Análise da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica à luz das teorias maior e menor da desconsideração

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Análise da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica à luz das teorias maior e menor da desconsideração Davi Guimarães Mendes1

Introdução Uma das novidades do Código de Processo Civil de 2015 foi o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que traz o procedimento aplicável quando da utilização da teoria em questão. Porém, por conta, sobretudo, da pouca clareza das previsões de direito material quanto a esta matéria, e não tendo a disciplina processual se disposto a esclarecer pontos controversos da legislação material, surgem dúvidas principalmente em se falando da aplicabilidade do incidente aos diversos casos de desconsideração da personalidade jurídica do direito brasileiro. Pretende o presente estudo contribuir para esclarecer as hipóteses em que o incidente deverá ser adotado, fazendo uso, para isso, da classificação da desconsideração da personalidade jurídica, no ordenamento jurídico pátrio, em teoria maior e teoria menor da desconsideração. Analisa-se, para isso, esta questão de forma crítica, procurando-se determinar em quais casos o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no Código de Processo Civil de 2015, é aplicável.

1 Breve histórico e contornos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica Os casos State x Standard Oil Co., em 1892, Salomon x Salomon & Co., em 1897, e First National Bank x F.C. Trebein Company, em 1898, são comumente 1

Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Contato: davi.guimarã[email protected].

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apontados como as primeiras ocasiões em que houve a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (GONÇALVES, 2014, p. 110). No que se refere à primeira ocasião, concluiu-se que, havendo uma série de empresas que atuavam na mesma área e controladas pelo mesmo grupo de acionistas, o que existiria, em verdade, seria tão somente uma companhia, responsabilizando-se todas as empresas entre si (COELHO, 2014, p. 75-76). Em se falando da segunda ocasião, explica Didier Jr. (2015, pp. 514-515) que o entendimento de primeira instância, posteriormente reformado em sede recursal, foi o de que Aron Salomon, dono da quase integralidade das quotas da A. Salomon Ltd., teria se utilizado da autonomia patrimonial da sociedade e da sua limitação de responsabilidade como artifícios para fraudar os credores, sendo possível, nesse caso, responsabilizar diretamente o sócio da empresa, pois haveria total controle acionário por parte do sócio, não se justificando a separação patrimonial entre ele e a pessoa jurídica. Já no último caso, tem-se a aplicação pioneira da desconsideração inversa da personalidade jurídica, em que, conforme ensina Caio Mário (2013, p. 282), certo devedor insolvente, intentando fugir dos compromissos firmados com seus credores, transferiu todo seu patrimônio a uma sociedade por ele constituída, operação esta considerada fraudulenta e que justificou que a execução recaísse sobre os bens da sociedade, e não tão somente do sócio, que era o devedor original. Para além das decisões judiciais, no campo doutrinário a temática começou a ter desenvolvimento já no início do século XX, citando-se, como exemplo, Wormser (1912, p. 496, tradução nossa), que acerca da temática afirma: Todos os escritores de direito comercial concordam que em certos casos e em certos momentos uma companhia deve ser considerada uma entidade separada de seus sócios individuais. Praticamente todos os escritores concordam, também, que em certos casos essa teoria da entidade deve ser desconsiderada. Por vezes nós olhamos para as empresas como uma unidade, outras vezes nós olhamos esta como uma coleção de pessoas. Quando o conceito de personalidade corporativa deve ser adotado, e quando deve ser ele desconsiderado?

Explica Coelho (2014, pp. 59-60) que foi tão somente com Rolf Serick, contudo, que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve maior aprofundamento e sistematização, tendo este autor elegido quatro princípios que 72

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deveriam guiar a desconsideração da personalidade jurídica: primeiramente, a desconsideração pode se dar quando houver abuso da forma da pessoa jurídica a fim de praticar ato contrário ao direito, em segundo lugar, não cabe desconsideração quando simplesmente uma norma não alcança seu objetivo ou um negócio não é cumprido – a mera insatisfação do direito do credor não enseja desconsideração da personalidade jurídica –, como terceiro princípio, as normas referentes à capacidade e ao valor humano devem ser aplicadas à pessoa jurídica quando não contradisserem sua função, e, por último, seria cabível a desconsideração quando as partes em um negócio jurídico não pudessem ser consideradas um só indivíduo tão somente por conta da utilização de uma pessoa jurídica. Sintetizando o entendimento de Serick, Menezes Direito (2006, pp. 109110) aponta que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica representa um afastamento pontual, que não representa a extinção da sociedade, da separação existente entre a pessoa jurídica e seus membros, nos casos em que estes abusam de sua estrutura para fugirem do adimplemento de obrigações, que podem ser originariamente suas ou da sociedade. Rubens Requião, inspirado pelos já mencionados estudos de Rolf Serick (AMORIM, 1999, p. 57), foi o responsável pela introdução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, na década de 1970, tendo esta sido, a princípio, adotada pelos tribunais mesmo sem previsão legal específica (MARTINS, 2012, p. 167). Ainda em se falando da adoção da disregard doctrine pelo ordenamento pátrio, foi esta pela primeira vez positivada no Art. 28 do Código de Defesa do Consumidor2, em termos que, apesar de muito criticados pela doutrina especializada (PEREIRA, 2013, p. 285), serviram de inspiração a previsões posteriores

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Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1º. Vetado. § 2°. As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3°. As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4°. As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

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no Art. 18 da Lei nº 8.884/19943, referente às infrações à ordem econômica, e no Art. 4º da Lei nº 9.605/19984, relacionada à matéria ambiental. Por fim, retornando aos clássicos contornos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e em função disso mais elogiado pelos estudiosos (CLÁPIS, 2006, pp. 121-122), tem-se o Art. 50 do Código Civil de 20025. Verifica-se, portanto, que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo, já há bastante tempo, aplicada como forma de coibir abusos na utilização da pessoa jurídica, tendo sido devidamente desenvolvida e incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro, primeiramente como construção jurisprudencial e, mais recentemente, em diversas normas, cujas definições e hipóteses de aplicação da teoria, porquanto distintas, suscitam diversos debates, melhor desenvolvidos no tópico seguinte.

2 Considerações acerca das teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica No Brasil, em face da diferença de conteúdo entre as normas que previram a desconsideração da personalidade jurídica, surgiu uma divisão doutrinária, proposta por Fábio Ulhoa Coelho, que nomeava a clássica teoria da desconsideração da personalidade jurídica, disposta no Art. 50 do Código Civil e que devia se aplicar à generalidade dos casos, de teoria maior, e as demais, que eram previsões específicas, primeiramente previstas no Art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, de teoria menor (RAMOS, 2014, p. 425). Imperioso trazer à baila o posicionamento do próprio autor desta divisão doutrinária, que não mais a utiliza, por não a achar necessária, diante do 3

Art. 18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

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Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

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Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

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maior esclarecimento existente atualmente acerca dos contornos de cada um dos dispositivos supramencionados (COELHO, 2014, p. 70), afirmação em que o segue Ramos (2014, p. 425). Apesar disso, assim como o fazem, por exemplo, Farias e Rosenvald (2014, p. 427), utilizar-se-á a nomenclatura em questão no presente trabalho, eis que, muito embora tenha havido a pacificação do contorno das previsões de direito material referentes à desconsideração da personalidade jurídica, surgem com o Código de Processo Civil de 2015, ao constar neste, dos Arts. 133 a 137, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, dúvidas relacionadas à aplicabilidade do novo instrumento processual aos vários contornos que assume a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro. No que se refere à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, tem-se que ela apresenta, como pressuposto essencial, a utilização da separação patrimonial existente entre sócio e sociedade de forma fraudulenta ou abusiva, a fim de impedir que os credores do sócio ou da sociedade obtenham a satisfação de seus créditos (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 427). Consagrando esta teoria, o Art. 50 do CC/02 não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica em caso de mero inadimplemento por parte da sociedade, estabelecendo como requisito o abuso da personalidade jurídica. Apesar de os estudiosos da temática serem unânimes ao apontar que a constatação de fraude ou abuso é requisito para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, explicam Farias e Rosenvald (2014, pp. 427-428) que há divergências quanto à necessidade de se comprovar a intenção do sócio em prejudicar terceiros, de modo que se pode dividir a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica em teoria maior subjetiva, que estabelece a necessidade de demonstrar que o sócio teve por intenção prejudicar terceiros, e objetiva, em que o elemento volitivo não é essencial, sendo bastante se observar certos requisitos para a aplicação da teoria. No caso do Brasil, prevaleceu, no Art. 50 do CC/02, a teoria maior objetiva, haja vista que pode haver a desconsideração quando se verifica a existência de utilização fraudulenta da pessoa jurídica (ANDRADE, 2005, p. 534), mas também com a simples constatação de que houve desvio de finalidade ou confusão patrimonial (RAMOS, 2014, p. 416), casos em que, segundo a explicação de Clápis (2006, p. 117), presume-se a fraude. Também como pressuposto da aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica está a aparente licitude dos atos praticados pelo sócio ou 75

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administrador, cujas atitudes, em princípio de acordo com o ordenamento jurídico, só são consideradas ilícitas em função da utilização abusiva ou fraudulenta da separação patrimonial existente entre eles e a pessoa jurídica (COELHO, 2014, pp. 65-66). A respeito desse requisito para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, Didier (2015, p. 518) afirma: É importante frisar, curiosamente, que a aplicação da teoria da desconsideração pressupõe a prática de atos aparentemente lícitos (ao menos aparentemente). Aplica-se a teoria da desconsideração, apenas, se a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária colocar-se como obstáculo à justa composição dos interesses; se a autonomia patrimonial da sociedade não impedir a imputação de responsabilidade ao sócio ou administrador, não existe desconsideração.

Isto é, não se utiliza a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica na hipótese de a constatação de ilicitude do ato praticado pelo sócio ou administrador não depender da declaração de ineficácia da personalidade jurídica. Neste caso em específico, aplicar-se-ia regra de responsabilização patrimonial, nos termos do Art. 1.080 do Código Civil de 20026. Verifica-se ainda, no âmbito da teoria maior, a diferenciação da desconsideração da personalidade jurídica, que consiste na “declaração de ineficácia do princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva” (CLÁPIS, 2006, pp. 32-33), da responsabilidade patrimonial do sócio, em que há mera previsão legal de que o sócio responde com seus bens por dívidas contraídas pela sociedade em certas ocasiões, apontando Didier (2015, p. 518) que “uma regra geral que atribua responsabilidade ao sócio, em certos ou em todos os casos, não é regra de desconsideração da personalidade jurídica”. Por fim, ressalta-se que, representando a desconsideração da personalidade jurídica, na teoria maior, uma ineficácia da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, não se pode aplicar a regra geral de responsabilidade subsidiária do sócio, prevista no Art. 596 do CPC/737 e repetida no Art. 795, § 1º, do CPC/158, 6

Art. 1.080. As deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram.

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Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.

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Art. 795, § 1º. O sócio réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade.

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já que, conforme posicionamento de Massoud (2012, pp. 84-85), acontecendo a desconsideração da personalidade jurídica, não mais se pode falar, no caso em que ela foi aplicada, de separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa física que dela faz parte, havendo responsabilidade primária. É como se inexistisse a pessoa jurídica naquele caso em especial, considerando-se o patrimônio do sócio e da sociedade um só, apenas naquela situação específica, opinião compartilhada por Didier Jr. (2012, p. 9), que destaca ser “impertinente discutir benefício de ordem (art. 596 do CPC/73) na desconsideração da personalidade jurídica”. Sendo assim, ao se aplicar a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, não é necessário provar a insolvência da pessoa jurídica, opinião compartilhada por Ramos (2014, p. 423) e esposada no Enunciado de nº 281 da IV Jornada de Direito Civil, cuja redação é a seguinte: “A aplicação da teoria da desconsideração, descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica”. Já no tocante à teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, emerge como sua principal característica o tratamento indiscriminado tanto de regras de responsabilização patrimonial do sócio quanto de desconsideração da personalidade jurídica utilizando esta última alcunha (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 428). Por se verificar a teoria menor da desconsideração em diversas normas, que por vezes estabelecem critérios distintos, far-se-á uma análise das principais disposições que a consagram, apontando seus requisitos e melhor elucidando seu caráter. Analisa-se, em primeiro lugar, o Art. 28 do CDC, pois foi neste artigo que se previu pela primeira vez a desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, tendo sua redação inspirado vários outros dispositivos. Como ensejadores da desconsideração, elencou o legislador o abuso de direito, o excesso de poder, a infração da lei, o fato ou ato ilícito, a violação ao estatuto ou contrato social, a falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica por má administração e todos os casos em que a personalidade obstaculizar o ressarcimento de créditos consumeristas. Pode-se dividir as hipóteses de aplicação da desconsideração no âmbito consumerista, por conseguinte, em três grandes grupos, quais sejam: o abuso de direito por parte do sócio, a prática de atos ilícitos ou de má administração e a obstaculização do ressarcimento do consumidor. 77

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No que se refere ao abuso de direito, percebe-se que o que há é prevalecimento da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, de forma semelhante ao previsto no Art. 50 do CC/02, e não da teoria menor (COELHO, 2014, p. 73). Em se falando da segunda e da terceira hipótese, de prática de atos ilícitos ou de má administração e de mero prejuízo ao credor, o que se constata é a utilização do termo desconsideração da personalidade jurídica para uma regra que, a rigor, referir-se-ia à mera responsabilização dos sócios e administradores (COELHO, 2014, pp. 73-74), ressaltando-se que inclusive existem previsões legais genéricas que atribuem responsabilidade ilimitada aos sócios pela prática de atos ilícitos ou infringentes dos documentos sociais, tal como o já mencionado Art. 1.080 do CC/02, e aos administradores por atos culposos de má administração, como o Art. 1.0169, sendo nesses casos desnecessária a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (RAMOS, 2014, p. 414). Apontando igualmente a desnecessidade de se proceder com a desconsideração nos casos de prática de atos ilícitos ou infringentes do estatuto ou contrato social, cita-se o Enunciado de nº 229 da III Jornada de Direito Civil, que assim estabelece: A responsabilidade ilimitada dos sócios pelas deliberações infringentes da lei ou do contrato torna desnecessária a desconsideração da personalidade jurídica, por não constituir a autonomia patrimonial da pessoa jurídica escudo para a responsabilização pessoal e direta.

Sendo assim, o que se verifica no Art. 28 do CDC, com exceção da hipótese de abuso de direito, em que se percebe a aplicação da teoria maior da desconsideração, é a previsão de várias regras de responsabilidade patrimonial ilimitada dos sócios e administradores de empresas com a utilização atécnica do termo desconsideração da personalidade jurídica. No caso da hipótese de prática de atos ilícitos ou de má administração, inclusive, não há mais nem mesmo necessidade de previsão específica para a matéria consumerista, já que, conforme apresentado, existe previsão genérica que estende essa responsabilidade às demais áreas do Direito. Já em se falando da hipótese de a pessoa jurídica representar obstáculo ao ressarcimento do consumidor, está-se diante de uma previsão de responsabili9

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Art. 1.016. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções.

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dade ilimitada subsidiária dos sócios: sempre que os bens da sociedade forem insuficientes, isto é, quando for esta insolvente, recairá a execução sobre os bens pessoais dos sócios (RAMOS, 2014, p. 415). Alguns doutrinadores, tais como Coelho (2014, pp. 74-75), enxergando excesso na previsão de responsabilidade ilimitada dos sócios por dívidas de matéria consumerista da sociedade, tentam limitar o dispositivo, sujeitando-o aos pressupostos da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Não nos parece, contudo, a interpretação mais adequada da norma em questão, visto que se trata de aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, ou, de forma mais técnica, regra de responsabilização do sócio, e não de desconsideração, motivo pelo qual é mais adequada a hermenêutica promovida por Farias e Rosenvald (2014, p. 431), que esclarecem que a legislação consumerista autoriza a responsabilização dos sócios sempre que for insuficiente o patrimônio da empresa para ressarcir os prejuízos causados a consumidores. Também caso de aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, relacionado à legislação antitruste, estava o Art. 18 da Lei nº 8.884 de 1994, repetido pelo Art. 34 da Lei nº 12.529 de 201110. Fortemente inspirado pela legislação consumerista, o dispositivo em questão também prevê, como hipóteses de desconsideração, o abuso de direito, que, como já explicado, relaciona-se à teoria maior, e não à menor, e os atos ilícitos, infringentes do contrato ou estatuto social e de má administração, hipóteses estas que, conforme apontado, eram desnecessárias, já que há previsão genérica de responsabilização dos sócios nestes casos. Igualmente aplicando a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, cita-se o Art. 4º da Lei nº 9.605 de 1998, referente ao meio ambiente, que prevê que pode haver a desconsideração sempre que a personalidade jurídica representar obstáculo ao ressarcimento dos danos ambientais, notando-se mais uma vez uma grande influência da legislação consumerista nessa lei. Trata-se, à semelhança do exposto quando do estudo do Art. 28, § 5º, do CDC, de regra que, apesar de nomeada de desconsideração da personalidade jurídica, representa responsabilização ilimitada do sócio da empresa, recaindo 10

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

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sobre este os débitos relacionados à matéria ambiental originariamente da sociedade sempre que esta não tiver bens suficientes para adimplir suas obrigações, pelo que se constata que é também a responsabilidade em questão subsidiária. Por fim, cita-se a desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista, em que é majoritário o entendimento de que, havendo insuficiência dos bens da sociedade, recai a execução dos créditos trabalhistas sobre os bens pessoais do sócio, independentemente de fraude, apesar de inexistir previsão legal neste sentido (CLÁPIS, 2006, pp. 133-134). É mais um caso, portanto, de responsabilidade ilimitada e subsidiária do sócio que foi alcunhado de desconsideração da personalidade jurídica, desta vez referente às matérias trabalhistas. Ilustrando esse posicionamento, cita-se julgado do Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho, AIRR 140640-20.2005.5.02.0027, Relator: Min. Lelio Bentes Corrêa, 2013): EXECUÇÃO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO EMPREGADOR. RESPONSABILIDADE DE EX-SÓCIO. 1. Justifica-se a incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica do devedor quando caracterizado o descumprimento das obrigações decorrentes do contrato de emprego e a falta de bens suficientes da empresa executada para satisfação das obrigações trabalhistas. Correta a constrição dos bens do recorrente, tendo em vista sua condição de ex-sócio do executado durante a relação de emprego do autor, bem como a inexistência de patrimônio da empresa executada capaz de garantir a execução. 2. Agravo de instrumento não provido. (TST, AIRR 140640-20.2005.5.02.0027, Rel. Lelio Bentes Corrêa, j. 28.08.2013).

Tendo-se procedido com a análise das teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica, verifica-se que a diferença essencial entre a teoria maior e a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica é que a primeira diferencia a disregard doctrine das regras de responsabilização do sócio por dívidas da empresa, enquanto a segunda nomeia os dois institutos de desconsideração da personalidade jurídica, não os diferenciando. É possível afirmar, portanto, que a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica diz respeito às previsões legais em que o termo foi utilizado de forma correta, referindo-se verdadeiramente à disregard doctrine, enquanto a teoria menor se refere às regras em que, apesar de ter o legislador se utilizado atecnicamente da terminologia, o que há é, em verdade, mera responsabilização patrimonial do sócio. 80

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Sendo assim, o que se verifica é a utilização da expressão “desconsideração da personalidade jurídica” em sentidos jurídicos por vezes muito diversos (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 428). Pode-se apontar de forma simplificada, entretanto, três hipóteses de utilização da terminologia em questão no ordenamento pátrio, quais sejam: Primeiramente, no caso do Art. 50 do CC/02, aplicável à generalidade dos casos, quando se constata a fraude ou o abuso de direito, este caracterizado pelo desvio de finalidade e a confusão patrimonial; Em seguida, nos casos de matéria consumerista e antitruste, quando há atos ilícitos, infringentes do contrato ou estatuto social ou de má administração; Por fim, nos casos de matéria consumerista, ambiental e trabalhista, esta última por construção jurisprudencial, bastando que, por insuficiência dos bens da sociedade, não haja o adimplemento de créditos dessas naturezas. A primeira hipótese corresponde à teoria maior, tendo sido a expressão utilizada corretamente, significando a ineficácia temporária e restrita a um caso específico da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, enquanto as duas outras hipóteses correspondem à teoria menor, em que houve utilização equivocada da terminologia, pois o que há, a rigor, é responsabilização patrimonial do sócio, e não desconsideração da personalidade jurídica. Finda a exposição das teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica, com o esclarecimento do significado dessa expressão em cada caso, passa-se a uma investigação pormenorizada acerca da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, novidade prevista no CPC/15, a cada um dos três casos abordados.

3 Hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica e a disciplina processual do CPC/15 Como se demonstrou, a expressão “desconsideração da personalidade jurídica” assume diversos significados no âmbito jurídico brasileiro, que vão ou não ao encontro da clássica disregard doctrine. O Código de Processo Civil de 2015, ao prever o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, em seus artigos 133 a 13711, limita-se, contudo, a afirmar que “o pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei”. 11

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

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Não se esclarece, assim, a quais casos – ou se a todos os casos – da desconsideração da personalidade jurídica o novo instrumento processual é aplicável, deixando-se esta tarefa para a doutrina. Em primeiro momento, cogita-se imediatamente de duas posições quanto à aplicabilidade do incidente aos casos de desconsideração, fundadas exatamente nas divergências de direito material: a de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica seria aplicável às teorias maior e menor, isto é, a todos os casos em que fosse utilizada a expressão em questão, ainda que se tratasse de regra de responsabilidade dos sócios, e a de que só seria ele aplicável à teoria maior, tendo em vista que só esta constituiria verdadeira desconsideração da personalidade jurídica, devendo-se considerar que as previsões da teoria menor constituem em normas de responsabilidade do sócio, em que não se poderia aplicar o incidente. Aparentemente se filiando à primeira posição, ao prever que se aplica o incidente na desconsideração da personalidade jurídica do processo do trabalho, fazendo menção à desconsideração trabalhista, que, como já demonstrado, é em verdade regra de responsabilidade patrimonial dos sócios, estando inserida, portanto, na teoria menor da desconsideração, está o Enunciado de nº 124 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que assim estabelece: “A desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho deve ser processada na forma dos arts. 133 a 137, podendo o incidente ser resolvido em decisão interlocutória ou na sentença.”.

§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. § 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. § 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. § 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. § 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o. § 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

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Não é esta a solução mais adequada, todavia. Caso se dê mais importância à nomenclatura dada a certos institutos que ao conteúdo destes, sendo aquela utilizada, por vezes, conforme já explicado, de forma flagrantemente atécnica, aplicar-se-á o incidente a casos em que ele é absolutamente desnecessário e, inclusive, prejudicial ao andamento processual. Observe-se: no caso da desconsideração da personalidade jurídica nas matérias ambientais, trabalhistas e consumeristas, esta no que se refere ao Art. 28, § 5°, o que há é regra de responsabilidade subsidiária que prescinde de qualquer fator além do mero inadimplemento por parte da sociedade, devedora principal (MAZZEI, 2009, p. 237). Ou seja, não é necessário se comprovar culpa ou dolo por parte dos sócios e administradores, nem mesmo lhes imputar alguma ação em especial, sendo suas posições na sociedade o bastante para se configurar as suas responsabilidades ilimitadas pelos débitos de natureza citada. Não havendo necessidade de comprovar quaisquer fatos para se estabelecer a responsabilidade dos sócios, eis que eles são devedores subsidiários de débitos ambientais, trabalhistas e consumeristas, torna-se absolutamente desnecessário o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que implica em suspensão do processo e citação do sócio para manifestação. Questiona-se: qual a necessidade de se interromper o procedimento, seja ele de caráter cognitivo ou satisfativo, para se confirmar uma responsabilidade por parte dos sócios que decorre meramente da condição deles enquanto tanto? Ademais, por que se deveria utilizar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, se, tratando-se de regra comum de responsabilidade patrimonial subsidiária dos sócios, caberia a este indicar os bens desimpedidos da sociedade, e não ao credor provar a inexistência de bens por parte da sociedade, conforme previsão do Art. 596 do CPC/73, repetida no Art. 795, § 1º, do CPC/15? O que se verifica é a total incompatibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com casos como os citados, em que a responsabilidade dos sócios decorre de suas próprias participações no quadro societário, tendo em vista que se promove uma excessiva paralisação do processo para se atestar uma responsabilidade que independe de outro requisito a não ser a própria condição de sócio. Ora, sendo caso de responsabilidade subsidiária fundada no próprio fato de se participar da sociedade, o mais adequado seria, após constatada a existência do débito ambiental, trabalhista ou consumerista, em fase de conhecimento, que houvesse diretamente a constrição do patrimônio do sócio, caso verificada a insuficiência dos bens da sociedade, cabendo àquele, nos termos dos Arts. 596 83

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do CPC/73 e 795, § 1º, do CPC/15, apontar bens passíveis de execução pertencentes à sociedade, ou mesmo apresentando embargos de terceiro, caso não fosse sócio, não se olvidando, entretanto, da possibilidade de formação originária de litisconsórcio sucessivo, apontada por Mazzei (2009, p. 237). Sendo assim, imperioso se afastar o primeiro dos possíveis posicionamentos anteriormente elencados, visto que aplicar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica indiscriminadamente às teorias maior e menor, em todos os seus casos, implicaria em um desnecessário desperdício de tempo em casos que a desconsideração em questão não passaria, em verdade, de uma regra simples de responsabilidade subsidiária dos sócios, independentemente do preenchimento de outros requisitos, pois nestas situações bastaria a indicação de bens dos sócios, caso insuficientes os da sociedade, não sendo preciso se proceder com a paralisação do processo em um incidente de desconsideração, em que, a bem da verdade, as únicas matérias que poderiam ser alegadas pelo executado seriam a de que ele seria pessoa totalmente estranha à sociedade, isto é, terceiro, hipótese em que os embargos de terceiro seriam instrumento processual mais adequado, ou a de que a sociedade ainda teria bens restantes, situação que dispensaria a propositura do incidente, eis que já prevista no CPC quando das disposições relativas à responsabilização patrimonial do sócio. No que se refere à segunda posição aduzida, qual seja, a que se ateria mais ao conteúdo das regras de direito material, e não ao nome que estas recebem, limitando a aplicação do incidente à teoria maior da desconsideração, haja vista que só esta apresentaria regras de desconsideração da personalidade jurídica, percebe-se aparente adesão de Didier Jr. (2015, pp. 518-519), que, ao tratar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, limita a conceituação material desta àquela clássica, correspondente à teoria maior, nem mesmo cogitando da aplicação aos casos da teoria menor. Esse posicionamento, no que pese se revestir de técnica jurídica mais apurada, ao fazer a diferenciação das regras de desconsideração da personalidade jurídica das de responsabilidade pessoal dos sócios, independentemente das nomenclaturas utilizadas, além de lançar mão desta distinção para determinar a aplicabilidade do incidente de desconsideração, não é igualmente o mais adequado, pois limita a aplicabilidade do instrumento processual em comento a casos em que ele viria para melhorar a disciplina processual, e isso sem nem mesmo existir uma previsão legal nesse sentido. Caso se limitasse a aplicação do incidente somente aos casos em que se estivesse diante verdadeiramente de regras de desconsideração da personalidade 84

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jurídica, excluir-se-ia do âmbito de incidência deste instrumento processual, por exemplo, os casos de responsabilização do sócio por deliberações infringentes da lei, como o dos Arts. 34 da Lei nº 12.529 de 2011 e 28, caput, do CDC, hipóteses em que seria interessante a utilização do incidente, pois este concederia um procedimento a ser observado pelo credor que desejasse alegar a prática de atos ilícitos pelo membro da sociedade, prevendo a formação de contraditório e a produção das provas necessárias por ambos para que se resolvesse a questão. Nestes casos, que representam, segundo a melhor técnica, regras de responsabilidade, e não de desconsideração da personalidade jurídica, a aplicação do incidente seria de grande utilidade, já que nessas ocasiões é essencial, para se reconhecer a responsabilidade do sócio, que se comprove que este agiu de certa forma e que sua ação infringira a lei ou o contrato social, o que demanda a formação de contraditório que o procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica oportuniza. Se por um lado o procedimento do incidente se afiguraria desnecessário e prejudicial ao andamento do processo nos casos em que a responsabilidade do sócio adviria tão somente da sua condição enquanto tanto, representaria aquele instrumento, por outro, uma grata novidade, nos casos em que a responsabilidade dependeria da prova de que o sócio agiu de certa forma. Não satisfaz, portanto, a segunda solução apresentada, pois excluiria do âmbito de aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica hipóteses em que ele seria de grande utilidade. Afastadas as duas soluções mais facilmente vislumbráveis, propõe-se a utilização das próprias características do incidente de desconsideração da personalidade jurídica como critérios para se chegar a um resultado acerca da aplicabilidade dele, a fim de se determinar em quais casos ele é desejável e contribui para melhorar a disciplina processual. Representa este um critério mais adequado, que coaduna inclusive com o próprio caráter instrumental do processo, tendo em vista que este não se constitui em fim em si mesmo, mas sim, como exposto por Dinamarco (2013, p. 178), em instrumento destinado à efetivação dos objetivos eleitos, representados pelo direito material. Sendo assim, há de se entender pela aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos casos em que o procedimento nele previsto contribui para a concretização das disposições de direito material. Prevê o Art. 134 do CPC/15 que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, 85

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no cumprimento de sentença e na execução por título executivo extrajudicial, suspendendo o processo, salvo quando requerido logo na petição inicial, e devendo ser demonstrados no requerimento, desde logo, os pressupostos legais da desconsideração da personalidade jurídica. Já no Art. 135 do CPC/15, tem-se que aquele a quem a desconsideração da personalidade jurídica prejudica tem o prazo de 15 dias para se manifestar e requerer provas que julga cabíveis, prevendo ainda o Art. 136 do mesmo diploma que, após a instrução, caso seja esta necessária, resolver-se-á o incidente por decisão interlocutória. Percebe-se, portanto, que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica pressupõe a existência de considerável atividade cognitiva por parte do magistrado, prevendo a possibilidade, inclusive, da produção de provas exclusivamente para se comprovar a existência ou não dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica alegados incidentalmente. Neste azo, é essencial se investigar a existência de atividade cognitiva extensa, que justifique o procedimento do incidente, no aferimento do preenchimento ou não dos pressupostos de cada um dos casos de desconsideração da personalidade jurídica anteriormente explanados, a fim de se determinar se é interessante a aplicação daquele em cada uma dessas hipóteses. No tocante tanto à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica quanto aos casos da teoria menor em que a responsabilidade depende de atos do sócio ou dos administradores, demanda-se ampla cognição por parte do magistrado, sendo frequentemente necessária a produção de provas acerca da existência de fraude, atos ilícitos, infringentes do contrato social ou de má administração, motivo pelo qual nestes casos a utilização do incidente de desconsideração da personalidade jurídica se configura desejável. Contudo, no que tange aos casos da teoria menor em que a responsabilidade subsidiária dos sócios depende tão somente da participação destes no quadro societário, o que se verifica é uma diminuta cognição por parte do magistrado, cuja atividade se limitará a aferir se alguém faz ou não parte da pessoa jurídica devedora, não sendo nem mesmo. Nestes casos, o procedimento do incidente implicaria em atraso desnecessário ao andamento processual, não se justificando a suspensão do processo diante da reduzida atividade cognitiva a ser realizada por parte do julgador. Por conseguinte, tem-se que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é aplicável aos casos em que, para se constatar se os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica ou da responsabilização patrimonial direta do sócio foram atendidos, é necessário se proceder com extensa ati86

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vidade cognitiva por parte do juiz, o que justifica a suspensão do processo e a possibilidade de produção de provas pelas partes, isto é, nas hipóteses dos Arts. 50 do CC/02, 34 da Lei nº 12.529 de 2011 e 28, caput, do CDC. Não é utilizável, contrariamente, quando a matéria a ser conhecida pelo magistrado seja de tal forma reduzida a ponto de representar o procedimento do incidente um desnecessário retardo ao processo, ou seja, nas ocasiões dos Arts. 4º da Lei nº 9.605 de 1998, 28, § 5º, do CDC e na desconsideração em matérias trabalhistas.

Conclusões O Código de Processo de Civil de 2015 trouxe, dentre suas inovações, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, intentando este pôr fim às divergências doutrinárias e jurisprudenciais existentes no tocante aos aspectos processuais da teoria da desconsideração. Entretanto, por conta das diversas imprecisões técnicas existentes na legislação material referente a esta matéria, que nomeia de desconsideração da personalidade jurídica regras de mera responsabilização patrimonial dos sócios, surgem questões referentes à aplicabilidade do incidente às hipóteses em que o legislador equivocadamente utilizou a expressão “desconsideração da personalidade jurídica”. A fim de responder essa questão, o presente trabalho traçou um panorama histórico da disregard doctrine, apontando-lhe os clássicos contornos e pressupostos, além de abordar como foi ela incorporada pelo Direito brasileiro, primeiro como construção doutrinária e jurisprudencial e depois pela legislação, em princípio de forma atécnica, no Código de Defesa do Consumidor e legislações posteriores por ele inspiradas, até o retorno aos clássicos contornos, no Código Civil de 2002. Além disso, revisitou-se a classificação da desconsideração da personalidade jurídica nas teorias maior e menor, aplicando-se aquela, prevista no Art. 50 do CC/02, à generalidade dos casos e esta, prevista na legislação consumerista, ambiental, antitruste e trabalhista, nestas hipóteses específicas, apresentando-se os requisitos para a configuração de cada uma. No que se refere à aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, constatou-se que são posicionamentos inadequados tanto o de utilizá-lo em todos os casos em que o legislador fez uso da terminologia “desconsideração da personalidade jurídica”, pois implicaria na utilização desse instrumento em ocasiões em que ele representaria desnecessário atraso no andamento processual, quanto o de adotá-lo apenas nas hipóteses em que haveria 87

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regras de desconsideração da personalidade jurídica, excluindo de seu âmbito de aplicação todas as regras que preveriam apenas responsabilização patrimonial do sócio, haja vista significar isto em uma não utilização do incidente em casos em que ele seria de grande utilidade. Fez-se uso, por conta disto, como critério para definir em que casos se aplicaria o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, a adequação do procedimento deste às previsões de direito material, atentando-se ao caráter instrumental do processo. Verificou-se que o instrumento processual em questão pressupõe uma extensa atividade cognitiva por conta do magistrado, o que justificaria a suspensão do processo e a possibilidade de produção de provas pelas partes, e nisto se calcou para definir a aplicabilidade do incidente aos diversos casos da legislação material. Neste azo, concluiu-se que nas hipóteses da teoria maior e naquelas da teoria menor em que a responsabilidade do sócio seria resultante de atitudes suas, interessante seria o uso do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pois o julgador deveria aferir o preenchimento de requisitos, que demandariam a produção de provas e a formação de contraditório entre as partes. Por outro lado, nos casos da teoria menor em que a condição de sócio bastaria para a responsabilização deste, não haveria a necessidade de se utilizar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, eis que seu procedimento representaria um desnecessário atraso do processo, em face da pouca cognição a ser realizada pelo juiz, que teria tão somente que investigar se o indivíduo faria ou não parte do quadro da sociedade.

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