ANÁLISE DA OBRA “PALESTINA” DE JOE SACCO SOB A ÓTICA DE ESTUDOS CULTURAIS

July 14, 2017 | Autor: Júlia de Souza | Categoria: Palestine, National Identity, Comics and Graphic Novels, Palestina, Identidade Nacional, Quadrinhos
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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE DESENHO INDUSTRIAL CURSO DE TECNOLOGIA EM DESIGN GRÁFICO

JÚLIA NASCIMENTO DE SOUZA

ANÁLISE DA OBRA “PALESTINA” DE JOE SACCO SOB A ÓTICA DE ESTUDOS CULTURAIS

TRABALHO DE DIPLOMAÇÃO

CURITIBA 2015

JÚLIA NASCIMENTO DE SOUZA

ANÁLISE DA OBRA “PALESTINA” DE JOE SACCO SOB A ÓTICA DE ESTUDOS CULTURAIS

Trabalho de Conclusão de Curso de graduação, apresentado à disciplina de Trabalho de Diplomação, do Curso Superior de Tecnologia em Design Gráfico do Departamento Acadêmico Desenho Industrial – DADIN – da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, como requisito parcial para obtenção dotítulo de Tecnólogo.

Orientadora: Profª. Simone Landal

CURITIBA 2015

Ao Bernardo, que me ensinou a enxergar a Palestina com novos olhos.

RESUMO SOUZA, Júlia Nascimento de. Análise da obra “Palestina” de Joe Sacco sob a ótica de estudos culturais. 2015. Trabalho de diplomação (Tecnologia em Design Gráfico) - Departamento Acadêmico de Desenho Industrial. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2015.

Esta pesquisa consiste em uma análise qualitativa da obra em quadrinhos Palestina, do autor Joe Sacco, sob o viés de estudos culturais relacionados a identidades nacionais, com o objetivo de identificar de que maneiras expressões da identidade nacional palestina encontram-se representadas na obra. Apresenta um breve histórico da trajetória profissional do autor, conceituações básicas sobre identidade nacional e contextualização histórica da Palestina, os quais fornecem base teórica necessária para estabelecer paralelos entre traços da identidade palestina e as representações construídas pelo autor, analisando aspectos formais e discursivos.

Palavras-chave: Quadrinhos. Identidade Nacional. Palestina.

ABSTRACT SOUZA, Júlia Nascimento de. Analysis of the book "Palestine" by Joe Sacco from the perspective of cultural studies. 2015. Trabalho de diplomação (Tecnologia em Design Gráfico) - Departamento Acadêmico de Desenho Industrial. Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2015.

This research consists of a qualitative analysis of the graphic novel Palestine, by Joe Sacco, under the bias of cultural studies related to national identities, in order to identify the ways in which expressions of the palestinian national identity are represented in this book. It presents a brief history of professional trajectory of the author, basic concepts of national identity and historical context of Palestine, which provide theoretical basis for drawing parallels between traces of palestinian identity and the representations constructed by the author, analyzing formal and discursive aspects.

Key-words: Comics. National Identity. Palestine.

LISTA Figura 1 - Capa do livro Derrotista.. .......................................................................... 13 Figura 2 – Abertura do capítulo Quando boas bombas acontecem a pessoas más. 14 Figura 3 – Trecho do capítulo Mais mulheres, mais crianças, mais rápido. .............. 15 Figura 4 – Capas de Palestina – uma nação ocupada e Palestina – na faixa de Gaza. ......................................................................................................................... 16 Figura 5 – Capa de Área de Segurança Gorazde. .................................................... 17 Figura 6 - Capa de Uma história de Sarajevo. .......................................................... 17 Figura 7 – Trecho do capítulo Uma história nojenta.. ................................................ 19 Figura 8 – Trecho do capítulo Como amei a guerra. ................................................. 20 Figura 9 – Sacco conversa sobre a questão palestina .............................................. 21 Figura 10 – Capas das publicações de Palestina...................................................... 22 Figura 11 - Capa de publicação da série Palestina feita à mão por Sacco. .............. 23 Figura 12 – Rascunhos do diário de viagem de Sacco. ............................................ 26 Figura 13 – Comparações feitas pelo autor entre seus desenhos e as fotografias que utilizou como referência, e seus comentários............................................................ 27 Figura 14 – Comparações feitas pelo autor entre seus desenhos e as fotografias que utilizou como referência, e seus comentários............................................................ 28 Figura 15 – Sacco conversa com jovens israelenses................................................ 31 Figura 16 - Manifestação popular contra assentamentos israelenses. ...................... 32 Figura 17 – Manifestação popular contra assentamentos israelenses. ..................... 33 Figura 18 – Histórico da ocupação Israelense na Palestina ...................................... 46 Figura 19 – Representação panorâmicado campo de refugiados de Jabalia. ........... 51 Figura 20 – Sacco observa o campo de dentro de seu carro .................................... 52 Figura 21 - Sacco age com desdém perante os palestinos ....................................... 53 Figura 22 – Família em suas antigas terras .............................................................. 54 Figura 23 – Processo de expulsão ............................................................................ 55 Figura 24 – Crianças refugiadas ............................................................................... 57 Figura 25 – Ato contra assentamentos israelenses................................................... 58 Figura 26 - Golda Meir .............................................................................................. 59 Figura 27 – Personagem falando sobre resistência .................................................. 60 Figura 28 – Relato sobre grupos de resistência ........................................................ 62 Figura 29 – Divergências entre grupos ..................................................................... 63 Figura 30 – Cena de briga ......................................................................................... 64 Figura 31 - Personagens cantando músicas da Fatah .............................................. 64 Figura 32 – Jovem exibindo sua identidade .............................................................. 66 Figura 33 – Personagem comenta sobre a vergonha de nunca se ter ido para a prisão ........................................................................................................................ 66 Figura 34 – Sacco fala sobre a relação dos palestinos com a prisão........................ 67 Figura 35 – Garota baleada por atirar pedras em soldados ...................................... 68 Figura 36 - Personagem expressa sua revolta .......................................................... 68 Figura 37 – Personagem expressa nacionalismo ...................................................... 69 Figura 38 – Jovem iniciando confronto com soldados israelenses............................ 70

Figura 39 – Primeira Intifada ..................................................................................... 71 Figura 40 – Obra do grafiteiro Banksy ....................................................................... 71 Figura 41 - Sacco faz uso de recursos visuais para reforçar sua mensagem ........... 72 Figura 42 – Uso de trajes típicos ............................................................................... 74 Figura 43 – Representação do hábito de beber chá ................................................. 74 Figura 44 – Keffiyeh como símbolo nacional. ............................................................ 77 Figura 45 – Representação da assinatura da Declaração de Balfour ....................... 76 Figura 46 - Representação de Lorde Balfour em seu escritório. ............................... 77 Figura 47 – Morte de jovem palestino ....................................................................... 78 Figura 48 – Sacco representa a ação de soldados israelenses ................................ 79 Figura 49 – Comparativo entre as páginas 104 e 111 para demonstrar a progressão dos quadros............................................................................................................... 81 Figura 50 – Árvores cortadas por soldados ............................................................... 82 Figura 51 - Estrada bloqueada para veículos de placa palestina .............................. 83 Figura 52 – Personagem contando sobre as dificuldades para exportar produtos agrícolas .................................................................................................................... 84 Figura 53 – Sacco é questionado por palestinos....................................................... 85 Figura 54 – Personagens exibem ferimentos e cicatrizes ......................................... 86

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9 2 O AUTOR E SUA OBRA ........................................................................................ 12 SACCO E A PALESTINA ....................................................................................... 18 SEU PROCESSO PRODUTIVO ............................................................................ 25 2 IDENTIDADE NACIONAL: CONCEITOS BÁSICOS .............................................. 35 4 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ..................................................................... 41 5 ANÁLISE DA OBRA DE JOE SACCO SOB A ÓTICA DA IDENTIDADE NACIONAL PALESTINA............................................................................................................... 50 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 87 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 89

1 INTRODUÇÃO Ao longo da história do design, muitas foram as discussões acerca do que o define e de quais são seus propósitos. Proveniente da arte e por muitos com ela confundido, o controverso mundo do design motivou diversos estudiosos a teorizarem sobre suas práticas e partirem em busca de conceitos. Quanto a suas funções, historicamente o design já provou ter inúmeras, não somente por sua versatilidade, mas em grande parte por conta do contexto específico em que se encontra aplicado, visto que constitui-se como uma disciplina intrinsecamente cultural. A grandiosa manufatura de cerâmicas de Sèvres, datada do século VXIII e por muitos considerada a origem do design enquanto atividade projetual, produzia suntuosas peças no estilo rococó que serviam para alimentar a sofisticação da corte francesa e reforçar a diferenciação entre ela e a plebe. Já na década de 1920, o Modernismo trouxe consigo a exaltação do funcionalismo, traduzida pela máxima do arquiteto Louis Sullivan “a forma segue a função”. Os cartazes dos períodos das grandes guerras mundiais são recheados de pessoas enfáticas apontando seus dedos para o espectador, com o claro propósito de persuadi-los a engajarem-se. O design pós-moderno é um constante convite à reflexão sobre o estilo de vida contemporâneo e as aflições nele contidas. Seja através da pura função ou de devaneios filosóficos, ideologias políticas ou propostas de novos estilos de vida, a história indica que o design e suas possíveis funções convergem para um ponto em comum, que é o ato de comunicar. Com o auxílio da antropologia foi-se além, chegando ao entendimento de que mais que comunicar, o design tem a grande capacidade de criar significados e consolidar imagens e estereótipos através da constituição de discursos. Muito além de um reflexo, o design auxilia na construção de indivíduos e culturas, seja através da formação de autoimagem ou de um direcionamento de olhar sobre o outro. Por mais inofensivas que possam parecer, as escolhas formais e textuais tomadas na produção de peças gráficas são capazes de exercer poderosa influência sobre o espectador, transmitindo-lhe sensações, remetendo a referências anteriores, reforçando ou não imagens pré-concebidas, e, assim, traçando o caminho para estabelecer um discurso. É com o entendimento da importância desta função do design que escolheuse trabalhar com história em quadrinhos, peça gráfica construída a partir de inúme-

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ras estratégias estéticas responsáveis por reforçar sua mensagem e que, como qualquer outra peça gráfica, é carregada de potencial discursivo. Mais especificamente, optou-se por realizar uma análise comparativa entre a obra escolhida e um levantamento teórico e histórico sobre seu tema, a fim de compreender o posicionamento do autor perante o assunto, identificar seu discurso enquanto estrangeiro, discutir os recursos visuais por ele empregados na construção de sua mensagem e ainda determinar a proximidade do conteúdo da obra com aquele encontrado em livros e artigos acadêmicos. Aqui, destacamos o trabalho do jornalista maltês radicado nos Estados Unidos Joe Sacco, que ganhou notoriedade ao unir o jornalismo com as histórias em quadrinhos. Sacco tem dedicado boa parte de sua carreira a realizar retratos jornalísticos de territórios em conflito através da arte sequencial e suas publicações acerca da Palestina lhe renderam premiações como o American Book Awardse o Prêmio Eisner. O presente trabalho propõe-se a analisar sua obra, mais especificamente o livro “Palestina”, sob a ótica de estudos culturais, a fim de investigar como se dá este retrato do povo palestino através do olhar do autor. Para tanto, a obra será estudada paralelamente com autores que dedicam-se a explorar questões de identidade cultural, como por exemplo Stuart Hall, referência no tema, e Rashid Khalidi, reconhecido teórico dedicado a estudos palestinos, entre outros. A cultura Palestina constitui-se desde a antiguidade em meio à disputa por direitos e à luta por espaço, seja ele cultural, político ou geográfico. Conflitos sóciopolíticos originados nos tempos bíblicos encontram-se ativamente presentes em suas terras até a atualidade, sem perder força. A disputa por uma terra considerada santa por dois povos que enxergam a si mesmos como merecedores resultou, entre outras coisas, na desapropriação geográfica forçada de uma grande parcela do povo palestino. Esta mudança imposta levou não apenas à reorganização populacional, mas também impactou sua construção cultural. A perda não só de territórios mas também de legitimidade e representatividade política foi responsável por moldar traços marcantes no amálgama que une o povo palestino, ou seja, sua identidade nacional. Tem-se como objetivo permear a análise da obra de Joe Sacco com discussões acerca do conflito israelo-palestino e de seus reflexos na formação do povo palestino. O trabalho estrutura-se em capítulos responsáveis por fornecer conceitos e contextos necessários para uma familiarização com o tema, iniciando-se com um 10

breve histórico da trajetória profissional do autor, seguido por uma introdução aos conceitos básicos de identidade e uma contextualização histórica da Palestina desde o final do século XIX, e então finalizando o trabalho com a análise da obra de Joe Sacco propriamente dita. Para tanto, foram consultadas fontes acadêmicas como livros e artigos e também fontes jornalísticas, como jornais, revistas, releases de editoras, entre outros. A análise será feita tanto no aspecto discursivo, examinando o conteúdo trazido por Sacco da viagem à Palestina que deu origem ao livro que aqui estudamos, quanto no aspecto morfológico, para a qual foram tomados como base autores como Will Eisner e Paulo Ramos e na qual serão investigadas as decisões estéticas do autor e a mensagem que carregam. A análise será composta por estes dois aspectos pois acredita-se que sejam complementares e que assim esta torne-se mais rica e abrangente. Optou-se pela utilização de imagens em tamanho grande inseridas no texto, para que detalhes não fossem prejudicados na reprodução. Por este motivo, algumas das imagens encontram-se ligeiramente deslocadas do texto a que são referentes, para que pudessem ser alocadas com mais espaço. Para realizar esta análise, primeiramente foram lidas obras acadêmicas acerca da história e identidade nacional palestina, a fim de obter uma base teórica sobre o assunto, e em seguida foi realizada a leitura crítica da obra, buscando possíveis pontos de convergência ou divergência entre os autores já lidos e o livro de Joe Sacco, bem como a reflexão sobre como tais representações foram feitas pelo autor da história em quadrinhos. Buscou-se em fontes acadêmicas a confirmação de dados históricos ou afirmações contundentes do autor, a fim de identificar a qualidade jornalística de seu trabalho. Entende-se que a construção de uma história em quadrinhos passa completamente sob a valoração da mão e das crenças de seu autor, levando consigo muito do que o próprio autor pensa e acredita (não necessariamente mais do que qualquer produção jornalística), ainda mais no caso de Joe Sacco, que desempenha tanto o papel de roteirista quanto o de ilustrador. Por este motivo, a intenção da pesquisa aqui apresentada não consiste em provar a veracidade dos relatos feitos por Sacco em seu trabalho, mas sim medir a proximidade das mensagens que porta com estudos acadêmicos sobre a Palestina, bem como comentar o impacto do aspecto morfológico da HQ nessas mensagens.

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2 O AUTOR E SUA OBRA Para embasar o estudo da obra de Joe Sacco, faz-se conveniente, entre outros fatores, compreender suas origens enquanto profissional, suas referências e suas motivações, de maneira a construir um histórico que permita identificar seu local de fala, além de entendê-lo no contexto da produção de histórias em quadrinhos. Para tanto, desenvolveu-se este capítulo com base em entrevistas concedidas pelo autor, matérias de revistas e jornais e biografias fornecidas por editoras. Joe Sacco nasceu em 2 de outubro de 1960 no arquipélago de Malta, ao sul da Europa, e aos 12 anos mudou-se para Los Angeles com seus pais, onde viveu sua adolescência e juventude, formando-se mais tarde em jornalismo pela Universidade de Oregon em 1981. Já graduado, chegou a seguir carreira como jornalista trabalhando em diversos jornais, porém o escopo de possibilidades que encontrou não atendeu a suas expectativas, levando-o à insatisfação profissional (SACCO, 2011, p. xvii) Frente a esta situação, decidiu então viajar,interrompendo sua carreira jornalística e dedicar-se integralmente à atividade que até então levava como hobbie, a produção de histórias em quadrinhos. Seu contato com a produção de HQ (histórias em quadrinhos) tem origem na infância, por unir tanto as práticas do desenho e da conotação de histórias, ambas apreciadas pelo autor quando criança. Mais tarde, ao longo de sua carreira, torna-se evidente que não apenas seu distanciamento do jornalismo foi temporário, como foi justamente o viés jornalístico de sua obra em HQ que o lançou ao reconhecimento mundial. Afastando-se de sua antiga rotina em terras americanas, Sacco passa um semestre em seu país de origem. Lá publica o primeiro quadrinho já lançado em língua maltesa chamado “Imħabba Vera”, ou “Amor verdadeiro” (KABUTAKAPUA, 2009, p.1). De volta aos Estados Unidos, em 1986, muda-se para Los Angeles, onde trabalha como editor de notícias da revista The Comics Journal, uma das mais importantes publicações na área de histórias em quadrinhos à época, voltada a levar ao público notícias sobre o mercado de HQ, resenhas sobre as últimas publicações, entre outros temas relacionados. Em 1988, volta a viajar para a Europa e segue sua produção de HQ. Fruto de suas experiências durante esta viagem, lança seis edições de sua revista independente Yahoo, na qual relata sua estadia na Europa. Muitas das histórias lançadas na série Yahoo foram relançadas em 2006 na

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compilação Derrotista, que reúne alguns dos primeiros trabalhos do autor e revela sua versatilidade tanto em termos de temática quanto de traço. Nesta obra, encontram-se trabalhos que vão de tiras satíricas acerca do modo de vida contemporâneo a histórias autobiográficas, como por exemplo em “In the Company of Long Hair” (originalmente contida na edição número dois da publicação Yahoo), na qual Sacco relata os meses que passou em turnê na Europa com uma banda de rock fazendo os registros da viagem em HQ. Destaca-se a aparição de dois capítulos compostos por duas de suas primeiras histórias com temática de

Figura 1 - Capa do livro Derrotista. Fonte: Editora Conrad.

guerra, originalmente produzidas em 1990, nas quais o autor relata situações de uso de força aérea contra civis (SACCO, 2006). Na primeira delas, intitulada “Quando boas bombas acontecem para pessoas más” e encontrada na página 121, Sacco dedica-se a colocar em evidência o descaso e até a crueldade com que são tratadas as populações civis em três ocasiões específicas: o bombardeio britânico à Alemanha entre 1940 e 1945, o bombardeio dos Estados Unidos ao Japão entre 1944 e 1945 e o bombardeio também americano à Líbia, em abril de 1986. Este trecho constrói-se através de um conjunto de citações de documentos e matérias jornalísticas da época nas quais os comandantes pronunciaram-se a respeito de suas posturas nos conflitos, demonstrando severidade ao tratar o ataque às populações civis como consequência inevitável ou ainda como manobra imprescindível para o enfraquecimento do inimigo. Ao final do capítulo, encontra-se uma extensa lista com as referências de cada uma das citações.

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Figura 2 - Abertura do capítulo Quando boas bombas acontecem a pessoas más. Fonte: Sacco, 2006.

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O segundo capítulo com temática de guerra, iniciado na página 133, traz a história chamada “Mais mulheres, mais crianças, mais rápido”, em que Sacco conta a experiência vivida por sua mãe durante os bombardeios alemães e italianos a Malta durante a II Guerra Mundial.

Figura 3 - Trecho do capítulo Mais mulheres, mais crianças, mais rápido. Fonte: Sacco, 2006.

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O nome da história provém de uma declaração de Stanley Baldwin em 1932, o então primeiro-ministro britânico, na qual ele afirma (SACCO, 2006, p. 134): Acho bom que o homem comum perceba que não há força na Terra que possa protegê-lo de ser atingido por uma bomba. O bombardeio sempre o atingirá. A única defesa é o ataque, ou seja, matar mulheres e crianças mais rápido que o inimigo para salvar a si mesmo.

No final do ano de 1991, viajou para o Oriente Médio, onde obteve a vivência necessária para desenvolver sua obra mais importante e reconhecida, chamada Palestina, lançada em 1995 e que lhe rendeu o prêmio American Book Awards em 1996. Responsável por popularizar o termo “jornalismo em quadrinhos” (já antes dirigido a outros autores), a obra lançou o nome de Joe Sacco às vistas da mídia e do grande público. No Brasil, a obra foi lançada em duas partes: em 2000 a primeira, chamada Palestina - uma nação ocupada e em 2003 a segunda, chamada Palestina - na faixa de Gaza, tendo sido a primeira premiada com o troféu HQ Mix daquele ano como melhor graphic novel estrangeira. Sendo o tema presente trabalho, a obra será abordada e explorada com mais profundidade adiante.

Figura 4 – Capa de Palestina – uma nação ocupada e Palestina – na faixa de Gaza. Fonte: Editora Conrad.

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Dando continuidade à sua rotina produtiva, Sacco volta a jar em 1995, desta vez com destino à Bósnia, mais especificamente à capital Sarajevo. Lá, produz o aclamado título Área de segurança Gorazde, lançado em 2001 e vencedor do prêmio Will Eisner no mesmo ano como melhor novela gráfica original. No livro, o autor fala sobre as áreas de segurança criadas pela ONU com o intuito de proteger os cidadãos da Bósnia dos ataques sérvios, representando com riqueza de detalhes as situações de limpeza étnica vivi-

Figura 5 – Capa de Área de Segurança Gorazde. Fonte: Editora Conrad.

das nesta ocasião. Em 2001, Sacco volta à Bósnia e como resultado de sua estadia produz “Uma história de Sarajevo”, lançada em 2003. Com profusão de detalhes e olhar humanizado, a obra aborda os conflitos étnicos instalados na Bósnia em 1991, na disputa entre sérvios, croatas e muçulmanos para obter o controle do país. O autor narra a impotência do governo em conter e administrar o conflito e dualidade entre bom e mau encontrada nos guerrilheiros, utilizando para isso a figura de seu amigo sérvio Neven, através de suas memórias e de

Figura 6 – Capa de Uma história de Sarajevo. Fonte: Editora Conrad.

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relatos de sua própria participação ativa no conflito. Entre gibis de super-heróis, quando criança Sacco também consumia exemplares relançados da Revista Madda década de 50, as quais podem ter sido sua primeira influência para o tom irônico e crítico que emprega em seus trabalhos. Sua produção jornalística guarda grande relação com os preceitos do que se conhece como Jornalismo Gonzo, traçados por Hunter S. Thompson, influência declarada do autor. Gonzo é o estilo de narrativa literária em que o autor mergulha-se profundamente na história e na ação, fazendo com que a objetividade deixe de estar necessariamente em primeiro lugar. Em entrevista à revista Mother Jones, o autor fala sobre a influência de Michael Herr em seu trabalho, escritor e ex-correspondente de guerra nova-iorquino que ficou conhecido por sua obra Despachos, lançada em 1977, a qual traz memórias de seus tempos como correspondente da Guerra do Vietnã. Apesar de afirmar na mesma entrevistaque a influência de Robert Crumb em seu trabalho resume-se à forma de desenhar (influência esta de fato muito perceptível em suas páginas, sempre muito carregadas de texturas e detalhamentos), é possível identificar outros pontos de forte semelhança no trabalho de ambos os autores, sendo a principal delas o uso do sarcasmo na construção de críticas sociais (no caso de Sacco, mais comum seus trabalhos provenientes do início de sua carreira).

SACCO E A PALESTINA Nas páginas da HQ Derrotista (e em sua própria carreira profissional), é possível perceber em Joe Sacco certa inquietude e já um interesse a respeito de territórios em conflito. Na história “Uma experiência nojenta” (SACCO, 2006, p. 98 - 109), tem-se um intenso fluxo de ideias disposto em escrita livre, quase sem pontuação, combinados a ilustrações muito carregadas em texturas que narram um momento de conflito interno, onde o autor fala consigo mesmo e repassa seus pensamentos em busca de uma melhor compreensão de seu conflito pessoal, o que denota sua personalidade intranquila.

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Figura 7 – Trecho do capítulo Uma história nojenta. Ilustração 08 – Trecho do capítulo Uma história nojenta. Fonte: Sacco, 2006. Fonte: Sacco, 2006.

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Já no capítulo “Como amei a guerra” (SACCO, 2006, p. 159 - 191), o qual o autor representa a si mesmo intensamente impactado com a situação de guerra que acompanha com ansiedade pela televisão, por vezes chegando a priorizá-la em detrimento de seu convívio social (evidentemente com o tom irônico característico de sua obra). As páginas deste capítulo trazem a fusão do tema de guerra com questões pessoais do autor (como, por exemplo, seu conturbado relacionamento a distância), o que evidencia ainda mais o fato de estas duas esferas encontrarem-se em níveis similares de relevância para o autor (levando em conta os exageros admitidos no suporte de HQ).

Figura 8 – Trecho do capítulo Como amei a guerra. Fonte: Sacco, 2006.

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O capítulo traz também algumas das primeiras menções de Sacco acerca da questão palestina. Na página 170, há o diálogo entre Sacco e um colega palestino no qual o autor pergunta ao outro se não teria sido cinismo da parte de Saddam Hussein ligar o Kuwait à questão palestina (da qual o governante era fiel apoiador), obtendo como resposta “Sim, mas ele é o único que fala a nosso respeito”. Diante desta afirmação acerca da importância da visibilidade para a causa palestina e do pouco apoio recebido por parte da comunidade internacional, Sacco decide viajar poucos meses depois para a Cisjordânia e a Faixa de Gaza para dar início ao que viria a ser seu mais notável trabalho, de acordo com a editora Fantagraphics (sem data). Segundo Joe Sacco (2011), a obra Palestina é fruto de sua viagem a este território realizada entre dezembro de 1991 e janeiro de 1992, motivada por sua crescente percepção acerca da defasagem e imparcialidade encontradas no retrato do conflito entre Israel e Palestina feito pela mídia ocidental. Foi originalmente publicada em nove capítulos em formato de revista durante o período entre 1993 e 1994, sendo nos anos seguintes compilada em dois volumes, Palestina - Uma nação ocupada (que abrange do primeiro ao quinto capítulo) Figura 9 – Sacco conversa sobre a questão palestina. Fonte: Sacco, 2006.

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e Palestina - Na faixa de Gaza (incluindo do sexto ao nono capítulo), como já citado anteriormente. Mais tarde, em 2001, foram unidas em um único exemplar chamado apenas de “Palestina”. Em entrevista concedida à Al Jazeera em 2008, Sacco comenta que, com esta publicação, tinha o objetivo quase inconsciente dar aos palestinos uma voz para que mostrassem a si mesmos, sobrepondo os estereótipos de terroristas ou vítimas tão amplamente difundidos no Ocidente, não negando esses papéis, mas buscando apresentá-los de uma maneira que se distanciasse dessa visão que Said (2007) chama de orientalista. Pretendia não apenas apresentar o cotidiano dos residentes da zona de conflito, mas sobretudo trazer à tona sua humanidade, seus hábitos e práticas enquanto pessoas comuns, pois, como dá a entender em sua obra (SACCO, 2011, p.8), isto facilita a identificação entre o leitor e o personagem.

Figura 10 – Capas das publicações de Palestina Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 11 – Capa de publicação da série Palestina feita à mão por Sacco. Fonte: Sacco, 2010.

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Segundo José Arbex Junior, o autor obteve êxito em seu objetivo de trazer à comunidade ocidental uma representação humanizada (e não vitimizada) da Palestina (ARBEX apud SACCO, p. xv): Sacco dá uma cara aos árabes sem cara. Mostra o sofrimento das mães palestinas, a ansiedade das crianças. o terror dos homens diante de um exército formidável, poderoso e fascistoide. Mas ele nao faz um „panfleto palestino‟. Ao contrário, há todo um esforço para mergulhar no componente profundamente humano da tragédia palestina. Produz seus heróis e seus covardes, suas esperanças e suas frustrações. Nisso residem a legitimidade e o poder deste livro: no mundo em que imperam as imagens, Sacco produz as suas próprias imagens de mundo para subverter, questionar uma percepção uniformizada pela grande mídia.

Logo nas primeiras páginas de Palestina encontra-se uma passagem que exemplifica este pensamento, na qual Sacco diz que compadece-se ao assistir pela televisão as trágicas notícias do cotidiano palestino, mas que contudo este ainda lhe era um povo sem rosto, uma massa uniforme distante de sua realidade. Em suas palavras: Se os palestinos tem afundado por décadas, tem sido expulsos, bombardeados, chutados a torto e a direito, mesmo quando isso chegou ao jornal da noite eu nunca soube um nome ou lembrei de um rosto, muito menos do café da manhã deles.

O autor demonstra o cuidado de evitar realizar um retrato vitimizado ou idealizado (o que poderia acontecer por conta da simpatia que nutre pelo povo e pela causa palestina), e por vezes demonstra em suas páginas sua impaciência ou descontentamento com a ansiedade dos palestinos para contarem suas histórias. Com a ironia característica de seu trabalho, ora escancarada, ora sutil, expõe comportamentos insistentes e até com certo tom de infantilidade, explicados pelo sentimento de urgência dos palestinos para se desvencilharem da situação em que vivem. Na página 28 de Palestina - Uma nação ocupada, tem-se um exemplo onde Sacco é pressionado por um estudante palestino a conseguir-lhe uma bolsa de estudos de engenharia nos Estados Unidos, colocando ao fim da conversa um bilhete no bolso do autor contendo seu endereço, o qual foi “esquecido para sempre”, em suas palavras. A obra Palestina voltou a atenção da crítica para a direção de Sacco, por conta da profundidade e sensibilidade expressas em sua pesquisa e na representação por ele construída (SAID apud SACCO, 2011, p. xi), sendo esta obra responsável

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por traçar novos parâmetros na produção de quadrinhos enquanto mídia documental. Tal reconhecimento levou Palestina a ser frequentemente colocada em paralelo com Maus, de Art Spiegelman, que em 1992 ganhou o prêmio Pulitzer de jornalismo e literatura e é considerado um clássico contemporâneo das histórias em quadrinhos. A obra consiste na narrativa de Vladek Spiegelman, judeu polonês e pai de Art Spiegelman, sobre sua experiência no campo de concentração de Auschwitz, contando-a ao filho. O autor dedica-se a fazer um relato incisivo e impactante a respeito de uma realidade permeada por crueldade e abusos, no seu caso o Holocausto, e a faz sem sentimentalismos. Da mesma maneira que, posteriormente, Sacco busca retratar o lado humano de seus personagens sem enquadrá-los em dicotomias de bem e mal, mostrando características pessoais de suas personalidades que vão além da esfera que contempla a situação de conflito (conforme comentando acima), ArtSpiegelman também o fez em Maus. Spiegelman retrata seu pai como um homem valoroso e destemido, mas também expõe seu lado sovina, racista e mesquinho. É possível perceber que ambos os autores possuem a intenção de produzir o retrato de um povo com enfoque em seu aspecto mais humano e individual a partir de um ponto de vista definido (a perspectiva dos judeus, no caso de Spiegelman, e dos refugiados palestinos, no caso de Sacco), dando rostos à massa anônima e impessoal, e não objetivando destacar os mocinhos e vilões da história (ainda que estes postos sejam naturalmente ocupados, dadas as perspectivas adotadas.

SEU PROCESSO PRODUTIVO O processo de escrita de Joe Sacco desenvolve-se de maneira fluida e orgânica, seguindo o fluxo de pensamento do autor e sem rígidos planejamentos de cronograma, de forma que, segundo o autor, nunca se saiba se terá a duração de “seis semanas ou seis meses”, conforme entrevista concedida à Cardiff University. A etapa das ilustrações é realizada com dedicação aos detalhes e à relação de verossimilhança entre os locais e situações retratados e sua representação em desenho, podendo levar um longo tempo.

A exemplo, pode-se citar sua última grande obra,

“Notas sobre Gaza” (a qual trata sobre as incursões israelenses em nas cidades de Khan Younis e Rafah, em 1956, que resultaram na morte de centenas de civis pales-

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tinos), que apresenta um intervalo de sete anos entre a última viagem de Sacco à faixa de Gaza, em 2003, e a publicação da obra, em 2010. Como explicado nas páginas iniciais da edição especial de Palestina, o processo de coleta de informações para esta obra consistiu em entrevistas formais anotadas em um caderno e a alimentação de um diário, onde o autor costumava anotar diariamente todas as suas impressões, acontecimentos, encontros, conversas, e o que mais julgasse pertinente (SACCO, 2011, p. vxiii). Para a produção desta obra, o autor adotou a utilização de fotografias como base para suas ilustrações, o que confere a seus cenários grande similaridade ao real. Ao realizar entrevistas, o autor costuma pedir ao entrevistado permissão para tirar uma foto sua, a fim de utilizá-la na produção das ilustrações. Segundo o autor, em quase todos os casos recebe esta autorização; caso contrário, faz rápidos rascunhos durante a própria entrevista.

Figura 12 – Rascunhos do diário de viagem de Sacco. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 13 – Comparações feitas pelo autor entre seus desenhos e as fotografias que utilizou como referência, e seus comentários. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 14 – Comparações feitas pelo autor entre seus desenhos e as fotografias que utilizou como referência, e seus comentários. Fonte: Sacco, 2010.

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A diagramação de suas páginas varia de construções sóbrias e lineares a composições caóticas e carregadas, variando de acordo com o conteúdo. A maior parte das páginas do livro é composta por quadros e legendas irregulares, dispostos nas páginas como se fossem fotos ou bilhetes, dando conotação informal de diário de viagem, recurso que de fato foi utilizado por Sacco para coletar o conteúdo presente no livro, como mencionado anteriormente. O detalhamento facial dos personagens de Sacco deve-se às críticas que recebeu de autores palestinos por conta de seu traço cartunizado, o qual, segundo eles, falhava em transmitir a seriedade e gravidade dos episódios que se propunha a representar; segundo o autor, as primeiras publicações de Palestina caracterizavamse pelo estilo bigfoot, ou seja, muito caricaturais, e após as críticas passou a se esforçar para alcançar certo realismo(termo utilizado pelo próprio autor). No entanto, autor diz nunca tê-lo alcançado totalmente, seja pela falta de educação formal na área de desenho, seja por não fazer questão de perder completamente suas características de cartum (SACCO, 2011, p. xvii). É recorrente que se levantem questionamentos acerca da validade do título de jornalismo em HQ que convencionalmente atribui-se às principais obras de Joe Sacco, principalmente pelas representações que o autor faz de si mesmo dentro dos eventos que está relatando. Há quem alegue ser seu trabalho pouco objetivo, parcial, e por este motivo distante da prática do jornalismo. O autor, por sua vez, defende que a ideia de um jornalismo cem por cento objetivo, livre de qualquer subjetividade, é idealizada e não corresponde com os veículos tradicionais tanto quanto normalmente se acredita. Em suas palavras, sua intenção com Palestina não foi ser objetivo, mas sim honesto (SACCO, 2011, p. xvii). Em entrevista ao jornal The Quietus, Sacco aponta o fato de que mesmo em mídias mais tradicionais no ramo jornalístico, como televisão e jornais, a informação passa pelo crivo de quem a escreve ou edita, representando assim uma versão específica da história, e não uma verdade. Em um grau que varia de acordo com o trabalho e com o profissional e que ajuda a determinar a seriedade do produto final, o jornalismo é sempre permeado pela visão daquele que o pratica. Em suas palavras: O jornalista está sempre „na jogada‟, na vida real. As pessoas estão sempre respondendo a um indivíduo muito específico. Obviamente há muito mais acontecendo do que se está recebendo [a partir de fontes de notícias mainstream]. Pelo menos eu quero deixar o leitor a par disso.

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Apesar de amplamente reconhecida, a crítica mais recorrente à obra Palestina é a de que Sacco mostrou apenas o lado palestino do conflito. Segundo o autor, tal observação é justificada, entretanto afirma não ser esta característica fruto de descuido, e defende que Israel já encontra-se suficientemente bem defendida e representada pela grande mídia norte-americana e pelos grandes líderes políticos dos Estados Unidos. Apesar disso, é possível encontrar passagens da obra em que o autor representa israelenses de maneira também humanizada e solidários com a causa palestina. Exemplo disso é a passagem a partir da página 253 (figura 15, a seguir), na qual Sacco conhece duas jovens israelenses e passa seu dia ouvindo seus posicionamentos a respeito das ocupações israelenses e da solução binacional para o conflito (oras concordando, oras discordando com o sionismo), e também nas páginas 18 e 19 (figuras 16 e 17, a seguir), nas quais o autor presencia uma manifestação popular composta por judeus contrários aos assentamentos em terras palestinas. Segundo a revista Opera Mundi, o autor não cedeu à tentação de militar politicamente em favor da causa palestina, e em alguns trechos relata de maneira cômica sua posição de “observador de rapina”, sempre à espera de alguma tragédia ou conflito que lhe renda uma boa história. Como exemplo, a revista cita o trecho escrito presente na página 208 de Palestina, que diz: Estou piscando rápido, tirando fotos na minha cabeça e pensando: „isto vai ficar ótimo numa página dupla de gibi‟ (...) Consegui, tá entendendo? Viajei milhares de quilômetros de avião, ônibus e táxi para chegar exatamente aqui: Jabalia, o campo de refugiados mais imperdível da Faixa de Gaza, o berço da Intifada, uma Disneylândia de abandono e pobreza (...) Estou me beliscando em um carro, numa escuridão numa enchente, tonto por causa da ferocidade lá fora, pensando: „Pode vir, eu aguento‟, mas a minha janela está bem fechada.

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Figura 15 – Sacco conversa com jovens israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 16 – Manifestação popular contra assentamentos israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 17 – Manifestação popular contra assentamentos israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

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Nota-se, neste capítulo, que regiões em conflito sempre estiveram presentes entre seus assuntos de interesse no que tange sua profissão, e a partir daí é possível começar a entender o envolvimento do autor com o tema. Entende-se também o interesse ainda mais profundo queo autor desenvolveu pela história palestina, o que o motivou a ir até o local e produzir o livro que aqui é analisado. No capítulo seguinte, será feita uma pausa no tema de história em quadrinhos para que se possa elucidar alguns conceitos básicos a respeito de identidades nacionais, etapa fundamental para que se possa delimitar claramente o tema de estudo desta pesquisa.

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2 IDENTIDADE NACIONAL: CONCEITOS BÁSICOS Considerando que esta pesquisa propõe-se a entender a relação da obra Palestina de Joe Sacco com a identidade nacional palestina, julga-se de grande importância explicitar aqui os conceitos de identidade que tomaremos como parâmetro de análise, para isso utilizando definições de autores como Stuart Hall e Manuel Castells. Desta forma, este capítulo dedica-se a discutir estes conceitos a fim de criar uma base teórica para a realização da análise. Sob o discurso do senso comum, o tema identidade é abordado vulgarmente como um atributo inato de cada ser humano, intrínseco em sua essência, uma parte em seu imútavel âmago reponsável por estabelecer seus valores e posicionamentos perante o mundo e si mesmo. Tais “configurações”, por assim dizer, são vistas quase que como biológicas, como se, de tão fundamentais, estivessem enraizadas no DNA e nada se pudesse fazer para alterá-las. Apesar de amplamente difundida, a percepção em questão se mostra bastante simplista e determinista, uma vez que não parte de um questionamento crítico inicial e, portanto, ignora uma série de fatores envolvidos na construção da identidade, justificando com o acaso um conceito que pode ser explicado através de uma análise cultural. Para realizar o presente estudo, faz-se necessário primeiro desmistificar o que é identidade e como funcionam seus mecanismos, fazendo uso de conceitos estabelecidos por estudiosos da área. Para iniciar a discussão, é interessante citar os três tipos de indivíduos definidos por Stuart Hall (1992), a fim de entender a progressão do conceito de identidade ao longo da história. O primeiro deles é o sujeito do Iluminismo, “indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo „centro‟ consistia num núcleo interior” (HALL, 1992, p.11). O segundo é chamado de sujeito sociológico, que também possui um núcleo interior, o qual, por sua vez, é produto de sua relação com as pessoas a sua volta (HALL, 1992, p.11).. Por fim, o terceiro deles é conhecido como sujeito pós-moderno, o mais consoante com os estudos culturais atuais, cuja identidade é definida historicamente e não biologicamente, transformada constantemente por estímulos externos e que pode ser diferente de acordo com cada ocasião (HALL, 1992, p. 13).

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Segundo Manuel Castells (1996, p. 23), toda e qualquer identidade é uma construção, sendo produto da interação do indivíduo com um conjunto de fatores como geografia, biologia, religião, intituições de poder, fantasias pessoais, memórias coletivas e sua história, entre outros. Cada indivíduo ou grupo social processa as informações e experiências advindas destes fatores de acordo com seu próprio contexto, reorganiza seus significados e a partir disso produz parâmetros e gera identificações. É, portanto, um processo cultural. Resumidamente, o autor sintetiza esta ideia conceituando identidade como um “processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais, interrelacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (CASTELLS, 1996, p.22). Considerando o caráter variável dos aspectos envolvidos nesta construção, é possível compreender que as identidades não são fixas ou inatas, estando sujeitas a modificações de acordo com o contexto do indivíduo. Desta forma, Stuart Hall (1992, p.39) argumenta que se deve enxergar identidade como um processo em andamento, inclusive sugerindo que fosse utilizado o termo identificação, denotando uma produção de significado não necessariamente permanente. De acordo com o autor, “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já existe dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é „preenchida‟ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”. (HALL, 1992, p.39) Castells (1996, p.23) destaca a importância de diferenciar identidade do que os sociólogos chamam de papéis. O autor explica que papéis são definidos por normas estabelecidas por instituições e organizações da sociedade, determinando funções. Ou seja, de acordo com sua colocação na sociedade, cada indivíduo deverá desenvolver determinadas funções (como um governante deve prezar pela honestidade ou uma mãe deve zelar pela segurança de seu filho, por exemplo). Identidades, por sua vez, geram significados que são incorporados pelos indivíduos e são capazes de produzir valores. É possível que, em dado momento, papel e identidade se cruzem, ainda segundo o autor, que cita como exemplo o papel de pai, que tornase uma identidade no momento em que esta seja a mais importante autodefinição do indivíduo. Para explicar como se dá o jogo de identidades e esclarecer como múltiplas identidades podem ser incorporadas por um único indivíduo, Hall utiliza-se do exem36

plo de George Bush que, em 1991, ainda como presidente dos EUA, encaminhou à Suprema Corte o juiz Clarence Thomas, negro e de posições políticas conservadoras, com o objetivo de restaurar o posicionamento conservador na Corte. Com tal indicação, o presidente angariou o apoio tanto de eleitores brancos, que, mesmo podendo ter preconceitos raciais contra Thomas, o apoiaram por conta de sua postura conservadora, e eleitores negros, persuadidos pela identificação racial com o juiz. Durante o processo de indicação ao senado, Thomas foi acusado de assédio sexual pela colega negra Anita Hill. Mais fragmentações aconteceram: alguns negros permaneceram apoiando Thomas com base no fato de ser negro, enquanto outros priorizaram a questão sexual. As mulheres negras estavam especialmente divididas de acordo com a identidade com que mais se identificavam, a de mulher ou a de negra. Os homens negros dividiam-se de acordo com sua identidificação com o sexismo ou com o liberalismo. Os homens brancos separavam-se em grupos em que prevaleciam não apenas questões políticas, mas também o racismo ou o sexismo. As mulheres brancas conservadoras apoiavam Thomas por conta de sua posição contrária ao feminismo. As mulheres brancas feministas eram contra Thomas, pois priorizavam a questão sexual à política liberal. O exemplo nos mostra que as identidades podem ser contraditórias, dependendo do ponto de vista que se adota, e essas contradições são percebidas tanto na sociedade quanto dentro da própria cabeça do indivíduo. Segundo Castells (1996, p.24), a construção de identidades se dá sempre dentro de contextos marcados por relações de poder. Portanto, o autor propõe uma distinção entre os tipos de construção e origens dessas identidades, categorizandoas entre identidades legitimadoras (aquelas inseridas por instituições de poder com o intuito de expandir e justificar sua dominação), identidades de projeto (que utilizam-se de material cultural de qualquer natureza para reposicionar um determinado grupo dentro da sociedade, com o objetivo final de atingir uma transformação generalizada) e identidades de resistência, com a qual identifica-se a construção da identidade palestina, como se explicará mais adiante. Castells define esta categoria de identidade como sendo “criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade” (CASTELLS, 1996, p.24).

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Como se pode compreender de acordo com os autores até então citados, identidade é o conjunto de significados guardados por um indivíduo e que são um produto cultural, fruto de suas vivências e referências particulares. Em outra escala, pode-se dizer que o mesmo acontece com as chamadas nações, através da identidade nacional. De acordo com Stuart Hall (1992, p. 49), da mesma forma que a identidade individual, a identidade nacional não é intrínseca ao ser humano, presente nele desde seu nascimento, mas sim uma construção que se forma e transforma através de representações. O autor cita o exemplo de que só é possível saber o que é “ser inglês” a partir do momento em que se conhece o conjunto de características que dão sentido à ideia de “inglesidade” (ou englishness). Assim sendo, quem nasce no Brasil, por exemplo, não é apenas cidadão brasileiro, mas sim participante da ideia de nação tal qual sua cultura é representada. Em outras palavras, a identidade nacional constitui um discurso, ou seja, um modo de construir sentidos que influencia tanto as ações do indivíduo quando a maneira com a qual ele enxerga a si mesmo (HALL, 1992, p. 51). Citando Benedict Anderson (1983 apud HALL, 1992, p. 51), Hall define identidade nacional como “comunidade imaginada”, uma vez que os significados que a compõe permeiam a história da nação e as memórias coletivas que unem o passado com o presente, bem como a forma como é representada. Complementando o conceito de comunidades imaginadas, Castells (1996, p. 69) define identidade nacional como “comunidades construídas nas mentes e memória coletiva das pessoas por meio de uma história e de projetos políticos compartilhados”. Stuart Hall (1992) destaca o equívoco recorrente de tomar a etnia (conjunto de características culturais como língua, religião, tradições, identificação com o lugar) como elemento fundamental da identidade de um povo, recordando que nenhuma das nações europeias apresenta população 100% homogênea cultural e etnicamente. Em suas próprias palavras, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL, 1992, p. 63).Ao invés de etnia, Castells (1996, p. 46) afirma que o que constitui o principal fator de unificação de uma nação são suas histórias compartilhadas, e argumenta utilizando-se do exemplo dos Estados Unidos, uma nação altamente diversificada em termos étnicos e sociais, mas cujo povo mantém-se unificado através do compartilhamento de uma história e de um projeto comum a todos, ainda que sob diferentes perspectivas. Segundo Hall (1992, p. 52), as histórias nacionaiscontadas nas famílias, escolas e passadas de geração a geração representam experiências compartilhadas e constroem um lugar comum no imaginário popu38

lar que liga a vida presente com o passado, lugar este que precede a existência das pessoas e continua a existir após sua morte. Castells (1996, p. 70) coloca também o idioma bem desenvolvido como um importante instrumento de auto reconhecimento e estabelecedor de fronteiras invisíveis, por ser o elo entre a vida pública e a privada, o passado e o presente, independente do reconhecimento recebido por parte das instituições do Estado. Existem ainda outros mecanismos capazes de ativar o imaginário comum de um determinado povo e com isso gerar sentimento de unidade, como por exemplo a ênfase nas origens e a ideia de atemporalidade, ou seja, a identidade nacional como algo “que sempre esteve lá”, a raiz das essências da nação (HALL, 1992, p. 53). Desta forma, os indivíduos participantes de uma mesma nação sentem-se parte de um algo maior que vai além de suas próprias histórias e seu próprio tempo, como que unidos em uma grande e ancestral família. Outro mecanismo, também relacionado com a ideia de atemporalidade, são os mitos fundacionais, que consistem na história que marca a origem de determinado povo, sempre localizadas num passado muito distante. (HALL, 1992, p. 55). Desta forma, os indivíduos enxergam um início bem marcado para sua história enquanto grupo, tendo assim a sensação de merecimento e credibilidade. Existe ainda a ideia de povo ou folk puro (HALL, 1992, p. 56), como que detentor de uma identidade essencial semelhante àquela entendida através do sujeito do Iluminismo definido por Hall, o qual citamos no início do capítulo. É importante entender que o nacionalismo contemporâneo não necessariamente deve estar voltado à construção de um Estado-Nação soberano e que, assim sendo, as nações são entidades independentes do Estado (CASTELLS, 1996, p. 46). A lealdade e identificação que formam o que hoje entende-se como identidade nacional, nas nações pré-modernas eram direcionadas a tribos e aldeias, as quais passaram a ter suas semelhanças e diferenças reunidas sob uma única estrutura governamental, caracterizando os chamados Estados-Nação (HALL, 1992, p. 49). Em outras palavras, as nações podem ter sua existência anterior à formação de um Estado que a represente, uma vez que baseiam-se em fatores históricos e culturais, conforme afirmam os autores estudados. Uma vez entendidas as definições de identidade e identidade nacional, faz-se relevante traçar um histórico geral dos episódios que contribuíram para a construção do que hoje compreende-se como identidade nacional palestina (mais especifica39

mente, aqueles a partir do final do século XIX e início do século XX, decorrentes do avanço do movimento sionista em direção à Palestina). O próximo capítulo tem como objetivo explanar tais acontecimentos e seu reflexo no processo de construção cultural da Palestina.

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4 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA A relação com o outro apresentou-se como sendo um fator decisivo na formação da identidade nacional palestina. Mesmo já possuindo tradições culturais próprias e certo senso de coletividade (ainda que pré-nacional, como será explorado mais adiante), é inegável a relevância do conflito com Israel no processo de formação dessa identidade, por ter colocando em constante cheque a autonomia, legitimidade e até mesmo a existência do povo palestino. Entendendo essa importância, entende-se também a necessidade de compreender as origens históricas deste conflito, de maneira a possibilitar que se enxergue com maior clareza suas raízes. Neste capítulo, será realizada uma breve elucidação sobre os acontecimentos que levaram à tal tensão política e cultural, tomando como base principal a obra Identidade Palestina, de Rashid Khalidi (1997). Até o século XIX, a estrutura produtiva vigente na Palestina apresentava terras coletivas, de posse do Estado, cultivadas de maneira compartilhada pelos habitantes e sem registro. A partir da metade deste século observou-se um notável desenvolvimento, representado por fatores como o aumento das atividades de imprensa, crescimento na área da educação em regiões urbanas e expansão da economia de mercados, entre outros. Dentre estes fatores destaca-se o início da privatização de territórios, proveniente da promulgação da legislação que permitia a aquisição de terras feita pelo governo Otomano, a qual entrou em vigência em 1858 e iniciou um importante processo de concentração de terras nas mãos de poucos, considerando que, pela primeira vez, se tinha a oportunidade de adquirir terras legalmente. Os maiores beneficiários destas novas leis foram os comerciantes de áreas costeiras prósperas como Beirut, Haifa, Jaffa e Gaza, que estavam em processo de enriquecimento por conta do recente desenvolvimento econômico. Os prósperos mercadores das áreas urbanas passaram a enxergar as regiões litorâneas produtivas como grandes oportunidades de investimento, dadas as condições facilitadas para a transferência de títulos determinadas pela nova lei, começando então a adquirir terras, sem impedir que os camponeses continuassem cultivando-as e exercendo seus trabalhos, como faziam enquanto a terra era legalmente comunitária. Esta medida revelou-se vantajosa não apenas para os mercadores árabes, mas também para a parte da população europeia simpatizante das ideias sionistas, corrente de pensamento que começou a se desenvolver na segunda metade do sé41

culo XIX que defendia a criação de um Estado judeu independente e soberano sobre as terras onde originalmente existiu o Reino de Israel (Eretz Israel), ou seja, no território habitado pela população palestina. No início do sionismo, muitos de seus adeptos europeus acreditavam ser a Palestina uma terra vazia e com pouco cultivo, ideia que foi reforçada e difundida pelos principais líderes do movimento, como Theodor Herzl, Chaim Nachman Bialik e Max Mandelstamm (tendo Herzl nunca mencionado os árabes em sua principal obra Der Judenstaat, ou O Estado Judeu) (KHALIDI, 1997, p.101). Entretanto, o autor destaca que, ainda que outros focos de lealdade estivesse presentes entre os árabes residentes da Palestina antes da I Guerra Mundial, a ideia de uma Palestina como fonte de identidade e também como uma comunidade com interesses compartilhados já estava enraizada (KHALIDI, 1997, p. 156). Segundo Khalidi (1997, p.94), do início do século XX até 1914 a população judaica na palestina dobrou, indo de 30.000 pessoas para 60.000, um crescimento maior do que a média apresentada pela população total neste período, que nos anos anteriores à I Guerra Mundial era estimada em cerca de 720.000 habitantes, de acordo com estudos de dados do governo otomano (KHALIDI, 1997, p.96). Ainda de acordo com o autor, a grande concentração dos judeus encontrava-se nas cidades, e estes apresentavam perfis altamente religiosos e apolíticos, diferentemente dos judeus residentes nos campos, os quais eram bem posicionados quanto as políticas sionistas. É importante ressaltar que, mesmo sendo verdade que muitos palestinos venderam suas terras, seja por ganância ou falta de patriotismo, ou mesmo por necessidade ou desconhecimento acerca de quem tomaria posse em seu lugar, a maior parte das terras vendidas partiu das mãos de proprietários não-palestinos, para os quais estas vendas não representavam nada além de transações econômicas. Segundo Khalidi (1997, p. 112), proprietários ausentes e não-palestinos foram responsáveis pela venda de 143.577 dunums(equivalente a 58% do total de terras vendidas), proprietários ausentes mas palestinos pela venda de 88.689 dunums (equivalente a 36%) e os proprietários locais por apenas 15.200 dunums (equivalente a 6%), sendo o dunum a unidade de medida utilizada no Império Otomano equivalente a 1.000 m². Os confrontos entre árabes e judeus começaram quando os sionistas habitantes das regiões rurais passaram a expulsar os trabalhadores árabes, substituindo-os por trabalhadores judeus e transformando territórios em assentamentos.Muitos dos 42

camponeses, acostumados com o direito de cultivar suas terras, só descobriam que não detinham mais o direito de cultivar tais propriedades no momento de sua expulsão por parte dos novos proprietários.A situação se agravou entre 1903 e 1905, quando uma leva de imigrantes judeus sionistas provenientes da Rússia instalaramse nas novas colônias. Estes imigrantes traziam uma forte ideologia socialista, com ideais de conquista do trabalho e conquista do solo, o que basicamente significava intensificar as expulsões dos árabes (KHALIDI, 1997, p.100) Ao tirar o emprego dos camponeses árabes, os colonos judeus não estavam apenas criando uma situação de empoderamento que compensasse as diásporas históricas pelas quais passaram. De fato, estavam disputando terras já habitadas e cultivadas, opondo-se a trabalhadores sem posses, os quais ainda acreditavam ter direitos sobre a terra (KHALIDI, 1997, p. 105). Em abril de 1909, como resposta a uma crescente onda de violência, a então organização secreta de defesa judaica Bar-Giora fundou publicamente um grupo paramilitar chamado Ha-Shomer(ou O Guardião), o qual tinha o objetivo de guardar as terras destinadas a novos assentamentos judeus e apresentava ideologia violenta e ostensiva atuação armada. Segundo estudiosos, Ha-Shomer originou o que hoje se chama Haganah, grupo que deu início às organizações militares oficiais israelenses e que atua até a atualidade, mostrando-se de vital importância para a disseminação do sionismo (KHALIDI, 1997, p. 106). Alguns fatores já representavam pontos de unidade e identificação entre os palestinos, como a religião, o pertencimento local e os hábitos de cultivo, e a oposição às vendas de terras a organizações sionistas revelou-se como um novo e importante fator que somou-se aos anteriores. Este sentimento em comum foi responsável por unir os camponeses e os intelectuais urbanos e fazê-los lutar juntos por suas terras, em alguns momentos de forma violenta. Os palestinos urbanos, que opunham-se à ideologia sionista, encontraram na resistência dos palestinos das regiões interioranas a luta prática de seus pensamentos, e vice e versa. Assim, formou-se mais um elemento de identificação compartilhado entre palestinos rurais e urbanos, fazendo-os enxergar a si mesmos como partes de um mesmo povo, que compartilham uma mesma história e um mesmo destino (KHALIDI, 1997, p.114). Esta consonância de posicionamentos deu-se não apenas pela experiência compartilhada, mas também pelos esforços de alguns meios de comunicação palestinos, como por exemplo o jornal Filastin, fortemente antissionista, cujos editores tiveram a iniciativa 43

de distribuir suas publicações nas vilas do interior de Jaffa, sabendo que esse era um dos principais alvos de colonização. Também o jornal Al-Karmil empenhou-se na luta antissionista, focando em difundir por todo o território os acontecimentos das áreas rurais. Devido a seu intenso trabalho, seu editor Najib Nassar chegou a ser citado em fontes sionistas como “pessoalmente envolvido em colaborar com a resistência dos camponeses” (KHALIDI, 1997, p.115). Com a derrota da Tríplice Aliança na I Guerra Mundial, o Império Otomano (então aliado político da Alemanha) encerrou seus 400 anos de domínio sobre o território da Palestina e concedeu o mandato à Grã-Bretanha, oficializado em 1919 na Conferência de San Remo. Pouco antes, em 1917, a Grã-Bretanha havia firmado um compromisso com as lideranças sionistas afirmando que realizaria seus maiores esforços para facilitar e concretizar o objetivo da criação de um Estado exclusivamente judeu, compromisso este que ficou conhecido como a Declaração de Balfour (ELNIMR, 1993, p.54). As dificuldades enfrentadas durante a I Guerra Mundial expandiram o senso de identidade nacional entre os palestinos, além de aprofundar as ideias de “destino compartilhado” e da imagem do “outro”, por enfrentarem todos os mesmos oponentes. (KHALIDI, 1997, p.193). Apesar de terem seguido apresentando uma frente de resistência unificada perante seus oponentes nos anos seguintes à I Guerra Mundial, as elites palestinas foram aos poucos sendo marcadas por divisões, não apenas internas mas também com relação aos jovens pobres e desapropriados das cidades de Jaffa e Haifa (dinâmicos centros culturais e econômicos da época) e com camponeses do interior. Essa situação foi ainda acentuada pela crise econômica mundial da década de 1930, que acabou atingindo também a Palestina e, principalmente, pelas grandes ondas de imigração judaica provenientes das perseguições nazistas. Só no ano de 1935, mais de 60.000 imigrantes judeus instalaram-se na Palestina (KHALIDI, 1997, p.189), número que aumentou para 100.000 ao fim da II Guerra Mundial (EL-NIMR, 1993, p. 54). Este clima de instabilidade somado à descrença gerada pela falta de efetividade das lideranças dos movimentos nacionalistas culminou no início espontâneo de uma greve geral, iniciada em abril de 1936, seguida também por um levante armado de duração de três anos, do qual o Mandato Britânico perdeu brevemente o controle, mas logo em seguida pôs em prática campanhas de pesada repressão para retomar o domínio (KHALIDI, 1997, p. 189). Ao fim da revolta, a economia árabe da Palestina 44

estava devastada pelos anos de greve, boicotes e represálias britânicas, e seu exército com várias baixas – 5.000 mortes e 10.000 feridos (números relativamente altos numa população de 1 milhão de árabes). Foi em situação de instabilidade que a Palestina entrou no período da II Guerra Mundial, e desta maneira enfraquecida enfrentou seu maior desafio, em 1947. Com uma liderança dividida, finanças muito limitadas, forças militares não-centralizadas e sem aliados confiáveis, os palestinos viramse diante de Israel, um oponente politicamente unificado e com instituições centralizadas e altamente motivadas (KHALIDI, 1997, p. 190). Em 1947, a ONU aprovou o plano de partição da Palestina, reservando para a população árabe da Palestina (a qual representava 70% da população) 47% do território, e deixando o restante para Israel. A Palestina rejeitou esta proposta e reivindicou independência, mas com o alto nível de financiamento e armamento israelense e o apoio pouco efetivo de outros países árabes, acabou não obtendo êxito (ELNIMR, 1993, p.54). Israel possuía apoio político tanto dos EUA quanto da URSS, que deram suporte à partição do território e imediatamente reconheceram o novo Estado de Israel. (KHALIDI, 1997, p.191). Cerca de 1,4 milhão de palestinos(equivalente a mais da metade da população árabe da Palestina) foram forçados a deixar suas casas e tornar-se refugiados, e em 1949 Israel já dominava 77% do território total. (EL NIMR, 1993, p.54). Ao final do processo de desapropriação, mais de 400 cidades e vilas na Galileia, na região litorânea, na área entre Jaffa e Jerusalém, e no sul do país foram despovoadas, anexadas a Israel e habitadas por israelenses, e a maior parte de sua

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Figura 18 – Histórico da ocupação Israelense na Palestina. Fonte: www.viomundo.com.br

população árabe foi dispersa pela região como refugiados. Exércitos de diversos países árabes entraram em território palestino para tentar impedir que expedições sionistas instalassem mais assentamentos judeus fora de suas fronteiras, porém não obtiveram êxito, resultando na perda das importantes cidades de Jaffa e Haifa, entre outras (KHALIDI, 1997, p.178). O período compreendido entre os anos de 1949 e 1964, quando ocorreu a ascensão da OLP (Organização para Libertação da Palestina), caracterizou-se por uma diminuição nas manifestações nacionais palestinas, período este que ficou conhecido como “os anos perdidos”. Este hiato deve-se, em partes, ao fato de que a sociedade palestina encontrava-se devastada pelo processo de ocupação israelense vivido entre novembro de 1947 e maio de 1948, no qual encontraram-se desorganizados diante de um movimento sionista fortemente armado (KHALIDI, 1997, p.178). Durante os anos perdidos, dificilmente se enxergava um centro de gravidade claro para os palestinos, devido à sua fragmentação por conta das expulsões decorrentes da criação do Estado de Israel. O maior grupo de palestinos encontrava-se na Jordânia, à qual foi anexada a região central da Palestina conhecida como Cisjordânia em 1949, e estes receberam cidadania jordaniana. Menos de 200.000 palestinos permaneceram em seus territórios incorporados ao Estado de Israel, e estes recebe46

ram cidadania israelense, porém permaneceram impedidos de realizar quaisquer manifestações de sua identidade nacional. Aqueles localizados na Faixa de Gaza, sob comando do Egito, ou refugiados na Síria e no Líbano, também enfrentaram barreiras para a organização política, livre expressão e manifestações de sua identidade. (KHALIDI, 1997, p.179) Nos campos de refugiados, os locais de trabalho, escolas e universidades frequentados por palestinos nos anos após 1948 representaram o ponto de origem de uma nova geração de grupos nacionalistas que começaram clandestinamente em 1950 e emergiram publicamente em 1960. Uma união estudantil na Universidade do Cairo chamada de Ittihad Talabat Filastin (The Union of Palestinian Students, ou União dos Estudantes Palestinos) foi fundada em 1950 por um estudante de engenharia participante da guerra de 1947-49, chamado Yasser Arafat, que posteriormente ficou conhecido como o líder da Autoridade Palestina, presidente da PLO e líder do partido Fatah (fundado por ele, Abu Jihad, e outros na mesma década, na Faixa de Gaza). Na metade da década de 1950, estes grupos já haviam se desdobrado em uma grande rede de organizações nacionalistas que, apesar de pequenas e vulneráveis e de possuírem agendas distintas, foram responsáveis por ressuscitar entre os palestinos sua força nacionalista (KHALIDI, 1997, p.180). A PLO foi idealizada pelo presidente egípcio Jamal Abdal-Nasser e fundada em 1964 pela Liga Árabe sob sua tutela (BECKER, 1984, p.41). A grande expansão israelense foi vista como um empecilho para al-Nasser, cujo principal objetivo era estabelecer a hegemonia egípcia. Percebendo que não seria possível vencer Israel através da força, após diversas derrotas militares na tentativa de removê-lo de seu caminho, o presidente entendeu como mais vantajoso o fortalecimento dos países árabes como um todo (seguindo os preceitos do Arabismo), podendo assim representar um oponente mais poderoso diante de Israel. Al-Nasser utilizou-se do sentimento geral de humilhação tido pelos países árabes em relação à conquista da Palestina por parte dos judeus e tomou-o como um elemento de unificação, estabelecendo a criação da OLP em janeiro de 1964. (BECKER, 1984, p.44). A organização proclamava seu objetivo como “forjar a consciência palestina” na geração presente e condenava o movimento sionista como imperialista, racista e fascista (BECKER, 1984, p.47). Como já citado, este foi o marco do fim dos chamados anos perdidos da Palestina, a partir do qual os movimentos nacionalistas voltaram conquistar notoriedade. 47

Esta nova e crescente onda de nacionalismo e organização política culminou no maior e mais expressivo levante popular da Palestina, a chamada Intifada, que teve seu início em Gaza no ano de 1987 e rapidamente espalhou-se pelo restante dos territórios palestinos, e na qual mais de 500 palestinos foram assassinados por tropas israelenses (ABU-LUGHOD, 1990, p. 06). A intifada foi um produto das experiências existenciais compartilhadas pelos palestinos ao verem sua identidade e seu direito a autodeterminação negados pelo Mandato Britânico e por Israel. Seu principal objetivo era a reconquista dos palestinos do poder sobre o próprio destino e, segundo Abu-Lughod (1990, p.04), representou uma luta de poderes numa situação em que há desigualdade, sendo um a colônia e o outro a metrópole. Historicamente, é comparada com a revolta de 1936-39, pois ambas representaram levantes espontâneos da população e foram reconhecidas tanto pela sociedade palestina quanto por seus inimigos (na primeira, o Mandato Britânico, e na segunda Israel). A Intifada foi promovida por uma geração mais organizada e capacitada estrategicamente do que as anteriores, que adquiriu autoconfiança ao observar que historicamente, apesar das muitas derrotas, foi capaz não somente de manter forte sua identidade nacional e política mas também de tornar-se mais preparada para embates políticos. Palestinos de comunidades em Israel, Jordânia, Golfo Pérsico e outros lugares do mundo também participaram de maneira muito positiva, prestando apoio político, financeiro, moral e informacional (ABU-LUGHOD, 1990, p.03). Com sua experiência histórica, as lideranças dos comitês populares e da OLP entenderam a inviabilidade de tentar de atingir seus objetivos através ações militares, uma vez que Israel tinha acesso a uma vasta gama de poderio bélico norte-americano por conta do apoio de recebia dos Estados Unidos e a entrada de armas iguais ou semelhantes nos territórios palestinos era praticamente impossível, dado o intensivo bloqueio israelense nas fronteiras (ABU-LUGHOD, 1990, p. 06). Assim sendo, realizou-se de maneira extremamente militante mas sem o uso de armas, utilizando como meios de ataque apenas pedras e protestos. Em decorrência da expressiva onda de protestos que foi a Intifada, a qual alcançou notoriedade internacional, foi promovido um encontro entre o governo de Israel e a liderança da OLP, representada por Yasser Arafat, e com mediação de Bill Clinton (então presidente dos Estados Unidos) em Oslo no ano de 1993, com o objetivo de realizar acordos de paz. As negociações realizadas no Tratado de Oslo foram menos positivas do que muitos acreditaram, pois aconteceram sob regras al48

tamente desfavoráveis para a Palestina, elaboradas por Israel e pelos Estados Unidos. Regras essas que, por exemplo, não permitiam que o representante palestino fosse de Jerusalém, de fora de territórios ocupados, ou com qualquer ligação com A OLP (a qual era tida apenas como mais uma organização terrorista) (KHALIDI, 1997, p.xviii). As negociações giravam em torno do nível de autonomia que a Palestina poderia ter sob a contínua ocupação militar de Israel na Cisjordânia e na faixa de Gaza, e não efetivamente a favor dos interesses palestinos, como reconhecimento enquanto nação, fim da ocupação israelense, remoção das colônias ilegais, resolução da questão dos refugiados e determinação de fronteiras (KHALIDI, 1997, p.xviii). Mesmo com as falhas no acordo de Oslo, é evidente que a Intifada de 1987-1991 trouxe bons frutos à Palestina, pois fez com que os governos israelenses vissem que sua ocupação não era cem por cento e indefinidamente garantida. Assim formou-se o plano de fundo encontrado por Sacco ao chegar na Palestina em sua viagem que originou a obra que aqui será estudada. Evidentemente outros episódios posteriores aconteceram e influenciaram a identidade nacional como esta se apresenta hoje; no entanto, este capítulo limitou-se a estudar o período até o início da década de 1990 pelo fato de esta ter sido a época em que Joe Sacco fez seus registros de viagem, sendo assim mais condizente entender a história do país até este momento. Possuindo uma base teórica e histórica, é possível iniciar a análise que representa o principal objetivo deste trabalho, a qual será realizada no capítulo seguinte.

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5 ANÁLISE DA OBRA DE JOE SACCO SOB A ÓTICA DA IDENTIDADE NACIONAL PALESTINA Entendendo o alto poder de representatividade que as identidades nacionais podem apresentar, bem como sua importância no contexto histórico palestino enquanto ferramenta de fortalecimento, pode-se perceber a relevância de analisar o conteúdo de publicações que construam uma ideia de “palestinidade”. Identidades nacionais são, por vezes, capazes de conferir credibilidade e legitimidade a povos que identifiquem-se como nações, e, particularmente no caso palestino, este sentimento compartilhado é um dos poucos recursos disponíveis na tentativa de obter reconhecimento internacional. Por este motivo, considera-se relevante realizar uma análise das mensagens transmitidas por Joe Sacco a respeito da identidade desta nação em sua obra “Palestina”, sendo esta a publicação de história em quadrinhos que trata mais diretamente do tema. É importante destacar que não há a pretensão de aqui citar e explorar todos os aspectos da identidade palestina, pois isso demandaria uma pesquisa de complexidade muito maior; assim sendo, e considerando que a identidade constrói-se gradativamente a partir de processos históricos e culturais, optou-se por priorizar nesta pesquisa os traços identitários palestinos fortalecidos após 1948, relacionados principalmente à diáspora e às ocupações israelenses, devido à maior proximidade contextual e temporal com o objeto de estudo, a HQ de Joe Sacco. A análise que se iniciará agora abordará dados culturais provenientes da contextualização histórica feita no capítulo anterior e também os aspectos morfológicos utilizados para transmiti-los. Os autores utilizados como base no que diz respeito às características da cultural palestina permanecerão os mesmo estudados até então, combinados com Will Eisner e Paulo Ramos, que forneceram a base para a análise morfológica da HQ. A metodologia escolhida para a análise consiste em destacar os traços de identidade detectados na pesquisa teórica e comentar sua representação feita por Sacco, exemplificando com trechos em que podem ser encontrados.

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Não se pode falar sobre a identidade nacional palestina sem comentar o fatídico ano de 1948, marcado pelo episódio que pode ser considerado um divisor de águas na história palestina e que é recordado nas páginas de Palestina. “A Grande Catástrofe”, ou al-Nakba, é o nome dado pelos palestinos à diáspora acontecida após a instituição do Estado de Israel, quando um número estimado em 711.000 palestinos residentes no território que passou a pertencer a Israel viram-se forçados a deixarem suas casas e terras e viverem em situação de refúgio (estimativa proveniente do Relatório Suplementar da Comissão de Conciliação para Palestina, da Organização das Nações Unidas, publicado em 23 de outubro de 1950) A partir da página 145, Sacco evidencia as péssimas condições de sobrevivência encontradas nos campos de refugiados, com a afirmação “alguns dos buracos mais negros do mundo estão a céu aberto”. As páginas 146 e 147 trazem uma visão panorâmica do capo de Jabalia,um dos locais mais densamente povoados do mundo, e o que se vê é um local repleto de lama, lixo, e pedras sobre os telhados para evitar que estes voem com as tempestades (figura 19).

Figura 19: Representação panorâmicado campo de refugiados de Jabalia. Fonte: Sacco, 2010.

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Na página 148, Sacco representa sua visão pela janela do carro (figura 20), pela qual enxerga crianças e adultos agasalhados em meio a um cenário de precariedade, além de tropas israelenses que rondam a região. A silhueta do autor à frente dessas imagens evidencia sua posição enquanto observador estrangeiro, externo às cenas que está presenciando, e é condizente com os momentos em que expressa espanto, medo e até raiva (como se pode perceber na passagem da página 24, representada na figura 21 na página a seguir, em que Sacco refere-se aos palestinos com xingamentos e superioridade, por conta de uma situação anterior, na qual dois meninos o enganaram para tomar seu dinheiro; a utilização do plano contra-plongée evidencia sua sensação de superioridade).

Figura 20: Sacco observa o campo de dentro de seu carro. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 21: Sacco age com desdém perante os palestinos. Fonte: Sacco, 2010.

A lembrança da catástrofe, que envolve a vida em exílio e em constante conflito, além do desejo de retornar à sua terra natal, constituem grande parte da identidade nacional palestina (MAAS, 2013, p. 07). Nas palavras de Schiocchet (2013):

Al-Nakba significa, literalmente, “catástrofe”, e é, portanto, o “mito da criação” do refugiado palestino. Ser um refugiado, para a maioria dos palestinos, não é a forma ideal de experenciar sua identidade. Para os palestinos entre os quais estudei, de forma geral, viver a palestinidade em sua plenitude significava ser capaz de viver de alguma forma que evocava o passado pré-Nakba. Havia um esforço geral entre os palestinos de buscar a possibilidade de viver a plenitude de sua identidade em um futuro que incluía um retorno a um passado pré-Nakba.

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Sacco ilustra o episódio do Nakba em dois trechos distintos, através do relato de um senhor palestino que teve sua propriedade tomada em 1948. No primeiro trecho (figura 22), que encontra-se na página 15, observa-se uma representação emotiva e humanizada, com a figura do personagem representada em close enquanto ele relata sua experiência. O personagem conta sobre a expulsão que sofreu junto de sua família e sobre a prisão de seu pai que, idoso, não foi capaz de fugir, e pontua a história evidenciando sua dor, com a frase “foi um dia negro quando deixei minha terra.” Conta também que em certa ocasião recebeu autorização israelense para visitar sua antiga terra, a qual encontrou deserta. Nestes quadros, o autor representa de maneira especial o desejo de retorno do personagem e de sua família, conferindo dramaticidade à cena ao ilustrá-los abraçados em plano contra-plongée: ao utilizar este ponto de visão, o autor traz uma carga sentimental à cena e coloca os personagens em posição de força, em vista da desapropriação que sofreram. O olhar distante dos personagens reforça essa conotação, além de trazer suspense à cena, criando

uma

expectativa

sobre o que estariam observando, expectativa esta que em seguida é sanada pelo quadrinho seguinte, o qual mostra a família diante de sua terra já deserta. O formato horizontal do quadro auxilia na percepção do espaço deserto e amplo. Figura 22: Família em suas antigas terras. Fonte: Sacco, 2010.

Já o segundo trecho (figura 23), localizado na

página 225, traz uma outra abordagem do relato, focada em um maior detalhamento do processo de expulsão, tanto através do relato escrito quanto através de ilustrações. Percebe-se uma linguagem mais diretado que na passagem anterior, pelo uso de um grid mais rigoroso, ressaltado pelo intervalo preto entre os quadrinhos, e mai54

or linearidade na disposição das legendas, conferindo sobriedade e objetividade ao relato. O autor finaliza o trecho repetindo o quadro anterior em que o personagem afirmava ter sido negro o dia em que deixou sua terra, porém com maior zoom em seu rosto, de maneira a tornar o personagem mais humanizado.

Figura 23: Processo de expulsão. Fonte: Sacco, 2010.

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Sayegh (2011, p.03) exemplifica o impacto dos acontecimentos do Nakba na autoimagem e auto identificação do povo palestino, comentando expressões utilizadas para designar grupos de indivíduos de acordo com sua proximidade temporal com o Nakba, de forma que aqueles já adultos em 1948 passaram a ser conhecidos como “a geração da Palestina” (jeel Filastin), os nascidos imediatamente antes ou depois de 1948 como “a geração do Nakba” (jeel al-Nakba) e aqueles expostos aos movimentos de resistência ainda na infância como “geração da revolução” (jeel alThawra). Em pesquisa, Sayigh (2007, p. 110) nota que ao descrever os primeiros anos como refugiados, camponeses palestinos utilizam expressões como “morte”, “paralisia”, “enterro”, “não existência”, “perdemos nosso rumo”, “não sabíamos o que fazer e nem pra onde ir”, “estamos como ovelhas no campo”, observação esta que pode ser comparada à utilização da expressão “um dia negro” no trecho citado acima. De acordo com a autora, as gerações antigas ainda sofrem a perda, e demonstram seu desejo de retornar chegando ao ponto de pedir a suas crianças que prometam enterrar seus corpos na Palestina, quando enfim voltarem à sua terra. Schiocchet (2013, p. 96) comenta a relevância do episódio do Nakba apresentando-o como mito de criação dos refugiados palestinos, condição esta que, para a maioria dos palestinos, não resume a maneira ideal de vivenciar sua identidade nacional; dentre os palestinos envolvidos na pesquisa do autor, o significado de viver a palestinidade em sua plenitude evocava o passado pré-Nakba. Segundo El-Nimr (1993, p. 56) a Palestina é lembrada como um paraíso pelos refugiados, principalmente quando contrastada com a realidade da vida em exílio ou sob ocupação israelense; ainda assim, os palestinos fazem questão de preservar a memória de maus momentos que viveram, como a pobreza, os massacres sionistas e os maus tratos por parte de donos de terras, e enfatizam a continuidade entre as lutas palestinas do período anterior a 1948 e as que se seguiram após o Nakba. Em entrevistas, Sayegh (2011, p. 07) constatou que a predominância da identidade palestina permanece forte nos jovens refugiados no Líbano, mesmo que estes tenham tido pouco ou nenhum contato com sua terra de origem. Ao perguntar a um dos entrevistados o que diria se um estranho lhe perguntasse “quem é você?”, a resposta foi “Sou palestino, moro no campo de refugiados de Bourj Barajneh”, de maneira a preservar a identificação com seu local de origem. Sacco representa esta mesma característica na página 167 (figura 24): segundo o autor, as crianças dos campos derefugiados são ensinadas a diferenciar o lugar de onde vêm (vilarejos 56

destruídos pelos sionistas em 1948) do lugar onde moram (Campo de Nuseirat, Quarteirão 2, por exemplo).

Figura 24: Crianças refugiadas. Fonte: Sacco, 2010.

Outro ponto de grande destaque e que se mostra evidente a cada página do livro Palestina é o forte posicionamento de resistência por parte dos personagens contra as ocupações e medidas limitadoras realizadas por Israel. O livro traz inúmeras passagens representando manifestações, e logo em seu início, na página 20, encontra-se a representação de um pequeno ato contra os assentamentos israelenses (figura 25, na página seguinte). Sacco utiliza expressões fortes nos rostos dos personagens e utiliza-se de ironia para evidenciar o forte envolvimento das pessoas com sua causa, dizendo: “Eles estão gritando como se suas vidas dependessem disso!” (considerando que o motivo de seu protesto de fato tem importância vital e influência direta em seus cotidianos). A forma como o autor dispôs as caixas de legenda irregularmente na página também contribui para a representação da intensidade do momento. A resistência é um forte marcador identitário na nação palestina, uma vez que, historicamente, este povo encontra constantemente a necessidade de lutar por aceitação e legitimidade perante a comunidade internacional, e inclusive defender a própria existência, em ocasiões como a da afirmação da ex-primeira ministra

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Figura 25: Ato contra assentamentos israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

israelense Golda Meir, que defendia suas investidas sionistas com o argumento de que “não existia tal coisa como um povo palestino” (KHALIDI, 1997, p,147). Em página quase que exclusivamente composta por texto, Sacco inclusive cita esta afirmação de Meir na página 42 de Palestina(trecho exemplificado na figura 26, na página a seguir), à qual responde, evidenciando seu anseio por dar uma voz aos palestinos: Mas eles existiam, sim, e existem ainda, aqui estão eles… e seus filhos, e os filhos dos seus filhos… e eles ainda são refugiados… fracos, pode ser, de acordo com o ponto de vista da imprensa, mas ainda refugiados… o que, eu acho, quer dizer que estão esperando para voltar… Mas voltar para o quê? Perto de 400 vilarejos palestinos foram destruídos pelos israelenses durante e depois da guerra de 1948… Palestinos que fugiram foram declarados “ausentes”... suas casas e suas terras, declaradas “abandonadas” e “não cultivadas” e então expropriadas para assentamentos de judeus.”

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É comum o argumento de que a identidade lestina não passe de uma reação ao sionismo, mas, mesmo não estando este pensamento completamente equivocado, é importante destacar que os elementos de identificação e apego com a terra já existiam anteriormente às ocupações judaicas. Como já citado neste trabalho, a identidade se desenvolve a partir do encontro e do conflito, por assim dizer, com a figura do “outro”; porém, não se pode colocar o movimento sionista como ponto de partida desta construção, pois antes desse processo os palestinos já haviam se encontrado frente a frente com governantes turcos, com o to Britânico e mesmo outros povos árabes. O povo árabe já demonstrava ligação com sua terra, mesmo que

em

termos

pré-nacionais,

dada

a

forma

ria como cultivavam e se relacionavam com o território. (KHALIDI, 1997, p. 154). Observava-se forte apego à terra proveniente de um sentimento religioso por parte de cristãos e muçulmanos (e judeus também, em nor escala), os quais compartilhavam a ideia de de por considerarem o local sagrado.

Além

disso,

destaca-se também uma relação íntima com territórios locais, como cidades e vilas as quais apresentavam tradições tão consolidadas que geraram o que Khalidi (1997, p. 153) chama de patriotismo urbano. Isso pode ser observado na frequente referência ao nome de cidades em sobrenomes ou como complementos de nomes de famílias, como por exemplo al-Nabulsi (para aqueles provenientes de Nablus), al-Ghazzawi (para os de Gaza) e al-Khalili (para os de Hebron, uma vez que o nome da cidade em árabe é al-Khalil) (KHALIDI, Figura 26: Golda Meir. Fonte: Sacco, 2010.

1997, p.153).

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A identidade dos camponeses palestinos, que costumava ser definida por características como profissão ou status social, após as ocupações israelenses tornouse uma identidade de luta, ao passo que estes camponeses tornaram-se refugiados (SAYIGH apud ERNI, 2013).A própria OLP, Facção paramilitar e política citada anteriormente tida pela Liga Árabe como a única representante legítima do povo palestino, enfatizava a importância dos indivíduos viverem em condições de refúgio e manterem firme sua auto identificação enquanto palestinos, de maneira a não sucumbir ao imperialismo israelense (SCHIOCCHET, 2013, p. 85). Conforme se pode perceber na fala do personagem Yusef, na página 92 da obra de Sacco (figura 27), não resta outra opção aos palestinos que não a resistência, para manter forte sua identidade. Após relatar seu período na prisão Ansar III, a maior prisão israelense, Yusef diz: “Não me importo se eles me prenderem. Não quero ir para a cadeia de novo, mas essa é a nossa vida.O que podemos fazer, a não sercontinuar a lutar?” De acordo com Sayigh (2007), a diáspora, juntamente com a exposição a diferentes influências e sistemas políticos acarretada por ela, foi responsável por estimular a tendência de formação de grupos pequenos e

Figura 27: Personagem falando sobre resistência. Fonte: Sacco, 2010.

facções, além de aumentar a pressão por união entre os palestinos, como meio de vencer a situação de refugiados em que se encontravam. O forte senso de coletividade e coesão desenvolvido entre estes camponeses a partir desta nova visão serviu de defesa contra a subordinação à nova cultura que naquele local se instalava e exerceu um papel crucial em sua capacidade de manter vivas suas tradições e sua identidade. Nas palavras de Schiocchet (2013, p. 84):

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Sua experiência compartilhada de desapropriação os tornava maḣrumīn, ao mesmo tempo que torna suas rotinas do cotidiano, a seus olhos, um ato de resistência. Através da linguagem, folclore e outras práticas sociais, eles insistiam em seu desejo de viver a plenitude de sua palestinidade - isto é, ser palestino sem o estigma do termo e os impedimentos práticos gerados por esse estigma.

A resistência armada é a principal manifestação desse traço identitário; de acordo com Sayigh (SAYIGH apud ERNI, 2013), a ideia de luta e a atuação dos chamados fedda’yyin, os ativistas, tornaram-se pilares centrais na identidade palestina. Esta identificação mostrou-se presente tanto nos palestinos residentes de Gaza e da Cisjordânia quanto naqueles habitantes de regiões ocupadas, inclusive em Israel. Depois de 1959, a popularidade dos movimentos de resistência cresceu entre os Palestinos vivendo em Israel. Foi neste ano que o Fatah, movimento criado em 1954 por estudantes palestinos refugiados e por anos representado por Yasser Arafat, tomou notoriedade, sendo o primeiro movimento de libertação nacional depois de 1948 (PAPPÉ, 2011, p. 73). Por volta de 1970, a filiação a facções de resistência já caracterizavam a expressão mais dominante de “palestinidade” e o meio mais genuíno de manifestar pertencimento nacional. Habitantes de campos de refugiados identificavam-se uns aos outros de acordo com suas posições em determinados grupos de resistência, além da conotação quase que familiar que os membros de uma mesma facção adquiriam entre si, gerando forte lealdade dentro do grupo. A ligação com tais grupos era tão forte que a filiação era vitalícia, inclusive com certa pressão para impedir casamentos de membros com indivíduos pertencentes a outros grupos. Muitos jovens juntavam-se aos grupos de resistência mesmo contra a vontade de seus pais, o que evidencia a sobreposição desta forma de identificação sobre outras existentes nos períodos pré-1948, como família e localidade. (SAYEGH, 2011, p. 04-05).

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É comum que garotos muito jovens ingressem nestes grupos de resistência, como se pode observar a partir da página 196 de Palestina. Neste trecho (figura 28), Sacco conta a história de Firas, um jovem que aos 13 anos de idade foi convidado para fazer parte da FPLP (Frente Popular para a Libertação da Palestina). O garoto contaque, até os 16 anos, sua função era grafitar muros com slogans da FPLP e distribuir panfletos, e, após isso, ficou responsável por alertar colaboracionistas (árabes que contribuem com o governo israelense fornecendo informações internas) e espancá-los se não mudassem

de

postura

após dois alertas. Sacco confere dramaticidade a este trecho do relato ao representar ele mesmo e o jovem sobre um fundo escuro, com apenas uma aura clara por trás de suas

cabeças.

Quando

questionado sobre a opinião de seus pais quanto a atirar pedras nos soldados israelenses, Firas diz que eles o apoiam. Nesta passagem é possível observar que Sacco sobrepõe os quadros com o rosto do menino para enFigura 28: Relato sobre grupos de resistência. Fonte: Sacco, 2010.

fatizá-lo enquanto locutor do relato. As divergências de

posicionamento entre as diferentes frentes de resistência acarretaram um enfraquecimento perante a elite política de Israel, que já se mostrava intransigente desde a ocasião de sua criação (PAPPÉ, 2011, p. 40). Após o Nakba, as reações de diferen62

tes grupos geraram posturas divergentes, com alguns optando pelo confronto direto, como é o caso do partido Hamas, e outros pendendo para negociações rumo a um Estado binacional, como é o caso do partido Fatah. A página 154 traz uma ideia interessante sobre a complexidade e a quantidade de nuances envolvidas no lado árabe do conflito. Nela, tem-se o exemplo de um homem que defende que a solução para o conflito seja a retomada das raízes islâmicas, abordando o fundamentalismo religioso, enquanto seu colega acredita na solução através da luta armada, afirmando que os israelenses só compreendem a força bruta. Quando questionado sobre a possibilidade de receber ajuda armamentista de outros Estados árabes, este responde “Os outros árabes não valem nada.” Na página seguinte, aparece um personagem que discorda das abordagens violentas, com as quais o primeiro, fundamentalista, concorda. Ainda que limitado, este exemplo demonstra a diversidade de vertentes de um mesmo movimento nacionalista palestino, que se desenrola por ainda outros caminhos e apresenta-se como uma questão de alta complexidade. Há os que pendem para as resoluções religiosas e os que optam por posturas estritamente políticas, dentre estes há os radicais e os moderados, há aqueles que creem na união das nações árabes e os descrentes dessa possibilidade, há os que preferem a luta armada e os que priorizam a luta sem o uso de armas, há os que defendem a solução binacional para o conflito e os que os condenam por “abrirem mão” de toda a Palestina que lhes pertence por direito. O fim do texto encontrado na página 49 (figura 29) complementa este pensamento, explicando o posicionamento divergente do Fatah e da Frente Popular. A página 197 (figura 30, na página seguinte), já utilizada aqui como exemplo, também exemplifica as divergências entre os grupos palestinos, através da fala de um jovem personagem, que afirma existirem problemas entre o Fatah e a Frente Popular e entre o Hamas e o Fatah, e termina com a cena de uma briga

Figura 29: Divergências entre grupos de resistência. Fonte: Sacco, 2010.

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generalizada entre membros do Fatah e da FPLP por conta de divergências de posicionamento. Nesta cena, percebe-se que Sacco utilizou um quadro aberto, sem requadro, o que contribui para que o leitor consiga imaginar a cena com uma noção maior de amplitude, com visão mais panorâmica, reforçando a ideia de que o local estava cheio de pessoas. No contexto temporal em que se insere a obra Palestina de Joe Sacco, no início da década de 1990, as filiações aos principais partidos Hamas e Fatah apresentavam ainda grande popularidade entre os jovens palestinos.Um exemplo deste forte envolvimento com as filiações pode

Figura 30: Cena de briga. Fonte: Sacco, 2010.

ser visto na passagem da página 228 da obra de Sacco (figura 31), em que uma música do Fatah é cantada a plenos pulmões por homens em uma festa pré-casamento, que diz: “Para todas as pessoas que nos odeiam, como é doce morrer pela Palestina. A Fatah não tem medo da morte, e a Fatah vai libertar a Palestina”. Sacco enfatiza a forma passional como cantam a música dizendo que “cantam como se quisessem arrancar o telhado”.

Figura 31: Personagens cantando músicas da Fatah. Fonte: Sacco, 2010.

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Entretanto, a entrevista realizada por Rosemary Sayegh (2011) apontou uma queda no apoio de jovens a tais partidos. De acordo com a autora, para aqueles identificados como al-Thawra (a geração da revolução, expostos à formação de grupos de resistência ainda durante sua infância)era quase que impossível dissociar sua auto identificação com a Palestina de sua participação em algum dos principais grupos de resistência (como Fatah, Hamas e a OLP), enquanto que os jovens entrevistados demonstravam ceticismo em relação a tais instituições, sob o ponto de vista de que estas não estariam comprometidas genuinamente com os interesses “da causa”, em suas palavras, mas sim utilizando-as como pretexto para perseguir os interesses econômicos de seus líderes (SAYEGH, 2011, p. 10). A resistência enquanto característica dentre os palestinos é tão marcante que por vezes optam por manter a situação de conflito com Israel ao invés de aceitar condições que, a seu ver, seriam degradantes perante sua história e cultura. Em reportagem do jornal Al Jazeera, Osama Hamdan, um dos principais líderes do partido Hamas,comenta o cessar-fogo proposto por Israel durante os conflitos de julho de 2014 julgando tal medida como insuficiente para a resolução do problema e reiterando que mantinham firmemente suas exigências na negociação, como a abertura do bloqueio a Gaza, libertação de prisioneiros capturados durante a quebra de um cessar-fogo em 2012 e permissão para construção de um porto e um aeroporto (os quais tem sua construção bloqueada pelo governo israelense). Hamdan afirma que qualquer acordo de longo prazo só seria possível se atendidas as demandas palestinas, pois, em suas palavras, “não se pode colocar os palestinos dentro de uma prisão e pedir que fiquem calados”. No mesmo período de conflito, em 2014, a adolescente Farah Baker ficou internacionalmente conhecida através de seus vídeos publicados no Youtube, nos quais relata seu cotidiano de adolescente vivendo em Gaza sob bombardeio. Em vídeo publicado em 05 de agosto de 2014, a jovem afirma que, evidentemente, gostaria que a guerra chegasse a seu fim, mas não sem o cumprimento de algumas condições, sendo a principal delas o fim do bloqueio a Gaza.

65

O

apego

pelos

ideais

cionalistas por parte da juventude palestina é evidenciado em diversas partes da obra de Sacco que, através de suas entrevistas, deixa muito claro o orgulho que os jovens tem de participarem dos movimentos de resistência em favor da libertação de seu país. Nas páginas 42 e 43 de sua obra, Sacco encontra um jovem que lhe mostra com orgulho seu cartão de identidade verde (figura 32). Todos os jovens a partir de 16 anos devem

Figura 32: Jovem exibindo sua identidade. Fonte: Sacco, 2010.

carregar um, e o seu era verde pois havia estado na prisão recentemente. O garoto manda seu amigo mostrar a Sacco sua identidade também, e este, envergonhado, mostra-lhe um cartão laranja, o que significa que não havia ido para a prisão. O jovem do cartão verde pontua: “Cartão verde: Intifada! Cartão laranja: sem Intifada!”. Na página 195 (figura 33), mais um exemplo de jovem que se sente constrangido por não ter passado pela prisão. Sacco fala sobre a exaltação da prisão na página 81 (figura 34), comentando

Figura 33: Personagem comenta sobre a vergonha de nunca se ter ido para a prisão. Fonte: Sacco, 2010.

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que esta é encarada como um fator de distinção social, destacando aqueles que realmente doam-se pela causa nacional e fazendo com que aqueles que não passaram por isso sintam-se em falta com os movimentos de resistência.

Figura 34: Sacco fala sobre a relação dos palestinos com a prisão. Fonte: Sacco, 2010.

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Em geral, a juventude palestina é representada por Sacco de maneira muito forte e corajosa, comprometida a defender sua nação, mesmo que isso represente arriscar suas vidas (exemplo disso é a garotinha presente na página 34, da figura 35, que conta ter tentado jogar pedras em soldados e por isso foi baleada). Por conta das 90 mil prisões que aconteceram nos quatro primeiros anos de Intifada, este tornou-se um assunto comum e corriqueiro entre os palestinos, além de encarado não como uma opção temida, mas como uma consequência certa de sua militância. É o Figura 35: Garota baleada por atirar pedras em soldados. Fonte: Sacco, 2010.

que se percebe na página 195 (figura 36), quando, ao ser perguntado por Sacco se não tinha medo de ir para a prisão de novo, um jovem responde: “Não importa se seremos presos ou não. Isso [viver sob dominação israelense] é uma prisão para nós”, e também na página 72 (figura 37, na página seguinte), em que um personagem afirma com expressão de raiva: “Não me importa o que façam comigo! Estou disposto a sacrificar tudo pelo meu país!”. Figura 36: Personagem expressa sua revolta. Fonte: Sacco, 2010.

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Figura 37: Personagem expressa nacionalismo. Fonte: Sacco, 2010.

Por conta desta forte característica de resistência, tanto da sociedade palestina quando da imagem desta sociedade construída por Sacco, o autor não poderia deixar de abordar outro tema de forte influência sobre a identidade palestina: a Intifada. Segundo Sacco (2010), o saldo da Intifada foi de 400 mortos e 20 mil feridos;Abu-Lughod (1990, p. 06) traz números ainda maiores, aumentando o número de mortos para 500. Conforme já comentado, para produzir a série de quadrinhos Palestina, Sacco esteve nos territórios ocupados entre o fim do ano de 1991 e o começo do ano de 1992 e, portanto, presenciou o fim da Primeira Intifada. Entre as páginas 120 e 125 de sua obra, relata um episódio típico do que foi esse levante popular. O trecho inicia-se com soldados israelenses em alerta, fazendo sua patrulha em Ramallah. Sacco dispõe os personagens em perspectiva para acentuar a impressão de que estão se aproximando. Na página seguinte (figura 38), representa a chegada repentina de vários jovens cantando, com faixas, bandeiras e um megafone,

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Figura 38: Jovem iniciando confronto com soldados israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

os quais logo ateiam fogo em pneus e bloqueiam a rua. Os quadros, que inicialmente apresentavam regularidade, ficam cada vez mais dinâmicos conforme a manifestação vai ganhando força. Na página 122, uma grande cena sem quadro representa os jovens gritando e recolhendo pedras e garrafas para usarem como munição. Neles, observa-se expressões faciais fortes, o sinal de vitória feito com os dedos em “V” e símbolos nacionalistas como a bandeira palestina e o keffiyeh. Os quadros que se seguem, nesta e na próxima página, apresentam formatos irregulares e são dispostos em sobreposição, assemelhando-se a uma porção de fotos jogadas sobre uma mesa. A página 123 traz talvez a mais icônica cena da Intifada, na qual os personagens aparecem correndo para lançar pedras e voltando para se protegerem (figura 39). Onomatopeias e linhas cinéticas (RAMOS, 2012, p.81) são utilizadas como re70

curso para conferir impacto e velocidade à cena. Alguns dos personagens aparecem em posições muito semelhantes à usada pelo grafiteiro inglês Banksy em sua famosa pintura sobre a Intifada (figura 40).

Figura 39: Primeira Intifada. Fonte: Sacco, 2010.

Figura 40: Obra do grafiteiro Banksy. Fonte: www.businessinsider.com.

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Na página 124 (figura 41), os quadros ao redor dos jipes funcionam quase que como lentes de zoom, destacando os objetos principais do restante do cenário, que segue intacto externamente aos quadros. No fim desta página, Sacco utiliza o próprio corpo da personagem como ferramenta para dar noção de movimento, repetindo-o sobre um cenário constante (RAMOS, 2012, p. 119).

Figura 41: Sacco faz uso de recursos visuais para reforçar sua mensagem. Fonte: Sacco, 2010.

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Além dos movimentos de resistência armados, destacou-se também a resistência cultural. Conforme Pappé (2011, p.76), a poesia foi uma das áreas na qual a identidade nacional palestina foi capaz de sobreviver após 1948, onde ficava representado o cotidiano dos refugiados, em narrativas que mesclavam temas como amor e ódio, nascimento e morte, casamento e família com assuntos políticos relacionados com a realidade de diáspora que estavam vivenciando. O autor explica ainda que o ativismo exercido pelos poetas palestinos era voltado mais à preservação das tradições e da identidade nacional palestinas do que a uma militância política de oposição. Joe Sacco não fez observações a respeito deste aspecto de resistência, mantendo seu trabalho focado em outras questões. Na vida em refúgio, a preservação de tradições e memórias coletivas também representa um movimento de resistência responsável por manter viva a identificação dos refugiados com sua terra natal, além de atuarem como fator de compensação por não terem uma organização estatal que os represente oficialmente, conferirem às gerações mais novas em exílio um senso de pertencimento e servirem como baluarte contra a cultura estrangeira que se aproximou daqueles que passaram a viver sob o governo de Israel (EL-NIMR, 1993, p.55). Inclusive El-Nimr (1993) destaca que a preservação de tradições palestinas revela-se ainda mais forte entre os palestinos que permaneceram em suas vilas sob o governo de Israel e em campos de refugiados do que entre aqueles que permaneceram em Gaza ou na Cisjordânia, pois viram-se isolados de todo o resto do mundo árabe e por isso encontraram a necessidade de resistir ao máximo a qualquer mudança. Schiocchet (2013, p. 08) coloca a mobilização coletiva de símbolos nacionalistas como “essencial para a manutenção da corporalidade da nação.” O mesmo posicionamento é percebido nas palavras do diretor do Centro de Pesquisa e Documentação da Sociedade Palestina da Universidade de Berseit, Saleh Abdel Jawad, que diz: Os israelenses estão esperando que as gerações de palestinos mais jovens esqueçam a watan (terra natal), portanto é imperativo que se preserve viva na mente da juventude a lembrança da vida nas vilas. Por mais que tenhamos falhado em nossa luta política [...] não precisamos perder nossa história. (MAAS, 2013, p.05)

73

Segundo

El-Nimr

(1993,

p.55),

os

nos residentes de campos de refugiados buscam organizar-se em estruturas sociais o mais semelhantes possível àquelas em que viviam em sua terra natal, agrupando-se de acordo com as vilas de origem e, assim, preservando tradições culinárias, folclóricas e de vestimenta. Pode-se observar esta preservação de tradições palestinas em algumas passagens da obra de Sacco, como por exemplo na página 138 (figura 42), na qual uma personagem conta que, durante a Intifada, a OPL costumava orientar os palestinos a usarem trajes tradicionais, como forma de fortalecer sua identidade nacional perante seus oponentes.Observase também em diversas partes do livro o forte hábito de beber chá, bebida que era oferecida a Sacco em cada casa onde chegava para colher entrevistas (figura 43). Esta tradição é tão presen-

Figura 42: Uso de trajes típicos. Fonte: Sacco, 2010.

te na cultura palestina que, na página 73, Sacco aparece bebendo algo enquanto anda pela praça de El Hussein com um amigo, e neste quadro há um pequeno balão com uma seta apontada para seu copo, ironicamente dizendo “adivinhe o que é?”. Nestes locais, símbolos de palestinidade são continuamente utilizados como rituais de preservação, como observa Schiocchet (2013) em sua experiência no campo de al-Jalil,. Dentre esses símbolos, destacam-se a bandeira palestina e a iconificação de temas como o soldado, o mártir, o camponês, a

Figura 43: Representação do hábito de beber chá. Fonte: Sacco, 2010.

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chave, o mapa e a oliveira. De acordo com Schiocchet (2013, p. 93), a bandeira e o mapa são utilizados para evocar a continuidade da nação, seja na Palestina ou em exílio, e outros símbolos como o mártir e a chave, por exemplo, representam uma busca utópica de reintegração geográfica e social através dessa continuidade. Segundo Majaj (ANO, p. 09), em alguns casos ocorre a substituição do sonho de repatriação pela tentativa de recriar a cultura palestina na diáspora, através da preservação de tradições culinárias, comportamentos sociais, estruturas familiares, entre outros. Talvez o símbolo da cultura palestina mais representado por Sacco na obra aqui estudada seja o keffiyeh, lenço com padronagens geométricas símbolo da resistência árabe desde o início do século XX, e posteriormente popularizado por Yasser Arafat. Não há trechos no livro que falem exclusiva e fundamente sobre o uso do keffiyeh, mas seu aparecimento é recorrente, o que demonstra a tradição que representa. Na passagem em que Sacco visita um hospital em busca de fotos e depoimentos de feridos, na página 33, um keffiyeh é prontamente amarrado na cabeça de uma garotinha antes de Sacco fotografá-la (figura 44).

Figura 44: Keffiyeh como símbolo nacional. Fonte: Sacco, 2010.

É possível observar a utilização de tradições como forma de resistência durante os ataques israelenses a Gaza, em julho de 2014, quando mais de 747 edifícios residenciais foram destruídos em bombardeios, deixando mais de 240.000 pa-

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lestinos em situação de refúgio em escolas e abrigos informais, de acordo com relatório da ONU (OCCUPIED PALESTINIAN TERRITORY: GAZA EMERGENCY SITUATION REPORT, 2014, p.01). O jornal Al-Jazeera traz em matéria do mesmo período o relato de Elham Elzanin e outras mães, que, mesmo refugiadas com suas famílias, não abriram mão de cozinhar o tradicional bolo do feriado de Eid al-Fitr (festividade que marca o fim do Ramadan). Mais do que uma ferramenta de distração para as crianças, que sentiram a falta da comemoração, a prática foi encarada pelas famílias como uma forma de manter sua cultura e tradição forte perante ataques externos. Conforme Elzanin, “os israelenses deveriam saber que não vão nos impedir de encontrar alegria na tradição do feriado de Eid; este bolo representa resiliência e resistência.” Outra característica marcante na formação da identidade nacional palestina é a privação de autodeterminação, expressa em posturas limitadoras por parte de Israel e de outros países da comunidade internacional impedindo ou dificultando o exercício da liberdade do povo palestino, através de manobras políticas ou intervenções diretas. Pode-se dizer que o tratado de Balfour representou uma espécie de marco neste sentido, pois selou o compromisso da Grã-Bretanha (então governante do território palestino) com o movimento sionista. Esta contextualização histórica é relevante e pode ser encontrada nas páginas 12 e 13 de Palestina. Na página 12 (figura 45), encontra-se a representação de Lorde Balfour empunhando sua caneta tinteiro e assinando a Declaração, juntamente com uma breve elucidação escrita sobre o que é a Declaração de Balfour. Elementos bélicos e nacionalistas são colocados estrategicamente

ao

fundo do quadro para reforçar o domínio e poder

da

Grã-Bretanha

sobre o povo palestino naquele momento. Sacco fecha a página com um quadro representando o principal slogan

Figura 45: Representação da assinatura da Declaração de Balfour. Fonte: Sacco, 2010.

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sionista, que bem representa a privação sofrida pelos palestinos: “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Na página 13 (ifigura 46), vê-se Balfour em uma biblioteca conjecturando a respeito da validade do movimento sionista, afirmando que este tem “uma importância muito mais profunda do que os desejos e preconceitos de 700 mil árabes”, e que “não nos propomos sequer a consultar os desejos dos atuais habitantes do país”.

Figura 46: Representação de Lorde Balfour em seu escritório. Fonte: Sacco, 2010.

A figura de Balfour sentado em sua poltrona na biblioteca bebendo chá enquanto reflete sobre este assunto pode ser entendida como uma ferramenta utilizada pelo autor para evidenciar o distanciamento com o qual foram tomadas decisões diretamente relativas ao futuro do povo palestino; em outras palavras, o autor demonstra a facilidade de se desconsiderar um povo e sua cultura quando se observa de longe. Sacco traz ainda dados quantitativos a fim de ressaltar a proporção entre árabes e judeus neste momento, afirmando que existiam 10 árabes para cada judeu na região, dado confirmado por Khalidi (1997, p.96). Em 1949 tratores e buldozers tratavam de demolir as casas da população deslocada para construir novos assentamentos para receber os novos judeus que vinham em grande fluxo. O plano de Israel era não apenas “desarabizar” a Palestina mas também “judaizá-la”, preparar todas as condições necessárias para que os ju77

deus que chegassem pudessem se instalar e ali ficar. (PAPPÉ, 2011, p. 18). Sacco comenta as massivas desapropriações realizadas por Israel na página 63 de Palestina, afirmando que dois terços da Cisjordânia foram ilegalmente anexados por Israel, dado confirmado por Cherem (2002, p. 120). Sacco comenta ainda os incentivos oferecidos pelo governo israelense para a construção de habitações nos territórios anexados. Em pesquisa, não foi possível confirmar com exatidão os benefícios específicos citados por Sacco (bônus para cobrir as despesas com a mudança, disponibilidade de empréstimos mais altos a juros mais baixos, casas mais baratas que em Israel e 7% de dedução de impostos) referentes ao período de 1987 e 1988, porém, segundo dados do ano de 2013 da página da American Friends Services Comittee (AFSC), 69% dos custos para adquirir um terreno em áreas ocupadas e realizar a construção de uma residência são subsidiados pelo governo, o qual oferece um valor de aproximadamente U$ 25.000 aos futuros moradores, além de investimentos nas áreas de educação e indústrias concentrados nessas áreas, tornando o ambiente favorável a novos colonos. É possível observar a privação deste direito de autodeterminação nos âmbitos político, narrativo e físico, como é o caso dos mais de 600 bloqueios e checkpoints nas fronteiras dos territórios apropriados por judeus, da construção de muros que passam por constantes redesenhos de acordo com o aumento de colônias judaicas, toques de recolher, entre outros fatores. Palestina mostra-se repleto de representações destas medidas limitadoras e de suas consequências para a população árabe. Na página 70 (figura 47),

Figura 47: Morte de jovem palestino. Fonte: Sacco, 2010.

Sacco conta a história de um jovem de 21 anos baleado na barriga por um colono judeu enquanto observava uma manifestação do alto de sua casa, e, sem poder ser levado ao hospital por conta do decreto de um toque de recolher, sangrou durante três horas e faleceu nos braços de 78

seus pais. Em outra passagem, na página 127 (figura 48), encontra-se uma situação cotidiana em que mulheres são impedidas de irem ao mercado por conta de um bloqueio feito por soldados israelenses. Nesta cena, a profusão de balões e legendas ajudam a acentuar a sensação de confusão daquele momento, com pessoas discutindo e soldados exibindo suas armas para intimidá-las. Sacco demonstra certo desconforto ao perceber que os privilégios que recebe pelo simples fato de ser americano (ou não-palestino).

Figura 48: Sacco representa a ação de soldados israelenses. Fonte: Sacco, 2010.

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Estas limitações físicas encontram-se também ilustradas por Khalidi (1997, p. 04) em trecho citado anteriormente neste trabalho, em que o autor fala sobre os desafios enfrentados por indivíduos palestinos ao passarem por aeroportos e por vezes terem suas passagens negadas, por conta de sua identidade palestina. Outro exemplo é lembrado por Illan Pappé (2011), no relato da madrugada entre os dias 23 e 24 de janeiro de 2007, em que soldados israelenses irromperam nas casas de oito famílias em Jaljulia (vila árabe em Israel), capturando suas mulheres pelo fato de serem provenientes da Cisjordânia. Esta medida é parte da política do governo de Israel contra casamentos de seus cidadãos com pessoas que tenham origens nos territórios ocupados, por enxergarem nelas uma ameaça, como um inimigo infiltrado. Ao final de um longo processo, a corte determinou que tais casais deveriam deixar Israel ou separarem-se (PAPPÉ, 2011, p. 03-04). A partir da página 103 de Palestina, Sacco conta uma história semelhante, na qual um homem chamado Ghassan é surpreendido no meio da noite por cerca de 12 soldados israelenses que arrombaram a porta de sua casa e invadiram-na, com o pretexto de terem um mandado para entrar e revistar sua casa, alegando ser ele suspeito de pertencer a uma organização ilegal, mas sem provas suficientes.Ghassan é preso a história segue até a página 113 com o relato das torturas que sofreu durante sua prisão e suas consequências (durante cerca de 20 dias, o personagem foi confinado em diversas celas pequenas, sujas e frias, obrigado a permanecer por horas em posições dolorosas, interrogado repetidamente, impedido de dormir por dias, entre outras torturas, as quais levaram-no a um quadro de alucinações e pressão baixa). A cada julgamento, era solicitado e concedido um aumento no tempo de prisão para que os soldados pudessem localizar as provas que diziam existir (sempre sem sucesso). A história é contada em quadros regulares e alinhados, os quais começam amplos e ao longo do desenvolvimento vão ficando cada vez menores e numerosos (figura 49). Este recurso estético representa visualmente o crescente sentimento de desespero e confinamento do personagem, assim como também favorece a representação de sua confusão mental após alguns dias, como é possível perceber na página 111, em que um quadro com alucinação do personagem é colocado em meios aos outros sem explicação (por conta do conhecimento prévio do leitor acerca das alucinações). Os intervalos entre quadros são pequenos e na cor preta, o que acentua a sensação claustrofóbica e confere peso ao relato. Mais relatos de prisões 80

repentinas e sem provas, sem tempo determinado e com a utilização de torturas podem ser encontrados nas páginas 83 e 97.

Figura 49: Comparativo entre as páginas 104 e 111 para demonstrar a progressão dos quadros. Fonte: Sacco, 2010.

A interferência israelense sobre a população palestina perpassa as questões abrangentes já citadas, chegando a atingir níveis mais íntimos da vida dos indivíduos, de maneira a reforçar o trauma gerado pela negação de direitos e aumentar o sentimento de perda, como se pode perceber em depoimento concedido ao jornal Al-Jazeera por Nawal Abu Asi, de 24 anos. A jovem conta que durante os bombardeios israelenses em Gaza, em julho de 2014, presenciou a destruição da própria casa, onde vivia com familiares, e todo o resto de seus pertences, incluindo o vestido de noiva que aguardava a celebração de seu casamento, marcado para cerca de um mês após a data em que ocorreram os bombardeios. Semelhante a esse relato, nas páginas 60 a 63 de Palestina Sacco conta o episódio em que soldados decretam um toque de recolher imediato durante a madrugada e só suspendem-no pela manhã, após terem cortado setenta oliveiras pertencentes a treze famílias (figura 50). No mesmo trecho, Sacco relata a história de 81

um senhor que não apenas perdeu suas oliveiras, mas foi obrigado a cortá-las ele mesmo. Nas palavras do personagem, sentiu como se estivessem matando seu filho. A oliveira é tida pelos palestinos como um símbolo de sua identidade e, portanto, possui grande valor simbólico, que fica representado tanto na fala do personagem quanto no close-up feito por Sacco no rosto do personagem enquanto fazia essa afirmação, acentuando o caráter emotivo da passagem. Apesar de resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) afirmarem que os territórios palestinos ocupa-

Figura 50: Árvores cortadas por soldados. Fonte: Sacco, 2010.

dos deveriam ser devolvidos para que sua população de origem pudesse retornar, os Acordos de Oslo (negociações feitas em 1993 entre líderes palestinos e israelenses sob a mediação de Bill Clinton) parecem ter acontecido sob a premissa de tratar de territórios “disputados”, e não de fato ocupados, como fruto de uma apropriação (MAJAJ, 2001, p. 03), o que acaba servindo como pretexto para não levar a cabo este tipo de resolução. Sayegh (2011, p.01) destaca mais uma incongruência no posicionamento da ONU perante a Palestina, no ponto em que reconhece-a como um “povo” e por isso concede-lhe participação parcial enquanto membro, porém não valida sua soberania e independência. A mesma exclusão latente apresenta-se aos árabes residentes em Israel. A lei de Israel proíbe a discriminação por raça ou religião, e para burlar essa lei, estabelecimentos anunciam vagas disponíveis apenas para “jovens que tenham concluído seu período de serviço ao exército”, ou seja, majoritariamente judeus (PAPPÉ, 2011, p.07). Este tipo de privação está presente no cotidiano da população palestina, e encontra-se exemplificada em diversas passagens da obra de Sacco. Uma delas encontra-se na página 274 (figura 51), em que Sacco vê-se na mesma posição dos palestinos quando, em um táxi, é obrigado a enfrentar horas numa fila por conta de um bloqueio na estrada feito pelo governo de Israel, e

82

pelo qual veículos com placa amarela (ou seja, israelenses) podiam passar livremente sem enfrentar a fila.

Figura 51: Estrada bloqueada para veículos de placa palestina. Fonte: Sacco, 2010.

Como resultado de viver em exílio, sob ocupação ou sob governo estrangeiro, o povo palestino basicamente não possui história escrita, e o pouco escrito por colonizadores e ocupantes ignora sua cultura, aspirações e ponto de vista, chegando até a falsificações e distorções em prol dos objetivos sionistas (EL-NIMR, ANO, p.55). Ao longo das últimas cinco décadas, grande parte das fontes para escrever a história moderna da Palestina foi perdida, destruída ou incorporada aos arquivos israelenses, e quando houve tentativas de fundar arquivos, instituições e universidades palestinos, todas as possibilidades para um planejamento a longo prazo lhes foram tolhidas pelo governo de Israel (KHALIDI, 1997, p.89). Sacco representa a ação limitadora israelense em ainda outro âmbito, o produtivo, na passagem que se inicia na página 170, na qual Sacco visita agricultores produtores de tomate (figura 52, na página seguinte). Os personagens listam uma série de empecilhos estabelecidos por Israel para sua lucratividade, como impostos abusivos, o domínio dos recursos hídricos (SELBY, 2003), a venda de produtos palestinos com etiqueta israelense a preços mais altos, entre outros.

83

Figura 52: Personagem contando sobre as dificuldades para exportar produtos agrícolas. Fonte: Sacco, 2010.

84

O nacionalismo palestino tem como objetivo não somente a recuperação de seus territórios, mas também a conquista de uma voz própria para contar sua história. A negação ou obstrução deste direito de contar a própria história serve como ferramenta de opressão e desumanização dos palestinos, seja daqueles residentes em Israel, seja daqueles habitantes de territórios ocupados ou ainda dos que vivem em outros países por conta da diáspora. É possível encontrar na obra de Sacco diversos personagens ávidos por contarem suas histórias, suas tragédias e mostrarem suas

cicatrizes,

muitos

alguns recorrendo à agressividade ao questionar se realmente serão ouvidos através de seu trabalho e se este lhes trará algum retorno positivo, como se pode observar na página 162 (figura 53). Nesta cena, a grande quantidade de balões de fala reforça o tom opressivo tomado pelos personagens contra Sacco. Esta característica é acentuada no segundo quadro, através do uso de hachuras que convergem para a figura de Sacco e do uso do plano plongée, de cima para

baixo,

capaz

de

transmitir a ideia de inferioridade do objeto.

Figura 53: Sacco é questionado por palestinos. Fonte: Sacco, 2010.

85

A partir da página 30 de Palestina (figura 54), tem-se uma passagem em que Sacco é apresentado a um menino que lhe exibe suas cicatrizes e, em seguida, leva-o juntamente com outros amigos para visitar o hospital local, a fim de lhe mostrar mais feridos. Observa-se que alguns deles mostram seus ferimentos com orgulho e fazem questão de que Sacco fotografe-os. A quantidade de histórias de sofrimento provenientes da guerra com Israel pode caracterizar um tipo de memória coletiva capaz de unificar o povo através de suas mazelas.

Figura 54: Personagens exibem ferimentos e cicatrizes. Fonte: Sacco, 2010.

O livro todo apresenta sua construção aparentemente seguindo a ordem de acontecimentos anotados por Sacco em seu diário de viagem, com alguns trechos recebendo vez ou outra subtítulos que destacam determinados aspectos a serem descritos (como quando Sacco está prestes a falar sobre a prisão Ansar III, na página 82). Exceto esses casos, o livro segue o fluxo de acontecimentos e o livro encerra-se quase que de maneira abrupta, no meio de uma cena banal, possivelmente com a intenção de reforçar a ideia de que o que está representado neste livro consiste em apenas um recorte limitado de uma realidade que teve seu início muito antes desse registro e que permanece mesmo após a partida do autor.

86

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível, após o desenvolvimento desta pesquisa, o mérito de Joe Sacco pelo reconhecimento que recebeu por seu trabalho enquanto jornalismo em quadrinhos, visto que, em comparação com o levantamento teórico previamente estudado, mostrou-se acurado nas informações que veiculou. Sacco demonstrou em Palestina um discurso consonante com o dos pesquisadores da área utilizados como referencial, além de precisão nos dados históricos citados. Sacco apresenta uma preocupação jornalística por realizar a representação mais próxima possível da realidade que vivenciou em sua viagem à Palestina, como se pode observar no cuidado de suas anotações e registros fotográficos que serviram como base para suas ilustrações. O autor mostrou-se capaz de construir uma representação coerente com a história e a construção da identidade nacional palestina, sem esbarrar em visões orientalistas (SAID, 2008), ainda que na posição de estrangeiro. De fato, conforme afirmado pelo próprio autor, a abordagem assume um caráter assumidamente parcial, como dito no início deste trabalho, e segue até o fim de sua obra comprometido com seu objetivo de retratar o lado palestino da história, com algumas exceções em que dá voz a personagens israelenses. Sacco aborda com especial dedicação a característica de resistência da identidade nacional palestina, sendo esse o principal traço percebido dentre os personagens de seu trabalho. De acordo com a base teórica adquirida para esta pesquisa, é possível afirmar que este é um traço identitário particularmente marcante na identidade nacional palestina, por conta de suas implicações diárias e no próprio futuro da Palestina enquanto país. Apesar desta ênfase, Sacco constrói com eficiência um cenário e uma narrativa compostos por outros elementos desta identidade nacional, capaz de ilustrar o povo descrito nos trabalhos acadêmicos consultados para esta pesquisa. A partir da perspectiva da resistência, Sacco toca em temas culturais, como tradições cultivadas por este povo, discute e explana tópicos a respeito da história palestina como um todo e também da história do conflito (sob a visão palestina), aborda questões a respeito das medidas limitadores de Israel, entre outros, e tudo sem deixar de representar a si mesmo na posição de estrangeiro, evidenciando sua posição de narrador. Percebe-se também que, apesar de manter certa constância no estilo de quadros irregulares, o autor possui a habilidade de empregar recursos estéticos especí87

ficos e acertados de acordo com a mensagem que deseja veicular, demonstrando assim sua experiência na área de histórias em quadrinhos. Na obra analisada, notou-se a quebra do padrão de quadros em momentos cruciais ou convenientes, com tomadas de decisões objetivas para complementar o clima e o discurso de cada uma de suas passagens. Talvez a maior dificuldade encontrada ao longo do desenvolvimento desta pesquisa tenha sido a predominância de textos em língua inglesa, o que não prejudicou o entendimento de seu conteúdo, mas acabou por deixar as leituras menos dinâmicas. Uma grande preocupação consistiu em realizar uma imersão profunda e consistente no tema, com o objetivo de afastar-se ao máximo de uma visão estereotipada e orientalista, uma vez que se trata de uma cultura distante da ocidental. A análise aqui apresentada serve também para reforçar o que foi dito no início sobre a impossibilidade de pensar HQ como fonte de representação de realidade. Ainda que baseada em registros reais (no caso da obra em questão), consiste em uma linguagem muito peculiar e atrelada à visão pessoal do autor (como o próprio disse, seu objetivo era claramente mostrar apenas o lado palestino do conflito). Mais produtivo do que investigar sua “verdade”, é utilizar seu potencial questionador e problematizador para suscitar discussões, uma vez que apresenta conteúdo confiável, representações verossímeis e grande potencial questionador. Abordando a questão palestina em forma de HQ, Sacco conseguiu transmitir um lado da história até então pouco veiculado com uma linguagem muito acessível, alcançando não apenas o público interessado em política, mas também aqueles que possivelmente não buscariam conhecimento acerca deste tema através de meios formais. Com este trabalho, Sacco trouxe a discussão da questão palestina a uma esfera mais popular e de fácil entendimento, possibilidade encontrada nas histórias em quadrinhos. O trabalho aqui apresentado deixa ainda em aberto outras possibilidades de análise para a obra de Joe Sacco, que neste possivelmente não foram abordadas com devida profundidade, como mecanismos de controle do governo israelense,hábitos culturais como vestimentas, alimentação e arquitetura, influência da religião no conflito entre israelenses e palestinos e o papel da mulher na sociedade palestina.

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