do país.
Importante destacar a reflexão de Johannes Althusius acerca de importância de cada indivíduo para a construção de uma sociedade harmônica e proveitosa.
"For this reason God willed to train and teach men not by angels, but by men. For the same reason God distributed his gifts unevenly among men. He did not give all things to one person, but some to one and some to others, so that you have need for my gifts, and I for yours. And so was born, as it were, the need for communicating necessary and useful things, which communication was not possible except in social and political life. God therefore willed that each need the service and aid of others in order that friendship would bind all together, and no one would consider another to be valueless. [§ 27] For if each did not need the aid of others, what would society be? What would reverence and order be? What would reason and humanity be? Every one therefore needs the experience and contributions of others, and no one lives to himself alone."

Os capitães da areia eram especiais e providos de habilidades natas, cada qual em determinada área, de sorte que eventualmente seriam de serventia à coletividade ao compartilhar estes dons com obras artísticas (Professor) e em liderança de lutas de classes (Pedro Bala), por exemplo.
A evidente conclusão a que se chega empós promovida a análise crítica do contexto social em que se inserem os personagens da obra cinematográfica Capitães da Areia é uma só: a ausência de participação ostensiva e capacitada da sociedade civil e das instituições públicas permitiram o desenvolvimento de uma subclasse social marginalizada que, por carecedora de autodeterminação, encontrou na delinquência a única forma de prover sua própria subsistência.
Não obstante o potencial oculto em cada um daqueles jovens cujas identidades paulatinamente vinham sendo ofuscadas poderia ser resgatado acaso oportunidades lhe fossem concedidas, oportunidades de apresentarem seus valores e suas personalidades à comunidade, o que, ao tempo, era algo impensável.
A legislação que se evolui em conjunto com as modificações da sociedade deve acompanhar os anseios das classes menos favorecidas economicamente de forma a lhes propiciar iguais condições de autodeterminação, apresentando-lhes opções de sobrevivência e autoafirmação distintas da criminalidade.
A delinquência infantil, mais do que um problema de política criminal é uma enfermidade social que deve ser combatida com a devida atenção às peculiaridades da situação, tomando os seus agentes como possíveis vítimas do ambiente em que já nasceram inseridas, justificando, assim, o empréstimo de um trato diferenciado a estes jovens, que, mais do que punidos, devem ser reinseridos na sociedade como verdadeiros cidadãos através da porta da educação.

Bibliografia
ALTHUSIUS, J. Politica, Indianapolis, Liberty Fund, 1995.
BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999.BRASIL. Decreto nº. 17.943-A, de 12 de Outubro de 1927.
CLOWARD, R.; OHLIN, L. Illegitimate Means, Anomie and Deviant Behavior. American Sociological Review 24.
DE MOURA, G. M. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal, Niterói, Impetus, 2006.
GARCIA-PABLO DE MOLINA, A. Criminologia: Introdução a seus fundamentos teóricos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.
SARAIVA, J. B. C. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil, Porto Alegre, Ed. Livraria do Advogado, 2005.
RAWLS, J. A theory of justice, Harvard, Havard University Press, 1999.
YOUSAFZAI, M. I am Malala: the girl who stood up for education and was shot by the taliban, London, Weidenfeld & Nicolson, 2013.
ZAFFARONI, E. R. En busca de las penas perdidas, Buenos Aires, Ediar, 1998.
ZAFFARONI, E. R.; PIRANGELI, J. H. Manual de direito penal brasileiro, 9ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011.

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