ANÁLISE DA INTERLINGUAGEM DE UM FALANTE NATIVO DE INGLÊS, APRENDIZ DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA Analysis of the interlanguage of a native speaker of English, learning Portuguese as a second language

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ANÁLISE DA INTERLINGUAGEM DE UM FALANTE NATIVO DE INGLÊS, APRENDIZ DE PORTUGUÊS COMO SEGUNDA LÍNGUA
Analysis of the interlanguage of a native speaker of English, learning Portuguese as a second language
[Ortiz Alvarez, Maria Luisa, org. Novas Línguas, Línguas Novas: Questões da Interlíngua na Pesquisa em Linguística Aplicada. Campinas, SP: Pontes, 2012, pp. 107-145]
Eunice R. Henriques
(Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP)

As interlínguas (ILs) são sistemas lingüísticos com características de duas ou mais línguas. Dois tipos de falantes falam ILs, em situações de aprendizagem diferentes: não-imersão (aprendizagem/ aquisição de língua estrangeira [LE], em um país onde se fala outra língua); imersão (aquisição/ aprendizagem de segunda língua [L2], ou seja, em um país onde se fala a língua). Existem diferenças marcantes na competência dos falantes em cada uma dessas situações. Em linhas gerais, o aprendiz de LE tem pouca ou quase nenhuma chance de se comunicar com falantes nativos, ao passo que o aprendiz de L2 já se acha exposto à nova língua em seu dia a dia.
Existe outra situação, a natural, que consiste em aquisição/aprendizagem de duas línguas simultânea ou consecutivamente, isto é, bilinguismo. O bilinguismo simultâneo, que é o caso do Canadá, por exemplo, não se enquadra neste trabalho. O falante bilíngue, do tipo consecutivo, além de falar a língua do lugar, fala outra, que adquiriu alguns anos depois da língua materna (LM). Com relação aos aprendizes de L2 ou LE, referidos acima, quanto mais chance têm de se comunicarem efetivamente na nova língua, menos influência terão de sua LM. Isso vale, também, para os falantes bilíngues com relação à língua que fica em segundo plano, a que não é a dominante no lugar onde moram. É o caso, por exemplo, dos americanos que moraram alguns anos no Brasil e dos brasileiros que moraram alguns anos nos Estados Unidos.
No entanto, é importante ressaltar que até mesmo o falante bilíngüe simultâneo, que aprendeu a falar duas línguas desde criança, pode apresentar pequenos desvios naquela a que está menos exposto. Por exemplo, uma jovem, filha de um americano e de uma brasileira, todos bilíngües, irá se expressar melhor em inglês se morar mais tempo nos Estados Unidos do que no Brasil, devido à influência da língua e da cultura dominantes. Até mesmo os canadenses, falantes de inglês e de francês, apesar de estarem expostos às duas línguas, podem cometer pequenos desvios naquela que não é a dominante. Tais desvios (ou interferências), segundo Weinreich (1970, p.1), ocorrem na fala de falantes bilíngües, como resultado de sua familiaridade com mais de uma língua. Em suas próprias palavras, "[t]hose instances of deviation from the norms of either language which occur in the speech of bilinguals as a result of their familiarity with more than one language [...] will be referred to as interference phenomena".
Nossa leitura dessa citação vai um pouco mais além, incorporando a questão da identidade dos aprendizes. Vemos os desvios de uma forma positiva, isto é, revelam a competência do aprendiz em mais de uma língua. Essa é, sem dúvida, uma postura bem diferente daquela dos anos 70, que considerava negativa toda e qualquer influência da LM. Em nossa opinião, a IL é como o DNA, a íris ocular ou até mesmo a impressão digital dos falantes estrangeiros. Essas marcas da identidade e da história dos sujeitos ocorrem, em geral, mais marcadamente na fala de falantes de LE do que de L2, nos vários níveis lingüísticos (fonológico, que foge ao escopo deste trabalho), sintático, léxico-semântico, conversacional e discursivo, como será mostrado neste trabalho.
Na oportunidade, vamos apresentar uma tradução livre da citação, em inglês, de dois dentre os mais ilustres representantes dessa teoria, Larry Selinker e Susan Gass, que se encontra, em inglês, na Dedicatória deste livro. Conforme observam os autores, esse sistema é composto por vários elementos, que não se limitam simplesmente àqueles da LM e da nova língua (1994, p.11; 2008, p.14). O importante e que os próprios aprendizes possam imprimir estrutura aos dados linguísticos disponíveis e formular seu próprio sistema de regras internalizadas, a IL. Neste trabalho, ao analisar a IL do sujeito, pretendemos mostrar um pouco daquilo a que Gass e Selinker se referem: as regras do aprendiz ainda em processo de internalização, em vários níveis linguísticos.
Apesar de este texto estar dividido em várias seções, para maior clareza, destaco as duas partes que considero mais importantes. A primeira expõe os fundamentos teóricos, que nortearam a pesquisa, centrando-se na interlinguagem, ou seja, nos vários níveis lingüísticos (sintático, léxico-semântico, conversacional e discursivo) da IL. A segunda parte deste trabalho contém a análise dos dados produzidos por um falante nativo de inglês, aprendiz de português, como L2. Paralelamente à análise dos dados, ocasionalmente, serão incluídos, para efeitos ilustrativos, alguns exemplos semelhantes, que espelham as dificuldades de aprendizes brasileiros com o inglês. O objetivo é mostrar que a interferência, muitas vezes, é um caminho de mão dupla, ou seja, as dificuldades que um falante de inglês tem com o português espelha as dificuldades do falante de português com o inglês. A análise representativa ou espelhada está ancorada em experiências na sala de aula de inglês, em situação de não-imersão (LE). E a análise dos dados, propriamente dita, coletada em áudio, está ancorada em experiências na sala de aula de português, como L2.

2. Objetivos da pesquisa
a. Analisar algumas das características interlinguais essenciais, em vários níveis linguísticos (conversacional, discursivo, sintático, lexical e semântico).
b. Analisar suas implicações na comunicação entre americanos e brasileiros.

3. Delimitações
O foco deste trabalho não é o desenvolvimento do processo de aquisição do sujeito (S), devido à frequência das gravações, que foram quinzenais. Por isso, não iremos analisar o processo de aquisição cronologicamente. Em vez disso, tendo em vista o número reduzido de gravações, entre outros fatores, optamos por classificar os dados em três fases: iniciante, pré-intermediária e intermediária. Dessa forma, as referências ao mês e à semana da coleta, ao final de cada instância, têm um caráter meramente informativo, ou seja, seu objetivo é apenas situar a época em que surgi para comparações e contrastes. Os dados foram organizados, de acordo com o nível lingüístico, nesta ordem: conversacional, discursivo, sintático, lexical e sintático/ léxico-semântico.

4. Fundamentação teórica
Ao conceito de IL, estão interligadas várias outras questões, que serão discutidas neste trabalho. Em primeiro lugar, será necessário definir alguns conceitos que nortearam a análise, que serão resumidos a seguir.

4.1 Distância tipológica entre as línguas: a influência da LM na LE
Nesta seção, iremos discorrer sobre a interferência de uma língua na outra, em todos os níveis lingüísticos. Essa influência varia em função da LM do aprendiz. Dessa forma, para aprender português, falantes de línguas distantes (como japonês, chinês, etc.) irão apresentar maior número de interferências que os falantes de línguas de distância média (como inglês, alemão, etc.). Estes irão apresentar maior número de interferências da LM que os falantes de línguas próximas (tais como espanhol, italiano, etc.). A interferência é um fator dificultador e distanciador no decorrer do processo de aquisição/aprendizagem de línguas.
Por isso, o percurso desses aprendizes será diferente. Abaixo, desenvolvemos uma simulação de várias fases do processo de aquisição do português, por falantes nativos de línguas tipologicamente diferentes:

Falante de espanhol

*Me gosta mucho a comida japonesa. [... = pausa]
*Gosto muito comida japonesa.
Gosto muito de comida japonesa.


Falante de inglês

*Gosta ... japonês comida muito.
*Gosta ... japonesa comida muito.
*Gosto de ... japonesa comida muito.
Gosto muito de comida japonesa.

Falante de japonês

*Japonês ... comida ... muito gosta.
*Japonês ... comida ... muito ... gosto.
*Muito ... japonês comida.
*Gosto ... muito ... japoês comida.
*Gosto muito de ... japonês... comida.
*Gosto muito de ... japonesa comida.
Gosto muito de comida japonesa.






A simulação acima mostra a diferença entre o ritmo de cada um desses falantes. As reticências, que sinalizam as pausas, dão uma ideia do tempo que o aprendiz leva para estruturar a frase. Conforme se observa acima, o falante de espanhol fala rápido sem interrupção. O falante de inglês leva mais tempo, devido às pausas. Estas, no entanto, são poucas em relação às do falante de japonês. Cada uma das colunas acima ilustra as fases do processo de aquisição, por falantes de línguas tipologicamente diferentes. Entre uma instância e outra, ou seja, entre uma fase e outra, pode haver um espaço de semanas ou meses, de acordo com determinadas variáveis, tais como a distância entre as línguas, a motivação do aprendiz, o contexto de aprendizagem, entre outras. Por exemplo, para o falante de espanhol, a passagem de uma fase a outra se dá num curto espaço de tempo. O falante de inglês demora alguns meses, e o de japonês pode levar um ano. Dessa forma, o tempo que o falante de uma língua distante leva para usar, sem desvios, uma única frase (gosto muito de comida japonesa), é quase duas vezes maior que o tempo necessário para o falante de uma língua de distância média e quase três vezes mais que o tempo de um falante de língua próxima.

4.2 Aquisição de línguas
Uma pergunta freqüente é a seguinte: quando e como podemos saber se o aprendiz adquiriu uma língua? Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, para nós, a expressão adquirir uma língua estrangeira tem o sentido de saber se comunicar nessa língua, entendendo e se fazendo entender. Para isso, várias habilidades concorrem: na comunicação face a face, é necessário que se compreenda o outro e que ele nos compreenda, ou seja, a habilidade de ouvir (= entender), falar (= ser entendido) e de negociar o sentido em tempo real. Na comunicação via texto escrito, é preciso que se entenda e que se faça entender nem que seja em tempo virtual (através da Internet) ou em tempo de resposta (em longo prazo, o que pressupõe reflexão e/ou consulta). Dessa forma, se o aprendiz é capaz de se comunicar, na LE, pode-se dizer que já adquiriu a língua.
Resumidamente, existem sete parâmetros necessários para que se saiba, exatamente, o que se considera, de fato, adquirido e o que se encontra ainda em processo de aquisição:

1. Compreensão da função da expressão e da situação em que se usa ;
2. compreensão e domínio da forma ;
3. necessidade do uso para a comunicação;
4. relevância para o falante;
5. recorrência do termo em várias situações ou contextos;
6. feedback positivo, que irá permitir a memorização;
7. incorporação, ou seja, aquisição: depois de satisfeitas todas as condições anteriores, irá ocorrer a aquisição, que pode ser relativa (com pequenos desvios da norma-padrão) ou plena (igual à norma) (Henriques, 2001, pp. 8-15).

A aquisição provém de uma rede de conhecimentos articulados. Cada item lexical passa por um processo de aquisição individual, sujeito a variáveis, tais como a distância tipológica entre a língua-alvo e a nova língua, entre outros fatores:

(a) pronúncia (de fonemas; sílabas tônicas, etc.), entonação (na frase) e ritmo (que resulta do agrupamento entre as palavras e das pausas entre estes grupos);

(b) o significado da palavra (por si só e em comparação com sinônimos, tais como saber e conhecer; do e make);

(c) a estrutura sintática em que é usado (por exemplo, apesar de estar tarde e embora esteja tarde; I want to go skating e I love skating);

(d) o registro: formal (usado principalmente na escrita); semi-formal (usado nos meios de comunicação, como TV e Internet); ou informal (usado na conversação e também nos Chats).

Além disso, a compreensão de uma expressão ou frase depende de um processo, denominado segmentação lexical, que implica não somente no conhecimento dos termos isolados, mas também em sua relação com os outros termos da frase. Isso é difícil para os aprendizes (e até mesmo para as crianças em aquisição de LM). No entanto, existem outras dificuldades maiores, que englobam o contexto e até a situação em que determinados termos são usados:

(a) segmentação lexical e fonológica: o aprendiz precisa saber onde segmentar as palavras de uma frase ou expressão, como por exemplo, é uma questão de respeitabilidade e *é uma questão de respeita a abilidade; they want to get it e they won't get it;

(b) uso de expressões idiomáticas: o aprendiz precisa entender e saber usar expressões, próprias da língua-alvo, que sejam recorrentes na comunicação, tais como não dá! (= no way!) e guess what! (= adivinhe!);

(c) adequação à situação de uso: saber usar os termos nas situações adequadas, como por exemplo, sir e senhor em situações formais, you e você em situações formais, semi-formais e informais, além de dude e cara, apenas entre amigos e, de preferência, jovens.

Em situações formais, em sala de aula, por exemplo, sempre que o aprendiz tem dúvida e pede ajuda, através de uma estratégia cooperativa, ele demonstra que aquele item específico ainda não foi plenamente adquirido. Para o professor, isso sinaliza exatamente aquilo que deveria ser trabalhado na aula, a fim de dar, ao aprendiz, condições de acelerar o ritmo do processo de aquisição e de avançar no seu percurso, a fim de melhorar seu desempenho, atingindo, assim, a aquisição plena. Estes três conceitos, rate, route e success, desenvolvidos por Ellis (1985; 1996), explicam o processo de aquisição de L2 e de LE. Cada indivíduo tem seu ritmo, desenvolve um percurso, influenciado por sua LM e, dependendo de sua motivação, do tempo de exposição à língua e da distância tipológica entre sua língua nativa e a língua-alvo, pode chegar a se expressar com mais ou com menos acertos ou fluência.
Neste trabalho, como veremos a seguir, os exemplos selecionados refletem tudo aquilo que foi adquirido e aprendido, isto é, tudo aquilo que se constitui em aquisição plena ou aquisição relativa. Considera-se adquirido aquilo que estiver de acordo com o que o aprendiz aprendeu ou ouviu em interações com um falante nativo (colega, amigo, etc.) ou até mesmo com falantes não-nativos proficientes que lhe sirvam como modelo (professor, parentes, amigos, etc.).

5. Interlíngua (IL)
As ILs são infinitas, variáveis e sistemáticas. Cada fase do processo de aquisição/aprendizagem de L2 e de LE, de cada aprendiz, configura-se como uma IL, que apresenta influências da LM. A cada fase, a IL do aprendiz tem características próprias, que variam de menos a mais marcadas, ou seja, com menos ou mais traços da LM, principalmente nos níveis fonológico, com certeza o mais perceptível, e no sintático, que é, com certeza, o mais pesquisado. A inter-sintaxe, ou seja, a sintaxe das ILs, é sistemática, no sentido de que possui suas regras internas, ou inter-regras, que misturam a sintaxe da LM e da L2/LE.
As características essenciais da IL são sistematicidade, por ser um sistema, isto é, por possuir regras próprias, e variabilidade, por ser variável, ou seja, por variar muito, tanto de fase em fase, quanto de aprendiz para aprendiz. Essas duas características revelam que o aprendiz tenta atribuir uma lógica à nova língua. Como essa lógica é regida pelos parâmetros da LM, ela tem de ser constantemente revista e/ou modificada em função do
input a que o aprendiz está exposto. Por exemplo, em fases iniciais da aprendizagem do português, como L2, e de inglês, como LE, o falante de inglês como LM, invariavelmente diz *preto lápis em vez de lápis preto, com base em black pencil e o brasileiro, aprendiz de inglês, diz *pencil black, que tem como modelo lápis preto. Em fases intermediárias, esses dois aprendizes tendem a oscilar entre a forma interlingual e a forma-padrão, o que revela a influência do input recebido. Em fases avançadas, a forma interlingual é eliminada, um sinal evidente de que houve incorporação. Em outros termos, pode-se verificar que houve aquisição, sempre que a forma adquirida for sintaticamente idêntica à forma-padrão, usada por falantes nativos ou por educadores que lhe sirvam de modelo. A forma adquirida tende a permanecer desde que o aprendiz esteja em constante contato com a língua.

6. Metodologia do levantamento de dados

6.1 Sujeito (S)
Trata-se de um estudo de caso com um falante de inglês, S, aprendiz de português como L2. Veio para ficar no Brasil por um ano, mas acabou ficando dois. S tinha uma personalidade extrovertida e se dava muito bem com os colegas. Era assíduo às aulas, realizava as tarefas e as entregava sempre no dia, com uma apresentação impecável. Tinha muita habilidade com atividades orais, por ser muito extrovertido. Além disso, era um leitor muito crítico e sabia redigir muito bem.
Outras características de S, relevantes para esta pesquisa, são as seguintes:

1. idade: 21 anos;
2. background lingüístico: aprendiz de português como segunda língua; nunca estudou espanhol;
3. tempo de exposição à língua (referente à coleta): oito meses.

6.2 Coleta de dados: gravações
Foram feitas gravações quinzenais, em áudio, por um período de oito meses, que inclui dois semestres letivos, à exceção do julho, mês de férias, com a mesma freqüência (uma coleta a cada quinze dias) e o mesmo tempo de duração (meia hora, em média). As gravações eram feitas sempre no início da aula, durante o período de aquecimento, e no final, sempre que havia pouca participação de S no início. Os tópicos versavam sempre sobre algum assunto do momento ou da vida dos alunos. Foram isolados, para a análise, trechos representativos da influência da LM do aprendiz (o inglês) na L2 (o português).

6.3 Análise paralela, espelhada nos dados de S
Paralelamente à análise dos dados do americano, aprendiz de português como L2, iremos mostrar o outro lado da moeda, ou seja, as dificuldades de um brasileiro, aprendiz de inglês, como LE. O objetivo é evidenciar a interferência como um caminho de mão dupla, ou seja, as dificuldades que um falante de inglês tem com o português espelham as dificuldades de um falante de português com o inglês. A análise representativa ou espelhada está ancorada na nossa experiência com o ensino de inglês em situação de não-imersão, tendo, portanto, um caráter meramente ilustrativo.

6.4 Notas de campo
Durante as interações em classe, eram registrados exemplos de produção espontânea, sempre que S voluntariava comentários, narrativas pessoais, etc. Muitas vezes, após a aula, ele narrava experiências interessantes, que, mais tarde, eram registradas para serem utilizadas em momentos oportunos. Algumas dessas anotações foram utilizadas na análise.

6.5 Fases do processo de aquisição
Os dados foram separados em três fases: iniciante (de março até as duas primeiras semanas de maio); pré-intermediária (duas últimas semanas de maio, junho, agosto e duas primeiras semanas de setembro) e intermediária (duas últimas semanas de setembro, outubro e novembro). A separação das fases obedeceu a dois critérios: tempo cronológico, com base no número mais ou menos equivalente de semanas e desenvolvimento linguístico, com base na diversidade de tempos verbais e na média de palavras por frase. Faz-se necessário, também, ressaltar que, durante o período de férias, apesar de não estar tendo aulas, em ambiente formal, S continuou tendo aulas, no seu dia a dia, já que se encontrava em situação de imersão. Nessa situação de aprendizagem, os aprendizes, com certeza, aprendem mais fora da sala de aula do que dentro. Isso porque é com amigos e colegas que se dão as conversações em ambiente natural, ou seja, o uso efetivo da língua-alvo para a comunicação.

7. Análise dos dados

Notações

Sujeito = S
(1) = primeira instância dos dados de S.
Pausas: (.) = 1 segundo; (..) = 2 segundos; (...) = 3 segundos; (4.) = 4 segundos, etc.
Reticências: ... [omissão de alguma parte da fala do sujeito]
Coleta: mar. 1 = 1a. semana de março; abr. 2 = 2a. semana de abril, etc.
Uso de asterisco *antes de uma frase, expressão ou palavra: forma não-padrão ou interlingual
Obs.: as instâncias analisadas aparecem em itálicos.


A análise se centrará em fatores interlinguais, ou seja, interferências de uma língua na outra. Ocasionalmente, sempre que for relevante, serão discutidas algumas questões intralinguais, isto é, interferência de uma determinada regra da língua-alvo em outra. Por exemplo, o aprendiz estende a regra para a formação do plural de nomes (adiciona-se s às palavras que terminam em vogal) a outras classes de palavras, como pronomes pessoais e até verbos, produzindo algo assim: *Eus gostos, em vez de nós gostamos.
Para analisar os fatores interlinguais, manisfestos na produção oral do sujeito, principalmente no que tange à influência da LM na IL do sujeito, selecionamos instâncias representativas de suas dificuldades primordiais, desconsiderando questões relativas ao nível fonológico. A ênfase recairá, portanto, sobre os outros níveis lingüísticos.

7.1 Interlíngua de S no nivel conversacional
Uma das estratégias mais utilizadas por falantes de inglês é Code Switching, ou seja, alternância de códigos. Trata-se de uma estratégia cooperativa, que faz parte do pressuposto básico de que o interlocutor sabe do que o falante está falando e que implica um rápido pedido de ajuda, sem afetar o fluxo da conversação. Além disso, não requer reestruturação da frase, já que a ordem canônica das duas línguas é a mesma:


(1) S: [...] elas dizem: "Você é americano? They seem surprised. Surprised?
P: Ficam surpresas.
S: surpresas ... é ...
P: Por quê? Você sabe?
S: Não sou ... cabelo louro...
P: Ah, é verdade... (mar. 2)

Em (1), S alterna códigos, demonstrando que não sabe como se expressar em português. O pedido de ajuda é sinalizado pela entonação ascendente de surprised, com o mesmo valor semântico de uma pergunta: como é mesmo que se diz surprised em português? P responde, usando a expressão idiomática ficar surpreso, que ao que parece, é difícil para S, pois este repete apenas o qualificativo. Duas estratégias podem ter sido utilizadas pelo sujeito: apagamento (S apaga o primeiro termo, por achar que um independe do outro) e avoidance, isto é, esquiva (S evita usar a primeira parte da expressão, apoiando-se no item lexical conhecido, que ele repete, sinalizando aquiescência).
Além disso, o uso de CS se explica em função daquela característica americana típica de não perder tempo porque, para esta cultura, tempo é dinheiro. Devido a isso, os alunos americanos preferem, por ser mais rápido e mais claro, o uso de traduções, ao invés de longas explicações exemplificadas para se chegar ao significado de determinada palavra, o que, para eles, significa perda de tempo.
Na seqüência, ainda em (1), S explica que as pessoas se surpreendem porque ele não parece americano. Para nós, brasileiros, o estereótipo do americano é uma pessoa loura, alta, de olhos azuis. S só não era louro, mas mesmo assim, as pessoas não o identificavam como americano. Ao tentar explicar o porquê, ele, por não conhecer a expressão ter cabelo louro, usa outra estratégia, a tradução literal, que consiste em traduzir literalmente uma estrutura de sua LM. Em inglês, existe apenas uma forma de dizer isso, através do verbo ser, seguido de predicativo: I'm not blond (não sou louro).
Dois outros exemplos, em que ocorre CS, e um terceiro, que pode parecer CS, merecem destaque. Em (2), o pedido de ajuda vem implícito, marcado apenas por uma pausa curta e pela entonação ascendente: to know how? Além disso, a repetição do advérbio muito adquire o sentido de ótimo. Em (3), S faz uma pergunta direta: Como se diz tornado? Logo abaixo, nessa mesma instância, ele usa uma palavra inglesa, hide, sem modificar a entonação, para não interferir no fluxo da fala. Rapidamente, P, já acostumada com o uso dessas estratégias, fornece o termo,e S retoma, concluindo seu relato.

(2) S: Preciso conhecer (.) to know how?
P: saber
S: saber falar português muito muito bem para depois voltar para Estados Unidos... (abr. 2)

(3) S: Como se diz tornado?
P: tornado [risos]
S: Você viu já um tornado nos Estados Unidos?
P: Uma vez, mas eu morri de medo.
S: Ah, mas não tem perigo. É só hide
P: esconder
S: esconder na cama, abrir janela e porta e talvez ela passa (...) sem problema. (abr. 4)

A instância (3) ilustra uma forma de incompreensão, que permeia todo o processo de interação nativo/não-nativo, devido à falta de familiaridade com o assunto, por parte do interlocutor. Ao dizer que, quando vem um tornado, as pessoas devem se esconder na cama, os outros alunos da classe entenderam literalmente, ou seja, debaixo das cobertas. Acontece que S usou a preposição em, com o valor semântico de debaixo de. Por ter conhecimento do assunto, P esclareceu isso para a turma, ao final do relato de S.
É importante apontar que, para não interromper a fala de S e para não cruzar as intenções de comunicação, P esperou o momento certo para trabalhar a questão com o grupo. Vamos nos referir, neste ponto, ao exemplo de Douglas Brown (1980, p.35), sobre uma falante nativa de inglês, que pediu um lápis emprestado, dizendo não ter lápis (ain't got no pencil), e a professora, centrada na forma da mensagem, começou a dar longas explicações gramaticais, de forma indutiva, causando uma ruptura na interação. Centrada na função comunicativa (obter um lápis emprestado), a aluna não entendeu os exemplos fornecidos como explicações, mas, sim, como mensagens. Ao final da fala da professora, ela exclamou: ain't nobody got no pencils?
Ainda no exemplo (3), ao esperar a hora certa para o esclarecimento, P enfatizou dois momentos importantes na interação professor/aluno. S, no papel de locutor, estava centrado numa determinada função comunicativa, durante o relato. Ao final, para não deixar passar em branco um ponto importante (as pessoas, num tornado, se escondem debaixo da cama, para se protegerem, e não debaixo das cobertas, pois de nada adianta), P dá uma explicação sobre a forma que, neste caso específico, é vital para o conteúdo da mensagem.

7.2 Interlíngua de S no nível discursivo
Diferentemente do que acontece nas instâncias anteriores, em (4), não houve, por parte de S, a intenção de pedir ajuda porque ele conhecia o termo para but, em português, tanto é que ele logo acrescentou mas. A forma em inglês surgiu, presume-se, devido à força do contexto, ou seja, naturalmente, sem vacilos. Isso é comum no que se refere aos marcadores discursivos né e tá bom, que são, muitas vezes inseridos ao final das falas de um falante de português, falando inglês. Da mesma forma, os marcadores right e you know podem aparecer em interações de um falante de inglês, falando português. São situações curiosas: You know what I mean, né?/ Eu estou exausta, you know?
O uso automático do conectivo but, em (4), nos leva a uma explicação sobre o uso de conectivos (ou articuladores sintáticos) não somente para falantes de inglês, mas também para falantes de espanhol. Como se pode observar, S usa o conectivo do inglês, talvez inconscientemente, ou talvez para não interromper o ritmo de sua fala:

(4) eu moro pensão but (.) mas não gosto muito (..) muitas pessoas (..) barulho (abr. 2)

Quanto aos hispanofalantes, o complicador é a aparente semelhança de alguns conectivos, em português, com outros termos do espanhol e vice-versa. Por exemplo, todavia, em português, significa con todo eso, em espanhol; e todavía (espanhol) significa ainda (português); mas (português) quer dizer pero (espanhol) e más (espanhol) significa mais (português); senão (português) se traduz por sino (espanhol), sendo que sino (português) significa campana em espanhol.
É importante apontar que os conectivos, à exceção de e, enquanto e porém, que têm a mesma origem que seus pares espanhóis e que não são falsos cognatos, apresentam dois complicadores: o significado, ou seja, a relação de sentido que cada um estabelece na sentença, e a interferência da LM, tendo em vista a proximidade entre as duas línguas. Devido a isso, os falantes de espanhol tendem a evitar o uso da maioria dos conectivos, através dos seguintes recursos: omissão; uso de CS; substituição, através do uso recorrente de e (como nós, falantes nativos, também fazemos, principalmente, nas narrativas orais). Para exemplificar, citamos o exemplo de uma aluna chilena, que escreveu sua tese de mestrado em português, à exceção dos conectivos, que vinham todos em espanhol.
Subjacente à semelhança morfológica, existe a diferença no nível semântico. Para usar, com acerto, o conectivo adequado, é preciso que o aprendiz tenha clareza quanto à relação de sentido que ele quer estabelecer entre as duas idéias. Isso porque não existe erro, do ponto de vista sintático. Existe um desvio que reside nessa relação entre as idéias. Em outros termos, o falante estrangeiro diz uma coisa, e o interlocutor nativo entende outra. Assim, do ponto de vista sintático, estas duas frases estão corretas: ela foi, mas ele ficou e ela foi, e ele ficou. No entanto, resta saber o que, exatamente, o locutor quis dizer ou insinuar, ao usar um e não o outro. Se ele quis transmitir algum estranhamento pelo fato de ela ter ido e ele ter ficado, mas seria mais apropriado. Se a idéia for, simplesmente, constatar um fato, e seria mais adequado.
Por outro lado, os falantes de inglês associam rapidamente e com and e mas com but, usados frequentemente na fala e na escrita. Isso acontece em função de um facilitador, a origem dos termos: mas (< latim magis) e e (< latim et) não se confundem com seus pares (but < Old English butan; e and < Old High German unti), em inglês. Por se tratar de termos completamente diferentes, a interferência de uma língua na outra tende a não ocorrer.

No entanto, o uso do conectivo mas, do português, é bastante complicado para os falantes de espanhol. Da mesma forma, más, em espanhol (= mais, em português), é confuso para os falantes de português, pelos seguintes motivos:

(a) fatores intralinguais: mas é facilmente confundível com mais (até para falantes nativos de português);

(b) interferências fonológicas: mas (em português) é pronunciado de forma idêntica (/mas/) ou semelhante (/mais/) a más (do espanhol); por isto, muitas vezes, os aprendizes, falantes de espanhol, usam más (= mais) com o sentido de mas (contudo);

(c) níveis da linguagem: mas significa pero (< latim per + hoc), sendo que, em português, existe porém (por + ende < latim inde), que é muito semelhante. A diferença está nos níveis de linguagem, pois mas varia entre informal e formal, exatamente como pero, ao passo que porém é usado em registro formal.

No caso de línguas irmãs, como português e espanhol, os conectivos interferem radicalmente na compreensão de textos orais e, principalmente, de textos escritos, onde aparecem com maior frequência. Isso se deve à sua semelhança, no nível lexical, e divergência, no nível semântico. São, portanto, dificultadores do processo de aquisição de semântica, para os falantes de espanhol e também para outros falantes, que já tenham estudado ou que já falem espanhol.
Vejamos mais um exemplo, referente ao nível discursivo. Em (5), vê-se a interferência nítida do inglês em I'm a North-American, now living in Brazil. Trata-se de uma estrutura corrente na língua inglesa mas que, em português, soa estranho:

(5) Eu sou um norte-americano agora morando no Brasil. (abr. 4)

Na oportunidade, vale mencionar, de passagem, aquela noção krasheniana sobre o feel. Segundo os autores, "[w]e are generally not consciously aware of the rules of the languages we have acquired. Instead, we have a feel for correctness. Grammatical sentences sound right, or feel right, and errors feel wrong, even if we do not consciously know what rule was violated" (Krashen & Terrel, 1980, p. 10). Em tradução livre, o que os autores estão dizendo é que nós, em geral, não estamos conscientes das regras das línguas que adquirimos. Mas somos capazes de sentir, de perceber o que está correto. As sentenças, na norma-padrão, parecem ou dão a impressão de estarem corretas, e os erros parecem ou dão a impressão de estarem errados, mesmo quando não sabemos, conscientemente, que regra foi violada.
Em nossa opinião, para que tenhamos essa intuição a respeito de uma LE, é preciso que sejamos fluentes, o que ocorre depois de vários anos de exposição à língua. Caso contrário, não teremos esse tipo de intuição. Por outro lado, para nós, como falantes nativos, o que soa estranho pode ter duas explicações não-excludentes: ou por não fazer parte do nosso conhecimento ativo nem passivo ou por destoar da norma. Este último é o caso que se aplica a S, com relação à nossa leitura da instância (5), acima. Em outras palavras, nós, como falantes nativos, diríamos: ele é americano mas está morando no Brasil agora ou ele é americano; tá morando aqui agora ou ainda ele é americano mas agora tá (está) morando aqui no Brasil. Não podemos, com certeza, classificar a estrutura, em (5), nem de erro nem de desvio mas, com certeza, de uma interferência da LM na L2, no nível discursivo.
Como vimos até agora, a influência da LM na nova língua se dá nos níveis léxico-semântico (cf. Fundamentação Teórica), conversacional, discursivo e sintático, que vem em seguida. É importante lembrar que, de todos os níveis lingüísticos, a influência é muito mais marcada no fonológico, que foge ao escopo deste trabalho. O chamado portunhol é, nada mais nada menos, que uma IL. Foi assim denominado, devido às interferências de uma língua na outra, no nível fonológico, o mais perceptível, até para os leigos.

7.3 A interlíngua de S no nível sintático

Em (6), aparece um exemplo de falta de concordância (*um parte), muito comum na fala de falantes de línguas anglo-germânicas e de línguas orientais também, exatamente por não existir concordância entre nomes e determinantes nestas línguas. No entanto, é importante ressaltar que o aprendiz já estabelece concordância entre uma, língua e estrangeira e já usa a forma contrata (numa). Aqui, cabe uma pergunta: como explicar a alternância entre uso e omissão, por exemplo, de uma preposição? Para responder, vamos aprofundar duas questões, mencionadas acima: variabilidade e sistematicidade.

(6) ... um parte era prática, numa língua estrangeira (maio 2)

Segundo Ellis (1985, pp.10-11), os desvios da norma-padrão na produção dos aprendizes de L2 ocorrem em contextos situacionais e contextos lingüísticos. Por exemplo, ter tempo para monitorar a fala é um facilitador ao passo que a pressão pode dificultar. Assim, a pressão pode favorecer o aparecimento de desvios que, em situações em que o aprendiz se sente mais à vontade, podem não ocorrer. Quanto ao contexto lingüístico, alguns desvios podem surgir, por exemplo, em orações compostas (he visits her everyday and buy her a bunch of flowers) mas não em orações simples (he buys her a bunch of flowers).
Na instância seguinte, surge um exemplo muito recorrente de inversão do qualificativo (*preto cabelo), que é típico da estrutura da língua inglesa (black hair). A maioria dessas inversões não causa estranheza porque são alternativas perfeitamente aceitáveis ou corretas, em português (belas flores, lindo carro, etc.). Em (7), contudo, trata-se de uma inversão mal-sucedida, pois, normalmente, um falante nativo colocaria preto depois de cabelo, a ordem mais natural, sempre que se refere a cores.

(7) ... tem preto cabelo. Bonito, muito bonito... (mar. 4)

A instância acima foi registrada na quarta semana de março, e a instância abaixo, na segunda semana de outubro. Em (8), vemos, que o qualificativo ainda precede o nome (possível perigo e vazio bairro), que é a ordem normal, na LM de S: possible danger e empty neighborhood. É importante observar que, após quase sete meses de exposição à língua, em situação de imersão, o aprendiz ainda inverte a ordem do qualificativo em português. Com certeza, isso só ocorre na conversação, já que, na escrita, ele tem tempo para pensar e se corrigir. De qualquer forma, isso mostra como é difícil o processo de aquisição de sintaxe; isto, sem se falar na aquisição de léxico, semântica, etc.

(8) não gosto do possível perigo daquela escuridão e do vazio bairro. (out. 2)

Como vemos acima, nas fases iniciais, a interferência da LM do sujeito é muito acentuada. Isso explica, por exemplo, o uso de "*vazio bairro" e de *possível perigo. À medida que vai sendo, cada vez mais, exposto ao português, ele passa a perceber que, muitas vezes, o qualificativo vem antes; outras vezes, depois. É difícil saber quando o adjetivo pode ser anteposto e quando deve ser posposto.
A colocação do adjetivo se complica sempre que o aprendiz ouve combinações de palavras, tais como, lindo garoto, crise política, faca pontuda, etc. Devido a isso, em fases pré-intermediárias e intermediárias, o adjetivo pode oscilar entre a anteposição e a posposição. Somente nas fases avançadas do processo é que, depois de muita exposição ao português ou de muito estudo, em sala de aula ou por meio de textos e/ou gramáticas, lhe será possível colocar os qualificativos antes do substantivo e os relacionais, depois.
Além disso, é importante ressaltar que, para falantes nativos, a instância (8) parece estranha; talvez até, para alguns, incompreensível. O que S, de fato, quer dizer, é que não gosta daquele bairro por ser muito escuro e potencialmente perigoso. Em linguagem informal, seria mais ou menos assim: não gosto deste bairro; é vazio e escuro; por isto, é (ou dá a impressão de ser) perigoso. No entanto, para efeitos especiais, como ênfase ou ironia, vazio bairro é, sem dúvida, uma possibilidade interessante. Do ponto de vista da aquisição de sintaxe, no entanto, a instância (8), apresenta um caso de uso-padrão do verbo gostar (gosto), seguido da contração entre a preposição e o artigo (gosto do). Nesta fase, essa estrutura está se tornando cada vez mais freqüente, apesar de ainda não estar plenamente adquirida.
Em seguida, vejamos duas outras instâncias, gravadas entre um e dois meses de exposição ao português. Ambas, (9 e 10), revelam quatro dificuldades para os falantes de inglês: concordância (meu mãe, em vez de minha mãe); flexão de tempo (nasco, em vez de nasci); omissão de artigos (nome, no lugar de o nome) e de preposições (as formas contratas demoram a aparecer com acertos). Com relação à aquisição de preposições, a tese de mestrado de Lim (1991), estudo longitudinal, analisa as fases da aquisição da preposição de e suas várias realizações semânticas, levando-se em conta a distância tipológica entre o português e o coreano, sua LM. Os resultados mostram que a interferência da LM, apesar de muito mais acentuada no início do processo, aparece até o final da coleta, ou seja, depois de o sujeito morar um ano no Brasil.

(9) Maria é nome de meu mãe... (mar. 4)
(10) Nasco em estado de Flórida. (abr. 2)

As instâncias seguintes surgiram mais para o final da coleta. Como se percebe, algumas questões ainda são recorrentes. Em (11) e em (12), vemos a repetição do advérbio, como reforçador, que entra no lugar do superlativo sintético dificílimo mas que surgiu já no início do processo, na instância (2). Além disso, em (12), surge outro caso de posposição do adjetivo qualificativo (argumentos bons), em que, normalmente, usaríamos a anteposição:

(11) A situação econômica aqui, neste país, é muito muito difícil... (nov. 2)
(12) Acho que os brasileiros falam muito, muito mais do que fazem. Para mim, o mais importante é fazer mais e apresentar argumentos bons (...) (nov. 2)

A explicação para a anteposição do adjetivo, na fala de S, seria a seguinte: S, pelo que demonstra, já automatizou que o adjetivo, em português, vem depois do nome. Ao que parece, ele generalizou a regra, ou seja, ainda não atingiu a fase em que começa a discriminar os dois grupos de adjetivos: qualificativos e relacionais.
A generalização é inerente ao processo do conhecimento. Para que possamos aprender, é necessário generalizar. Douglas Brown (1980, p. 86) fornece um bom exemplo: a criança primeiro aprende que um animal de quatro patas é au-au. Ao ver um cavalo, ela irá chamá-lo de au-au. Posteriormente, ela irá ver a diferença entre os dois e, conseqüentemente, irá usar termos diferentes para eles.
Em (13), podemos perceber que, até nos últimos meses da coleta, ainda aparecem exemplos, em que ser é usado no lugar de estar. Em (13), a distinção é sutil, já que ambos os verbos fazem sentido. No entanto, S não estava se referindo a uma característica de sua personalidade (ser indeciso) mas a uma dificuldade do momento (estar indeciso). Vale lembrar que essa distinção é muito difícil de ser automatizada, podendo persistir até em falantes proficientes.

(13) ... Sou indeciso. Não sei qual escolher. (nov. 2)

Outra dificuldade que tende a persistir é o uso do pretérito perfeito composto (têm morado) em lugar do pretérito perfeito simples (moraram). A primeira forma é tipicamente inglesa (they have lived) e a segunda, brasileira/ portuguesa. Essa é uma das maiores dificuldades para os aprendizes estrangeiros de ambas as línguas. Isso porque, em português, apesar de o verbo estar no pretérito, encontra-se implícita a mesma ideia de continuidade, sinalizada, no inglês, através do pretérito perfeito composto. Em ambas as línguas, ao dizermos, por exemplo, que eles moraram a vida toda nos Estados Unidos, ou seja, they have lived their whole life in the US, existe a mesma ideia de continuidade espacial. A diferença é que, em inglês, essa continuidade existe na sintaxe, através do presente do verbo have, seguido do particípio passado do verbo principal, lived. Em outros termos, esse tempo verbal, denominado present perfect, refere-se a algo que teve início no passado (perfect) mas que continua no momento presente (present).
Apesar dessa interferência sintática, existem, nos dados, exemplos de formas já automatizadas. Como se pode observar, nos últimos meses da coleta, os acertos surgem com maior frequência do que nos meses antecedentes. Um exemplo é o uso-padrão da preposição, em (14), que ocorreu na quarta semana de novembro. O sujeito usa pensar em, em vez de pensar de (cf. instância 25), que ocorreu na quarta semana de junho.

(14) Eles têm morado a vida toda deles nos Estados Unidos. Não pensam em viajar para ver outros povos. É uma pena, né? (nov. 4)

Vale lembrar que, tanto em português como em inglês, as preposições (de, por, para, etc. e of, by, to, etc.) e os verbos regidos por preposições (pensar em, falar de, etc. e to think of, talk about, etc.) são adquiridos tardiamente. A dificuldade existe até mesmo para falantes nativos exatamente porque as preposições são palavras que não têm um significado único; este depende do seu contexto linguístico. Em inglês, existe um complicador a mais, que são os verbos frasais (phrasal verbs). São compostos por verbo, seguido de preposição, de tal forma que, mudando-se a preposição, muda-se o sentido: call for (= requerer), call out (gritar, chamar em voz alta), call off (cancelar), entre centenas de outros.
Apesar de S já ter automatizado o uso de algumas preposições bastante recorrentes na fala e na escrita, como de e para, e de pelo menos um verbo seguido de preposição, pensar em, ainda surgem, nos dados, alguns desvios léxico-semânticos, como em para ver outros povos (em vez de para conhecer outros povos ou outros países). Tais desvios, no entanto, não interferem na comunicação. Por isso, pode-se considerá-los como formas de aquisição relativa (cf. 4.2, Aquisição de línguas). A aquisição plena só se dá em fases bem mais adiantadas.
Passemos, agora, para a próxima instância, em que aparece um desvio, recorrente até na fala de falantes de inglês que moram há mais de vinte anos no Brasil. Trata-se do uso do pretérito perfeito no lugar do imperfeito. Isso se deve à grande dificuldade que este último impõe aos falantes de outras línguas, à exceção dos falantes de espanhol, já que existe imperfeito em espanhol também. No entanto, esse tipo de desvio não altera em nada a comunicação intercultural, que se dá, apesar desse pequeno deslize:


(15) [...] quando eu tive 18 anos ... (set. 2)

Na seqüência, em (16), S diz que precisa comprar um presente por minha amiga, em vez de para minha amiga. Isso demonstra que ainda não introjetou o significado dessas duas preposições, em português. Não se trata de ir comprar um presente para que a amiga dele possa presentear alguém, ou seja, não se trata de fazer alguma coisa no lugar dela (por ela). Trata-se de um presente que ele, S, vai comprar para dar diretamente a essa amiga, ou seja, para ela. Em inglês, no entanto, diz-se buy a present for someone (comprar um presente com a intenção de dá-lo a alguém, ou seja, comprar um presente para alguém) e give a present to someone (dar um presente para alguém). É difícil, para o brasileiro, entender a lógica do americano e vice-versa:

(16) S2: Eu precisei comprar um presente por minha amiga porque foi aniversário dela, sabe?
P: E o que você comprou? Pode falar?
S2: Ainda não. Não saí ontem. Eu estive muito, muito cansado. (nov. 4)

Além disso, ainda em (16), surge um outro caso em que o pretérito perfeito (precisei) é usado no lugar do imperfeito (precisava), causando uma ruptura na comunicação. Ao dizer precisei, fica implícito que ele comprou; daí, a pergunta: e o que você comprou? Se ele tivesse dito precisava, ficaria implícito que não havia comprado o presente. Acontece que P, logo em seguida, acrescenta outra pergunta: pode contar? Ao responder (ainda não), P logicamente entendeu que S não podia falar sobre o presente naquele momento. No entanto, S, ao acrescentar que não tinha saído na véspera porque estava (estive) muito cansado, tudo se esclareceu. Como se vê, o uso do imperfeito do indicativo (precisava) em vez do pretérito perfeito (precisei) teria evitado que P tivesse entendido exatamente o que S disse e não o que ele queria dizer. Por outro lado, isso fez com que P pudesse perceber que esses dois tempos verbais precisavam ser reforçados nas aulas, pois o aprendiz ainda não havia automatizado os mesmos.
A seguir, seguem instâncias representativas de interferências da LM e também da própria L2. Depois de alguns meses de exposição à nova língua, as interferências interlinguais (fui), ou seja, do inglês no português, e as intralinguais (feliz de), isto é, do português na IL de S, coocorrem. Em (17), *fui feliz, que se traduz por I was happy, está sendo usado em lugar de fiquei feliz, uma expressão idiomática. Por outro ângulo, é possível também que o sujeito tenha misturado as duas expressões (ser feliz e ficar feliz + prep. + infinitivo). Em inglês, essa construção (be happy to) é usada nos registros informal, semi-formal e formal. Em português, existe uma forma sintaticamente equivalente (ficar feliz + prep. + infin.), que é usada na linguagem semi-formal e, também, na formal. Em linguagem informal, no entanto, ao invés de se dizer, fiquei feliz por saber que [...], existe outra opção mais corrente: gostei de saber que [...]. A explicação para essa preferência, em nossa opinião, tem a ver exatamente com a preposição por, pouco utilizada em situações informais. Além disso, resta, nesse caso, uma dúvida. Qual seria a melhor opção aqui: estar feliz em, por ou ao receber tanta ajuda? Seja lá qual for, a frase soa mais para formal do que para informal:

(17) ... fui feliz de receber tanta ajuda depois de tanto tempo sem ninguém... (set. 4)

Além disso, com certeza, haverá muitos falantes nativos de português que poderão optar por de, já que esta preposição, nas últimas décadas, vem se tornando praticamente um curinga, isto é, vem sendo usada nas mais diversas acepções, no registro informal (não tenho interesse em [de] sair). No registro formal, há um exemplo disso, no dicionário de regência verbal de Celso Pedro Luft, em que de vem no lugar de para. Na entrada lexical referente ao verbo esforçar, o autor afirma que "o mais usado hoje é esforçar-se para + infinitivo" (1987, p. 270). No entanto, mais adiante, ao discutir e exemplificar a regência do verbo lembrar, o autor, ao citar João Ribeiro (apud Torres, 1963, p.189), usa a expressão "esforço de lembrar" (Luft, 1987, p.351).
É importante deixar claro que Luft, na apresentação dos verbetes, frisa bem que seu dicionário "embora obviamente dedicado à regência da língua culta, em registro formal, sobretudo na escrita (não necessariamente literária) deu toda a atenção a inovações nesse campo" (idem, p.16). Mais adiante, acrescenta que deu "a devida atenção a inovações de regência, casos de sintaxe brasileira, diferenças entre linguagem culta e popular" (idem, p.17). Em esforço de lembrar, acima, o uso de de, em vez de para, já se encontra dicionarizado, já que foi usado pelo próprio autor. Portanto, pode-se inferir que já não se trata, propriamente, de uma inovação mas de uma característica da língua falada, influenciando a língua escrita.
Na sequência, em (18), S parece misturar duas expressões, estar com medo e ter medo, o que resulta numa terceira que, apesar de compreensível, não é idiomática. Novamente, vemos, aqui, outro caso de interferência intralingual, no nível lexical:

(18) Eu tive com medo também, sabe? (set. 4)

Em (19), aparece um outro exemplo de pra baixo, em vez de embaixo da cama. Vale lembrar que até falantes nativos de português se confundem ao usar preposições compostas por baixo (embaixo de, debaixo de, para baixo de, para debaixo de). No contexto abaixo, o uso de esconder pra baixo da cama não interfere na comunicação:

(19) Chuva, no Brasil, significa nenhuma electricidade, enormes buracos nas ruas, árvores caindo e cachorros tentando esconder pra baixo da cama. (out. 2)

A frase acima tem uma estrutura tipicamente inglesa, ou seja, trata-se de uma tradução literal: Rain, in Brazil, means no electricity, huge holes in the streets, trees falling down and dogs trying to hide under the bed. Em português, talvez fosse preferível dizer algo assim: Aqui no Brasil, quando chove, acaba a eletricidade; as ruas ficam cheias de buracos; além disso, cai muita árvore, e os cachorros ficam se escondendo debaixo das camas.
Na instância (20), surge um caso mais complexo, porque tem a ver com a seqüência lógica de tempos, ditada pelo verbo da oração principal. Dessa forma, sempre que, na oração principal, o verbo estiver no perfeito do indicativo, na oração subordinada, o verbo deverá vir no imperfeito do subjuntivo (pudesse). No entanto, para os falantes de inglês, existe um complicador: o subjuntivo, que se encontra praticamente extinto na língua inglesa. Isso explica o uso de pode ao invés de pudesse:

(20) Ele chegou à noite, sem lugar em que ele pode ficar ... (ag. 2)

Na instância seguinte, aparece, novamente, o verbo gostar. Como se percebe, S omite a preposição de, apesar de P tê-la usado na pergunta. Isso significa que S ainda não introjetou que gostar é regido pela preposição de, diferentemente de like, que não é regido por preposição. Além disso, S alterna códigos (cf. instâncias 1, 2 e 3), por não conhecer o termo frases feitas:

(21) P: O que você disse? Que gostaria de usar o quê mesmo?
S: Eu gostaria usar stock phrases e fazer coerência. (maio 2)

Por ser mais rápida, a alternância de códigos é uma das formas preferidas dos americanos para esclarecer dúvidas com relação ao vocabulário. Por ser bilíngue, P não se importa que S lance mão da LM. Para P, a tradução encurta caminhos por ser mais direta. Sem dúvida, ir direto ao ponto (be to the point) é uma das características marcantes dos americanos.
Os brasileiros, por outro lado, gostam de negociar o sentido, de reestruturar as frases, de ter tempo para pensar, o que implica maior número de pausas. Eles demonstram, também, certa preferência pelas estratégias conversacionais cooperativas, tais como pedidos de ajuda ao interlocutor. Em termos de preferência, segundo P, os brasileiros se preocupam menos com o tempo do que os americanos. Essas são apenas duas das características culturais desses dois povos.

7.4 A interlíngua de S no nível lexical
Ainda em (21), aparece outra dificuldade para os falantes de inglês, que são as relações entre o significado das palavras e o contexto em que são usadas. Por exemplo, coerência é sinônimo de harmonia, conexão, lógica. Mas qual seria a diferença entre este texto não tem coerência e este texto não tem lógica/ conexão/ harmonia? Além disso, ter é sinônimo de possuir. No entanto, não se diz *possuir coerência. Aprender que certas palavras pedem determinados verbos (estabelecer coerência; fazer sentido/ atribuir sentido; ter significado/ atribuir significado; ter unidade/ imprimir unidade, conferir unidade) requer tempo.
Nas fases inicial e pré-intermediária do processo de aquisição/aprendizagem de línguas de S, que, neste trabalho, se referem aos primeiros cinco meses e meio, a tendência natural do aprendiz, como já vimos, é se apoiar na LM, que é um recurso que, via de regra, dá certo, para falantes de línguas próximas e de distância média. Nos últimos dois meses e meio, isto é, na fase intermediária, S lança mão de outros recursos, como por exemplo, a associação intralingual, ou seja, a associação entre termos (ou regras) existentes na própria L2.
Ainda na instância (21), assim que S diz fazer coerência, P imediatamente entende o que ele quer dizer: estabelecer ligação entre as idéias do texto. Contudo, por que o sujeito diz *fazer coerência? Uma possível explicação é que, para S, coerência é sinônimo de sentido. Portanto, pela lógica, fazer coerência está correto, já que se diz também fazer sentido. Mas essa lógica, por associação, que às vezes dá certo, nem sempre pode se aplicar a todas as expressões (idiomáticas ou não) de determinada língua.
Por isso, seria necessário refletir sobre o verbo que deveria acompanhar coerência, o que nos levou às seguintes considerações. Com relação à ligação de sentido entre uma palavra e outra (no caso, um verbo e um nome), existem alguns complicadores. Para usar, sem interferências, qualquer uma destas expressões, produzir textos coerentes ou expressar-me com coerência ou ainda conferir coerência aos (meus) textos, o aprendiz deverá usar o verbo apropriado para cada situação. Por exemplo, a primeira dessas expressões refere-se ao tipo de texto que ele vai escrever; a segunda, à forma como vai se expressar por escrito; e a terceira, à edição de seus textos, durante a redação ou depois de redigidos. A primeira expressão é mais simples (V + obj. direto + qualificativo). As outras duas possuem dificultadores: na segunda, é o verbo reflexivo e na terceira, é o verbo transitivo direto e indireto.
Trata-se, portanto, do domínio de conhecimentos, adquiridos em um longo espaço de tempo, através de uma série de etapas, nas quais se alternam acertos e desvios da língua-padrão. Para que os alunos introjetem e usem, com propriedade e sem pensar, leva tempo. Com apenas um ano ou menos de exposição ao português não se deve esperar que produzam uma frase, como a (21), sem desvios.
Expressões como essa, em (21), nos levam a discorrer, neste ponto, sobre as relações de sentido entre as palavras, como por exemplo, as expressões idiomáticas. Elas se constituem na maior dificuldade para os falantes de outras línguas, inclusive os de espanhol. Isso se deve às suas características: (1) são próprias da língua; (2) têm uma forma sintática própria; (3) têm um significado próprio, diferente de 1 + 1 = 2; (4) os termos não são passíveis de substituição. Assim, em mover montanhas, mover + montanhas não significa tirar as montanhas do lugar. Nesse sentido, 1 + 1 = 3, ou seja, mover montanhas significa fazer o impossível.
Segundo Chitra Fernando (1996, p.10), as expressões idiomáticas são formadas por combinações de palavras fixas (to spill the beans) ou mais ou menos flexíveis (rosy cheeks ou plump cheeks). No entanto, existem, além dessas, as chamadas collocations (idem, p.30), que vamos traduzir por combinações, ou seja, expressões mais ou menos consolidadas pelo uso. O termo, em inglês, de acordo com Longman Dictionary of Contemporary English, se refere à combinação entre as palavras, de modo a soar natural ("an arrangement of words which sounds natural"). O exemplo citado é o de strong coffee, que é idiomático, em oposição a *powerful coffee, não idiomático.
Segundo Fernando (1996, p.29), as combinações são marginalmente idiomáticas ("marginally idiomatic"). Além disso, segundo o autor (idem, p.57), elas não se constituem em unidades lexicalizadas ("not lexicalized units"). Daí, a sua complexidade, não somente para o falante nativo mas também para o não-nativo. Trata-se, portanto, de combinações de palavras que coocorrem. Nas palavras de Kirth (apud Fernando, idem, p.250), o termo collocations se refere à companhia que existe entre as palavras ("the company words keep").
Vários pesquisadores ressaltam esse tipo de combinação de palavras no discurso (COULMAS, 1979; PAWLEY and SYDER, 1983; PAWLEY, 1986; SINCLAIR, 1987; TANNEN, 1989; FERNANDO, 1996), na língua inglesa. Contudo, para exemplificar com clareza, vamos usar o português. Dois dos verbos imediatamente associados a tempo são ter (não tenho tempo agora) e dar (me dá mais um tempo). Um sinônimo de ter, por exemplo, não seria considerado aceitável nesse contexto (*não possuo tempo para isso); um sinônimo de dar, também (*me oferece mais tempo) não seria. Isso nos leva, por associação, de volta à instância (20), acima.
Como se trata de uma combinação de palavras que, no caso, não soa idiomática, é necessário que se pense em alguns verbos para acompanhar (to keep company) o substantivo coerência, o que será feito, a seguir, nas duas línguas, para efeitos comparativos. Foram selecionados, em português, vinte exemplos, extraídos de livros dos seguintes autores: KOCH et al., 1993; FIORIN, et al., 1995; VAL, 1991; e CITELLI, 1994, que tratam de coerência.
A análise dos exemplos mostra que os verbos que acompanham a palavra coerência são usados com o sentido de dar, para se referir ao processo, isto é, tornar um texto coerente e com o sentido de ter ou ser, para se referir ao produto, ou seja, o texto tem coerência/ é coerente. Com o sentido de dar, os verbos mais usados são estabelecer (seis ocorrências) e dar (quatro ocorrências), sendo que os exemplos, em sua maioria, foram extraídos da mesma fonte (KOCH et al.), que, diferentemente de todos os outros autores pesquisados, em ambas as línguas, trata exclusivamente de coerência:

Grupo I

(a) "[...] a coerência é algo que se estabelece" (KOCH et al. p.11)
(b) "a coerência não é apenas propriedade do texto, mas se estabelece" (KOCH et al. p.19)
(c) "para estabelecer a coerência" (KOCH et al. p.23)
(d) "para que a coerência seja estabelecida" (KOCH et al. p.23)
(e) "que lhe dê coerência" (KOCH et al. p.24)
(f) "estabelecer a coerência" (KOCH et al. p.24)
(g) "dá coerência à seqüência" (KOCH et al. p.28)
(h) "que dá coerência ao texto" (KOCH et al. p.29)
(i) "coerência: de que depende, como se estabelece" (KOCH et al. p.47)
(J) "tentando dar coerência ao texto" (FIORIN, p.269)

Com o sentido de ter, os verbos encontrados nos textos pesquisados, com apenas uma ocorrência de cada um, são haver, apresentar, ser, guardar e ser dotado de, com a ressalva de que estes dois últimos (cf. itens (d) e (e), abaixo) são usados em sentido figurado. Seguem, em seguida, os exemplos:

Grupo II

(a) "havendo [= existir, ter] coerência, deduzimos as ligações proposicionais implícitas a partir de uma interpretação dos atos ilocucionais" (KOCH et al. p.17; citação, extraída do livro de Widdowson, em tradução);
(b) "a seqüência é coesiva, mas não apresenta [= exibir, ter] coerência, não formando um texto com uma unidade de sentido" (KOCH et al. p.28);
(c) "para o texto ser [= ter determinadas características] coerente" (CITELLI, p.26)
(d) "a redação guarda [conter, encerrar, ter] alguma coerência no âmbito global" (VAL, pp.73-4);
(e) "o texto é dotado de [= possuir, ter] coerência interna" (VAL, p.100).

No Grupo III, abaixo, listamos outras combinações, com os verbos expressar, depender de, consistir, conseguir e assegurar:

Grupo III

(a) "[a coerência sintática] se refere aos meios sintáticos para expressar [= exprimir, manifestar] a coerência semântica" (KOCH et al. p.20);
(b) "Coerência: de que depende [= surgir em decorrência de], como se estabelece" (KOCH et al. p.47);
(c) "[m]as nem todos explicitam de maneira clara em que consiste [= compor-se de] essa coerência, [...], e como se pode consegui-la [= alcançar]" (FIORIN, p.261);
(d) "assegurar [= garantir] a coerência" (CITELLI, p.27).

Comparando os três grupos, observamos que, nos dois primeiros, aparecem as palavras com sentido mais corrente, à exceção de (d) e (e), já discutidos acima, ou seja, existe concordância entre os autores pesquisados. As acepções predominantes, nos dois grupos, são dar (estabelecer) e ter (haver, consistir, guardar, ser dotado de, apresentar e ser), num total de dezesseis. No terceiro grupo, surgem outras acepções menos freqüentes. Essas variações, em número de quatro, usadas pelos autores brasileiros (cf. Grupo III), têm as seguintes acepções:

(a) expressar (exprimir, manifestar)
(b) depender (surgir em decorrência de)
(c) consistir (compor-se de) / conseguir (alcançar)
(d) assegurar (garantir)

Voltando à instância produzida por S, *fazer coerência, observa-se que fazer está sendo usado com o sentido de dar coerência ao texto, isto é, tornar o texto coerente. Deduz-se, portanto, que o verbo que deveria acompanhar coerência, em (21), deveria ser dar ou estabelecer, e não fazer.
No entanto, *fazer coerência poderia ser um caso de interferência do inglês. Em vista dessa possibilidade, vamos examinar alguns textos, em que é usada a palavra coherence. Selecionamos vinte exemplos, em inglês, dos seguintes autores: ELSBREE et al., 1977; KROLL, 1990; RICHARDS et al., 1987; HILLMAN et al., 1986; GRABE et al., 1996, VENTOLA et al., 1996 e DAVIDSON, 1968, que tratam da coerência textual (uns apenas mencionam, outros analisam mais a fundo). No entanto, o número de ocorrências, em cada um desses textos, é bem menor que nos dos autores brasileiros. Por isso, tivemos de consultar um maior número de livros, que tratam do assunto.
Dividimos as instâncias encontradas, também, em três grupos, como a seguir:
Grupo I

(a) "[t]his pattern helps provide [= proporcionar, fornecer, dar] coherence by arranging visual details in some consistent sequence" (ELSBREE et al. p.178);
(b) "the main devices for providing [proporcionar, fornecer; dar] coherence among paragraphs [...]" (ELSBREE et al. p.186);
(c) "coherence [...] is [...] established [= estabelecer]" (KROLL, p. 30);
(d) "coherence between writer (and text) and reader will not be established [= estabelecer]" (KROLL, p.31).

Grupo II

(a) "Generally a paragraph has [= ter] coherence if [...]" (RICHARDS, et al. p.45);
(b) "the paragraph generally lacks [= carecer, não ter] coherence because [...]" (ELSBREE et al. p.182).

Grupo III

(a) "The other means of achieving [= conseguir, alcançar] coherence [...]" (ELSBREE et al. p.181);
(b) "they are concerned to achieve [= conseguir, alcançar] coherence accurately [...]" (ELSBREE, p.182);
(c) "In order to achieve [= obter, conseguir] this coherence you should have an overall sense of the structure of the paper." (ELSBREE et al. p.202);
(d) "[t]here are three methods of achieving [= obter, conseguir] coherence" (HILLMAN et al. p.115);
(e) "helping students attain [= obter, conseguir] textual coherence" (KROLL, p.104);
(f) "determine how much you revised for [= fazer revisão com o objetivo de obter] coherence [...]" (ELSBREE et al. p.188);
(g) "Paragraph coherence is also maintained [= manter, assegurar] by the repetition of key words" (ELSBREE et al. p.184);
(h) "To make [= tornar] the paragraph coherent [...]" (ELSBREE et al. p.179);
(i) "to make [= tornar] his or her paragraph coherent" (HILLMAN et al. p.106)
(J) "a second method for making [= tornar] writing coherent" (HILLMAN et al. p.106);
(k) "the central elements producing [= criar, produzir] the coherence of a text" (GRABE et al. p.59);
(l) "at least some part of coherence is constructed [= construir] by the reader's interpretive systems" (GRABE et al. p.67);
(m) "[a]ccording to Agar and Hobbs, coherence arises out of [= surgir] the interplay between three kinds of discourse" (VENTOLA et al. p.96);
(n) "to secure [=assegurar] coherence" (DAVIDSON, p.30).

É nítida a diferença entre as acepções mais usadas em cada uma das duas línguas. De um lado, tem-se, em português, uma preferência marcante por dar (quatro ocorrências) e estabelecer (seis ocorrências); de outro, existe, em inglês, um certo equilíbrio entre provide (duas ocorrências), establish (duas), achieve (quatro) e make (três). Quanto a ter, que, em português, aparece seis vezes, com verbos diferentes, em inglês, só foram registrados dois casos (has e lacks [= has not]). Outra grande diferença entre as duas línguas está, no entanto, nas variações (cf. Grupo III): em português, apareceram apenas quatro casos; em inglês, sete, sendo que o penúltimo (secure) soa estranho, talvez por se tratar de um texto mais antigo (de 1968). Os quadros, abaixo, contribuem para uma melhor visualização:


Quadro 1. Verbos, em português, que acompanham "coerência"
_________________________________________________________________________
Grupos Verbo Acepção Ocorrências
_________________________________________________________________________
I 1. dar dar 4
2. estabelecer estabelecer 6
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
II 3. haver ter 1
4. consistir compor-se de 1
5. apresentar ter 1
6. ser ter [coerência] 1
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
III 7. guardar ter 1
8. ser dotado de ter 1
9. expressar exprimir, manifestar 1
10. conseguir alcançar 1
11. assegurar garantir 1
1 2. depender surgir em decorrência de 1
_________________________________________________________________________
TOTAL: 20
_________________________________________________________________________








Quadro 2. Verbos em inglês, que acompanham "coherence"
_________________________________________________________________________
Grupos Verbos Acepção Ocorrências
semântica
_________________________________________________________________________
I 1. achieve alcançar 4
2. make fazer; tornar 3
3. provide dar 2
4. establish estabelecer 2
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
II 5. have ter 1
6. lack carecer (= não ter) 1
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
III 7. attain conseguir, obter 1
8. maintain assegurar 1
9. produce produzir 1
10. construct construir 1
11. arise out of surgir 1
12. secure assegurar 1
13. [revise] for a fim de obter 1
_________________________________________________________________________
TOTAL: 20
_________________________________________________________________________


O nosso foco, no entanto, recai sobre o uso do verbo make (= fazer, tornar), já que, na instância (20), S usa a expressão *fazer coerência. Observe-se que a estrutura da frase em inglês (to make + Noun + adjective; to make the paragraph coherent ) é a mesma da estrutura da frase em português (tornar + Nome + adjectivo; tornar o parágrafo coerente). Contudo, a IL de S difere de ambas (fazer + Nome; *fazer coerência). O único ponto comum entre o verbo usado na LM de S e o verbo usado em sua IL é o verbo make (= fazer). A possibilidade de que S tenha associado to make a text coherent com *fazer coerência, apesar de remota, não deve ser descartada.
Em suma, pode-se dizer que existem duas possíveis explicações para a expressão *fazer coerência: a que foi mencionada no parágrafo anterior, que é interlingual, e uma outra mencionada nesta seção (cf. 7.4, segundo parágrafo), por associação com fazer sentido, que é intralingual. Como já mencionamos anteriormente, a forma interlingual é um tipo de interferência de uma língua na outra; a intralingual se dá a partir da influência de outra forma (ou regra) da própria língua-alvo. Para nós, a hipótese da interferência intralingual é mais viável, primeiro, porque se trata de estruturas semelhantes (fazer sentido/ * fazer coerência); depois, porque foi produzida no final da fase inicial, início da pré-intermediária, na qual já tendem a aparecer, com mais freqüência, esse tipo de interferência.

7.5 A interlíngua de S nos níveis sintático e léxico-semântico
Na instância (22), do ponto de vista da sintaxe, surge um verbo no imperfeito: fazia. No entanto, segundo as notas de campo, naquele contexto específico, o tempo verbal adequado era fez. Apesar disso, S já demonstra ter, pelo menos, domínio da forma; o domínio da função vem com o tempo. Do ponto de vista lexical, ao que parece, S associou fazer português e fazer inglês, duas expressões comuns entre os alunos de graduação, com fazer aula de composição, uma associação que, apesar de lógica, não é idiomática. Em (23), ele associa fazer uma experiência com uma expressão do inglês, to make an experiment. No entanto, se ele tivesse traduzido diretamente do inglês, ele teria acertado: teve uma experiência muito ruim.
Observe-se que ele usou o verbo fazer nos dois casos, talvez por influência do inglês, que usa o verbo to do nas mais diferentes acepções: to do the flowers, to do Hamlet, to do the dishes, to do the room, to do a book, que se traduzem, respectivamente, por fazer um arranjo de flores, interpretar Hamlet, lavar a louça, arrumar o quarto, escrever um livro, atuar num filme e arrumar o cabelo.

(22) [...] ele não fazia aula de composição... (maio 4)
(23) [...] fez uma experiência muito ruim na chegada dele... (jun. 2)

Em (24 e 25), a dificuldade é a regência, que difere entre as duas línguas. No primeiro caso, existem, em inglês, duas opções: consists of e consists in, dependendo do contexto. Quando se quer dizer que este trabalho compõe-se de três partes, a preposição é of. Quando se quer dizer que o objetivo deste trabalho depende de ou tem como base três pressupostos teóricos, a preposição é in. Contudo, em português, a preposição é em, em ambos os casos, o que o aprendiz americano, sujeito desta pesquisa, ainda não automatizou:

(24) [...] a peça consiste de três atos grandes; uma hora cada. (jun. 2)
(25) [...] Voltar? É, eu penso de voltar um dia. (jun. 4)

Em (25), o inglês oferece duas alternativas: think about e think of. Assim, tanto faz dizer I'm thinking about you ou I'm thinking of you, pois o significado é o mesmo. Já em português, a preposição que segue o verbo pensar é sempre em (penso em você). As diferenças entre as duas línguas geram frases do tipo *I'm thinking in my family, por aprendizes brasileiros, e *penso de voltar um dia, por falantes de inglês.
Para o brasileiro, aprendiz de inglês como LE, outra grande dificuldade com o inglês consiste em diferenciar verbos com significados afins, tais como do e make. Os dicionários e os livros didáticos fazem, grosso modo, a seguinte distinção: do significa executar, realizar (to do some kind of work); e make tem o sentido de criar, fabricar, construir e também de causar (to make trouble). No entanto, em alguns contextos, nos registros informal e semi-formal, fica difícil, para o estrangeiro, entender porque se usa um ou outro, como nos exemplos abaixo, extraídos de entrevistas com personalidades da televisão americana:

They did a singing tribute to the bride. (= paid; prestar / fazer uma homenagem)
It'll take me two weeks to redo my room. (= redecorate; redecorar)
I'll not make age an issue in this campaign. (= turn into; fazer de, transformar)
Years ago the Mary Schiavo story made the front-page in most newspapers. (= hit; sair/ ser publicado")

Em (26), aparece um outro problema para os falantes de inglês e, é claro, para os falantes de línguas orientais também, que envolve os níveis sintático e semântico. Trata-se da palavra casa, usada com ou sem o artigo. Por exemplo, notícias de casa tem o mesmo sentido de notícias de (da) sua casa, ou seja, de seus parentes, de sua família; notícias da casa dele se refere aos parentes dele, uma terceira pessoa. No entanto, não se diz, em português, notícias de casa dele porque casa dele está especificando a casa de quem; e não se diz tampouco notícias da casa, pois o da pede que se especifique de quem:

(26) [...] sem notícias da casa ... (ag. 4)

No nível semântico, em inglês, a casa dele se traduz por his home, ou seja, significa mais do que simplesmente a casa, o imóvel, mas o seu lar. Em português, apesar de o item lexical casa ter as duas acepções, o imóvel e a família, estas devem ser inferidas pelo contexto. Por exemplo, a casa é fundamental para a educação das crianças (= no sentido de família); a casa dos Silveira (= família); reformar a casa (= o imóvel); isto porque o termo lar não é usado na conversação.
Portanto, existem diferenças para o aprendiz de inglês, falante de português, e para o aprendiz de português, falante de inglês. Para o aprendiz de português, a dificuldade abrange os níveis sintático e semântico. Para o aprendiz de inglês, a dificuldade se encontra no nível semântico, ou seja, ele precisa saber distinguir o significado de house e de home.
Para ilustrar melhor, vamos comparar as duas línguas. Em linhas gerais, existe uma certa correspondência entre home e lar (home sweet home / lar doce lar) e house e casa:

(a) house/ casa (sentidos iguais, nas duas línguas): they live in a beautiful house [a building]; the whole house [household, family] woke up in the middle of the night; eles moram numa casa [o imóvel] linda; a casa inteira [a família toda] acordou no meio da noite;

(2) teatro (no sentido de o público/ the audience): the whole house gave him a standing ovation; o teatro, em peso, aplaudiu de pé;

(3) a estréia do filme aconteceu com a casa cheia (o conjunto de espectadores); em inglês, a full house.

A diferença entre home e lar está, essencialmente, na freqüência de uso. Diferentemente de lar, que só é usado na expressão mencionada acima, o termo home, em inglês, é usado no dia a dia numa variedade de contextos, que, em português, se traduzem como casa, em sua grande maioria:

Brazil is my home. (lugar de origem)
They put their father in a home. (asilo)
I left my books at home. (na minha casa)
In the U.S. people tend to leave home early. (sair de casa para morar fora)
Make yourself at home. (sinta-se em casa)
I went back home at five yesterday. (voltar para casa)
Is Jane home? (em casa)

Além dos contextos acima, existem, em português, inúmeras expressões com o termo casa, usadas nas mais diversas situações, o que torna o uso de casa tão complexo quanto house e home. Seguem alguns exemplos entre os mais usados:

montar casa (mobiliário, louças, móveis, objetos, etc.) [to furnish the house]
o tabuleiro de xadrez tem 64 casas (each square on a chess-board)
preciso fazer as casas da minha blusa (buttonholes)
ele já está na casa dos trinta (in his thirties)
a mansão tem cinco casas de banho (bathrooms)
casa de câmbio (= stock exchange)
casa decimal (= decimal fraction)
casa de Deus (templo religioso/ church)
casa de máquinas (= power house)
casa de saúde (= hospital)
feito em casa (home-made)
levar alguém para casa (take someone home/ walk someone to his house)
sem casa (homeless)
fora de casa (not at home/ out)
em casa (at home)
ficar em casa (stay home)
sinta-se em casa (feel yourself at home)
arrumar a casa (to clean up the house)
ela é de casa (she's a close friend of ours)
ter saudade de casa (to miss home)
voltar para casa (to come back home)

Neste ponto, é importante sublinhar que os falantes nativos não têm dúvida quanto ao uso desses dois termos, mesmo que não saibam explicar o porquê. É que, desde cedo, se acostumaram a ouvir cada um em seus devidos contextos. Para os estrangeiros, no entanto, essas diferenças são sutis e levam, por isso mesmo, muito tempo para serem adquiridas. Isso porque, como qualquer outra língua, tanto o português quanto o inglês apresentam suas idiossincrasias. Aprendê-las é, sem dúvida, uma grande dificuldade em aprendizagem e aquisição de línguas. Automatizá-las, com certeza, é a maior dificuldade de todas.
A pergunta que fica é a seguinte: como introduzir todas essas diferenças entre a LM e a LE/L2 na sala de aula de línguas? Em nossa opinião, em fases iniciais do processo de aprendizagem/ aquisição de línguas, os aprendizes devem aprender a usar as expressões às quais são expostos, através de conversações e de textos. Listas, como as expostas acima, somente fazem sentido para o professor/ pesquisador, como por exemplo, para os leitores deste trabalho. É importante que estes tenham noção da complexidade dos processos de aquisição de léxico e de semântica, já que poucas pesquisas tratam do assunto. Compreender as dificuldades do aprendiz contribui para uma melhor interação entre professor e aluno e, possivelmente, para um melhor desempenho do aprendiz.

8. Conclusão
O sujeito desta pesquisa é um falante de inglês, S, aprendiz de português, como L2. Os dados foram coletados durante dois semestres. O foco recaiu sobre as interferências da LM de S, na língua-alvo, em vários níveis lingüísticos (conversacional, sintático, discursivo lexical e semântico). Paralelamente à análise dos dados, foi desenvolvida uma análise, que classificamos de espelhada, por refletir, através dos dados de S, as dificuldades de brasileiros, aprendizes de inglês, como LE. O objetivo foi mostrar que a aquisição do português, por um falante de inglês, se assemelha às de um brasileiro, aprendiz de inglês. E que, além disso, essas dificuldades fazem parte de uma rede articulada de novas informações a respeito da língua-alvo. Ser exposto, aprender e passar a usar essa rede de conhecimentos é um longo e árduo processo.
Essas dificuldades com a língua-alvo transparecem de várias formas. Excluindo, por exemplo, o tempo que um aprendiz leva para aprender/ adquirir uma L2/LE, e focalizando, exclusivamente, no desenvolvimento lingüístico do sujeito, vemos que as barreiras que a nova língua impõe são múltiplas e complexas, por se referirem, de fato, à linguagem e não somente à língua. Em inglês, vale lembrar, language possui os dois significados. O olhar de hoje para as ILs difere daquele olhar dos anos 70, quando eram vistas negativamente, como formas desviantes, já que o foco se dirigia primordialmente à sintaxe.
Hoje em dia, embora ainda se use o termo interferência, a conotação é positiva. Saber falar outra língua implica domínio de conhecimentos complexos, que se adquirem no decorrer de anos e anos e com muito esforço e determinação, através de um longo processo de ensaio e erro. Para o professor/ pesquisador, esse processo, em que se alternam erros e acertos, abre caminho para a pesquisa e para o enriquecimento do trabalho na sala de aula.
Conforme constatamos, neste trabalho, as interferências se dão em vários níveis, sendo que, no nível sintático, ela é mais visível, por se tratar de desvios da norma-padrão. Um dos casos analisados é a colocação do adjetivo que, em português, vem, na maioria das vezes, depois do nome; em inglês, antes. No entanto, há exceções; olho azul, caixa redonda, etc.. Saber discriminar quando o qualificativo deve vir anteposto ou posposto é um processo demorado. Em apenas um ano ou menos, o aprendiz, como é o caso de S, só consegue aprender a posposição, como demonstram os seguintes exemplos: *vazio bairro e *possível perigo. No entanto, desvios, desse tipo, não interferem na comunicação, já que os falantes de português já foram expostos, em sua LM, aos dois casos.
Ainda no nível sintático, entre os exemplos analisados, encontra-se uma frase com o verbo no passado, em vez do imperfeito: *quando eu tive 18 anos. Isso revela uma das três maiores dificuldades para os aprendizes de línguas de distância média, como o inglês, e de línguas distantes, como o japonês. Para esses estrangeiros, é muito difícil entender a lógica que está por trás disso. A pergunta que eles invariavelmente fazem, a nós, professores, é: por que tenho que dizer tinha se eu não tenho mais 18 anos? Enfim, para que eles passem a usar o imperfeito, e também, para que introjetem as duas outras grandes dificuldades do português (o subjuntivo e o uso de ser e estar), demora anos. Da mesma forma, para que os brasileiros usem, sem pensar, o pretérito perfeito composto (has seen), os verbos frasais (phrasal verbs) e as preposições (in, on, at, over, above, underneath, beyond, etc.), também, demora muito.
Quanto ao nível discursivo, no entanto, não existem desvios; existem interferências, que podem ser mais ou menos visíveis. Por exemplo, existem estruturas frasais, que são típicas do inglês, tais como eu sou um norte-americano, agora morando no Brasil (I'm an American, now living in Brasil). Em contrapartida, existem frases tipicamente brasileiras, como sou americano; estou morando aqui agora. Em inglês, essa frase soa estranho (I'm American; I'm living here now) por não ficar clara a referência ao lugar, já que here se refere ao lugar em que se está no momento da interação. Para deixar claro que here significa no Brasil, os americanos diriam in this country ou here in Brazil.
Quanto ao nível léxico-semântico, a análise se centra nas colocações (collocations), que são "marginalmente idiomáticas", como por exemplo, estabelecer/ dar coerência (establish/ provide coherence). Existem, nas línguas em geral, determinadas combinações de palavras que são, insubstituíveis, como é o caso de strong coffee e café forte. Palavras sinônimas, como powerful e poderoso, não são aceitas. Além desses exemplos, são analisados pares de palavras, como house/ home (casa/ lar), que constituem verdadeiras barreiras para os aprendizes. Por exemplo, casa pode ser traduzido por house, home e até por square (as casas do tabuleiro de xadrez) e buttonhole (as casas do casaco).
Em vista de tudo o que foi exposto, neste trabalho, a nosso ver, existem falantes nativos e falantes interlinguais, ou seja, o falante nativo fala, desde criança, a língua do lugar onde nasceu ou mora; o falante interlingual fala uma interlíngua, que se constitui numa língua com características de duas ou mais línguas (a nativa + a estrangeira). Dessa forma, tudo que o estrangeiro produz possui marcas individuais, que se expressam linguisticamente através de diferenças, que são mais (ou menos) pronunciadas, mas que, também, podem ser quase imperceptíveis.
Para encerrar, uma pergunta: quais são as implicações deste estudo para a sala de aula de línguas? Em nossa opinião, o professor deve pensar duas vezes antes de exigir que os alunos automatizem conhecimentos que requerem anos para serem adquiridos, tais como expressões idiomáticas, preposições, etc. É equivalente a querer, por exemplo, que os bebês andem, antes de aprenderem a engatinhar; ou que os jovens brasileiros, da sexta série, dominem o registro formal do português, a ponto de serem capazes de fazer uma conferência ou uma comunicação num congresso científico. Em outras palavras, é colocar a carroça na frente dos bois. O professor deve dar tempo ao tempo para que estes processos se desenvolvam: aquisição de fonologia, de sintaxe, de léxico, de semântica, domínio de estratégias conversacionais, discursivas e sócio-lingüísticas. Fácil? Pois sim.


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