Análise de “A porta aberta”, de Saki

September 24, 2017 | Autor: Gabriel Machado | Categoria: Ana Maria Machado, Narrativa, Hector Hugh Munro, Contos, Short Story Writers: Munro, Saki / H.H. Munro
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS COORDENADORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA INFANTOJUVENIL

Análise de “A porta aberta”, de Saki

Aluno: Gabriel Machado Rodrigues da Silva Disciplina: Literatura Infantojuvenil: Narrativa (2013) Professor: André Ximenes

―Se nos pedissem para designar a classe de composição que, ao lado do poema, pudesse melhor satisfazer as exigências de grande genialidade, que pudesse oferecer a esta o mais vantajoso campo para o seu exercício, deveríamos falar, sem hesitação, do conto em prosa.‖ (Charles Kiefer apud Gurgel)

O presente trabalho visa analisar o conto ―A porta aberta‖, de Saki, abordando, em primeiro lugar, a coletânea de onde foi retirado, o autor e a forma conto para depois se deter na própria história e narrativa, assim como na imagem que a ilustra. A versão do conto a ser utilizada (em anexo) é de tradução do linguista Marcos Bagno e está presente em Leituras de escritor, coletânea de Ana Maria Machado, mas ele também pode ser encontrado em Um gato indiscreto e outros contos e em outras antologias e fontes, com diversas traduções. A seleta foi escolhida por fazer parte da bibliografia da seleção desta pós-graduação de literatura infantojuvenil, logo se trata de uma obra de qualidade. Da mesma forma, a organizadora é uma referência na área. O livro faz parte de uma coleção da SM1 (editora exemplar de infantojuvenis), cuja proposta é, segundo os editores, ―oferecer a jovens leitores antologias de textos curtos organizadas por escritores de renome, que se debruçam sobre a produção alheia impelidos por questões que podem dizer respeito às suas próprias inquietações criativas‖. Um dos objetivos é estimular os jovens a confiarem ―na própria sensibilidade para explorar diferentes universos ficcionais‖ (p.6). Essas afirmações mostram o direcionamento ao público juvenil e uma vontade de sair da mesmice. E, só pelo fato de estar entre os 14 contos que mais deram prazer a Ana Maria e mais a marcaram, ―A porta aberta‖ pode ser considerado notável. Aliás, ela faz questão de escrever nos comentários ao fim da história (que permeiam todo o volume) que esse foi o primeiro conto que lhe veio à mente quando foi proposta a coletânea, sendo que ele foi lido no início da adolescência (p.82). Para finalizar, os editores destacam que esse livro é uma [v]iagem sem mapa ou bússola, orientada tão somente pelo conhecimento prático de quem já descobriu serem muitos os percursos possíveis no texto literário e que, nessa floresta de sentidos, a distância a percorrer é sempre maior que a existente entre o começo da primeira linha e o fim da última página (p.6).

E é a isso que se propõe este trabalho: desbravar os sentidos e mostrar que há muito mais a se ver do que a superfície aparente, mas, é claro, sem esgotar

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Há mais dois volumes, organizados por Luiz Rufatto e Moacyr Scliar.

interpretações, análises. O importante é percorrer o caminho em busca de elementos que contribuam para a abordagem. Para iniciar a trilha, vale a pena falar sobre o autor e sua obra. Saki é o pseudônimo do britânico Hector Hugh Munro (1870-1916), considerado por Graham Greene como o melhor humorista inglês do século XX. Munro retirou o falso nome de dois versos de uma compilação de quadras chamada Rubayat, do poeta iraniano Omar Khayyam (mais especificamente das estrofes LVI e XC2). Esse poema é mencionado pelo personagem Reginald no conto ―Reginald on Christmas Presents‖, de Saki, e há alusões a ele em algumas outras histórias do autor. Munro nasceu na cidade de Sittwe (antiga Akyab), em Mianmar, quando o país era uma possessão britânica e tinha outro nome: Burma. Sua mãe morreu quando ele ainda era bebê, após ter sido atropelada por uma vaca em disparada, fato insólito que pode ter influenciado seus contos. Seu pai era inspetor-geral da polícia britânica e Saki foi criado por duas tias rabugentas e antipáticas, que não lhe proporcionaram uma infância infeliz, razão pela qual algumas de suas histórias tratam da crueldade da qual as crianças são capazes, caso de ―A porta aberta‖.3 Estudou na Inglaterra e seguiu a carreira de jornalista, quando intensificou a produção literária, tendo escrito contos, peças, novelas e também uma paródia de Alice no País das Maravilhas: A Alice de Westminster. Acabou morrendo na França, em combate, durante a Primeira Guerra Mundial. É frequentemente comparado a O. Henry e Dorothy Parker; foi influenciado por Oscar Wilde, Lewis Carroll e Kipling e influenciou A. A. Milne, Noël Coward e P. G. Wodehouse.4 Especialista em histórias curtas com desfecho súbito e surpreendente, um pouco à moda de Guy de Maupassant e O. Henry (Machado, p.83), satirizava a sociedade e cultura do período eduardiano, que vai de 1901 a 1910. Muitos de seus textos demonstram sua compreensão das crianças e jovens, que brincam de forma inteligente e, por vezes, maliciosa com os sentimentos dos mais velhos, a exemplo do conto abordado aqui. 5 Na introdução à edição inglesa da obra completa de Saki, The Penguin Complete Saki, Noël Coward diz que os escritos do autor ―são datados apenas porque evocam uma 2

Disponível em: www.poemhunter.com/poem/the-rubaiyat-of-omar-khayyam. Acesso: 11/08/2013. Disponível em: www.bestiario.com.br/4_arquivos/A%20porta%20aberta.html. Acesso: 11/08/2013. 4 Disponível em: www.oxforddnb.com/view/article/35149. Acesso: 11/08/2013. 5 Disponível em: www.cuentoseningles.com.ar/shortstories/english/openwindow2.html. Acesso: 11/08/2013. 3

atmosfera e descrevem uma sociedade que desapareceu no terrível verão de 1914‖ – referência à Primeira Guerra Mundial. De resto, os textos são atemporais por seu humor, engenhosidade, temas universais etc.6 Como introdução a ―A porta aberta‖, é interessante aproveitar a reflexão feita por Ana Maria Machado na apresentação do livro. Escreve ela: O gênero conto é muito difícil, porque talvez só admita a perfeição. [...] A economia é outra, é impiedosa. Ela não admite qualquer palavra supérflua, não perdoa desperdício. É necessário ser exato. Como se o autor escrevesse com bisturi. É um gênero que exige concentração e intensidade. Um bom conto é um lampejo (p.8).

Essa economia também é assinalada por Nelly Novaes Coelho: ―no conto a visão-de-mundo corresponde a um fragmento-de-vida, a um momento significativo que permite ao leitor intuir (ou entrever) o Todo do mundo ao qual aquele fragmento (ou momento) pertence‖ (p.68). Mais à frente, veremos como ela opera na história em questão. A porta para o conto se abre com uma imagem, que pode ser classificada de acordo com as diferentes funções das ilustrações nos livros-ilustrados7 mencionadas por Sonia Landes (apud Peter Hunt, p.234). Neste caso, ela pode ser retirada sem prejuízo à história, mas funciona tanto como antecipação quanto como expansão. Antecipação, simplesmente por vir antes do texto e já dar uma ideia do que acontecerá. Inclusive, já na imagem, o leitor percebe a expressão maliciosa no rosto da menina, podendo estragar a surpresa final. Expansão, pois apresenta diversos elementos que não aparecem no texto, como a hora em que o fato acontece (entre 18h50 e 18h55; na história, só se fala em crepúsculo); as roupas dos personagens (à exceção do chapéu); as características físicas deles, da sala e da porta; a já citada expressão da garota, que não é mencionada depois. O mais interessante é que a imagem é emoldurada pela porta aberta e mostra o momento logo anterior ao clímax da história, quando a sra. Sappleton conversa em pé com Framton, sem tirar os olhos da abertura — ainda que, segundo o texto, é mais provável que os três estivessem sentados (―Framton deu meia-volta em seu assento‖). O destaque da ilustração fica por conta do casaco vermelho da garota em meio ao preto e

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Disponível em: www.enotes.com/open-window/critical-overview. Acesso: 11/08/2013. Tradução da Cosac Naify para picture books, tipo de livro no qual texto e ilustração combinam-se de tal maneira que a relação entre eles torna-se essencial para a compreensão da narrativa. 7

branco, indicando que ela é o centro das atenções, a verdadeira protagonista, junto com a porta, que tem detalhes na mesma cor. Logo no título do conto, há uma divergência. A nota de rodapé (p.77) assinala que ―A janela aberta‖ seria a tradução literal do título em inglês (―The open window‖), mas, na verdade, trata-se de uma espécie de porta de duas folhas, que se estende até o chão, como se pode ver na ilustração. Para se analisar a narrativa, é possível utilizar a divisão citada por Cândida Vilares Gancho: exposição, complicação, clímax e desfecho. A história se inicia com a exposição, em que são apresentados os personagens principais: Framton Nuttel e a sobrinha da sra. Sappleton. Framton aparece como uma pessoa com nervos frágeis e um problema médico. Vera é uma mocinha educada e sociável. Nesta parte, o clima de tensão é uma peça-chave. O sr. Nuttel está nervoso por causa do estresse e por ter que encontrar tantas pessoas desconhecidas. A menina ironiza, dizendo que ―o senhor pode ir me aguentando‖. Mal sabe Framton o que lhe reserva. Nota-se que não há preâmbulos, pois a trama começa direto no ponto que interessa: a chegada à casa onde se passará o fato central. Como Nelly assinala, essa é uma característica do conto, que possui uma unidade dramática, um motivo central; a efabulação se desenvolve em torno de uma única situação (p.68). É a economia de meios já mencionada. O acontecimento precedente, da conversa de Framton com a irmã, é retomado por um breve pensamento do homem, para que não se perca a objetividade da narração, no sentido de mantê-la enxuta. Em um instante, o leitor já entende por que o sr. Nuttel se encontra ali e percebe sua insegurança em termos como ―duvidava‖, ―supostamente‖, ―se perguntava‖, nas tentativas de lisonja e na passividade em relação à vontade da irmã, que lhe impõe uma socialização, contrastando com a descrição da menina como ―muito senhora de si‖ e ―autoconfiante‖. Após um começo de conversa em que toma a iniciativa e ―sonda‖ o visitante, a sobrinha o instiga, pois, senão, ele nem perguntaria sobre a porta, afinal de contas, tratase de um dia bem quente. Chega-se à complicação: a história da ―grande tragédia‖, que deixa o sr. Nuttel desconfortável, pois ele está ali apenas para falar de seus problemas mundanos de saúde à sra. Sappleton. Ele começa a se sentir culpado porque a mulher está em uma situação bem pior do que a dele, deixando uma porta aberta para que mortos voltem: uma completa loucura. Fora a atmosfera tétrica bem delineada pela

garota. É a primeira vez que ela se mostra frágil, ―humana‖ (naturalmente, uma atuação). A ação começa a se encaminhar para o clímax quanto a sra. Sappleton aparece e começa a conversar e a olhar para a porta, aterrorizando o sr. Nuttel por lidar com tudo aquilo com tanta naturalidade. O ápice da história é a chegada dos quatro homens enlameados, suscitando a exclamação de contentamento da mulher e a cara de horror da garota. Após a fuga de Framton e a confusão de todos na casa, vem o desfecho com a explicação marota da menina e a frase final marcante. Uma maneira de também abordar a narrativa é com base nos componentes do modo de organização descritivo: nomear, localizar-situar, qualificar. O processo de nomear é ―um mecanismo de fazer existir seres significantes no mundo‖, pois ―é o sujeito quem constrói e estrutura a visão do mundo‖ (Ximenes, p.506). Um aspecto notável é que, dos três personagens principais, o único que não se nomeia logo é a menina, que de início não parece tão importante, pois só surge para abrir a porta e está em meio a adultos. E o fato de não ser nomeada dá a impressão de que ela estaria no mesmo plano da irmã de Framton. Até o irmão mais novo da sra. Sappleton tem um nome! Mas, depois, a garota se mostra a grande protagonista, ainda que seu nome só surja na terceira página da história, quando a tia se refere a ela. E nada poderia ser mais irônico: ela se chama Vera, que significa ―verdadeira‖, ―sincera‖, mas as mentiras são bem comuns na vida da sobrinha. Esse nome está ligado à época da história, pois ele se tornara popular na Inglaterra justo no início do século XX, quando foi escrita. Já a sra. Sappleton perde o ar distanciado quando é chamada de Bertie pelo irmão, em uma brincadeira com o verso ―Bertie, why do you bound?‖, de uma música de cerca de 1909 chamada Bertie the bounder, de George Grossmith III (mais uma marca temporal). Uma canção boba, cantada só por ter o nome, para irritar a mulher, mas que marca Ronnie e ―ajuda‖ o sr. Nuttel a identificá-lo quando ele aparece. Ainda nesse campo dos nomes, é interessante analisar os referenciais dos personagens. Vera, por exemplo, é chamada de ―mocinha‖ e ―sobrinha‖, sendo identificada como alguém maduro, mas também de ―criança‖ e ―menina‖, quando conta a tragédia e se mostra abalada e aterrorizada, uma pessoa indefesa. A sra. Sappleton é vista como tia, dama (mulher respeitável que pode acolher o protagonista), pobre tia querida (devido à tragédia), anfitriã (justamente no momento em que não dá atenção a Framton) e querida (pelo marido). O sr. Nuttel é sempre mencionado como Framton,

exceto quando admite só saber da dona da casa o nome e o endereço, tornando-se, então, ―o visitante‖. Mesmo sendo substantivos, têm um caráter descritivo, como menciona Genette a respeito da descritividade de toda palavra selecionada pelo autor/narrador (p.263). O componente localizar-situar também tem um papel importante, apesar de ser conciso, de acordo com o conto típico, de caracterização breve do espaço e duração temporal curta. A história se passa numa cidade rural, mais especificamente em uma casa com gramado, de pelo menos dois andares, visto que a sra. Sappleton ―vai descer logo‖, indicando ser propriedade de classe alta. Apesar de não haver uma marca temporal clara, era comum que, na década de 1910, as pessoas que sofriam de problemas nervosos fossem enviadas para um período de descanso no campo. Além disso, cartas de apresentação eram muito usadas quando alguém chegava a um lugar desconhecido. Elas garantiam que a pessoa não ficasse isolada por não conhecer ninguém. 8 O fato de ser um lugar desconhecido para o protagonista é fundamental para o andamento da história. Framton observa a sala e acha que ela possuía algo de masculino, mas não pode ter certeza se a anfitriã é casada. Como depois fica sabendo que a mulher ainda espera o retorno do marido e dos irmãos, não seria de estranhar que o cômodo tivesse essa característica. A ocorrência de uma tragédia em um ―tranquilo recanto campestre‖ também torna tudo mais estranho para o sr. Nuttel. O tempo bem quente de outubro, época do outono no hemisfério norte, não desperta nenhuma curiosidade no homem ao ver a porta aberta, por isso Vera precisa dirigir a conversa para ela. Engenhosamente, a menina situa a tragédia um ano depois da estada da irmã de Framton na cidade, logo ela não poderia saber dos acontecimentos. Como no outono já está quente, Vera descreve o verão como horrível e úmido, propício a formar lodaçais traiçoeiros no pântano próximo. O retorno dos homens ocorre na ―hora do chá‖, provavelmente uma referência às 17h, tradicional horário da Inglaterra, quando, no outono, talvez já estivesse escurecendo, pois se diz que eles surgiram ―na luz mortiça do crepúsculo‖. Porém, a hora não bate com a desenhada no relógio da ilustração. Por fim, o lugar sereno que deveria significar descanso só piora a situação do sr. Nuttel.

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Disponível em: www.enotes.com/open-window/compare-contrast. Acesso: 11/08/2013.

Por último, o componente qualificar, que particulariza o ser de acordo com a subjetividade do falante, neste caso, o narrador. Trata-se de tomar partido (Ximenes, p.507). É interessante notar que quase não há descrições físicas na história, demonstrando a concisão do conto também nesse aspecto. A parte em que elas mais aparecem é no relato da menina, pois são essenciais à construção do fato mentiroso. A ilustração é a única que pode fornecer algum dado sobre os próprios personagens, e mesmo assim apenas com base na interpretação/imaginação do ilustrador. Nessa categoria, a descrição é diegética: explicativa e simbólica, ―tende a revelar e justificar a psicologia dos personagens, dos quais é ao mesmo tempo signo, causa e efeito‖ (Genette, p.264,265); não tem nada de decorativa. E os diálogos têm predominância, não dando tanto espaço a descrições. Framton torce para que a sra. Sappleton esteja no grupo das ―agradáveis‖ citadas pela irmã, onde bem parecia se encaixar, até a escapada repentina do sr. Nuttel. Diante da história trágica, a tarde ―calma e tranquila‖ se torna tudo menos isso, mostrando o poder do psicológico, que provoca tremores e arrepios. Nada confortável com a menina, Framton a qualifica de forma bem vaga: ―Ela foi muito interessante‖. Ele considera uma infeliz coincidência estar ali justo na data do trágico aniversário. O impacto sobre o visitante tem o seu efeito maior por causa da descrição precisa de Vera: o pequeno spaniel castanho fatigado, o marido com a capa de chuva branca nos ombros, Ronnie cantarolando com sua voz jovem e rouca. Pela associação de imagens e vendo a expressão estupefata de horror no rosto da garota, só resta a Framton correr como nunca na vida. Sua fuga é bem-retratada quando ele agarra ―ferozmente‖ a bengala e o chapéu e foge tão desabaladamente que nem percebe por onde está passando, quase colidindo com um ciclista. Após esse fato surpreendente, a sra. Sappleton acaba taxando o homem de ―esquisitíssimo‖. Mais um elemento a destacar no conto é a narração, visto que, na verdade, existem duas narrações: a principal, das desventuras de Framton, e a secundária, mas crucial, do caso inventado. Como costuma acontecer, ambas se valem do ―subsistema do pretérito‖, que é ―o conjunto de tempos por excelência na narração‖ (Fiorin). A história contada por Vera se inscreve mais no campo do discurso, por ser marcada pela subjetividade, pelos adjetivos, pela experiência, apesar de a 1ª pessoa só aparecer no fim, para demonstrar o pavor da menina. Já a narrativa onisciente utiliza apenas a 3ª pessoa e apreende o exterior dos fatos. Seu foco de consciência é parcial, ou seja, os acontecimentos são filtrados pela visão de um personagem, por seus pensamentos e

sentimentos (Coelho, p.67). O leitor só sabe o que Framton vê e sabe, por isso também é enganado pela menina, já que o narrador não revela nada dela. Porém, com a fuga do homem, o conhecimento desloca-se para mostrar o restante da história e a verdade. No fundo, ―narrativa e discurso se interpenetram incessantemente‖, como diz Genette (p.270), pois a aparente objetividade esconde escolhas de palavras, de qualificações, como já foi visto anteriormente. O caráter de ordenação, dominação e manipulação do narrador, se passa com sutilidade no caso do onisciente, que em tese mostraria uma visão imparcial, fica escancarado após a revelação da mentira da garota. Ela joga com o visitante e o leitor, emprestando um simbolismo especial à porta e dando um sentido sobrenatural a um fato banal como a volta de três homens de uma caça. Segundo a categorização de actantes narrativos de Charaudeau, Vera é agente agressora (que manipula e comete malefício) e voluntária indireta (pois finge). Já o sr. Nuttel é paciente e vítima que reage com a fuga, mas não evitando afrontamento, já que nem sabe a verdade dos fatos. A narração da menina pode ser caracterizada como literária, pois o importante nela não é o que aconteceu, mas como o acontecimento é contado. Como fala Charaudeau, ―Contar depende da intencionalidade de um contador de transmitir, a um destinatário, uma certa representação da experiência do mundo de uma certa maneira‖. Saki dramatiza o conflito entre realidade e imaginação demonstrando como pode ser difícil distinguir entre elas. A princípio, o leitor ri do homem por ser tão ingênuo. Porém, ele se dá conta de que igualmente tende a acreditar em uma história interessante e bem-contada, ao suspender a descrença.9 O fim do conto é típico da época em que foi escrito, como assinala Ana Maria Machado: o desenlace surpreendente era uma concepção que dominava o gênero no século XIX (p.8). Um desfecho tão marcante que a organizadora sabe até hoje de cor a frase final: ―O romance improvisado era a especialidade dela.‖ Um conto que tem como protagonista um romance, não a categoria ficcional, mas, de acordo com o dicionário, uma descrição fantasiosa ou exagerada de um acontecimento. Pobre sr. Nuttel, vítima dessa mocinha autoconfiante e criativa: foi buscar a paz e, ironicamente, ficou em uma pilha de nervos.

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Disponível em: www.enotes.com/open-window. Acesso: 11/08/2013.

Bibliografia CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso. São Paulo: Contexto, 2008. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática, 1993. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1998. GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: ______; BARTHES et al. Análise estrutural da narrativa. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1976. p.255-274. GURGEL, Rodrigo. A perfeição corrosiva de Saki. Disponível em: http://sibila.com.br/ novos-e-criticos/a-perfeicao-corrosiva-de-saki/3625. Acesso: 07/07/2013. HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. MACHADO, Ana Maria (Org.). Leituras de escritor. 2.ed. São Paulo: Comboio de Corda, 2009. PLATÃO, F.; FIORIN, J.L.. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo, Ática, 1997. SAKI. Um gato indiscreto e outros contos. São Paulo: Hedra, 2009. SHORT STORIES FOR STUDENTS: Presenting Analysis, Context, and Criticism on Commonly Studied Short Stories. Stamford: Gale Cengage, 2002. Fragmentos disponíveis em: www.enotes.com/open-window. Acesso: 11/08/2013. XIMENES, André. Um estudo semiolinguístico dos modos de organização descritivo e narrativo no conto A semente da verdade. Revista Litteris, n.10, set. 2012. p.499-516. Disponível em: http://revistaliter.dominiotemporario.com/doc/Modos_Organizacao _Discurso_ANDRE_XIMENES.pdf. Acesso: 11/08/2013.

Sites www.poemhunter.com/poem/the-rubaiyat-of-omar-khayyam www.bestiario.com.br/4_arquivos/A%20porta%20aberta.html www.oxforddnb.com/view/article/35149 www.cuentoseningles.com.ar/shortstories/english/openwindow2.html www.enotes.com/open-window

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