Análise de Risco: A Insegurança Alimentar na República Popular da China

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ANÁLISE DE RISCO: A (In)Segurança Alimentar na República Popular da China

Fonte: Council on Foreign Relations

Fonte: The Atlantic

Sofia Dias Ramos, Nº 212430 Unidade Curricular: Técnicas de Tomada de Decisão Docente: Professor Auxiliar Carlos Gonçalves

Lisboa 12 de Julho de 2015

Índice 1. O Desafio da (In)Segurança Alimentar – O Caso Chinês

p. 3

2. Metodologia

p. 5

3. O Sistema Alimentar Chinês: Caracterização

p. 10

4. Análise das Vacuidades e das Aberturas

p. 13

5. Análise das Dinâmicas de Risco

p. 19

6. Conclusões

p. 22

7. Referências Bibliográficas

p. 25

8. Anexos

p. 27

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1. O Desafio da (In)Segurança Alimentar – O Caso Chinês

A alimentação é uma necessidade básica do ser humano. Como tal, a segurança na garantia da satisfação dessa necessidade é fundamental para a sobrevivência e estabilidade do Homem. Desde sempre que esta é uma das questões que faz o mundo e a condição humana evoluírem e transformarem-se. Se em épocas mais antigas os nómadas e os recolectores viajavam em busca de alimento, a sociedade actual fundada na sedentarização faz com que na mesma busca se desenvolvam e se aperfeiçoem os mecanismos de produção e distribuição desse alimento. Em alguns pontos do globo, sensivelmente entre o final dos anos 1990 do século XX e o início do século XXI, uma série de fenómenos, tendências e factores têm vindo a degradar e a colocar em risco a existência de condições adequadas de produção e qualidade alimentar e de acesso a alimentos. O desenvolvimento tecnológico e a intensificação da industrialização provocam alterações climáticas e poluição a vários níveis – ar, solos e água – e um aumento rápido da riqueza, o que traz melhorias nos padrões de vida das populações e leva a um aumento da população a nível mundial. Ora, o aumento da população global que tem vindo a ocorrer nas últimas décadas e a sua distribuição desigual exerce, depois, pressão na procura e utilização dos mais importantes recursos naturais para a garantia de uma adequada produção alimentar: a terra arável e a água. Então, “uma população mais rica, em média, irá necessitar de mais e melhores alimentos” (Moyo, 2013, p. 28) e isso requererá consequentemente mais recursos. O aumento de rendimentos e a melhoria dos padrões de consumo levam também à intensificação do fenómeno da urbanização, cuja prosperidade “atrai vagas sucessivas de migrantes vindos de áreas rurais” (Moyo, 2013, pp. 33-34). Deste cenário surge ainda o fim da auto-suficiência do mercado interno de produtos alimentares de um Estado e como tal o desequilíbrio na oferta e na procura internas. Por sua vez, isso gera o aumento das importações no mercado global de produtos alimentares e um igual desequilíbrio na oferta e na procura externas. O ciclo acima descrito faz da segurança alimentar um desafio global no século XXI. No âmbito deste fenómeno pluridimensional, a República Popular da China (RPC) apresenta, se não todas, muitas das características sintomáticas referidas e que desse

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modo permitem considerar a potencial ocorrência de um cenário de insegurança alimentar a nível nacional e, posteriormente, do colapso do sistema alimentar do país. A China tem actualmente a maior população do mundo. Devido à industrialização que tem vindo a ser operada desde o final dos anos 1970 do século passado a pressão na terra arável e nos recursos hídricos do território nacional bem como as alterações climáticas e a poluição resultantes começaram a verificar-se. O fenómeno da urbanização trouxe o aumento do nível de vida e a emergência de uma classe média significativa em ascensão e subsequentemente fez da China, depois do fim da auto-suficiência do mercado interno, um dos maiores países importadores no mercado global de recursos e produtos alimentares. O Plano de Acção saído da World Food Summit, que ocorreu em 1996 no quadro das Nações Unidas (NU), especificamente no âmbito do organismo das NU para a Alimentação e Agricultura (FAO), define a segurança alimentar como “when all people, at all times, have physical and economic access to sufficient, safe and nutritious food to meet their dietary needs and food preferences for an active and healthy life” e apela aos Estados que adoptem estratégias nacionais de combate à degradação progressiva das condições de um adequado usufruto da segurança alimentar. Este conceito tem quatro dimensões (FAO 2006; 2008): a disponibilidade determinada pelo nível de produção alimentar, de stocks e fluxo de comércio; o acesso dos indivíduos aos direitos e recursos adequados à aquisição de alimentos para uma dieta adequada; a utilização dos alimentos através de uma dieta adequada, de água potável, de saneamento e de cuidados de saúde para alcançar um estado de bem-estar nutricional; e a estabilidade temporal das dimensões anteriores, não arriscando a deterioração do status nutricional das populações devido a choques repentinos e condições adversas (crises climáticas, crises económicas, instabilidade política) ou eventos cíclicos como a insegurança alimentar sazonal. Por sua vez, a insegurança alimentar corresponde então ao inadequado e insuficiente acesso físico e económico a uma alimentação segura e nutritiva para uma vida activa e saudável e pode ser crónica, quando o fenómeno é persistente e de longoprazo, ou transitória, quando o fenómeno é temporário e de curto-prazo (FAO, 2008). Entre estes dois níveis insere-se a insegurança alimentar sazonal, na medida em que “it is similar to chronic food insecurity as it is usually predictable and follows a sequence

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of known events” (FAO, 2008, p. 1) mas como “is of limited duration it can also be seen as recurrent, transitory food insecurity” (FAO, 2008, p. 1). Esta é uma das questões mais críticas para a estabilidade mundial, como para a estabilidade do mercado global, do mercado interno chinês e para a própria estabilidade política e social da RPC, que tem que garantir a produção, o acesso e a obtenção de alimentação suficiente, regular e adequada para aquela que é a maior população do mundo. Actualmente está no topo da agenda global e é, pois, um dos grandes reptos no contexto da realidade nacional chinesa no século XXI. Ora, no ambiente decisional de interacção estratégica relativamente a esta problemática, é fundamental apreender e interpretar os elementos que a compõem e que podem contribuir para o risco de ocorrência de uma aceleração elevada da insegurança alimentar na China, designadamente um cenário de insegurança alimentar a todos os níveis – produção, qualidade, quantidade, distribuição, acesso. Neste sentido, após o enquadramento da temática, o objectivo do presente trabalho é analisar o problema da (in)segurança alimentar enquanto desafio ao qual a RPC tem imperativamente que fazer face na actualidade e, para tal, realizar uma análise de risco aplicada à tomada de decisão relativamente a este problema. Os objectivos específicos são, por sua vez, caracterizar a análise de risco enquanto método de apoio à tomada de decisão e, nesse contexto, analisar e caracterizar o sistema alimentar da China, identificar as vacuidades estruturais e as aberturas que o mesmo possui, investigar em torno do modo como essas podem ser atingidas e conduzir à aceleração elevada da insegurança alimentar na China e depois construir uma teia mórfica orientada em torno do cenário analisado. Para tal, importa então aplicar a análise de risco enquanto ferramenta de apoio à tomada de decisão no cenário específico referido segundo uma abordagem ao risco e uma avaliação do mesmo.

2. Metodologia

Dada a possibilidade de ocorrência de um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar na RPC, que pode propiciar as condições favoráveis ao colapso do próprio sistema alimentar chinês, estamos perante um problema passível de ser abordado por meio de uma análise de risco. Esta tipologia de análise tem como

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objectivo a avaliação de um problema de risco, tal como se apresenta a possibilidade de ocorrência de um aumento da insegurança alimentar na RPC. Então, por um lado demonstramos a importância da questão da insegurança alimentar em ambiente decisional de interacção estratégica e por outro, para abordá-la, demonstramos a necessidade de esclarecer o modo como deve o risco ser abordado. Num mundo em evolução e transformação constantes e aceleradas, repleto de diversos desafios e em situação de instabilidade a múltiplos níveis, o risco de ocorrência de cenários de insegurança alimentar, sejam eles crónicos e por isso permanentes ou sazonais e como tal temporários, surge como uma das questões mais prementes. Então, consideramos a questão da (in)segurança alimentar enquanto problema susceptível de uma análise de risco, o que envolve uma investigação em torno da caracterização da situação presente do sistema alimentar chinês e uma análise das dinâmicas de risco que contribuem, em dinâmica sistémica, para a aceleração elevada da insegurança alimentar na China, o que desse modo pode conduzir ao colapso do sistema alimentar chinês. O presente trabalho consiste portanto na realização de uma análise de risco, uma tipologia de análise que permite e que visa analisar e avaliar o risco associado à disrupção sistémica, neste caso, à aceleração elevada da insegurança alimentar na China, que por sua vez pode provocar o colapso do sistema alimentar chinês. Para tal, as teias mórficas constituem, em termos metodológicos, a técnica mais adequada a aplicar à análise de risco proposta, na medida em que estamos perante um problema dinâmico que cruza diferentes áreas com causalidade sistémica (demografia, ambiente, saúde, segurança, economia, mercados financeiros, política, sociedade, cultura, tecnologia) e esta técnica revela elevada eficácia na abordagem a problemas como esse, com incerteza estratégica e de elevada complexidade dinâmica. Primeiro, é essencial conceptualizar as noções centrais para a compreensão da metodologia e técnicas aplicadas no âmbito da análise de risco e sintetizar a investigação científica em torno das problemáticas associadas. No seio dos Estudos Estratégicos, o conceito de Estratégia é originário do termo grego strategia, que significa “comando”, termo derivado de strategos, que significa “general” e que, por sua vez, tem origem em strátos, que significa “aquilo que está disposto”, em agos, que significa “líder”, e em agein, que significa “liderar”. Esta noção está, pois, ligada à noção de liderança e a um sentido de acção, arbítrio e controlo. A abordagem à noção de estratégica é pertinente pela sua aplicação ao planeamento e

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organização de acções com vista a objectivos definidos em função de fins previamente estabelecidos, isto é, pela sua aplicação no apoio à tomada de decisão estratégica. No contexto da questão do risco e da sua ontologia sistémica, importa abordar o conceito em si e o trabalho de investigação científica em torno do mesmo, ou seja, a ciência geral do risco, fundamentada na base paradigmática da cibernética e influenciada pela ciência dos sistemas e as ciências da complexidade. O risco é definido, enquanto conceito central para a ciência geral do risco, a partir do seu termo latim resicum, que sintetiza em simultâneo as noções de periculum (perigo, ameaça), fortuna (sorte, destino) e incerteza, correspondendo assim a “uma ideia de jogo de sobrevivência, em que se joga para sobreviver em situações de exposição a ameaças e com um resultado em aberto” (Gonçalves, 2013a, p.5). A ciência geral do risco expandiu o conceito e passou a trabalhá-lo enquanto “nome para situações concretas sistémicas em que são identificáveis ameaças, oportunidades e incerteza quanto ao desfecho das situações” (Gonçalves, 2013a, p. 5). Actualmente, o risco é “a central strategic problem for human organizations that face interconnected risk situations” (Gonçalves, 2012, p. 1) que são difíceis de quantificar e que constituem ameaças à sustentabilidade futura dessas organizações. Como tal, “risk can no longer be addressed in a reductionist approach, measuring each risk source separately and considering relations in terms of static correlation structures” (Gonçalves, 2012, p. 1). Hoje, as dinâmicas relacionais surgem em redes complexas, são imprevisíveis e não-lineares. A organização tem, pois, “the need to quickly adapt to the new strategic situation” (p. 2) e de assumir a maior celeridade com que os pressupostos e os objectivos estratégicos podem sofrer alterações. Então, as organizações, sejam Estados, empresas, organizações internacionais, regionais ou não-governamentais, devem desenvolver uma estrutura de governação do risco, capaz de promover uma gestão estratégica e integrada do risco, garantir a avaliação da ameaça e os procedimentos de contingência e assegurar o funcionamento eficaz de um sistema de monotorização das fontes de risco (Gonçalves, 2012, p. 2). Neste sentido, são três as áreas transdisciplinares que apoiam este esforço: a ciência geral do risco, a ciência dos sistemas e as ciências da complexidade. O surgimento e autonomização da ciência geral do risco, abordada a partir de uma base paradigmática da quarta fase da cibernética (Gonçalves, 2013b), resultaram do desenvolvimento das ciências da complexidade, que trabalham em torno do risco e dos

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sistemas, e do desenvolvimento da área da análise de risco, enquanto área de investigação aplicada (Gonçalves, 2013a). A ciência geral do risco é, portanto, “uma ciência transdisciplinar com raiz na investigação fundamental desenvolvida desde as décadas de 1960 e 1970 (principalmente a partir de 1970) acerca dos sistemas complexos” (Gonçalves, 2013a, p. 4). Ao nível fundamental considera o risco enquanto tal, com base numa mudança de perspectiva na Física: “da busca de uma partícula fundamental para uma abordagem relacional da matéria e das forças” (Gonçalves, 2013a, p. 5). Ao nível aplicado “visa o desenvolvimento de metodologias e abordagens de gestão de risco em cenários de complexidade

dinâmica

coevolutiva,

correspondentes

a

situações

de

risco

interconectadas” (p. 4) que envolvem vários tipos de ameaças. Deste modo, as dinâmicas relacionais sistémicas permitem perceber a que corresponde um sistema: a “um padrão, estrutura ou qualquer conjunto de partes que sustentavelmente articuladas entre si se constituem e permanecem enquanto presença individuada integral e subsistente” (Gonçalves, 2013a, p. 5). Assim, um sistema não é a mera soma das suas partes, pois “há propriedades na síntese que constitui a totalidade do sistema que não estão nas partes, muito embora essas propriedades emirjam da interacção entre as partes” (Gonçalves, 2013a, p. 6). O problema da sustentabilidade da entidade sistémica é a base para o trabalho em torno da questão do risco no seio da ciência dos sistemas e das ciências da complexidade (Gonçalves, 2013a), o que leva à necessidade de definição do conceito de sustentabilidade. Todos os sistemas são dependentes de campos de sustentabilidade, que “são nos sistemas e com os sistemas” (Gonçalves, 2013a, p. 8), incorporam todos os elementos que constituem o sistema e alertam-no para os sinais de ameaças e de oportunidades. Os campos de sustentabilidade são caracterizados pela não-localidade, “uma distribuição cognitiva projectiva holográfica, gerida por uma dinâmica de simultaneidade sistémica, da unidade nas respectivas localidades sistémicas” (p. 9), sempre inerente à totalidade sistémica, pois é própria da natureza do sistema. Duas escolas desenvolvem investigação científica acerca da natureza sistémica do risco e da complexidade e “help risk science establish a basis for addressing the current risk problems that human organizations face” (Gonçalves, 2012, p. 13): a Escola de Bruxelas-Austin e a Escola de Estugarda.

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A Escola de Bruxelas-Austin aborda o risco como parte do problema da complexidade, “since it places risk as an underlying concept necessary to understand complexity” (Gonçalves, 2012, p. 11)., e conceptualiza as organizações humanas enquanto sistemas complexos abertos “that, to survive, have to expose themselves to risk situations, consuming resources and generating adaptative dynamics for their systemic sustainability, which, in turn, are generators of new risk situations” (Gonçalves, 2012, p. 11). Ora, no seio de um sistema complexo, a capacidade de autoorganização (auto-poiética) relacionada com o risco decorre da noção de estrutura dissipativa, conceito de Ilya Prigogine, que corresponde a “um sistema aberto que se alimenta de energia e matéria do meio, dissipando energia na sua actividade sistémica auto-organizadora” (Gonçalves, 2013a, p. 3). A Escola de Estugarda trabalha a noção de sinergética, conceito com origem no termo grego synergein (συνεργειν), que significa “trabalhar em conjunto, cooperar”, “central para uma abordagem sistémica ao risco” (Gonçalves, 2013a, p. 7), pois que a auto-poiética característica de um sistema aberto “depende de uma sinergética em conectividade vital” (Gonçalves, 2013a, p. 7), e trabalha com “self-organisation processes that lead to the emergence of lower dimensional dynamics in high dimensional systems” (Gonçalves, 2012, p. 10). Isto contribui para a ciência geral do risco na medida em que “it allows one to address particular instances in which there may emerge slow moving degrees of freedom, that come to act as control parameters and fast moving degrees of freedom that come to behave as order parameters” (Gonçalves, 2012, p. 10) e permite, através da ciência geral do risco, um nível de antecipação e previsibilidade mais elevado com um certo grau probabilístico. Então, no âmbito da realização de uma análise de risco em torno do problema da insegurança alimentar na China, importa ter em conta as noções de estratégia, de risco, de sistema, de complexidade e os trabalhos desenvolvidos pela Escola de BruxelasAustin e pela Escola de Estugarda, nas quais “o risco tem sido trabalhado enquanto problema, a partir de uma base de concretude sistémica, ligado à própria sustentabilidade dos sistemas” (Gonçalves, 2013a, p. 2) e cujos conceitos fornecem “a basic groundwork upon which one may build applications that can be effectively applied to the current more complex contexts” (Gonçalves, 2012, p. 13). Em suma, a análise de risco permite uma abordagem sistémica ao risco, este último sempre inerente à existência do sistema. Sempre que há um sistema há risco, e

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sempre que há risco há ameaça à estrutura do sistema e, por conseguinte, risco de colapso desse sistema. Não há estrutura sistémica que não corra o risco de colapsar. Esta tipologia de análise permite então, entre outras possibilidades, apoiar a tomada de decisão relativamente ao problema referido, dada a incerteza estratégica e a elevada complexidade dinâmica e sistémica que o caracterizam.

3. O Sistema Alimentar Chinês: Caracterização

Na primeira fase da presente análise em torno do risco de ocorrência de um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar na China cabe aferir a natureza, as características e as dinâmicas fundamentais do sistema alimentar chinês no presente e enumerar as condições de sustentabilidade do mesmo bem como as condições que podem fazer quebrar essa sustentabilidade. Importa salientar que esta é uma estrutura dinâmica, pois ocorre presentemente, com causalidade sistémica, que a sustentabilidade está na dinâmica sistémica da estrutura e que o sistema só se mantém enquanto a sustentabilidade se mantiver. No início do século XXI, os efeitos das mudanças políticas e económicas operadas desde o final dos anos 1970 do século XX na RPC começaram a fazer-se sentir. A política de abertura ao exterior, o conjunto das reformas económicas encetadas e as transformações decorrentes de tudo isso fizeram com que a China deixasse de ser auto-suficiente em muitas áreas, nomeadamente no sector alimentar. O actual sistema alimentar chinês enfrenta desafios que se prendem muito com a questão da (in)segurança alimentar. A RPC tem a seu cargo a função e o imperativo de alimentar a maior população do mundo, pelo que a segurança alimentar é encarada como uma questão de estabilidade e por isso uma prioridade nacional no planeamento estratégico dos sucessivos governos do Partido Comunista Chinês (PCC). O sistema alimentar da RPC está construído com base num forte poder político, numa grande capacidade económica e na coesão nacional do povo chinês, na medida em que o país tem a seu favor “uma vasta riqueza e uma forte disciplina económica e política” (Moyo, 2013, p. 14) e a capacidade de manutenção da ordem social no país. Porém, estas dinâmicas sistémicas que tornam o funcionamento do sistema sustentável são alvo de pressão por diversos motivos: questões ambientais, questões demográficas, questões relacionadas com a oferta e a procura no mercado global de

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recursos e produtos alimentares, questões socioeconómicas e factores culturais. Estas questões constituem, assim, dinâmicas de risco que ameaçam a sustentabilidade do sistema e que, posteriormente, num cenário agravado, podem tornar-se condições favoráveis ao colapso do mesmo. Importa salientar que ambos os tipos de condições, as que dão sustentabilidade ao sistema alimentar chinês e as que contribuem para quebrála, ocorrem em simultâneo e relacionam-se de forma dinâmica. A actual estratégia chinesa para a segurança alimentar nacional consiste em passar de uma produção rápida para satisfazer as necessidades alimentares da população, pois que a quantidade de produção interna insuficiente é passível de ser colmatada com importações provenientes do mercado global de recursos e produtos alimentares através da capacidade económico-financeira da China para tal, para uma produção de qualidade com objectivos de melhoria dos padrões de segurança alimentar, dos padrões de vida e das condições ambientais do país e do resto do mundo. O regime político autoritário do Partido-Estado facilita o exercício de autoridade e controlo político no que toca à garantia da segurança alimentar, designadamente em termos de implementação de políticas, reformas, regulações, legislações em torno do sistema alimentar nacional e de questões associadas (controlo demográfico, das migrações e das liberdades de expressão e de associação, investimento em alternativas para aumentar a produtividade e qualidade, aumento das importações no mercado mundial, reformas ambientais, sociais e fiscais). O sistema alimentar chinês é profundamente enraizado nos meios rurais e é bastante complexo e descentralizado. As quintas familiares são as maiores unidades de produção e venda de produtos agrícolas (Lupo, 2014), muitas vezes sem equipamentos e instalações adequados e sem padrões de gestão estandardizados. A regulação do sector é feita em separado pelo governo e pelas províncias (Lupo, 2014), que adoptam políticas regulatórias distintas, o que dificulta a uniformidade, a supervisão e o controlo da quantidade e da qualidade dos alimentos produzidos, distribuídos e acessíveis e gera fragmentações e inconsistências regulatórias (Lupo, 2014). Além disso, as quintas pertencem aos governos locais, o que “means that land cannot be bought or sold by farmers, only leased” (Carter, 2011, p. 7) e isso “raises a number of policy issues with respect to the transition of China’s agricultural sector towards a more modern industry” (Carter, 2011, p. 7). Este cenário desencoraja o investimento e a evolução das quintas para mais e maior eficiência na produção e distribuição.

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O rendimento e a produtividade agrícola mantêm-se, assim, diminutos e isso conduz à migração massiva de cidadãos rurais para os centros urbanos, onde os níveis de vida são mais elevados, o que gera alterações na estrutura demográfica conducentes a pressão sobre os alimentos ao dispor, tanto pela diminuição da produção devido à diminuição de cidadãos rurais que são produtores agrícolas como pelo aumento de pessoas a consumir os alimentos disponíveis nos meios urbanos. Face a isso, o governo tem em curso um programa de migração faseado, que faz com que a saída de chineses das áreas rurais para as áreas urbanas seja mais ordenada e sistemática (Moyo, 2013, p. 35), e tem em curso a implementação de reformas de combate às pressões ambientais e de atenuação das consequências das alterações climáticas no país. Em termos económicos, a China tornou-se, em 2010, a segunda maior economia mundial (Moyo, 2013, p. 28) e é a maior economia agrícola do mundo (Carter, 2011), suportando cerca de 1,3 biliões de pessoas. Porém, possui apenas cerca de 12% de terra arável (Moyo, 2013, p. 40) e essa como fonte de alimentação “compete directamente com a utilização da mesma como sítio onde as pessoas e os governos decidem construir as suas casas e cidades” (Moyo, 2013, p. 40). A área arável começa a diminuir e surge a necessidade de usar fertilizantes químicos (Carter, 2011, p. 6) para ultrapassar a escassez de terra arável e de água. A poluição agrícola resultante dá, por sua vez, origem a fenómenos de erosão (utilização intensa de parcelas diminutas de terreno) e de desertificação. O desgaste intensivo destes factores de produção alimentar nacional faz com que a China actualmente só satisfaça cerca de 70% das necessidades alimentares da população (Lupo, 2014) e leva à necessidade de aumentar as importações. Ora, a RPC tem conseguido manter a sustentabilidade e a relativa estabilidade do sistema alimentar nacional precisamente pelo seu poder económico-financeiro. De facto, “reversed its long-time status as a net agricultural exporting country to that of a net importing country since 2004” (Carter, 2011, p. 5). Como tal, face às lacunas internas, tem disponibilidade e capacidade para investir no aumento da quantidade e na melhoria da qualidade dos alimentos produzidos a nível nacional (alimentos transgénicos e alimentos orgânicos), para, em aquisições internacionais, pagar acima dos preços praticados no mercado de modo a conseguir os recursos de que necessita e para subsidiar as empresas estatais que investem no sector alimentar no exterior. Apesar de todo o sucesso económico, a RPC ainda é um país em desenvolvimento, com grandes disparidades e um profundo gap entre o meio rural e o

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meio urbano e com significativas franjas da sua população com inadequados e limitados capacidade e acesso a uma alimentação regular e saudável e que por isso partem para os centros urbanos em crescimento explosivo e onde as condições de vida são melhores, acabando por pressionar a segurança alimentar dos mesmos. A cultura chinesa também influencia a natureza, as dinâmicas e as características do sistema alimentar chinês. A cultura de cost-cutting, a cultura de good-enough quality e a falta de tolerância para com o desperdício (Lupo, 2014), características da cultura nacional e resultado de episódios históricos do país, como fomes e episódios de escassez de alimentos, têm bastantes efeitos ao nível da quantidade e da qualidade dos alimentos que são produzidos e que saem para distribuição nacional. O sistema alimentar chinês, que tem sido sustentável por um conjunto de políticas nacionais e pela capacidade económica, sofre então múltiplas pressões em várias dimensões que fragilizam, em termos sistémicos, a sua sustentabilidade. Internamente, as acções encetadas para travar a deterioração das condições de garantia da segurança alimentar da população nacional não se têm demonstrado suficientes nem com a rapidez necessária para efeitos de estabilização e consolidação. Externamente, muitos outros países para além da China também são afectados pelos fenómenos das alterações climáticas, de alterações na estrutura demográfica, dos êxodos para grandes centros urbanos e da escassez de recursos afectos à produção e consumo alimentar, o que pode condicionar e limitar o volume de produtos alimentares disponíveis no mercado global de alimentos. Obtemos assim as condições que sustentam o sistema alimentar da RPC e, em simultâneo, as condições que, se atingidas, alimentadas e aprofundadas, podem conduzir à sua disrupção sistémica. Ora, todo este cenário pode conduzir ao aumento da insegurança alimentar numa primeira fase, à sua aceleração elevada numa fase seguinte e numa terceira fase ao colapso do sistema alimentar do país. De seguida, importa identificar as condições demonstrativas de aberturas que expõem as vacuidades estruturais capazes de quebrar a sustentabilidade do sistema.

4. Análise das Vacuidades e das Aberturas

Após analisar a estrutura do sistema alimentar chinês e identificar as condições de sustentabilidade – construção, funcionamento e adaptação sistémica, pontos de força

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e pontos de ameaça – que o mantêm e suportam, importa agora identificar os pontos e factores de transformação sistémica, ou seja, as vacuidades estruturais do sistema e as aberturas que permitem atingir as vacuidades e investigar em torno da forma como essas podem ser atingidas e, assim, despoletar a aceleração elevada da insegurança alimentar na China, provocando a disrupção estrutural no funcionamento do sistema. Baseamos, naturalmente, a realização desta fase da análise nas noções de segurança alimentar e insegurança alimentar adoptadas desde logo na introdução à presente análise e nas respectivas dimensões que consideramos estarem associadas. Assim, a segurança alimentar corresponde ao acesso físico e económico de toda uma população, em todos os momentos, a alimentos suficientes, seguros e nutritivos que permitam satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida saudável e activa e as dimensões associadas são a disponibilidade (em termos de produção, stock e fluxo), o acesso (através de direitos e recursos adequados à aquisição de alimentos), a utilização (dos alimentos para o bem-estar) e a estabilidade temporal dos vectores anteriores. A insegurança alimentar surge, então, como o inadequado e insuficiente acesso físico e económico por parte de uma população a uma alimentação segura e nutritiva para uma vida activa e saudável. Depois, importa compreender as noções de vacuidades e aberturas, pontos vitais do sistema que, se atingidos, podem conduzir à ruptura do funcionamento do mesmo. Sempre que há uma vacuidade ou uma abertura num sistema há um factor de insustentabilidade do mesmo, um ponto fraco que, se atingido, provoca uma disrupção ou a aceleração de uma disrupção já em curso no contexto desse sistema. Então, segundo a Arte da Guerra (孫子兵法), obra de Sun Tzu e uma referência no pensamento estratégico militar asiático, especificamente no capítulo 6 (Vacuity and Substance), xu (虛) corresponde às aberturas para a acção em relação às fraquezas (pontos vitais) do adversário e shí (實) corresponde aos pontos de força. Neste sentido, Sun Tzu defende que se aja nas aberturas do adversário e se recolha nos pontos de força, de modo a obter o sucesso desejado. Incluída nesta definição está então a noção de abertura táctica, relacionada com a noção de xu (虛), caracter que pode ser traduzido por desprovido de conteúdo, falso, vazio, e a noção de shí (實), caracter que pode ser traduzido por real, verdadeiro, honesto, sólido. Estes são frequentemente considerados xu (虛) por vacuidade e shí (實) por substancial (Sawyer, 1993).

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Aplicando estas noções conceptuais ao contexto específico da presente análise, as vacuidades expostas por aberturas (fragilidades sistémicas) em pontos vitais do sistema alimentar chinês permitem a existência de dinâmicas de risco conducentes à aceleração elevada de um cenário de insegurança alimentar no país. Assim, identificámos no sistema alimentar chinês aberturas e vacuidades estruturais a vários níveis, que se relacionam entre si de forma interdependente, conduzindo directa e/ou indirectamente consoante causem directa ou indirectamente alterações nas dimensões que permitem a existência de segurança alimentar no país, e que constituem, se despoletadas e alimentadas, dinâmicas de risco para a aceleração elevada da insegurança alimentar na RPC. As políticas governamentais implementadas que se têm demonstrado muitas vezes insuficientes e ineficientes conduzem a uma crise ambiental pela falta e/ou ineficácia de políticas no sector ambiental, nomeadamente ao nível da protecção e preservação ecológica, e de combate ao agravamento das alterações climáticas, gerando propensão para a corrupção ambiental (este tipo de corrupção e os outros em torno da quantidade e qualidade dos alimentos produzidos, distribuídos e disponíveis). Conduzem a uma crise económico-financeira pela deficiente ou falta de regulação do sector produtivo e distribuidor no âmbito do sector alimentar, o que leva à diminuição das capacidades de fomento no sector da inovação científica e tecnológica para a garantia, aumento e melhoria da segurança alimentar e à diminuição da capacidade produtiva e dos rendimentos dos produtores, distribuidores e consumidores, gerando propensão para a corrupção económica. Conduzem a uma crise política pelo surgimento de desconfiança e descrença no sistema político e de instabilidade política devido à insatisfação com as respostas do governo face ao risco de insegurança alimentar, gerando propensão para a corrupção política. Conduzem a uma crise social devido ao deterioramento das condições sociais da população decorrente da deterioração da segurança alimentar em virtude de uma igual deterioração das condições ambientais, políticas e económico-financeiras. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar devido à existência de lacunas do ponto de vista da implementação de medidas de governação política no âmbito dos vários sectores relacionados com a garantia da segurança alimentar na China. A ocorrência de uma crise ambiental conduz à ocorrência de uma crise social, pois que o deterioramento das condições ambientais despoleta o agravamento das

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condições sociais da população chinesa. Leva ao aumento das importações, pois que a poluição do ar, água e solos e a ocorrência de catástrofes naturais resultantes das alterações climáticas e de imprevisibilidades metereológicas têm efeitos na água e terra arável necessárias à produção alimentar (agricultura e pecuária), o que por sua vez causa a diminuição da produtividade e acesso e a deterioração da qualidade dos alimentos, e o aumento das importações surge como solução para colmatar estas lacunas (insegurança alimentar crónica) bem como as que emergem da ocorrência de fenómenos ambientais sazonais (insegurança alimentar temporária). Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar na medida em que deixam de existir as condições ambientais ideais para produção e distribuição de alimentos, o que afecta a disponibilidade, o acesso e o consumo alimentar adequados e a estabilidade e regularidade temporal de todas esses vectores. A diminuição da produção de alimentos conduz à necessidade de um aumento das importações pois que a deterioração ambiental e climática e a migração massiva dos campos para as cidades reduzem a capacidade, o nível e a quantidade de produção alimentar nacional, isto é, o meio rural (onde existem terrenos férteis e se faz criação de animais) deixa de oferecer condições para produzir ao mesmo nível por motivos ambientais e climáticos e assim a produção de alimentos deixa de ser suficiente para suprir as necessidades alimentares da população nacional chinesa (fim da autosuficiência em termos de recursos para a produção alimentar e de produtos alimentares no mercado interno chinês). Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar dado que conduz à deterioração da regularidade da disponibilidade de alimentos, do acesso adequado em termos de aquisição e da utilização dos mesmos para o bem-estar e, por sua vez, coloca em risco a estabilidade temporal de todas estas dimensões. O êxodo acelerado dos campos para as cidades, isto é, os fenómenos de migração massiva, conduz à diminuição dos níveis de produção de alimentos a nível nacional porque a população rural, a franja da população chinesa que trabalha maioritariamente na produção alimentar (agricultura e pecuária), diminui por motivos demográficos e por isso surge a falta de pessoas para trabalhar neste sector. Conduz ao crescimento demográfico urbano elevado porque a população abandona o meio rural em busca de melhores condições de vida que à partida existem no meio urbano e dá-se, pois, um aumento da população nesse mesmo meio. Esta dinâmica despoleta

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directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar porque o abandono do meio rural e a sobrepopulação do meio urbano têm efeitos negativos ao nível de dimensões associadas à garantia da segurança alimentar, designadamente a pressão nos recursos alimentares disponíveis, no acesso e na utilização dos mesmos. A crise económico-financeira conduz a uma crise política pois surge um défice de credibilidade no sistema político e na elite governativa devido à falta de respostas adequadas para a resolução dos problemas e desafios existentes no que diz respeito à segurança alimentar. Conduz a uma crise social porque a falta de condições de estabilidade e segurança económico-financeira (diminuição de rendimentos, diminuição do poder de compra, aumento das taxas de desemprego) geram instabilidade, insatisfação e insegurança social. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar devido à falta de capacidade económicofinanceira do governo chinês para satisfazer as necessidades alimentares nacionais, tanto para investir no aumento da quantidade de produção alimentar nacional e na melhoria da qualidade da mesma como para direcionar recursos para o aumento das importações no mercado global de produtos alimentares, de modo a garantir a estabilidade temporal da disponibilidade, do acesso e da utilização de alimentos. A crise política conduz a uma crise social porque a instabilidade e tensões no sistema político nacional decorrentes da falta de condições regulares de disponibilidade, acesso e utilização de alimentos surtem desequilíbrios nas estruturas sociais rural e urbana da RPC, levando à sua desestruturação, e conduz a uma crise económicofinanceira pois o regime político desestabilizado faz surgir a desconfiança por parte dos mercados financeiros e investidores internacionais, que deslocam os seus recursos e investimentos para fora do país pela incerteza dos retornos. A crise social conduz a uma crise política na medida em que a desestruturação da ordem social em vigor, tanto nos meios rurais, que sofrem de fenómenos de desertificação e êxodo para as grandes cidades, como nos meios urbanos, que recebem elevados números de cidadãos oriundos dos meios rurais e vêem as suas estruturas e recursos sob pressão em termos de desequilíbrios na oferta e na procura, provoca descrença e desconfiança no regime político e no governo. O crescimento demográfico urbano elevado conduz à pobreza urbana crescente porque os meios urbanos deixam de ser capazes de suprir de forma sustentada e sustentável as necessidades alimentares de uma população urbana mais elevada, que

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se vê sem condições sociais e económicas adequadas, e conduz à pressão sobre os recursos alimentares nas grandes cidades porque ocorre um aumento da população a viver nas grandes cidades e a necessidade de maior quantidade de alimentos aumenta também. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar na medida em que os recursos existentes nas grandes cidades se tornam insuficientes por relação com a população que, em número elevado, passa a existir nas mesmas, e como tal dá-se uma deterioração da estabilidade da disponibilidade, do acesso e da utilização de alimentos. A pobreza urbana crescente (deterioração das condições sociais e económicas no meio urbano) conduz a um aumento da massa de pessoas com acesso limitado a alimentos em virtude do aumento do número de pessoas, em especial no meio urbano, com incapacidade de acesso e obtenção adequada e regular de alimentos e conduz à fome urbana, um fenómeno generalizado de subalimentação, má nutrição e privação no seio dos meios urbanos. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar porque o aumento da população urbana leva à insustentabilidade das estruturas políticas, económicas e sociais das grandes cidades e isso conduz, por sua vez, ao inadequado e insuficiente acesso físico e económico a uma alimentação segura e nutritiva para uma vida activa e saudável. A fome urbana conduz a uma crise social porque a falta de capacidade de acesso e obtenção de alimentos provoca instabilidade social e coloca em risco a estrutura e ordem sociais em vigor. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar porque a população chinesa fica perante um panorama de inadequado e insuficiente acesso a uma alimentação segura e nutritiva para uma vida activa e saudável devido à indisponibilidade em termos de produção, stock ao dispor e fluxos de distribuição e devido à impossibilidade de acesso pela falta de poder de compra, com naturais efeitos na utilização de alimentos para o bem-estar alimentar de forma estável e regular no tempo. A pressão sobre os recursos alimentares nas grandes cidades conduz à fome urbana porque surge um desequilíbrio na oferta e na procura e os alimentos disponíveis nos meios urbanos tornam-se insuficientes para uma alimentação regular e adequada das populações nas grandes cidades chinesas. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar pois provoca uma

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desestabilização na regularidade e estabilidade temporal ao nível da disponibilidade, acesso e utilização de alimentos para a saúde e bem-estar alimentares. O aumento das importações, isto é, a necessidade de aumentar as importações de alimentos provenientes do mercado global de produtos alimentares, conduz a uma crise económico-financeira pois perante uma produção alimentar nacional insuficiente e de fraca qualidade, a necessidade de aumentar de forma exponencial as importações para suprir as necessidades alimentares da população chinesa tornam insustentável, ao longo do tempo, a capacidade económica de continuar a fazê-lo, concomitantemente com as boas condições de produção nacional em decrescendo. Disto decorre, por sua vez, a propensão para o surgimento de um défice na balança comercial no que toca ao sector alimentar na medida em que importa mais e consome a nível interno grande parte dos recursos alimentares que seriam para exportação. O aumento da massa de pessoas com acesso limitado a alimentos conduz à fome urbana devido à incapacidade de acesso e obtenção de alimentos de forma adequada e regular por parte da população total, tanto a os meios rurais, sem condições de produção alimentar adequada e suficiente para consumo e distribuição, como a dos meios urbanos, sem acesso e capacidade de obtenção apropriados. Esta dinâmica despoleta directamente um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar porque leva à falta de disponibilidade de alimentos para a população chinesa, que deixa de conseguir ter adequados acesso e utilização dos alimentos.

5. Análise das Dinâmicas de Risco

Realizar uma análise de risco ao fenómeno da insegurança alimentar na China significa trabalhar com relações sistémicas de movimento. Sabendo que uma análise dessa natureza é realizada em torno da ocorrência de um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar e que é composta por relações sistémicas de movimento, essa possibilidade deve então ser trabalhada a partir de uma estrutura de morfismo. Após uma abordagem às tendências de sustentabilidade do sistema alimentar chinês e aos factores de quebra dessas tendências de sustentabilidade, as teias mórficas de disrupção sistémica apresentam-se como a técnica mais adequada, pois permitem construir teias de eventos, diagramas de ligações de acção e consequência das relações sistémicas de movimento entre as dinâmicas de risco identificadas aquando da análise

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das aberturas e vacuidades estruturais do sistema. Estas geram, por sua vez, os nós de disrupção sequenciais conducentes ao cenário que integra as relações sistémicas de movimento, neste caso a aceleração elevada da insegurança alimentar na China. Ora, o objectivo nesta fase da análise é perceber de que forma é que as vacuidades estruturais e aberturas identificadas enquanto dinâmicas de risco na fase anterior da análise se relacionam em termos sistémicos dinâmicos e podem ser atingidas e assim conduzir ao risco de aceleração elevada de um cenário de insegurança alimentar. Mas antes, importa abordar as noções inerentes à técnica das teias mórficas. Só depois passaremos à construção de uma teia mórfica orientada em torno de um nó de disrupção central de aceleração elevada e aumento da insegurança alimentar. As teias mórficas de disrupção são estudadas no seio da teoria matemática das categorias, que estuda os objectos enquanto conjuntos estruturados e as relações mórficas entre os mesmos. Esta teorização é útil “in any sciences where the notion of system is relevant” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 30), pelo que se revela bastante útil para a compreensão das relações sistémicas de movimento entre as dinâmicas de risco em torno do cenário que abordamos na presente análise. Segundo esta teoria cada objecto “can be identified from its position and motion, in morphic relations” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 3) e estas últimas “are defined as binary relations that have only two objects as terms, one is the origin the other is the target” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 3). Uma relação mórfica inclui também um fundamento para a ligação origem-alvo: “the morphic relations are thus directional, and completely specified by the positions of the two objects and by the fundament” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 3), o elemento que justifica a relação. Ora, as relações mórficas são dirigidas “by the notion of morphism, which is denoted by an expression where two objects are linked by a labeled arrow” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 3). É essa seta que especifica qual é o objecto que é a origem e qual é o objecto que é o alvo e é o fundamento da relação mórfica que a designa. Então, o morfismo é uma noção geral de movimento direccionado e fundamentado, ou seja, “conceptually operationalizes the whole morphic relation, that is, the two terms connected by the arrow that is labeled by the fundament” (Gonçalves & Madeira, 2009, p. 3). A relação mórfica é determinada pelos objectos e pelo fundamento e o morfismo “defines a systemic motion from x to y, the double-arrow simply signals the systemic relation itself” (Gonçalves e Madeira, 2009, p. 4). Só “the

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identity morphism connects the object to itself, in itself, that is, the origin and target are simultaneous” (p. 4). Nessa lógica “the system, considered in terms of its individuation, bearer of an identity, is an existent in permanent rotative coincidence with itself” (p. 5). Posto isto, a teia mórfica de disrupção enquanto estrutura geral é uma técnica em grande parte qualitativa, na qual existem um conjunto de eventos e acções que constituem os pontos de origem e de alvo, os nomes para as ligações, as ligações em si e as fundamentações para as ligações, mas tem também uma componente quantitativa, pois existe um número de nós de disrupção da sustentabilidade do sistema e um número de cenários que consubstanciam as dinâmicas de risco. Neste sentido, a estruturação das dinâmicas de risco identificadas na fase anterior da presente análise será realizada através da aplicação da técnica das teias mórficas de disrupção, designadamente através da construção de uma teia mórfica composta por um conjunto de nós de disrupção (nós-origem e nós-alvo) interligados entre si de forma sistémica e dinâmica com base nas respectivas fundamentações, razão pela qual os nós de disrupção se ligam e razão pela qual existe o sistema. A teia será, pois, orientada, em torno de um nó central terminal (a insegurança alimentar). Assim sendo, como resultado da análise e da identificação de pontos de ruptura e de dinâmicas de risco com origem nas aberturas estruturais e dinâmicas sistémicas que expõem vacuidades no seio do sistema alimentar chinês, desenvolvemos uma teia mórfica de disrupção para o cenário de aumento da insegurança alimentar na RPC, sendo este o nó terminal do qual depende toda a sustentabilidade do sistema, com base na construção de cenários integrados num paradigma centrado no movimento e no relacionamento sistémico entre as várias dinâmicas de risco.

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6. Conclusões

A segurança alimentar é um fenómeno multidimensional que, como tal, deve ser alvo de uma análise na óptica de múltiplas perspectivas que complementam e completam a visão estratégica necessária face ao problema. A insegurança alimentar é um problema com uma natureza sistémica e complexa, inerente e intensamente relacionado com os fenómenos do risco e da incerteza estratégica. As organizações, neste caso o Estado chinês, “can no longer address risk from a local and reductionist perspective, risk exposures must be addressed strategically and conjointly in their coevolving dynamics” (Gonçalves, 2012, p. 21). O facto de o mundo se ter tornado interligado e interconectado à escala global “has led to an interconnectivity between risk situations, so that risk exposures depend upon a complex web in which diferente domains appear interconnected” (Gonçalves, 2012, p. 21): demografia, ambiente, saúde, segurança, economia, mercados financeiros, política, sociedade, cultura, tecnologia. Assim sendo, a análise de risco tem as características e as componentes indicadas para abordar a questão em análise.

Partindo da disponibilidade, produção, distribuição e acesso a alimentos enquanto base fundamental no sentido da disrupção no seio de todos esses vectores, realizámos uma abordagem sistémica às dinâmicas complexas do risco de ocorrência de um cenário de aceleração elevada da insegurança alimentar na RPC, uma questão na qual é imperativo o raciocínio estratégico em termos de tomada de decisão. Os resultados da análise de risco realizada – caracterização do sistema alimentar chinês (condições de sustentabilidade e condições de insustentabilidade), identificação dos pontos de transformação sistémica (aberturas e vacuidades) e análise das dinâmicas de risco através da construção de uma teia mórfica de disrupção – demonstraram que esta é uma tipologia de análise bastante adequada e eficiente para a obtenção de uma visão holística relativamente ao problema da insegurança alimentar na China, visão essa útil a uma eventual tomada de decisão em torno da questão. A caracterização do sistema alimentar chinês permitiu perceber que as condições de sustentabilidade do sistema e as condições que podem fazer quebrar essa sustentabilidade existem em relação estreita e intricada, o que dificulta a identificação de cada tipo de características sistémicas e, por sua vez, a identificação daquilo que são os pontos fracos do sistema face aos seus pontos de força. A identificação dos pontos de transformação sistémica, isto é, das vacuidades expostas pelas aberturas existentes, permitiu observar que o estado actual do sistema alimentar chinês é de extrema fragilidade e pode entrar, não a curto mas a médio-prazo, em cenário de insustentabilidade, sempre sistémica, dada a intensa interligação e interdependência entre as dinâmicas que o constituem, e, caso nada seja feito, pode mesmo atingir um cenário de disrupção e ruptura sistémica. A organização das dinâmicas de risco resultantes numa estrutura de morfismo, ou seja, numa teia mórfica, orientada em torno do ponto de disrupção central da aceleração elevada da insegurança alimentar no país permitir ter uma visão gráfica, e por isso mais perceptível de forma relativamente imediata, de todo o quadro até então em processo de análise e investigação. Actualmente, as principais ameaças, no seio do sistema alimentar chinês, conducentes à aceleração elevada da insegurança alimentar na RPC encontram-se sobretudo nos domínios económico-financeiro, político e ambiental. Em termos económicos, a economia chinesa já se encontra em fase de abrandamento (Público, 2013; Aljazeera, 2015) e o seu mercado financeiro atravessou

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recentemente uma fase de instabilidade (Aljazeera, 2015) a qual ainda não ultrapassou totalmente, tendo tudo isto influência na capacidade de garantia da segurança alimentar por parte do país (investimento nas infraestruturas de produção e distribuição nacional e aquisições internacionais de recursos e produtos alimentares). Em termos políticos, a China atravessou também recentemente episódios de desagrado para com o poder central de Pequim (o PCC), como foi o caso das manifestações ocorridas em Hong Kong (BBC Brasil, 2014), o que mina a credibilidade do Partido e do regime político e a sua capacidade para conduzir politicamente os processos e os mecanismos relacionados com a segurança alimentar nacional. Em termos ambientais, todas as políticas, reformas, legislações e regulações que tem sido implementadas pelo governo chinês ainda estão em fase bastante embrionária e a sua eficácia é questionável face a um problema que a nível nacional é tão profundo e agravado. Os efeitos devastadores das alterações climáticas e a falta de preservação do ambiente continuam a fazer-se sentir a uma velocidade, ritmo, progresso e intensidade galopantes, tanto nos meios rurais que produzem os alimentos e que assim se vêem perante a desertificação como nos meios urbanos cuja prosperidade se vê ameaçada e em deterioração face ao aumento da população vinda dos meios rurais. As vantagens de uma análise de risco prendem-se, então, com o facto de conferirem aos decisores estratégicos, para as suas análises e decisões estratégicas, uma percepção mais abrangente, mais profunda e multifacetada do problema em causa e dos fenómenos que lhe estão associados, que podem resolvê-lo ou fortalecê-lo, e essa percepção surge numa estruturação correspondente e mais aproximada à natureza sistémica e complexa real do problema em causa. Num mundo em que tudo existe em teias relacionais, onde tudo existe em dinâmicas sistémicas complexas e onde o risco é um dos grande catalisadores da incerteza e uma das ameaças mais temidas, porque mais desconhecidas na sua base fundamental, a abordagem a um problema na busca de opções para a tomada de decisão acerca do mesmo já não passa única e obrigatoriamente por um documento oficial com listagens parcelares, fragmentadas e fraccionadas de características e tendências, forças, fraquezas, oportunidades e ameaças ou vantagens, desvantagens, sugestões e medidas. É aqui que surgem, e com uma importância fulcral, as análises a cenários com riscos intrínsecos, complexos, dinâmicos e sistémicos, abordagens essas que possuem a

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potencialidade de avaliação do problema em causa através da perspectiva global desejável no contexto daquele que é hoje, e também, um mundo global.

7. Referências Bibliográficas 

Livros

Moyo, Dambisa (2013) – A China e a Corrida aos Recursos: O Vencedor Leva Tudo. Lisboa: Bertrand Editora. Sawyer, Ralph D. (1993) – “Sun Tzu’s Art of War (孫子兵法)” in The Seven Military Classics of Ancient China, pp. 145-186. X: Basic Books. 

Artigos científicos

Gonçalves, Carlos P. & Madeira, Maria O. (2009), “A Systems Theoretical Formal Logic for Category Theory”. Social Sciences Research Network – Working Papers. Retirado de: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1396841. Gonçalves, Carlos P. (2012), “Risk Governance – A Framework for Risk Science-Based Decision Support Systems”. Social Sciences Research Network – Working Papers. Retirado de: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2085482. Gonçalves, Carlos P. (2013b), “As Quatro Fases da Cibernética e a Ciência da Tomada de

Decisão”.

Retirado

de

http://www.academia.edu/4820997/As_Quatro_Fases_da_Cibernetica_e_a_Ciencia_da_ Tomada_de_Decisao Gonçalves, Carlos P. (2013a), “Ciência Geral do Risco e Ciência dos Sistemas – Risco, Sistema

e

Sustentabilidade”.

Retirado

de:

http://www.academia.edu/5011205/Ciencia_Geral_do_Risco_e_Ciencia_dos_Sistemas_ -_Risco_Sistema_e_Sustentabilidade

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Artigos em publicações periódicas

Aljazeera (2015), Has China’s stock market bubble burst?. Retirado de: http://www.aljazeera.com/programmes/countingthecost/2015/07/china-stock-marketbubble-burst-150711113737001.html. Data de Acesso: 11 de julho de 2015.

Aljazeera (2015), China’s figures show economy slowing down. Retirado de: http://www.aljazeera.com/news/2015/04/china-figures-show-economy-slowing150415065105549.html. Data de Acesso: 30 de junho de 2015.

BBC Brasil (2014), Hong Kong é palco de protestos pró-democracia; entenda. Retirado de: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/09/140929_hong_kong_entenda_pai. Data de Acesso: 30 de junho de 2015. Carter, Colin A. (2011). Carter, Colin A. 2011. “China’s Agriculture: Achievements and Challenges”. ARE Update, 14(5), pp. 5-7. University of California Giannini Foundation of Agricultural Economics.

Lupo, Lisa (2014), The Food System of China: The Real Story. Data de Acesso: 23 de Maio de 2015. Retirado de http://www.qualityassurancemag.com/qa1214-food-qualitysystem-china.aspx Público (2013), Economia chinesa – a hora do abrandamento. Retirado de: http://www.publico.pt/economia/noticia/economia-chinesa--a-hora-do-abrandamento1600228. Data de Acesso: 30 de junho de 2015. 

Publicações Oficiais

Food and Agriculture Organization of the United Nations, (2008). An Introduction to the Basic Concepts of Food Security (pp. 1-3). EC - FAO Food Security Programme.

Food and Agriculture Organization of the United Nations, (2006). Food Security (pp. 14). FAO’s Agriculture and Development Economics Division (ESA).

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8. Anexos

Council on Foreign Relations (2011), Agricultural Innovations for Global Food Security.

Data

de

Acesso:

23

de

Maio

de

2015.

Retirado

de

http://blogs.cfr.org/coleman/2011/09/23/agricultural-innovations-for-global-foodsecurity/ The Atlantic (2011), The Meat of China’s Inflation Problem. Data de Acesso: 23 de Maio

de

2015.

Retirado

de

http://www.theatlantic.com/international/archive/2011/07/the-meat-of-chinas-inflationproblem/241777/

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