Análise da Linguagem Saxofonística Brasileira

September 2, 2017 | Autor: Marcelo Coelho | Categoria: Musica Brasileira, Música Popular Brasileira, Improvisação, Saxofone, Linguagem Musical, Saxofone Erudito
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Marcelo Pereira Coelho

Análise da Linguagem Saxofonística Brasileira Trabalho de Iniciação Científica do Departamento de Música, Instituto de Artes da Unicamp. Professor Orientador: Ricardo Goldemberg FAPESP

Campinas Instituto de Artes da Unicamp 1997

Dedicatória Este trabalho é dedicado ao grande clarinetista, saxofonista, músico e artista brasileiro Paulo Moura. Infelizmente não foi possível contar com a colaboração do mestre Paulo Moura na elaboração deste trabalho, que sem dúvida, fez uma grande falta. Com os tempos e os contratempos muito bem definidos e agendados, além de contar com a distância que nos separa, a entrevista vai ficar para uma outra oportunidade, mas será realizada nem que seja por um capricho do autor! Mas, apesar de não ter tido acesso às suas palavras, faço das minhas o que disseram os outros saxofonistas, seguidores do seu caminho: "Veja Bem! Temos que lembrar que o Paulo Moura gravou bastante coisa

brasileira

na

linguagem

brasileira!!!"

(Eduardo

Pecci

"Lambari") "(...) uma vez eu o vi tocando no Bar Avenida(SP) para dançar, e ele fez uma mistura disso tudo mas de uma forma brasileira e um jeito de improvisar brasileiro. Eu falei para ele o que nós já havíamos conversado a muitos anos, e disse que ele estava conseguindo encontrar algo próprio, uma linguagem brasileira." (Roberto Sion) "O Paulo Moura eu tenho que admitir, até hoje eu penso em muita coisa que ele fala, nós convivemos muito, já viajamos muito juntos." (Raul Mascarenhas) "Falando de saxofone, o que é tocar saxofone? Ouça o Pixinguinha que você vai entender, ouça o Paulo Moura. O Paulo Moura é demais, é totalmente autêntico pois ele pega a clarineta amarela e toca do jeito dele, tranqüilo, mostra o instrumento europeu tocando música brasileira. Eu tenho para mim que o Paulo Moura está numa boa com ele, ele não 2

tem pretensão ser um artista, e sim um humano." (Naylor Azevedo "Proveta") "(...) veio o Paulo Moura que me deixou assustado quando eu vi o virtuosismo do chôro. Para mim foi uma descoberta porque tanto o Sion quanto o Hector Costita eram muito jazzistas, mas eu ainda não tinha visto aquela coisa brasileira como o Paulo Moura." (Teco Cardoso) "O Paulo Moura me impressionou também com espinha de bacalhau, e eu pirei com aquele disco Confusão Urbana, Suburbana e Rural." (Mané Silveira)

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Sumário

Texto .................................................................................. 05 Introdução ......................................................................... 07 A carreira profissional ..................................................... 10 Opção pelo instrumento saxofone ................................... 14 A experiência coletiva ......................................................

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Diferença cultural ............................................................. 20 A demanda do mercado ................................................... 24 As gerações de saxofonistas ............................................. 28 A linguagem ...................................................................... 37 Conclusão .......................................................................... 43 Bibliografia .......................................................................

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Texto

O jazz constituiu um fenômeno cultural expressivo na música ocidental, que se desenvolveu de uma forma extraordinariamente rápida em sintonia com a evolução e o progresso da sociedade americana. Apesar do seu desenvolvimento, que se caracterizou em diversos estilos e épocas, a linguagem jazzística sempre manteve as suas principais características como o ostinato rítmico conhecido como swing (resultante das pequenas defasagens na pulsação regular) e a improvisação. Durante o seu desenvolvimento, é marcante a presença de saxofonistas solistas, dentre os quais podemos citar Lester Young (anos 30), Charlie Parker (anos 40), Sonny Rollins (anos 50), Jonh Coltrane (anos 60), e os mais contemporâneos como Wayne Shorter, David Liebman, Michael Brecker, Joe Lovano, entre outros. O tipo de fraseado, articulação e inflexões usado pelos saxofonistas tornaram-se uma referência a todos os outros instrumentistas de jazz, e continua sendo até hoje a maior expressão da linguagem jazzística. Dessa forma, o jazz passou a ser a principal escola de saxofone do mundo no aspecto de concepção do instrumento, apoiada na escola francesa, que desenvolveu todo o aspecto técnico. Contudo, os saxofonistas brasileiros que atuam intensamente na música brasileira e tem o jazz calcado na sua formação, preservam um outro tipo de concepção. Esta concepção está associada às características básicas que fundamentam a música brasileira e a diferencia do jazz como a valorização da melodia em relação à harmonia, e a pulsação rítmica sincopada. Partindo dessa constatação, houve a preocupação de se trabalhar com a identificação de uma possível linguagem saxofonística brasileira. Constatou-se através das análises das entrevistas, feitas com saxofonistas que atuam intensamente na música brasileira, que ainda não se pode contar com uma linguagem saxofonística brasileira. Apesar dessa indefinição quanto a linguagem, há por parte dos entrevistados, principalmente os pertencentes à nova geração (anos 80 e 90), a preocupação em se trabalhar com os elementos regionais e folclóricos brasileiros como ritmo e melodia mas sem romper com a tradição do jazz, e através do estudo desses elementos, desenvolver um estilo próprio que os tornem peculiares. Essa busca estilística 5

está associada a uma nova demanda do mercado que, a partir do desenvolvimento da indústria cultural, passou a valorizar o instrumentista solista como músico individualizado, e a personalização de um estilo passou a ser a principal referência comercial para os músicos instrumentistas.

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Introdução

Apesar do jazz ter se tornado a maior escola de saxofone do mundo, e continua sendo a principal referência para o desenvolvimento do instrumento, observa-se na música brasileira uma nova tendência, uma nova abordagem estilística que está sendo desenvolvida pela recente geração de saxofonistas, que buscam aliar os conceitos do jazz à música brasileira. A valorização dos ritmos e melodias, originários da cultura musical brasileira, na busca de um fraseado próprio na improvisação, estão sendo objetos constantes de estudo dos instrumentistas brasileiros. Por não existir nenhuma definição pré-estabelecida sobre o assunto, os conceitos que foram analisados (desde os aspectos técnicos até os de natureza cultural), e que forneceram os subsídios necessários para a compreensão do fenômeno, foram identificados a partir da coleta de dados com os entrevistados, observando-se também o significado desses conceitos para os sujeitos da pesquisa. A metodologia usada para a coleta dos dados foi com enfoques subjetivistascompreensivistas1, um dos enfoques utilizados na pesquisa qualitativa voltada à ciência social, que se utiliza dos aspectos concienciais dos sujeitos, mas direcionada à pesquisa musical que compreende a área de interesse deste trabalho. A técnica para coleta de informações contou com a entrevista semi-estruturada, que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessem à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. Dessa maneira, o informante seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do assunto, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa. Os participantes da pesquisa foram saxofonistas que atuam de forma expressiva na música brasileira, cuja contribuição e a colaboração para a produção deste estudo foi fundamental e notável. A idéia inicial do projeto era entrevistar pelo menos 8 músicos instrumentistas, observando que esse número estava sujeito a alterações de acordo com a

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disponibilidade de tempo dos sujeitos da pesquisa. Dessa forma, foram entrevistados 7 músicos instrumentistas do eixo Rio-São Paulo, sendo um deles norte-americano que atua há seis anos no Brasil. A inclusão do saxofonista norte-americano tem como objetivo obter parâmetros de comparação com os músicos brasileiros. Os saxofonistas entrevistados foram: Teco Cardoso (SP), Mané Silveira (SP), Naylor Azevedo “Proveta” (SP), Roberto Sion (SP), Eduardo Pecci “Lambari” (SP), David Richards (USA/SP) e Raul Mascarenhas (RJ). Apesar dos entrevistados serem músicos de primeira linha que atuam de forma expressiva na música brasileira, eles não possuem uma vivência com todos os ritmos e estilos brasileiros tocados no saxofone. Essa vivência está relacionada à tradição musical da região de origem dos músicos, onde os ritmos, estilos e manifestações musicais locais estão presentes na formação do músico instrumentista, a exemplo das bandas de frevo e das bandas de carnaval de rua do nordeste. Haveria então a necessidade de serem feitas algumas abordagens sobre o músico instrumentista nordestino para a complementação deste trabalho, mas por não constar de nenhuma literatura que trata especificamente desse assunto, achamos por bem concentrar o trabalho no material coletado. Procurou-se elaborar um roteiro abrangente que suprisse ao máximo todas as questões básicas da pesquisa. Esse roteiro foi organizado em forma de questionário e dividido em três etapas: A 1a. etapa busca informações sobre a origem sócio-cultural dos entrevistados e têm a finalidade de identificar a formação musical dos sujeitos da pesquisa, buscando informações sobre as primeiras experiências musicais, as principais influências e a trajetória até tornarem-se profissionais. A 2a. etapa compreende os assuntos relacionados à aprendizagem do instrumento saxofone. O enfoque dado ao caráter técnico de aprendizagem é para identificar as formas mais comuns de como se aprende e como se estuda o saxofone no Brasil. A 3a. e última etapa trata do objetivo central do trabalho que é a identificação de uma possível linguagem saxofonística brasileira. Foram abordadas questões que 1

A idéia fundamental deste enfoque foi tomado do trabalho de: TRIVINÕS, Augusto Nibaldo Silva Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo: Editora Atlas, 1987 (A pesquisa qualitativa em educação), sendo essa metodologia a que mais se adequou à pesquisa realizada. 8

relacionavam jazz x música brasileira e as suas principais diferenças, os fatores culturais, o academicismo e a sistematização da música americana, metodologia e mercado. Apesar de ainda não podermos contar com uma linguagem saxofonística brasileira, constatamos que há uma preocupação por parte dos instrumentistas brasileiros em buscar um estilo que se adeqüe melhor às características da música brasileira, cumprindo dessa forma com uma nova exigência do mercado. Acreditamos ter cumprido com o objetivo deste trabalho de maneira clara e sucinta. A identificação de uma linguagem saxofonística brasileira ainda está por vir, mas virá através dos trabalhos produzidos pelos músicos instrumentistas que estão buscando essa prosódia, visando alcançar notoriedade já adquirida pela música brasileira. É para esse fim que acreditamos estar colaborando com este estudo.

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A carreira profissional

As informações relativas às condições sócio-culturais e econômicas dos sujeitos da pesquisa nos fornecem dados peculiares sobre a iniciação musical e a trajetória de cada um até tornarem-se profissionais. Apesar de alguns dos entrevistados não pertencerem a famílias de músicos, as reações com o evento musical ainda quando criança são semelhantes aos que nasceram em família de músicos. Em ambos os casos nota-se a forte presença da música no ambiente doméstico, e esse estímulo faz com que todos tenham uma iniciação musical ainda na infância. “(...) a minha mãe gostava de música de concerto e o meu pai gostava de jazz e de música popular, em casa era música o dia inteiro. (...) O meu pai me colocou para estudar já com 4 ou 5 anos de idade, eu já fazia notas coloridas com o professor e depois eu fui para o piano.” (Roberto Sion) “(...) O meu irmão tocou profissionalmente mas não seguiu carreira. (...) A minha mãe foi pianista vencedora de vários concursos na década de 50 mas deixou a carreira profissional depois que casou. (...) a minha casa sempre teve música, era freqüentada por pianistas e regentes, um ponto de encontro quando eu morei no Rio.(...) comigo a gestação foi o piano, a minha mãe passou 9 meses sentada ao piano tocando e eu já nasci com música passivamente. Estudei piano dos 5 ao 7 anos (...)” (Teco Cardoso) “Eu comecei aos 7 anos a estudar violino porque a minha avó foi violinista.” (Mané Silveira) “Eu ouvia o meu pai tocando ou estudando, o meu irmão também, já era um profissional, e eu sempre gostava, sempre me aproximava. (...) o meu

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pai começou a me passar as primeiras noções de solfejo por volta dos 8 anos de idade (...)” (Eduardo Pecci “Lambari”) “O meu avô tocava acordeon mas não queria que o meu pai aprendesse (...) Mas ainda assim ele aprendeu. Quando eu completei 7 anos de idade, eu entrei na banda de música (...) Eu acho que o meu pai me influenciou pelo resto da vida.” (Naylor Azevedo “Proveta”) “Eu ia todo sábado e domingo para a rádio nacional com a minha mãe participar da orquestra, e lá estavam o Radamés Gnatalli, Leonardo Bruno, Lírio Panicalli, maestro Chiquinho, maestro Carioca. Com o meu pai a coisa foi mais para o lado do jazz, foi ele quem me ensinou os primeiros temas.” (Raul Mascarenhas) Podemos observar que a iniciação musical para aqueles que vieram de famílias de músicos (Eduardo Pecci “Lambari”, Naylor Azevedo “Proveta” e Raul Mascarenhas) ocorre de maneira mais natural, pois a música no ambiente doméstico não serve apenas como um entretenimento mas é também como forma de ganhar a vida. Assim, as primeiras noções de música foram dadas ainda dentro de casa pelos próprios pais músicos ao contrário dos outros que tiveram professores particulares durante a iniciação. Essa diferença torna-se crucial na determinação da carreira profissional em música, como veremos a seguir. A carreira musical torna-se mais evidente aos filhos de músicos, em nenhum momento parece haver alguma dúvida quanto a isso2, como relata Eduardo Pecci: “Eu me apaixonei por isso e estudava o tempo todo para que numa hora eu pudesse ter um lugar como um profissional. Automaticamente isso foi acontecendo como um percurso, mesmo porque eu fui muito estimulado em casa (...)

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Lembramos que essa colocação é resultado das entrevistas feitas para esse trabalho, não serve como regra geral. 11

Essa determinação quanto à carreira é identificada pelo músico como uma predestinação, uma tomada de consciência do caminho natural que deve ser seguido, sem que haja impecílio. Naylor “Proveta”: “Eu estava muito decidido porque para mim sempre foi uma coisa natural. Música para mim nunca foi um desafio, eu nunca coloquei a música como se fosse uma coisa para ser superada, eu sempre procurei andar ao lado dela”. O mesmo não ocorre para os filhos de pais não músicos, a decisão em ser músico profissional é demorada e insegura. A trajetória musical torna-se então paralela à outras perspectivas profissionais. “Eu tenho graduação em psicologia onde eu fiz o bacharel e mais os dois anos de profissional. Essa opção é porque não havia na época faculdade de música. Morava em Santos onde não havia chances profissionais muito atraentes para ser músico, a não ser tocar na noite (...)” (Roberto Sion) “Estudei até o 3o. ano da Faculdade de Direito da São Francisco mas não terminei, tranquei a matrícula e não voltei mais.” (Mané Silveira) “Eu fui até o final, me formei em medicina em 1974.” (Teco Cardoso) O fato de optarem pela carreira profissional em música, mesmo depois de iniciada uma outra carreira profissional, deve-se às condições sócio-cultural e econômica da família. O apoio dado por parte da família nessa decisão está relacionado ao fator cultural, proveniente talvez da constante presença da música no ambiente doméstico e a importância que ela exercia para a família. A sustentação do músico até a ascensão da carreira está relacionado com a condição sócio-econômico da família. Trata-se de recursos financeiros que a

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família dispõe e que devem ser suficientes para a manutenção dos custos relativos à nova profissão até a consolidação da carreira. Com exceção dos músicos que vieram de família de músicos, todos os outros entrevistados pertenceram à famílias que dispunham de recursos financeiros necessários para a sustentação do músico. “Meu pai era comerciante de café” (Roberto Sion) “Meu pai fez carreira jurídica, foi promotor público, depois procurador da justiça além de ter sido professor de direito” (Mané Silveira) “Meu pai era engenheiro e administrador de empresas.” (Teco Cardoso) O acesso à aprendizagem e às informações musicais (aulas particulares, métodos, discos, intercâmbio, etc.) são sinônimos de dinheiro. Tais informações são responsáveis pelo aperfeiçoamento e condicionamento do músico para o mercado de trabalho. Quando o saxofonista Eduardo Pecci disse que “estudava o tempo todo para que numa hora pudesse ter um lugar como profissional”, ele relativiza o acesso ao mercado de trabalho ao condicionamento do músico: quanto melhor o seu condicionamento, maior o seu reconhecimento e acesso ao meio. Esse reconhecimento sinaliza uma perspectiva profissional bem mais satisfatória ao músico e esse sente-se mais apto e mais seguro quanto a profissão. Em compensação, o acesso insuficiente às informações musicais necessárias para o condicionamento do músico ao mercado de trabalho, faz inibir quaisquer perspectivas profissionais. Apesar de não terem sido feitas entrevistas com músicos que não seguiram a carreira profissional, é de supor a partir da análise feita do relato do saxofonista Eduardo Pecci que, o músico que não está apto ao mercado e não é reconhecido pelo meio dificilmente terá chances de participar e usufruir dos bons trabalhos. Dessa forma, o mercado fica restrito para aqueles profissionais que tiveram acesso às informações e tiveram na família o apoio necessário para a consolidação da profissão.

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Constatamos assim que a origem sócio-cultural dos saxofonistas entrevistados se enquadra em duas vertentes: se tornaram profissionais por pertencerem à família de músicos ou tiveram na família o apoio e a sustentação necessária até obterem o reconhecimento profissional. Tudo indica que as condições para que um estudante de saxofone no Brasil se torne um profissional reconhecido estão atreladas a essas origens, responsáveis também por definir o perfil do saxofonista brasileiro.

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Opção pelo instrumento saxofone

A vontade de estudar música no Brasil já é restringida a partir da escolha do instrumento musical. A falta de informações sobre os instrumentos, os custos relativos a compra e o difícil acesso à aprendizagem são responsáveis pela maior difusão e opção pelos instrumentos mais populares, que são também os mais baratos e a aprendizagem é mais acessível. Eduardo Pecci: “(...) são raros os pontos onde um brasileiro que quer estudar música seriamente encontra um apoio, e quando se trata de um instrumento então, a dificuldade é ainda maior.” Assim, a escolha de um instrumento musical torna-se também um importante definidor do perfil sócio-cultural e econômico do músico no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos como relata Eduardo Pecci: “Hoje um garoto americano vai para o curso de primeiro grau deles com um instrumento na mão, já tendo uma orientação musical. É obrigatório essa orientação musical. Aqui a pessoa vai se interessar por si própria, ou por influência da família, ou porque alguém falou e daí vai procurar.” O saxofone, apesar de ser muito difundido na música popular, não deve ser considerado como um instrumento de fácil acesso. Além de ser um instrumento caro e que exige manutenção constante, o seu aprendizado é demorado e relativamente caro (aulas particulares, métodos, etc.). A maneira mais barata de se estudar saxofone no Brasil é se incorporando nas formações de bandas, militares, sinfônicas ou de fanfarra onde os estudantes além de terem acesso a um instrumento, terão uma formação musical coletiva. Essa iniciação musical coletiva será comentada num outro tópico.

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São diversas as situações que relatam a forma de como os entrevistados tiveram o primeiro contato com o instrumento. As únicas semelhanças ocorrem com os músicos que vieram de família de músicos, em que as primeiras noções foram dadas dentro de casa e a proximidade com o instrumento foi algo natural, como é o caso do Eduardo Pecci “Lambari” e do Naylor “Proveta”: “(...) o meu pai começou a me passar as primeiras noções de solfejo por volta dos 8 anos de idade, já me colocando o saxofone na mão para que eu fizesse algumas notas, assim como o clarinete que também veio paralelo” (Eduardo Pecci “Lambari”) (...) o meu pai tocava acordeon e clarineta na banda e tinha um sax tenor em casa, então ele decidiu que eu iria tocar sax alto por causa do meu tamanho.” (Naylor “Proveta”) Apesar de serem de gerações diferentes, sendo o “Lambari” duas gerações anteriores3, ambos tiveram praticamente a mesma iniciação musical em que o saxofone sempre esteve presente. O contato que o “Lambari” teve com o saxofone ocorreu de modo quase inevitável pois o seu pai foi um saxofonista profissional. O mesmo ocorreu com o “Proveta” em que a única diferença está no fato do seu pai ter exercido uma outra profissão além de músico. Quanto aos outros profissionais, a situação varia de acordo com a trajetória de cada um. A semelhança está no fato de que todos tiveram uma iniciação musical na infância e passaram por outros instrumentos até optarem pelo saxofone. Essa opção, independente da situação, ocorreu por volta dos 18 aos 20 anos de idade. A escolha do saxofone como primeiro instrumento deve-se provavelmente a uma identificação pessoal. Apesar da suposição de que cada pessoa tem um instrumento que

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O sentido da palavra geração nesse caso, não está necessariamente ligada a idade dos sujeitos mas sim, serve para situar o momento de ascensão e consolidação da carreira do músico. Essa questão será discutida num próximo tópico. 16

se adeqüa melhor à sua personalidade4, algum dos entrevistados nos revelam uma identificação muitas vezes de caráter sensitivo, tátil, como é o caso do Roberto Sion e do Léo Gandelman5, respectivamente: “(...) eu gostei do cheiro da madeira do clarinete, do gosto da palheta e do som, daí eu troquei o trumpete pelo clarinete (...) o meu pai se entusiasmou e acabou comprando para mim um saxofone.” (Roberto Sion) “(...) eu estudei piano e flauta até os 15 anos, depois parei e fui fazer outras coisas, acabei me tornando fotógrafo profissional. Um dia um amigo apareceu com um saxofone em casa e nesse dia a minha vida mudou, vendi tudo e fui para os EUA estudar. (...) quando eu experimentei o saxofone senti uma afinidade muito grande, talvez pela semelhança que há com a flauta (...)” (Léo Gandelman) A atração exercida pelo instrumento no momento em que tiveram o primeiro contato é bem explícita no relato do Raul Mascarenhas: “(...) eu percebi que todo saxofonista tocava flauta e eu só tocava flauta (...) consegui um saxofone emprestado de um amigo, levei para casa e fiquei maluco, descobri que aquele é que era o lance e naquele momento em diante mudou tudo, eu comecei a pensar como faria para comprar um saxofone e me encaminhar.” Para o Teco Cardoso, a opção pelo saxofone deve-se também à influência jazzística existente no ambiente doméstico:

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Suposição defendia pelo músico e psicólogo Maurício Farias, professor do departamento de música do Instituto de Artes da UNICAMP. 5 Apesar do instrumentista não ter sido entrevistado formalmente para esse trabalho, o relato foi feito num encontro informal com o autor desse trabalho em Julho de 1996 no Blue Note Bar - NYC. 17

“Eu comecei na flauta e daí passei para o sax naturalmente. Já tinha contato com isso por causa do universo jazzístico do meu irmão, e já tocava flauta imaginando e curtindo o Phil Woods, Paul Desmond, Modern Jazz Quartet (...)” O que se observa nas entrevistas é que há uma identificação pessoal quanto à escolha do instrumento. Essa identificação, seja ela de caráter sensitivo, tátil ou relativo aos elementos psicológicos, é assumida pelos entrevistados. É interessante notar que, independente da situação, todos os saxofonistas entrevistados tiveram contato com outros instrumentos e a opção pelo saxofone para aqueles que não nasceram em famílias de músicos e não tiveram a influência familiar, ocorreu com a mesma faixa etária. Para a obtenção de resultados mais conclusivos sobre o caráter dessa identificação haveria a necessidade de se fazer um outro tipo de trabalho de pesquisa, o que não cabe para o momento.

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A experiência coletiva

Os instrumentistas originários das bandas militares, bandas sinfônicas e bandas de fanfarra, tem uma concepção musical diferente da concepção dos instrumentistas que começaram a tocar sem a experiência coletiva. O aprendizado coletivo nas formações de bandas proporcionam alguma sistematização no estudo da teoria musical elementar como leitura e solfejo. Os estudantes trabalham os métodos tradicionais de leitura e solfejo com o professor, muitas vezes o próprio maestro da banda. O estudo do instrumento é totalmente voltado para a prática de banda e não há a pretensão de formar instrumentistas profissionais, o estudante é preparado para tocar o repertório básico e ser incorporado rapidamente no grupo, como relata Naylor “Proveta” na sua entrevista: “Quando eu completei 7 anos de idade eu entrei na banda de música ‘Corporação Musical Maestro Ângelo Constantino’, em Leme. Estudei durante um ano e com 8 anos eu entrei na banda.” O mesmo ocorreu com Raul Mascarenhas: “(...) eu fui interno em um colégio em Poços de Caldas, MG, e lá eu comecei a estudar piano que era facultativo, tocava percussão na banda marcial da escola, depois passei para o pícollo de madeira, corneta e no finalzinho trumpete. Foi nessa época que eu comecei a ler música.” A experiência coletiva existente nessas formações desenvolve no músico a necessidade da prática de conjunto e não apenas a prática individual. Essa prática de conjunto trabalha desde cedo a relação pessoal do músico com os outros colegas, evitando comportamentos como timidez e isolamento característicos nos instrumentistas que não vivenciaram essa prática.

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“Eu sinto que a minha vida social começou mesmo a partir dos 20 anos quando eu comecei a estudar música, a entrar em contato com as pessoas, tocar num grupinho pois até então eu era muito fechado” (Mané Silveira). “O meu perfil é muito parecido com o do Mané, sempre fui muito introvertido, muito fechado, muito de brincar sozinho, poucos amigos, observador, a audição sempre muito ligada, ouvindo, prestando atenção mas quieto. A música sempre teve um efeito compensatório, sinto que ela compensa uma certa dificuldade de me expressar.” (Teco Cardoso). O músico que teve essa experiência na sua formação possui uma peculiaridade: o espírito de coletividade.

Essa característica resulta numa maior facilidade de se

trabalhar em conjunto, além de contar com a familiaridade que possui com os outros instrumentos. “(...) o músico que vem de formação de banda do interior, que passou pela escola que eu passei, (...) tem uma outra postura, uma outra forma de fazer música, muito mais rica. Você pensa de uma forma coletiva e não individual e eu sempre busquei estar sempre com muita gente. (...) a minha maior paixão é estar com os meus amigos tocando, sempre gostei de três saxofones, três trumpetes, gosto de escrever, gosto de armar e a gente se dá bem.6” (Naylor “Proveta”). Essa forma de pensar e de se trabalhar com a música retrata a concepção musical daqueles que tiveram a formação num ambiente coletivo, principalmente nas formações de banda. Tal concepção musical difere da concepção do músico que teve a sua iniciação com professores particulares, em que o aprendizado solitário e a forte presença do professor cria no estudante uma outra perspectiva, muito mais direcionado para o instrumentista solista. No entanto, existem alguns profissionais que se preocupam 6

Naylor “Proveta” é saxofonista e clarinetista, arranjador, compositor e líder da Banda Mantiqueira. 20

em trabalhar com os seus alunos essa experiência coletiva, como é o caso do Roberto Sion: “Eu ensaio com eles (alunos) para que eles não fiquem tocando sozinhos e assim acharem que já estão bons.” Mesmo com todas as deficiências e dificuldades existentes, a importância dessas instituições para a formação de músicos no Brasil é incontestável. São dessas formações que saem o maior número de instrumentistas de sopro do país, além de suprir, dentro das devidas proporções, a falta de uma disciplina voltada para o aprendizado de música nas escolas do país.

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Diferença cultural A música popular emergiu como uma das manifestações mais importantes no processo de consolidação da cultura nos países americanos, principalmente no Brasil, Cuba e nos Estados Unidos. A contribuição do negro africano para a consolidação da cultura nesses países é incontestável e mantém-se presente até hoje, sendo que cada país consolidou uma cultura própria, diferentes entre si. A música faz parte desse processo e também apresenta as suas diferenças. As diferenças existentes entre o músico americano em relação ao músico brasileiro devem-se muito aos fatores culturais e sociais de ambos os países. A forma de pensar e de agir do músico americano é resultado da sociedade em que vive, como analisa o saxofonista Naylor “Proveta”: “(...) o americano é formado pelo dinamarquês protestante, ou seja, os caras são ‘Vikings’, por isso eles tem outros valores, outra moeda, outra cabeça.” O saxofonista Roberto Sion esclarece um pouco mais essa posição: “São fatores culturais, protestantes, aquela coisa de você ter que melhorar de vida , procurar ser mais rico, tem que ser o melhor, enquanto que a cultura católica é um pouco mais reacionária nesse sentido, as pessoas são meio abandonadas para no outro mundo ter a salvação (...).” A idéia de que “tem que ser o melhor”, como relata Roberto Sion na sua entrevista é ratificada e exemplificada nas entrevistas dos saxofonistas Teco Cardoso e David Richards:

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“(...) é uma efervescência e uma competitividade muito grande. O sujeito pergunta: “-Quantas horas você estudou hoje?” “-Quatro horas!” “Então eu preciso ir para casa porque eu só estudei três horas.” (...) então você sai na rua e se assusta.” (Teco Cardoso) “(...) é uma coisa de competição, de concorrência pois lá você ouve muitos tocando bem e para você conseguir sobreviver com isso, você tem que acordar cedo e estudar muito. Talvez tenha sido isso que fez o jazz evoluir.” (David Richards) Numa outra passagem, os saxofonistas Roberto Sion e Naylor “Proveta” definem um pouco mais sobre a necessidade de competição do músico americano e o compara com o brasileiro: “(...) o que leva o músico americano ficar estudando é um inconformismo, uma inquietação nesse sentido, e com isso ele acaba criando um subproduto bom porque ele vai descobrindo outros recursos, novas técnicas e tudo mais. (...) é isso que o músico brasileiro ainda não aprendeu, ele é um pouco acomodado.” (Roberto Sion) “Aqui é muito mais pacato porque isso é coisa de colono, é coisa de esperar a paternidade. O brasileiro está acostumado com alguém chegando e pedindo para fazer alguma coisa. É só ler o livro Raízes do Brasil do Sérgio Buarque de Holanda que você vai entender.” (Naylor “Proveta”) Os músicos entrevistados entendem que as diferenças culturais de ambas as sociedades são responsáveis pela caracterização do perfil dos músicos norte-americanos e brasileiros. A constatação de que o músico norte-americano se caracteriza por ser mais organizado, disciplinado e competitivo em relação ao músico brasileiro, não deve ser

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resumida às origens protestantes e católicas de cada sociedade7. Trata-se do desnível de desenvolvimento econômico entre as duas sociedades e ao tamanho e à complexidade dos mercados e das indústrias culturais de cada uma. Quanto maior o desenvolvimento da indústria da cultural, maior a competitividade e daí a necessidade da especialização, da formação profissional, e consequentemente da organização e disciplina do músico. A argumentação sobre católico e protestante usada pelos entrevistados foi uma maneira, através do próprio senso comum, de se identificar a diferença de postura do músico a medida que ele se insere em mercados distintos. O mercado e a indústria cultural brasileira ainda não possui a estrutura e o desenvolvimento do mercado americano, e isso permite ao músico brasileiro uma postura mais relaxada, sem a rigidez disciplinar do americano. Lembramos que não se trata de um julgamento de valor, mas a constatação da diferença entre os Estados Unidos e Brasil. Outro fator que contribui na diferença entre o músico brasileiro e o músico americano é a organização e a funcionabilidade de ambas as sociedades. A caracterização no perfil do músico brasileiro é resultado do excesso de burocracia existente no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos onde a funcionabilidade da sociedade está explícita na postura disciplinar do músico americano. Teco Cardoso: “Lá a vida é desburocratizada, mais prática, você marca, você chega na hora, você pode contar com as coisas, você acha horário para estudar (...) É um país que tem muito mais lógica e menos burocracia. É absolutamente funcional, você resolve os seus problemas com facilidade e a disciplina é mais fácil de ser programada.” A pouca funcionabilidade da sociedade brasileira dificulta a organização e manutenção de uma disciplina musical, como explica o saxofonista Raul Mascarenhas:

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Trata-se de uma tese do sociólogo alemão Max Weber do começo do século, muito bem fundamentada, que tenta explicar a origem do capitalismo a partir do dogma puritano da salvação. Esse tema sobre o católico e o protestante foi muito explorado pela imprensa e acabou sendo vulgarizada até torna-se senso comum. 24

“Eles são assim por causa do horário, lá não tem fila, você pode programar as coisas enquanto que aqui nada é feito no horário, gravação nunca começa no horário então você já vai atrasado, paga conta atrasado ou seja, a tua vida é assim e o Brasil é assim. Desde pequeno você vai convivendo com isso e acaba se acostumando e isso é um fator cultural, ainda mais no Rio de Janeiro que tem praia e coisa e tal.” O saxofonista David Richards também exemplifica essa situação: “(...) tem muitas coisas aqui que são diferentes como cartórios, DETRAN, coisas que só servem para frustar a vida das pessoas e de repente ninguém mais tem paciência para tirar solos.” A diferença no desenvolvimento da indústria cultural, que se estende também ao âmbito social, é responsável pela formação de culturas distintas, que se caracteriza no modo de agir e de pensar dos músicos de ambos os países. Não está em questão qual é a postura mais correta, o que se observa é que a música produzida no Brasil possui as suas características por ter no músico brasileiro as suas peculiaridades decorrentes da sociedade onde vive, da mesma forma que o músico americano.

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A demanda do mercado Os saxofonistas brasileiros, apesar da influência jazzística, não possuem a disciplina dos americanos em relação ao estudo do instrumento. Além das diferenças culturais e sociais comentadas anteriormente, há também no Brasil a falta de escolas e profissionais que sistematizem, de certa forma, o ensino de música popular no país. A formação do músico norte-americano é acadêmica e escolarizada, enquanto que a do músico brasileiro é mais intuitiva e autodidata. Eduardo Pecci: “Então onde se tem uma escola forte? São raras, são raros os pontos onde um brasileiro que quer estudar música seriamente encontra um apoio, e quando se trata de um instrumento então, a dificuldade é ainda maior. Talvez hoje até tenha um ou outro elemento se propondo a orientar aqueles que querem tocar bem.” Os espaços dedicados ao jazz nos Estados Unidos começaram a ficar restritos com o desenvolvimento da indústria cultural. Eram nesses espaços que os músicos realmente aprendiam e se desenvolviam musicalmente8. Com o fechamento desses espaços, os músicos partiram em busca de novas frentes de trabalho e é a partir dessa busca que a música popular americana passa a ser ensinada nas escolas. Roberto Sion: “O jazz (...) só foi parar nas escolas por motivos econômicos, por não ter mais bares suficientes para tocar, e eram nos bares onde realmente aprendia-se jazz.” A grande difusão de escolas voltadas para o ensino de música popular nos anos 40 nos Estados Unidos, é uma evidência da necessidade imposta pela indústria que passou a exigir profissionais qualificados e disciplinados para atuarem no mercado. Isso 8

O bebop, nos anos 40, é o melhor exemplo de um estilo do jazz que se desenvolveu a partir de experimentos práticos dos músicos, que se encontravam para tocar sem que houvesse compromisso. Isso só foi possível graças à existência do Minton’s Club/NYC, considerado como o berço do bebop. 26

justificou a implantação de escolas de música popular em nível superior nos Estados Unidos. O mesmo está acontecendo no Brasil mas com as devidas proporções. Com o desenvolvimento econômico do país e a modernização da sociedade, os espaços considerados importantes para o desenvolvimento dos músicos instrumentistas começaram a ser invadidos pela indústria cultural do entretenimento que nem sempre, ou quase nunca, contribuiu de maneira satisfatória para o desenvolvimento musical ou artístico. Roberto Sion: “Hoje não há mais espaços com facilidade, há muita gente em cima dos repórteres, a mídia está um pouco distorcida, a nova geração dos jornais está chegando sem informação nenhuma, com a cabeça feita pela própria mídia e os verdadeiros artistas passam por situações muito injustas. Não digo que não tenha que ter espaço para os trabalhos mais comerciais mas teria que ser distribuído democraticamente para todos os outros, tem um monte de gente que ainda está vivo e ninguém se lembra mais.” A falta de uma sistematização no ensino da música brasileira deve-se provavelmente à influência que a música americana exerceu nos músicos brasileiros durante muito tempo, e isso tem dificultado a implantação de cursos voltados à música popular em escolas e universidades do país. Mas já se observa nessa nova geração de músicos (anos 80 e 90) a preocupação em se trabalhar com a música brasileira de uma forma mais organizada. Nelson Ayres: “Hoje, ouvir a (banda) Mantiqueira é como ouvir o som com que eu sonhava vinte anos atrás. Choro e gafieira de novo milênio. Os arranjos e a interpretação usam todas as técnicas da história das big bands, mas tem os pés firmemente fincados nos coretos do interior onde muitos dos músicos tocaram em público pela primeira vez. E cada solista abandona o caminho fácil de ser apenas mais um imitador dos grandes jazzístas

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para procurar sua própria verdade. (...) Na década de 70 eu também dirigi uma big band que tinha basicamente a mesma proposta: um som puramente instrumental, com muito espaço para a criatividade de cada músico (...) Foi uma experiência maravilhosa e inesquecível, mas me deixou uma frustração que confesso agora pela primeira vez: sempre tive o sonho de criar um som de big band genuinamente brasileiro, uma espécie de Severino Araújo contemporâneo, mas na época a atração exercida pelas big bands de jazz era demasiadamente forte, impossível de sobrepujar.9” Ainda há carências no ensino da música brasileira, mas em compensação os trabalhos produzidos pelos músicos dessa nova geração estão superando o padrão de qualidade imposto pelo mercado, a exemplo da Banda Mantiqueira. Com o desenvolvimento tecnológico, o mercado passou a exigir das produções musicais um padrão de qualidade mínimo para que pudessem ser comercializadas, e essa exigência promoveu uma sistematização na linha de produção dos trabalhos artísticos. Aliado a essa qualidade de produção, há também uma outra exigência do mercado que está beneficiando a música brasileira: trata-se do conteúdo dos trabalhos produzidos. O mercado tem exigido produções cada vez mais autênticas e ao mesmo tempo originais para quem consome, e esse tem sido o grande filão para os músicos brasileiros. Foi a partir dessa demanda que o mercado brasileiro passou a se modernizar, havendo uma maior valorização do profissional especializado na área de produção, e a necessidade de trabalhar cada vez mais com a música brasileira como uma nova perspectiva de mercado. Teco Cardoso: “A grande descoberta de mercado para mim foi quando eu fui para Europa, tinha 22 anos, (...) nessa viagem eu descobri o Brasil, foi aí que eu tive um ‘insite’. Eu na época estava estudando Phil Woods, tirando solos, tinha umas coisas que eu gostava que tinha a ver e tal. Durante o 9

Citação do texto de contracapa do disco Aldeia, da Banda Mantiqueira, escrito pelo pianista e arranjador Nelson Ayres. A Banda Mantiqueira é liderada pelo saxofonista e arranjador Naylor “Proveta”, entrevistado nesse projeto. 28

concerto dava para aplicar essas coisas, que era a hora em que eu achava que estava me mostrando mais bacana, e tinha outras coisas que nós fazíamos também. De repente, no meio desse concerto eu percebi que aqueles números mais jazzísticos do Phil Woods, que eu tinha na manga, não aconteciam nada mas em compensação, um outro número em que eu fazia com o (sax) soprano e berimbau com o Zé Eduardo (José Eduardo Nazário), que era uma coisa da qual eu fazia naturalmente e que não dava tanta importância, era o grande sucesso do concerto. Era ali a hora em que o francês se sentia satisfeito e compensado pelo investimento. No meio da turnê nós iríamos dividir o show com o próprio Phil Woods e daí eu pensei: ‘Pra que que eu vou tocar igual ao Phil Woods se eles tem o próprio Phil Woods tocando aqui a vinte anos’. (...) Então eu voltei muito decidido em desenvolver uma linguagem própria, que preenchesse essa lacuna, que é o que as pessoas querem lá.” A busca por uma identidade e autenticidade nas produções artísticas para a demanda do mercado foi catalisada também pelo processo de globalização. Com a definição dessa nova ordem, estabeleceu-se no mercado a necessidade de um mapeamento cultural de várias regiões e países como parâmetro de diferenciação. Daí a formação das chamadas “aldeias culturais” ao redor do mundo. No Brasil, essa transformação manifestou-se através da busca de elementos históricos e folclóricos como objeto de estudo e desenvolvimento artístico, cumprindo uma exigência do mercado. Teco Cardoso: “Se você chegar na Europa tocando samba-funk, eles vão achar isso horroroso, eles querem que um africano vá lá e toque música africana, se for brasileiro, tem que tocar música brasileira pura.” É nesse panorama que se inserem os saxofonistas brasileiros que estão buscando uma autenticidade e um estilo brasileiro para o saxofone. A redescoberta da música brasileira como objeto estudo e desenvolvimento musical e artístico, tem contribuído para

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a caracterização de um estilo saxofonístico brasileiro. Apesar de ainda não existir uma sistematização no ensino da música brasileira, o que facilitaria a consolidação dessa nova linguagem, observa-se a preocupação por parte dos músicos em se trabalhar de uma forma cada vez mais organizada e sistematizada, adequando-se às exigências do mercado. Teco Cardoso: “Trabalhar com esses elementos é fundamental pois pode te colocar de uma forma muito mais destacada no cenário mundial, e você vai ter uma função brasileira importante, uma função de manutenção de cultura num momento propício.”

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As gerações de saxofonistas Nos Estados Unidos, o saxofone obteve o seu reconhecimento através da música negra, o jazz e o blues, e tornou-se símbolo da música popular americana. No Brasil, além da flauta ter sido mais presente no choro do que o saxofone, sendo esse estilo considerado como o mais representativo para o saxofone na música instrumental brasileira, os primeiros saxofonistas que atuaram na música popular eram em sua maioria clarinetistas que vinham de formação erudita. Roberto Sion: “O meu primeiro professor de sopro foi (...) um clarinetista e fagotista da Sinfônica Municipal (...) O sax eu sempre estudei sozinho pois praticamente não existia professor de saxofone naquela época, principalmente em Santos, e mesmo aqui em São Paulo.” O saxofonista Domingos Pecci, pai e professor do saxofonista entrevistado Eduardo Pecci, apesar de ter composto10 e gravado vários choros, veio de uma escola erudita de saxofone em que os métodos eram, de certa forma, adaptações dos métodos eruditos de clarineta e de oboé, como relata Eduardo Pecci: “Saxofone eu estudei com o meu pai. Eu tive outros professores mas foi de clarinete por causa da influência da música erudita.(...) Na época você encontrava métodos europeus, não outros, no máximo métodos do Jimmie Dorsey, mas que acabava não te levando muito longe.” A audição também era voltada à música de concerto. Eduardo Pecci: “(...) quando o meu irmão ou o meu pai colocavam alguma coisa para se ouvir, ouviam peças de concerto, ou um solista, ou ouviam alguma

10

Domingos Pecci é autor de inúmeros choros mas os dois que mais se destacaram foram o “Choro de Cachimbo” e o “Choro Nené.” 31

orquestração, algumas dirigidas à música popular e assim eu ouvia também.” Apesar do Pixinguinha ter aderido ao saxofone difundindo-o de uma forma relevante na música brasileira, ele ainda continuou sendo um instrumento secundário para a maioria dos músicos11. Na década de 40 surgem as primeiras lojas de discos importados no Brasil. É a partir dessa época que os saxofonistas brasileiros começam a buscar nos discos de jazz as primeiras informações quanto à maneira de se tocar saxofone na música popular, o que viria a ser também as primeiras influências. Eduardo Pecci: “Nós tivemos naquela época na década de 50, quando eu estava chegando, esses métodos e a participação, ou seja, tocar na sinfônica mas participar também de algum trabalho tocando saxofone, mesmo que amadoristicamente (...) Então essa era a outra escola, de você tocar ali um fox, uma rumba, um bolero, tocar o nosso samba e assim por diante. O que nós fazíamos para se aprimorar era ir para casa e ficar ouvindo os discos.” A audição dos discos de jazz passou a ser a principal referência para os músicos brasileiros pois era a única fonte de informação da forma de como se tocar saxofone na música popular, além de trazer muitas outras informações musicais. Roberto Sion: O jazz passou a ser um dos veículos para eu aprender(...).” A sedução pelo jazz foi algo inevitável aos músicos brasileiros e muitos começam a assumir o saxofone como o instrumento principal por causa da influência jazzística. A partir dessa época, os estudos dos métodos eruditos de saxofone tornam-se paralelos a um outro tipo de estudo: a imitação dos discos. Roberto Sion: 11

Ainda não havia nessa época uma especialização dos músicos, grande parte deles eram polivalentes, músicos que tocavam vários instrumentos. A especialização é um dado de hoje, reflexo do grande desenvolvimento do mercado. 32

“Ouvir os discos também fazia parte da metodologia e sempre antes dos concertos eu ficava ouvindo os discos para me inspirar e tal, mas eu observei que aquilo não dava muito certo e não sabia porque. Mais tarde, conversando com o Vítor Assis Brasil, eu entendi que o melhor caminho era a transcrição de solos12, a imitação no fundo é melhor que qualquer professor.” Para os americanos, a imitação sempre foi a metodologia principal no aprendizado da linguagem jazzística. David Richards: “Todos os grandes jazzistas do mundo tiraram solos e fazem isso até hoje, o Branford Marsalis, o Chick Corea, o Michael Brecker, todos.” Surge também na década de 40 nos Estados Unidos as primeiras escolas de jazz, e a Berklee College of Music, em Boston, consolida-se como a mais importante delas. Começa então a sistematização do ensino de jazz nos Estados Unidos em que o swing jazzístico, a improvisação, os clichês harmônicos, a forma composicional e todas as outras características do jazz são apostiladas. Assim, essa música passa a ser difundida e vendida no mundo inteiro. Naylor Proveta: “Os americanos por serem bons vendedores por natureza e não estarem na condição de colônia, prevaleceram e venderam muito bem o jazz para o mundo inteiro.” A sistematização do jazz ocorreu num momento de ascensão econômica dos Estados Unidos onde toda a produção americana passou a ser vendida para o mundo, inclusive a produção da indústria do entretenimento, em que a música sempre esteve muito presente. Roberto Sion:

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Quando falamos em “solos”, estamos nos referindo à improvisação feita sobre um tema ou sobre a harmonia desse tema. A improvisação é a principal característica da música popular americana. 33

“Eu acho que é uma opulência que eles sempre tiveram e que chegou à música por ser um mercado interessante.” A teorização13 da música popular nos Estados Unidos fez com que vários músicos brasileiros se dedicassem quase que integralmente ao jazz. Os primeiros a entrar em contato com essa teorização foram o saxofonista carioca Meireles e o pianista paulista Wilson Cúria, através de um curso por correspondência da Berklee College of Music. A partir dessa época, década de 70, toda uma nova geração de músicos brasileiros vão aos Estados Unidos estudar com os americanos, a maioria deles em escolas como é o caso do pianista e arranjador Nelson Ayres, dos trumpetistas Cláudio Roditti e Márcio Montarroyos, dos saxofonistas Roberto Sion e Vítor Assis Brasil, do baixista Zeca Assumpção, que foram buscar informações também na Berklee. Outros foram para os Estados Unidos estudar com os próprios jazzistas como é o caso dos saxofonistas Mauro Senise e Raul Mascarenhas que estudaram com o saxofonista americano Bobby Moover, em NYC. Os saxofonistas brasileiros que tiveram contato com os americanos nessa época, assimilaram vários procedimentos quanto a metodologia de estudo tanto no saxofone como no jazz, como explicam o Raul Mascarenhas e o Roberto Sion nas suas entrevistas, respectivamente: “(...) o Bobby Moover era um saxofonista alto excelente, era um pouco mais velho que a gente e tinha conhecimento de coisas que eu nem imaginava,

substituições

(harmônicas),

notas

longas,

vibratos,

linguagem do bebop ou seja, aquelas coisas que nós nunca imaginávamos. (...) nós (Raul e Mauro Senise) estudamos com ele e tivemos uma evolução muito grande, harmonicamente, na maneira de tocar, tudo.” (Raul Mascarenhas)

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O conceito de teorização refere-se a sistematização do conhecimento acumulado intuitivamente pelos músicos populares americanos. 34

“O meu primeiro professor de saxofone foi quando eu já tinha 25 anos14 (...) Ele foi o primeiro professor a me falar como se deveria tocar saxofone, as diferenças com o clarinete, o que estudar ou seja, me deu aula mesmo de saxofone.(...) Depois dos Estados Unidos é que eu levei a sério essa coisa de transcrever os solos e descobri o caminho. Foi assim que eu me desenvolvi.” (Roberto Sion) Essa geração de músicos trouxe ao Brasil muitas informações sobre o jazz, esclarecimentos sobre como estudar, a teorização da improvisação e uma metodologia nova de ensino. Foi um período de muita efervescência musical, de muita informação e desenvolvimento do jazz no Brasil. Para os saxofonistas, é o momento de projeção enquanto músicos individualizados, enquanto solistas15. A geração posterior teve acesso a essa nova metodologia de ensino e à teorização jazzística sem precisar ter saído do Brasil, os profissionais que estudaram nos Estados Unidos exerceram também a função de educadores e formaram praticamente toda uma nova geração, entre eles os saxofonistas entrevistados Mané Silveira, Naylor “Proveta” e Teco Cardoso. Em São Paulo, os saxofonistas Roberto Sion e Hector Costita foram os principais influenciadores e educadores dessa nova geração. Teco Cardoso: “(...) tiveram dois ícones aqui que foram o Hector Costita e o Roberto Sion. Os dois naquela época tinham trabalhos importantes, o Hector era o lado mais louco, mais criativo, tocando com uma garotada mais louca, e o Sion era o cara que tinha um som jazzístico, lírico, bonito. Esses foram os caras que eu logo me impressionei.” No Rio também tiveram dois importantes instrumentistas e educadores que foram o Paulo Moura e o Vítor Assis Brasil.

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Roberto Sion estudou com Joseph Viola, professor de saxofone da Berklee College of Music. Apesar de contarmos com saxofonistas solistas importantes já na década de 50, como o Paulo Moura, foi a partir desse momento, de muita efervescência na música instrumental brasileira, que o mercado passa a projetar com maior ênfase músicos solistas no Brasil.

15

35

Essa nova geração foi educada e orientada nos moldes de ensino americano, muito voltado para o estudo do jazz como relatam Mané Silveira e Naylor “Proveta”: “Eu comecei a estudar com o Sion e o primeiro método que ele me mostrou foi o Lennie Niehaus16 (...). (Mané Silveira) “O Sion foi o primeiro cara que me deu uns patterns17 para improvisação.” (Naylor “Proveta”) ” A minha Berklee foi o Roberto Sion (...).” (Mané Silveira). O embasamento jazzístico que essa nova geração recebeu durante o período de formação fez com que esses novos músicos se desenvolvessem mais rapidamente em relação à geração anterior, que levou muito mais tempo para assimilar toda a quantidade de informação nova, além de permanecer influenciada pelo jazz por um tempo ainda maior. Roberto Sion: “Quanta coisa eu demorei 15 anos para aprender, tanto na técnica do saxofone ou no conhecimento teórico, e de repente eu passo em dois meses para os meus alunos (...) O que parece ser fácil hoje não foi antigamente (...).” Apesar de toda a educação e orientação jazzística a que foi submetida essa nova geração, em que as dúvidas referentes ao jazz e o difícil acesso às informações foram amenizadas, observa-se ainda que há uma dificuldade por parte dos estudantes em se adequarem aos moldes americanos de estudo, como relata os saxofonistas Mané Silveira e Teco Cardoso, respectivamente:

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O método do Lennie Niehaus trabalha com acordes, articulação e fraseado, totalmente direcionado para a improvisação e o swing jazzístico. 17 Patterns são frases jazzísticas construídas sobre os acordes, que devem ser estudadas em todos os tons e aplicadas durante à improvisação. 36

“(...) eu sempre tive muita resistência para levar um estudo assim mais acadêmico, então eu trabalhei bastante com discos, primeiro pela própria recomendação do Sion que dizia: “Você não tem que ter medo de imitar. Tire um solo do Phil Woods, procure imitá-lo, primeiro tirando o solo de ouvido e depois transcrevendo-o.” Eu tirava de ouvido mas não escrevia, na verdade eu escrevi poucos solos.” (Mané Silveira) “(...) eu fui ter aulas particulares com o Hector Costita (...) fiquei um ano mais ou menos. Depois a coisa foi meio autodidata mesmo (...) faz muito tempo que eu não tiro um solo de saxofone, os últimos que eu tirei foram solos do Phil Woods a dez anos atrás.” (Teco Cardoso) O aprendizado do instrumento através da metodologia de estudo do jazz e a prática de tocar música brasileira fizeram com que os músicos dessa nova geração percebessem as diferenças entre ambos os estilos com maior clareza. Com a falta de uma teorização voltada à música brasileira, os músicos começam a buscar alternativas de estudo diferentes dos moldes americanos, muito direcionados ao jazz. As características da música brasileira como o discurso melódico e a pulsação rítmica passam a ser exploradas como objetos de estudo e desenvolvimento musical. Teco Cardoso: “Eu tento trabalhar em cima da voz da Joyce, em cima da voz da Elis Regina, do Dori Caymmi, em cima da interpretação e da linguagem poética das palavras. (...) Então eu trabalho muito em cima dos cantores, e mesmo no jazz, eu trabalho em cima dos instrumentistas que não são saxofonistas , tanto que faz muito tempo que eu não tiro um solo de saxofone (...) se você trabalhar em cima de uma cantora, já é um negócio tão distante do saxofone que tudo que sair sob a forma de voz no saxofone é seu.” (Teco Cardoso) Numa outra passagem, Teco Cardoso comenta sobre a importância da pulsação rítmica como objeto de estudo e diferenciação entre a música brasileira e o jazz:

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“(...) é importante explorar o universo rítmico pois é o que nós temos de diferente. Esse universo rítmico é absolutamente aberto, se eu quiser explorar só o samba, eu posso passar esta existência só explorando o samba, mas eu também posso explorar o samba, baião, maracatu, maxixe, ou seja, para cada universo desse eu posso desenvolver outras linguagens rítmicas que se difere de tudo que tem no mundo.” A tentativa dos músicos em adequar o estudo do instrumento à música brasileira ainda é uma tarefa isolada, são experimentações individuais em que cada músico desenvolve uma maneira própria de estudar. A busca dessa metodologia de estudo voltada à música brasileira é um dos fatores responsáveis para a adaptação parcial, e até mesmo a rejeição, por parte da nova geração de músicos brasileiros, aos moldes americanos de estudo. David Richards: “Eu já conversei com alguns brasileiros que não querem saber nada de jazz, apenas música brasileira (...).” Há também um outro fator que contribui nesse processo. Trata-se da cultura do músico brasileiro que valoriza o amadorismo como marca estilística, tese defendida pelo professor de História da Música do Depto. de Música da ECA-USP Lorenzo Mammi18. Mammi comenta no texto “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova” 19, no qual faz uma comparação entre o jazz e a bossa nova, que o amadorismo no Brasil acabou se transformando numa espécie de opção estilística para o músico, principalmente na bossa nova, em que a criação musical sempre foi muito espontânea, sem grandes disciplinas e rigidez impostos pelo mercado: “Tom Jobim, profissional desde sempre, parece aceitar o pendor amadorístico da bossa nova como uma convenção do gênero, um elemento do estilo que não pode ser totalmente eliminado.” Essa característica também está, de certa

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Lorenzo Mammi é professor de História da Música do Depto. de Música da ECA-USP. MAMMI, Lorenzo. “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, in Novos Estudos, no.34, CEBRAP, São Paulo, 1992.

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forma, implícita na maneira de agir dos saxofonistas que compõem essa nova geração, e são observadas nas reações de resistência ao academicismo americano. Roberto Sion: Eu acho que nós não temos nada a ver com essa sistematização americana, deixa isso com eles, não é problema nosso, eles tem aquela cabeça e não tem vergonha de ficarem fazendo clichês, eles são assim.” Tudo indica que a metodologia de estudo dos saxofonistas entrevistados, que compreendem essa nova geração, já não segue mais os moldes americanos. Apesar da várias especulações e experimentações nesse sentido, ainda não se pode contar com uma sistematização dessa metodologia, e a influência jazzística continua sendo inquestionável e inevitável. David Richards: “(...) eu acho que os brasileiros tinham que ver o que os americanos fizeram e os resultados alcançados, e pode ser que na sua geração20 surja um cara que faça grande sucesso e as pessoas vão perguntar o que ele fez e daí pode ser que essa seja a prova, vão verificar que ele estudou com os americanos a sua própria música.”

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Essa geração a que se refere o entrevistado trata-se de músicos ainda estudantes, posterior à essa nova geração de entrevistados, atuante no cenário musical. 39

A linguagem Apesar da música brasileira estar fundamentada nas raízes populares, negra, semelhante ao jazz, ela se diferencia da música americana por valorizar mais o aspecto melódico em relação à harmonia, e por possuir diferenças no aspecto rítmico, que é talvez o principal fator de diferenciação entre a música brasileira e a americana. Em compensação, o jazz valoriza mais a improvisação em relação a música brasileira. Roberto Sion: “O jazz ainda é caminhos de como improvisar, eles não tem vergonha quanto a isso. Eles improvisam vários choruses21 e nós não temos esse hábito (...).” Quanto ao aspecto melódico, podemos entender melhor essa diferença através da citação feita pelo professor Lorenzo Mammi no texto “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, em que ele trata a bossa nova como sendo a melhor referência da diferença entre o jazz e a música brasileira: “O centro da bossa nova continua sendo, como para o samba, o canto. Sua intuição é lírica e, mesmo nos produtos mais sofisticados, exige que se acredite numa espécie de espontaneidade. Já o jazz, cuja intuição fundamental é de natureza técnica, privilegia o acorde. A harmonia de Tom Jobim é próxima à do jazz na morfologia, mas não na função. Para um jazzista, compor significa encontrar uma estrutura harmônica capaz de infinitas variações melódicas. Para Jobim, é encontrar uma melodia que não pode ser variada, já que ela é que é o centro estrutural da composição, mas pode ser colorida por infinitas nuances harmônicas. (...) As linhas melódicas do jazz são compactadas, claramente seccionadas e organizadas em volta de centros tonais definidos. (...) As melodias da bossa nova são compridas, complexas e livres. Não podem ser esquematizadas sem perder o caráter.” O aspecto rítmico por sua vez é para a maioria dos entrevistados a principal diferença entre o jazz e a música brasileira. Na música brasileira, a pulsação rítmica está

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apoiada nos tempos fortes do compasso (1 e 3), enquanto que no jazz apoia-se nos tempos fracos (2 e 4), resultando assim num outro tipo de articulação, fraseado e consequentemente numa outra prosódia. “O impulso rítmico está claro que é diferente (...). Então há um conceito diferente na hora em que você se propõe a improvisar a música brasileira, você acaba seguindo o caminho daquele impulso rítmico que você está ouvindo e isso acaba diferenciando.” (Eduardo Pecci) “Antes de qualquer coisa é a pulsação, ritmicamente é uma diferença nítida (...).” (Raul Mascarenhas) “A pulsação é a primeira coisa que eu tenho que falar, acho que tem muito com a colocação do fraseado. No samba você está sempre um pouco a frente do ‘beat’ e no jazz você deita um pouco mais, fica sempre um pouco mais para trás apesar de haver isso na música brasileira também. As figuras rítmicas do fraseado são diferentes, são divisões que derivam do samba enquanto que no jazz as figuras rítmicas tem um sentido mais tercinado. Eu tive muita dificuldade em improvisar em música brasileira, eu ia dar canjas e não rolava porque eu colocava a linguagem jazzística nos improvisos, então eu tive que descobrir o que fazer, tive que modificar o meu jeito de improvisar e tentar entender a pulsação do fraseado.” (David Richards) O saxofonista David Richards exemplifica uma situação observada também por outros saxofonistas brasileiros, que trata da dificuldade dos saxofonistas americanos em tocar música brasileira. A constatação dessa dificuldade está relacionada à pulsação rítmica.

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Chorus compreende a harmonia do tema aberta à improvisação. 41

“Eu trabalhei nos Estados Unidos tocando em big band ao lado de músicos do Frank Sinatra, músicos de primeira linha. Eu era o primeiro sax alto e às vezes ficava envergonhado com a qualidade dos músicos que tinham ali, mas na hora de tocar música brasileira a coisa saia dura, presa, travada, porque as frases tinham que soar como uma forquilha de tamborim, algo absolutamente brasileiro(...).” (Teco Cardoso) “(...) você pode escrever uma sincopa que o americano não vai fazer igual ao brasileiro. Eu acho basicamente que é melhor tocar nota errada no tempo certo do que tocar nota certa no tempo errado, todos os dois são ruins mas o último é por que o primeiro. Então eu acho que o tempo é fundamental pois tempo é ritmo.” (Raul Mascarenhas) Apesar das diferenças musicais entre o jazz e a música brasileira estarem presentes na maneira de tocar dos saxofonistas brasileiros, ainda não se pode contar com uma definição da linguagem saxofonística brasileira. O que se constata é a existência de vários estilos que são peculiares dos músicos brasileiros, que passa da mistura do jazz com tradições brasileiras. David Richards: “Na improvisação você tem a harmonia que te sugere muitos caminhos, o jazz desenvolveu muitos caminhos e os brasileiros agora estão pegando esses caminhos e fazendo com um sotaque brasileiro.” A projeção dos saxofonistas enquanto músicos individualizados deveu-se ao desenvolvimento do mercado, que passou a valorizar também o instrumentista solista e não apenas as grandes formações. A partir do momento em que há essa individualização, há a necessidade de uma personalização, de um estilo e esse estilo é tratado pelos saxofonistas brasileiros de uma forma empírica, casual, calcado nas origens e na formação musical individual de cada um.

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“(...) eu percebi que tem uma série de linguagens que estão dentro de nós e que não precisamos estudar, é brasileiro porque crescemos ouvindo isso, é algo que está dentro de nós e para mim música brasileira é isso, (...) ela vem de dentro. Foi isso que eu descobri.” (Roberto Sion) “(...) todo mundo nasceu no Brasil, todo mundo fala português, todo mundo se entende. Então essas coisas em comum do saxofone é por causa disso. Quando eu vejo o (Roberto) Sion tocando, eu lembro do Vítor Assis Brasil, do Phil Woods, das coisas da Berklee, mas ao mesmo tempo eu vejo ele garimpando não o que se chama de música brasileira, mas sim fazendo música brasileira de uma forma mais ampla, mais humana.” (Naylor “Proveta”) Todas as constatações e observações feitas até agora nesse trabalho nos indicam que a influência do jazz ainda está muito presente na formação do músico brasileiro. A crise de identidade do músico brasileiro manifesta-se a partir da percepção da diferença entre o jazz e a música brasileira. Essa crise leva o músico a buscar nos elementos folclóricos e regionais um estilo brasileiro para o saxofone, mas sem romper com a tradição do jazz, responsável pela sua formação técnica e acadêmica. Daí a importância da sistematização na música brasileira. A percepção da diferença entre as músicas de ambos os países ocorre no momento em que o músico entra em contato com o mercado de trabalho. É a partir dessa experiência que o músico compreende a importância das suas peculiaridades musicais, e entende que a personalização de um estilo é principal referência de mercado para um músico instrumentista. “Eu não enxergo ainda. Não que esteja nítido mas todo mundo como eu, o Paulo Moura, o Mané Silveira, o Proveta, estamos buscando mas nós ainda temos muito a influência do jazz. O meu primo Cláudio Roditti faz o samba com a linha improvisacional, fora algumas coisas rítmicas, toda baseada na tradição do trumpete, mas como ele é brasileiro e

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desenvolveu um certo estilo próprio, ele se tornou o Freddie Hubbard com sotaque brasileiro, mas ainda não é uma tradição em cima do folclore (..) brasileiro.” (Roberto Sion) “Essa confusão toda que está ai sobre linguagem(...) em que se pode falar entre aspas (...), na realidade é porque o brasileiro está perdido e estamos tentando nos encontrar(...). Demora muitos anos para amadurecer e você tem que saber trabalhar e desenvolver isso.” (Naylor “Proveta”) “(...) por um período da vida, ele (o músico) fica tentando absorver o jazz, tentando entender e o aplica na sua maneira de tocar, muitas vezes sobre a música brasileira, mas eu não sei que ponto o músico vai perceber que aquilo não está suficiente para a música brasileira (...). Talvez ele perceba isso naturalmente ou tem alguma orientação, mas de maneira geral o jazz atrai naturalmente o saxofonista, não dá para imaginar um garoto começando a tocar saxofone e não ouvir um saxofonista americano (...), só a maturidade vai faze-lo perceber a diferença entre o jazz e a música brasileira (...) Essa maturidade é que te leva a pensar sobre isso.” (Raul Mascarenhas)

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Conclusão

A proposta inicial do projeto foi tentar identificar uma linguagem saxofonística brasileira que estaria sendo desenvolvida pela nova geração de saxofonistas, além da preocupação em se identificar as principais influências e a possível tendência dessa linguagem. No entanto, após as análises das entrevistas, constatamos que ainda não se pode falar de uma linguagem saxofonística brasileira. O que existem são estilos individuais, peculiares de cada músico, resultantes das pesquisas e estudos dos elementos musicais característicos da cultura musical brasileira, diferentes do jazz. Contudo, a influência do jazz ainda está muito presente para os músicos pois trata-se basicamente do toda a formação técnica e acadêmica dos instrumentistas brasileiros. A busca dessa personalização estilística está associada a crise de identidade que tem passado o músico brasileiro. A partir da projeção do instrumentista enquanto músico individualizado, resultado das novas perspectivas do mercado em que a personalização estilística passou a ser a principal referência comercial para o instrumentista, o músico brasileiro, no caso o saxofonista, se viu obrigado a buscar nas suas origens os elementos musicais que os tornem peculiares. A formação jazzística, aliada à necessidade de uma personalização estilística voltada à música brasileira parece ser o grande referencial para a crise de identidade dos instrumentistas brasileiros. É provável que esse seja o principal fator para a inexistência de uma referência da linguagem saxofonística brasileira, além dos outros estilos saxofonísticos existentes em outras regiões, não abordados nesse trabalho. Contudo, observa-se a preocupação por parte dos instrumentistas em alcançar o mesmo reconhecimento e notoriedade já adquirida pela música brasileira.

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