Análise da Música popular Brasileira: os arranjos de Pixinguinha para a orquestra do programa radiofônico \"O Pessoal da Velha Guarda\"

July 14, 2017 | Autor: Ana Fontenele | Categoria: Popular Music, Musical Analisys
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Análise da música popular brasileira: os arranjos de Pixinguinha para a orquestra do programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda Ana Lúcia Fontenele Universidade Federal do Acre Universidade de São Paulo [email protected] ABSTRACT O presente trabalho pretende descrever as práticas e gêneros musicais surgidos a partir do período do final do século XIX e início do século XX, os quais seriam recuperados nos arranjos produzidos por Pixinguinha para a série de programas radiofônicos O Pessoal da Velha Guarda, levado ao ar entre os anos de 1947 a 1952 na Rádio Tupi do Rio de Janeiro. Seguindo essa espécie de contextualização histórica da música popular brasileira, foi observado, ainda, o processo de surgimento do samba “moderno” no Brasil, como também e sua influência no gênero choro a partir da década de 1930. Por fim, as principais características musicológicas dos arranjos citados, foram analisadas por meio das tópicas musicais aplicadas ao contexto da música brasileira, sugeridas por Piedade (2013), principalmente no que se refere aos aspectos melódicos e rítmicos utilizados.

1. INTRODUCTION O presente artigo objetiva descrever e analisar uma parcela das práticas e gêneros musicais presentes na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX. Tais práticas musicais se iniciaram a partir da reinterpretação de algumas danças de salão europeias, principalmente a polca e a valsa, tanto nos salões aristocráticos, como nos bairros mais populares da cidade. No âmbito da música instrumental, essas vivências geraram o surgimento do choro, como também firmaram as bases de uma importante parcela da musicalidade popular urbana do Brasil. Tais gêneros musicais foram, posteriormente, resgatados nos arranjos feitos por Pixinguinha para a orquestra do programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda, transmitido pela Rádio Tupi do Rio de Janeiro, no período de 1947 a 1952. O intuito do produtor musical, Almirante, e dos grupos musicais que integravam a equipe do programa, foi resgatar obras executadas à época dos bailes de salões nobres e das festas populares da cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, procuramos reiterar o que havíamos afirmado em artigo anterior no qual consideramos que “que apesar dos diversos diálogos com gêneros musicais variados, como por exemplo o jazz, Pixinguinha de alguma forma manteve-se fiel à musicalidade praticada no Brasil desde o final do século XIX” (Fontenele, 2014). Tal influência se consolidou ainda mais na fase madura da carreira de Pixinguinha, que se inicia a partir da realização dos arranjos para uma espécie de “orquestra popular brasileira”, a partir do final da década de 1940. Desde a década de 1980 algumas tentativas de formulação de métodos de análise da música popular vêm estabelecendo-se a partir de novas perspectivas de análise propostas pela Nova

Musicologia que leva em conta aspectos culturais e sociais nos quais surgem a práticas musicais no âmbito da música popular urbana. Por outro lado, apesar de influenciados pelo contexto cultural e social da sua região em suas trajetórias criativas, os criadores (compositores e intérpretes) têm, cada um deles, uma forma de expressão criativa própria. Nesse sentido, para propiciar uma análise contextualizada dos arranjos orquestrais citados acima, foi realizado um detalhamento do ambiente social em que aconteciam as manifestações musicais daquela época, como também relembrados os nomes e fatos relevantes da carreira de alguns compositores e intérpretes do período. 1.1 Os primórdios da música popular urbana No Brasil alguns gêneros musicais surgiram como resultado de práticas musicais realizadas em encontros e festas de classes populares. Entre eles destacam-se o lundu, o maxixe, o choro e o samba. Anterior ao surgimento de tais gêneros existiam os batuques dos africanos e seus descendentes e as danças europeias (valsas, polcas, schottischs, quadrilhas), presentes nos bailes de classes altas, como também adaptadas ao contexto das classes populares. Nesse processo de caldeamento cultural a polca foi o gênero que mais se abrasileirou. Chegada ao Brasil por volta 1844, essa dança de salão, originária da Boêmia, de ritmo binário marcante, se fez presente tanto em bailes tradicionais, inclusive no carnaval, como também obteve outros temperos quando levada às festas, por exemplo, do Bairro Cidade Nova, no centro do Rio de Janeiro. Segundo alguns autores, entre eles Tinhorão (2010), a polca se abrasileirou de tal forma que gerou o lundu, o tango brasileiro, o maxixe, o choro e o samba amaxixado. Algumas figuras de destaque desde a época das danças de salão foram consideradas como pioneiras da música popular brasileira instrumental. Entre elas destacam-se o compositor Henrique Alves de Mesquita, Joaquim Callado, Viriato Figueira, o compositor belga M.A. Reichert, Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, seguidos por Irineu de Almeida e Mário Álvares da Conceição (ambos professores de Pixinguinha) e por Anacleto de Medeiros e Luiz de Souza. O tango brasileiro já citado como um gênero híbrido é resultado, segundo Severiano (2008), da “mistura” da habanera e do tango espanhol com elementos da polca e do lundu e foi criado por Henrique Alves de Mesquita. Ernesto Nazareth foi quem melhor sistematizou esse gênero em um momento no qual, segundo Machado (2007, p. 40), “os gêneros sincopados já se encontravam decantados na cultura musical brasileira”. Tanto Nazareth, como Viriato Figueira (flautista) contemporâneo de Joaquim Callado e Patápio Silva, compuseram polcas de certo modo tão sofisticadas que desafiavam a possível fronteira entre o popular e o erudito. Machado (2007) cita um diálogo entre polcas compostas por Viriato

Figueira como Caiu não disse? dirigida em uma espécie de disputa musical a Ernesto Nazareth que respondeu com a polca Não caio n´outra! Esse embate indicava, segundo Tinhorão (1991, p.15) “a preocupação virtuosística dos solistas chorões de introduzirem passagens (modulações) imprevistas na tentativa de “derrubar” os acompanhadores”. A utilização da síncopa como quebra de previsibilidade métrica1 presente em gêneros derivados da polca, como o tango brasileiro, por exemplo, na música de Nazareth, foi ressaltado, tanto por Mário de Andrade, como pelo pianista Arthur Rubinstein que ficou encantado com as interpretações de Nazareth quando da sua estadia no Rio de Janeiro em 1918 (Machado, 2007). O compositor francês Darius Milhaud esteve no Brasil numa época em que a música instrumental já não estava presente apenas em bailes das elites e em festas nos bairros populares, mas, também, nas ante-salas das salas de projeção de cinema. O compositor criou a série de peças para piano, posteriormente orquestradas, Saudades do Brasil e ainda o balé Le Boeuf sur le toit inspirado na música que ouviu no Brasil durante o período de 1918 a 1919. Segundo Corrêa do Lago (2012) o balé foi composto em 1919 em Paris e faz citações de mais de uma dezena de trechos de músicas populares brasileiras que o compositor adquiriu em forma de partituras impressas. Essa espécie de ordem social composta por pessoas que frequentavam os salões desde o Brasil do Segundo Império e início da República (1922 a 1989), as moças e moços de classe média que aprendiam o piano e os músicos de classes populares contribuíram para a formação da nossa tradição musical. No contexto das festas das classes populares, ao invés das orquestras de metais e dos pianos dos bailes de elite, as danças europeias “abrasileiradas” (valsas, polcas, schottischs) e os gêneros brasileiros (tango brasileiro, maxixes, partido alto e o samba amaxixado) eram executados pelos grupos de “pau e corda”, compostos por flauta, cavaquinho e violão. Esses aspectos povoam as descrições de músicos, intérpretes e compositores citados por Alexandre Gonçalves Pinto no livro O Choro: reminiscências dos chorões antigos publicado em 1936 e reeditado em 1978 e em 2009. Através da seguinte citação do prefácio do seu livro O Animal, como fora apelidado, retratou o quanto essa prática musical era aberta a tipos diversos de interações entre as pessoas, ouvintes e praticantes do choro: As pessoas daquele tempo no Rio de Janeiro recordam e sentem n’alma a vibração das músicas daquela época: os chorões ao luar, os bailes das casas de família, aquelas festas simples onde imperavam a sinceridade, a alegria espontânea, a hospitalidade, a comunhão de ideias (Pinto, 2009, p. 10).

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 Com relação à presença da síncopa na música europeia, segundo Machado (2007), ela acontecia dentro a previsibilidade métrica de cada compasso, já na música brasileira a síncopa acontecia, por exemplo no samba, numa série rítmica de dois compassos binários.

É interessante observarmos o que nos aponta Aragão (2013) sobre o que significava a “roda” no âmbito do choro praticado à essa época (final do século XIX e início do século XX): “o termo “roda” era utilizado como sinônimo da comunidade de instrumentistas e apreciadores do choro”. Esta comunidade, segundo o discurso do carteiro (O Animal), estava ligada através de um senso de identidade fornecido por determinantes práticas sonoras e sociais e também por um passado, uma tradição em comum. Nesse sentido há no texto de Alexandre Gonçalves Pinto (2009) uma grande ênfase aos instrumentistas denominados como pertencentes a uma “velha guarda”.

1.2 A influência africana As danças de salão europeias como a polca, a valsa, o schottisch, as quadrilhas e, posteriormente, o choro e o samba foram influenciados por elementos da rítmica musical africana presentes em manifestações musicais dos negros no Brasil como as rodas de batuque, entre outras. Segundo Severiano (2008, p. 69) “o samba não existiria se antes não tivessem existido as múltiplas formas de samba folclórico, práticas das rodas de batuque”. Alguns fatores colaboraram para uma maior presença de negros em capitais e no período do final do século XIX a maior concentração ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, atual capital da República devido aos seguintes fatores citados por Severiano (2008): o declínio das lavouras de café; o término da Guerra do Paraguai (1887); o término da Guerra de Canudos (1897) e a seca nordestina de 1877 a 1879 (Tinhorão, 1991, 2010 e Severiano, 2008). Além de gêneros como a modinha, o lundu, o tango brasileiro e o maxixe, os gêneros híbridos foram surgindo nesse processo. Dentre eles destacam-se o tango-maxixe, tango-lundu e o tangobatuque, entre outros. Cabe aqui salientar algumas referências de teóricos e estudiosos das culturas urbanas. Garcia Canclini observa aspectos ligados às diversas realidades culturais características de um povo e presentes em vários países da América Latina a partir dessa concepção de hibridismo cultural convertida em “modelo explicativo de identidade” em um “espaço no qual coexistem diversas identidades” (Garcia Canclini, 2006, p. 174 apud Carvalho, 2014 ).

1.3 O contexto musical no Brasil Moderno A indústria de entretenimento se instala no Brasil de forma avassaladora a partir do surgimento do rádio em 1922, da gravação elétrica e do cinema sonoro em 1927. Tais fatores mudaram as dinâmicas de trabalho dos músicos realizando um processo de seleção dos profissionais

bem mais exigentes do de outras épocas. Nessa espécie de filtro, muitos dentre os inúmeros compositores de épocas anteriores foram ofuscados, permanecendo alguns instrumentistas de maior destaque e elevado nível técnico, os quais atuaram nos programas radiofônicos e nos discos da época. Por volta de 1930 houve uma espécie de modernização do samba, a partir da padronização de um tipo de acompanhamento rítmico criado por sambistas do bairro Estácio no Rio de Janeiro2, apontando, segundo Vianna (1995), para a ideia de homogeneização do samba em torno de uma estética musical única para o país (Figuras 1 e 2). Esse fenômeno se dá quando o samba passa a ser eminentemente uma música de caráter urbano, praticado por negros e brancos, em processo de tornar-se sinônimo de identidade nacional, apoiado pelo discurso de intelectuais brasileiros que colocaram o samba como um reflexo positivo da mestiçagem brasileira. Nesse contexto, segundo Barata, “a cultura negra até poderia compor a identidade da nação brasileira, mas sabendo seu lugar, se adaptando, se civilizando” (Barata, 2012. p.1796).

Figura 1. Padrão rítmico do samba moderno (Sandroni, 2012)

Figura 2. Variação do padrão rítmico do samba moderno (Sandroni, 2012)

A essa época surge os grupos regionais que atuavam tanto no âmbito da música cantada, como na música instrumental. O choro passa a ser executado em uma nova espécie de moldura, principalmente, aplicada aos instrumentos de acompanhamento, mais ligada ao samba do Estácio. Dentre esses grupos regionais destacam-se o Regional Benedito Lacerda e o Regional do Canhoto, que muito bem incorporaram a roupagem do samba moderno no choro. Por outro lado, a estes se somaram músicos de uma nova geração, entre eles destacam-se, segundo Severiano (2008), os compositores Ary Barroso, Noel Rosa, Braguinha, Ismael Silva; os intérpretes Almirante e Mário Reis e os instrumentistas e arranjadores Radamés Gnattali, Benedito Lacerda, Carolina de Menezes, Dante Santoro, Luís Americano, Garoto, Rogério Guimarães, Meira, Luperce Miranda e Luciano Perrone, entre outros. 2

 Célula rítmica de acompanhamento definida por Sandroni (2012) como o “paradigma do Estácio”.  

Nessa perspectiva de uma construção musical para as massas, um outro fator tornou-se preponderante nesse processo, o arranjo musical. Para Aragão (2001) o arranjo passa a ser um processo inerente a qualquer música popular comercial. O autor afirma ainda que: Os arranjos cumpriam a função de dar “roupagens nobres” às novidades musicais que vinham das camadas mais baixas, porém esse “produto” não poderia ser apresentado em seu estado bruto, tal qual era praticado por seus agentes tradicionais em seus meios originais (Aragão, 2001, pg. 29).

Segundo Trotta (2009, pg. 2) “a complexidade dos arranjos orquestrais servia para conferir valor à prática do samba, ainda em vias de legitimação social”. Nesse sentido identidade local é assim levada a se transformar em uma representação da diferença que se possa fazê-la comercializável, ou seja, submetida ao turbilhão das colagens e hibridações que impõe o mercado (Martin-Barbero, 2005, apud Carvalho, 2014). Além dos poucos arranjadores estrangeiros que atuavam no Brasil, alguns compositores brasileiros do meio popular foram se aperfeiçoando nessa arte de criar arranjos, dentre eles destacamse Pixinguinha e Radamés Gnattali. Desde a década de trinta do século passado, até meados da década de 1940 esses dois arranjadores deixam suas marcas na música dita comercial, consumida no Brasil. Cabe destacar ainda uma grande influência da música norte americana nas big bands formadas a partir da década de 1940 no Brasil. Entre elas destaca-se a orquestra Tabajara, dirigida pelo músico, regente e arranjador Severino Araújo. Apesar de tais tendências impostas pela indústria do disco, os chorões antigos continuaram a tocar música popular de cunho instrumental, o choro, com o acompanhamento derivado da polca considerado por Aragão (2013, p. 119) expressão máxima do que era entendido como “música nacional”. Segundo Tinhorão (1997, p. 50), “o samba criado no Estácio ao alvorecer da década de 30, e até hoje cultivado pelos sambistas das escolas de samba, e ainda – de uma maneira geral – o samba de carnaval, o chorinho e a marcha continuariam a evoluir dentro das características populares cariocas”. Se por um lado esse alto nível exigido aos profissionais de música ofuscou as práticas musicais mais espontâneas na cidade do Rio de Janeiro, por outro lado o grau de exigência técnica dos novos chorões foi aprimorado revelando novos virtuoses como Jacob do Bandolim e Altamiro Carrilho, entre outros. Tal perspectiva acabou elevando de vez o choro a um patamar que o torna conhecido e praticado não só no Brasil, como também em países da Europa, principalmente na França, nos Estados Unidos e no Japão.

1.4 Os programas radiofônicos O Pessoal da Velha Guarda A partir da década de 1940, surgem no Brasil algumas iniciativas de se resgatar essa musicalidade fundadora da música popular instrumental, entre as quais podemos enumerar o trabalho de pesquisadores como Luiz Heitor Correa de Azevedo, Brasílio Itiberê, Mello de Moraes, Almirante e o bandolinista e compositor Jacob do Bandolim, entre outros. De 1955 a 1959 Jacob do Bandolim organizou uma série de programas na Rádio Nacional do Rio de Janeiro e dois programas TV Record de São Paulo, em 1955 e 1956, reunindo um grande número de instrumentistas de choro da região. O compositor e arranjador Pixinguinha atuou, junto a Almirante, como diretor musical programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda (Paes, 2012). Pelo fato de ter convivido com músicos e compositores de uma geração anterior à dele, como Irineu de Almeida e Mário Álvares, seus professores, Pixinguinha é considerado como herdeiro musical das práticas musicais ligadas ao choro desde os primórdios desse gênero musical, caracterizado inicialmente como a forma “abrasileirada” de se tocar as danças de origem europeia. Tais vivências e experiências musicais, o fizeram mergulhar na recuperação sonora daquele ambiente musical, através dos arranjos elaborados para a orquestra do programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda. Os arranjos criados por ele para a orquestra do referido programa, foram editados em partituras (Paes Leme, 2010 e 2014). Como afirmado em artigo anterior (Fontenele, 2014) Pixinguinha foi considerado como “o grande pioneiro da orquestração da música popular brasileira” (Cabral, 2007), principalmente, por adaptar instrumentos do âmbito do choro e do samba à base harmônica e rítmica dessa orquestra. Isso se deu a partir da utilização do violão e do cavaquinho junto ao piano e contrabaixo acústico e com a ampliação o naipe de percussão, por meio da utilização de instrumentos do contexto das escolas de sambas, a cuica, o tamborim e o pandeiro, tocados junto à bateria das bandas de jazz. Tal orquestra popular “brasileira”, portanto, era composta por instrumentos de metal (trumpetes, saxes e trombones), de madeira (flauta, flautim e clarineta), por um naipe de cordas composto apenas por violinos (com até 4 divisis), além dos instrumentos citados acima, da base harmônica e rítmica.

2.0 ANÁLISE MUSICAL Para a análise da série de arranjos realizados por Pixinguinha para a orquestra O Pessoal da Velha Guarda, do programa radiofônico citado, foi utilizada a Teoria das Tópicas adaptada ao contexto da música popular brasileira sugeridos por Acácio Piedade (2013). Em especial duas tópicas sugeridas por Piedade encaixaram-se à proposição de análise realizada. A tópica “brejeiro” que refere-se aos floreios melódicos (portamentos e apojaturas) improvisados em geral pelos solistas e que em tais arranjos se fizeram presentes no comportamento da melodia principal (Figura 3) e ainda,

antecipações do acento do tempo forte propiciando quebras e deslocamentos irregulares no ritmo (Figura 4). Tais comportamentos musicais refletem, segundo Piedade (2007) a figura do malandro “esperto e competente” através da sua “ginga com os pés” retratados em espírito “desafiador e malicioso” da tópica “brejeira”.

Figure 3. Trecho melódico (1) da polca“Assim é que é” de Pixinguinha. (Paes Leme, 2010).

Figure 4. Trecho melódico (2) da polca“Assim é que é” de Pixinguinha. (Paes Leme, 2010).

A tópica “época de ouro” refere-se não só aos maneirismos presentes nos floreios melódicos dos cantores das antigas valsas das serestas brasileiras, como também está presente nos tipos de “levadas” características de cada gênero, derivados de danças europeias que aqui se “abrasileiraram”, como também em gêneros brasileiros como o maxixe, o tango brasileiro e o samba. (Figuras 5 e 6).

Figure 5. Padrão rítmico (1) da polca “Assim é que é” de Pixinguinha. (Paes Leme, 2010).

Figura 6. Padrão rítmico (2) da polca “Assim é que é” de Pixinguinha. (Paes Leme, 2010).

Tal perspectiva de análise vem dialogar com outra proposição sugerida por Piedade (2013) na qual as tópicas interagem em meio a um campo previsível sustentado pela previsibilidade que tais elementos musicais proporcionam em uma composição ou arranjo musical. Uma retoricidade do “lugar comum” é vivenciada tornando a fruição musical uma experiência de certa forma orgânica. Quando surge uma figura que se destaca nesse campo isotrópico de expressão musical surge uma tópica. No caso do choro os aspectos harmônicos e formais estão ligados ao que Piedade relaciona com o “lugar comum”. O tratamento harmônico foi herdado da música erudita de caráter tonal que pode ser analisado a partir da perspectiva da harmonia funcional. Nesse sentido a análise pode seguir a partir do perfil melódico nas tonalidades maior-menor, e das progressões harmônicas sendo ampliadas para o campo do que Webern (1984) aponta como a “conquista do cromatismo” a partir da possibilidade de utilização de uma dominante sobre cada grau, as “dominantes secundárias”, presentes no contexto da música vocal, desde os corais de Bach, entre outros tipos de acordes com funções auxiliares. Ainda no contexto do choro a forma, em geral, advém de minuetos (forma ternária) e, com maior frequência, da forma rondó (ABACA), na qual cada trecho musical encontra-se em uma tonalidade vizinha. O constante retorno à parte A pode ser considerado como o ponto máximo da tópica “lugar comum”. No contexto da música de concerto, Webern (1984) considera a modulação como um último estágio da música tonal, principalmente as que ocorrem na forma allegro de sonata.

3.0 DISCUSSION Após anos de atuação no âmbito do mercado fonográfico brasileiro, como arranjador, Pixinguinha, na sua fase madura da carreira, volta-se para o tipo de musicalidade que o formou e que, em certa medida, ele nunca abandonou, a música praticada à época do surgimento do gênero choro. Outro tipo de estética musical, comum a época do final do século XIX e início do século XX no Brasil, que teve muita influência nos arranjos de Pixinguinha, foi o das bandas militares, cujo maior representante é o compositor Anacleto de Medeiros. Tanto nos seus arranjos dessa época como em fases anteriores, onde Pixinguinha atuou como arranjador em grupos pertencentes a gravadoras de discos, tais influências se fizeram presentes nas suas criações. Ressalta-se ainda outras iniciativas de registro de arranjos de Pixinguinha, executados por pequenos grupos e orquestras populares. Entre elas destaca-se a gravação de alguns discos do próprio

Pixinguinha lançados na década de sessenta e setenta do século passado, como por exemplo o disco Pixinguinha e sua Gente – 1972 – Em tempo de Velha Guarda. Em 1988 e 2005, alguns arranjos do compositor, da série Brasília Orquestra3, entre outros, foram executados em dois CDs dirigidos por Henrique Cazes e lançados pelas gravadoras Kuarup e Biscoito Fino. 3.0 CONCLUSION Por meio da análise da série de arranjos e composições próprias apresentados junto à orquestra do programa radiofônico O Pessoal da Velha Guarda, o universo musicológico de Pixinguinha pode ser estudado no âmbito da orquestração dita “brasileira”. A partir de novas e antigas gravações e de algumas publicações (partituras e livros) dedicadas às práticas musicais do final do século XIX e início do século XX e editadas desde a década de 1980 no Brasil, novos caminhos se abrem para que os músicos e pesquisadores pratiquem e valorizem tais vivências musicais, bem como conheçam as obras dos inúmeros compositores representativos da música desse período. 4.0 REFERENCES Aragão, Paulo (2001). Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro (1929 a 1935). Texto de dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Música. Centro de Letras e Artes. Universidade do Rio de Janeiro. Aragão, Pedro (2013). O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e O choro. Ed. Folha Seca. Rio de Janeiro. Barata, Denise (2012). Permanências e deslocamentos das tradições musicais africanas na cidade do Rio de Janeiro. In XXII Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, ANPPOM, João Pessoa. Cabral, S. (2007). Pixinguinha: vida e obra. Rio de Janeiro, Fundação Nacional de Artes, FUNARTE. Corrêa do Lago, Manoel, A. (org.) (2012). O Boi no Telhado: Darius Milhaud e a música brasileira do modernismo francês. São Paulo, IMS - Instituto Moreira Salles. Fontenele, A.L. (2014). Pixinguinha em plena maturidade: os arranjos para um “Orquestra Brasileira”. In: Anais do VI Encontro de Musicologia de Ribeirão Preto. USP. Machado, Cacá (2007). O enigma do homem célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth. Instituto Moreira Salles. São Paulo, 2007. Paes, Anna. (2012). Almirante e o Pessoal da Velha Guarda: Memória, História e Identidade. Texto de dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. Rio de Janeiro, 2012. Paes Leme, B. (org) (2010). Pixinguinha na Pauta: 36 arranjos para o programa O Pessoal da Velha Guarda. Instituto Moreira Salles e Imprensa Oficial (SP). 3

 Arranjos editados pela Editora Irmãos Vitale no período de 1947 a 1948.  

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