Análise de Dano Material em Extravio de Bagagem nos Contratos de Transporte Aéreo Internacional

May 25, 2017 | Autor: Jonas Silva | Categoria: Direito, direito Internacional público, Direito Internacional Privado, Direito Privado
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ANÁLISE DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR A CASOS DE DANO MATERIAL POR EXTRAVIO DE BAGAGEM NO CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL: UM (APARENTE) CONFLITO DE NORMAS JURÍDICAS Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas. Zygmunt Bauman

Júlio Edstron Secundino Santos 1 Daniel Vicente Evaldt da Silva2 Jonas Sales Fernandes da Silva3

Resumo: Dos primórdios incertos ao momento presente, o transporte aéreo se tornou uma necessidade para consumidores que precisam vencer longas distâncias em pouco tempo e consolidou-se como uma atividade lucrativa. Por isso, no Brasil, esse serviço é abrangido pelo Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo-se que os problemas surgidos dos riscos inerentes à atividade podem ferir os direitos fundamentais do consumidor. O objetivo deste trabalho é analisar as normas jurídicas que vêm norteando a tarifação no reembolso por extravio de bagagens em viagens internacionais, tendo em vista a Convenção de Varsóvia e outras, das quais o Brasil é signatário, e documentos do ordenamento interno. A questão envolve uma análise hermenêutica, com uso do princípio constitucional da máxima efetividade e do princípio internacional pro homine. Palavras-chave: Transporte aéreo. Convenção Varsóvia. Código de Defesa do Consumidor. Princípio da máxima efetividade. Princípio pro homine. Abstract: From uncertain beginnings to the present moment, aviation industry has become essential for consumers who need to overcome long distances in a short time and this industry has turn into a profitable activity. Therefore, in Brazil, the protection on this service is include in a specific Consumer’s Defense Code, as part of recognition 1

Doutorando em Direito pelo UniCEUB. Mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB/DF. Professor dos cursos de graduação em Direito e Relações Internacionais e especialização da UCB/DF. Membro dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS) da UCB; Direito e Religião, Políticas Públicas do UniCEUB. Associado do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASICON). 2 Especialista em Direito Administrativo pela Universidade de Salamanca. Especialista em Finanças pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Advogado. 3 Graduando em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Assistente Jurídico do escritório Roque Khouri & Advogados Associados. Membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS) da UCB/DF. Associado do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON).

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that the problems that arise from the risks of those activities can cause severe damages to fundamental rights of the consumers. The aim of this paper is to analyze the amount of Laws that allows pre-price of the refund caused by reimbursement for lost luggage in international travel, considering the Warsaw Convention and its updates, in which Brazil has put its approval, and local laws and judiciary decisions. The issue involves hermeneutic analyses considering the constitutional principle of maximum effectiveness and the international principle of pro homine. Keywords: Aviation, Warsaw Convention, maximum effectiveness principle, pro homine. Sumário: 1. Introdução – 2. Transporte aéreo: entre o sonho e a realidade de proteção ao consumidor – 3. Da Convenção de Varsóvia à proteção jurídica ao consumidor no Brasil – 4. Construção da jurisprudência na proteção ao consumidor em caso de extravio de bagagem – 5. Julgamento conjunto do RE 636331 e do ARE 766618: o caso especial sobre as indenizações em caso de extravio de bagagem – ainda há esperança. – 6. Considerações finais – 7. Referências. 1. INTRODUÇÃO O transporte aéreo tornou-se um dos maiores sistemas de navegação da atualidade, tanto no cenário internacional, quanto no nacional. O sonho humano de percorrer rapidamente longas distâncias vem se transformando em uma necessidade, surgida da urgência com que se buscam soluções para atendimento de questões cotidianas como o trabalho (entre outras) e mesmo do lazer, atualmente regido pelo fenômeno do turismo. Nessa perspectiva, esforços estatais e particulares têm moldado uma aviação civil cada vez mais acessível e comprovadamente segura. Contudo, mesmo com as constantes melhorias na prestação do respectivo serviço, ainda existem problemas a serem analisados pelo Direito, como a indenização do consumidor por extravios de bagagem. No Brasil, a análise desses casos exige a aplicação de métodos hermenêuticos afinados com a Constituição, envolve a efetivação dos direitos fundamentais e a proteção dos consumidores. Nesse ensaio, analisam-se, brevemente, as normas jurídicas que vêm norteando a tarifação no reembolso por extravio de bagagem em viagens internacionais, para identificar que norma deve prevalecer no Brasil, tendo em vista acordos internacionais que regulam o assunto, dos quais o país é signatário, e as normas internas que asseguram a proteção máxima ao consumidor, considerado hipossuficiente. Metodologicamente, o trabalho foi feito por meio de uma pesquisa bibliográfica e uma documental, visando proporcionar ao leitor uma visão crítica do estado da arte em relação ao problema, com exemplificação de casos concretos.

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Teve-se como escopo a teoria do pós-positivismo jurídico, um pensamento jusfilosófico que visa impor limites valorativos aos aplicadores do direito, reconhecendo os princípios presentes nas normas, como disposição normativa.4 Essa teoria é geralmente caracterizada apor suas principais marcas: “a ascensão dos valores e o reconhecimento da normatividade dos princípios, fundamentando que a dogmática tradicional fomentou-se sob o mito da objetividade do Direito e da neutralidade do intérprete, tendo encoberto seu caráter ideológico.”5 Assim, ocupamo-nos da análise da aplicação de dispositivos normativos (e suas atualizações) afetos a responsabilidade civil pela perda de bagagem nos contratos de transporte aéreo internacional6, dialogando, em especial, com a Convenção de Varsóvia (Decreto n. 20.704, de novembro de 1931), com o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA) (Lei n. 7.565, de dezembro de 1986), como o Código de Defesa do Consumidor (CDC) (Lei 8.078, de março de 1990) e o com Código Civil (CC) (Lei. 10.406/2002). Todos, como não poderia deixar de ser, são vistos sob a lente da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988. Em seguida, fez-se, por um lado, o exame doutrinário da projeção das normas supramencionadas no ordenamento jurídico pátrio, no que tange à aplicação dos dispositivos que visam limitar ou tarifar7 o dano material decorrente de extravio ou perda de bagagem em vigência de contrato aéreo de transporte internacional, sobretudo do último quarto do século XX para os dias atuais. Por outro, verificou-se o entendimento dos tribunais brasileiros sobre o tema, dando especial atenção à

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FERNANDES, Ricardo Vieira de C.; BICALHO, Guilherme Pereira D. Do positivismo ao póspositivismo jurídico O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Revista de Informação Legislativa. 2011:48(189):105-31, p. 111. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/ handle. Acesso em: 28 set 2016.

DUARTE, Hugo Garcez. Pós-positivismo jurídico: o que pretende afinal? 2011. Disponível em: . Acesso em: 28 set 2016, p. 6. 6 Considera-se transporte internacional, nos termos da Convenção de Varsóvia, promulgada pelo Decreto n. 20.704, de 24 de novembro de 1931: Artigo primeiro: “(2) Denomina-se ‘transporte internacional’, nos termos da presente Convenção, todo transporte em que, de acordo com o estipulado pelas partes, o ponto de partida e o ponto do destino, haja ou não interrupção de transporte, ou baldeação, estejam situados no território de duas Altas Partes Contratante, ou mesmo no de uma só, havendo escala prevista em território sujeito á soberania, suzerania, mandato ou autoridade de outro Estado, seja ou não Contratante. O transporte, que, sem tal escala, se efetuar entre territórios sujeitos a soberania, suzerania, mandato ou autoridade da mesma Alta Parte Contratante, não se considera internacional, nos termos desta Convenção.” 7 Para precisa distinção entre essas modalidades de responsabilidade civil: MARQUES, Claudia Lima. A responsabilidade do transportador aéreo pelo fato do serviço e o Código de Defesa do Consumidor – Antinomia entre norma do CDC e de leis especiais. Revista de Direito do Consumidor, n. 3, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 173.

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jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do guardião da Carta Magna, o Supremo Tribunal Federal (STF). Teve-se, como ponto de chegada, o julgamento, pelo STF, do Recurso Extraordinário (RE) 636331 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 766618, os quais tratam, de igual forma, das normas devem reger conflitos relativos à relação de consumo em transporte internacional de passageiros, se regras estabelecidas em convenções internacionais que tratam do assunto ou o CDC8. Por fim, foi feita uma proposta para resolução dos conflitos entre as normas que abordam o cerne da questão, dialogando, sempre com a Constituição Federal, quanto aos direitos e garantias nela propugnados, em busca da melhor solução para o deslinde da controvérsia, com base nos princípios da máxima efetividade e pro homine. 2. TRANSPORTE CONSUMIDOR

AÉREO:

A

REALIDADE

DE

PROTEÇÃO

AO

Com o desejo de vencer distâncias, o ser humano se ocupou em construir instrumentos que pudessem transformar os sonhos em realidade. Porém, só no início do século XX o homem conseguiu os meios eficazes para que a aviação fosse um instrumento real. O transporte aéreo se difundiu, em grande medida, com o significativo avanço da tecnologia do setor durante a primeira Guerra Mundial (1914-1918), em especial por conta da necessidade de locomoção de pessoas e de cargas em velocidade impraticável pelos grandes navios da época. Após esse primeiro conflito mundial, viu-se a real possibilidade de se comercializar esse meio transporte, apesar dos custos para implantação de empresas compatíveis com o respectivo porte e dos baixos níveis de segurança proporcionados aos passageiros. No Brasil do final da República Velha (1889-1930) e início da Era Vargas (19301945), um país de predominantemente de economia rural e começo do período industrial, surgiu9 a opção pelo transporte aéreo nacional10, realizado, então, por duas subsidiárias de empresas estrangeiras: a Compagnie Générale Aéropostale, empresa 8

Para conferir o andamento processual destas demandas: Portal STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=636331&classe=RE&origem= AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em: 4 set 2016. 9 Crítica sobre a forma pela qual se alavancou a aviação civil no Brasil: “De forma torta, o transporte aéreo no Brasil acabou sendo impulsionado pela falta de uma rede de transporte ferroviária/rodoviária/fluvial que integrasse o país e transformando a opção pelo transporte aéreo, através de pequenos aviões, interessante para atingir regiões distantes dos grandes centros.” COSTA, Armando Dalla; SOUZA-SANTOS, Elson Rodrigo de. Mercado e empresas de transporte aéreo brasileiras: histórico, mudanças recentes e perspectivas. Economia & Tecnologia, 2010, ano 6, v. 21, p. 3. 10 Para detido estudo sobre a aviação civil brasileira e o transporte aéreo, cf., por todos: Estudo do Setor de Transporte Aéreo do Brasil: Relatório Consolidado. Rio de Janeiro: McKinsey & Company, 2010.

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francesa, criada em 1919, e a Condor Syndikat, sucursal da alemã Lufthansa, de 1927. Também nesse ano, foi criada a primeira linha regular brasileira a atuar no setor, a chamada “Linha da Lagoa”, que trafegava entre Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande.11 Deve-se entender que, em seus primórdios, a aviação era tratada como uma modalidade de transporte incipiente, ainda em regulamentação específica e com custos elevados para sua implantação. Na primeira metade do século XX, diversos países estiveram preocupados em implementar a aviação comercial, o que se fez por meio de tratamento jurídico diferenciado12 para as empresas do setor, visando minimizar os riscos e proporcionando condições para seu desenvolvimento. Nesse sentido, bases normativas, como as convenções de Paris (1919), deram suporte à criação da Comissão Nacional de Navegação Aérea (CINA), embrião da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). A Convenção de Havana (1928) tratou, prioritariamente, dos direitos comerciais aéreos e, posteriormente, a de Varsóvia (1929) foi justificada, à época, pelo [...] objetivo de impedir que fixação de indenizações de valor ilimitado pudesse inviabilizar o transporte aéreo, pela própria dificuldade da empresa transportadora em responder pelos prejuízos causados em casos de acidente. É necessário considerar que, à época da Convenção, o transporte aéreo ainda não dispunha de meios de segurança confiáveis, sendo a tecnologia ainda muito pouco desenvolvida. O fato é que, ao longo dos anos, tornou-se imperativo aumentar o limite fixado na Convenção.13

Trazendo o tema para a atualidade, pelo argumento de Cavalieri Filho, deve-se levar em consideração que a realidade brasileira atual, no que toca à aviação civil, não se encontra, nem de longe, no cenário experimentado na primeira metade do século XX. Essa condição é comprovada estatisticamente, por um lado, com os lucros das empresas que atuam no país14 e, por outro, pelos altíssimos níveis de segurança alcançada.15

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História da Aviação Brasileira. Disponível em: http://www.portalbrasil. net/aviacao_ histbrasil.htm. Acesso em: 4 set. 2016. 12 “Desde o seu nascimento, a aviação comercial postulou (e recebeu) tratamento diferenciado pelo Direito.” BENJAMIN, Antonio Herman V. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 100. p. 28. 13 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 426. 14 Cf., verbi gratia, Setor aéreo fecha 2015 com lucro maior que o esperado. Disponível em: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/setor-aereo-fecha-2015-com-lucro-maior-que-o-esperado. Acesso em: 4 set 2016; Lucros de companhias aéreas alcançarão US$ 19,9 bi em 2014. Disponível em: http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/lucros.pdf. 2014. Acesso em: 4 set 2016. 15 Somando a pouca possibilidade de um acidente e a alta chance de sobreviver, chega-se à probabilidade de morte em um acidente de avião: uma chance entre11 milhões. O transporte aéreo é realmente seguro. As chances de morrer um acidente de estrada, em um veículo motorizado, são de uma em cinco mil. Muito mais arriscado do que em um avião. Com medo de voar? É mais fácil morrer atacado por um cão. Disponível em: < http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/com-medo-de-voar-e-mais-facilmorrer-atacado-por-um-cao>. Acesso em: 4 set 2016.

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Há de se sopesar as empresas aéreas na atualidade têm lucros consideráveis devido ao planejamento de suas ações, aos incentivos estatais, aos maciços recursos públicos e privados, além do grande aumento de sua base de consumidores. Ou seja, hoje em dia, não deve haver mais dúvidas de que as empresas aéreas desenvolvem um serviço que se molda às relações de consumo e que são regulamentadas pelo CDC. Frise-se que se a proteção às empresas aéreas foi fundamental para o desenvolvimento da respectiva prestação de serviços, que tinha parâmetros sociais e tecnológicos diferentes dos atuais. Da mesma forma, a proteção jurídica liberal que se perseguia à época era diferente da atual, que exige uma hermenêutica calcada na proteção holística do ser humano. Nesse passo, importante se faz destacar que o serviço de transporte aéreo é de elevado interesse social, inclusive representando um serviço de caráter público essencial em sentido amplo. Para Hely Lopes Meirelles,16 constitui uma espécie de serviço público, pois se encontra regido por normas estatais e por controles para satisfazer necessidades

essenciais

da

comunidade.

Portanto,

sujeita-se

ao

regime

de

responsabilidade objetiva e de reparação integral, nos termos da CRFB/8817. Também às regras que regem o serviço de transporte aéreo, aplica-se a regulação estatal que, na lição de Márcio Aranha, se insere na “compreensão da intervenção estatal como garantia de preservação das prestações materiais essenciais à fruição dos direitos fundamentais, sejam elas prestações de serviços públicos ou privados, sobre as quais se aplica a insígnia da regulação.18” Assim, necessária se faz - para análise sistemática e em diálogo das fontes,19 sobre o dever de indenizar por extravio de bagagem no transporte aéreo internacional - a verificação dos normativos que versam sobre a matéria na atualidade. 3. DA CONVENÇÃO DE VARSÓVIA À PROTEÇÃO JURÍDICA AO CONSUMIDOR NO BRASIL Visando fomentar o transporte aéreo internacional, em 12 de outubro de 1929, foi assinada, em Varsóvia, a “Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional” ou Convenção de Varsóvia. Em novembro do mesmo 16

MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo Brasileiro. 41ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 408. CRFB/88, Art. 37. § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 18 ARANHA, M. I. Manual de Direito Regulatório. 3. ed. Londres: Laccademia, 2015, p. 408. 19 Sobre o tema: MARQUES, Claudia Lima. O diálogo das fontes como método na nova teoria geral do direito. Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 18, 66. 17

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ano, o Brasil se tornou signatário do referido instrumento internacional, destacando-se que ele foi ratificado dois anos depois, em 1931, pelo Decreto 20.704. Para fins deste estudo, ressalte-se dessa Convenção: o conceito de transporte internacional;20 a opção pela responsabilidade subjetiva com culpa presumida do transportador aéreo,21 em caso de perda ou extravio de bagagem; a limitação ou tarifação22 do dever de indenizar por dano material, em caso de perda ou extravio de bagagem. Esse instrumento que deve ser entendido segundo o contexto as época, quando se buscava proteger as empresas que iniciavam a regularidade do transporte aéreo. A mencionada Convenção foi sucessivamente atualizada e difundida pelos Protocolos de Haia (1955), da Guatemala (1971) e a Convenção de Montreal (1975), esse concluído em setembro de 1999 e ratificado, no Brasil, pelo Decreto 5.910, de 5 de setembro de 2006. A Convenção de Montreal inovou em relação às anteriores, sobretudo no sentido de que a responsabilidade civil passou de subjetiva com culpa presumida, para objetiva.23 Significa que, em regra, nas relações de consumo, não se afere culpa para a caracterização do dever de reparar o dano causado ao consumidor ou a coisas que se desloquem no espaço. Ressalte-se, nesse sentido, o magistério de Bruno Miragem, para quem: o transportador, no contrato de transporte, assume a obrigação de executá-lo de modo a realizar seu resultado útil, que é a deslocação espacial da pessoa ou coisa ao seu destino ajustado. Nesses termos, usa-se dizer que assume a obrigação de resultado, indicando que se compromete com a finalidade útil,

Convenção de Varsóvia [...]: Art. 1º “(2) Denomina-se ‘transporte internacional’[...] todo transporte em que, de acordo com o estipulado pelas partes, o ponto de partida e o ponto do destino, haja ou não interrupção de transporte, ou baldeação, estejam situados no território de duas Altas Partes Contratantes, ou mesmo no de uma só, havendo escala prevista em território sujeito á soberania, suserania, mandato ou autoridade de outro Estado, seja ou não Contratante. O transporte, que, sem tal escala, se efetuar entre territórios sujeitos a soberania, suserania, mandato ou autoridade da mesma Alta Parte Contratante, não se considera internacional, nos termos desta Convenção”. 21 É o que se depreende da leitura atenta dos artigos 17, 20 e 21 da mencionada Convenção. 22 Decreto 20.704/31 - Artigo 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga. (...) 2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino. (grifou-se). 23 Ver art. 17, (...) 2. O transportador é responsável pelo dano causado em caso de destruição, perda ou avaria da bagagem registrada, no caso em que a destruição, perda ou avaria haja ocorrido a bordo da aeronave ou durante qualquer período em que a bagagem registrada se encontre sob a custódia do transportador. Não obstante, o transportador não será responsável na medida em que o dano se deva à natureza, a um defeito ou a um vício próprio da bagagem. No caso da bagagem não registrada, incluindo os objetos pessoais, o transportador é responsável, se o dano se deve a sua culpa ou a de seus prepostos. (grifou-se). 20

8 de modo que qualquer evento que impeça a consecução dessa finalidade insere-se a priori no âmbito de sua responsabilidade.24

Como analisado adiante, não há razão para que a Convenção de Montreal permaneça a limitar ou tarifar a responsabilidade civil decorrente de extravio ou perda de bagagem em contrato de transporte aéreo internacional na atualidade, seja porque a época protecionista das companhias aéreas não mais se justifica, seja pela proteção constitucional e consumerista que se impõe ao consumidor na atualidade. Lembre-se de que, historicamente, a celeuma da indenização por danos aéreos já encontrava previsão, ainda que de maneira tímida, no Texto Magno de 193425, sendo o assunto incluído nas cartas posteriores de 1937, 1946, 1967 e na Emenda Constitucional nº 1, de 1969.26 É indispensável, para os fins a que este estudo se propõe, a averiguação sistemática dos dispositivos constitucionais que versam sobre o tema da responsabilidade civil decorrente do extravio ou perda de bagagem em contrato de transporte aéreo internacional de passageiros. Assim, na atualidade, em primeiro lugar, o Estado tem por fundamento máximo a dignidade da pessoa humana27 e, por objetivo, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária28 que não pode desconsiderar a necessidade de diminuir vulnerabilidades, como a dos consumidores, por meio de eficazes instrumentos. Nesse contexto, a Constituição da República Federativa Brasileira (CRFB) de 1988 estabeleceu de maneira expressa29 que, em atendimento ao princípio da reciprocidade, quanto à ordenação do transporte internacional, deve-se observar os acordos dos quais o Brasil é signatário. Tal previsão é estatuída pelo artigo 178 da CRFB/88 que deve ser lido em consonância com o que reza o artigo 170, V30 e, especialmente, com o teor do § 2º do artigo 5.º do mesmo diploma jurídico. Isso para que se entenda que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros, decorrentes do regime e dos 24

MIRAGEM, Bruno. Direito Civil: Responsabilidade civil .São Paulo: Saraiva, 2015, p. 735. CF 1934 (...) Art. 132 - Os proprietários, armadores e comandantes de navios nacionais, bem como os tripulantes na proporção de dois terços pelo menos, devem ser brasileiros natos, reservando-se também a estes a praticagem das barras, portos, rios e lagos. 26 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Art. 178. Comentários à Constituição. São Paulo: Saraiva, 2014. 27 CRFB/88 Art. 1º (...) constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana. 28 CRFB/88, art. 3.º I. 29 CRFB/88 (...) art. 178: “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1995). 30 CRFB/88 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V – a defesa do consumidor. 25

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princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República brasileira seja parte. Crítica ao que dispõe o referido artigo 178 da CRFB/88 pode ser vista, exempli gratia, em Alexandre Santos de Aragão, para quem: O artigo sob comento [...] parece conter exceção a referido princípio da paridade hierárquica, na medida em que determina que a lei que versar sobre ordenação do transporte internacional deverá necessariamente observar os tratados internacionais, independentemente de ser mais específica ou posterior ao mesmo, o que equivale a dizer que o tratado internacional – após a sua devida promulgação através de decreto – sempre prevalecerá, sob pena de incidir a lei ordinária em vício de inconstitucionalidade.31

Nesse diapasão, antes de se passar aos demais dispositivos previstos na CRFB/88 sobre o tema, mister se torna refletir sobre a lição de Antônio Herman Benjamin, segundo o qual, “sem maior digressão, é lícito afirmar que os limites indenizatórios do transporte aéreo não passam pelo teste constitucional da dignidade da pessoa humana nem, muito menos, da justiça e da solidariedade social.”32. Afinando-se com a necessidade de proteção da pessoa humana, vale a seguinte lição constitucionalista de Luís Roberto Barroso: O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo frequentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos. 33

A regra histórica de proteção às companhias aéreas do início do século XX não passa pelo filtro constitucional da proteção holística ao ser humano, que impõe a indenização em caso de ofensa a seus direitos, sejam morais ou patrimoniais. Nessa linha, o capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais da Carta Magna, inciso XXXII do artigo 5.º, estabelece que, na forma da lei, o Estado promoverá a defesa do consumidor, o que indutivamente leva ao entendimento de que há a necessidade estatal de assegurar a proteção do consumidor, como forma de efetivação dos direitos fundamentais e da proteção humana. Tal mandamento constitucional foi atendido por meio do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que deu origem ao CDC em setembro de 1990. Esse Código trata, especialmente, do consumidor nas relações de

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ARAGÃO, Alexandre Santos de. Comentário ao artigo 178. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W. et al. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 3995. 32 BENJAMIN, Antonio Herman V. O transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v.. 100. p. 41. 33 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/da_falta_de_efetividade_a_ judicializacao_excessiva.pdf. Acesso em: 10 ago. 2016.

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consumo do transporte aéreo internacional, tendo como principal fundamento a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, entendemos que não há de se discutir a eficácia desse dispositivo constitucional que, para alguns, tem eficácia limitada frente ao normativo que positiva a regra: “direitos e garantias têm aplicação imediata”. Significa que direitos e garantias não podem ser postergadas por ausência legal ou, ainda, segundo lição doutrinária de Luís Roberto Barroso, que “O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis deve prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional.”34 O referido autor ainda afirma, de forma expressa, que o hermeneuta não deve se escudar em argumentos que neguem a aplicabilidade da norma constitucional. Ainda sobre a eficácia da norma de proteção ao consumidor, que tem aplicação imediata, cabe a lição de Gilmar Mendes e Paulo Gonet: “os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e, sobretudo, normas diretamente regulamentadora de relações jurídicas.”35 As normas relativas aos consumidores têm amparo constitucional e, portanto, não podem sofrer erosão por atos internacionais ratificados pelo Brasil antes da Emenda Constitucional nº 45/2004. Elas possuem status de norma supralegal, ou seja, estão subordinadas à Constituição. Essa distinção se tornou possível em virtude da Emenda Constitucional n. 45/2004, que possibilitou normas internacionais serem recepcionadas com hierarquia equivalente à Constituição. Seu rito é próprio, estabelecido pelo artigo 5°, §3° e, consequentemente, os demais tratados ratificados sem aquelas condições são recepcionadas com o status de norma supralegal. Dessa forma, pela interpretação constitucional calcada no princípio da máxima efetividade, a proteção do consumidor deve prevalecer juridicamente sobre os tratados ratificados que estabelecem a indenização tarifada. Isso porque o entendimento em contrário diminuiria a proteção prevista na Magna Carta e, dessa maneira, a própria dignidade da pessoa humana. Diferente não é a lição de Carlos Roberto Gonçalves, no sentido de que não vale o argumento do artigo 178 da Carta Magna que determina, em matéria de transporte internacional, a prevalência absoluta da observância aos acordos firmados pela União, 34

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a Construção de Novo Modelo. 5 .ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 35 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

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em atendimento ao princípio da reciprocidade. “Desarrazoado seria a Constituição Federal determinar a inobservância dos referidos acordos. Não se disse, contudo, que devem prevalecer sobre a legislação ordinária no país e muito menos sobre a Lei Maior, no que os contrariem.” 36 Destaque-se que a hermenêutica constitucional atual tem como um de seus pilares o princípio da máxima eficácia, no sentido de que cada dispositivo deve ser entendido isolada e teleologicamente, buscando a cristalização dos direitos fundamentais ou conforme literatura sobre o assunto: O princípio da máxima efetividade significa que a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceder. Na realidade, é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer outras normas constitucionais. Embora sua origem esteja relacionada à tese da atualidade das normas programáticas, hodiernamente é invocada no âmbito dos direitos fundamentais; ou seja, no caso de dúvidas, o intérprete deve preferir a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais.37

Outro ponto hermenêutico que não pode ser olvidado é que a incorporação de tratados e a recepção do transconstitucionalismo pela doutrina e pela jurisprudência são fatos da realidade e, praticamente, não são negados. Há situação em que ocorrem conflitos entre as normas internas e as que são ratificadas.38 Uma das técnicas possíveis e que pode ser utilizada para sanar o conflito em tela é a utilização do princípio pro homine. O princípio pro homine é definido como um “critério hermenêutico, critério interpretativo, guia interpretativo, ou un conjunto de parâmetros sendo um conjunto de directrizes para la interpretación y aplicación del derecho de los derechos humanos.” Ele foi amplamente reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em suas opiniões consultivas (OC), uma das competências dessa Corte. Houve reconhecimento expresso do princípio pro homine na OC 7, de 1986, solicitada pela Costa Rica, em face da aplicabilidade do Pacto Interamericano frente ao direito de acesso à informação. 39 Por esse prisma, a resolução de conflitos entre normas não utilizaria, apenas, critérios clássicos como a hierarquia, a especialidade e a temporalidade, já que pode haver celeumas em âmbito constitucional, como é o caso da proteção ao consumidor e 36 37

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 302-303.

NISHIAMA, Adolfo Mamoru. Os princípios da interpretação constitucional: a razoabilidade, a proporcionalidade e outros princípios interpretativos. Meritum, 2011, v. 6, n. 1, p. 209-250. 38 Há de se lembrar de que na atualidade os tratados ratificados pelo Brasil podem ter status equivalentes às emendas a Constituição (art. 5°, §3°), ter status supra legal como julgados do STF ou ainda hierarquia de lei ordinária federal, tal como demonstra a jurisprudência mais antiga da Corte Suprema brasileira. 39 CLÉMENT, Ziata Dmas de. La conplejidad del princípio pro homine. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/tablas/r33496.pdf. Acesso em: 10 jun 2016.

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da reciprocidade aos tratados sobre transporte aéreo. Esse caso seria resolvido pelo princípio pro homine. Os jurisconsultos Luiz Flávio Gomes e Valério Mazzuoli assim se posicionam sobre a forma de utilização técnica hermenêutica em situações concretas: [...] em matéria de direitos humanos valem também outros critérios, destacando-se: (a) o da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito clique da lei anterior mais protetiva); (b) princípio "pro homine "(que conduz ao diálogo entre as várias fontes normativas). Como diz Valério Mazzuoli, as fontes dialogam (admitem duas lógicas).40

Uma analogia para elucidação do presente artigo pode ser encontrada em Valério Mazzuoli, ao analisar o possível conflito entre uma norma interna e um ato normativo internacional em matéria de direito trabalhista ratificado. De forma clara, sobre qual delas deve prevalecer, Mazzuoli afirma: Não obstante a reforma do texto constitucional brasileiro, pela EC n. 45/2004, ter autorizado a integração formal de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos (como é o caso das convenções da OIT) no ordenamento jurídico nacional, ainda assim pensamos que em havendo conflito entre uma convenção internacional do trabalho ratificada e as leis internas nacionais, deverá prevalecer a norma mais favorável ao ser humano, em homenagem ao princípio pro homine. Sendo um dos propósitos da OIT a universalização das regras trabalhistas, não seria bom para o trabalhador que eventuais normas das convenções adotadas pela Conferência Internacional do Trabalho fossem menos favoráveis à proteção dos seus direitos em relação às normas do Direito interno de seu país.41

Saliente-se que a analogia é possível, porque o direito do trabalho e o consumerista têm, em sua lógica interna, efetivar a proteção constitucional ao hipossuficiente, ou seja, em ambos os casos a proteção à pessoa humana deve ser efetivada. Portanto, torna-se claro que o princípio hermenêutico pro homine impõe que, no caso concreto, a análise seja realizada com base na efetivação de direitos da pessoa humana, já que, na atualidade, os juristas não são restringidos pela hierarquia normativa; essa passa a ser flexível quando se busca a proteção da dignidade da pessoa humana. Em síntese, tem-se a seguinte lição: Por força do princípio interpretativo pro homine [...], cabe enfatizar o seguinte: quando se trata de normas que asseguram o direito, vale a que mais amplia esse direito; quando ao contrário estamos diante de restrições ao gozo de um direito, vale a norma que faz menos restrições; em outras palavras, a

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GOMES, Luiz Flávio. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Constituição brasileira e os tratados de direitos humanos: conflito e critério de solução. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 27 maio 2009. 41 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Integração das convenções e recomendações internacionais da OIT no Brasil e sua aplicação sob a perspectiva do princípio pro homine. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, 2013, p. 43.

13 que assegura de maneira mais eficaz e mais ampla o exercício de um direito.42

Em dezembro de 1986, foi promulgado o CBA que, no tocante a este escrito, na Seção V, trata da responsabilidade civil em voos domésticos, com relação à carga. Percebe-se, contudo, na leitura dos artigos 262 a 266, que o CBA se vale dos mesmos critérios da Convenção de Montreal, quanto à tarifação, limitação e dever de indenizar por danos materiais, em decorrência de perda ou extravio de bagagens. Já o CC, posterior à Convenção de Varsóvia, ao CBA e ao CDC, destina a esse assunto um capítulo inteiro (capítulo XIV, artigos 730 a 756), de forma diversa da omissão havida no CC de 1916, justificada, quanto ao tema e à regulação do transporte aéreo, pela época de sua promulgação. Especificamente, no que diz respeito ao objeto deste ensaio, vale o que afirma o artigo 732 do CC, no qual se lê, in verbis: “Aos contratos de transporte, em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais.” (grifou-se). Dessa maneira, o entendimento é de que não há dúvidas de que, em termos gerais, o CC revogou formalmente a Convenção de Varsóvia, naquilo que o contraria em matéria de contratos de transporte.43 Por outro lado, o CDC foi criado com vistas a atender o mandamento constitucional previsto no artigo 5.º, XXXII.44 Assim, primeiramente, é de se levar em consideração que o CDC é norma de ordem pública.45 Nesse sentido, Claudia Lima Marques leciona que essa ordem representa “valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse social, daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos.”46 (grifou-se). Além disso, o CDC, ao contrário dos demais dispositivos legais vistos até aqui, possui um sujeito de direitos que, necessariamente, carece de proteção, qual seja, o consumidor. Esse sujeito, nos termos do artigo 4.º, inciso I, é a parte vulnerável nas

GOMES, Luiz Flávio. Direito Internacional dos Direitos Humanos – Validade e operacionalidade do princípio pro homine. De Jure Revista Jurídica do Ministério Público de Minas Gerais. Jul-set, 2014. 43 É o que afirma MIRAGEM. Bruno. Nota ao artigo. Transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Antônio Hermann Benjamim, Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 100. p. 42. 44 CRFB/88. Art. 5.º, (...) XXXII – O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. 45 CDC Art. 1.º - Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias. (grifou-se). 46 MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. BENJAMIN, Antonio Herman V; MIRAGEM, Bruno. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 60. 42

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relações de consumo47. Cumpre-se, dessa maneira, o imperativo constitucional de se construir uma igualdade material necessária à construção do Estado Democrático de Direito. Nessa vertente, o artigo 6º do CDC, que versa sobre os direitos básicos do consumidor, em seu inciso VI, preceitua ser basilar “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.”48 É o que Nelson Nery Júnior, com propriedade, chamou de restitutio in integrum. Para ele, a existência de tratado internacional sobre limitação de responsabilidade civil derivada de acidente aéreo, subscrito pelo Brasil, não empece a indenização integral aqui referida, pois, no particular, o CDC revogou tacitamente os dispositivos do CBA, equivalendo, na prática, à denúncia parcial do tratado.49 Ora, se o artigo 3º, § 2º do CDC deixa clara a incidência das normas do CDC sobre contratos de transporte aéreo - serviço oferecido no mercado de consumo mediante remuneração50- , fica implícito que, em havendo conflito entre as normas da Convenção de Varsóvia, o CC e o CDC, esse deve prevalecer, pois estar-se-á protegendo efetivamente o consumidor. Nessa esteira e abordando o artigo 170 do Texto Maior - “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]” -, é indispensável a reflexão trazida à lume por James Marins, para quem uma garantia constitucional desta magnitude, possui, no mínimo, como efeito imediato e emergente, irradiado de sua condição de princípio geral da atividade econômica do país, conforme erigido pela nossa Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer norma que possa consistir óbice à defesa desta figura fundamental das relações de consumo, que é o consumidor.51 (grifou-se).

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CDC Art. 4.º, I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Para conferir as teorias sobre as espécies de vulnerabilidades, cf. KHOURI, Paulo Roberto Roque Antonio. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 17; BENJAMIN, Antonio Herman; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 59. 48 CDC Art. 6°, VI. 49 NERY JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 3, p. 59. 50 Nesse sentido, MIRAGEM. Bruno. Nota ao artigo. Transporte aéreo e o Código de Defesa do Consumidor. Antônio Hermann Benjamim, Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 100. p. 39. 51 MARIN, 1996, apud ALVIM, Eduardo Arruda; JORGE, Flávio Cheim. A responsabilidade civil no Código de Proteção e Defesa do Consumidor e o transporte aéreo. Revista de Direito do Consumidor, v. 19, p. 127.

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É claro, além disso, que o CDC fez opção pela responsabilidade civil objetiva e solidária - calcada na teoria do risco criado52, que também pode ser denominada de risco da atividade - de todos que se disponham a exercer uma atividade profissional ou empresarial que, por sua natureza, possua riscos. Esses devem responder pelos danos causados independentemente de culpa. Portanto, há de se notar que, no tocante à proteção ao consumidor, inclusive, em caso de extravio de bagagem, já não pode ser aplicada, inteiramente, a vetusta Convenção de Varsóvia e suas atualizações, já que elas colidem com a intenção do constituinte de proteger o consumidor com a máxima efetividade, tal como já demonstrado. 4. CONSTRUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NA PROTEÇÃO CONSUMIDOR EM CASO DE EXTRAVIO DE BAGAGEM

AO

A controvérsia do dano tarifado, em caso de transporte aéreo, já foi muito debatida nos tribunais brasileiros. Preliminarmente, extrai-se da obra de Rodrigues e Agostinho53, na vigência do CBA, que a jurisprudência era firme no sentido de que, no caso de extravio de mercadoria em transporte aéreo, se a perda não guardasse relações com os riscos de voo, a análise da responsabilidade da transportadora poderia se descolar para o Direito Civil, justificando-se a indenização pela totalidade do prejuízo (RT 587/139, RTTJRS 74/668 e RT 560/209). No entanto, após a promulgação do CDC - que lançou um novo marco normativo sobre o assunto e se afinou com a hermenêutica constitucional concretizadora da garantia ao consumidor-, o STJ passou a entender que a responsabilidade civil do transportador aéreo pelo extravio de mercadoria subordina-se ao princípio da ampla reparação. É o que se percebe em diversos julgados da Egrégia Corte, dos quais se destacam: o AgRg no REsp 1060792/RJ54, o AgRg no Ag 1230663/RJ55 e o REsp 173526/SP.56 52

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 257. 53 RODRIGUES & AGOSTINHO. Jurisprudência do Transporte Aéreo, Marítimo e Terrestre. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 41-42. 54 PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL. PRESCRIÇÃO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA. - A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de prevalência das normas do CDC em relação à Convenção de Varsóvia, inclusive quanto à prescrição. - Negado provimento ao agravo. (AgRg no REsp 1060792/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/11/2011, DJe 24/11/2011) 55 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRANSPORTE AÉREO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. 1. Após o advento do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade civil do transportador aéreo pelo extravio de mercadoria subordina-se ao princípio da ampla reparação, afastando-se a indenização tarifada prevista na Convenção de Varsóvia. 2. Em se tratando de danos morais, torna-se incabível a análise do

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Aliás, o STJ tem entendimento solar no sentido da prevalência do CDC sobre a Convenção de Varsóvia e suas posteriores modificações (Convenção de Haia e Convenção de Montreal) e sobre o CBA, como se vê, verbi gratia, na ementa do AgRg no Ag 1409204/PR57. Na perspectiva da ampla indenização, o STJ não hesitou em asseverar que as indenizações pré-tarifadas nos mencionados diplomas não se aplicam aos pleitos de indenização por dano moral no Brasil, como se percebe nas ementas do AgRg no AREsp 27.528/RJ58 e do AgRg no AREsp 34.280/RJ59.

recurso com base na divergência pretoriana, pois, ainda que haja grande semelhança nas características externas e objetivas, no aspecto subjetivo, os acórdãos são sempre distintos. 3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no Ag 1230663/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 24/08/2010, DJe 03/09/2010) 56 RESPONSABILIDADE CIVIL. Transporte aéreo Internacional. Limite indenizatório. Dano moral. 1. A perda de mercadoria em transporte aéreo internacional, causada pela negligência da empresa, deve ser indenizada pelo seu valor real, não se aplicando a regra da indenização tarifada. 2. É possível a condenação pelo dano moral resultante da perda durante o transporte. Divergência superada. Recurso conhecido em parte, mas improvido. (REsp 173.526/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 22/05/2001, DJ 27/08/2001, p. 339) 57 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO INSTRUMENTO AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. TRANSPORTE AÉREO. DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO VALOR. RAZOABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. APLICAÇÃO DE MULTA. 1. A verificação da legitimidade ativa da primeira agravante, para fins de pleitear a indenização por danos materiais e morais ao fundamento de que estes não ficaram comprovados, implica no reexame da matéria fática constante dos autos, na qual se apoiou o Tribunal local para decidir a questão. Tem incidência a Súmula 7 do STJ. 2. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de prevalência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) em relação à Convenção de Varsóvia, com suas posteriores modificações (Convenção de Haia e Convenção de Montreal), e ao Código Brasileiro de Aeronáutica, nos casos de responsabilidade civil decorrente de má prestação dos serviços pela Companhia aérea. 3. Não se revelando abusivo ou irrisório o valor indenizatório arbitrado a título de reparação pelo dano moral, não há justificativa para intervenção desta Corte. No caso, as circunstâncias que levaram à fixação do valor do dano moral são de natureza personalíssima, isto é, foram consideradas as questões subjetivas e peculiares da causa examinada, o que descaracteriza o dissídio alegado e atrai a incidência da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo regimental não provido, com aplicação de multa. (AgRg no Ag 1409204/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2012, DJe 01/10/2012). 58 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS - EXTRAVIO DE BAGAGEM EM VÔO INTERNACIONAL - DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL - DANO MORAL - SÚMULA 7/STJ - APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR EM DETRIMENTO DA CONVENÇÃO DE VARSÓVIA - VALOR INDENIZATÓRIO RAZOABILIDADE. 1.- Esta Superior Corte já pacificou o entendimento de que não se aplica, a casos em que há constrangimento provocado por erro de serviço, a Convenção de Varsóvia, e sim o Código de Defesa do Consumidor, que traz em seu bojo a orientação constitucional de que o dano moral é amplamente indenizável. (AgRg no AREsp 27.528/RJ, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, DJe 03/10/2011). 59 AGRAVO REGIMENTAL. VOO. ATRASO. CONVENÇÃO DE MONTREAL. DANOS MORAIS. RAZOABILIDADE. ACÓRDÃO FUNDADO NOS ELEMENTOS FÁTICOS DOS AUTOS. SÚMULA 07/STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que "as indenizações tarifadas, previstas na Convenção de Varsóvia e modificações posteriores (Haia e Montreal), não se aplicam ao pedido de reparação de danos morais decorrentes de defeito na prestação de serviço de transporte aéreo internacional" ((EDcl no AgRg no Ag 442487/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/11/2007, DJ 26/11/2007 p. 164). (AgRg no AREsp 34.280/RJ, desta relatoria, QUARTA TURMA, DJe 18/10/2011).

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O STF também não vacilou quanto à questão do dano moral. No julgamento do RE 17272060, assentou-se o precedente de que a indenização tarifada da Convenção de Varsóvia é exclusiva para danos materiais e não exclui a relativa aos danos morais. Nesse passo, é importante ressaltar que a Convenção de Varsóvia, com a atualização da Convenção de Montreal, assim como o CBA, não distingue dano moral de dano material, no que concerne ao dever de indenizar pelos danos causados pela perda de bagagem. Aliás, a mens legislatoris pareceu clara no sentido de restringir e limitar qualquer espécie de dano. Tão absurda era a intenção de se continuar a aplicar normas protecionistas para as empresas, que já não fazia sentido social nem havia amparo jurídico. Os tribunais brasileiros se encarregaram de invalidá-la, restando apenas o passo de extinguir o dano tarifado em sua integralidade. No entanto, no STF, há um dos últimos bastiões da validade do dano material tarifado, calcada na declaração da prevalência da Convenção de Varsóvia sobre o CDC, orientando-se pela inteligência do artigo 178 da CRFB/88. A Corte Suprema brasileira decidiu, no julgamento do RE 29790161, que embora válida a norma do CDC, no caso específico do transporte internacional aéreo, com base no referido artigo 178, prevaleceria a Convenção de Varsóvia, que determina prazo prescricional de dois anos. 5. JULGAMENTO CONJUNTO DO RE 636331 E DO ARE 766618: O CASO ESPECIAL SOBRE AS INDENIZAÇÕES EM CASO DE EXTRAVIO DE BAGAGEM - AINDA HÁ ESPERANÇA Frente às controvérsias judiciais acima elencadas, dois casos especiais aguardam julgamento no STF: o RE 636331 e o ARE 766618. Salientamos que os chamamos de especiais porque esses julgados terão o condão de balizar a atuação dos tribunais sobre o 60

INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - EXTRAVIO DE MALA EM VIAGEM AÉREA CONVENÇÃO DE VARSÓVIA - OBSERVAÇÃO MITIGADA - CONSTITUIÇÃO FEDERAL SUPREMACIA. O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes do extravio de mala, cumpre observar a Carta Política da República - incisos V e X do artigo 5º, no que se sobrepõe a tratados e convenções ratificados pelo Brasil. (STF - RE: 172720 RJ, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 06/02/1996, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 21-02-1997. 61

PRAZO PRESCRICIONAL. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA E CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal se refere a tratados internacionais relativos a direitos e garantias fundamentais, matéria não objeto da Convenção de Varsóvia, que trata da limitação da responsabilidade civil do transportador aéreo internacional (RE 214.349, rel. Min. Moreira Alves, DJ 11.6.99). 2. Embora válida a norma do Código de Defesa do Consumidor quanto aos consumidores em geral, no caso específico de contrato de transporte internacional aéreo, com base no art. 178 da Constituição Federal de 1988, prevalece a Convenção de Varsóvia, que determina prazo prescricional de dois anos. 3. Recurso provido. (STF - RE: 297901 RN, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 07/03/2006, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 31-03-2006.

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assunto, reposicionando a doutrina e a prática de proteção ao consumidor que tem amparo constitucional e em legislação especial. O STF encontra-se debruçado sobre a questão que envolve as regras e princípios delineados ao longo deste ensaio, no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário (RE) 636331 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 766618. Em ambos os casos, a questão discutida é se conflitos relativos à relação de consumo em transporte internacional de passageiros devem ser resolvidos segundo as regras estabelecidas nas convenções internacionais que tratam do assunto ou pelo CDC. A matéria teve repercussão geral reconhecida. As recorrentes, empresas do setor de aviação civil, alegam que o julgado violou frontalmente o artigo 178 da Constituição Federal. Elas entendem, em síntese, que se deve aplicar a Convenção de Varsóvia ao caso e não o CDC, o que justifica a intervenção do STF no caso, para fazer prevalecer as regras dessa Convenção. É importante salientar que o apelo extremo não foi admitido na origem, sendo, então, interposto o agravo cabível que, por sua vez, ao ser julgado, restou provido, determinando-se sua conversão em recurso extraordinário. Nesse sentido, a Procuradoria-Geral da República requereu que o recurso não fosse provido, sob o argumento de que o Tribunal a quo perfeitamente dirimiu a controvérsia. Isso quando afirmou que deve prevalecer o CDC no caso em tela, inclusive por expressa disposição Constitucional sobre o tema, consoante se observa no artigo 5º, XXXII. O STF, aliás, havia decidido o seguinte: “afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor.”62 Por fim, o Ministério Público alegou não haver, na espécie, qualquer ofensa ao artigo 178 da Constituição Federal, conforme bem expôs o Ministro Marco Aurélio no julgamento do AI n.º 824673/SP, em 8 de setembro de 2011. Em mais um ato, o julgamento foi suspenso em 8 de maio de 2014, após pedido de vista da Ministra Rosa Weber, e ainda não tem data para sua conclusão. Tal fato causa, por um lado, insegurança jurídica e, por outro, clara negação de direitos fundamentais que, como explicitado, tem aplicabilidade imediata.

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(RE 351750, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Carlos Britto, Primeira Turma, julgado em 17/03/2009, DJe-181 Divulgado 24-09-2009 Publicado 25-09-2009 Ementa Vol02375-03 PP-01081 RJSP v. 57, n. 384, 2009, p. 137-143).

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Ainda sobre o julgamento, espera-se que os ministros envolvidos sigam o atual posicionamento judicial sobre a aplicação do CDC, tendo em vista sua afinidade com a Constituição, no sentido de proteção à pessoa humana e, assim, ao consumidor. Esperase, ainda, que os envolvidos sigam sua doutrina, clara ao afirmar que o intérprete da Constituição deve sempre buscar a efetivação máxima dos direitos fundamentais, frente às normas internas e mesmo às internacionais. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Demonstrou-se que a aviação civil foi um sonho realizado pela humanidade e que, na atualidade, é um serviço eficaz, seguro e cada vez mais utilizado pela população em geral. Há um constante incremento em suas atividades internas e internacionais. Constatou-se que, para o desenvolvimento das atividades de transporte aéreo de pessoas e cargas, no início, houve uma legislação protetiva encabeçada pela Convenção de Varsóvia, que já previa limite para a indenização a seus passageiros. Essas medidas foram constantemente retificadas pelos instrumentos jurídicos internacionais que atualizaram as disposições sobre a aviação civil, como a Convenção de Montreal, por exemplo. Contudo, na atualidade brasileira, restam poucas (ou nenhuma) dúvidas de que as empresas aéreas prestam um serviço e, por isso, estão integralmente sujeitas às regras previstas nos DC, que é uma norma de cunho público, com forte amparo constitucional. Assim, há uma colisão clara entre as normas do CDC e a Convenção de Varsóvia sobre o limite da indenização aos passageiros/consumidores, já que a norma consumerista impõe a responsabilidade integral, e a previsão internacional, ratificada pelo Brasil, estabelece um limite tarifado. Essa divergência, tal como demonstrado, foi praticamente dirimida pela doutrina e pela jurisprudência pátria, especialmente pelo STJ. Contudo, ainda estão pendentes ações no STF sobre essa matéria, cujos resultados devem pacificar o assunto. Nesse sentido, após realizarmos uma reconstrução das normas e posições acadêmicas sobre o assunto, buscamos demonstrar que o deslinde dessas questões deve passar pela aplicação dos princípios da máxima efetividade e pro homine. Sobre o primeiro, trata-se de uma técnica interpretativa segundo a qual os direitos fundamentais devem ser manejados de forma a proteger a pessoa humana o máximo possível, ou seja, a Constituição será utilizada como um catalisador de realização dos direitos lá previstos.

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Já o segundo, princípio pro homine, é uma técnica hermenêutica, com reconhecimento doutrinário e jurisprudencial, nacional e internacional, que busca harmonizar disposições jurídicas, de maneira a compor um sistema que, holisticamente, proteja a pessoa humana. Também foi utilizada uma analogia para a demonstração da possibilidade de utilização desses princípios, com a posição lançada por Valério Mazzuoli, para quem o princípio pro homine é um vetor hermenêutico do Direito do Trabalho, uma técnica de proteção ao hipossuficiente que é, também, o sujeito a ser protegido nas relações de consumo. Por fim, afirmamos que o CDC se aplica integralmente às relações de consumo de transporte aéreo, ficando afastada a disposição de dano tarifado conforme a Convenção de Varsóvia e suas atualizações, já que a melhor técnica hermenêutica tem como égide a proteção integral à pessoa humana.

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